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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS PATRÍCIA CARVALHO SILVA CUIDADO AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: RACIONALIDADES POLÍTICAS, PROGRAMAS E TECNOLOGIAS CARE FOR ALCOHOL AND OTHER DRUG USERS: POLICY RATIONALITIES, PROGRAMS AND TECHNOLOGIES CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

PATRÍCIA CARVALHO SILVA

CUIDADO AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS:

RACIONALIDADES POLÍTICAS, PROGRAMAS E TECNOLOGIAS

CARE FOR ALCOHOL AND OTHER DRUG USERS: POLICY

RATIONALITIES, PROGRAMS AND TECHNOLOGIES

CAMPINAS

2019

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PATRÍCIA CARVALHO SILVA

CUIDADO AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS:

RACIONALIDADES POLÍTICAS, PROGRAMAS E TECNOLOGIAS

CARE FOR ALCOHOL AND OTHER DRUG USERS: POLICY

RATIONALITIES, PROGRAMS AND TECHNOLOGIES

Dissertação apresentada à Faculdade de

Ciências Médicas da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos para a

obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva:

Políticas e Gestão em Saúde, na área de Política,

Gestão e Planejamento

Dissertation presented to the Faculty of Medical

Sciences of the State University of Campinas as part of

the requirements required to obtain the title of Master in

Collective health: Policies and health management, in

the area of Policy, Management and Planning

ORIENTADOR: Prof. Dr. Sérgio Resende Carvalho

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA PATRÍCIA CARVALHO SILVA, E ORIENTADO PELO

PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.

CAMPINAS

2019

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE

MESTRADO

PATRÍCIA CARVALHO SILVA

ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

MEMBROS:

1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

2. PROF. DR. RICARDO SPARAPAN PENA

3. PROF. DR. SILVIO YASUI

Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em Saúde Coletiva:

Políticas e Gestão em Saúde da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade

Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

Data: DATA DA DEFESA

[22/08/2019]

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Da calma e do silêncio

(Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”)

Quando eu morder

a palavra,

por favor,

não me apressem,

quero mascar,

rasgar entre os dentes,

a pele, os ossos, o tutano

do verbo,

para assim versejar

o âmago das coisas.

Quando meu olhar

se perder no nada,

por favor,

não me despertem,

quero reter,

no adentro da íris,

a menor sombra,

do ínfimo movimento.

Quando meus pés

abrandarem na marcha,

por favor,

não me forcem.

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar,

deixem-me quieta,

na aparente inércia.

Nem todo viandante

anda estradas,

há mundos submersos,

que só o silêncio

da poesia penetra.

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AGRADECIMENTOS

Começo agradecendo aos encontros, sejam eles com a música, a poesia, os livros ou as

pessoas, pois produziram em mim a possibilidade de continuar essa ‘andança’ na vida e

pesquisa, compondo-a com muitos afetos e que sem eles não chegaria até o final.

À minha família que, sempre esteve comigo, em cada passo, me relembrando que um

território firme existia sob meus pés e assim foram primordiais na vivência de poder construir

outros territórios em minha vida e principalmente esse trabalho. Papito Roberto e Mãezona

Helena vocês me dão segurança em minhas empreitadas; irmã-mãe Simone você me faz

acreditar que sempre podemos mais; cunhado Sandro você me faz olhar outros pontos de vista;

sobrinhos Vitor e Júlia a juventude de vocês me coloca a responsabilidade de apostar numa

sociedade melhor. Obrigada!

Aos amigos, que de tão múltiplos constroem em minha vida uma colcha bonita de

retalhos coloridos, muito OBRIGADA! Fernanda e Anays que me apoiam a tantos anos a ser a

mulher que eu quero e posso! Maísa, Nana e Tamy nessa trajetória louca de nos construirmos

coletivamente, desde a graduação, vocês me inspiram com a força, determinação e coragem de

vocês! Ao Tiago, que sempre esteve junto reafirmando que nossa parceria nos habita e nos

fortalece! Às manas mentaleiras-guerreiras Camila, Andressa, Juliana, Thais, CarUlina,

Dayane, Juliana, Naira, Andréa que em tantos territórios que habitei me ensinaram que pisar

em terras mentaleiras é colocar-se juntas numa rede que aposta na flexibilidade e movimento,

mas que se coloca dura caso algo venha tentar romper! A rede de mulheres incríveis que

construí em Santos, Lalá, May, Pam, Carlota, Eve, Isys, Dani, Ana Júlia, Tahamy, Bia, Naiara

e Carol (que ajudou meu corpinho continuar vivo), vocês foram primordiais para eu levantar e

olhar o horizonte! À Febah, parceira de Lar, que dividindo as dores, comidas, vinhos, raivas,

choros e risos do cotidiano aguentou cada momento e me apoiou! À Lu e Gabi, mestras e

amigas, vocês são a reafirmação cotidiana de que militância é realizada através do verbo

LUTAR, obrigada pelos empréstimos de saber e afeto! A meus companheiros do Grupo de

Pesquisa, Estudo e Extensão Div3rso, Lena, Iza, Otaviano, Danilo, Ana Maria, Sr. Jardim,

Ângelo vocês me ensinam que cuidar é estar junto em todas as diferenças que nos compõem!

Ao mais novo companheiro de vida Breno, que na reta final veio trazer música, cor, afeto e

claro, muitos ‘memes’, obrigada por entrar em minha vida e fazer dela um estado de poesia!

Aos meus companheiros do Grupo Conexões, os quais mesmo em minha distância, se

fizeram presentes no ato de escrever e me fazer enquanto pesquisadora!

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Aos professores e colegas de profissão Silvio Yasui e Ricardo Pena, que estiveram

comigo na qualificação para além de avaliadores do percurso até então produzido, como

intercessores para essa produção final. Muito obrigada por colocarem-se em parceria.

Ao meu orientador, muitas vezes desorientador, Sérgio Carvalho que acreditou nesta

mulher, trabalhadora, pesquisadora, maluca! Você tornou-se um guia para além da produção

desta pesquisa, apoiando o ato de me experimentar na vida como uma constante criação de mim

mesma. Obrigada pelo apoio, paciência, atenção, dedicação!

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar o cuidado ofertado aos usuários de álcool e outras

drogas, com especial interesse nas racionalidades existentes nos elementos governamentais que

fundamentam as tecnologias e práticas de cuidado e a produção de modos de subjetivação. Para

tanto, enquanto uma pesquisa qualitativa influenciada por estudos genealógicos e cartográficos,

principalmente de Michel Foucault e Nikolas Rose e interlocutores brasileiros que tem

dialogado com estudos pós-estruturalistas e com o campo da saúde coletiva, apoiamo-nos nas

vivências da profissional, autora deste trabalho, descritas a partir dos diários de campo,

reportagens e fotos, numa articulação com ferramentas conceituais que auxiliam a lançar luz

aos “burburinhos” evidenciados na prática cotidiana.

Palavras-chave: Políticas públicas e saúde, saúde mental, psicologia clínica, pesquisa

qualitativa, relações pesquisador-sujeito.

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ABSTRACT

This research aims to analyze the care offered to users of alcohol and other drugs, with special

interest in the rationalities existing in governmental elements that underlie care technologies

and practices and the production of modes of subjectivation. Therefore, while a qualitative

research influenced by genealogical and cartographic studies, mainly by Michel Foucault and

Nikolas Rose and Brazilian interlocutors who have dialogued with post-structuralist studies and

the field of collective health, we rely on the experiences of the professional, author of this work,

described from the field diaries, reports and photos, is articulated with conceptual tools that

help to shed light on the "buzz" evidenced in daily practice.

Keywords: Public politics and health, mental health, clinical psychology, qualitative research,

researcher-subject relations.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Material da Campanha do Ministério da Saúde sobre o uso de crack, 2009. .......... 46

Figura 2 - Campanha do Ministério da Justiça sobre o crack, 2010. ........................................ 47

Figura 3 - Unidade Recomeço em São Paulo/SP, 2013 ........................................................... 53

Figura 4 - espaço de convivência na Rua Helvétia do DBA .................................................... 55

Figura 5 - Desocupação da 'cracolândia', 2017 ........................................................................ 57

Figura 6 - Ação de desocupação na cracolândia, 2017............................................................. 57

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AD – álcool e outras drogas

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CAPS-ad – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas

CT – Comunidades Terapêuticas

DBA – De Braços Abertos

DENARC - Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico

DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis

Fundação CASA – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente

HIV – Virus da Imunodeficiência Humana

IRHA – Associação Internacional de Redução de Danos

IST – Infecções Sexualmente Transmissíveis

OSS – Organização Social de Saúde

PNAD – Política Nacional Antidrogas

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

PT – Partido dos Trabalhadores

RAPS – Rede de Atenção Psicossocial

RD – Redução de Danos

SENAD – Secretaria Nacional de Álcool e outras Drogas

SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas

UA – Unidade de Acolhimento

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1: INFLUÊNCIAS ÉTICAS, ESTÉTICAS E POLÍTICAS ........................................... 17

1.1. A Escrita como ato de produção de si .............................................................................. 21

1.2. Operadores Conceituais .................................................................................................... 23

Poder, Governo e Racionalidades Políticas ................................................................................................... 23

Modos de Subjetivação........................................................................................................................................... 27

CAPÍTULO 2 - POLÍTICAS E PROGRAMAS SOBRE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: UMA

REDE DISCURSIVA EM TENSÃO .......................................................................................................... 32

2.1. Entre o Crime, a Moral e a Doença: uma aliança de governo de condutas ................... 32

2.2. A Redução de Danos: estratégia de combate ao discurso hegemônico sobre

drogas? ..................................................................................................................................... 39

2.3. Entre os ‘Braços Abertos’ e a ‘Redenção’ ....................................................................... 51

2.4. (Re)Atualizações .............................................................................................................. 58

CAPÍTULO 3: O CUIDADO EM SUAS DISTINTAS PERSPECTIVAS ........................................ 63

3.1. A moralidade e a doença .............................................................................................. 65

3.2 A Rua e os Anormais: O Jogo do Tudo Pode ................................................................... 70

3.3. Práticas de Resistência.................................................................................................. 75

CONVERSAÇÕES FINAIS, OU INICIAIS? ............................................................................................ 82

REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................. 88

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APRESENTAÇÃO

Considerando minha trajetória profissional no campo de políticas e práticas de

cuidado a usuários de álcool e outras drogas e a grande relevância de tal discussão frente ao

momento político brasileiro, principalmente no que diz respeito aos modelos e práticas de

cuidado, busquei analisar o cuidado ofertado aos usuários de álcool e outras drogas (AD),

adentrando nas relações de poder-saber-verdade que se apresentavam como campos de tensões.

Tive como objetivo, deste modo, analisar o cuidado ofertado aos usuários AD, com

especial interesse nas racionalidades existentes nos elementos governamentais e suas interfaces

com as tecnologias, práticas de cuidado e produção de modos de subjetivação. Nesse sentido,

lancei luz às redes discursivas que se formavam em torno do problema DROGA1 e a

consequente enunciação de determinados sujeitos intitulados como “drogados”.

Para tanto, propus um caminho investigativo numa perspectiva que se insere no

campo das pesquisas qualitativas, aqui influenciada pelos estudos genealógicos e cartográficos

de autores como: Emerson Merhy, Nikolas Rose, Michel Foucault, Sérgio Carvalho, Margareth

Rago, Suely Rolnik, entre outros, apoiando-me em minhas vivências profissionais, aqui

evidenciadas a partir dos diários de campo, lembranças, reportagens e fotos. Estas foram

articuladas com ferramentas conceituais que auxiliaram lançar luz aos “burburinhos”

evidenciados na prática cotidiana, “O objetivo é o de mapear, nestas produções biopolíticas, os

elementos que implicam na produção de um sujeito cidadão, como alvo das ações de governo”

1 (p.77).

Esta pesquisa insere-se no campo de pesquisas qualitativas, que, em suas diferentes

vertentes, apresentam discursos construídos que as diferenciam como positivas, pós-positivas e

pós-estruturais, mas, que se conectam no fato de terem preocupação com a complexidade

histórica do campo, do contexto do objeto pesquisado e a experiência vivida, tencionando “a

natureza socialmente construída da realidade, a relação íntima entre o pesquisador e o que é

estudado, os constrangimentos situacionais que formatam a pesquisa (e enfatizando) a natureza

intrinsecamente valorativa da pesquisa” 2 (p.10).

1 Para evitar interpretações dúbias ou ambivalentes, ‘drogas’, neste trabalho, foi empregado no sentido moderno

do termo, ou seja, o adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo a qual, ‘droga’ é “qualquer

substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas

produzindo alterações em seu funcionamento” 3.

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No campo da Saúde Coletiva, visualizam-se linhas de pesquisa que, de um lado são

compostas por estudos que se utilizam de metodologias investigativas que fundamentam de

modo claro a separação entre sujeito do conhecimento e seu objeto de estudo, e, de outro, não

hegemônico, investigações que reconhecem a proximidade na relação entre sujeito e objeto,

produzindo técnicas de pesquisa que transformam o próprio ato de

trabalhar/agir/militar/conhecer como problema a ser investigado4.

Ou seja, traz antes de qualquer situação epistêmica a sua implicação, criando uma

situação não típica como as investigações a que estamos mais envolvidos; pois, agora,

o sujeito que ambiciona ser epistêmico está explicitamente subsumido na sua

implicação, na sua forma desejante de apostar no agir no mundo de modo militante,

não se reduzindo ao sujeito subsumido ao poder e à lógica ideológica, como o sujeito

epistêmico imaginado pelos procedimentos científicos contemporâneos4 (p.5).

Embasei-me nos seguintes questionamentos: quais racionalidades respaldavam as

distintas construções de políticas, programas e tecnologias no campo AD? Que “modelos” de

sujeitos apareciam? Quais as implicações dessas racionalidades no que dizia respeito às

práticas de cuidado?

Tais indagações em diálogo com operadores conceituais que lançam luz às relações

de poder-saber-verdade na sociedade, principalmente os estudos da biopolítica e

governamentalidade, buscaram compreender a produção de políticas públicas no âmbito do

cuidado às pessoas em uso problemático de drogas e como tais eram atravessadas por

determinadas perspectivas que tinham relação na produção de determinados modos-sujeitos.

O ponto de partida da construção do objeto de pesquisa foi sendo produzido a partir

da cartografia de minhas experiências profissionais, nas quais um certo desassossego sempre

esteve presente. Muitas vezes me vi defronte de situações que me faziam refletir como as

intervenções produzidas estavam de algum modo alinhadas aos rumos existentes nas discussões

macropolíticas, o que, no ‘miúdo’ era operacionalizado frente a formulações de discursos de

saber-verdade que as circunscreviam. Desde a minha primeira experiência como psicóloga de

um Centro de Atendimento a Adolescentes privados de liberdade (Fundação CASA) até o

momento da escrita deste texto, percebi que os discursos e práticas se entremeavam entre

aquelas que operavam na perspectiva de interdição do desejo do sujeito e assim, da objetivação

de um modo sujeito pautada na noção que este é tomado por seu impulso compulsivo sobre a

droga e aquelas que se apoiavam sob a perspectiva de acompanhar os movimentos de desejo do

sujeito, no qual o sujeito era tomado enquanto pessoa de direito e, assim, com autonomia para

fazer as escolhas. Ressalto, de antemão, que tais perspectivas não apareceram em campos

sempre contrapostos, ao contrário, se intercruzaram nas produções cotidianas.

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Através do entrelaçar de diferentes fontes – diário de campo, memórias, imagens,

reportagens, levantamento teórico – foi-se costurando os meus “andares”, compostos pela

função de psicóloga de uma Fundação CASA e de um Centro de Atenção Psicossocial – álcool

e outras drogas (CAPS-ad); pela experiência como gestora na Coordenação da Linha de

Cuidado de Saúde Mental de uma Organização Social de Saúde (OSS) no município de São

Paulo/SP e nos desafios vivenciados enquanto Coordenadora de Saúde Mental do município de

Santos/SP e, também, na experiência como Coordenadora Técnica de um projeto de formação

da rede de atenção a populações vulneráveis. Além disso, enquanto militante da Luta

Antimaniconial, estive em distintos locais de discussões em torno do cuidado a usuários de

álcool e outras drogas que evidenciavam distintos arranjos – em constante tensão – no que dizia

respeito às ofertas de cuidado.

Apoiei-me também nas discussões do grupo de pesquisa “Conexões: Políticas de

Subjetividade e Saúde Coletiva” do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências

Médicas/Unicamp, uma vez que novas problematizações e ferramentas de análise foram

construídas a partir de estudos desse coletivo, que abriram campos de possibilidades no olhar

dos processos vivenciados no cotidiano do trabalho, principalmente no que diz respeito às

discussões sobre governo de conduta, racionalidades políticas e práticas de liberdade, que me

instigaram na formação de uma composição entre trabalhadora, gestora, militante e

pesquisadora.

Abriu-se, assim, um campo de problematizações e diálogos a partir da análise das

distintas formas de relação entre o Estado e o controle da população, devido à necessidade de

respostas políticas a emergências históricas e sociais, o que, para mim, pareciam ser de suma

importância à afirmação de que, para percorrer as políticas e programas públicos direcionados

à população usuária de drogas, no qual, aqui, me refiro diretamente àqueles entendidos como

‘vidas que valem menos’, precisamos nos utilizar da seguinte lente

Mediante uma análise das intricadas interdependências entre racionalidades políticas

e tecnologias governamentais, podemos começar a compreender as múltiplas e

delicadas redes de comunicação que conectam as vidas dos indivíduos, grupos e

organizações às aspirações de autoridades nas avançadas democracias liberais da

atualidade5 (p.72).

Tal apontamento se conecta ao fato desta pesquisa ter sido traçada a partir dos

desassossegos vividos em minha trajetória profissional, ou seja, enquanto profissional da área

‘psi’ e trabalhadora/gestora. Portanto, o objeto de pesquisa tem estrita relação com os afetos

sentidos em meu corpo que foram disparadores para análises e problematizações de como as

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políticas e programas eram e são atualmente direcionados a partir de múltiplas concepções

sobre sujeito-saúde-doença-cuidado.

Traço, desse modo, nos capítulos que se seguem o seguinte:

No capítulo 1, me debrucei sobre as influências éticas, estéticas e políticas que

serviram como um mapa de composição que utilizei para traçar esta pesquisa. Nesse capítulo

não definimos tal postura como metodologia, visto que não existia a pretensão de construir um

caminho que se objetivasse chegar a um determinado lugar de verdade. Apoiada em estudos

que puderam construir um terreno de problematizações críticas pós-estruturalistas, o campo de

discussão foi construído numa perspectiva de pesquisa em ressonância com os estudos

cartográficos e genealógicos.

No capítulo 2, percorri as políticas e programas que, a partir da minha experiência,

tornaram-se bússolas para olhar as tensões no campo discursivo das políticas de drogas e

também implicaram em disputas vividas na formatação de determinadas tecnologias e práticas

de cuidado ofertados. Para tanto, utilizamos da compreensão sobre Racionalidades Políticas,

Programas e Tecnologias, trazidas por Nikolas Rose e Peter Miller.

Já no capítulo 3, busquei analisar, a partir das racionalidades enunciadas no capítulo

2, as práticas que foram produzidas em minha trajetória, de modo a discutir as normatividades

que encontrei e que interromperam fluxos de produção de um cuidado no campo da reabilitação

psicossocial e aqueles que se produziram enquanto práticas de liberdade e cuidado de si.

E, finalmente, nas ‘Conversações Finais, ou Iniciais?’, foco no diálogo entre a

produção de subjetividades formatadas num espectro que aqui chamei de ‘sujeitos-drogados’,

que em grande medida apresenta-se como modelos subjetivos hegemônicos na construção de

políticas, programas e tecnologias de cuidado no campo AD e que assim com olhar atento as

formulações discursivas tentei construir, conforme Gallo “possíveis resistências à produção

subjetiva biopolítica contemporânea” 1 (p.78).

*A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UNICAMP) pelo parecer nº

2.563.081, de 26 de março de 2018.

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CAPÍTULO 1: INFLUÊNCIAS ÉTICAS, ESTÉTICAS E POLÍTICAS

“No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho” 6.

A pedra no caminho simboliza as perguntas, indagações e inquietações que, no

encontro com esta pesquisa, tornaram-se guias que indicaram a entrada de documentos e

ferramentas conceituais de ampliação das discussões propostas. Não me pautei, para tanto, na

circunscrição de um caminho metodológico que objetivasse o encontro de respostas únicas,

entendendo que o problema, aqui trazido, partiu da ideia de que as práticas de cuidado do campo

AD, vivenciadas em meu percurso profissional, estavam inscritas em construções sócio

históricas e assim poderiam ser analisadas por diferentes pontos de vista. Nesse sentido,

[...] é possível dizer que debruçar-se sobre um serviço de saúde como uma arena de (e

em) disputas , sob a ótica da informação, é abrir- se para a produção da informação

como uma ferramenta analisadora que pode nos auxiliar para agir nos interstícios dos

processos instituídos, ao mostrar os “ruídos” do mundo dos sentidos e sem sentidos

sobre o das significações permitindo, a partir deste próprio mundo (o das

significações), perceber os ruídos “espontâneos” e “naturais” de situações cotidianas

singulares, ou mesmo os ruídos “provocados”, com pretensão analisadora, que podem

possibilitar possíveis aberturas para processos mais públicos, partilháveis entre os

operadores do cotidiano e nos quais se possa, através de uma certa tecnologia, atuar

conformando novos sentidos para o serviço, enquanto uma certa arena institucional4

(p.15-16).

Nesse aspecto, a utilização de ferramentas investigativas pautadas nos estudos

cartográficos e genealógicos puderam construir uma ‘maquinaria-bússola’ para percorrer as

políticas no campo AD em seus interstícios. A genealogia e cartografia não foram tomadas

enquanto um método, já que não se propuseram o desvelamento de verdades, ou a representação

de objetos e interpretação da realidade, mas sim como uma caixa de ferramentas que serviram,

fizeram funcionar e dialogaram com o campo de pesquisa produzindo, criando e recriando o

texto e a mim mesma no ato de tessitura da escrita. Desse modo,

[...] a relação que se estabelece entre os termos que se intercedem é de interferência,

de intervenção através do atravessamento desestabilizador de um domínio qualquer

(disciplinar, conceitual, artístico, sócio-político, etc.) sobre outro. [...] A relação de

intercessão é uma relação de perturbação, e não de troca de conteúdos. Embarca-se na

onda, ou aproveita-se a potência de diferir do outro para expressar sua própria

diferença7 (p. 153).

O percurso da pesquisa, para tanto, foi se produzindo no entrelaçar de minha

vivência profissional e das “teorias”, estas últimas como feixes de luzes que ampliaram o olhar

frente às tensões, desassossegos e burburinhos encontrados, servindo-me também como

possibilidade de compor novos campos existenciais, (re)criando novos contornos. Tivemos,

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assim, uma produção cartográfica que apostou na ideia de que “teoria é sempre cartografia” 8

(p.65) e que se fez no acompanhar das paisagens, estas

[...] matérias de qualquer procedência. [...] Tudo o que der língua para os movimentos

do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele

é bem vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por

isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas

e nem só teóricas.

A produção de novas composições em meu corpo de trabalhadora ‘psi’, gestora e

militante se conectou com uma produção acadêmica que funcionou como “uma espécie de

cartografia conceitual cuja matéria-prima são as marcas e que funciona como universo de

referência dos modos de existência que vamos criando” 9 (p.244). Nomeamos, aqui, os modos

de existência como campos de composições de fluxos diversos e que, em determinados

momentos rompem com a composição atual e que, neste desestabilizar acaba por colocar a

necessidade da criação de novos corpos “em nossa existência, em nosso modo de sentir, de

pensar, de agir” 9 (p.242) e geram estranhamentos aos contornos já conhecidos9.

Conforme Rolnik8 o

[...] cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar

e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor

suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de

expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a

passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que

pretende entender. Aliás, "entender", para o cartógrafo, não tem nada a ver com

explicar e muito menos com revelar [...] (p.65).

Em consonância à tal perspectiva, os estudos de Michel Foucault sobre as relações

de poder, principalmente em seus estudos genealógicos que apontam para uma perspectiva não

centralizada num aparato estatal específico, mas, sim, difundido em diversas linhas na

sociedade, foram também uma linha utilizada para a construção atenta da minha prática

cotidiana em consonância aos documentos que foram analisados. As genealogias de Foucault

têm especial interesse nas descontinuidades e rupturas que podem levantar as contingências

existentes no desenvolvimento das práticas e instituições e, assim, têm especial interesse em

[...] marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona;

espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo

história – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno

não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes

cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna,

o momento em que eles não aconteceram [...] 10 (p.55).

A genealogia, enquanto posição ética, com sua perspectiva dinâmica, orientada por

práticas e discursos, apresenta uma dimensão de poder relacionada a produção de subjetividades

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sendo então perspectiva que analisa “os efeitos centralizadores de poder que são vinculados a

instituições e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de nossa

sociedade” 11 (p.14), no qual o discurso constitui-se enquanto um aparelho político-pedagógico

que se forma por meio de leis, normas, regras, pesquisas, estatísticas e através de um estado

instrumentalizado, conforma determinadas subjetivações e operações no governo dessa

população. Assim, “o método genealógico levanta questões sobre como as práticas, instituições

e categorias atuais vieram a tornar-se o que são12 (p.14.).

Realizou-se, assim, uma crítica, descrição e prescrição de determinadas instituições

e práticas sociais, que nos ajudaram a construir um caminho com foco nos saberes vivenciados

localmente. Minhas questões, já anteriormente apresentadas, basearam-se numa atitude crítica

que colocou em confronto os saberes teóricos, históricos e científicos a partir do

evidenciamento de saberes que aqui chamamos de “subjulgados” 12 (p.37). Os saberes

‘subjulgados’ são saberes que foram excluídos ou desqualificados – eruditos e populares –

sendo os eruditos aqueles saberes teóricos científicos que foram ignorados e o popular os

saberes locais, particulares, regionais que foram desqualificados como saber histórico, sendo

que ambos muitas vezes são encontrados nas vozes daqueles que estão à margem da sociedade.

Tais saberes estão na base da genealogia, que pretende estabelecer um conhecimento histórico

das lutas para o fazer tático dos conhecimentos produzidos através de uma perspectiva não

ortodoxa, indubitavelmente desafiando o status quo. Neste sentido, traçam as influências

históricas que levam às práticas que se atualizam constantemente, tratando-se de uma história

do presente, não para entender o passado mas para entender a contingência de forças que

criaram o presente12.

Para tanto, não nos baseamos numa historicidade específica, recortada em períodos

históricos contínuos e progressivos, mas, sim, através de suas racionalidades e dispositivos que

entrelaçadas produzem modos múltiplos de se relacionar com o problema e que, assim,

produzem uma rede de relações entre as organizações e autoridades5. Deste modo, se existem

relações interdependentes entre os discursos, conteúdos e formas de implementação das

políticas e práticas de cuidado no campo de drogas, visto que são vínculos que produzem e são

produzidos por discursos de verdade, a experiência que fazemos de nós enquanto trabalhadores

e dos próprios usuários são pautados em que noções?

Mais do que traçar relações de causa e consequência das políticas e problemas em

relação à produção de cuidado na vida das pessoas, analisamos a realidade e a produção dos

encontros em variadas dimensões, na busca por uma história que relatasse os diferentes modos

pelos quais os indivíduos se tornam sujeitos13. Interessei-me, assim, pelas forças e práticas que

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podiam refletir sobre as verdades produzidas em torno do ‘sujeito drogado’ em uma espécie de

relação consigo mesmos14.

Sob tal perspectiva, Foucault nos apresenta que, antes de qualquer coisa, que o

objetivo de seus estudos não foi analisar “o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos

de tal análise. [...] foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os

seres humanos tornam-se sujeitos” 13 (p.231). Sobre esse aspecto, me deparei com a

compreensão de Nikolas Rose sobre a construção de uma genealogia da subjetivação, que

estaria preocupada com o ser humano como ele é pensado, através das práticas e técnicas do

pensamento enquanto uma busca de tornar-se técnico14 (p.35).

Uma genealogia da subjetivação toma essa compreensão individualizada,

interiorizada, totalizada e psicologizada do que significa o ser humano como o local

de um problema histórico e não como a base de uma narrativa histórica. Essa

genealogia tenta descrever as formas pelas quais esse moderno regime do eu emerge

não como o resultado de um processo gradual de esclarecimento, no qual os humanos,

ajudados pelos esforços da ciência, acabam, finalmente, por reconhecer sua verdadeira

natureza, mas a partir de uma série de práticas e processos contingentes e

definitivamente menos refinados e menos dignos. Escrever uma genealogia significa

buscar selecionar as formas pelas quais o eu que funciona como um ideal regulatório

em tantos aspectos de nossas formas contemporâneas de vida14 (p.35 - 36).

Em inversão ao conhecimento da área de psicologia mais hegemônica, partimos

desse modo de que o sujeito, em consonância com os estudos dos autores pós-estruturalistas, é

um constructo social e para tanto buscamos descrever as racionalidades envolvidas na

produção de práticas e técnicas que agem sobre a população usuária de drogas, enquanto

problema norteador desta pesquisa, que sob as lentes dos estudos genealógicos e cartográfico,

conduziram a pesquisa ao encontro com as tecnologias produzidas para governar tal população

e mais ainda, tentar subjetivá-las.

Pautei-me, para tanto, em autores pós-estruturalistas, principalmente por autores

como Emerson Merhy, Nikolas Rose, Michel Foucault, Sérgio Carvalho, Margareth Rago,

Suely Rolnik entre outros, por entender que é “impossível captar totalmente o significado de

uma ação, de um texto ou de um objeto, pois a linguagem é entendida como um sistema instável

de referentes” 15 (p. 663). Desse modo, um conjunto de ferramentas foram utilizadas na tentativa

de possibilitar maior visibilidade ao objeto pesquisado e transformá-lo no próprio ato de

pesquisar16 (p.655).

Tudo isto, nos posiciona frente a um campo de pesquisa-olhar

Ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor

em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um

campo de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o

rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a

partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor, assim como

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as regras que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto conduzidas e exigidas

pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado

(campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que encarna as marcas

no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este rigor é o de

uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir9 (p.246-247).

1.1. A Escrita como ato de produção de si

(...) correr o risco de abrir a escrita a tudo aquilo a que a prática acadêmica sempre

resistiu, com seu medo das emoções, da sensibilidade, das subjetividades e mesmo

das dúvidas17 (p.14).

Coloquei-me diante de uma pesquisa que se pretendeu fazer no próprio caminho,

caminho, esse, apoiado pelos anos já trilhados enquanto profissional e que me lançou o desejo

de produzir uma escrita sobre os tensionamentos encontrados. Com isso, apostei numa

“experimentação do pensamento – um método não para ser aplicado, mas para ser

experimentado e assumido como atitude” 18 (p.10-11).

Assim, fui me debruçando nos diários de campo e em minhas memórias vivas,

evidenciando as principais legislações, políticas e programas do campo AD que influenciaram,

de algum modo, minhas atuações no cotidiano. Nesse sentido, o levantamento das políticas não

se pretendeu numa lógica de causa e efeito, mas, ao contrário, através da ideia de que é nos

entremeios existentes entre ação profissional, política, formação discursiva e modos de

subjetivação que as racionalidades políticas poderiam ser analisadas. Pautei-me, portanto, na

ideia trazida por Rago17, segundo a qual escrever é inscrever-se, é fazer-se existir publicamente,

como uma necessária ressignificação de um passado pessoal, mas também coletivo, construindo

novas perspectivas. Vale aqui reafirmar, que as experiências subjetivas se inscrevem em marcos

históricos, sociais e políticos e são traduzidas também a partir destes.

As vivências do campo, com suas inquietações e burburinhos, acabaram por expor

discursos e práticas de gestores, trabalhadores e usuários que afetaram as escolhas da pesquisa.

Descrever esses afetos e o cotidiano vivido é de suma importância pela natureza do fenômeno

pesquisado: o uso de drogas, a alta vulnerabilidade social, o cuidado, a produção de

subjetividades, entre outros, sendo o diário de campo uma forma de registro e preservação

dessas vivências.

A escrita não foi aqui feita no plano individual, apesar de utilizar-se da primeira

pessoa, já que funciona como ressonância de muitos que encontrei, sendo, desse modo, uma

composição do que foi e é ser psicóloga, gestora, militante e estudante, que assume um lugar

político em suas atuações e, também, enquanto prática de escrita de si, que aposta no processo

de construção da subjetividade podendo funcionar como um atenuador da solidão19.

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A escrita de si, compõe-se na antiguidade clássica como uma das dimensões da

‘cultura de si’ ou das ‘artes da existência’, sendo que uma das práticas é dos Hypomnemata,

que são “uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim, eram oferecidos

como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores” 19 (p.133). Esses materiais

não eram pautados numa ideia de escrita íntima, oculta, “mas de captar pelo contrário o já dito,

o que se pôde ouvir ou ler, e isso com uma finalidade de constituição de si” 19 (p. 133). Sobre

os Hypomnemata o referido autor descreve:

[...] não devem, porém, ser entendidos como diários íntimos, ou como aqueles relatos

de experiências espirituais (tentações, lutas, fracassos e vitórias) que poderão ser

encontrados na literatura cristã ulterior. Não constituem uma narrativa de si mesmo;

não têm por objetivo trazer à luz do dia a ‘arcana conscientiae’ cuja confissão – oral

ou escrita – possui valor de purificação. O movimento que visam efetuar é inverso

desse: trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas,

pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler” 19 (p. 131.)

Desse modo, a escrita da pesquisa não é um processo de testemunho ou confissão,

mas um trabalho de reconstrução de mim e das redes de relação viventes, no sentido de explorar

os espaços que foram se abrindo nessa tessitura para produzir um texto que possa ser uma

ferramenta política no presente, recusando-se, assim, a vida em primeiro plano e colocando-me

enquanto “uma contadora de histórias que também dizem respeito a ela de modo essencial” 17

(p.17).

Na escrita de si trata-se de um trabalho de construção subjetiva na experiência da

escrita, em que se abre a possibilidade do devir, de ser outro do que se é, escapando

às formas biopolíticas de produção do indivíduo. Assim, o eu de que se trata não é

uma entidade isolada, mas um campo aberto de forças. Entre o eu e seu contexto não

há propriamente diferença, mas continuidade, já que o indivíduo se auto confirma a

partir da relação com os outros. [...] Nas técnicas de sí, há um movimento ativo de

auto construção de subjetividade a partir das práticas de liberdade[...] aqui trata-se de

assumir o controle da própria vida, tornar-se sujeito de si mesmo pelo trabalho de

reinvenção da subjetividade possibilitado pela escrita de si. Trata-se de tornar-se autor

do próprio script a partir de uma relação específica do indivíduo consigo mesmo17 (p.

52).

O modo de contar-se, como descreve Rolnik8 (p.231), seria algo como “um roteiro,

inventado ao mesmo tempo em que os territórios, as pontes e as passagens que foram sendo

percorridas”. Considerei, desse modo, que, enquanto atora ativa em processos de cuidado a

pessoas que usam drogas e também imbuída de saberes legitimados da ‘psique humana’, não

seria possível desvincular o caminho percorrido do lugar de onde falo, já que a realidade

vivenciada foi sendo atualizada, (re)criada, (re)significada ao longo do percurso e, assim, a

escrita e o trabalho tornaram-se um organizador que se modificou e produziu o conhecimento20.

A experiência, portanto, deixa de ser vista como autenticidade do vivido, como

evidência em si mesma, assim como o discurso deixa de ser considerado como mera

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abstração conceitual, reflexo da realidade, numa oposição binária que hierarquiza

teoria e prática, pensamento e ação21 (p. 31).

Os conceitos foram trabalhados partindo da ideia de ‘caixa de ferramentas’, ou seja,

entram na análise na medida em que servem, funcionam e que dialogam com o campo de

pesquisa. Assim, nos aprofundamos e mergulhamos nas linhas de nosso interesse; produzindo,

criando e recriando o texto e a nós mesmo no ato da leitura.

No encontro existente no ‘entre’ das vivências e conceitos, construiu-se um “entre

instituintes em busca de um processo de instituição, muito próprio, de um sujeito coletivo novo

que se forma ali em ato no encontro” 4 (p. 28). É partindo dessa formatação inicial que foram

sendo lançados mão de uma revisão da literatura, direcionada para autores que discutem temas

como governo, poder e modos de subjetivação na construção de um mapa das redes de

composição, com suas forças e fluxos, que orientaram as análises das diversas racionalidades

governamentais em disputa, a fim de compreender a configuração do saber, poder e produção

de subjetividade que se faziam e fazem presentes nas políticas, programas e tecnologias de

cuidado dos usuários de drogas.

Articulamos, também, sempre que necessário, textos veiculados em mídias digitais

e/ou impressas, de períodos correspondentes, no sentido de dar maior concretude às discussões

em torno da problemática escolhida. O ato de pesquisa é uma trajetória então que

Criamos não porque queríamos, mas porque fomos forçados. As experiências que

vivemos, as vidas com as quais nos encontramos e os lugares por onde passamos nos

forçaram a propor articulações entre referenciais metodológicas distintos. O empírico

nos impulsionava a criar um caminho metodológico singular22 (p.34).

1.2. Operadores Conceituais

Poder, Governo e Racionalidades Políticas

Fundação CASA, equipamento disciplinar no qual forjado em uma questão social,

padroniza corpos, pensamentos, trejeitos e tudo que puder chegar em nosso

pensamento. Norma, padrões sociais vigentes, apatia, passividade, sistema

punitivo...palavras que não saem da minha cabeça. Mas não são apenas estas que

passam. Os atos de resistência fazem-se presentes todos os dias, desde o sexo e

afetividade até a atos mais violentos contra a instituição. (Diário de Campo –

Fundação CASA).

Eles precisam apanhar as pessoas na armadilha para tê-las submissas e assim poder

usá-las para preparar outras armadilhas, e assim por diante, para transformar pouco a

pouco todo um povo numa imensa organização de delatores23 (p.160).

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Esse trecho do Diário de campo, referente ao período de atuação na Fundação

CASA, e o trecho do livro de Kundera23, são disparadores, sobre a qual me baseio, a respeito

de como o poder se presentifica nas distintas composições de sociedade, através de instituições,

atores políticos, agentes sociais que exercem função de poder sobre o corpo das pessoas e

coletividades e que necessariamente agem sobre as condutas.

Foucault orienta suas discussões frente à afirmação de que o poder é exercido

através de relações em diversas linhas da sociedade e assim as noções de sujeito também seriam

formatadas através de diferentes práticas, jogos de verdade e poder24. O exercício do poder,

numa gama de alianças entre diversas autoridades, através da implementação de projetos

pautados em racionalidades específicas busca governar e conduzir a vida social e as

subjetividades dos indivíduos. Isso se manifesta tanto sobre a conduta, como sobre as condutas

que supostamente podem vir a existir, ou seja, os possíveis riscos e virtualidades. Tal sentido,

presente nos estudos de Michel Foucault, afirma o caráter produtivo do poder que, para além

de sua função repressora, fabrica prazer, formas de conhecer, discursos e as mais variadas

formas de viver a vida25. Isso se alinha aos conceitos de governo e mentalidade ou racionalidade

para embasar os estudos, os quais o autor denominou como ‘governamentalidade’, o que parte

da perspectiva de que as tecnologias e práticas de poder – muitas vezes consideradas menores

– relacionando-as às múltiplas formas de pensar e agir, criam uma composição de mecanismos

e dispositivos que produzem o governo da vida cotidiana – economia, família, religião, escola,

serviços de saúde, mídia, entre outros.

O governo é a matriz historicamente construída dentro da qual formulamos todos

aqueles sonhos, esquemas, estratégias e manobras de autoridade que buscam modelar

a conduta dos outros em direções almejadas, influenciando a vontade deles, suas

circunstâncias e seu ambiente. Em relação a essa rede de governo é que formas de

governo especificamente políticas no ocidente moderno definem-se, delimitam-se e

narram a si mesmas5 (p.72).

O controle exercido pelas instituições na regulação das condutas do ser humano e

de sua docilização, por meio de técnicas de coerção e dominação, foram sendo complexificadas

através da criação de tecnologias de governo que atuassem como forças disseminadas no

território para além do domínio político, mas também através da família, economia, mercado e

cidadania livre, ou seja, como forma de intervir para uma utilização adequada da autonomia do

sujeito5.

Há, portanto, um deslocamento do olhar, já que para Foucault mesmo as instituições

disciplinares26, acabam utilizando tecnologias, segundo o autor, ‘tecnologias de si’, sobre as

quais a constituição da subjetividade não se dá apenas na tentativa de se controlar a conduta do

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sujeito, mas também na relação do sujeito consigo mesmo e sua liberdade, implicando na

construção e reflexão acerca da verdade sobre si, isto é, nas tecnologias do eu24.

As técnicas de si não operam nem sobre os jogos de poder, nem sobre as relações de

saber, nem sobre as determinações sociais, mas agem diretamente sobre essa relação

que o sujeito estabelece consigo mesmo enquanto vive e age1 (p. 80).

Temos assim um duplo sentido para o termo ‘governamentalidade’. No primeiro,

pensam-se as formas de racionalidade dos Estado e suas técnicas de governo, e, no segundo,

como “técnicas de dominação exercidas sobre os outros em relação direta com as técnicas de

si, isto é, as relações do sujeito consigo mesmo” 27 (p. 376), sendo este último a “modalidade

que possibilitaria a articulação de práticas de resistência” 27 (p.376). É nessa dupla intersecção

dos sentidos de ‘governamentalidade’, que acabo por buscar e me encontrar com as políticas e

programas, nas quais foram produzidas e produziram certas racionalidades pautadas em

determinadas verdades científicas-jurídicas e desse modo que podemos encontrar brechas

cotidianas no que diz respeito a práticas de resistência.

A dinâmica de poder, então, veio intervir sobre a ‘bios’, quer dizer, sobre “a vida

qualificável, a vida com seus acidentes, [...] o curso da existência, mas levando em conta o fato

de esse curso estar indissociavelmente ligado à possibilidade de transformá-lo, de direcioná-lo

neste ou naquele sentido” 10 (p. 33). Temos, assim, uma rede de poder que se exerce como uma

linha comum e legitimada de estratégias e tecnologias de governo da conduta e práticas de

resistência, que para além do controle através do corpo individual, faz-se através da invenção

de modos de vida considerados humanos. Temos, na sociedade liberal, a conceituação de

indivíduo pautada na maximização de sua saúde como norma a ser alcançada e assim a

necessidade de edificar estratégias de gerenciamento daqueles que não estão incluídos nessa

norma. Conforme Foucault25, a biopolítica designa um modelo de poder que transforma a vida

em um domínio calculável utilizando-se da integração de técnicas que dominem e gerem

aquelas vidas que escapam a todo momento.

Foucault caracteriza a biopolítica como uma nova tática de exercício do poder, que

pôde emergir com a consolidação do poder disciplinar. Na medida em que este último

era uma tática individualizante, uma vez que se dirigia aos corpos dos indivíduos, o

biopoder será uma tática dirigida ao controle de grupos de indivíduos, dirigido a uma

população; será uma tecnologia de poder massificante. Por outro lado, se o biopoder

se diferenciava do poder disciplinar ao dirigir-se a conjuntos populacionais e não a

indivíduos, ele se diferenciava também das táticas de soberania, pois se o poder

soberano se caracterizava por “deixar viver e fazer morrer” os súditos, o biopoder

consistirá em “fazer viver e deixar morrer”, constituindo-se num poder sobre a vida

das populações, destinado a preservá-la27 (p.374).

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Através do trabalho realizado por Rose e Miller5, acerca do governo das condutas

e administração da vida na atualidade,

As problemáticas de governo podem ser analisadas, antes de mais nada, em termos de

suas racionalidades políticas, os campos discursivos móveis dentro dos quais o

exercício do poder é conceituado, as justificativas morais para modos particulares de

exercício do poder por parte de diversas autoridades; normas de formas, objetos e

limites apropriados da política, e concepções da adequada distribuição de tais tarefas

entre os setores seculares, espiritual, militar e familiar5 (p.72).

As racionalidades políticas são, desse modo, um conjunto de valores, perspectivas

e discursos que tornam possível uma realidade ser pensada de maneira a ser programada. Não

que elas sejam definidas por um sistema fechado e sistemático, mas através de certas

regularidades que embasam a construção de políticas e programas de governo, que com a

função de tornar governável algumas questões problemas, criam uma série de

instrumentos. Pensar as políticas e programas de drogas no âmbito do governo das condutas é

assim

[...] por um lado, indicar os nexos intrínsecos entre um modo de representar e conhecer

um fenômeno, e de outro, um modo de agir sobre ele, de modo a transformá-lo. Com

efeito, os problemas não representavam meramente a si mesmos no pensamento – eles

precisavam tornar-se pensáveis de maneira tal a serem praticáveis e operáveis" 5

(p.27).

Tal discussão, que é caracterizada com uma produção de coisas (ação, discurso,

moral, políticas) sobre uma determinada categoria, cujos componentes apoiam a análise do

campo das políticas sobre drogas frente à construção de um mapa, no percorrer de terras

desconhecidas e assinalamento das diferentes linhas de composição sobre tal problemática. A

investigação em torno das racionalidades políticas (e programáticas) e das tecnologias (e,

também, estratégias, técnicas, arranjos e dispositivos) remete, necessariamente, à análise do

papel dos expertos (e, destacadamente, de gestores e trabalhadores da saúde) na implementação

de políticas. A partir de seus saberes socialmente reconhecidos, os profissionais das distintas

áreas sociais ajustam diversas tecnologias, técnicas e procedimentos que são objeto da ação

governamental.

Nesse sentido, o modelo biopolítico de governo da vida e das populações tem aporte

através do conhecimento/saber como lugar central nas atividades de governo. Refiro-me aqui a

um conjunto de pessoas, teorias, projetos, experimentos, técnicas que são intimamente ligados

ao governo, chamados por Rose e Miller5 de ‘expertise’, ou autoridades de saber a respeito do

problema a ser governado.

Afirmamos que o governo está intrinsecamente ligado às atividades de expertise, cujo

papel não é o de tecer uma onipresente teia de “controle social”, mas pôr em práticas

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tentativas variadas na administração calculada de diversos aspectos de conduta [...] 5

(p.72).

Foi nos contextos vivenciados por mim que a noção de que os arranjos políticos-

institucionais são construídos a partir da influência de distintas racionalidades, concepções

sobre vida, saúde, sujeito e produzem arranjos substancialmente diferentes no seu

funcionamento e nos seus resultados/expectativas. Consolidam-se, assim, como novas lentes

para analisar toda essa problemática, possuindo atores sociais ‘experts’ que colocam em

funcionamento tais arranjos a partir da construção de verdades científicas e tecnologias

governamentais, que são um “complexo de programas rotineiros, cálculos, técnicas, aparatos,

documentos e procedimentos mediante os quais as autoridades buscam incorporar e pôr em

prática ambições governamentais.” 5 (p.72).

Através dessa tecnologia governamental, o homem se tornou, em parte, um objeto

possível para o conhecimento positivo, uma vez que a Medicina foi um dos primeiros

conhecimentos científicos transformados em “expertise”, e, com isso, forjou-se como

porta-voz da autoridade sobre os seres humanos, através de uma fala afirmativa de sua

cientificidade28 (p. 1258).

Modos de Subjetivação

[...] diferentes concepções de indivíduos emergem, ao mesmo tempo em parte, no

interior de sistemas de conhecimento competentes sobre o indivíduo – a psicologia, a

psiquiatria, as disciplinas psi, etc. – e que esses conhecimentos cumprem sua parte na

modelagem de novas formas de pensar sobre nós mesmos29 (p.800).

O fato de ser graduada em psicologia colocou-me diretamente em experiências que

tencionavam minha postura perante o papel que estava executando. Foi no entremeio das

expectativas das instituições, dos próprios atendidos e de um corpo conceitual ético-estético-

político que me debrucei desde a graduação para pensar e (re) criar práticas de cuidado que se

contrapunham a determinações específicas.

Trago para começar tal discussão uma das primeiras escritas encontradas num

diário de campo produzido no período de um ano e meio enquanto atuava como psicóloga de

uma Fundação CASA, na modalidade de internação. Essa instituição tinha como função a

execução de medidas socioeducativas2 a adolescentes autores de atos infracionais com idade de

18 anos incompletos.

2 As medidas são classificadas de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Art. 122) que, nesse

caso são aquelas relacionadas à “Internação em estabelecimento educacional” 30.

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Por que me sinto tão angustiada? Qual meu lugar enquanto psicóloga numa

instituição fechada? (Diário de Campo – Fundação CASA). Tal pergunta nunca foi respondida

integralmente até o momento da escrita desta dissertação, contudo tornou-se um atravessador

importante no que diz respeito às compreensões de sujeito que operei nos distintos locais que

estive. Articulei para tal posicionamento estudos de autores como Gilles Deleuze, Felix

Guattari, Michel Foucault, Jacques Donzelot, entre outros, no qual apresentavam a psicologia

e as áreas do conhecimento ‘psi’ enquanto disciplinas, que, com discursos legitimados para

dizer sobre a vida, teriam função de apoiar a produção de determinados modos de

subjetividades, construindo muitas vezes aquilo que denominamos como sujeitos. Como

Guattari e Rolnik31 nos apresentam:

Aquilo que se convencionou chamar de "trabalhador social" - jornalistas, psicólogos

de todo tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente que desenvolve

qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em comunidades de periferias, em

conjuntos habitacionais, etc. - atua de alguma maneira na produção de subjetividade.

Mas, também, quem não trabalha na produção social de subjetividade? 31 (p.29).

Nesse sentido, pensar a psicologia e meu campo de práticas me angustiava, pois

visualizava naquela instituição a solicitação da constante criação de dispositivos que

legitimassem discursos individualizantes e assim pudesse lançar mão de um certo arcabouço

científico-jurídico-educacional que reforçasse a concepção de que aqueles adolescentes eram

sujeitos perigosos, incontroláveis, de caráter duvidoso. Tal produção objetivava um processo

de ‘reeducação’ com uma diversidade de técnicas corretivas que deveriam ser suficientemente

capazes de apoiar modos de subjetivação mais controlados e dominados. Adolescentes eleitos

como um problema e responsabilizados por tal, tanto em sua conduta individual como coletiva,

e assim “a conduta em questão tinha de se tornar maleável a intervenção. Devia ser suscetível

a uma série de técnicas ou de instrumentos mais ou menos racionalizados que permitisse agir

sobre elas e transformá-las" 5 (p.26).

Conforme Foucault nos apresenta, a ideia moderna da noção do EU, a partir de uma

noção de vida interior, apoiou e apoia a construção de aparatos de regulação da conduta, e a

psicologia como uma das disciplinas que apoia a produção de verdades sob os indivíduos, de

modo a analisá-lo e transformar suas “falhas” internas, acaba por muitas vezes alinhar-se na

operação do governo dessas vidas. Ou seja,

[...] a psicologia nasceu como uma disciplina científica, como um conhecimento

positivo do indivíduo e como uma forma particular de falar a verdade sobre os

humanos e de agir sobre eles. Além disso, ou pelo menos assim parece, os seres

humanos, nessas sociedades, acabaram por se compreender e por se relacionar consigo

mesmos como seres “psicológicos”, a se interrogarem e a se narrarem em termos de

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uma “vida psicológica interior” que guarda segredos de sua identidade, que eles

devem descobrir e preencher e que é o padrão em relação ao qual o viver uma vida

“autêntica” deve ser julgado14 (p.35).

Através de práticas como relatórios judiciais sobre o desenvolvimento dos

adolescentes, pautados no evidenciamento da evolução do adolescente em sua transformação

de infrator em não-infrator; revistas constantes; o direcionamento do modo de andar, que tinha

que ser com a mão para trás; as regras de vestimenta das profissionais, que não podiam mostrar

nem o tornozelo por se tratar de uma parte sexualizada; a intervenção constante dos

profissionais em comportamentos que eram entendidos como marcadores do ‘crime’, sendo

estes as gírias, os RAPs, as conversas de canto entre os adolescentes; entre outras, entrelaçavam

um emaranhado de dispositivos que objetivavam a regulação de condutas por meio de técnicas

homogeneizadas e serializadas e que deveriam alcançar uma certa modelagem do adolescente

num corpo docilizado, educado, possível de reinserção36.

Tais intervenções são marcadas historicamente pelo surgimento, conforme

Donzelot46, nos séculos XIX e XX de uma série de profissões ligadas ao trabalho social, sendo

que a pulverização desses trabalhadores se deu de forma rápida em várias instituições,

principalmente nos aparelhos jurídicos, assistenciais e educativos com o foco nas camadas

pobres sob uma forma dupla – a infância em perigo e a infância perigosa. A atenção desses

trabalhadores sociais estava concentrada nos problemas da infância, que através do saber

criminológico, debruçou-se na detecção da história dos menores delinquentes e a organização

de suas famílias construindo signos comuns que instrumentalizariam uma intervenção a priori.

Partindo de uma vontade de reduzir o recurso ao judiciário, ao penal, o trabalho social

se apoiará num saber psiquiátrico, sociológico, psicanalítico para antecipar o drama,

a ação policial, substituindo o braço secular da lei pela mão estendida do educador46

(p. 92).

Tal afirmação, juntamente com os estudos de Michel Foucault sobre o poder

disciplinar, reafirmaram naquele momento que a criação desse modo-indivíduo de

subjetividade transformou o exercício do poder numa operação na qual o indivíduo é posto num

processo de normatização para que se tornem produtivos, dóceis.

Assim, pensar o cuidado enquanto uma escolha ética-política, deveria ser costurada

a partir do constante contraponto a uma noção de sujeito baseada na racionalidade científica do

estatuto da razão e/ou de um sujeito interiorizado, para afirmar a não existência de valores

universais e verdadeiros, estes que fundamentalmente estão atrelados à norma.

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30

Isto significa que a noção de subjetividade passaria a ter outros sentidos. Se no

conhecimento que busca a verdade dos paradigmas científicos, o sujeito e o objeto são

previamente dados, a subjetividade é um dado a priori, um princípio de individuação,

que independe das condições históricas. O conhecimento é capaz de revelar a essência

das coisas. Assim, a subjetividade é algo do indivíduo, de sua interioridade, onde está

uma faculdade racional. Uma subjetividade a-histórica e apolítica a desvelar um

mundo imutável. A razão é o fio condutor que garante a ordem interior e uma

continuidade entre o mundo e a consciência racional105 (p.76).

Para tanto, contrapor-se a práticas que servem a estes fins de governo dos corpos,

inicia-se com a afirmação de que as subjetividades são produzidas num processo coletivo e

político, composto por uma diversidade de vetores para além da instância psicológica fundada

numa lógica da representação31. Assim, as práticas de cuidado, enquanto práticas de resistência,

devem utilizar-se de diversos componentes que se transformam incessantemente frente a uma

série de instituições, práticas e procedimentos vigentes em cada momento histórico, sendo que

os modos de subjetivação também se modificam a partir das diferentes linguagens, tecnologias,

ciências, mídia, entre outros, como uma conexão que não cessa.

Os processos de subjetivação [...], não são centrados em agentes individuais (no

funcionamento de instâncias psíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes

grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de

máquinas de expressão que podem ser de natureza extrapessoal, extraindividual

(sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos,

etológicos, de mídia, enfim, sistemas que não são imediatamente antropológicos),

quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção,

de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos

de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de automatismos,

sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc) 31 (p. 31).

A noção de subjetividade e sujeito, também entrelaçada com a perspectiva trazida

acima, está baseada na ideia de que o sujeito é uma “forma que dá passagem”, “uma

materialização”, das linhas de força/poder, negando-se o caráter essencialista do sujeito para

afirmar que os modos sujeitos se constituem a partir de um processo dinâmico, mutante e

provisório.

Somos vários “sujeitos” e, ao mesmo tempo, estamos deixando de ser aquilo que

somos. Somos, portanto, um “efeito de um entre”. Somos aquilo que se produz a partir

de nossos encontros com as coisas (homens e não homens)20 (p.18).

Sendo assim, utilizei-me da lente de que há modos de objetivação que oferecem

parâmetros do que se pensou e produziu sobre os sujeitos, ou seja, conforme Gallo há três

modos que Foucault trabalha: o primeiro é a ciência, “que permite que os seres humanos sejam

pensados em sua ação”; o segundo é “o conjunto de práticas que permitem classificar os seres

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humanos em distintas categorias como, por exemplo, o normal e o anormal”; e o terceiro é “a

maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito e age sobre si mesmo” 1 (p.79).

Vale destacar, que tomamos o sujeito em seu duplo aspecto, sendo ele um sujeito

da ação – que age, exerce poder, conhece, resiste – e o sujeito como objeto da ação – formatado

a partir do conhecimento do saber científico, que se apresenta em alguma medida submisso ao

poder. “O sujeito não pode ser pensado, tematizado, abordado, senão como resultante deste

feixe de processos, às vezes, contraditórios entre si 1 (p.79).

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32

CAPÍTULO 2 - POLÍTICAS E PROGRAMAS SOBRE ÁLCOOL E OUTRAS

DROGAS: UMA REDE DISCURSIVA EM TENSÃO

A importância que damos ao discurso não brota de uma preocupação com “ideologia”.

A língua não é meramente contemplativa ou justificativa; ela é performativa. Uma

análise do discurso político ajuda-nos a elucidar não apenas os sistemas de

pensamento mediante os quais as autoridades têm colocado e especificado os

problemas de governo, mas também os sistemas de ação através dos quais eles têm

procurado pôr em prática o governo 5 (p.74-75).

É partindo da afirmação trazida na citação acima que pretendi problematizar as

racionalidades existentes no campo das políticas e programas AD e, assim, lançar luz às redes

discursivas que se formaram em torno do problema ‘droga’ e a consequente caracterização de

um suposto sujeito intitulado como ‘drogado’. Vale ressaltar, que tais modelos não se

apresentam de modo separado, sendo que são bases de perspectivas discursivas que se

entremeiam e se apoiam na formatação das políticas e programas.

2.1. Entre o Crime, a Moral e a Doença: uma aliança de governo de condutas

O desassossego frente às políticas AD brasileiras, foi sendo construído por mim a

partir de vários momentos profissionais que serão aqui trazidos, aparecendo incialmente na

atuação nos primeiros meses como trabalhadora psicóloga em uma unidade no interior de São

Paulo/SP da Fundação CASA.

Logo que cheguei, percebi que ali tínhamos um modelo de arquitetura que se

apresentava como uma paisagem híbrida entre a punição e a educação. O prédio, com seus três

andares, era margeado por grades e portas de ferro, o que a todo tempo lembrava tanto os

adolescentes como os trabalhadores que aquela instituição tinha como função o cerceamento da

circulação social daqueles adolescentes, haja visto que cometeram um crime e, portanto, seriam

perigosos. Em seu interior havia, no primeiro andar, salas de educação formal e

profissionalizante, refeitório e consultórios médico e odontológico. No segundo andar ficavam

os quartos dos adolescentes (que mais pareciam celas, mas que não podíamos chamar assim).

E, no terceiro, uma quadra poliesportiva e espaços para a visita de familiares.

Nessa instituição me encontrei com 60 adolescentes em privação de liberdade,

cumprindo medidas tanto de internação provisória como de internação, sendo que muitos deles

ali estavam devido crime tipificado como tráfico de drogas. Dentre tantos, lembro-me

especialmente de Luan (nome fictício), 17 anos, negro, franzino, com fala baixa, olhar

desconcertante e usuário de crack. Pertencia a uma família monoparental, com oito irmãos e

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residente na periferia de uma cidade vizinha. Seu ‘crime’? A venda de drogas para o sustento

do próprio uso.

Algo ressoava em mim, percebido através de estranhamentos que eram acentuados

a cada conversa que tínhamos e que me apontavam para a percepção de que estava

acompanhando um usuário de drogas e não um adolescente traficante, como sua ‘prisão’3

marcava. Luan era usuário grave de crack, isso evidenciado pelos seus dedos machucados e por

suas crises de abstinência constantes em seu primeiro mês e tinha, ainda, grande dificuldade de

lidar com os outros adolescentes, já que além da estigmatização entre os adolescentes frente ao

fato de ser ‘craqueiro’ ele também não conhecia as ‘regras do mundão’, ou seja, as regras de

sociabilização, que em paralelo, se apresentavam naquele coletivo.

E foi assim, junto a esse encontro no entrelaçamento pulsante dos estudos de

Foucault sobre o poder disciplinar, mais especificamente no debruçar do livro “Vigiar e Punir”

26 que me embrenhei no estudo das políticas de drogas brasileiras. À época a Supervisão Geral

da Fundação CASA chamou os trabalhadores técnicos (psicólogos e assistentes sociais) para

um debate em Campinas/SP, no qual pretendiam apresentar uma pesquisa realizada pela

instituição que evidenciava o aumento de medidas vinculadas ao tráfico de drogas entre os anos

de 2006 e 2010, sendo que na região do interior do estado de SP houve um aumento de 26,9%

a 47,1% de adolescentes privados de liberdade devido ao ato infracional de tráfico de drogas.

Dentre tantos estranhamentos que estava vivendo, desde a rotina que colocava os

adolescentes sempre em filas, com as mãos para traz, com cabelos raspados e dizendo sempre

“Sim, senhor!”, “Sim, senhora” duas pistas se presentificaram: a primeira é a fala de uma das

supervisoras regionais que colocava o lugar do tráfico de drogas enquanto central na vida dos

adolescentes, principalmente os que estavam em situação de rua – discussão que trarei no

capítulo 3, no campo das práticas de cuidado – e a segunda é que no ano de 2006 tivemos a

promulgação da Lei 11.343/200632 que instituiu um Sistema de Políticas Públicas sobre Drogas

(SINAD) no Brasil. Tal lei, revogou a Lei 6.368/1976 que dispunha “sobre medidas de

prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido33 e substância entorpecentes ou que

determinem dependência física”.

Voltando um pouco na história, podemos dizer que a partir do século XX, o Brasil

iniciou um processo de intensificação das políticas de controle da produção, venda e consumo

3 Destaco o termo ‘prisão’, visto que apesar do ECA determinar sanções denominadas de medidas socioeducativas,

o que visualizava é que a instituição com seu caráter fortemente punitivo se trata da mesma lógica do dispositivo-

prisão.

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34

de determinadas substâncias, acompanhando as tendências internacionais34. Um marco

importante no âmbito da construção destas leis brasileiras é o Decreto-Lei de 1938, que pela

primeira vez construiu uma lei em território nacional que determinava penas para quem

“vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir

substâncias compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art.

2º, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas”. No que diz respeito

aos usuários, a toxicomania é considerada doença de notificação compulsória, não sendo

permitido o tratamento em domicílio (Art. 28) e a internação é o tratamento ofertado, sendo

ele obrigatório ou facultativo por tempo determinado ou não (Art. 29)35.

Dou destaque acima aos termos ‘toxicomania’, ‘doença’, ‘notificação compulsória’,

‘tratamento’ e ‘internação’, já que podemos verificar a presença de uma aliança entre saúde-

segurança na qual apresentam uma racionalidade comum: a de que pensar em drogas tanto no

consumo como no tráfico é pensar em ações de reclusão, sejam elas de ordem prisional sejam

de ordem hospitalar. Nesse sentido, a condução desses indivíduos e/ou grupos é realizada a

partir da ação de frentes distintas, mas que se coadunam no objetivo de governar os corpos, e

que necessariamente implicam no modo que as práticas de educação médica, de segurança, de

organização dos hospitais, de coleta de registros, etc, se organizam28.

Tal relação pode ser ponto de partida para pensarmos o exercício de poder nas

instituições, em correlação aos estudos de Foucault36 que localizam enquanto local privilegiado

da loucura as instituições psiquiátricas e que são por elas operadas através da disciplinarização,

medicalização e tutela, numa atuação direta sobre o corpo do louco, tendo como promessa, o

afastamento dos anormais para o equilíbrio da sociedade. A partir desse princípio, evidenciei

que aquela instituição-prisão estava a serviço da reclusão dos anormais contemporâneos, quero

dizer, aqueles que colocavam em crise a estabilidade da sociedade de bem e para tanto, temos

a fabricação e localização no corpo, numa perspectiva anátomo-corporal, de uma ‘determinada

identidade, aqui no caso a de criminoso e/ou doente’.

Aqueles que não podiam levar a cabo suas obrigações contratuais deviam agora

aparecer como antissociais, a serem confinados sob uma nova legitimidade. O

escandaloso e bizarro deviam ser situados sob uma autorização médica aprimorada,

em hospitais psiquiátricos que prometiam curar e não apenas encarcerar. Os infratores

da lei e os malfeitores já não tinham o status de bandidos ou de rebeldes, mas deviam

transformar-se em transgressores das normas motivados por defeitos de caráter

suscetíveis de compreensão de retificação 5 (p.79).

Vemos assim, modelos implementados, que conforme Marllat37, podem ser

categorizados como:

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35

1. Modelo moral/criminal, no qual o uso de algumas drogas é determinado como ilícito e assim

passível de punição. Estes modelos, partem do ideário proibicionista que objetiva a redução de

oferta e consumo, associando a ideia moral do prazer enquanto pecado e também do sujeito não

sendo capaz de diferenciar o certo e errado, o bom e ruim para si mesmo. Objetiva assim, a

abstinência total e quando não efetivado, o sujeito pode e deve ser submetido a intervenções de

suspensão de seus direitos individuais – numa associação entre justiça e saúde – como por

exemplo as internações compulsórias.

2. Modelo de Doença, no qual foca na ideia de uma dependência de drogas como doença de ordem

biológica e assim o foco é o sujeito em uso, que se associa ao pressuposto da redução da

demanda das políticas proibicionistas. Tal modelo, entende que apenas alguns sujeitos

desenvolvem dependência química e muitas vezes acaba por associar-se ao modelo

moral/criminal quando afirma a incapacidade de escolhas do usuário frente ao prazer que a

droga lhe dá. A expectativa também é a abstinência, inclusive como condição para o

tratamento.

Nesse espectro, as políticas governamentais colocam no centro de justificação para

a construção de políticas mais repressivas, o uso de drogas, que apoiados em discursos voltados

à Segurança Pública e Justiça em articulação com a Saúde, constroem um arcabouço técnico-

jurídico-científico que baseiam legislações e normativas que partem da noção de que as pessoas

que usam ou comercializam drogas são inimigos da lei e a consequência que lhes cabe é a

punição, ou seja, a privação de liberdade.

É sob tal perspectiva que a chamada ‘Política de Guerra às Drogas’, termo

popularizado pela mídia após fala do Presidente dos Estados Unidos da América em 197138,

declara as drogas ilegais como ‘inimigo público número um’ e consequentemente alguns de

seus usuários e vendedores.

Essa distinção mostrou-se uma hábil estratégia de política externa, pois identificava

países-fonte, e portanto, agressores, e países-alvo, vítimas das subterrâneas máfias

globais. [...] A guerras às drogas era desenhada, assim, como uma postura

governamental dirigida à exteriorização do problema da produção de psicoativos e à

repressão interna a consumidores e organizações narcotraficantes. A um só tempo,

uma instrumentalização da Proibição às drogas como artifício de política externa e

recurso para a governamentalização – disciplinarização, vigilância e confinamento –

de grupos sociais ameaçadores à ordem interna como negros, hispânicos e jovens

pacifistas39 (p. 2).

Para a consolidação de tais políticas de combate às drogas alguns componentes

tornaram-se fundamentais: ‘econômico’ devido o interesse da indústria farmacêutica do

monopólio da manipulação, refinamento e comércio do ópio e da cocaína; ‘moral’ frente à

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ascensão da classe médica que assumia a ‘ordem do discurso’ procurando rechaçar tudo o que

pudesse ser caracterizado como xamanismo ou curandeirismo e, ainda, aos setores mais

conservadores da sociedade cristã que referendaram as políticas proibicionistas valendo-se da

ideologia de pureza moral34.

Conforme Foucault40 problematiza, o modelo de “exclusão dos leprosos” acabou

desaparecendo em fins do século XVII e início do século XVIII, dando lugar a reativação do

modelo do policiamento da cidade e da inclusão do pestífero, o que acaba por produzir

tecnologias das quais, baseadas na ideia de anormalidade desta população em específico, devem

interditar fluxos de relação entre as drogas e as pessoas, afim de garantir um controle desses

novos não-humanos

[...] tem-se uma prática que diz respeito aos anormais, que faz intervir certo poder de

normatização e que tende, pouco a pouco, por sua força própria, pelos efeitos de

junção que ele proporciona entre o médico e o judiciário, a transformar tanto o poder

judiciário como o saber psiquiátrico, a se constituir como instância de controle do

anormal4 (p.52).

A construção da ideia de vício como doença e a consequente demonização do

“drogado”, a partir do século XIX, foi marcada, então, pela formação de uma rede institucional

e estatal baseada principalmente no estamento médico e mais tarde nas disciplinas ‘psi’ sob o

discurso do perigo e também do cuidado, criando discursos de verdade em torno da droga e

apoiando a implementação de determinadas tecnologias governamentais. “Um fantasma ronda

o mundo, o fantasma da droga, alçado à condição de pior dos flagelos da humanidade” 29 (p.12).

Quero aqui dizer, que para além dos dispositivos disciplinares efetivados

diretamente no corpo, temos também através de intervenções biopolíticas - sobre os corpos,

populações e regime químico das mentes. O nascimento de ações que além de biológicas

assume contornos biopolíticos, ou seja, um poder que além de governar os indivíduos através

de um número de disciplinas procura governar um conjunto de viventes constituídos em

população. Assim, criou-se no final do século XX e início do XXI uma estigmatização dos

consumidores de drogas, colocando-os como uma categoria identitária que pode ser identificada

por regularidades29.

Sendo assim, tais discursos apoiaram a construção de

[...] três estatutos diferenciados: traficantes, dependentes e usuários. Os traficantes

eram direcionados ao sistema penal com penas cada vez maiores; os dependentes –

com a devida avaliação de um psiquiatra – eram encaminhados para tratamento; e os

usuários, também eram direcionados ao sistema penal, porém com sanções mais leves

que os traficantes41 (p. 54).

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37

Sobre isso é válido lembrar que os anos 1970 foram marcados pela Ditadura militar,

que através da sistematização da ‘Doutrina de Segurança Nacional’ justificava ações de

repressão e intervenção militar com o lema da proteção do interesse da segurança nacional. Para

tanto, houve uma eleição daqueles que seriam chamados de inimigos da ordem.

Orlando Zaccone em entrevista intitulada ‘A Alternativa é a Legalização’ dada para

a Revista Berro refere que

A história do Brasil sempre foi criada na construção desse inimigo, seja em Canudos,

no Araguaia, e agora nas favelas, na figura mítica do traficante de drogas, que é criada

num patamar onde o seu extermínio é desejado não só pelo Estado, mas pela sociedade

de forma geral. Então, a guerra às drogas acaba promovendo um dispositivo que

autoriza intervenções militares em áreas pobres42 (p.5-6).

Alinho tal discussão à regulamentação da Lei 6368/1976 e sua posterior revogação

pela Lei 11.343/2006. A primeira dispunha sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico

ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinassem dependência física

ou psíquica, intensificando as forças repressivas e instituindo ação conjunta das polícias

municipais, estaduais e federal no combate ao tráfico32, 33. Mais uma vez reforçando o campo

de racionalidade que aliava a saúde e segurança para a construção de programas e tecnologias

governamentais em torno da problemática da venda e consumo de drogas.

A Lei 11.343/2006, que instituiu o SISNAD, prescreveu medidas para prevenção

do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e as redes de

serviços32, num amplo debate social da necessária construção de uma legislação que apoiasse

a descriminalização do uso de drogas e substituísse a linha estritamente repressiva e reclusiva

das adotadas anteriormente, modificou a pena para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito,

transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo

com determinação legal ou regulamentar” 32 que antes era estritamente de detenção e

pagamento de multa para “I. - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços

à comunidade; III - medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo”.

Apesar de uma aparente despenalização/descriminalização do porte de drogas para consumo

pessoal o que houve efetivamente foi a substituição de sansões, permanecendo vigente uma

perspectiva punitivista do consumo de drogas, sob a concepção da necessidade de abolição do

uso de drogas na humanidade e assim de sua venda e consumo.

Tal apontamento é de grande importância, pois é sob a égide de uma ‘sociedade

livre de drogas’ que ela se sustenta como está, visto que se entende em grande medida que o

risco da difusão da droga – frente à demanda – deve ser evitada, o que neste aspecto enuncia

que a conduta do usuário fomenta o tráfico de drogas e os crimes, através do discurso de que os

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usuários cometeriam crimes para a manutenção do seu vício43. Além disso, nessa perspectiva,

também seriam pessoas que geram malefícios à coletividade da ‘sociedade’. Assim, pensa-se

na punição dos possíveis riscos para evitar seu acontecimento.

Apesar da diferenciação das sanções para usuários e traficantes, não se viu qualquer

inovação no que diz respeito à criação de critérios diferenciadores, já que a lei 11.343/2006

conservou a mesma redação dada ao artigo 37 da lei anterior, a Lei 6368/1976 . Ou seja, omitiu-

se sobre o tema abordado

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à

natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se

desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos

antecedentes do agente32.

Olinger44 discute que por não ter sido construído um dispositivo legal que

especificasse quantidades determinadas para diferenciar o consumidor do traficante, ficando a

cargo do juiz a análise a partir das circunstâncias da infração, do perfil do infrator, da natureza

da substância, entre outras, havia

[...] uma tendência a continuar prendendo negros e pobres como traficantes, já que

mesmo que sejam encontrados com uma quantidade muito pequena de droga, tem

grande probabilidade de ser acusados, pelas circunstâncias e perfil social, de estar

servindo de atravessador/avião, enquanto o menino de classe média vai ter um bom

advogado e mostrar que, com seu perfil e condição social, não é traficante44 (p.12).

Seu efeito é visualizado claramente no aumento do encarceramento por esse tipo de

crime de 339% entre os anos 2005 a 2013, com crescimento mais acentuado entre as mulheres,

de 698% em 16 anos. Além do reforço da seletividade penal, que conforme pesquisa ‘Audiência

de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à

Efetivação da Liberdade como Regra’ 45, o tratamento judicial é mais duro para negros, sendo

que enquanto 49,4% dos brancos detidos permanecem presos e 41% receberem liberdade

provisória, tais percentuais alcançam 55,5% e 35,2% quando se trata de pessoas negras.

A discussão sobre os campos de construção de intervenção do Estado que

objetivavam a construção da ordem social na França do século XVII até o século XX de

Donzelot46, embasado nos estudos de Foucault sobre o poder disciplinar e biopoder, me lança

perspectiva de olhar para como a formação de diferentes profissões pautadas no discurso do

cuidado do indivíduo - subjetividade, corpo, desvios - construíram políticas apoiadas na

governança da vida, ou seja, introduzindo modos hegemônicos na formação das famílias,

cidade, saúde, entre outros.

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39

Sob a égide da ‘guerra as drogas’ e assim de suas legislações e normativas, foi sendo

construída a ideia de que o uso de drogas é um grande mal, quer dizer, o uso de determinadas

drogas são um grande mal, e assim uma racionalidade de governo em torno da normalização do

comportamento desviante e da abstinência como norma tornam-se uma imposição para a busca

de um padrão ideal a ser alcançado. A partir desse sentido, o uso de drogas – no caso das drogas

que são classificadas como perigosas – é visto como um problema e precisa, então, ser corrigido

e governado.

Defronte de tais discussões, podemos dividir em três figuras simbólicas

hegemônicas que têm autorizadas determinadas intervenções:

1. Traficante: sujeito perigoso e assim seu caminho é a segregação social afim de torna-lo um

homem bom, ou seja, reinserido na sociedade enquanto mão de obra;

2. Doente: sujeito sem controle frente a seu uso e assim pode-se construir intervenções baseados

na ideia de “que precisa ser sequestrado, reprogramado segundo procedimentos baseados na

abstinência prolongada e na reengenharia da vida” 47 (p.34).

3. Pecador ou moralmente corrompido: sujeito afastado de deus e assim intervêm-se sob a ótica

da reconexão com a espiritualidade e de sua libertação através do divino;

Nesse sentido, a Lei sobre drogas de 2006, tinha relação direta com os dados

apresentados pela supervisão da Fundação CASA, já que o que se reafirmou foi que as

discussões do problema das drogas, ainda sob a égide da ideia de um fenômeno que é um “caso

de polícia” ou uma “doença” categorizada como dependência química. Apesar de tudo que foi

dito, tínhamos neste momento, em contrapartida, a atenção voltada para os usuários

problemáticos de drogas, a partir do estabelecimento de uma responsabilidade circunscrita no

campo da saúde, com a criação e aperfeiçoamento de programas de cuidado consonantes às

diretrizes instituídas pelo Ministério da Saúde que foram sendo transformados numa postura

contra hegemônica de uma rede discursiva baseada no perigo e doença.

2.2. A Redução de Danos: estratégia de combate ao discurso hegemônico sobre drogas?

Nunca é demais lembrar que a política de drogas não é um ramo da psicofarmacologia

aplicada às populações e, portanto, nunca trata apenas de substâncias. Ela é sempre

uma política feita por (poucas) pessoas com enorme impacto na vida de (muitas)

outras pessoas48 (p.12).

Quando assumi o cargo de Coordenadora de Saúde Mental do município de

Santos/SP, trazia em mim o desejo de me aproximar do histórico da região e da própria

construção pioneira da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), de uma política de

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cuidado territorial em saúde mental que propunha prescindir o hospital psiquiátrico e também

do primeiro programa público de redução de danos do país.

O histórico dessa região, considerada como grande porta de entrada de cocaína no

Brasil, pode ser considerado como efeito da política norte-americana de ‘Guerra às drogas’ 49.

Uma vez que na década de 1970, políticas orientadas por uma perspectiva repressora aos países

andinos, produtores de coca, fizeram surgir caminhos alternativos para o tráfico de drogas,

colocando o território brasileiro na rota internacional do tráfico de cocaína. Santos, cidade

litorânea do estado de São Paulo, por possuir a maior zona portuária do país, passou a ser um

local de escoamento da droga para a América do Norte e Europa. Enquanto consequência,

houve aumento de usuários de drogas injetáveis na área, o que em 1988 rendeu à cidade o título

de ‘capital da Aids’ 49.

Foi então no ano de 1989, que a prefeita da cidade de Santos, Telma de Souza, do

Partido dos Trabalhadores (PT), embasada em experiências internacionais4, como forma de

tentar conter a epidemia de HIV entre os usuários de drogas injetáveis, criou no âmbito da

Secretaria de Saúde o Programa Municipal de Aids. Com a atuação desse programa, surgiu o

primeiro projeto de Redução de Danos (RD) associado ao uso de drogas injetáveis do Brasil50.

Isso, ao longo dos anos foi “se tornando uma estratégia de produção de saúde alternativa às

estratégias pautadas na lógica da abstinência, incluindo a diversidade de demandas e ampliando

as ofertas em saúde para a população de usuário de drogas” 51 (p.156).

Essa experiência trouxe em si um dos grandes debates no que diz respeito ao

cuidado de pessoas em uso de drogas, sendo que de um lado tínhamos um cenário nacional

constituído por políticas de guerra às drogas e, de outro, um momento de redemocratização do

país e da consequente construção de políticas públicas sociais voltadas à democratização de

acesso, como o SUS. Nesse contexto, “o então secretário municipal de saúde, David Capistrano,

e o Coordenador do programa de DST/AIDS, Fábio Mesquita, sofrem uma ação judicial por

adotarem a estratégia de Redução de Danos, acusados de incentivarem o uso de drogas” 51 (p.

156). Tal ação, anos depois arquivada, teve como efeito a suspensão do programa e colocou em

4 Foi a partir de 1926, na Inglaterra, com a publicação do Relatório Rolleston que a Redução de Danos (RD) teve

seu marco inicial. Esse relatório foi elaborado por um grupo de médicos que indicou que a melhor maneira de

tratar pacientes dependentes de morfina ou heroína era promover a administração das drogas por um médico, que

deveria, além de prescrever, monitorar o uso dessas substâncias naquela pessoa. Esse relatório foi um marco porque

defendia que não se poderia tratar dependentes impondo-lhes a abstinência de forma abrupta; recomendava o

acompanhamento dos usuários que desejavam se abster do uso de morfina ou heroína de forma a propiciar um

alívio dos sintomas da abstinência ou ajudando na administração das drogas aos que queriam continuar usando-

as49.

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evidência as forças que se tencionavam nesse campo: as forças conservadoras, que reafirmavam

uma política antidrogas, e as forças mais progressistas, que buscavam adotar políticas e

estratégias de cuidado mais democráticas, numa perspectiva do direito constitucional de acesso

universal à saúde.

Essa experiência trouxe uma nova perspectiva no cuidado de usuários de drogas,

apesar de ainda circunscrita no âmbito das políticas e programas de prevenção a AIDS, que,

diferente das existentes no âmbito da focalização da droga, trazia a perspectiva de cuidar do

sujeito em seus territórios reduzindo os danos causados pelo uso e, desse modo, inaugurou-se

o debate de cuidado a pessoas que usavam drogas contrapondo-se aos debates proibicionistas

com foco estritamente na abstinência.

A construção de serviços voltados ao cuidado de pessoas com uso problemático de

drogas é datada, após anos de discussão, dentro da própria luta antimanicomial brasileira. O

‘Movimento da Luta Antimanicomal’ no final da década de 1970, período de efervescência

política, entre vários tensionamentos, objetivava uma resposta para o grande número de

denúncias sobre as graves violações de direitos humanos nos manicômios, propondo reflexões

e transformações à nível técnico-assistencial, político-jurídico, teórico-conceitual e

sociocultural52.

Apostou-se, pautados na afirmação de que estamos diante de um fenômeno de

exclusão social secular, na construção de um aparato político-técnico-discursivo-prático que

viria fazer contraponto aos espaços de exclusão dos ‘anormais’ – hospitais psiquiátricos,

comunidades terapêuticas – e as práticas produzidas sob tal lógica, instaurando-se como uma

disputa política que pudesse transformar-se enquanto processo de enfrentamento à

estigmatização da loucura. O movimento se constituiu na composição de forças de

trabalhadores dos hospitais psiquiátricos, usuários, familiares e entidades da sociedade civil e

conquistou, através da Lei 10.216/200153, institucionalidade. Tal feito, trouxe consigo o

paradigma da substituição de um modelo hospitalocêntrico e médico-centrado numa tentativa

de um cuidado que se transformasse numa “[...] importante ruptura com o modo psiquiátrico de

olhar e compreender essa estranha e complexa experiência humana que podemos genericamente

nomear de loucura” 54 (p. 77).

O texto da Lei 10.216 de 06 de abril de 2001, marco legal da Reforma Psiquiátrica,

ratificou, de forma histórica, as diretrizes básicas que constituem o Sistema Único de

Saúde; garantindo aos usuários de serviços de saúde mental – e, consequentemente,

aos que sofrem por transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas - a

universalidade de acesso e direito à assistência, bem como à sua integralidade;

valoriza a descentralização do modelo de atendimento, quando determina a

estruturação de serviços mais próximos do convívio social de seus usuários,

configurando redes assistenciais mais atentas às desigualdades existentes, ajustando

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de forma equânime e democrática as suas ações às necessidades da população53 (p.5-

6).

No entanto, foi apenas no início dos anos 2000, frente ao discurso de uma ‘epidemia

do crack’, rebatido por vários pesquisadores e que em 2015 tomou forma de dados na “Pesquisa

Nacional sobre Uso de Crack” 55. Essa pesquisa apontou que a suposta ‘epidemia de crack’ não

se sustentava na realidade, o que foi reforçado, em 2019, através da divulgação da pesquisa “3º

Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira” – realizada entre 2014 e

2017 – engavetada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) devido a possível

explicação, de que os dados não corroboram com a afirmação de que viveríamos uma epidemia.

Apesar disso, a afirmação de uma dita ‘epidemia de crack’, criou um movimento que tenta

reforçar a necessidade de construção de programas e tecnologias de cuidado centradas em

intervenções estritamente pensadas sobre o uso de droga e, decorrente disso, focado na

utilização de intervenções basicamente restritivas e punitivistas que objetivavam a abstinência.

Pautados pelo discurso da abstinência e da reafirmação pelos veículos midiáticos,

de uma noção de que tais pessoas, principalmente os usuários de crack em cenas abertas, seriam

perigosas e incontroláveis, verdadeiros ‘zumbis’ e, portanto, possuídas pela droga tornam-se

consequentemente agressivas se não a usassem, reforça o imaginário social do usuário de drogas

enquanto pessoas criminosas e estritamente influenciadas pela droga. A conjunção desses

fatores, solidifica um terreno fértil para a construção de uma diversidade de tecnologias que

tem o intuito de tornar tal fenômeno operável, ou seja, que possibilitassem a ação sobre tais

condutas individuais e coletivas.

Antonio Lancetti47, em seu livro ‘Contrafissura e Plasticidade Psíquica’, debate um

fenômeno, o qual intitulou como ‘contrafissura’. Tal fenômeno é caracterizado pela influência

das mídias e por toda a construção social secular em torno da questão das drogas, imbuindo a

sociedade em geral e os trabalhadores, de crenças e valores morais, e que, desse modo, acabaria

por buscar muitas vezes soluções rápidas para problemas complexos voltadas basicamente para

o consumo das drogas. Nas palavras do autor:

Esse fenômeno de desespero, de fissura por resolver imediatamente, se manifesta na

prática de internações forçadas, muitas vezes de adolescentes que tiveram seu

primeiro contato com alguma droga ilegal. A esse afã por resolver imediatamente e

de modo simplificado problemas de tamanha complexidade, chamamos de

contrafissura. Assim como diz o samba “nós é que bebemos e eles que ficam tontos

(Turma do Funil, Marcha de Carnaval de 1956), noias queimam pedra, autoridades,

políticos e editores de jornais escritos e televisionados que ficam alterados47.

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Trago aqui, alguns trechos de reportagens que indicam os discursos construídos em

torno da problemática:

1. Em referência a uma ação no Denarc em São Paulo na região da “Cracolândia”, 2000:

Nos últimos meses, o cenário mudou. Desde setembro do ano passado, o Denarc

(Departamento de Narcóticos) vem promovendo repressão ostensiva no local a fim de

"erradicar" a cracolândia, o que forçou a dispersão dos viciados e traficantes para outras

regiões da cidade. [...] A ordem do secretário (estadual da Segurança Pública, Marco Vinicio

Petrelluzzi) foi erradicar a cracolândia. Era uma vergonha ter uma Amsterdã ao lado do prédio

do Denarc", explica o delegado Ubiracy Pires da Silva, diretor da Divisão de Investigação. O

prédio está incrustado no ex-território dos usuários de crack. [...] Quando a repressão era mais

leve, viciados sentavam-se nas calçadas para partilhar cachimbos com a pedra de crack -droga

barata que, segundo especialistas, vicia quase imediatamente56.

2. Coluna Cotidiano Folha de São Paulo, 2005:

“Crack se expande e já atinge 19 Estados”

3. Em 2015, frente a uma novela da TV Globo “Verdades Secretas” uma reportagem intitulada

“Epidemia de crack atinge dois milhões e coloca Brasil no topo do ranking de consumo da

droga”:

Geralmente, pessoas que fazem uso dependente de crack tendem a ficar mais impulsivas,

irritáveis e com maior oscilação de humor. Com o tempo, ficam mais explosivas quando

frustradas ou questionadas sobre seu consumo por amigos ou familiares. [...] Além

disso, Miguel alerta que a necessidade do crack pode deixar a pessoa mais agressiva. [...] A

vontade de consumir e não ter a droga disponível no momento causa maior agressividade e

estresse, porque ela realmente precisa daquela quantidade de substância para se sentir

motivada57.

Em contraposição a essa formatação discursiva, partindo da premissa do direito à

saúde, novas abordagens foram inauguradas, na construção de uma rede substitutiva de serviços

comunitários e abertos, com o intuito de produzir uma mudança social frente à ideia de

criminalização, tutela e penalização dos usuários de saúde mental, álcool e outras drogas,

intitulada como Redução de Danos.

Vale ressaltar, que a RD não é uma prática contrária à abstinência, inclusive pode

ser um caminho até ela, sendo que a contraposição está em relação à forma de tratamento que

é oferecida, que ignora quem são essas pessoas, quais suas histórias de vida, quais seus motivos

para querer/não querer usar drogas. É sob tal reflexão, ao contrário do que muitas vezes é posto

– de que a RD incentiva o consumo de drogas – que se buscou através da construção de políticas,

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programas e tecnologias, a produção estratégias que visavam a aproximação dos múltiplos

contextos de uso de drogas, de ações sem julgamento moral e de caráter informativo que

respeitasse a escolha do usuário. Nessa complexa compreensão, ao invés da associação pessoa-

droga, olha-se a partir da associação pessoa-relações-condições de existência, colocando a

droga como coadjuvante.

As políticas e programas no campo de drogas, quando pautadas pela lógica da RD,

buscavam assim produzir novas lentes capazes

[...] de olhar e lidar com os problemas ligados ao uso de drogas e deve constituir-se

em razão da promoção à saúde e atenção integral, proporcionando a reflexão dos

usuários de drogas, relacionados às formas, padrões, locais e sentidos para o uso,

sempre com relevância também aos seus contextos sociais de consumo58 (p. 46).

Nesse sentido, uma tentativa de inversão foi produzida, visto que o foco deixava de

ser as substâncias e passava a ser os sujeitos e suas existências. Isso validava que as políticas

sobre drogas precisavam estar alinhadas com as diferentes políticas públicas, compondo o

reconhecimento e a consolidação da cidadania dos usuários de substâncias psicoativas, sob o

manto dos direitos humanos. Essa construção apresenta uma visão ampliada da saúde,

respeitando as vontades e condições de usuários quando não pretendem ou não conseguem parar

o consumo, valorizando suas experiências de uso para elaborar em pares os melhores caminhos

para a promoção de saúde39.

Para transformar os cenários de segregação e violência é importante, então, estar

próximo das populações que mais são atingidas por estes sistemas e, desse modo, a RD seria

uma estratégia que defende a importância de políticas, que reconhece as diferenças e a

importância de seus protagonismos na sociedade, centralizando sua luta pela liberdade

individual e autonomia. Deu-se início, em um regime de constante tensionamento, a uma nova

discussão política que visava articular novas estratégias de cuidado, efetivando-se inicialmente

na criação da Política Nacional Antidrogas Drogas (PNAD), em 2002. Apesar de encontrarmos

nessa política uma tentativa de fomentar programas baseados na RD, o prefixo anti alertava ao

fato de que se tratava de

[...] um processo social complexo, vem sendo construída no interior de uma tensão

que atravessa a vida no contemporâneo, na qual práticas de resistência – que afirmam

a potência da vida de reinventar-se permanentemente – estão em embate com linhas

que tendem para a vigilância e o controle59 (p.599).

Ou seja, os modelos pautados numa lógica criminal/moral/doença ainda se faziam

presentes apesar de começarmos a ver o modelo da redução de danos que, conforme Marllat37,

tenta romper com a ideia de uso abuso de drogas, afirmando que o uso pode ser ou não

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prejudicial. Somado a isso, segundo os pressupostos dos direitos humanos, o uso se drogas é

um direito humano, no qual se consideram os determinantes sociais de saúde, que, segundo a

Associação Internacional de Redução de Danos (IRHA), seria

[...] um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao

uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar

drogas, com foco na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas;

bem como nas pessoas que seguem usando drogas60.

A diversificação das ofertas em saúde para usuários de drogas sofreu significativo

impulso quando, a partir de 2003, as ações de RD deixaram de ser uma estratégia exclusiva dos

Programas de DST/AIDS no âmbito da saúde e se tornaram uma estratégia norteadora da

Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Ouras Drogas61.

Tal política, baseou em 2004 a regulamentação do “nota”, afirmando o posicionamento

contrário a internação de usuários de álcool e outras drogas em hospitais psiquiátricos,

normatizando as internações de curta permanência e propondo integração entre os serviços e

níveis de atenção à saúde e das redes de suporte social (grupos de autoajuda, associações), estas

últimas de caráter complementar e não como componentes da rede.

O SISNAD e a Política de Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e

Outras Drogas definiram consensualmente a descentralização das ações, a capacitação

profissional, a abordagem multiprofissional e a socialização de conhecimento para proporcionar

um melhor acolhimento e projeto terapêutico que de fato atendesse às demandas e necessidades

dessa população. Enfatizava-se, nesse momento, então, a promoção de informação, educação e

aconselhamento; acesso à assistência social e à saúde; e a disponibilização de insumos de

proteção à saúde e de prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), HIV/AIDS e

hepatites, diferenciando-se do modelo preventivo tradicional62.

Além disso, com o tema das drogas ocupando lugar de importância nas agendas da

saúde mental brasileira, houve impulso significativo para a diversificação de ofertas de cuidado

para usuários de drogas, sendo regulamentado pelo Ministério da Saúde as ações que visavam

a RD na Portaria 1.028/200563 opondo-se claramente às propostas de tratamento que se

pautavam exclusivamente no paradigma proibicionista e da abstinência 64.

Apesar de a RD comparecer como importante diretriz clínica e política dos Caps-ad,

na experiência concreta ainda restam muitas lacunas sobre o modo como esta diretriz

tem sido exercida no cotidiano desses serviços. Por ser um movimento recente, o

processo de institucionalização da RD no campo da Saúde Mental precisa ser

analisado para que se potencialize a construção de uma rede territorial de atenção aos

usuários de álcool e outras drogas64 (p. 156-157).

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46

Destacamos, que a partir de um movimento no SUS da construção de regiões de

saúde e da criação de Redes de Atenção à Saúde, sob a finalidade de garantir a integralidade da

assistência de modo articulado entre os diferentes serviços e ações de saúde, em 2013, a

institucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)65 . A RAPS era composta por sete

pontos de atenção, sendo: I) Atenção Básica, II) Atenção Psicossocial Estratégica, III) Atenção

de Urgência e Emergência, IV) Atenção Residencial de Caráter Transitório, V) Atenção

Hospitalar, VI) Estratégias de Desisntitucionalização e VII) Estratégias de Reabilitação

Psicossocial, e tais pontos seriam articulados através do Projeto Terapêutico Singular (PTS) de

cada usuário, ou seja, a produção de estratégias de cuidado apresentava-se múltipla e focada

nas necessidades específicas de cada usuário. Assim,

O enquadre da Política de Saúde destaca a promoção da saúde, da vida e da cidadania

como princípios éticos, realizados na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), conjunto

articulado de serviços territoriais que exercem o cuidado em saúde mental por meio

de equipes multiprofissionais e estratégias sociocomunitárias66 (p. 881).

Apesar da construção de novos aparatos políticos-institucionais pautados na

perspectiva da RD, em paralelo, num terreno de grandes tensões e divergências, também o

Ministério da Saúde, em 2009, lançou uma campanha com o slogan ‘Nunca experimente o

crack. Ele causa dependência e mata’ com o objetivo de alertar sobre os riscos e consequências

causados pelo consumo da droga. A ‘Figura 1’, a seguir, ilustra essa campanha.

Figura 1 - Material da Campanha do Ministério da Saúde sobre o uso de crack, 2009.

Fonte: Divulgação/Ministério da Saúde, 2009

Já em 2010 foi lançado, pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional

de Álcool e outras Drogas (SENAD), em parceria com outros Ministérios – Saúde,

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47

Desenvolvimento Social e Combate à Fome Educação, e da Secretaria de Direitos Humanos –

o “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (PIEC)” 67 que cria o Comitê

Gestor sob a gestão do Ministério da Justiça e deu origem ao Programa ‘Crack é Possível

vencer’. Tal programa propunha-se numa ação integrada que envolvia três frentes de atuação:

prevenção, cuidado e autoridade. A Figura 2, a seguir, ilustra essa campanha.

Figura 2 - Campanha do Ministério da Justiça sobre o crack, 2010.

Fonte: Ministério da Justiça, 2010.

O eixo ‘Prevenção’ objetivava a promoção de ações para a redução de fatores de

risco no uso de drogas, ofertando assim a capacitação de profissionais de diferentes áreas,

disseminação de informações sobre o crack e outras drogas e estratégias de prevenção nas

escolas. Já o eixo ‘Cuidado’ visava a ampliação da rede de atenção em saúde e assistência social

para usuários de drogas e familiares, disponibilizando recursos técnicos e financeiros para

qualificação e ampliação das redes. Vale dizer que tal rede deveria trabalhar no acolhimento de

usuários e familiares, respeitando sua autonomia e singularidade, e oferta de cuidado necessário

a cada caso. Tomava, ainda, a defesa da vida e da RD como princípio. Para isso, os serviços de

saúde e de assistência social, incluídos aqueles prestados por organizações não-governamentais

como as Comunidades Terapêuticas, deveriam se articular para garantir um atendimento

integrado e de longo prazo. E, finalmente, o eixo ‘Autoridade’ objetivava a “redução de oferta

de drogas ilícitas no Brasil”, assim, aposta na articulação das forças de segurança com as áreas

diferentes áreas em parceria com os estados e municípios, além do fortalecimento das ações de

inteligência e investigação68 (p.7)

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Vale destacar que, à época, o país estava esperando dois grandes eventos, a Jornada

da Juventude5 e a Copa do Mundo6, e assim, no interstício da construção de programas e da

crescente miadiatização do problema, o objetivo de limpar as ruas para que esses grandes

eventos pudessem acontecer fazia-se presente. Neste sentido, tivemos a formatação de

tecnologias governamentais que, se de um lado, apostavam na construção de estratégias de

cuidado pautados na RD, também presentificava-se àquelas que acabavam por reforçar a ideia

de um novo inimigo, este, que seria o usuário de crack, em cenas de uso em espaços públicos.

Na profusão de reportagens, campanhas e programas, apesar de construírem

composições distintas, enunciava-se uma substância perigosa e consequentemente seus

usuários, e desse modo, o ideário de um mundo sem pessoas que usassem drogas.

Lembro aqui de uma frase que Graziella Barreiros7 que em vários de nossos

encontros, desde as supervisões clínico-institucionais no CAPS-ad até nos dias atuais num

projeto de formação em RD, no qual éramos parceiras de trabalho, dizia: “Os enunciados

informam ao público que o problema é substância...mas veja bem, nunca vi a cocaína matar

alguém, ou exterminar famílias! A relação se dá entre sujeito, droga e contexto!! Não podemos

transformar o objeto em sujeito e o sujeito em objeto” (comunicação pessoal de 2018).

Esse caminhar sobre as políticas e programas no âmbito da saúde, me fizeram

refletir sobre como

As contradições são partes da engrenagem, elas são necessárias para o funcionamento

de um governo que une elementos díspares, de um governo em que a consistência não

passa pela coerência, mas pelo jogo de interesses. Nesse sentido não estaríamos

corretos em afirmar que a política de drogas é um governo das contradições. É antes

de tudo um governo de elementos heterogêneos movido por jogos de interesses que

resultam em sistemas contraditórios69 (p.46)

Temos assim, um campo de forças que de um lado, contam com mais de cem anos

de construção de discursos pautados em perspectivas punitivistas, morais e religiosas e de outro,

tentando produzir um deslocamento de verdades historicamente construídas, uma gama de

5A XXVIII Jornada Mundial da Juventude (JMJ/Rio 2013) aconteceu de 23 a 28 de julho de 2013 no Rio de

Janeiro/RJ, Brasil. Pela primeira vez, esse evento da Igreja Católica ocorreu em um país cuja língua

portuguesa é majoritária, e pela segunda vez em um país da América do Sul - o primeiro encontro no subcontinente

foi na Argentina em 1987. A escolha da cidade brasileira foi feita pelo então papa Bento XVI em 2011, no

encerramento da Jornada Mundial da Juventude daquele ano.

6 Copa do Mundo de 2014, no Brasil. 7 Cientista Social com experiência na área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, no setor público,

desenvolvendo as seguintes funções: Atuação , em funções diversas, nos seguintes pontos da Rede de Atenção

Psicossocial: CAPS II, CAPS III, CAPS AD II e CAPS AD III, CAPS Infanto-juvenil; Unidade de Acolhimento

Adulto e Infanto Juvenil; Serviço Residencial Terapêutico; Consultório de/na Rua; CAPS Itinerante; Urgência e

Emergência; Leitos de Saúde Mental em Hospital geral; Serviços de Geração de Trabalho e Renda; - Experiência

com populações indígenas na temática de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.

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programas e tecnologias no campo da saúde mental que faziam grade esforço de produzir uma

mudança nas práticas sociais neste campo.

***

Trago dois episódios vivenciados na cidade de Santos/SP para evidenciarmos como

o campo em disputa esteve presente em vivências cotidianas, muitas vezes funcionando de

modos contraditórios, mas que fazem parte da mesma engrenagem. A cidade de Santos por ser

turística, apresentava nas discussões em relação ao uso de drogas em cenas abertas grande

tensão, haja vista, que podíamos verificar claramente uma disputa entre o cuidado em saúde

pautado na lógica de RD – baixa exigência, produção de vínculo, respeito ao desejo do outro –

e a frequente solicitação da comunidade em geral e das forças de segurança da necessária

produção de controle e retirada dos espaços públicos dessa população.

Logo que assumo a função de Coordenadora na referida cidade, posição que me

colocou em contato com uma diversidade de atores públicos sociais que implementavam,

fiscalizavam e determinavam políticas no campo AD, em uma Audiência Pública chamada pela

então vereadora Telma de Souza – que foi prefeita da cidade de Santos na época do primeiro

programa de IST/AIDS implementado –afim de discutirmos com diferentes atores sociais

(usuários, cidadãos, profissionais de saúde, assistência social, segurança) como vinha sendo

negligenciada a política de AD no município. Na ocasião, Telma apontou para o fato de que

tivemos no município, através do Programa ‘Crack é possível Vencer’ a injeção de recursos

oriundos do Ministério da Saúde para a implementação de serviços de ordem territorial

(CAPSad, Unidades de Acolhimento) e programas de RD que não tinham sido efetivados até

aquele ano. Pelo contrário, houve a injeção de dinheiro municipal em Comunidades

Terapêuticas e um sucateamento acentuado do único serviço existente no município para

população em uso problemático de drogas. A mesa, composta pela gestora do CAPS-ad, eu

como Coordenadora de Saúde Mental, a vereadora, uma professora de uma faculdade particular

de psicologia e um médico de um Polo Regional de Internação Psiquiátrica, tinha um claro

direcionamento, este de pensar na produção de estratégias coletivas de cuidado, em seus

diferentes níveis de atendimento, numa perspectiva de um cuidado em liberdade.

Relembrei, nesse momento, para os que ali estavam, que apesar da consolidação de

diretrizes baseadas na RD, um movimento nacional tenso fez também impulsionou, em 2015,

a regulamentação de entidades caracterizadas como Comunidades Terapêuticas (CT), que

seriam:

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Art. 1º - As entidades que realizam o acolhimento de pessoas, em caráter voluntário,

com problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa,

caracterizadas como comunidades terapêuticas, serão regulamentadas, no âmbito do

Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD, por esta Resolução70.

Sob outra perspectiva e cenário, outro episódio, vivido em fevereiro de 2018, foi

uma Audiência Pública do Conselho de Segurança da Região Centro-Histórica de Santos, no

qual pontuou-se a preocupação quanto o aumento de pessoas em situação de rua e foi cobrado

do poder público uma resolução para o fato. Os discursos dos que ali estavam compondo a mesa

de debate, sendo esses: o Secretário de Saúde, um delegado e o coordenador de uma

Comunidade Terapêutica de uma cidade vizinha, eram no sentido de “precisamos que vocês

tirem essas pessoas; elas afastam os clientes; o cheiro é ruim para quem quer comer; vamos

então criar uma ação de internação coletiva”, entre outras falas, que objetivavam a higienização

da cidade para ficar ‘mais bonita’. Aqui ficava claro que tentava-se construir um “conjunto dos

meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo

a boa ordem desse Estado” 71 (p. 421), ou seja, na afirmação de que a circulação de determinadas

pessoas não é desejável, tentava-se operar um conjunto de estratégias que objetivava a retirada

das pessoas, seja através da composição com serviços que não estivessem na cidade, ali

representado pela Comunidade Terapêutica, seja por forças de segurança que precisariam ser

mais ostensivas.

Vemos, a partir desses relatos, que de um lado temos a busca por estratégias que

efetivassem o cuidado das pessoas, e assim o centro da discussão são as pessoas e suas

necessidades, frente a legitimação dos usuários AD enquanto pessoas de direitos; por outro,

uma racionalidade baseada na proteção da sociedade dos ‘perigosos’, na segurança dos

‘cidadãos de bem’ e na limpeza da cidade, coloca o foco nos efeitos que os usuários de drogas,

entendidos como inimigos e promotores da desordem, produzem na cidade e por isso todo

esforço é válido para manter o indivíduo longe dela.

Apesar de diversos instrumentos legais para a ampliação de práticas sociais de

cuidado que aposte na garantia do acesso ao cuidado e na complexificação das ofertas, o que

ronda constantemente tais implementações é a lógica, presente nas legislações de drogas

brasileiras que tem afirmado uma posição de ‘guerra às drogas’, segundo a qual para evitar que

a droga prejudique a vida, a segurança e a liberdade da população – quero dizer, as pessoas que

tem vidas validadas – encarcera-se, seja pela via da justiça ou da saúde, segregando-se ou

exterminando-se parte da população que não tem valor social.

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Assim, sob o manto da ambiguidade e ambivalência constrói-se programas que se

apresentam rentáveis ao governo das populações e na injunção da garantia de direitos e da

repressão, vê-se uma diversidade de ações públicas brasileiras que revelam os entraves de

políticas consideradas mais progressistas diante do marco proibicionista vigente.

2.3. Entre os ‘Braços Abertos’ e a ‘Redenção’

Governar é uma atividade problematizadora: ela expõe as obrigações dos governantes

em termos de problemas que eles procuram tratar. Os ideais de governo estão

intrinsecamente ligados aos problemas ao redor dos quais ele circula, as falhas que ele

procura retificar, as doenças que ele tenta curar5 (p.79).

A relação entre as racionalidades políticas e a formatação de programas de governo

apresenta-se pautada na produção de determinados espectros de conhecimento em torno do

problema que precisa ser enfrentado e que o torna operável. O conhecimento e teorias então,

enquanto engrenagens que tomam forma de procedimentos científicos, apoiam mecanismos que

tentam tornar o mundo e suas realidades rebeldes disciplinadas a uma determinada análise do

pensamento5.

Em 2016 assumi a Coordenação da Linha de Cuidado de Saúde Mental de uma

Organização Social de Saúde (OSS) no município de São Paulo/SP, função entendida como um

desafio enorme tanto pela diversidade de serviços que iria gerenciar como, e principalmente,

pelo fato de que um dos territórios de administração dos serviços de saúde da instituição era a

região Central, no qual estava presente o território da intitulado ‘Cracolândia’.

Vale aqui fazer um breve relato desse território, sendo que no município de São

Paulo/SP há aproximadamente 25 anos, algumas ruas do bairro da Luz foram sendo ocupadas

por um grande número de pessoas em situação de rua e uso de diversas drogas. Apesar da grande

vulnerabilidade ali presente, tal local ficou conhecido pela grande circulação de pessoas que

faziam uso de crack e, desse modo, a partir dos anos de 1990, várias iniciativas do poder público

foram direcionadas àquele território, com objetivo de reformular as características da região.

Tais iniciativas basearam-se na necessidade de revitalização do espaço urbano, utilizando-se da

construção de novos prédios culturais, como a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa.

Na repressão da população que ali habitava, enquanto território de existência, ocorreram

diversas operações de segurança pública, como: Operação Limpeza, de 2005, Operação

Dignidade, de 2007, e a Operação Sufoco, de 2012. De acordo com Frúgoli Jr e Spaggiari72 tais

estratégias, contribuíram tão somente para a consolidação de uma territorialidade itinerante que

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ficou rotulada como “cracolândia”, sem garantir melhorias na qualidade de vida e nos direitos

das pessoas que ali ocupavam.

É no histórico dessa região, que me deparei com o que chamo de ‘território de

experimentação de políticas’, visto que enquanto um local de grande visibilidade midiática,

uma diversidade de programas coabita o espaço, disputando o campo discursivo do que dá certo

ou não no enfrentamento do problema: uso de drogas em cenas abertas. No ensejo dessa

percepção, foi na disputa eleitoral municipal de São Paulo/SP de 2016 que tal evidência foi

reafirmada. O debate entre os candidatos, principalmente entre Fernando Haddad (PT) e João

Dória (PSDB), foi em torno de afirmarem para a população qual seria o melhor modo de lidar

com a questão da ‘Cracolândia’, pautando-se em diferentes racionalidades historicamente

conflitantes: a lógica de tratamento com objetivo da abstinência versus a redução de danos.

O candidato João Dória (PSDB) venceu as eleições e assim teve início, a partir de

janeiro de 2017, a construção de um novo programa para a região, com a promessa de acabar

com aquela cena de uso e tráfico, e de circulação daquelas pessoas. Para tanto, utilizou-se do

discurso de que a estratégia seria de unificação do Programa Estadual conhecido como

Recomeço8, no qual o tratamento é baseado em internações e do programa “De Braços

Abertos”9, programa da gestão anterior, sob o comando de Fernando Haddad (PT), que é

baseado na tríade moradia-alimentação-trabalho.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Floriano Pesaro, Secretário de Estado de

Desenvolvimento Social de São Paulo, pontuou que a essência do programa de Haddad iria ser

preservada, contudo haveria exigência para inserção em tratamentos e desintoxicação ligados

ao Recomeço73. O ‘Programa Estadual de Enfrentamento ao Crack – Programa Recomeço’74

atualmente intitulado como "Programa Estadual de Políticas sobre Drogas - Programa

Recomeço: uma vida sem drogas” é composto conforme relatório escrito na época em que o

Secretário de Estado de Desenvolvimento Social era Floriano Pesaro,

A Rede Recomeço conta hoje com o total de 2.906 vagas distribuídas em hospitais,

comunidades terapêuticas, casas de passagem e repúblicas em diversos municípios.

De janeiro de 2013 a março de 2014, cerca de 32 mil dependentes químicos já

receberam tratamento da Rede Recomeço. Por intermédio do CRATOD (Centro de

8 Reorganizado pelo Decreto nº 61.674, de 02 de dezembro de 2015, do "Programa Estadual de Enfrentamento ao

Crack - Programa Recomeço", que passa a denominar-se "Programa Estadual de Políticas sobre Drogas - Programa

Recomeço: uma vida sem drogas" 75

9 Regulamentado pelo Decreto n°55.067 de 28 de abril de 2014, criado enquanto uma Política Intersetorial

Municipal, apresentava-se com duplo objetivo: intervenção no espaço urbano entendido como degradado e

violento e apoio para as pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas. Para tanto, colocou-se enquanto

objetivo principal “promover a reabilitação psicossocial de pessoas em situação de vulnerabilidade social e uso

abusivo de substâncias psicoativas, por meio da promoção de direitos e de ações assistenciais, de saúde e de

prevenção ao uso abusivo de drogas” 76 (Art 1°).

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Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) já foram encaminhados para

tratamento mais de 4 mil dependentes químicos74 (p.1).

É sob o ideário de um sujeito usuário de drogas como ‘dependente químico’ que tal

programa se formata, ou seja, de um modelo de cuidado baseado num tratamento que objetiva

a abstinência. Para melhor visualização, trago abaixo a foto de um dos equipamentos existentes

nesse programa do Governo do Estado de São Paulo chamado de Unidade Recomeço Helvétia.

Figura 3 - Unidade Recomeço em São Paulo/SP, 2013

Fonte: Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina

Essa unidade, criada em 2013, apresenta uma arquitetura de construção

verticalizada, a qual permite de forma clara identificar alguns pressupostos do modelo para

acesso das ofertas terapêuticas que ali existiam, visto que, baseados na complexidade, cada

andar é acessado após alguma exigência ser alcançada pelo usuário. O primeiro andar é

composto por uma portaria, com seguranças e profissionais de saúde lado a lado, que tem o

papel de controle de entrada, sendo lá executados os primeiros atendimentos – intitulados como

‘ações de redução de danos’ – como banho, corte de cabelo, troca de roupas e acolhimento. O

segundo andar é o destinado ao atendimento ambulatorial, ou seja, atendimento médico,

psicológico e social. Já os demais andares são compostos por uma academia equipada, com a

presença de um educador físico, uma cozinha industrial para oficinas de geração de trabalho e

renda, um espaço de desintoxicação e moradia assistida, espaços estes que os usuários podiam

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utilizar desde que passassem semanalmente por testes de abstinência (teste de urina). No caso

da moradia assistida, podiam ficar até seis meses, desde que não tivessem recaídas justificáveis

perante a avaliação da equipe. Para subir nos andares, o usuário precisava dizer que desejava

parar de usar drogas.

Conforme decreto 59.663/201377 a unidade se destinava a

Receber a população com alto grau de vulnerabilidade social causada pelo uso abusivo

ou dependência de substâncias em centro de convivência voltado às ações de

reinserção; prestar serviços hospitalares de internação de curto/médio prazo para

desintoxicação [...] que desejam iniciar voluntariamente um tratamento ou que

apresentam comorbidade clínica e/ou psiquiátrica grave aguda ou reagudizada;

proporcionar modarias monitoradas, tanto para egressos de internação para

desintoxicação como para pacientes em acompanhamento ambulatorial e que desejam

permanecer abstinentes77 (Art. 2º).

Por outro lado, o Programa ‘De Braços Abertos’ (DBA) se constituiu como

iniciativa inédita no país de um programa municipal pautado na RD, influenciado por modelos

internacionais como housing first (primeira moradia) e o low-threshold service (serviços de

baixa exigência) que significavam, literalmente, ‘baixo limiar de entrada e de disparo’. Tais

experiências afirmavam que o uso de enfrentamento e força só aumenta a resistência ao

cuidado78.

Diferente dos programas anteriores, após diversas tentativas parecidas com as

anteriores – ou seja, de limpeza urbana e retirada das pessoas – utilizando-se de ferramentas

outras, mas ainda com discurso de ‘revitalização’ da região da Luz, foi implementado, em abril

de 2014, o Programa de Braços Abertos (DBA), por meio do Decreto nº 55.06776. O programa

de base intersetorial tinha como diretrizes: a atenção à saúde sob a perspectiva da RD, da

prevenção do uso de drogas, do tratamento e da assistência social; com a oferta de alimentação,

hospedagem e acesso a atividades laborais – através de frentes de trabalho ou de cursos de

qualificação profissional – que lhe dariam renda. Sendo assim, pautado na perspectiva da RD,

deslocava da atenção da droga, ou seja, do tratamento para o uso de drogas, para a garantia de

um pacote de direitos (moradia, alimentação, trabalho e saúde).

Os direitos não eram vinculados à um tratamento em saúde que fosse focalizado no

uso de drogas, mas, sim, na construção de que o problema de drogas por estar relacionado a um

complexo psicossocial, necessitava de uma rede intersetorial que abarcaria o acompanhamento

desses usuários sobre a ideia da garantia dos direitos humanos – conforme própria constituição

cidadã.

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Figura 4 - Espaço de convivência na Rua Helvétia do DBA

Fonte: Wagner Origenes (2015)

A foto acima é do espaço de convivência do Programa DBA. Em uma aposta num

local aberto, sem condicionalidades para a entrada, com a produção de uma diversidade de

oficinas abertas, o espaço tornou-se uma espécie de ‘quartel general’ dos usuários, que vinham

se proteger em momentos de tensão, mas também para pintar, conversar, dormir, serem

atendidos pelas equipes de saúde e assistência social. Tal espaço era localizado em frente à

Unidade Helvétia do Governo Estadual, o que evidenciava de modo concreto as disputas que

aconteciam naquele território e em todo o território nacional: modelos e perspectivas que

acabam por coabitar os mesmos espaços.

Se, por um lado, tal programa tornou-se vitrine por seu ineditismo, por outro

também não deixou de ser visto com certa desconfiança. Por ter nascido frente à uma pressão

política, afim de dar conta daquela população e como disputa sobre a melhor solução para o

território, em contraposição as ações do Programa Recomeço, direcionou ações que, por um

lado abriram espaço para o habitar de alguns usuários em hotéis e, por outro, circunscreveu a

um espaço determinado, vigiado e constantemente reprimido, num objetivo, não diferente das

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demais ações já existentes naquele território, de ‘resgatar’, ‘revitalizar’ aquele local para todos

os paulistanos.10

Também nesse cenário, apresentavam-se críticas que entendiam o Programa DBA,

ao ofertar direitos àquelas pessoas, era um escândalo no qual era pago pelos ‘cidadãos de bem’.

Somadas a essas, ainda havia críticas de movimentos sociais que apontavam para ações

recorrentes de ordem estritamente repressiva.

Como esperado, na transição do governo municipal em São Paulo/SP, apoiados nas

discussões da não efetividade do Programa DBA e na associação entre o uso de drogas e a

criminalidade, numa reunião com a nova gestão de saúde da região Central, uma das pessoas

ali presentes e que representava essa transição, relatou que, o que enxergava na ‘Cracolândia’

eram pessoas circulando e procurando um modo fácil de conseguir droga, sendo que o programa

vigente na época apoiava o tráfico, pois a renda ofertada lhes rendia dinheiro para o

financiamento do uso.

Negando a vida e cuidado do que o DBA propôs produzir afirmavam: “precisamos

resolver isso, precisamos acabar com a cracolância!” (Diário de Campo - São Paulo, equipe

de transição do programa Recomeço, 2017). Para tanto, a única solução almejada, era pautada

centralmente no tratamento das pessoas dependentes de drogas, através de um da ‘limpeza’ do

corpo das pessoas, ou seja, na busca por desintoxicação e consequentemente abstinência e,

assim, em contraponto ao que vinha sendo desenvolvido no âmbito municipal, o que para aquele

grupo “só aumentava o problema” (Diário de campo de São Paulo, da equipe de transição do

programa Recomeço, 2017).

Foi, então, em maio de 2017, que às cinco horas da manhã, diferentes equipes me

ligaram para comunicar estavam ‘entrando’ na ‘Cracolândia’. Isso referia-se a uma força

extensiva policial – mais de 500 agentes de segurança – que estava se organizando para entrar

no território afim de acabar com a Cracolândia.

Para o prefeito de São Paulo, João Doria, a Cracolândia "acabou". "A Cracolândia

aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a Prefeitura permitirá, nem o governo do

Estado. Essa área será liberada de qualquer circunstância como essa. A partir de hoje,

isso é passado. Vamos colocar câmeras de monitoramento", disse. Segundo ele, os

hotéis do programa "Braços Abertos", que atendiam os usuários, da gestão de

Fernando Haddad, serão destruídos. Segundo Doria, a região vai ganhar moradias

construídas pela iniciativa privada.

A seguir são apresentadas duas imagens do episódio em questão: a dita

‘desocupação’ da ‘Cracolância’, ocorrida em 2017.

10 Baseado na fala do então prefeito, Fernando Haddad, em entrevista: “Luz, Campos Elíseos são bairros

importantes da cidade e nós estamos resgatando isso para todos os paulistanos”.

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Figura 5 - Desocupação da 'cracolândia', 2017

Fonte: Mister Shadow/ASI/Estadão Conteúdo, 2017.

Figura 6 - Ação de desocupação na cracolândia, 2017.

Foto: reprodução/GloboNews, 2017.

Após tal ação, coube às secretarias de saúde e assistência social pensar em novas

ações. A grande estratégia pensada foi: a construção de um “CAPS-ad”, que tinha uma

característica de ser um ponto de apoio para internação com uma equipe composta por um

enfermeiro, um técnico de enfermagem e um médico, no regime de funcionamento 24h.

Conforme Portaria Ministerial, o CAPS-ad 24h deve ser composto por uma equipe mínima,

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afim de conseguir produzir, em conjunto com o usuário e seus familiares, um Projeto

Terapêutico Singular que acompanhe o usuário nos contextos cotidianos, promovendo e

ampliando as possibilidades de vida e mediando suas relações sociais79. Tal legislação formata

assim, o CAPS-ad como dispositivo que não funcionava como articulador de internações, mas

sim enquanto um serviço substitutivo que deveria apostar em estratégias que garantissem o

cuidado das pessoas no próprio território de pertencimento, não se utilizando da utilização de

muros como tecnologia de cuidado.

Saio da função de Coordenadora da Linha de Cuidado de Saúde Mental da OSS em

São Paulo nesse momento, após uma discussão sobre tal equipamento e como exemplos das

mudanças ocorridas, destaco que foram executadas diversas ações policiais de combate ao

tráfico e a abertura de 290 novos leitos em hospitais psiquiátricos no intuito de desintoxicação

de usuários de álcool e outras drogas80.

Vimos, nesse contexto, a transformação de um programa baseado na reabilitação

psicossocial, ou seja, na compreensão de que fatores diversos se correlacionam para que aquelas

pessoas estejam em situação de vulnerabilidade e, por isso, se utilizaram de tecnologias

circunscritas aos paradigmas da RD e baixa exigência, para um novo programa que apresentava

como eixo central a ideia de dependência química e desse modo, ofertando cuidado com foco

no uso de drogas, numa perspectiva de abstinência.

Não se trata aqui de construir um imaginário polarizado, entre ‘boas’ e ‘más’ ações,

mas de lançar luz a um paradoxo permanente que formataram diferentes programas a partir de

diversos valores morais, para atentar ao fato de que diferentes práticas de governo são acionadas

simultaneamente, a depender do ator estatal que as estão mobilizando. As dimensões de direito,

repressão, cuidado, encarceramento e outras que podem vir a ser apontadas, não se opõem, mas

constroem ferramentas de gestão de populações consideradas inumanas.

2.4. (Re)Atualizações

Com as vivências, apresentadas aqui, trazidas no corpo e com olhar atento a quem

havia assumido a Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do

Ministério da Saúde após o impeachment, em 2016, da presidenta Dilma Roussef, entendido

por muitos analistas como um golpe de Estado, assumi a função de Coordenadora Municipal

de Saúde Mental de Santos/SP. A nomeação como Coordenador Nacional de Saúde Mental,

Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, do médico psiquiatra Quirino Cordeiro nos dá

clareza para os rumos que viriam ser construídos a partir de então. Quirino Cordeiro é ator

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conhecido na cidade de São Paulo/SP por sua vinculação a Associação Brasileira de Psiquiatria,

instituição que tem posicionamento contrário ao modelo de tratamento ofertado pela RAPS,

reafirmando constantemente uma discussão do uso de drogas sob a conceituação de

transtorno/doença, que os posicionam então numa perspectiva de tratamento baseado em

intervenções pautadas no sintoma, ou seja, na medicalização e reclusão enquanto recurso

central. Vale destacar, que nesse sentido, no início do ano de 2017, o referido médico esteve a

frente da construção das primeiras linhas do Programa Redenção, apoiando a reinserção dos

hospitais psiquiátricos como um ponto da rede municipal para o enfrentamento à situação da

‘Cracolândia’.

As diretrizes iniciais do Programa Redenção, conforme publicado em site oficial da

prefeitura de São Paulo/SP, em 2017, foram calcadas no “tratamento de acordo com as

especificidades da fisiopatologia de cada indivíduo, através de política de redução de danos

e/ou promoção de abstinência”, criando uma “rede de moradias monitoradas no município e

uma rede de residências terapêuticas para a continuidade do tratamento. Também serão

utilizadas para esta finalidade as comunidades terapêuticas, em conjunto com o governo do

Estado, para dar apoio a dependentes químicos desintoxicados e sem comordidades”

(Secretaria Especial de Comunicação/SP). A seguir, apresento trecho extraído da página online

da Prefeitura de São Paulo/SP, sobre as principais diretrizes do Projeto Redenção, publicado

em 2017.

Diretrizes do Programa Redenção:

1. SAÚDE (MEDICINAL)

1.1 - CADASTRAMENTO: abordagem contínua, de caráter não impositivo

1.2 - PRESENÇA E PRONTIDÃO: disponibilidade de equipes de saúde no território, 24

horas

1.3 - ATENDIMENTO INTEGRAL: tratar o paciente em sua integralidade, durante e após a

desintoxicação

1.4 - INTERNAÇÃO: disponibilizar vagas para desintoxicação; promover a regulação de

leitos em conjunto com o Governo do Estado

1.5 - CONTINUIDADE: seguimento via prontuário eletrônico na abordagem e nos

atendimentos ambulatoriais, hospitalares e residenciais

1.6 - SINGULARIDADE: cada paciente abordado em Projeto Assistencial Singular;

Tratamento de acordo com as especificidades da fisiopatologia de cada indivíduo, através de

política de redução de danos e/ou promoção de abstinência

1.7 - EFETIVIDADE DE RESULTADOS: medição regular dos resultados das ações;

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1.8 - PREVENÇÃO: campanhas de prevenção através da mídia e em escolas, além de

treinamento na rede de UBS para orientar famílias a tratar a drogadição ainda no início

Na função de gestora municipal, vivi a recorrente solicitação de informações pelo

Ministério da Saúde, da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, para

a construção de um diagnóstico que tinha, a meu ver, claro objetivo de retomada de uma

perspectiva de política de cuidado em saúde mental pautada em serviços e práticas de ordem

manicomial – Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos.

Assinalo, que tal processo não deve ser pensado descolado de uma nova agenda

política sob uma lógica fortemente conservadora, que através de um discurso forjado de uma

perspectiva puramente neoliberal – que defendem que a redução do Estado, tanto em questões

econômicas como sociais, é caminho para o crescimento econômico e desenvolvimento social

e assim, a lógica do livre mercado é embutida em todas as instâncias – trazem à tona uma

política conservadora-moral.

Sob uma pretensa ausência ideológica – embora carregado de ideologia unicamente

pelo motivo de que ela não transforma, mas conserva –, o conservadorismo é a favor

da vida, da “família”, do bem comum, da preservação da humanidade e dos costumes

estabelecidos que dão sentido à realidade mais imediata e material, apelando ao

mesmo tempo à ordem e à mudança81 (p.169)

Sob o discurso de retomada da democracia, contra a corrupção e do clamor da

construção de uma nação, o pensamento conservador se alastrou numa diversa agenda política

e, viu-se a implementação de uma força tarefa no âmbito do Ministério da Saúde, afim de

agregar dados que pudessem ser utilizados como demonstração do mau uso dos recursos e das

estratégias de cuidado implementados nos últimos anos.

Num claro processo de modificação das legislações sobre o campo de drogas

brasileiras, tivemos a publicação de uma diversidade de aparatos legislativos que trouxeram

novamente para o centro das diretrizes políticas, marcos que se contrapunham ao movimento

institucional dos últimos anos que apesar das tensões vinha tentando se produzir em práticas

sociais alinhadas à perspectiva de RD, e assim, um retorno a um paradigma fortemente

punitivista e reclusivo.

Nesse movimento, no que diz respeito à Política Nacional de Saúde Mental, Álcool

e outras Drogas, através da publicação da Nota Técnica nº 11/2019 “Esclarecimentos sobre as

mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre

Drogas”, emitida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do

Ministério da Saúde, em 04/02/2019, de autoria de Quirino Cordeiro Junior, reafirmou-se a

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dissociação dessa política AD da política de saúde mental, ficando a política de drogas sob

responsabilidade do Ministério da Cidadania por meio da recém-criada Secretaria Nacional de

Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED)82.

Essa nota, revogada alguns dias depois, devido grande repercussão negativa,

abrangia uma série de mudanças descritas sob a justificativa de construção de “processo

evolutivo de reforma do modelo de assistência em saúde mental, que necessitava de

aprimoramentos, sem perder a essência de respeito à lei 10.216/2001”. Modificaria assim,

pontos importantes no que diz respeito ao alinhamento da política e principalmente no que diz

respeito à rede substitutiva, sendo que “não há mais porque se falar em ‘rede substitutiva’, já

que nenhum Serviço substitui outro” e assim recolocaria o hospital psiquiátrico e demais

serviços de internação na RAPS, destinando ainda financiamento para a compra de aparelhos

de eletroconvulsoterapia e colocando a abstinência como paradigma.

Vale aqui colocar um feixe de luz para o fato, de que três dias após a publicação da

nota, Quirino Cordeiro é nomeado como secretário da SENAPRED, com o provável objetivo

de aprofundar a articulação dessa política aos interesses de associações de comunidades

terapêuticas. Essas oferecem um modelo assistencial monoterapêutico, fincado no isolamento

e em práticas majoritariamente religiosas e na abstinência total83. Essa afirmação se dá frente

ao fato de que já em fevereiro, Quirino Cordeiro esteve em reunião com representantes das CTs

e alguns deputados, reunião que teve como repercussão a criação de uma Frente Parlamentar

na Câmara dos Deputados para fomentar os seus interesses.

No âmbito da Política Nacional sobre drogas, a partir de um projeto em discussão

desde 2013 (PLC 37) movimentado pelo Deputado Federal Osmar Terra, Ministro da Cidadania

em 2019, tivemos a sanção da Lei 13.840/201984 que altera a lei de drogas de 2006. Facilitou-

se, assim, as internações involuntárias, fortalecendo-se as CTs como componente de cuidado

da RAPS, sendo elas incluídas no SISNAD e podendo, a partir disso, receber dinheiro oriundo

de isenções fiscais, sendo a meta de tratamento a abstinência.

Também nesse mesmo movimento, tivemos a implementação da ‘Nova Política

Sobre Drogas’ pelo Decreto nº 9.761/201985, sob a coordenação da SENAPRED. Os

pressupostos dessa política, conforme item 2, são: a busca incessantemente de atingir o ideal de

construção de uma sociedade protegida do uso de drogas lícitas e ilícitas e da dependência de

tais drogas, posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto às iniciativas de

legalização de drogas; a conscientização do usuário e da sociedade de que o uso de drogas

ilícitas financia atividades e organizações criminosas; as ações, os programas, os projetos,

as atividades de atenção, o cuidado, a assistência, a prevenção, o tratamento, o acolhimento, o

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apoio, a mútua ajuda, a reinserção social, os estudos, a pesquisa, a avaliação, as formações e as

capacitações objetivarão que as pessoas mantenham-se abstinentes em relação ao uso de

drogas; a busca de redução de demanda, entre outros.

A nova política, focada na estratégia da abstinência, que conforme Osmar Terra

pontuou, é devido ao fato de que

A droga está causando uma epidemia de violência no Brasil. Somos o país mais

violento do mundo em termos absolutos. Isso mostra que a política sobre drogas até

aqui não teve importância, não causou nenhum impacto. O presidente está propondo

novas formas de tratamento dos dependentes químicos com uma política integrada,

que terá um impacto maior86.

No ensejo, houve reforço no investimento das CTs, com a publicação de três

portarias11 no ano de 2019 que instituíram o cadastramento, a fiscalização e a certificação das

Comunidades Terapêuticas86, além da ampliação de vagas e o acirramento no que diz respeito

aos recursos enviados aos municípios para a manutenção da RAPS.

Posso dizer até aqui, que não se tratou de uma novidade as citadas implementações,

sendo que tais tentativas eram frequentemente discutidas. Contudo, apesar do acirramento e das

tentativas no que diz respeito à construção de tecnologias pautadas em práticas

descriminalizadoras do uso drogas e também do cuidado pautado no direito do usuário ao uso,

o que tivemos foram práticas sociais que foram sendo inovadas e causaram rupturas, mas que

não modificaram as noções enraizadas.

11 Portaria nº 562, de 19 de março de 2019; Portaria nº 563, de 19 de março de 2019 e Portaria nº 564, de 19 de

março de 2019.

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CAPÍTULO 3: O CUIDADO EM SUAS DISTINTAS PERSPECTIVAS

Que palavras fazem mais sentido para nós? É a idéia do uso de drogas como algo que

pode concorrer para o sofrimento das pessoas, ou a idéia de uma dependência

química? Que tipo de clínica nós, que acreditamos numa atenção psicossocial,

podemos oferecer para uma dependência química. Se fosse uma dependência só

química, uma clínica psicossocial não teria nenhuma contribuição a dar87 (p. 179).

A partir das racionalidades levantadas até o presente momento dessa dissertação,

podemos afirmar que é num campo híbrido entre segurança, saúde, direitos humanos,

assistência social, entre outras, que se costuram às práticas de cuidado no campo AD, visto que

nossos conceitos, ideias e paradigmas nos colocam em determinados lugares que produzem

deste modo uma clínica que tem interface com a política.

E por que esse destaque da interface clínica- política? Porque aí nos encontramos com

modos de produção, modos de subjetivação [...], modos de

experimentação/construção [...], modos de criação de si e do mundo [...]. O que

queremos dizer é que definir a clínica em sua relação com os processos de produção

de subjetividade implica, necessariamente, que nos arrisquemos numa experiência de

crítica/análise das formas instituídas, o que nos compromete politicamente88 (p.166).

Uma clínica que se propõe ao caminho único e restrito da abstinência é baseada na

pretensa formatação de um sujeito que sofre de uma doença bioquímica, transformando o

sofrimento enquanto consequência direta da doença e localizando no corpo biológico. Essa

objetivação e focalização do olhar e da intervenção sobre o corpo biológico, exclui a

multiplicidade de fatores que constitui a vida, centrando a clínica em procedimentos, com

esvaziamento de interesse pelo outro e assim com uma escuta empobrecida num direcionamento

de busca de sintomas que o encaixariam em determinada patologia89. Esse é um modelo

hegemônico no campo das práticas de cuidado, no qual operam a partir da dicotomização entre

o sujeito e a vida, a interioridade e a exterioridade, a clínica e a política90.

Fundado na crença de uma postura neutra busca produzir a “correção” daquilo que

entende estar desviado e fora da norma. Alimenta- se pela representação de modos de

ser considerados ideais e que, do alto de sua certeza, constituem-se e impõem-se como

modelos de identificação a serem reproduzidos em nome da ordem e do bem-estar90

(p.30).

Assim, a constituição de dispositivos clínicos acaba por fazer operar o governo da

conduta na tentativa de domesticar os comportamentos, reinserir os sujeitos em valores de uma

dita normalidade, através da construção de determinados modos-indivíduos desviantes do que

é considerado normal e bom, ou seja, temos a formatação de subjetividades que transformam

“aquilo que é da ordem do impessoal e da história, conferindo, assim, um sentido para se estar

no mundo que, neste caso, seria o de sua reprodução permanente e indissolubilidade” 90 (p.30).

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O desmantelamento das redes de segurança, a flexibilização dos padrões de conduta,

o acirramento da competitividade e a exaltação da competência pessoal, dentre outros

fatores, parecem levar os indivíduos a se transformarem, segundo as palavras de

Bezerra (op.cit), em “empresários de si mesmos”, exigindo-lhes uma constante

capacidade de auto-gestão. Paradoxalmente, observa-se que diante de tais tarefas de

auto-regulação, auto-exame, auto- aprimoramento, constitui-se uma espécie de

autonomia assistida que acaba por produzir a relação dos sujeitos com toda uma rede

de ajuda especializada90 (p.30).

Uma escuta que proponha a ampliação desse lugar de clínica, não se apoia num

paradigma que trata de um a priori universal, mas aposta na construção de táticas e produções

locais que visam construir respostas singulares e de um fazer no qual a transmissão de

conhecimentos fixos dê espaço à experimentação21. Tal inversão, traz para o centro do cuidado

toda a complexidade dos processos de saúde-doença-sofrimento posicionando o usuário como

um agente ativo na produção de um cuidado de si, bem diferente do lugar de objeto das ações89.

E é nesse movimento que a luta cotidiana da desconstrução da relação tutelar

realizada pelos manicômios e suas práticas, dos movimentos da luta antimanicomial e das

práticas dos serviços implementados pela Reforma Psiquiátrica, tem exigido dos profissionais

a criação de novas tecnologias de cuidado que rompam com “novos modos de sobrecodificação,

de segmentação, captura e controle” 91 (p.323).

É necessário derrubar não apenas os muros manicomiais, mas colocar em análise a

relação manicomial que se capilarizou no cotidiano das relações sociais, tornando-se

invisível, podendo insistir até mesmo nos espaços ditos “abertos” como é o caso dos

serviços substitutivos de saúde mental91 (p.325).

Nesse sentido, parti da ideia de que pensar no cuidado para pessoas em uso

problemático de drogas aponta para uma necessária análise dos movimentos que se produzem

no cotidiano de cuidado e, assim, pautar-se numa atuação que se faça inseparável dos aspectos

químicos das substâncias, jurídicos, históricos, culturais, políticos, bem como, do contexto de

cada sujeito e suas modulações sócio-histórica-culturais.

Procurei dar luz no meu fazer cotidiano que se de um lado esteve muitas vezes

impregnado de esquemas disciplinadores e planejados em protocolos, visto o forte

atravessamento na formatação de intervenções baseadas no controle e defesa da vida pautados

na ideia de proteção da segurança nacional que se tornam reféns da aliança entre segurança-

cuidado, por outro, também buscou fazer ver e dizer outras possíveis realidades, que não as já

representadas e idealmente construídas para serem seguidas, na busca de desconstruir as formas

pré-existentes de conhecimento sobre si e sobre os outros. Olhar de modo atento é compreender

que a construção de uma rede efetivamente substitutiva aos modelos manicomiais, implica na

transformação da relação entre as pessoas.

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3.1. A moralidade e a doença

Numa reunião de equipe do Caps-ad levo um caso para discussão, o chamarei aqui de

Sr. do Samba. Ele tinha 68 anos, negro, aposentado devido uso de álcool intenso,

interditado e amante de samba e “das belezas que lá sambavam” como ele mesmo

dizia.

A médica psiquiatra de referência, esta que tinha auxiliado a sobrinha a aposentá-lo e

interditá-lo, entendia a necessidade do mesmo fazer uso de uma medicação que

popularmente é chamada de “anti-etanol” (Dissulfiram) devido sua reação colateral

se utilizado junto com álcool, de desconfortos como o aumento de temperatura

corporal e batimentos cardíacos e com possibilidade de parada cardiorrespiratória.

Ele não queria. Contudo, me pedia para ser sua porta voz: não sentia que tinha poder

para dizer isso. E lá fui eu, levar essa discussão sobre o poder sobre a própria vida do

Sr. do Samba. Entre muitas farpas e discussões - que tive que embasar de modo

aparentemente muito ‘técnico’ com bordões cientificistas - terminamos a discussão

quando pergunto: Se fosse prescrito uma medicação para você e não quisesse tomar o

que você faria?” Ela responde: “Eu não tomaria”. Assim digo: E qual a diferença entre

vocês?

O silêncio se faz (Diário de Campo –Caps-ad).

Foi neste serviço, que, pela primeira vez, vivenciei as tensões existentes no âmbito

da produção do cuidado para pessoas em uso de drogas. Por estar num equipamento de saúde

que fazia parte da rede substitutiva de saúde mental, utilizava-me das lentes de um cuidado que

se pretendia ser em liberdade, centrado no sujeito e seu contexto social, numa relação direta

com a vida das pessoas e seus valores. Tal posicionamento estava alinhado às diretrizes das

políticas e programas no campo de saúde mental, álcool e outras drogas vigentes naquele

momento.

Porém, minhas experiências foram abrindo uma fissura na certeza que carregava,

de que por estar num serviço com direcionamento de práticas de cuidado baseadas na atenção

psicossocial necessariamente o que vivenciaria eram tecnologias de cuidado alinhadas a tal

paradigma. Pude então ir percebendo que alguns dos usuários que procuravam o apoio dos

diferentes pontos de atenção que estive e que não se encaixavam no padrão clínico construído,

quero dizer, nas tecnologias e terapêuticas ofertadas, eram muitas vezes postos numa dinâmica

de “expulsão” do serviço. Digo isso, pautada em experiências que de um lado produziam

tecnologias de punição para aqueles que não se comportavam como deveriam, a exemplo do

Sr. Do Samba e de casos de tentativas de alta administrativa, mas também menos evidentes,

aquelas barreiras de acesso à uma diversidade de pessoas que procuravam atendimento e que

por não apresentarem um discurso de desejo de parar de usar ou então rever sua relação com o

uso de drogas eram postos de “escanteio” no que dizia respeito a ofertas de cuidado.

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Conforme Cerqueira Gomes et al.92, essa produção de barreira é frequentemente

vista nas situações dos ditos casos difíceis, nos quais se associa o intenso sofrimento psíquico

a algum distúrbio de comportamento. Nesses casos é comum haver uma trans-

institucionalização dos pacientes, cujo destino é um nomadismo sem produção de vínculo em

qualquer lugar de cuidado. Tal percepção apontou-me para o fato de que os profissionais,

pautados primordialmente num modelo de cuidado baseado em concepções nas quais o uso de

substâncias é problemática central na vida das pessoas, acabavam por restringir uma amplitude

de ofertas de cuidado e de diálogo com as diversas subjetividades que ali se apresentavam.

Percepção, essa, que levantei enquanto questionamento nos primeiros anos de graduada e, como

exemplo, temos, como dito no capítulo 2, como o lugar da droga era posto como central na vida

dos adolescentes quando as supervisoras trazem a discussão do aumento de medidas

socioeducativas por tráfico de drogas.

Torcato93 analisando a problemática do controle das drogas refere que ela “faria

parte do autoritário processo que é denominado de medicalização da sociedade” (p. 22),

acompanhado por um enquadramento das pessoas na “normalidade”, quando se projeta os

papéis sociais esperados de cada um para sustentar o funcionamento padrão de uma forma de

organização e postura social pré-estabelecidas.

Nesse sentido, percebe-se que apesar do Sr. do Samba ter sido acompanhado num

serviço baseado num cuidado territorial, singular e em liberdade, essa liberdade era forjada por

um discurso médico-científico que o privava de seu próprio caminhar, e, mais ainda, tendia a

seu extermínio. Se a médica podia escolher a medicação para si mesma é porque tinha

legitimidade social para tal, enquanto o Sr. do Samba era um sujeito não legitimado e, assim,

não estava autorizado a fazer suas próprias escolhas.

Vimos aqui que a macropolítica de guerra às drogas, pautadas em leis e normativas

construídas por todo o século XIX e XX se presentifica através de intervenções micropolíticas,

agenciando-se a atores sociais legitimados para tal ação. Sob a ideia de interdição do desejo e

do domínio de classificação social de vidas que têm valor e utilidade, apostava-se em uma

intervenção sobre o corpo do Sr. Samba, nada diferente das práticas de instituições manicomiais

e/ou práticas do poder soberano, que tinham, enquanto privilégio, o direito de vida e morte de

seus súditos25.

Na atualização dos mecanismos de poder moderno – biopoder – atualizam-se tais

práticas sob autorização de “poder matar para poder viver” 25 (p.129), sustentando uma tática

de guerra que “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi

substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (p.130, grifo meu). Como uma

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agente de poder-saber, a profissional, se propunha a executar técnicas que dominavam,

exterminavam e feriam aquilo que escapava à normalidade, numa relação de poder que

[...] não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do

soberano, opera distribuições em torno da norma. Não quero dizer que a lei se apague

ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada

vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num

conjunto de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo

reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de

poder centrada na vida25 (p.135).

Pensando sob a história da construção de políticas e programas, observa-se que

pressupostos morais, forjados em discursos técnico-científicos, comparecem num pacto com a

prioridade da segurança nacional, produzindo práticas de cuidado que se mostram imbuídas das

mesmas perspectivas, ou seja, carregando pressupostos que são da criminalização do usuário e

da ideia de seres possuídos pelas drogas coloca em funcionamento

O consumo zero é eleito como princípio norteador, de modo que a abstinência

comparece como única direção de tratamento, objetivo que precisa ser atingido

prontamente. Para algumas linhas terapêuticas, a instalação do estado de abstinência

chega a ser condição necessária e exigida para início e manutenção do tratamento64

(p.144).

Essa rede de significados encontra-se impregnada no imaginário dos usuários e dos

próprios trabalhadores, que acabavam justificando intervenções até hoje muito presentes, como

aquelas baseadas numa noção de um sujeito que pelo uso da droga está fora de controle, incapaz,

anormal, pecador e que por isso necessita de tecnologias, técnicas e práticas de cuidado que

operem diretamente sobre o corpo, a droga e seus comportamentos. O foco do tratamento,

portanto, é a droga, entendida como substância ativa, perigosa e provocadora de todos os males,

subentendendo-se que o cidadão moralmente bem constituído resiste completamente ao seu

uso64 (p.144-145).

***

Não há sujeitos universais de governo: os que devem ser governados podem ser

concebidos como crianças a serem educadas, membros de um rebanho a ser

conduzido, almas a serem salvas ou, podemos acrescentar agora, sujeitos sociais aos

quais devem ser concedidos direitos e deveres, indivíduos autônomos a serem

assistidos, compreendendo-se o potencial deles mediante sua própria livre escolha, ou

ameaça potenciais a serem analisadas segundo a lógica do risco e da segurança. Não

são sujeitos, portanto, mas subjetivações, como um estilo de ação sobre ação. Não

uma crítica a disciplina para esmagar o sujeito auto realizador autêntico do

humanismo, mas uma abordagem que reconhece que nossa própria ideia do sujeito

humano, como individuado, capaz de escolhas, com a aptidões de autorreflexão e em

busca de autonomia, é um resultado de práticas de subjetivação, não a base históricas

para uma crítica de tais práticas" 5 (p.17).

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É também nesse mesmo CAPS-ad que me encontrei com operadores clínicos que,

sob o discurso de que os usuários pediam por uma condução mais restritiva, justificavam a

utilização de testes de urina e bafômetro como dispositivos de apoio ao “autocontrole” do uso

de drogas pelos usuários. Além disso, ressalto também uma roda da manhã que tinha como

ponto de partida um livro de pensamentos relacionados aos 12 passos do Alcoólicos Anônimos

(AA). Neste tópico, será explorada a utilização do livro, visto que foi a partir dele que me

aproximei pela primeira vez do método dos 12 passos e descobri um apurado recurso de

reengenharia da vida, o que seria uma espécie de manual de como se tornar uma pessoa boa e

longe do uso abusivo de álcool e outras drogas.

As ideias que percorriam os 12 passos do AA partem da ideia de que um sujeito

possuído por uma doença incurável e progressiva, adicto, e, como tal, perde o domínio sobre

sua vida sendo prisioneiro da substância. Nesse sentido, organizou-se uma tecnologia pautada

num caminho que o usuário devia admitir seus defeitos para, então, conseguir a cura da

impotência e da perda de domínio sobre sua vida. Com isso, ele também enxergaria que uma

energia sobrenatural é quem lhe daria forças para que se iniciasse a jornada de libertação para,

enfim, entregar-se aos cuidados que outros lhe proporcionariam, que, no caso, remetia a algum

poder divino.

Trago abaixo os 12 passos tirados do livro “Doze passos e as doze tradições” 94 e

destaco o que, para mim, eram os discursos que me chamavam mais atenção:

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio

sobre nossas vidas.

2. Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à

sanidade.

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O

concebíamos.

4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata

de nossas falhas.

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a

reparar os danos a elas causados.

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo

quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o

admitíamos prontamente.

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11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus,

na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação

a nós, e forças para realizar essa vontade.

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos

transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas

atividades.

A organização dos passos do AA, modelo esse capilarizado e de grande presença

nas ações do campo de cuidado, principalmente nas CTs, indica como a noção de sujeito está

enraizada na valoração de comportamentos que são identificados como falha moral do sujeito

e assim baseia-se numa linha, segundo a qual o sujeito é quem deve, através de operações de

refazer a si mesmo, apoiado pelos agentes de verdade, transformar-se em outro. Vemos para

tanto, o cuidado baseado:

• num sujeito incapaz de escolher (ele precisa de alguém para indicar o caminho)

• na ideia de que há um saber (da saúde, justiça, espiritual) sobre sua vida que está

acima de seu próprio saber.

É sobre a formatação de um sujeito pecador ou moralmente prejudicado que tais

tecnologias se apresentavam como uma relação entre o pastor-rebanho, quero dizer, entre o

usuário que nada sabe e os cuidadores que têm fórmula da salvação. Tal processo, pode ser lido

a partir da noção de pastorado de Foucault71 que o identifica como um

[...] processo pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constituiu como

Igreja, isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida

cotidiana a pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não

apenas de um grupo definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de

toda a humanidade71 (p.196).

Conforme Foucault71 indica, é no advento da Igreja Cristã que o modelo de governar

pastoral tomou forma, sendo então, a teologia cristã um marco na modernidade, pois foi quando

apareceu a primeira vez a ideia de governo das almas, ou seja, o ato de governar pautado na

condução de comportamentos indesejados. Nesse sentido, o governar seria realizado por

pastores ‘indicados’ pelo grande chefe, ‘Cristo’, com a ideia de conduzir o rebanho. Tal

condução estaria a serviço do bem do pastorado, da garantia da vida, sendo realizado através

do exame de si e da confissão.

[...] desenvolve-se entre os séculos XVI e metade do XVIII, sendo este um poder de

origem religiosa. Em nome da salvação construía-se um projeto de dirigir os homens

nos detalhes de sua vida. Tal poder se exerce sobre o indivíduo com o objetivo de

conhecer sua interioridade, produzindo uma verdade subjetiva – através de técnicas

de confissão, exame da consciência e da direção espiritual95 (p. 31).

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O poder pastoral caracterizava-se, desse modo, por um estado de minuciosa

vigilância frente aos próprios comportamentos e na abdicação das vontades individuais pelas

que o pastor indicava serem melhores. Em correlação com os 12 passos do AA, apoiava a

análise da produção de um cuidado que se respaldava na produção de um inventário de moral

de si, com assunção dos erros e falhas existentes em si mesmo colocando-se de prontidão para

que Deus, ou os pastores, retirasse os defeitos de caráter.

A pedra angular então de toda organização da igreja é que apesar do primeiro pastor

sempre ser Cristo, também há outros pastores: os apóstolos, os bispos que são postos

para guardar o rebanho71 (p. 202).

Foucault71, argumentava que o pastorado cristão é o pano de fundo do processo da

governamentalidade do Estado moderno, estando relacionada com três coisas:

1) a salvação, fundada na lógica do mérito e do demérito;

2) a lei, que vai consubstanciar a servidão;

3) a verdade, revelada por meio do pastor.

Os passos do AA, me remeteram, desse modo, à confissão, no sentido da busca de

uma verdade interiorizada do sujeito, a fim de apoiar o fortalecimento moral através da renúncia

de si mesmo, como um projeto de dirigir os sujeitos em todos os detalhes de sua vida. Nesse

sentido, as instituições de saúde e seus operadores, como pastores de um rebanho, assumiriam

a responsabilidade pelas ações e destino de seus pacientes, indicando-lhes a melhor vida a ser

vivida e a mais saudável, num jogo de direcionamento da consciência a partir do exercício

cotidiano de

[...] cada um falar de si, buscar a verdade em seu interior e confessá-lo a seu diretor.

Alguém se constitui sujeito à medida que fala sua verdade, mas falar sua verdade é

um ato de obediência. É o poder que subjetiva, assujeitando. Institui-se, assim, um

“governo de si pela verdade 1 (p.85).

Podemos assim dizer, a partir dessas duas narrativas – do Sr do Samba e do livro

do AA – que dispositivos clínicos guiados por uma perspectiva moral e também com foco

restrito na doença acabam por impedir a possibilidade da prática clínica se inventar e se

reinventar96. Temos, portanto, aqui a ideia de criar ações que possam servir a reorganização de

falhas morais e/ou psíquicas, para, assim, exterminar os mau hábitos, numa operação de

treinamento do sujeito que deve se afastar da substância, haja visto, essa ser o grande mal.

3.2 A Rua e os Anormais: O Jogo do Tudo Pode

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É andando pelas ruas da “cracolândia” imaginariamente construída pela mídia e com

olhar de quem está de perto, que entendo que a cidade é um território recortado entre

Museus Públicos, que têm públicos proibidos de circular; e ruas, que fechadas pela

circulação das pessoas que não entram no Público, devem sair do espaço PÚBLICO.

Que território é esse? (Diário de Campo – Gestão OSS).

Pensar a rua enquanto espaço de multiplicidades e diferenças dos que a habitam e

das práticas de cuidado ofertadas nesta, frente aos complexos problemas sócio sanitários, nos

coloca questionamentos, a todo tempo, dos limites dos saberes profissionais, programas e

práticas sobre o cuidado da saúde (e da vida) intituídos.

No Brasil, apesar de o País estar comprometido com um processo capitalístico e estar

em vias de tornar-se uma grande potência, há imensas zonas de população “não

garantida” que escapam a esse tipo de esquadrinhamento, a esse tipo de produção de

subjetividade, e isso é muito importante” 31 (p. 57)

Reconhecemos, então, de antemão, que este espaço de ‘desvio’ social produzido

historicamente tornou-se objeto de intervenções e com a construída ideia da “epidemia do

crack”, os usuários em uso de drogas, em seus distintos territórios, foram transformados numa

categoria de sujeito não-humanos “vitimizados pela captura-dependência que as substâncias

químicas ilícitas lhes provocariam, de tal maneira que eles deixaram de ser sujeitos desejantes

para serem meros objetos inertes e irresponsáveis, quanto aos seus próprios atos” 4 (p. 1).

Conforme Merhy4, essa construção social afirma que para transformar-se em um

‘ser humano’ deve-se “possuir a capacidade de fazer uso da boa razão”, razão esta que é

responsável por humanizar o “mundo e os incivilizados” (p.2). Nesse sentido,

[...] a sociedade cria o problema e a medicina os mecanismos de disciplinarizá-los, ao

contrário do que advoga, não é a evolução dos seus saberes que produz esses seus

objetos. Esses não são frutos de mais conhecimentos científicos sobre o normal e o

patológico no humano, mas construções societárias do que são os normais e os

anormais sociais (p.1).

A saúde, então, muitas das vezes, parte da racionalidade de que sujeitos em uso

abusivo de drogas – principalmente no recorte de populações em situação de rua – apresentam

uma doença e/ou um desvio social-moral, tornando-os uma categoria não humanizada,

acabando por fazer funcionar uma série de procedimentos “de identificação social [...] o qual

requer das práticas em saúde o estabelecimento de medidas de tratamento para isso que hoje é

entendido como questão de saúde pública” 96 (p.163). Aliado a tal discurso da saúde temos o

discurso da segurança pública sob a primazia de segurança nacional e que apresenta este grupo

de pessoas como sujeitos perigosos, contra a lei e a ordem social.

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72

Nessa correlação entre saúde e segurança, apoiados em seus discursos de verdade,

há uma construção de realidade social que causa efeitos nas subjetividades, que conforme

Taniele Rui97

Nesse processo, a figura do nóia tomou uma dimensão não prevista e ganhou

centralidade na investigação, concentrando o meu enfoque. Pois, ao contrário do que

mostra a matéria do jornal que, a partir dessa nomeação, generaliza e homogeneíza a

experiência dos usuários, bem como as distintas possibilidades de uso, a pesquisa

empírica revela que trata-se de uma categoria, a um só tempo, de acusação e de

assunção que agrupa abstratamente apenas um segmento muito particular de usuários:

aqueles que, por uma série de circunstâncias sociais e individuais, desenvolveram com

a substância uma relação extrema e radical, produto e produtora de uma corporalidade

em que ganha destaque a abjeção (p.09).

É sob a prerrogativa de um sujeito despossuído de si e perigoso que se apresentam

como principal estratégia a necessidade de intervenções que retirem essas pessoas de ruas, que

se organizam políticas pautadas em internações forçadas e que se medica à força. Tais ações,

entre tantas outras, têm forte presença nos discursos e práticas de cuidado, cuja lógica baseia-

se prioritariamente na tutela e no controle das pessoas. Como exemplo:

Uma nova operação foi deflagrada no domingo (21) na cracolândia, área degradada

do centro de São Paulo onde, há anos, dependentes químicos compram e usam

livremente o crack, seja ao ar livre, em barracas montadas nas ruas ou em pequenos

hotéis. É a primeira intervenção na área feita durante a gestão do prefeito João Doria

(PSDB), que ocorre depois de uma série de tentativas fracassadas de lidar com

esse problema crônico, que envolve questões sociais, urbanísticas,de saúde e de

segurança pública (G1, 2017).

O sujeito colocado enquanto um zumbi perde sua dimensão humana frente ao olhar

da população em geral e muitas vezes dos trabalhadores e, assim, torna-se legitimado qualquer

dispositivo para a interdição e controle dessa população. A condição de extrema

vulnerabilidade, apresentada a todo momento em cenas midiáticas espetaculares, traz uma

sensação social de que algo precisa ser feito de modo resolutivo e assim

Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-

se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O

espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o

mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido

humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais abstrato, e

o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o

espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele

é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É

o contrário do diálogo. Em toda a parte, onde há representação independente, o

espetáculo reconstui-se98 (p. 19).

A produção de imagens e de discursos são instrumentos de exercício de poder,

sendo que na sociedade capitalista, tal exercício acaba se disseminando a toda vida social,

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constituindo-se uma forma capilar que tem apoio na produção incessante de imagens

assustadoras que despertam certo senso de justiça para sua justificação98. Sob tal movimento,

um conjunto de estratégias discursivas e imagéticas de natureza ideológica adotadas

nas notícias, que, por um lado, tornam salientes a naturalização do crack como

avassalador, violento e viciante ‘craving’ e a substância como inimigo público e que,

por outro, oculta, exclui ou secundariza o papel da rede substitutiva na garantia de

direitos, produzindo bens simbólicos que coadunam com a política da repressão em

detrimento das políticas de promoção da saúde66 (p.881).

Focalizando no combate da droga e da doença, e, como, consequência nas pessoas,

a ideia da internação como tecnologia central de enfrentamento no âmbito da saúde, sob o

argumento de tratar, responde à demanda de segregação e retirada dos ditos perigosos que

circulam a rua41. O cuidado é então produzido, baseando-se na ideia de recaída e abstinência,

certo e errado, circular e não circular, partindo de definições a priori, excluindo as diversas

experiências de uso e focando no controle das condutas.

Tal proposta pressupõe ser insolúvel o problema com a droga. A única estratégia

possível é limitar-se à criação ou intensificação de força psíquica e/ ou moral de

rechaço ao “mau hábito”, em um treinamento para fortalecimento de atitudes de

esquiva ao apelo recorrente da substância64.

E foi nas ‘andanças’ na região da ‘cracolância’ em São Paulo/SP que mais pude

sentir como mecanismos de normatização de condutas não desejadas são em suas diferentes

perspectivas implantadas e experimentadas, um território recheado de ações, na composição de

cultos religiosos, kombis de grupos de CTs oferecendo local para as pessoas irem se tratar,

programas estaduais e municipais, profissionais de diferentes movimentos, ONGs, tráfico de

drogas, entre outros que meu olhar não conseguiu captar.

As normativas legislativas apesar de criarem dispositivos para a população em

situação de rua que lhe garantam a efetivação de princípios e diretrizes do SUS, como aqueles

que fazem menção ao acesso universal e a equidade na atenção, não conseguem anular por

completo as barreiras e dificuldades em se produzir um cuidado que atenda à complexidade e

singularidades existentes, isto ocorre aparentemente pelo modo que os serviços operam o

cuidado nestes ‘espaços marginais’, sem levar muitas vezes em consideração à riqueza

existencial e multiplicidade de saberes que habitam a rua.

Nessa composição tão heterogênea, os ‘anormais’ que circulam pelas ditas

‘cracolândias’ brasileiras, após pesquisa evidenciou-se, conforme a Pesquisa Nacional sobre o

Uso de Crack, que pretendia responder “Quem são os usuários de crack no Brasil?”, enquanto

um grupo, no qual, aproximadamente 80% dos usuários se autodeclaravam negros ou pardos,

60% tinham até o ensino fundamental e apenas 2,35% tinham ensino superior55. Nesse sentido,

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as intervenções para essa população, estão intrinsecamente relacionadas a intervenções de

populações historicamente marginalizadas no país.

Sobre isso, lançando olhar sobre quem são eram essas pessoas – descritas enquanto

uma população – pode-se reafirmar que as políticas de drogas, fossem elas apoiadas em

discursos da abstinência ou de RD, são constructos que objetivam a regulação da conduta de

determinadas populações. Se olharmos para o código penal de 1890, o primeiro após a abolição

da escravatura no Brasil, encontramos uma roupagem que coloca no campo penal uma

determinada população, que não se mostrava diferente nos territórios entendidos como

cracolândias. Destaco a seguir alguns artigos,

Art. 391. Mendigar, tendo saúde e aptidão para trabalhar

Art. 396. Embriagar-se por hábito, ou apresentar-se em público em estado de

embriaguez manifesta.

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a

vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a

subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da

moral e dos bons costume99.

Vê-se a partir desses artigos do código penal brasileiro de 1890, que ações como:

perambular pela rua, não ter emprego e alcoolizar-se, figuravam enquanto provas do caráter das

pessoas, sendo, portanto, comportamentos sobre os quais cabiam intervenções do campo penal,

apresentando-se como uma estratégia de coerção e controle àquelas condutas ‘anormais’. Nesse

mesmo movimento, apesar de diferentes roupagens, várias intervenções12 foram realizadas na

região da Cracolândia, em São Paulo/SP, como a que se apresentou concretamente para mim

na intervenção realizada em maio/2017, que tinha a ideia de inaugurar o novo programa do

governo municipal, já descrito anteriormente, me trazendo com muita clareza como as ações

sob este grupo são (re)atualizados e continuam com as mesmas características penais e bélicas,

com alvo apontado, como nos mostra a pesquisa da FioCruz, para o mesmo grupo

marginalizado do código penal de 1890.

12 Criação da Delegacia do Crack em 1995 no governo Mário Covas (PSDB); Crack Some, ainda no governo

Covas com ações estritamente de repressão; em 2000 na gestão municipal da prefeita Marta Suplicy (PT) através

de um empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento; em 2005 no governo de José Serra (PSDB) com

a criação do projeto Nova Luz; em 2009 com o governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) e gestão municipal

de Gilberto Kassab (DEM) com mega operações ao tráfico de drogas; em 2012 com ações que foram chamadas de

“Dor e Sofrimento” que conforme dito pelo então Secretário de estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, Luiz

Alberto de Oliveira, a dor e o sofrimento fariam com que aquelas pessoas pedissem ajuda; em 2013 com a

implementação pelo governo do estado de uma ação de internação compulsória de usuários; e também em 2014,

antes da formatação do DBA, diversos episódios de uso de força policial.

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3.3. Práticas de Resistência

Meu maior desafio aqui é raspar a ideia que o usuário tem de si mesmo, de que ele é

um sujeito desajustado do normal...que não leva uma vida normal... que é uma pessoa

sem caráter (Diário de Campo – CAPS-ad).

Enquanto atora social de diferentes pontos de atenção no cuidado às pessoas em uso

problemático de drogas, vi que a formatação de dispositivos macropolíticos como os CAPS-

ad100, e os diversos pontos de atenção da RAPS65 não davam conta, por si só, da produção de

práticas que fossem pautadas na multiplicidade de formações subjetivas dos usuários. Apesar

desses dispositivos adotarem como diretriz de cuidado, o atendimento comunitário e aberto, por

meio da construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), que funcionavam como

gerenciadores da rede de cuidados para cada usuário, incluindo tanto a rede de serviços de saúde

como também outros dispositivos sócio assistenciais e comunitários, de modo a produzir um

cuidado que desse conta da complexidade dos diferentes modos de viver dos usuários, a

premissa de sujeitos que tem vidas legitimadas para suas escolhas, com um complexo e

histórico processo de marginalização muitas vezes não são postas como centrais.

Esse tipo de lógica de cuidado, reforçada pela Reforma Psiquiátrica, é pautada no

chamado modelo psicossocial, que parte do pressuposto de que o adoecimento psíquico está

além da noção de doença, colocando a doença em parênteses para ver o sujeito em processo de

sofrimento psíquico a partir dos seus determinares econômicos, políticos e sociais101. Nesse

sentido, os recursos usados precisariam ir além do uso de medicamentos e da segregação, na

direção de intervenções que não foquem na cura sintomática, que, no campo AD significaria a

abstinência, mas sim na busca da redução de possíveis danos à sua saúde e da ampliação da

vida.

Esse modelo de cuidado centra-se no respeito às diferenças, à defesa da vida e ao

direito à liberdade e à dignidade da pessoa, cujo objetivo é inclusão e reinserção social,

e a toxicomania ou a dependência de drogas é vista como resultante do encontro de

uma pessoa com uma droga em um dado momento sociocultural, numa tríade

indivíduo-droga-contexto102 (p.1456).

Em vários momentos vividos, posso dizer que o que sempre me sustentou enquanto

uma apaixonada pelo cuidado das pessoas em vulnerabilidades diversas foi me encontrar com

os que ‘não abaixavam a cabeça’ e, assim, reinventavam frente às mais adversas situações um

novo modo de lidar com a vida. Foi com eles que aprendi o significado de resistir.

Assinalo, que parto de uma noção de sujeito enquanto uma formatação produzida

dentro de determinadas relações de poder-saber-verdade e que não são apenas submetidas a

estas, haja vista os fatores ativos de produção de si mesmo. Junto a isso, entendo que a

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construção de práticas de liberdade tem o compromisso de uma análise política do tempo

presente, ou seja, uma história do presente, que passa pelas diferentes formas de relação comigo

mesmo - mulher, militante, trabalhadora, gestora, pesquisadora – e nos encontros que, de algum

modo, colocaram-me no cuidado de mim e na evidencia de resistências viventes frente a

determinadas subjetivações que foram sendo construídas para esta população.

Nesse sentido, as ações e intervenções produzidas com essas populações foram,

para mim, uma questão de recusar o que diziam sobre ‘sujeitos drogados’ e imprimir uma

abertura para todos os possíveis, que pensados em termos micropolíticos,

[...] faz-se na contraposição a um sistema de dominação, faz-se na construção de

fissuras a este grande modelo de relações, produzindo linhas de fuga e uma espécie

de resistência ativa, que produz, que cria e transforma nas próprias brechas do modelo

instituído. É por isso que, num modelo político centrado nas ideias de segurança e de

produção de seguridade, as práticas de liberdade são uma opção pelo risco, pelo

instável, pelo heterogêneo27 (p. 386).

Conforme Gallo1 traça em seu texto “Biopolítica e Subjetividade: resistência?”, nas

últimas décadas do século XX e XXI um constructo foi produzido através de políticas públicas

centradas na afirmação e promoção da cidadania, o que acabou por evidenciar uma

“governamentalidade democrática [...] azeitada pela constituição de cidadãos” (p.89) e que nos

subjetiva como ‘sujeito de direitos’. Foucault13 destaca que a palavra ‘sujeito’ em seu duplo

sentido, é operado de um lado pela submissão através de mecanismos de controle e jogos de

poder e também na relação consigo mesmo e, desse modo, destaca três modos de luta:

[...] aquelas que travamos contra os processos de exploração, como as lutas dos

trabalhadores contra a expropriação do produto de seu trabalho; e aquelas contra a

submissão, isto é, contra os modos pelos quais somos subjetivados, somos

constituídos como sujeitos. E afirma: “hoje, é a luta contra as formas de sujeição –

contra a submissão da subjetividade – que prevalece cada vez mais, mesmo se as lutas

contra a dominação e a exploração não desapareceram, muito pelo contrário” 1 (p. 90).

Assim, a produção de práticas de cuidado no campo de produção de resistência é

pautada na recusa de todo modo de individualização e formação de modos-sujeitos para

promovermos novas formas de subjetividade, que sob uma tarefa de uma luta pela liberdade,

pauta-se muitas vezes na insistência de existir e resistir, ou seja, na produção de práticas de

liberdade, aqui entendidas, como invenções de linhas de fuga nas relações cotidianas, sejam

com outros, sejam consigo mesmo.

[...] não se trata de liberar o indivíduo do Estado e das instituições; é nela que somos

constituídos, logo não podemos ser fora delas; mas, sendo constituídas nas e pelas

instituições, podemos agir sobre nós mesmos, recusando aquilo que somos e

investindo em transformações de nossos panoramas subjetivos1 (p.91).

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Conforme Foucault25, onde há relações de poder há relações de resistência. Nesse

sentido, o poder não existe senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência,

sendo eles, em grande maioria, móveis e transitórios e colocam na sociedade “clivagens que se

deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos,

recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis”

(p.91).

Assim, poder e resistência dialogam com o que Foucault25 disse sobre poder e

liberdade, sendo que por entender que não estão em oposição ou em relação de exclusão, o

poder é sempre exercido sobre sujeitos livres. Vale aqui destacar que ‘livre’ é um entendimento

de que sujeitos, sejam eles individuais ou coletivos, têm um campo de possibilidades, reações,

condutas e modos de comportar-se que podem tomar lugar13.

É pela definição de contra conduta como luta contra práticas existentes para

conduzir os outros, que Foucault traduz como procedimentos ativos de um exercício de si sobre

si, a desobediência ao pressuposto no pastorado e abre, portanto, a ideia de um sujeito agente

de sua própria subjetivação a partir da não obediência incondicional71. Desse modo, a aposta é

na produção de uma clínica que deva funcionar como Lancetti47 apresenta enquanto um

“organizador do cuidado”, que considera “o território existencial do usuário e seu contexto. E

por fim a potencialidade do sujeito individual e coletivo em questão” (p. 122).

Vivi experiências que concretizam a ideia de que a existência de um determinado

grupo, muitas vezes é trazido na tentativa de dominar, subjugar e exterminar, contudo seus

corpos combativos afirmavam que ‘o samba não pode parar’. A cada cena, que tentei estar

atenta às sutilezas existentes, pude ter a garantia de que nós construímos incessantemente novos

modos de sentir, habitar, viver e fazer-se ser visto, ampliando meu olhar sobre os modos de

subjetivação existentes. No deslocamento de uma noção de seres despossuídos, que muitas

vezes em minha vida esteve presente frente à minha formação familiar católica-cristã, pude ir

encontrando combatentes possuídos de si mesmos e resistentes às formas de opressão de suas

diferenças e produção de modos de viver normatizados.

***

É no território, também, que se exerce o controle das subjetividades. É nele que se

instala o olho vigilante do poder disciplinar que se ramifica e adere às rotinas

cotidianas, transmutando-as ao sabor das conveniências do mercado. E o que se vende

com as mercadorias são modos de ser, novos mundos e novas formas coletivas de

conceber a vida e a existência – subjetividades capturadas e ansiosas pelo consumo.

Mas se, como propõe Foucault, ali onde o poder incide é onde se exerce a resistência,

o território é ainda lugar de produção contínua de modos de vida e de relações que

escapam ao controle59 (p. 598).

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Conforme Lima e Yasui59, o território enquanto espaço de habitar de uma

racionalidade dominante é também “lugar de emergência de formas de resistência” (p.598) e

deste modo, não se garante uma prática de cuidado coerente ao cuidado em liberdade, tão

discutido na Reforma Psiquiátrica, se não garantirmos formas de ruptura com esses modelos

dominantes de se viver a vida. Deve-se para tanto dar “lugar a processos de produção de saúde

e de subjetividade, o que implica a inserção em processos de criação voltados para a construção

de novas línguas, novos territórios, novos sentidos” (p.599).

Foi pautada nessa perspectiva, que logo que cheguei no CAPS-ad, percebi que os

usuários que apresentavam algum sofrimento psíquico, inscritos na denominada ‘clínica da

loucura’ e que tinham também o uso de drogas em suas vidas, não eram cuidados efetivamente

no serviço. Numa briga entre ‘o que veio primeiro, a loucura ou o uso de drogas?’, acabavam

por ficar no limbo do cuidado, já que, se de um lado o CAPS Adulto os entendia como um risco

para os outros, o CAPS-ad não produzia novas tecnologias para cuidar deles.

Foi nesse contexto que, junto com uma colega terapeuta ocupacional, que tinha

vasta experiência no cuidado de pessoas em CAPS Adulto, construímos um espaço grupal que

pretendia ser um espaço de construção de narrativas de si, a fim de que pudessem sair do limbo

que as nomenclaturas psiquiátricas lhe colocavam – louco ou dependente químico – para o

status de um sujeito que tem sua própria história. Essa ideia veio após a leitura do livro de

Antonio Lancetti, “Clínica Peripatética”, no qual discute-se, a partir de seis ensaios, alternativas

ao cuidado normalmente realizado em algum setting. Peripatética remete a passar, ir e vir

conversando, numa tentativa de construir um cuidado que está mais ocupado com o sujeito do

que com a “recuperação” das pessoas afim de torna-las normais.

Foi então a partir dessas perspectivas e do encontro com o filme da Eliane Caffé,

“Narradores de Javé”, de 2003, que conta a história da cidade de Javé, que seria represada e,

para isso, fora submersa pelas águas. Com isso, os moradores numa tentativa de bloquear o

represamento, descobriram que só conseguiriam preservar Javé se conseguissem mostrar ao

poder público que a cidade tinha um patrimônio histórico de valor comprovado em ‘documento

científico’. Decidem, então, escrever a história da cidade, sendo que só o carteiro sabia escrever,

e, entre histórias e estórias, contam que o patrimônio existente eram suas próprias vidas e

relações.

Lembro ainda, que para apresentação para a equipe do CAPS-ad dessa atividade

grupal na qual chamávamos de ‘Oficina Terapêutica: o entre andar e narrar’, nós fizemos slides

e a primeira frase que colocamos foi “Todo Delírio é Social, Histórico e Político”, em referência

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a uma das teses trazidas por Gilles Deleuze e Félix Guattarri no livro ‘O Anti-Édipo103, que faz

luz a todo o debate dos modos de subjetivação já discutidos nos capítulos anteriores, mas que

tinha o foco ali de abrir um campo de diálogo que pudesse sair do ideário ‘psi’ e médico.

Desenvolvemos a oficina entre idas a locais de afeto dos usuários do serviço, produzindo a

escrita de narrativas desses lugares – ‘por que era um lugar de afeto?’ – e a construção de um

mapa da cidade com pontos de afeto para cada um. E nessa experiência pude ver a potência de

[...] sustentar a construção de territórios existenciais, mesmo que efêmeros e nômades,

que possam se abrir, estabelecendo relações com outras vidas e com outros mundos.

E esses territórios não coincidem necessariamente com aqueles circunscritos pelos

serviços, e podem aí constituir vetores de desterritorialização59 (p.600).

Falo isso pensando principalmente num usuário que tinha uma fala recorrente de

que seus dentes estavam podres. Numa das rodas para construir o novo trajeto que iríamos fazer

na cidade ele trouxe isso e outro usuário falou para ele “você quer muito trabalhar né? Mas só

os escravos e cavalos que são avaliados a partir do dente!” (Diário de campo – CAPS Ad).

Naquele dia, ampliamos nosso olhar sobre o cuidado desse usuário e produzimos a possibilidade

junto com ele dele voltar a trabalhar.

A seguir apresento outra vivência que traz a afirmação do território enquanto

experiência de existências múltiplas e, assim, como espaço de cuidado em meu Diário de campo

da época da prática em São Paulo/SP.

A cidade e o centro de São Paulo, seriam para todos? Para mendigos, ricos e outras

ambições?

Numa intervenção da nova gestão municipal de São Paulo em maio de 2017, na região

da Cracolândia em São Paulo, um usuário precisa de remoção para um hospital. A

única profissional disponível sou eu, visto que enquanto gestora estava tentando

organizar um cuidado para os feridos - não havíamos sido avisados de nenhuma ação.

Vou chamá-lo de Chico.

Chico tem aproximadamente 35 anos, negro, e apresenta uma atrofia nas pernas que

impedem sua mobilidade através dos membros inferiores. Ele então anda em cima de

um skate, e sempre o vejo na região, entre ‘corres’ e piração. Hoje estava machucado,

devido balas de borracha, e quando vou junto na ambulância pergunto: ‘cadê seu

skate?’(sic) Ele diz que na ação policial tinha sido retirado dele e por isso tinha levado

tanta bala de borracha. “Tiraram meu jeito de andar na cidade”(sic) (Diário de Campo

OSS/SP - Cracolândia).

Chego para conhecer um dos Hotéis do programa municipal de SP “De braços

abertos”, uma Menina vem ao meu encontro e diz que ela irá apresentar o hotel.

A Menina, que aqui chamo assim, tinha 9 anos, negra, morava com a mãe, outra irmã

mais velha e 3 sobrinhos mais novos. A mãe usuária de crack, com história em

diversas instituições de acolhimento familiar, não estava; a irmã mais velha em toda

a visita cheirava cola e andava com os filhos de um lado para outro.

Terminando a visita, em que Menina mostrou seu quarto, seus brinquedos, os

utensílios da cozinha coletiva e do espaço de convivência, ela me pergunta “tia gostou

da minha mansão? (Diário de Campo OSS/SP – Hotel DBA).

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Lembro aqui da discussão trazida por Antonio Lancetti47 “o proibicionismo, acaba

por ser construído e construir uma racionalidade que de forma nebulosa nos apresenta a

substância como mal, perigo e assim os seus usuários enquanto possuídos, perigosos” (p.30). E

deste modo, intervenções ‘policialescas’ são efetivadas, conforme já discutido anteriormente.

Mas por outro lado é na multiplicidade das existências nos territórios que Chico e a Menina

afirmam sua existência enquanto ato de resistir. O primeiro, através de uma rede de amigos,

consegue um novo skate para circular na cidade e, a segunda afirma que tem um lugar para

chamar de “sua mansão” e, deste modo, reafirmam sua existência apesar dos investimentos para

sua não existência, sendo o território deste modo relativo tanto a um espaço vivido quanto a um

sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’ 31 (p. 323).

Tais experiências me apresentam que as formas de resistência neste campo,

precisam estar pautadas na desconstrução de verdades que normatizam as vidas a um contorno

de não-humano e assim desumanizadas, para que possamos garantir uma existência real. Assim,

corroboro a afirmação de que

A abstinência não pode ser, então, o único objetivo a ser alcançado. Aliás, quando se

trata de cuidar de vidas humanas, temos que, necessariamente, lidar com as

singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitas. As práticas

de saúde, em qualquer nível de ocorrência, devem levar em conta esta diversidade.

Devem acolher, sem julgamento, o que em cada situação, com cada usuário, é

possível, o que é necessário, o que está sendo demandado, o que pode ser ofertado, o

que deve ser feito, sempre estimulando a sua participação e o seu engajamento61.

As duas vivências trazidas, apoiados pela perspectiva de cuidado da RD, me

lembram da ideia de Passos e Barros62, segundo a qual o analista além de criar ‘intercessores’,

ou seja, novos elementos para desterritorializar, também deve provocar passagens de um

território para outro. Os autores referem a este tipo de clínica como uma clínica transdisciplinar,

que se trata de produzir na clínica dispositivos ou intercessores.

Não uma verdade a ser preservada e/ou descoberta, mas que deverá ser criada a cada

novo domínio. Os intercessores se fazem, então, em tomo dos movimentos, esta é a

aliança possível de ser construída quando falamos de transdisciplinaridade, quando

falamos de clínica62 (p. 77).

Sendo assim, o trabalhador de saúde estaria defronte, conforme Rolnik8 nos

apresenta, de processos de construção e desconstrução de territórios existenciais, quer dizer,

apostando que cada um tem formas de significar e interagir com o mundo.

O fato do território existencial habitar o sujeito, significa que onde ele estiver, seja,

na atenção básica, no hospital, atenção especializada, domicílio, etc., vai produzir o tipo de

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cuidado que se inscreve no seu universo como uma ética, num modo de ser no mundo a ser

construída. Portanto, o que define o perfil do cuidado não é o lugar físico onde se realiza o

cuidado, mas o território existencial no qual o trabalhador se inscreve como sujeito ético-

político, e que anda com ele onde ele estiver operando seu processo de trabalho104 (p.167).

Se de um lado, quando vemos as políticas, programas e as práticas de cuidado,

apesar de tentativas de construção de novas racionalidades e, assim, produção de cuidado, ainda

pautadas em determinadas racionalidades que são hegemônicas como saudável-não saudável,

normal-anormal, recreativo-problemático, por outro temos a produção constante de práticas que

conseguem de algum modo operar enquanto dispositivo de cuidado de si, ou seja, de olhar sob

si não como um determinado sujeito e assim abrir espaços para produzindo novos. Seria este o

caminho para uma resistência? Se por dentro dos anos marcados por um discurso

antimanicomial práticas manicomiais ainda se presentificavam, podemos nesta mesma

premissa apostar que apesar dos discursos higienistas, violentos, excludentes, mortíferos tão

presentes em nossa atualidade construir práticas que rompem com essa lógica?

Se Foucault sempre recusou uma visão negativa do poder, tomado estritamente como

repressão, colocando sempre o tema da resistência, parece que em seus últimos cursos

vemos uma ênfase maior na afirmação. Uma coisa é dizer que todo exercício de poder

implica em resistência; outra, bastante diferente, é dizer que a ética do cuidado de si

significa a produção de práticas de liberdade, como ele enuncia na conhecida

entrevista de 20 de janeiro de 1984, reproduzida nos Dits et Écrits. Nesta perspectiva,

as questões éticas atravessam e estão atravessadas pelas questões políticas, não

podendo ser dissociadas. Ou, para dizer em outros termos, as relações consigo mesmo

não podem ser dissociadas das relações com o poder, nas dobras do dentro e do fora

do pensamento27 (p.2).

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CONVERSAÇÕES FINAIS, OU INICIAIS?

As considerações finais são muitas vezes colocadas numa dissertação como

apresentação dos resultados obtidos no decorrer da pesquisa. Contudo, como esta pesquisa não

se propôs fazer um caminho de busca de respostas, mas sim uma ‘andança’ que se pautou nos

movimentos que se apresentaram entre a vivência, os diários de campo, as memórias da

pesquisadora, a pesquisa documental e a escrita, com suas conexões e (re) conexões, trago, aqui

o que ressoou desses encontros.

Essa conversação, deste modo, não se pretende final, já que se lança enquanto feixe

de luz para propor um olhar sob as relações existentes entre as políticas, programas e práticas

de cuidado no campo AD, anunciando linhas que podem a qualquer momento serem (re) abertas

e (re) pensadas.

O campo AD é aqui analisado com especial interesse na discussão em torno da

produção de subjetividades nas relações de poder-saber na sociedade e, desse modo, indago-

me: quais produções de modos-sujeitos nos deparamos nas problematizações trazidas nessa

dissertação?

Vale destacar, que quando falamos de subjetividades estamos partindo de um

paradigma que se contrapõe a uma noção de sujeito do conhecimento, este imbuído de uma

essência previamente dada, sob um princípio de individuação e que independe das condições

sócio-históricas-culturais-econômicas105.

Compreender o plano da subjetividade como uma produção operada por meio de

vetores plurais é compreender que; a despeito da tentativa constante de fixação da clínica num

território científico que dicotomiza e recorta a subjetividade a partir de noções identitárias, que

tendem decodificar e controlar as múltiplas produções de subjetividade, e também, sob a

pretensa ideia de dissociá-la da política e das relações de poder, sejam elas macro e/ou

micropolíticas; o campo da clínica começa a ser engendrado a partir de uma composição de

diversas forças e esquemas que se deparam com as vidas em suas múltiplas existências.

Foucault71, numa análise da política neoliberal contemporânea, situa o surgimento

da biopolítica como um exercício de poder direcionando a vida populacional e que na

composição de diversos fatores como a educação, a segurança e a saúde, criam uma teoria do

capital humano. Sob tal modo de funcionamento do poder, o governo estaria então focado no

desenvolvimento populacional, sob a égide da busca da qualidade de vida, tendo como efeito,

a produção de subjetividades.

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O exercício do poder é então constituído a partir de atos de governo, que em sua

dupla inflexão – governar aos outros e a si mesmo – passa a colocar o sujeito enquanto agente

de ação71. O governo se dá assim, numa tentativa de funcionar a regulação das condutas

desviantes à sombra de uma gama de discursos científicos, estes últimos enquanto base para a

constituição de aparelhos políticos-científicos-pedagógicos-sociais que interferem na produção

de leis, normas, regras e intervenções, alcançando a própria relação do usuário consigo mesmo,

ou seja, um constante atravessamento de forças, práticas e discursos que tentam intervir sobre

as ações, comportamentos, sonhos e desejos.

O diagrama de forças que atravessam o cuidado aos usuários de AD, sob a égide da

saúde, da segurança, do controle, da cura e da salvação, acaba por tomar uma forma prescritiva

baseada em modelos de vida considerados ‘normais’ e ‘desejáveis’, organizando uma clínica

da disciplinarização que, embasada pelo saber ‘psi’, apoia-se num ideal de sujeito psicológico

e interiorizado à luz da ideia de erro, falta e culpa. O sujeito normal é, então, aquele que NÃO

tem isso ou aquilo, NÃO apresenta estes ou aqueles comportamentos e, assim, técnicas são

produzidas no direcionamento de um possível plano de correção.

Vale aqui sublinhar, que tal perspectiva não está presente apenas em determinados

modelos aqui apresentados (criminal, moral, da doença e redução de danos), já que, apesar de

muitas vezes anunciarem discursos que nos levam a uma ideia oposição e, também, produzirem

tecnologias distintas, há um atravessamento constante da determinação de modelos de cuidado

que devem objetivar a busca pelo saudável e normal. Quero aqui dizer, que nos interstícios dos

imperativos ‘não use drogas’, ‘a droga é (o) mal’ e/ou ‘reduza para viver melhor’ encontramos

racionalidades que se compõem e que implicam diretamente nos corpos e nas condutas dos que

são entendidos como ‘anormais’.

De acordo com Gallo1, a década de 1980 com o fim da ditadura militar e a

construção de uma constituição democrática é marcada pelo esforço da “afirmação dos direitos

humanos e civis dos cidadãos [...] mas também, e sobretudo, na construção de uma forma de

governar nitidamente inscrita na biopolítica, no governo das populações, mais do que

territórios” (p.86). Neste movimento, pode-se analisar que nas últimas três décadas teríamos a

constituição de uma “governamentalidade democrática” (p.86), centrada na noção de cidadania

e que por sua vez, implica na sentença de que para ser governado democraticamente, e não de

forma autoritária, é preciso ser cidadão.

Tal assinalamento é de suma importância para a discussão, já que a população

usuária de drogas, mais especificamente àquela que se encontra em maior situação de

vulnerabilidade social, é marcada por uma dupla intersecção no que diz respeito as tentativas

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de regulação de suas condutas. Quero dizer, de um lado considerados como sujeitos de direitos,

uma diversa rede de cuidados foi produzida desde a final do século XX com objetivo de garantir

o acesso a direitos constitucionais; por outro, com a caracterização de não-humanos, também

são alvos de ações estritamente violentas, autoritárias e de extermínio, sem que para isso precise

de muita justificativa.

Essa dupla dimensão da produção biopolítica brasileira1, é um possível olhar sob o

fato de que apesar dos avanços alcançados através dos dispositivos legais e práticas sociais

cotidianas nas últimas décadas, que tentaram se apresentar enquanto uma produção que se

contrapunha aos modelos baseados em premissas estritamente morais, jurídicas e do espectro

da saúde conhecido como dependência química, a presença de um campo de forças que,

moduladas por uma construção secular que tende a formatação de uma determinado modo de

se pensar e descrever os sujeitos usuários de drogas, pronuncia-se constantemente no cotidiano,

produzindo um constante paradoxo.

Torna-se, assim, necessário identificar as principais marcações, dessa determinada

objetivação que aqui chamarei de ‘sujeito drogado’, para que possamos efetivar, principalmente

num momento de retrocesso das políticas sociais brasileiras e práticas de cuidado de usuários

AD, ações que se transformem em operadores cotidianos de resistência.

Buscar as racionalidades que normatizam, regulam e constroem verdades sobre os

usuários AD, entre tantas possibilidades existentes, é também apontar para um lugar que é

terreno de justificação para a implementação de políticas, programas e práticas de cuidado,

podendo transformar-se por outro lado, numa ferramenta de desconstrução de mecanismos e

dispositivos que tentam produzir o governo da vida cotidiana através de ações estritamente

punitivistas e restritivas.

Deparei-me no decorrer da pesquisa, com uma noção que me parecia clara nas

discussões, contudo, que poucas vezes vi sendo discutida a fundo: a de que temos racionalidades

políticas hegemônicas, das quais o exercício do poder é conceituado e justificado, podem ser

pensadas a partir dos seguintes campos discursivos:

• Na ilicitude do uso de drogas e de um mundo livre das drogas, sendo que o usuário

de drogas é colocado aqui enquanto um criminoso, visto apresentar um

comportamento transgressor da lei que está posta e que mais que isso, é produtor

de um mal social: o tráfico de drogas;

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• Na ideia moral do uso enquanto perda de controle sobre si mesmo e de defeito de

caráter, que coloca o sujeito como um ser passivo e objeto da substância, muitas

vezes descrito na imagem midiática de um ‘zumbi’;

• Na ideia de doente, ou seja, da dependência química ou vício, que é colocado sob a

formatação de um sujeito fora da normalidade.

Temos assim, a formação de subjetividades drogadas, pautadas na formação de

concepções científicas, jurídicas, de saúde e morais que apoiam o desenvolvimento de

tecnologias e práticas de governar baseadas em concepções alinhadas ao ideário da interdição

e do acompanhamento para o regramento dos comportamentos entendidos como

desviantes/anormais.

É através desse método que a expectativa governamental se transforma, a um só

tempo, numa possibilidade de tutela e de produção de subjetividades. Tal rede discursiva,

capilarizada para a sociedade de modo recorrente através dos meios de comunicação, cria

também um desejo social-coletivo de ações que busquem erradicar o problema, criminalizando

o desejo das pessoas e assim empurrando os usuários de drogas ao status de ‘lugar de não-

humano’, nas margens dos espaços societários autorizados.

Os diários de campo aqui trazidos, marcam tal questão, quase que sob uma pergunta

não dita, mas sempre apresentada nos interstícios: “não acha que precisamos resolver isso?”.

Neste sentido, posso aqui dizer que a significação dos sujeitos usuários de drogas,

principalmente aqueles em maior marginalidade, tem como consequência nas práticas de

cuidado uma demanda social imposta, que coloca para os agentes operadores de políticas

públicas a necessidade de uma acentuada atenção para que não caiam em armadilhas que

tendem a produzir um aparato clínico focado no desvio e que assim na criação de tecnologias

que tem por finalidade a reintegração do sujeito ao campo da licitude, da boa saúde, da salvação,

e da cura, fazendo funcionar no cotidiano operações que tendem ao aprisionamento de

comportamentos entendidos como ‘anormais’ e ‘não saudáveis’, seja no campo do indivíduo

ou da coletividade, numa ordem de ações que objetivam a dominação dos indomáveis.

A busca por abstinência, nesse sentido, é apenas uma das tantas possibilidades de

se fazer efetivar uma prática de cuidado que tenta conduzir a vida das pessoas, já que, com a

capilarização de tais noções, as ações de cuidado tenderiam à disciplinarização, medicalização

e tutela, sendo esses exercidos tanto por atores socais legitimados para tal execução como pelo

próprio usuário. Tal manejo está intrinsicamente relacionado a via da moral e privilegia alguns

modos de vida desejáveis, em detrimento das forças que fogem à curva delimitada a partir de

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uma perspectiva social, econômica – a lembrar do enclausuramento da loucura por não se

encaixar nos interesses do Estado.

A escuta quando atravessada por tais perspectivas acaba por formatar-se, numa

implicação direta com as práticas de cuidado, a partir do que Denis Petuco87 conceitua como:

discursos autorizados e os interditos. Os primeiros, baseados no desespero ou sentimento de

derrota, produz uma relação de subserviência às intervenções e os segundos, apoiado no heroico

e vitorioso, cria a ideia de superação individual e busca interna.

Este modo de escuta, conforme Merhy e Feuerwerker89, são ‘práticas do agir

torturador’, já que uma certa modulação do discurso, consistindo em orientar os sujeitos a dizer

o que se quer ouvir coadunam com uma clínica baseada no ideário de um sujeito que tem que

se portar dentro de um padrão esperado.

Apesar dessas pontuações, foram nos encontros em minha trajetória, alguns

apresentados neste trabalho, que pude ir construindo pistas no sentido de lidar com a ‘tentação’

de produzir intervenções que tendessem a busca de sujeitos ‘assujeitados’ ao meu saber. Se de

um lado temos tais formatações, por outro, a resistência em existir me mostrou modos de vida

que não se rendem as constantes tentativas de seu extermínio.

Proponho, desse modo, nada novo, mas uma atenção especial à produção de uma

clínica que seja fuga às formas apriorísticas, sendo essa possível apenas junto com os usuários,

mapeando e evidenciando lado a lado as forças e potências que atravessam nossos

corpos. Instauraríamos, portanto, uma preferência pela diferença, em contraposição a uma

determinada identidade e universalidade do eu e do sujeito.

Num engendramento que se opõe radicalmente ao tecnicismo programado, a

referenciais postos como verdades, à noção de homem com boa saúde e conduta, apostar na

sensibilidade do acontecimento e encontro, para deles fazer experimentar, sempre junto,

possibilidades de ouvir, sentir, afetar e ser afetado. Assim, não mais nos identificaríamos como

detentores de um saber maior e, as dicotomias entre anormal-normal, doença-saúde, crime-não

crime saíram de cena para a presentificação efetiva dos elementos sociais, políticos e

econômicos dos processos de saúde e doença.

Experimentar, dessa maneira, modelos que apostam no constante desmoronamento

de uma clínica que nega as vidas como elas são, numa tentativa de serializar a subjetividade

para ser restaurada a favor de um ideal, para fazer funcionar dispositivos que abram espaço para

as múltiplas existências, de modo que possam ser inventadas e experimentadas a todo momento.

Como efetivar? Não espero responder essa pergunta, já que isso seria a construção

de um paradigma de saber-verdade, porém entendo que apostar em dispositivos que produzam

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espaços efetivamente dialógicos e que coloquem em cena os atravessamentos que formatam

nossa relação com usuários pode fazer-inventar formas de derrubar o modo como enxergamos

os usuários e como eles também se enxergam.

Isso me remete a uma discussão num Curso de Redução de Danos, no qual era

coordenadora técnica, que agente de segurança que ali participava da formação, num momento

de muito incômodo frente às falas constantes de uma polícia que efetivava ações violentas a

todo momento, nos fez refletir como somos juntos muitas vezes a presentificação dessa rede

violenta.

vocês sempre chamam os ditos trogloditas quando acham que estão diante de um risco

para vocês mesmos...os trogloditas são os que são também chamados pela população

para ‘dar jeito’ aos que sujam as ruas...o troglodita sou eu que sempre sou chamado

para conter os possíveis riscos e depois sou chamado para dizer porque tenho ações

violentas!! Entendam..quando se trata de violência e risco, as forças de segurança

utilizam-se de mais violência e vocês também clamam muita vezes por isso (Diário

de campo – Santos/SP).

Abro então novas perguntas: Não precisaríamos fazer uma análise constante dos

enunciados efetivamente operacionalizados nas práticas de cuidado? Não precisamos nos despir

das concepções ‘biomedicaspsis’, que produzem representações pseudocientíficas sobre as

vidas que acompanhamos, para criar concepções que façam ressonância efetiva com a vida que

os usuários de drogas produzem? Não precisamos de radicalidade na implementação de

enunciados que se contrapõem a ordem discursiva hegemônica?

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68 Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Cartilha “Crack

É Possível Vencer: Enfrentar O Crack. Compromisso De Todos”. 2013. [acesso 2018 Abril 27].

Disponível em: http://conselheiros6.nute.ufsc.br/wp-

content/uploads/avea/conteudo/cartilha_crack,_ae_possivel_vencer.pdf

69 Souza TP. Estado e Sujeito: a saúde entre a macro e a micropolítica de drogas. São Paulo:

Hucitec, 2018.

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70 Brasil. CONAD. Resolução nº 01 de 19 de agosto de 2015. Regulamenta, no âmbito do

Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD, as entidades que realizam o

acolhimento de pessoas, em caráter voluntário, com problemas associados ao uso nocivo ou

dependência de substância psicoativa, caracterizadas como comunidades terapêuticas.

71 Foucault M. Segurança, Território, População. (1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

72 Frúgoli HJr, Spaggiari E. Da “cracolândia” aos nóias: percursos etnográficos no bairro da

Luz. Ponto Urbe. 2010; 4(6): p?

73 Gragnani J. Dória extinguirá programa, mas manterá ações anticrack de Haddad. Coluna

Cotidiano, Folha de São Paulo. [acesso 2018 Dezembro 17]. Disponível em

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1825546-doria-extinguira-programa-mas-

mantera-acoes-anticrack-de-haddad.shtml

74 Pesaro F. Por uma vida sem drogas – Conheça o Programa Recomeço. Relatório apresentado

no 4º Congresso Internacional Freemind, 2016. [acesso 2018 Dezembro 16] Disponível em

http://www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/1675.pdf

75 São Paulo. Estado. Decreto nº 61.674, de 02 de dezembro de 2015. Reorganiza o Programa

Estadual de Enfrentamento ao Crack - Programa Recomeço", que passa a denominar-se

"Programa Estadual de Políticas sobre Drogas - Programa Recomeço: uma vida sem drogas.

76 São Paulo. Estado. Decreto nº 55.067, de 28 de abril de 2014. Regulamenta o Programa De

Braços Abertos e altera o Decreto nº 44.484, de 10 de março de 2004, que regulamenta o

Programa Operação Trabalho.

77 São Paulo. Estado. Decreto nº 59.663 de 25 de outubro de 2013. Cria, na Coordenadoria de

Serviços de Saúde, da Secretaria da Saúde, a Unidade Recomeço Helvétia e dá providências

correlatas.

78 Fromm D. O "fim da Cracolândia”: etnografia de uma aporia urbana. Dissertação (Mestrado

em Antropologia Social) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas, Campinas, 2017

79 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 130, de 23 de janeiro de 2012. Redefine o Centro de

Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas 24 h (CAPS AD III) e os respectivos incentivos

financeiros.

80 A Craco Resiste. Agressões e violências na Cracolândia. 30 p. 2017. [acesso 2018 Dezembro

16]. Disponível em http://www.ctviva.com.br/blog/wp-

content/uploads/2017/05/Agress%C3%B5es-e-Viola%C3%A7%C3%B5es-na-

Cracol%C3%A2ndia.pdf.

81 Ferreira GG. Conservadorismo, fortalecimento da extrema-direita e a agenda da diversidade

sexual e de gênero no Brasil contemporâneo. Lutas Sociais. 2016; 20(36): 166-178.

82 Brasil. Ministério da Saúde. 2019. Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações

Programáticas Estratégicas Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Nota

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Técnica nº 11/2019. Assunto: Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de

Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas

83 IPEA. Nota Técnica nº21. Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Brasília:

Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, IPEA, março de

2017.

84 Brasil. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de agosto de

2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de

dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706,

de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de dezembro de 1996,

e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621,

de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o Sistema Nacional

de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de

drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas.

85 Brasil. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas.

86 Brasil. Ministério da Cidadania. Portaria nº 562, de 19 de março de 2019. Trata do plano de

fiscalização e monitoramento das entidades por servidores da Secretaria de Cuidados e

Prevenção às Drogas (Senapred).

87 Petuco DRS. O cuidado de pessoas que usam drogas: contribuições de uma Redução de

Danos fecundada pela Educação Popular. IN: V Seminário Nacional Psicologia e Políticas

Públicas - Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas / Conselho Federal de Psicologia –

Brasília; 2011: 175-181.

88 Barros RB, Passos E. Clínica, política e as modulações do capitalismo. Lugar Comum. 2004;

19 (20): 159-171.

89 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade

contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E (Orgs.). Leituras de novas tecnologias e

saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009: 29-74.

90 Fonseca TMG, Kirst PG. O desejo de mundo: um olhar sobre a clínica. Psicologia &

Sociedade. 2004; 16(3): 29-34.

91 Oliveira JAM, Passos E. Novos perigos pós-desospitalização: controle a céu aberto nas

práticas de atenção em saúde mental. In: Carvalho SR, Ferigato SH, Barros ME. Conexões:

saúde coletiva e políticas da subjetividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2009: 322-41.

92 Cerqueira Gomes MP et al. Acesso às multiplicidades do cuidado como enfrentamento das

barreiras em saúde mental: Histórias de R. In: Pesquisadores IN-MUNDO: um estudo da

produção do acesso e barreira em saúde mental / Orgs. Gomes MPC, Merhy EE. - Porto Alegre:

Rede UNIDA, 2014. 176 p. : il. - (Coleção Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde).

93 Torcato CEM. A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República. 2016.

371f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo, São Paulo, 2016.

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94 Alcoólicos Anônimos (AA). Os doze passos e as doze tradições. São Paulo: JUNAAB –

Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos, 2001.

95 Foucault M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-

1979) (Coleção Tópicos). São Paulo: Martins Fonte, 2008.

96 Pena RS, Carvalho SR. Eu bebo sim e estou vivendo! O álcool como um agregador de afetos.

In: Carvalho SR, Barros ME, Ferigato S. Conexões: saúde coletiva e políticas da subjetividade.

São Paulo: Hucitec, 2009.

97 Rui T. Nas Tramas do Crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

98 Debord G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

99 Brasil. Casa Civil. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Código Penal dos Estados

Unidos Do Brazil.

100 Brasil. SENAD. Decreto Presidencial nº 4.345 de 26 de agosto de 2002.

101 Basaglia F. Corpo e instituição - considerações antropológicas e psicopatológicas em

Psiquiatria institucional. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em Saúde Mental

e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

102 Teixeira MB, Ramoa ML, Engstrom E, Ribeiro JM. Tensões paradigmáticas nas políticas

públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciênc. saúde

coletiva [online]. 2017; 22(5): 1455-1466.

103 Deleuze G, Guattari, F. O anti-édipo. Tradução de Luis B. L. Orlandi. – São Paulo: Ed. 34,

2010.

104 Franco TB, Merhy EE. O reconhecimento de uma produção subjetiva do cuidado. In:

______. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo:

Hucitec, 2013.

105 Torre EHG, Amarante P. Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da

saúde mental. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2001; 6(1): 73-85.

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ANEXO: Parecer CEP/UNICAMP

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