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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
PATRÍCIA CARVALHO SILVA
CUIDADO AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS:
RACIONALIDADES POLÍTICAS, PROGRAMAS E TECNOLOGIAS
CARE FOR ALCOHOL AND OTHER DRUG USERS: POLICY
RATIONALITIES, PROGRAMS AND TECHNOLOGIES
CAMPINAS
2019
PATRÍCIA CARVALHO SILVA
CUIDADO AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS:
RACIONALIDADES POLÍTICAS, PROGRAMAS E TECNOLOGIAS
CARE FOR ALCOHOL AND OTHER DRUG USERS: POLICY
RATIONALITIES, PROGRAMS AND TECHNOLOGIES
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva:
Políticas e Gestão em Saúde, na área de Política,
Gestão e Planejamento
Dissertation presented to the Faculty of Medical
Sciences of the State University of Campinas as part of
the requirements required to obtain the title of Master in
Collective health: Policies and health management, in
the area of Policy, Management and Planning
ORIENTADOR: Prof. Dr. Sérgio Resende Carvalho
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA
ALUNA PATRÍCIA CARVALHO SILVA, E ORIENTADO PELO
PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.
CAMPINAS
2019
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE
MESTRADO
PATRÍCIA CARVALHO SILVA
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO
MEMBROS:
1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO
2. PROF. DR. RICARDO SPARAPAN PENA
3. PROF. DR. SILVIO YASUI
Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em Saúde Coletiva:
Políticas e Gestão em Saúde da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca
examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.
Data: DATA DA DEFESA
[22/08/2019]
Da calma e do silêncio
(Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”)
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
AGRADECIMENTOS
Começo agradecendo aos encontros, sejam eles com a música, a poesia, os livros ou as
pessoas, pois produziram em mim a possibilidade de continuar essa ‘andança’ na vida e
pesquisa, compondo-a com muitos afetos e que sem eles não chegaria até o final.
À minha família que, sempre esteve comigo, em cada passo, me relembrando que um
território firme existia sob meus pés e assim foram primordiais na vivência de poder construir
outros territórios em minha vida e principalmente esse trabalho. Papito Roberto e Mãezona
Helena vocês me dão segurança em minhas empreitadas; irmã-mãe Simone você me faz
acreditar que sempre podemos mais; cunhado Sandro você me faz olhar outros pontos de vista;
sobrinhos Vitor e Júlia a juventude de vocês me coloca a responsabilidade de apostar numa
sociedade melhor. Obrigada!
Aos amigos, que de tão múltiplos constroem em minha vida uma colcha bonita de
retalhos coloridos, muito OBRIGADA! Fernanda e Anays que me apoiam a tantos anos a ser a
mulher que eu quero e posso! Maísa, Nana e Tamy nessa trajetória louca de nos construirmos
coletivamente, desde a graduação, vocês me inspiram com a força, determinação e coragem de
vocês! Ao Tiago, que sempre esteve junto reafirmando que nossa parceria nos habita e nos
fortalece! Às manas mentaleiras-guerreiras Camila, Andressa, Juliana, Thais, CarUlina,
Dayane, Juliana, Naira, Andréa que em tantos territórios que habitei me ensinaram que pisar
em terras mentaleiras é colocar-se juntas numa rede que aposta na flexibilidade e movimento,
mas que se coloca dura caso algo venha tentar romper! A rede de mulheres incríveis que
construí em Santos, Lalá, May, Pam, Carlota, Eve, Isys, Dani, Ana Júlia, Tahamy, Bia, Naiara
e Carol (que ajudou meu corpinho continuar vivo), vocês foram primordiais para eu levantar e
olhar o horizonte! À Febah, parceira de Lar, que dividindo as dores, comidas, vinhos, raivas,
choros e risos do cotidiano aguentou cada momento e me apoiou! À Lu e Gabi, mestras e
amigas, vocês são a reafirmação cotidiana de que militância é realizada através do verbo
LUTAR, obrigada pelos empréstimos de saber e afeto! A meus companheiros do Grupo de
Pesquisa, Estudo e Extensão Div3rso, Lena, Iza, Otaviano, Danilo, Ana Maria, Sr. Jardim,
Ângelo vocês me ensinam que cuidar é estar junto em todas as diferenças que nos compõem!
Ao mais novo companheiro de vida Breno, que na reta final veio trazer música, cor, afeto e
claro, muitos ‘memes’, obrigada por entrar em minha vida e fazer dela um estado de poesia!
Aos meus companheiros do Grupo Conexões, os quais mesmo em minha distância, se
fizeram presentes no ato de escrever e me fazer enquanto pesquisadora!
Aos professores e colegas de profissão Silvio Yasui e Ricardo Pena, que estiveram
comigo na qualificação para além de avaliadores do percurso até então produzido, como
intercessores para essa produção final. Muito obrigada por colocarem-se em parceria.
Ao meu orientador, muitas vezes desorientador, Sérgio Carvalho que acreditou nesta
mulher, trabalhadora, pesquisadora, maluca! Você tornou-se um guia para além da produção
desta pesquisa, apoiando o ato de me experimentar na vida como uma constante criação de mim
mesma. Obrigada pelo apoio, paciência, atenção, dedicação!
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar o cuidado ofertado aos usuários de álcool e outras
drogas, com especial interesse nas racionalidades existentes nos elementos governamentais que
fundamentam as tecnologias e práticas de cuidado e a produção de modos de subjetivação. Para
tanto, enquanto uma pesquisa qualitativa influenciada por estudos genealógicos e cartográficos,
principalmente de Michel Foucault e Nikolas Rose e interlocutores brasileiros que tem
dialogado com estudos pós-estruturalistas e com o campo da saúde coletiva, apoiamo-nos nas
vivências da profissional, autora deste trabalho, descritas a partir dos diários de campo,
reportagens e fotos, numa articulação com ferramentas conceituais que auxiliam a lançar luz
aos “burburinhos” evidenciados na prática cotidiana.
Palavras-chave: Políticas públicas e saúde, saúde mental, psicologia clínica, pesquisa
qualitativa, relações pesquisador-sujeito.
ABSTRACT
This research aims to analyze the care offered to users of alcohol and other drugs, with special
interest in the rationalities existing in governmental elements that underlie care technologies
and practices and the production of modes of subjectivation. Therefore, while a qualitative
research influenced by genealogical and cartographic studies, mainly by Michel Foucault and
Nikolas Rose and Brazilian interlocutors who have dialogued with post-structuralist studies and
the field of collective health, we rely on the experiences of the professional, author of this work,
described from the field diaries, reports and photos, is articulated with conceptual tools that
help to shed light on the "buzz" evidenced in daily practice.
Keywords: Public politics and health, mental health, clinical psychology, qualitative research,
researcher-subject relations.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Material da Campanha do Ministério da Saúde sobre o uso de crack, 2009. .......... 46
Figura 2 - Campanha do Ministério da Justiça sobre o crack, 2010. ........................................ 47
Figura 3 - Unidade Recomeço em São Paulo/SP, 2013 ........................................................... 53
Figura 4 - espaço de convivência na Rua Helvétia do DBA .................................................... 55
Figura 5 - Desocupação da 'cracolândia', 2017 ........................................................................ 57
Figura 6 - Ação de desocupação na cracolândia, 2017............................................................. 57
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AD – álcool e outras drogas
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CAPS-ad – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas
CT – Comunidades Terapêuticas
DBA – De Braços Abertos
DENARC - Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico
DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis
Fundação CASA – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente
HIV – Virus da Imunodeficiência Humana
IRHA – Associação Internacional de Redução de Danos
IST – Infecções Sexualmente Transmissíveis
OSS – Organização Social de Saúde
PNAD – Política Nacional Antidrogas
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
RAPS – Rede de Atenção Psicossocial
RD – Redução de Danos
SENAD – Secretaria Nacional de Álcool e outras Drogas
SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
UA – Unidade de Acolhimento
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1: INFLUÊNCIAS ÉTICAS, ESTÉTICAS E POLÍTICAS ........................................... 17
1.1. A Escrita como ato de produção de si .............................................................................. 21
1.2. Operadores Conceituais .................................................................................................... 23
Poder, Governo e Racionalidades Políticas ................................................................................................... 23
Modos de Subjetivação........................................................................................................................................... 27
CAPÍTULO 2 - POLÍTICAS E PROGRAMAS SOBRE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: UMA
REDE DISCURSIVA EM TENSÃO .......................................................................................................... 32
2.1. Entre o Crime, a Moral e a Doença: uma aliança de governo de condutas ................... 32
2.2. A Redução de Danos: estratégia de combate ao discurso hegemônico sobre
drogas? ..................................................................................................................................... 39
2.3. Entre os ‘Braços Abertos’ e a ‘Redenção’ ....................................................................... 51
2.4. (Re)Atualizações .............................................................................................................. 58
CAPÍTULO 3: O CUIDADO EM SUAS DISTINTAS PERSPECTIVAS ........................................ 63
3.1. A moralidade e a doença .............................................................................................. 65
3.2 A Rua e os Anormais: O Jogo do Tudo Pode ................................................................... 70
3.3. Práticas de Resistência.................................................................................................. 75
CONVERSAÇÕES FINAIS, OU INICIAIS? ............................................................................................ 82
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................. 88
13
APRESENTAÇÃO
Considerando minha trajetória profissional no campo de políticas e práticas de
cuidado a usuários de álcool e outras drogas e a grande relevância de tal discussão frente ao
momento político brasileiro, principalmente no que diz respeito aos modelos e práticas de
cuidado, busquei analisar o cuidado ofertado aos usuários de álcool e outras drogas (AD),
adentrando nas relações de poder-saber-verdade que se apresentavam como campos de tensões.
Tive como objetivo, deste modo, analisar o cuidado ofertado aos usuários AD, com
especial interesse nas racionalidades existentes nos elementos governamentais e suas interfaces
com as tecnologias, práticas de cuidado e produção de modos de subjetivação. Nesse sentido,
lancei luz às redes discursivas que se formavam em torno do problema DROGA1 e a
consequente enunciação de determinados sujeitos intitulados como “drogados”.
Para tanto, propus um caminho investigativo numa perspectiva que se insere no
campo das pesquisas qualitativas, aqui influenciada pelos estudos genealógicos e cartográficos
de autores como: Emerson Merhy, Nikolas Rose, Michel Foucault, Sérgio Carvalho, Margareth
Rago, Suely Rolnik, entre outros, apoiando-me em minhas vivências profissionais, aqui
evidenciadas a partir dos diários de campo, lembranças, reportagens e fotos. Estas foram
articuladas com ferramentas conceituais que auxiliaram lançar luz aos “burburinhos”
evidenciados na prática cotidiana, “O objetivo é o de mapear, nestas produções biopolíticas, os
elementos que implicam na produção de um sujeito cidadão, como alvo das ações de governo”
1 (p.77).
Esta pesquisa insere-se no campo de pesquisas qualitativas, que, em suas diferentes
vertentes, apresentam discursos construídos que as diferenciam como positivas, pós-positivas e
pós-estruturais, mas, que se conectam no fato de terem preocupação com a complexidade
histórica do campo, do contexto do objeto pesquisado e a experiência vivida, tencionando “a
natureza socialmente construída da realidade, a relação íntima entre o pesquisador e o que é
estudado, os constrangimentos situacionais que formatam a pesquisa (e enfatizando) a natureza
intrinsecamente valorativa da pesquisa” 2 (p.10).
1 Para evitar interpretações dúbias ou ambivalentes, ‘drogas’, neste trabalho, foi empregado no sentido moderno
do termo, ou seja, o adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo a qual, ‘droga’ é “qualquer
substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas
produzindo alterações em seu funcionamento” 3.
14
No campo da Saúde Coletiva, visualizam-se linhas de pesquisa que, de um lado são
compostas por estudos que se utilizam de metodologias investigativas que fundamentam de
modo claro a separação entre sujeito do conhecimento e seu objeto de estudo, e, de outro, não
hegemônico, investigações que reconhecem a proximidade na relação entre sujeito e objeto,
produzindo técnicas de pesquisa que transformam o próprio ato de
trabalhar/agir/militar/conhecer como problema a ser investigado4.
Ou seja, traz antes de qualquer situação epistêmica a sua implicação, criando uma
situação não típica como as investigações a que estamos mais envolvidos; pois, agora,
o sujeito que ambiciona ser epistêmico está explicitamente subsumido na sua
implicação, na sua forma desejante de apostar no agir no mundo de modo militante,
não se reduzindo ao sujeito subsumido ao poder e à lógica ideológica, como o sujeito
epistêmico imaginado pelos procedimentos científicos contemporâneos4 (p.5).
Embasei-me nos seguintes questionamentos: quais racionalidades respaldavam as
distintas construções de políticas, programas e tecnologias no campo AD? Que “modelos” de
sujeitos apareciam? Quais as implicações dessas racionalidades no que dizia respeito às
práticas de cuidado?
Tais indagações em diálogo com operadores conceituais que lançam luz às relações
de poder-saber-verdade na sociedade, principalmente os estudos da biopolítica e
governamentalidade, buscaram compreender a produção de políticas públicas no âmbito do
cuidado às pessoas em uso problemático de drogas e como tais eram atravessadas por
determinadas perspectivas que tinham relação na produção de determinados modos-sujeitos.
O ponto de partida da construção do objeto de pesquisa foi sendo produzido a partir
da cartografia de minhas experiências profissionais, nas quais um certo desassossego sempre
esteve presente. Muitas vezes me vi defronte de situações que me faziam refletir como as
intervenções produzidas estavam de algum modo alinhadas aos rumos existentes nas discussões
macropolíticas, o que, no ‘miúdo’ era operacionalizado frente a formulações de discursos de
saber-verdade que as circunscreviam. Desde a minha primeira experiência como psicóloga de
um Centro de Atendimento a Adolescentes privados de liberdade (Fundação CASA) até o
momento da escrita deste texto, percebi que os discursos e práticas se entremeavam entre
aquelas que operavam na perspectiva de interdição do desejo do sujeito e assim, da objetivação
de um modo sujeito pautada na noção que este é tomado por seu impulso compulsivo sobre a
droga e aquelas que se apoiavam sob a perspectiva de acompanhar os movimentos de desejo do
sujeito, no qual o sujeito era tomado enquanto pessoa de direito e, assim, com autonomia para
fazer as escolhas. Ressalto, de antemão, que tais perspectivas não apareceram em campos
sempre contrapostos, ao contrário, se intercruzaram nas produções cotidianas.
15
Através do entrelaçar de diferentes fontes – diário de campo, memórias, imagens,
reportagens, levantamento teórico – foi-se costurando os meus “andares”, compostos pela
função de psicóloga de uma Fundação CASA e de um Centro de Atenção Psicossocial – álcool
e outras drogas (CAPS-ad); pela experiência como gestora na Coordenação da Linha de
Cuidado de Saúde Mental de uma Organização Social de Saúde (OSS) no município de São
Paulo/SP e nos desafios vivenciados enquanto Coordenadora de Saúde Mental do município de
Santos/SP e, também, na experiência como Coordenadora Técnica de um projeto de formação
da rede de atenção a populações vulneráveis. Além disso, enquanto militante da Luta
Antimaniconial, estive em distintos locais de discussões em torno do cuidado a usuários de
álcool e outras drogas que evidenciavam distintos arranjos – em constante tensão – no que dizia
respeito às ofertas de cuidado.
Apoiei-me também nas discussões do grupo de pesquisa “Conexões: Políticas de
Subjetividade e Saúde Coletiva” do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas/Unicamp, uma vez que novas problematizações e ferramentas de análise foram
construídas a partir de estudos desse coletivo, que abriram campos de possibilidades no olhar
dos processos vivenciados no cotidiano do trabalho, principalmente no que diz respeito às
discussões sobre governo de conduta, racionalidades políticas e práticas de liberdade, que me
instigaram na formação de uma composição entre trabalhadora, gestora, militante e
pesquisadora.
Abriu-se, assim, um campo de problematizações e diálogos a partir da análise das
distintas formas de relação entre o Estado e o controle da população, devido à necessidade de
respostas políticas a emergências históricas e sociais, o que, para mim, pareciam ser de suma
importância à afirmação de que, para percorrer as políticas e programas públicos direcionados
à população usuária de drogas, no qual, aqui, me refiro diretamente àqueles entendidos como
‘vidas que valem menos’, precisamos nos utilizar da seguinte lente
Mediante uma análise das intricadas interdependências entre racionalidades políticas
e tecnologias governamentais, podemos começar a compreender as múltiplas e
delicadas redes de comunicação que conectam as vidas dos indivíduos, grupos e
organizações às aspirações de autoridades nas avançadas democracias liberais da
atualidade5 (p.72).
Tal apontamento se conecta ao fato desta pesquisa ter sido traçada a partir dos
desassossegos vividos em minha trajetória profissional, ou seja, enquanto profissional da área
‘psi’ e trabalhadora/gestora. Portanto, o objeto de pesquisa tem estrita relação com os afetos
sentidos em meu corpo que foram disparadores para análises e problematizações de como as
16
políticas e programas eram e são atualmente direcionados a partir de múltiplas concepções
sobre sujeito-saúde-doença-cuidado.
Traço, desse modo, nos capítulos que se seguem o seguinte:
No capítulo 1, me debrucei sobre as influências éticas, estéticas e políticas que
serviram como um mapa de composição que utilizei para traçar esta pesquisa. Nesse capítulo
não definimos tal postura como metodologia, visto que não existia a pretensão de construir um
caminho que se objetivasse chegar a um determinado lugar de verdade. Apoiada em estudos
que puderam construir um terreno de problematizações críticas pós-estruturalistas, o campo de
discussão foi construído numa perspectiva de pesquisa em ressonância com os estudos
cartográficos e genealógicos.
No capítulo 2, percorri as políticas e programas que, a partir da minha experiência,
tornaram-se bússolas para olhar as tensões no campo discursivo das políticas de drogas e
também implicaram em disputas vividas na formatação de determinadas tecnologias e práticas
de cuidado ofertados. Para tanto, utilizamos da compreensão sobre Racionalidades Políticas,
Programas e Tecnologias, trazidas por Nikolas Rose e Peter Miller.
Já no capítulo 3, busquei analisar, a partir das racionalidades enunciadas no capítulo
2, as práticas que foram produzidas em minha trajetória, de modo a discutir as normatividades
que encontrei e que interromperam fluxos de produção de um cuidado no campo da reabilitação
psicossocial e aqueles que se produziram enquanto práticas de liberdade e cuidado de si.
E, finalmente, nas ‘Conversações Finais, ou Iniciais?’, foco no diálogo entre a
produção de subjetividades formatadas num espectro que aqui chamei de ‘sujeitos-drogados’,
que em grande medida apresenta-se como modelos subjetivos hegemônicos na construção de
políticas, programas e tecnologias de cuidado no campo AD e que assim com olhar atento as
formulações discursivas tentei construir, conforme Gallo “possíveis resistências à produção
subjetiva biopolítica contemporânea” 1 (p.78).
*A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UNICAMP) pelo parecer nº
2.563.081, de 26 de março de 2018.
17
CAPÍTULO 1: INFLUÊNCIAS ÉTICAS, ESTÉTICAS E POLÍTICAS
“No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho” 6.
A pedra no caminho simboliza as perguntas, indagações e inquietações que, no
encontro com esta pesquisa, tornaram-se guias que indicaram a entrada de documentos e
ferramentas conceituais de ampliação das discussões propostas. Não me pautei, para tanto, na
circunscrição de um caminho metodológico que objetivasse o encontro de respostas únicas,
entendendo que o problema, aqui trazido, partiu da ideia de que as práticas de cuidado do campo
AD, vivenciadas em meu percurso profissional, estavam inscritas em construções sócio
históricas e assim poderiam ser analisadas por diferentes pontos de vista. Nesse sentido,
[...] é possível dizer que debruçar-se sobre um serviço de saúde como uma arena de (e
em) disputas , sob a ótica da informação, é abrir- se para a produção da informação
como uma ferramenta analisadora que pode nos auxiliar para agir nos interstícios dos
processos instituídos, ao mostrar os “ruídos” do mundo dos sentidos e sem sentidos
sobre o das significações permitindo, a partir deste próprio mundo (o das
significações), perceber os ruídos “espontâneos” e “naturais” de situações cotidianas
singulares, ou mesmo os ruídos “provocados”, com pretensão analisadora, que podem
possibilitar possíveis aberturas para processos mais públicos, partilháveis entre os
operadores do cotidiano e nos quais se possa, através de uma certa tecnologia, atuar
conformando novos sentidos para o serviço, enquanto uma certa arena institucional4
(p.15-16).
Nesse aspecto, a utilização de ferramentas investigativas pautadas nos estudos
cartográficos e genealógicos puderam construir uma ‘maquinaria-bússola’ para percorrer as
políticas no campo AD em seus interstícios. A genealogia e cartografia não foram tomadas
enquanto um método, já que não se propuseram o desvelamento de verdades, ou a representação
de objetos e interpretação da realidade, mas sim como uma caixa de ferramentas que serviram,
fizeram funcionar e dialogaram com o campo de pesquisa produzindo, criando e recriando o
texto e a mim mesma no ato de tessitura da escrita. Desse modo,
[...] a relação que se estabelece entre os termos que se intercedem é de interferência,
de intervenção através do atravessamento desestabilizador de um domínio qualquer
(disciplinar, conceitual, artístico, sócio-político, etc.) sobre outro. [...] A relação de
intercessão é uma relação de perturbação, e não de troca de conteúdos. Embarca-se na
onda, ou aproveita-se a potência de diferir do outro para expressar sua própria
diferença7 (p. 153).
O percurso da pesquisa, para tanto, foi se produzindo no entrelaçar de minha
vivência profissional e das “teorias”, estas últimas como feixes de luzes que ampliaram o olhar
frente às tensões, desassossegos e burburinhos encontrados, servindo-me também como
possibilidade de compor novos campos existenciais, (re)criando novos contornos. Tivemos,
18
assim, uma produção cartográfica que apostou na ideia de que “teoria é sempre cartografia” 8
(p.65) e que se fez no acompanhar das paisagens, estas
[...] matérias de qualquer procedência. [...] Tudo o que der língua para os movimentos
do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele
é bem vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por
isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas
e nem só teóricas.
A produção de novas composições em meu corpo de trabalhadora ‘psi’, gestora e
militante se conectou com uma produção acadêmica que funcionou como “uma espécie de
cartografia conceitual cuja matéria-prima são as marcas e que funciona como universo de
referência dos modos de existência que vamos criando” 9 (p.244). Nomeamos, aqui, os modos
de existência como campos de composições de fluxos diversos e que, em determinados
momentos rompem com a composição atual e que, neste desestabilizar acaba por colocar a
necessidade da criação de novos corpos “em nossa existência, em nosso modo de sentir, de
pensar, de agir” 9 (p.242) e geram estranhamentos aos contornos já conhecidos9.
Conforme Rolnik8 o
[...] cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar
e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor
suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de
expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a
passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que
pretende entender. Aliás, "entender", para o cartógrafo, não tem nada a ver com
explicar e muito menos com revelar [...] (p.65).
Em consonância à tal perspectiva, os estudos de Michel Foucault sobre as relações
de poder, principalmente em seus estudos genealógicos que apontam para uma perspectiva não
centralizada num aparato estatal específico, mas, sim, difundido em diversas linhas na
sociedade, foram também uma linha utilizada para a construção atenta da minha prática
cotidiana em consonância aos documentos que foram analisados. As genealogias de Foucault
têm especial interesse nas descontinuidades e rupturas que podem levantar as contingências
existentes no desenvolvimento das práticas e instituições e, assim, têm especial interesse em
[...] marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona;
espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo
história – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno
não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes
cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna,
o momento em que eles não aconteceram [...] 10 (p.55).
A genealogia, enquanto posição ética, com sua perspectiva dinâmica, orientada por
práticas e discursos, apresenta uma dimensão de poder relacionada a produção de subjetividades
19
sendo então perspectiva que analisa “os efeitos centralizadores de poder que são vinculados a
instituições e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de nossa
sociedade” 11 (p.14), no qual o discurso constitui-se enquanto um aparelho político-pedagógico
que se forma por meio de leis, normas, regras, pesquisas, estatísticas e através de um estado
instrumentalizado, conforma determinadas subjetivações e operações no governo dessa
população. Assim, “o método genealógico levanta questões sobre como as práticas, instituições
e categorias atuais vieram a tornar-se o que são12 (p.14.).
Realizou-se, assim, uma crítica, descrição e prescrição de determinadas instituições
e práticas sociais, que nos ajudaram a construir um caminho com foco nos saberes vivenciados
localmente. Minhas questões, já anteriormente apresentadas, basearam-se numa atitude crítica
que colocou em confronto os saberes teóricos, históricos e científicos a partir do
evidenciamento de saberes que aqui chamamos de “subjulgados” 12 (p.37). Os saberes
‘subjulgados’ são saberes que foram excluídos ou desqualificados – eruditos e populares –
sendo os eruditos aqueles saberes teóricos científicos que foram ignorados e o popular os
saberes locais, particulares, regionais que foram desqualificados como saber histórico, sendo
que ambos muitas vezes são encontrados nas vozes daqueles que estão à margem da sociedade.
Tais saberes estão na base da genealogia, que pretende estabelecer um conhecimento histórico
das lutas para o fazer tático dos conhecimentos produzidos através de uma perspectiva não
ortodoxa, indubitavelmente desafiando o status quo. Neste sentido, traçam as influências
históricas que levam às práticas que se atualizam constantemente, tratando-se de uma história
do presente, não para entender o passado mas para entender a contingência de forças que
criaram o presente12.
Para tanto, não nos baseamos numa historicidade específica, recortada em períodos
históricos contínuos e progressivos, mas, sim, através de suas racionalidades e dispositivos que
entrelaçadas produzem modos múltiplos de se relacionar com o problema e que, assim,
produzem uma rede de relações entre as organizações e autoridades5. Deste modo, se existem
relações interdependentes entre os discursos, conteúdos e formas de implementação das
políticas e práticas de cuidado no campo de drogas, visto que são vínculos que produzem e são
produzidos por discursos de verdade, a experiência que fazemos de nós enquanto trabalhadores
e dos próprios usuários são pautados em que noções?
Mais do que traçar relações de causa e consequência das políticas e problemas em
relação à produção de cuidado na vida das pessoas, analisamos a realidade e a produção dos
encontros em variadas dimensões, na busca por uma história que relatasse os diferentes modos
pelos quais os indivíduos se tornam sujeitos13. Interessei-me, assim, pelas forças e práticas que
20
podiam refletir sobre as verdades produzidas em torno do ‘sujeito drogado’ em uma espécie de
relação consigo mesmos14.
Sob tal perspectiva, Foucault nos apresenta que, antes de qualquer coisa, que o
objetivo de seus estudos não foi analisar “o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos
de tal análise. [...] foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os
seres humanos tornam-se sujeitos” 13 (p.231). Sobre esse aspecto, me deparei com a
compreensão de Nikolas Rose sobre a construção de uma genealogia da subjetivação, que
estaria preocupada com o ser humano como ele é pensado, através das práticas e técnicas do
pensamento enquanto uma busca de tornar-se técnico14 (p.35).
Uma genealogia da subjetivação toma essa compreensão individualizada,
interiorizada, totalizada e psicologizada do que significa o ser humano como o local
de um problema histórico e não como a base de uma narrativa histórica. Essa
genealogia tenta descrever as formas pelas quais esse moderno regime do eu emerge
não como o resultado de um processo gradual de esclarecimento, no qual os humanos,
ajudados pelos esforços da ciência, acabam, finalmente, por reconhecer sua verdadeira
natureza, mas a partir de uma série de práticas e processos contingentes e
definitivamente menos refinados e menos dignos. Escrever uma genealogia significa
buscar selecionar as formas pelas quais o eu que funciona como um ideal regulatório
em tantos aspectos de nossas formas contemporâneas de vida14 (p.35 - 36).
Em inversão ao conhecimento da área de psicologia mais hegemônica, partimos
desse modo de que o sujeito, em consonância com os estudos dos autores pós-estruturalistas, é
um constructo social e para tanto buscamos descrever as racionalidades envolvidas na
produção de práticas e técnicas que agem sobre a população usuária de drogas, enquanto
problema norteador desta pesquisa, que sob as lentes dos estudos genealógicos e cartográfico,
conduziram a pesquisa ao encontro com as tecnologias produzidas para governar tal população
e mais ainda, tentar subjetivá-las.
Pautei-me, para tanto, em autores pós-estruturalistas, principalmente por autores
como Emerson Merhy, Nikolas Rose, Michel Foucault, Sérgio Carvalho, Margareth Rago,
Suely Rolnik entre outros, por entender que é “impossível captar totalmente o significado de
uma ação, de um texto ou de um objeto, pois a linguagem é entendida como um sistema instável
de referentes” 15 (p. 663). Desse modo, um conjunto de ferramentas foram utilizadas na tentativa
de possibilitar maior visibilidade ao objeto pesquisado e transformá-lo no próprio ato de
pesquisar16 (p.655).
Tudo isto, nos posiciona frente a um campo de pesquisa-olhar
Ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor
em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um
campo de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o
rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a
partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor, assim como
21
as regras que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto conduzidas e exigidas
pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado
(campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que encarna as marcas
no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este rigor é o de
uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir9 (p.246-247).
1.1. A Escrita como ato de produção de si
(...) correr o risco de abrir a escrita a tudo aquilo a que a prática acadêmica sempre
resistiu, com seu medo das emoções, da sensibilidade, das subjetividades e mesmo
das dúvidas17 (p.14).
Coloquei-me diante de uma pesquisa que se pretendeu fazer no próprio caminho,
caminho, esse, apoiado pelos anos já trilhados enquanto profissional e que me lançou o desejo
de produzir uma escrita sobre os tensionamentos encontrados. Com isso, apostei numa
“experimentação do pensamento – um método não para ser aplicado, mas para ser
experimentado e assumido como atitude” 18 (p.10-11).
Assim, fui me debruçando nos diários de campo e em minhas memórias vivas,
evidenciando as principais legislações, políticas e programas do campo AD que influenciaram,
de algum modo, minhas atuações no cotidiano. Nesse sentido, o levantamento das políticas não
se pretendeu numa lógica de causa e efeito, mas, ao contrário, através da ideia de que é nos
entremeios existentes entre ação profissional, política, formação discursiva e modos de
subjetivação que as racionalidades políticas poderiam ser analisadas. Pautei-me, portanto, na
ideia trazida por Rago17, segundo a qual escrever é inscrever-se, é fazer-se existir publicamente,
como uma necessária ressignificação de um passado pessoal, mas também coletivo, construindo
novas perspectivas. Vale aqui reafirmar, que as experiências subjetivas se inscrevem em marcos
históricos, sociais e políticos e são traduzidas também a partir destes.
As vivências do campo, com suas inquietações e burburinhos, acabaram por expor
discursos e práticas de gestores, trabalhadores e usuários que afetaram as escolhas da pesquisa.
Descrever esses afetos e o cotidiano vivido é de suma importância pela natureza do fenômeno
pesquisado: o uso de drogas, a alta vulnerabilidade social, o cuidado, a produção de
subjetividades, entre outros, sendo o diário de campo uma forma de registro e preservação
dessas vivências.
A escrita não foi aqui feita no plano individual, apesar de utilizar-se da primeira
pessoa, já que funciona como ressonância de muitos que encontrei, sendo, desse modo, uma
composição do que foi e é ser psicóloga, gestora, militante e estudante, que assume um lugar
político em suas atuações e, também, enquanto prática de escrita de si, que aposta no processo
de construção da subjetividade podendo funcionar como um atenuador da solidão19.
22
A escrita de si, compõe-se na antiguidade clássica como uma das dimensões da
‘cultura de si’ ou das ‘artes da existência’, sendo que uma das práticas é dos Hypomnemata,
que são “uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim, eram oferecidos
como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores” 19 (p.133). Esses materiais
não eram pautados numa ideia de escrita íntima, oculta, “mas de captar pelo contrário o já dito,
o que se pôde ouvir ou ler, e isso com uma finalidade de constituição de si” 19 (p. 133). Sobre
os Hypomnemata o referido autor descreve:
[...] não devem, porém, ser entendidos como diários íntimos, ou como aqueles relatos
de experiências espirituais (tentações, lutas, fracassos e vitórias) que poderão ser
encontrados na literatura cristã ulterior. Não constituem uma narrativa de si mesmo;
não têm por objetivo trazer à luz do dia a ‘arcana conscientiae’ cuja confissão – oral
ou escrita – possui valor de purificação. O movimento que visam efetuar é inverso
desse: trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas,
pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler” 19 (p. 131.)
Desse modo, a escrita da pesquisa não é um processo de testemunho ou confissão,
mas um trabalho de reconstrução de mim e das redes de relação viventes, no sentido de explorar
os espaços que foram se abrindo nessa tessitura para produzir um texto que possa ser uma
ferramenta política no presente, recusando-se, assim, a vida em primeiro plano e colocando-me
enquanto “uma contadora de histórias que também dizem respeito a ela de modo essencial” 17
(p.17).
Na escrita de si trata-se de um trabalho de construção subjetiva na experiência da
escrita, em que se abre a possibilidade do devir, de ser outro do que se é, escapando
às formas biopolíticas de produção do indivíduo. Assim, o eu de que se trata não é
uma entidade isolada, mas um campo aberto de forças. Entre o eu e seu contexto não
há propriamente diferença, mas continuidade, já que o indivíduo se auto confirma a
partir da relação com os outros. [...] Nas técnicas de sí, há um movimento ativo de
auto construção de subjetividade a partir das práticas de liberdade[...] aqui trata-se de
assumir o controle da própria vida, tornar-se sujeito de si mesmo pelo trabalho de
reinvenção da subjetividade possibilitado pela escrita de si. Trata-se de tornar-se autor
do próprio script a partir de uma relação específica do indivíduo consigo mesmo17 (p.
52).
O modo de contar-se, como descreve Rolnik8 (p.231), seria algo como “um roteiro,
inventado ao mesmo tempo em que os territórios, as pontes e as passagens que foram sendo
percorridas”. Considerei, desse modo, que, enquanto atora ativa em processos de cuidado a
pessoas que usam drogas e também imbuída de saberes legitimados da ‘psique humana’, não
seria possível desvincular o caminho percorrido do lugar de onde falo, já que a realidade
vivenciada foi sendo atualizada, (re)criada, (re)significada ao longo do percurso e, assim, a
escrita e o trabalho tornaram-se um organizador que se modificou e produziu o conhecimento20.
A experiência, portanto, deixa de ser vista como autenticidade do vivido, como
evidência em si mesma, assim como o discurso deixa de ser considerado como mera
23
abstração conceitual, reflexo da realidade, numa oposição binária que hierarquiza
teoria e prática, pensamento e ação21 (p. 31).
Os conceitos foram trabalhados partindo da ideia de ‘caixa de ferramentas’, ou seja,
entram na análise na medida em que servem, funcionam e que dialogam com o campo de
pesquisa. Assim, nos aprofundamos e mergulhamos nas linhas de nosso interesse; produzindo,
criando e recriando o texto e a nós mesmo no ato da leitura.
No encontro existente no ‘entre’ das vivências e conceitos, construiu-se um “entre
instituintes em busca de um processo de instituição, muito próprio, de um sujeito coletivo novo
que se forma ali em ato no encontro” 4 (p. 28). É partindo dessa formatação inicial que foram
sendo lançados mão de uma revisão da literatura, direcionada para autores que discutem temas
como governo, poder e modos de subjetivação na construção de um mapa das redes de
composição, com suas forças e fluxos, que orientaram as análises das diversas racionalidades
governamentais em disputa, a fim de compreender a configuração do saber, poder e produção
de subjetividade que se faziam e fazem presentes nas políticas, programas e tecnologias de
cuidado dos usuários de drogas.
Articulamos, também, sempre que necessário, textos veiculados em mídias digitais
e/ou impressas, de períodos correspondentes, no sentido de dar maior concretude às discussões
em torno da problemática escolhida. O ato de pesquisa é uma trajetória então que
Criamos não porque queríamos, mas porque fomos forçados. As experiências que
vivemos, as vidas com as quais nos encontramos e os lugares por onde passamos nos
forçaram a propor articulações entre referenciais metodológicas distintos. O empírico
nos impulsionava a criar um caminho metodológico singular22 (p.34).
1.2. Operadores Conceituais
Poder, Governo e Racionalidades Políticas
Fundação CASA, equipamento disciplinar no qual forjado em uma questão social,
padroniza corpos, pensamentos, trejeitos e tudo que puder chegar em nosso
pensamento. Norma, padrões sociais vigentes, apatia, passividade, sistema
punitivo...palavras que não saem da minha cabeça. Mas não são apenas estas que
passam. Os atos de resistência fazem-se presentes todos os dias, desde o sexo e
afetividade até a atos mais violentos contra a instituição. (Diário de Campo –
Fundação CASA).
Eles precisam apanhar as pessoas na armadilha para tê-las submissas e assim poder
usá-las para preparar outras armadilhas, e assim por diante, para transformar pouco a
pouco todo um povo numa imensa organização de delatores23 (p.160).
24
Esse trecho do Diário de campo, referente ao período de atuação na Fundação
CASA, e o trecho do livro de Kundera23, são disparadores, sobre a qual me baseio, a respeito
de como o poder se presentifica nas distintas composições de sociedade, através de instituições,
atores políticos, agentes sociais que exercem função de poder sobre o corpo das pessoas e
coletividades e que necessariamente agem sobre as condutas.
Foucault orienta suas discussões frente à afirmação de que o poder é exercido
através de relações em diversas linhas da sociedade e assim as noções de sujeito também seriam
formatadas através de diferentes práticas, jogos de verdade e poder24. O exercício do poder,
numa gama de alianças entre diversas autoridades, através da implementação de projetos
pautados em racionalidades específicas busca governar e conduzir a vida social e as
subjetividades dos indivíduos. Isso se manifesta tanto sobre a conduta, como sobre as condutas
que supostamente podem vir a existir, ou seja, os possíveis riscos e virtualidades. Tal sentido,
presente nos estudos de Michel Foucault, afirma o caráter produtivo do poder que, para além
de sua função repressora, fabrica prazer, formas de conhecer, discursos e as mais variadas
formas de viver a vida25. Isso se alinha aos conceitos de governo e mentalidade ou racionalidade
para embasar os estudos, os quais o autor denominou como ‘governamentalidade’, o que parte
da perspectiva de que as tecnologias e práticas de poder – muitas vezes consideradas menores
– relacionando-as às múltiplas formas de pensar e agir, criam uma composição de mecanismos
e dispositivos que produzem o governo da vida cotidiana – economia, família, religião, escola,
serviços de saúde, mídia, entre outros.
O governo é a matriz historicamente construída dentro da qual formulamos todos
aqueles sonhos, esquemas, estratégias e manobras de autoridade que buscam modelar
a conduta dos outros em direções almejadas, influenciando a vontade deles, suas
circunstâncias e seu ambiente. Em relação a essa rede de governo é que formas de
governo especificamente políticas no ocidente moderno definem-se, delimitam-se e
narram a si mesmas5 (p.72).
O controle exercido pelas instituições na regulação das condutas do ser humano e
de sua docilização, por meio de técnicas de coerção e dominação, foram sendo complexificadas
através da criação de tecnologias de governo que atuassem como forças disseminadas no
território para além do domínio político, mas também através da família, economia, mercado e
cidadania livre, ou seja, como forma de intervir para uma utilização adequada da autonomia do
sujeito5.
Há, portanto, um deslocamento do olhar, já que para Foucault mesmo as instituições
disciplinares26, acabam utilizando tecnologias, segundo o autor, ‘tecnologias de si’, sobre as
quais a constituição da subjetividade não se dá apenas na tentativa de se controlar a conduta do
25
sujeito, mas também na relação do sujeito consigo mesmo e sua liberdade, implicando na
construção e reflexão acerca da verdade sobre si, isto é, nas tecnologias do eu24.
As técnicas de si não operam nem sobre os jogos de poder, nem sobre as relações de
saber, nem sobre as determinações sociais, mas agem diretamente sobre essa relação
que o sujeito estabelece consigo mesmo enquanto vive e age1 (p. 80).
Temos assim um duplo sentido para o termo ‘governamentalidade’. No primeiro,
pensam-se as formas de racionalidade dos Estado e suas técnicas de governo, e, no segundo,
como “técnicas de dominação exercidas sobre os outros em relação direta com as técnicas de
si, isto é, as relações do sujeito consigo mesmo” 27 (p. 376), sendo este último a “modalidade
que possibilitaria a articulação de práticas de resistência” 27 (p.376). É nessa dupla intersecção
dos sentidos de ‘governamentalidade’, que acabo por buscar e me encontrar com as políticas e
programas, nas quais foram produzidas e produziram certas racionalidades pautadas em
determinadas verdades científicas-jurídicas e desse modo que podemos encontrar brechas
cotidianas no que diz respeito a práticas de resistência.
A dinâmica de poder, então, veio intervir sobre a ‘bios’, quer dizer, sobre “a vida
qualificável, a vida com seus acidentes, [...] o curso da existência, mas levando em conta o fato
de esse curso estar indissociavelmente ligado à possibilidade de transformá-lo, de direcioná-lo
neste ou naquele sentido” 10 (p. 33). Temos, assim, uma rede de poder que se exerce como uma
linha comum e legitimada de estratégias e tecnologias de governo da conduta e práticas de
resistência, que para além do controle através do corpo individual, faz-se através da invenção
de modos de vida considerados humanos. Temos, na sociedade liberal, a conceituação de
indivíduo pautada na maximização de sua saúde como norma a ser alcançada e assim a
necessidade de edificar estratégias de gerenciamento daqueles que não estão incluídos nessa
norma. Conforme Foucault25, a biopolítica designa um modelo de poder que transforma a vida
em um domínio calculável utilizando-se da integração de técnicas que dominem e gerem
aquelas vidas que escapam a todo momento.
Foucault caracteriza a biopolítica como uma nova tática de exercício do poder, que
pôde emergir com a consolidação do poder disciplinar. Na medida em que este último
era uma tática individualizante, uma vez que se dirigia aos corpos dos indivíduos, o
biopoder será uma tática dirigida ao controle de grupos de indivíduos, dirigido a uma
população; será uma tecnologia de poder massificante. Por outro lado, se o biopoder
se diferenciava do poder disciplinar ao dirigir-se a conjuntos populacionais e não a
indivíduos, ele se diferenciava também das táticas de soberania, pois se o poder
soberano se caracterizava por “deixar viver e fazer morrer” os súditos, o biopoder
consistirá em “fazer viver e deixar morrer”, constituindo-se num poder sobre a vida
das populações, destinado a preservá-la27 (p.374).
26
Através do trabalho realizado por Rose e Miller5, acerca do governo das condutas
e administração da vida na atualidade,
As problemáticas de governo podem ser analisadas, antes de mais nada, em termos de
suas racionalidades políticas, os campos discursivos móveis dentro dos quais o
exercício do poder é conceituado, as justificativas morais para modos particulares de
exercício do poder por parte de diversas autoridades; normas de formas, objetos e
limites apropriados da política, e concepções da adequada distribuição de tais tarefas
entre os setores seculares, espiritual, militar e familiar5 (p.72).
As racionalidades políticas são, desse modo, um conjunto de valores, perspectivas
e discursos que tornam possível uma realidade ser pensada de maneira a ser programada. Não
que elas sejam definidas por um sistema fechado e sistemático, mas através de certas
regularidades que embasam a construção de políticas e programas de governo, que com a
função de tornar governável algumas questões problemas, criam uma série de
instrumentos. Pensar as políticas e programas de drogas no âmbito do governo das condutas é
assim
[...] por um lado, indicar os nexos intrínsecos entre um modo de representar e conhecer
um fenômeno, e de outro, um modo de agir sobre ele, de modo a transformá-lo. Com
efeito, os problemas não representavam meramente a si mesmos no pensamento – eles
precisavam tornar-se pensáveis de maneira tal a serem praticáveis e operáveis" 5
(p.27).
Tal discussão, que é caracterizada com uma produção de coisas (ação, discurso,
moral, políticas) sobre uma determinada categoria, cujos componentes apoiam a análise do
campo das políticas sobre drogas frente à construção de um mapa, no percorrer de terras
desconhecidas e assinalamento das diferentes linhas de composição sobre tal problemática. A
investigação em torno das racionalidades políticas (e programáticas) e das tecnologias (e,
também, estratégias, técnicas, arranjos e dispositivos) remete, necessariamente, à análise do
papel dos expertos (e, destacadamente, de gestores e trabalhadores da saúde) na implementação
de políticas. A partir de seus saberes socialmente reconhecidos, os profissionais das distintas
áreas sociais ajustam diversas tecnologias, técnicas e procedimentos que são objeto da ação
governamental.
Nesse sentido, o modelo biopolítico de governo da vida e das populações tem aporte
através do conhecimento/saber como lugar central nas atividades de governo. Refiro-me aqui a
um conjunto de pessoas, teorias, projetos, experimentos, técnicas que são intimamente ligados
ao governo, chamados por Rose e Miller5 de ‘expertise’, ou autoridades de saber a respeito do
problema a ser governado.
Afirmamos que o governo está intrinsecamente ligado às atividades de expertise, cujo
papel não é o de tecer uma onipresente teia de “controle social”, mas pôr em práticas
27
tentativas variadas na administração calculada de diversos aspectos de conduta [...] 5
(p.72).
Foi nos contextos vivenciados por mim que a noção de que os arranjos políticos-
institucionais são construídos a partir da influência de distintas racionalidades, concepções
sobre vida, saúde, sujeito e produzem arranjos substancialmente diferentes no seu
funcionamento e nos seus resultados/expectativas. Consolidam-se, assim, como novas lentes
para analisar toda essa problemática, possuindo atores sociais ‘experts’ que colocam em
funcionamento tais arranjos a partir da construção de verdades científicas e tecnologias
governamentais, que são um “complexo de programas rotineiros, cálculos, técnicas, aparatos,
documentos e procedimentos mediante os quais as autoridades buscam incorporar e pôr em
prática ambições governamentais.” 5 (p.72).
Através dessa tecnologia governamental, o homem se tornou, em parte, um objeto
possível para o conhecimento positivo, uma vez que a Medicina foi um dos primeiros
conhecimentos científicos transformados em “expertise”, e, com isso, forjou-se como
porta-voz da autoridade sobre os seres humanos, através de uma fala afirmativa de sua
cientificidade28 (p. 1258).
Modos de Subjetivação
[...] diferentes concepções de indivíduos emergem, ao mesmo tempo em parte, no
interior de sistemas de conhecimento competentes sobre o indivíduo – a psicologia, a
psiquiatria, as disciplinas psi, etc. – e que esses conhecimentos cumprem sua parte na
modelagem de novas formas de pensar sobre nós mesmos29 (p.800).
O fato de ser graduada em psicologia colocou-me diretamente em experiências que
tencionavam minha postura perante o papel que estava executando. Foi no entremeio das
expectativas das instituições, dos próprios atendidos e de um corpo conceitual ético-estético-
político que me debrucei desde a graduação para pensar e (re) criar práticas de cuidado que se
contrapunham a determinações específicas.
Trago para começar tal discussão uma das primeiras escritas encontradas num
diário de campo produzido no período de um ano e meio enquanto atuava como psicóloga de
uma Fundação CASA, na modalidade de internação. Essa instituição tinha como função a
execução de medidas socioeducativas2 a adolescentes autores de atos infracionais com idade de
18 anos incompletos.
2 As medidas são classificadas de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Art. 122) que, nesse
caso são aquelas relacionadas à “Internação em estabelecimento educacional” 30.
28
Por que me sinto tão angustiada? Qual meu lugar enquanto psicóloga numa
instituição fechada? (Diário de Campo – Fundação CASA). Tal pergunta nunca foi respondida
integralmente até o momento da escrita desta dissertação, contudo tornou-se um atravessador
importante no que diz respeito às compreensões de sujeito que operei nos distintos locais que
estive. Articulei para tal posicionamento estudos de autores como Gilles Deleuze, Felix
Guattari, Michel Foucault, Jacques Donzelot, entre outros, no qual apresentavam a psicologia
e as áreas do conhecimento ‘psi’ enquanto disciplinas, que, com discursos legitimados para
dizer sobre a vida, teriam função de apoiar a produção de determinados modos de
subjetividades, construindo muitas vezes aquilo que denominamos como sujeitos. Como
Guattari e Rolnik31 nos apresentam:
Aquilo que se convencionou chamar de "trabalhador social" - jornalistas, psicólogos
de todo tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente que desenvolve
qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em comunidades de periferias, em
conjuntos habitacionais, etc. - atua de alguma maneira na produção de subjetividade.
Mas, também, quem não trabalha na produção social de subjetividade? 31 (p.29).
Nesse sentido, pensar a psicologia e meu campo de práticas me angustiava, pois
visualizava naquela instituição a solicitação da constante criação de dispositivos que
legitimassem discursos individualizantes e assim pudesse lançar mão de um certo arcabouço
científico-jurídico-educacional que reforçasse a concepção de que aqueles adolescentes eram
sujeitos perigosos, incontroláveis, de caráter duvidoso. Tal produção objetivava um processo
de ‘reeducação’ com uma diversidade de técnicas corretivas que deveriam ser suficientemente
capazes de apoiar modos de subjetivação mais controlados e dominados. Adolescentes eleitos
como um problema e responsabilizados por tal, tanto em sua conduta individual como coletiva,
e assim “a conduta em questão tinha de se tornar maleável a intervenção. Devia ser suscetível
a uma série de técnicas ou de instrumentos mais ou menos racionalizados que permitisse agir
sobre elas e transformá-las" 5 (p.26).
Conforme Foucault nos apresenta, a ideia moderna da noção do EU, a partir de uma
noção de vida interior, apoiou e apoia a construção de aparatos de regulação da conduta, e a
psicologia como uma das disciplinas que apoia a produção de verdades sob os indivíduos, de
modo a analisá-lo e transformar suas “falhas” internas, acaba por muitas vezes alinhar-se na
operação do governo dessas vidas. Ou seja,
[...] a psicologia nasceu como uma disciplina científica, como um conhecimento
positivo do indivíduo e como uma forma particular de falar a verdade sobre os
humanos e de agir sobre eles. Além disso, ou pelo menos assim parece, os seres
humanos, nessas sociedades, acabaram por se compreender e por se relacionar consigo
mesmos como seres “psicológicos”, a se interrogarem e a se narrarem em termos de
29
uma “vida psicológica interior” que guarda segredos de sua identidade, que eles
devem descobrir e preencher e que é o padrão em relação ao qual o viver uma vida
“autêntica” deve ser julgado14 (p.35).
Através de práticas como relatórios judiciais sobre o desenvolvimento dos
adolescentes, pautados no evidenciamento da evolução do adolescente em sua transformação
de infrator em não-infrator; revistas constantes; o direcionamento do modo de andar, que tinha
que ser com a mão para trás; as regras de vestimenta das profissionais, que não podiam mostrar
nem o tornozelo por se tratar de uma parte sexualizada; a intervenção constante dos
profissionais em comportamentos que eram entendidos como marcadores do ‘crime’, sendo
estes as gírias, os RAPs, as conversas de canto entre os adolescentes; entre outras, entrelaçavam
um emaranhado de dispositivos que objetivavam a regulação de condutas por meio de técnicas
homogeneizadas e serializadas e que deveriam alcançar uma certa modelagem do adolescente
num corpo docilizado, educado, possível de reinserção36.
Tais intervenções são marcadas historicamente pelo surgimento, conforme
Donzelot46, nos séculos XIX e XX de uma série de profissões ligadas ao trabalho social, sendo
que a pulverização desses trabalhadores se deu de forma rápida em várias instituições,
principalmente nos aparelhos jurídicos, assistenciais e educativos com o foco nas camadas
pobres sob uma forma dupla – a infância em perigo e a infância perigosa. A atenção desses
trabalhadores sociais estava concentrada nos problemas da infância, que através do saber
criminológico, debruçou-se na detecção da história dos menores delinquentes e a organização
de suas famílias construindo signos comuns que instrumentalizariam uma intervenção a priori.
Partindo de uma vontade de reduzir o recurso ao judiciário, ao penal, o trabalho social
se apoiará num saber psiquiátrico, sociológico, psicanalítico para antecipar o drama,
a ação policial, substituindo o braço secular da lei pela mão estendida do educador46
(p. 92).
Tal afirmação, juntamente com os estudos de Michel Foucault sobre o poder
disciplinar, reafirmaram naquele momento que a criação desse modo-indivíduo de
subjetividade transformou o exercício do poder numa operação na qual o indivíduo é posto num
processo de normatização para que se tornem produtivos, dóceis.
Assim, pensar o cuidado enquanto uma escolha ética-política, deveria ser costurada
a partir do constante contraponto a uma noção de sujeito baseada na racionalidade científica do
estatuto da razão e/ou de um sujeito interiorizado, para afirmar a não existência de valores
universais e verdadeiros, estes que fundamentalmente estão atrelados à norma.
30
Isto significa que a noção de subjetividade passaria a ter outros sentidos. Se no
conhecimento que busca a verdade dos paradigmas científicos, o sujeito e o objeto são
previamente dados, a subjetividade é um dado a priori, um princípio de individuação,
que independe das condições históricas. O conhecimento é capaz de revelar a essência
das coisas. Assim, a subjetividade é algo do indivíduo, de sua interioridade, onde está
uma faculdade racional. Uma subjetividade a-histórica e apolítica a desvelar um
mundo imutável. A razão é o fio condutor que garante a ordem interior e uma
continuidade entre o mundo e a consciência racional105 (p.76).
Para tanto, contrapor-se a práticas que servem a estes fins de governo dos corpos,
inicia-se com a afirmação de que as subjetividades são produzidas num processo coletivo e
político, composto por uma diversidade de vetores para além da instância psicológica fundada
numa lógica da representação31. Assim, as práticas de cuidado, enquanto práticas de resistência,
devem utilizar-se de diversos componentes que se transformam incessantemente frente a uma
série de instituições, práticas e procedimentos vigentes em cada momento histórico, sendo que
os modos de subjetivação também se modificam a partir das diferentes linguagens, tecnologias,
ciências, mídia, entre outros, como uma conexão que não cessa.
Os processos de subjetivação [...], não são centrados em agentes individuais (no
funcionamento de instâncias psíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes
grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de
máquinas de expressão que podem ser de natureza extrapessoal, extraindividual
(sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos,
etológicos, de mídia, enfim, sistemas que não são imediatamente antropológicos),
quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção,
de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos
de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de automatismos,
sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc) 31 (p. 31).
A noção de subjetividade e sujeito, também entrelaçada com a perspectiva trazida
acima, está baseada na ideia de que o sujeito é uma “forma que dá passagem”, “uma
materialização”, das linhas de força/poder, negando-se o caráter essencialista do sujeito para
afirmar que os modos sujeitos se constituem a partir de um processo dinâmico, mutante e
provisório.
Somos vários “sujeitos” e, ao mesmo tempo, estamos deixando de ser aquilo que
somos. Somos, portanto, um “efeito de um entre”. Somos aquilo que se produz a partir
de nossos encontros com as coisas (homens e não homens)20 (p.18).
Sendo assim, utilizei-me da lente de que há modos de objetivação que oferecem
parâmetros do que se pensou e produziu sobre os sujeitos, ou seja, conforme Gallo há três
modos que Foucault trabalha: o primeiro é a ciência, “que permite que os seres humanos sejam
pensados em sua ação”; o segundo é “o conjunto de práticas que permitem classificar os seres
31
humanos em distintas categorias como, por exemplo, o normal e o anormal”; e o terceiro é “a
maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito e age sobre si mesmo” 1 (p.79).
Vale destacar, que tomamos o sujeito em seu duplo aspecto, sendo ele um sujeito
da ação – que age, exerce poder, conhece, resiste – e o sujeito como objeto da ação – formatado
a partir do conhecimento do saber científico, que se apresenta em alguma medida submisso ao
poder. “O sujeito não pode ser pensado, tematizado, abordado, senão como resultante deste
feixe de processos, às vezes, contraditórios entre si 1 (p.79).
32
CAPÍTULO 2 - POLÍTICAS E PROGRAMAS SOBRE ÁLCOOL E OUTRAS
DROGAS: UMA REDE DISCURSIVA EM TENSÃO
A importância que damos ao discurso não brota de uma preocupação com “ideologia”.
A língua não é meramente contemplativa ou justificativa; ela é performativa. Uma
análise do discurso político ajuda-nos a elucidar não apenas os sistemas de
pensamento mediante os quais as autoridades têm colocado e especificado os
problemas de governo, mas também os sistemas de ação através dos quais eles têm
procurado pôr em prática o governo 5 (p.74-75).
É partindo da afirmação trazida na citação acima que pretendi problematizar as
racionalidades existentes no campo das políticas e programas AD e, assim, lançar luz às redes
discursivas que se formaram em torno do problema ‘droga’ e a consequente caracterização de
um suposto sujeito intitulado como ‘drogado’. Vale ressaltar, que tais modelos não se
apresentam de modo separado, sendo que são bases de perspectivas discursivas que se
entremeiam e se apoiam na formatação das políticas e programas.
2.1. Entre o Crime, a Moral e a Doença: uma aliança de governo de condutas
O desassossego frente às políticas AD brasileiras, foi sendo construído por mim a
partir de vários momentos profissionais que serão aqui trazidos, aparecendo incialmente na
atuação nos primeiros meses como trabalhadora psicóloga em uma unidade no interior de São
Paulo/SP da Fundação CASA.
Logo que cheguei, percebi que ali tínhamos um modelo de arquitetura que se
apresentava como uma paisagem híbrida entre a punição e a educação. O prédio, com seus três
andares, era margeado por grades e portas de ferro, o que a todo tempo lembrava tanto os
adolescentes como os trabalhadores que aquela instituição tinha como função o cerceamento da
circulação social daqueles adolescentes, haja visto que cometeram um crime e, portanto, seriam
perigosos. Em seu interior havia, no primeiro andar, salas de educação formal e
profissionalizante, refeitório e consultórios médico e odontológico. No segundo andar ficavam
os quartos dos adolescentes (que mais pareciam celas, mas que não podíamos chamar assim).
E, no terceiro, uma quadra poliesportiva e espaços para a visita de familiares.
Nessa instituição me encontrei com 60 adolescentes em privação de liberdade,
cumprindo medidas tanto de internação provisória como de internação, sendo que muitos deles
ali estavam devido crime tipificado como tráfico de drogas. Dentre tantos, lembro-me
especialmente de Luan (nome fictício), 17 anos, negro, franzino, com fala baixa, olhar
desconcertante e usuário de crack. Pertencia a uma família monoparental, com oito irmãos e
33
residente na periferia de uma cidade vizinha. Seu ‘crime’? A venda de drogas para o sustento
do próprio uso.
Algo ressoava em mim, percebido através de estranhamentos que eram acentuados
a cada conversa que tínhamos e que me apontavam para a percepção de que estava
acompanhando um usuário de drogas e não um adolescente traficante, como sua ‘prisão’3
marcava. Luan era usuário grave de crack, isso evidenciado pelos seus dedos machucados e por
suas crises de abstinência constantes em seu primeiro mês e tinha, ainda, grande dificuldade de
lidar com os outros adolescentes, já que além da estigmatização entre os adolescentes frente ao
fato de ser ‘craqueiro’ ele também não conhecia as ‘regras do mundão’, ou seja, as regras de
sociabilização, que em paralelo, se apresentavam naquele coletivo.
E foi assim, junto a esse encontro no entrelaçamento pulsante dos estudos de
Foucault sobre o poder disciplinar, mais especificamente no debruçar do livro “Vigiar e Punir”
26 que me embrenhei no estudo das políticas de drogas brasileiras. À época a Supervisão Geral
da Fundação CASA chamou os trabalhadores técnicos (psicólogos e assistentes sociais) para
um debate em Campinas/SP, no qual pretendiam apresentar uma pesquisa realizada pela
instituição que evidenciava o aumento de medidas vinculadas ao tráfico de drogas entre os anos
de 2006 e 2010, sendo que na região do interior do estado de SP houve um aumento de 26,9%
a 47,1% de adolescentes privados de liberdade devido ao ato infracional de tráfico de drogas.
Dentre tantos estranhamentos que estava vivendo, desde a rotina que colocava os
adolescentes sempre em filas, com as mãos para traz, com cabelos raspados e dizendo sempre
“Sim, senhor!”, “Sim, senhora” duas pistas se presentificaram: a primeira é a fala de uma das
supervisoras regionais que colocava o lugar do tráfico de drogas enquanto central na vida dos
adolescentes, principalmente os que estavam em situação de rua – discussão que trarei no
capítulo 3, no campo das práticas de cuidado – e a segunda é que no ano de 2006 tivemos a
promulgação da Lei 11.343/200632 que instituiu um Sistema de Políticas Públicas sobre Drogas
(SINAD) no Brasil. Tal lei, revogou a Lei 6.368/1976 que dispunha “sobre medidas de
prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido33 e substância entorpecentes ou que
determinem dependência física”.
Voltando um pouco na história, podemos dizer que a partir do século XX, o Brasil
iniciou um processo de intensificação das políticas de controle da produção, venda e consumo
3 Destaco o termo ‘prisão’, visto que apesar do ECA determinar sanções denominadas de medidas socioeducativas,
o que visualizava é que a instituição com seu caráter fortemente punitivo se trata da mesma lógica do dispositivo-
prisão.
34
de determinadas substâncias, acompanhando as tendências internacionais34. Um marco
importante no âmbito da construção destas leis brasileiras é o Decreto-Lei de 1938, que pela
primeira vez construiu uma lei em território nacional que determinava penas para quem
“vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir
substâncias compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art.
2º, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas”. No que diz respeito
aos usuários, a toxicomania é considerada doença de notificação compulsória, não sendo
permitido o tratamento em domicílio (Art. 28) e a internação é o tratamento ofertado, sendo
ele obrigatório ou facultativo por tempo determinado ou não (Art. 29)35.
Dou destaque acima aos termos ‘toxicomania’, ‘doença’, ‘notificação compulsória’,
‘tratamento’ e ‘internação’, já que podemos verificar a presença de uma aliança entre saúde-
segurança na qual apresentam uma racionalidade comum: a de que pensar em drogas tanto no
consumo como no tráfico é pensar em ações de reclusão, sejam elas de ordem prisional sejam
de ordem hospitalar. Nesse sentido, a condução desses indivíduos e/ou grupos é realizada a
partir da ação de frentes distintas, mas que se coadunam no objetivo de governar os corpos, e
que necessariamente implicam no modo que as práticas de educação médica, de segurança, de
organização dos hospitais, de coleta de registros, etc, se organizam28.
Tal relação pode ser ponto de partida para pensarmos o exercício de poder nas
instituições, em correlação aos estudos de Foucault36 que localizam enquanto local privilegiado
da loucura as instituições psiquiátricas e que são por elas operadas através da disciplinarização,
medicalização e tutela, numa atuação direta sobre o corpo do louco, tendo como promessa, o
afastamento dos anormais para o equilíbrio da sociedade. A partir desse princípio, evidenciei
que aquela instituição-prisão estava a serviço da reclusão dos anormais contemporâneos, quero
dizer, aqueles que colocavam em crise a estabilidade da sociedade de bem e para tanto, temos
a fabricação e localização no corpo, numa perspectiva anátomo-corporal, de uma ‘determinada
identidade, aqui no caso a de criminoso e/ou doente’.
Aqueles que não podiam levar a cabo suas obrigações contratuais deviam agora
aparecer como antissociais, a serem confinados sob uma nova legitimidade. O
escandaloso e bizarro deviam ser situados sob uma autorização médica aprimorada,
em hospitais psiquiátricos que prometiam curar e não apenas encarcerar. Os infratores
da lei e os malfeitores já não tinham o status de bandidos ou de rebeldes, mas deviam
transformar-se em transgressores das normas motivados por defeitos de caráter
suscetíveis de compreensão de retificação 5 (p.79).
Vemos assim, modelos implementados, que conforme Marllat37, podem ser
categorizados como:
35
1. Modelo moral/criminal, no qual o uso de algumas drogas é determinado como ilícito e assim
passível de punição. Estes modelos, partem do ideário proibicionista que objetiva a redução de
oferta e consumo, associando a ideia moral do prazer enquanto pecado e também do sujeito não
sendo capaz de diferenciar o certo e errado, o bom e ruim para si mesmo. Objetiva assim, a
abstinência total e quando não efetivado, o sujeito pode e deve ser submetido a intervenções de
suspensão de seus direitos individuais – numa associação entre justiça e saúde – como por
exemplo as internações compulsórias.
2. Modelo de Doença, no qual foca na ideia de uma dependência de drogas como doença de ordem
biológica e assim o foco é o sujeito em uso, que se associa ao pressuposto da redução da
demanda das políticas proibicionistas. Tal modelo, entende que apenas alguns sujeitos
desenvolvem dependência química e muitas vezes acaba por associar-se ao modelo
moral/criminal quando afirma a incapacidade de escolhas do usuário frente ao prazer que a
droga lhe dá. A expectativa também é a abstinência, inclusive como condição para o
tratamento.
Nesse espectro, as políticas governamentais colocam no centro de justificação para
a construção de políticas mais repressivas, o uso de drogas, que apoiados em discursos voltados
à Segurança Pública e Justiça em articulação com a Saúde, constroem um arcabouço técnico-
jurídico-científico que baseiam legislações e normativas que partem da noção de que as pessoas
que usam ou comercializam drogas são inimigos da lei e a consequência que lhes cabe é a
punição, ou seja, a privação de liberdade.
É sob tal perspectiva que a chamada ‘Política de Guerra às Drogas’, termo
popularizado pela mídia após fala do Presidente dos Estados Unidos da América em 197138,
declara as drogas ilegais como ‘inimigo público número um’ e consequentemente alguns de
seus usuários e vendedores.
Essa distinção mostrou-se uma hábil estratégia de política externa, pois identificava
países-fonte, e portanto, agressores, e países-alvo, vítimas das subterrâneas máfias
globais. [...] A guerras às drogas era desenhada, assim, como uma postura
governamental dirigida à exteriorização do problema da produção de psicoativos e à
repressão interna a consumidores e organizações narcotraficantes. A um só tempo,
uma instrumentalização da Proibição às drogas como artifício de política externa e
recurso para a governamentalização – disciplinarização, vigilância e confinamento –
de grupos sociais ameaçadores à ordem interna como negros, hispânicos e jovens
pacifistas39 (p. 2).
Para a consolidação de tais políticas de combate às drogas alguns componentes
tornaram-se fundamentais: ‘econômico’ devido o interesse da indústria farmacêutica do
monopólio da manipulação, refinamento e comércio do ópio e da cocaína; ‘moral’ frente à
36
ascensão da classe médica que assumia a ‘ordem do discurso’ procurando rechaçar tudo o que
pudesse ser caracterizado como xamanismo ou curandeirismo e, ainda, aos setores mais
conservadores da sociedade cristã que referendaram as políticas proibicionistas valendo-se da
ideologia de pureza moral34.
Conforme Foucault40 problematiza, o modelo de “exclusão dos leprosos” acabou
desaparecendo em fins do século XVII e início do século XVIII, dando lugar a reativação do
modelo do policiamento da cidade e da inclusão do pestífero, o que acaba por produzir
tecnologias das quais, baseadas na ideia de anormalidade desta população em específico, devem
interditar fluxos de relação entre as drogas e as pessoas, afim de garantir um controle desses
novos não-humanos
[...] tem-se uma prática que diz respeito aos anormais, que faz intervir certo poder de
normatização e que tende, pouco a pouco, por sua força própria, pelos efeitos de
junção que ele proporciona entre o médico e o judiciário, a transformar tanto o poder
judiciário como o saber psiquiátrico, a se constituir como instância de controle do
anormal4 (p.52).
A construção da ideia de vício como doença e a consequente demonização do
“drogado”, a partir do século XIX, foi marcada, então, pela formação de uma rede institucional
e estatal baseada principalmente no estamento médico e mais tarde nas disciplinas ‘psi’ sob o
discurso do perigo e também do cuidado, criando discursos de verdade em torno da droga e
apoiando a implementação de determinadas tecnologias governamentais. “Um fantasma ronda
o mundo, o fantasma da droga, alçado à condição de pior dos flagelos da humanidade” 29 (p.12).
Quero aqui dizer, que para além dos dispositivos disciplinares efetivados
diretamente no corpo, temos também através de intervenções biopolíticas - sobre os corpos,
populações e regime químico das mentes. O nascimento de ações que além de biológicas
assume contornos biopolíticos, ou seja, um poder que além de governar os indivíduos através
de um número de disciplinas procura governar um conjunto de viventes constituídos em
população. Assim, criou-se no final do século XX e início do XXI uma estigmatização dos
consumidores de drogas, colocando-os como uma categoria identitária que pode ser identificada
por regularidades29.
Sendo assim, tais discursos apoiaram a construção de
[...] três estatutos diferenciados: traficantes, dependentes e usuários. Os traficantes
eram direcionados ao sistema penal com penas cada vez maiores; os dependentes –
com a devida avaliação de um psiquiatra – eram encaminhados para tratamento; e os
usuários, também eram direcionados ao sistema penal, porém com sanções mais leves
que os traficantes41 (p. 54).
37
Sobre isso é válido lembrar que os anos 1970 foram marcados pela Ditadura militar,
que através da sistematização da ‘Doutrina de Segurança Nacional’ justificava ações de
repressão e intervenção militar com o lema da proteção do interesse da segurança nacional. Para
tanto, houve uma eleição daqueles que seriam chamados de inimigos da ordem.
Orlando Zaccone em entrevista intitulada ‘A Alternativa é a Legalização’ dada para
a Revista Berro refere que
A história do Brasil sempre foi criada na construção desse inimigo, seja em Canudos,
no Araguaia, e agora nas favelas, na figura mítica do traficante de drogas, que é criada
num patamar onde o seu extermínio é desejado não só pelo Estado, mas pela sociedade
de forma geral. Então, a guerra às drogas acaba promovendo um dispositivo que
autoriza intervenções militares em áreas pobres42 (p.5-6).
Alinho tal discussão à regulamentação da Lei 6368/1976 e sua posterior revogação
pela Lei 11.343/2006. A primeira dispunha sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico
ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinassem dependência física
ou psíquica, intensificando as forças repressivas e instituindo ação conjunta das polícias
municipais, estaduais e federal no combate ao tráfico32, 33. Mais uma vez reforçando o campo
de racionalidade que aliava a saúde e segurança para a construção de programas e tecnologias
governamentais em torno da problemática da venda e consumo de drogas.
A Lei 11.343/2006, que instituiu o SISNAD, prescreveu medidas para prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e as redes de
serviços32, num amplo debate social da necessária construção de uma legislação que apoiasse
a descriminalização do uso de drogas e substituísse a linha estritamente repressiva e reclusiva
das adotadas anteriormente, modificou a pena para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito,
transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar” 32 que antes era estritamente de detenção e
pagamento de multa para “I. - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços
à comunidade; III - medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo”.
Apesar de uma aparente despenalização/descriminalização do porte de drogas para consumo
pessoal o que houve efetivamente foi a substituição de sansões, permanecendo vigente uma
perspectiva punitivista do consumo de drogas, sob a concepção da necessidade de abolição do
uso de drogas na humanidade e assim de sua venda e consumo.
Tal apontamento é de grande importância, pois é sob a égide de uma ‘sociedade
livre de drogas’ que ela se sustenta como está, visto que se entende em grande medida que o
risco da difusão da droga – frente à demanda – deve ser evitada, o que neste aspecto enuncia
que a conduta do usuário fomenta o tráfico de drogas e os crimes, através do discurso de que os
38
usuários cometeriam crimes para a manutenção do seu vício43. Além disso, nessa perspectiva,
também seriam pessoas que geram malefícios à coletividade da ‘sociedade’. Assim, pensa-se
na punição dos possíveis riscos para evitar seu acontecimento.
Apesar da diferenciação das sanções para usuários e traficantes, não se viu qualquer
inovação no que diz respeito à criação de critérios diferenciadores, já que a lei 11.343/2006
conservou a mesma redação dada ao artigo 37 da lei anterior, a Lei 6368/1976 . Ou seja, omitiu-
se sobre o tema abordado
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à
natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se
desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos
antecedentes do agente32.
Olinger44 discute que por não ter sido construído um dispositivo legal que
especificasse quantidades determinadas para diferenciar o consumidor do traficante, ficando a
cargo do juiz a análise a partir das circunstâncias da infração, do perfil do infrator, da natureza
da substância, entre outras, havia
[...] uma tendência a continuar prendendo negros e pobres como traficantes, já que
mesmo que sejam encontrados com uma quantidade muito pequena de droga, tem
grande probabilidade de ser acusados, pelas circunstâncias e perfil social, de estar
servindo de atravessador/avião, enquanto o menino de classe média vai ter um bom
advogado e mostrar que, com seu perfil e condição social, não é traficante44 (p.12).
Seu efeito é visualizado claramente no aumento do encarceramento por esse tipo de
crime de 339% entre os anos 2005 a 2013, com crescimento mais acentuado entre as mulheres,
de 698% em 16 anos. Além do reforço da seletividade penal, que conforme pesquisa ‘Audiência
de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à
Efetivação da Liberdade como Regra’ 45, o tratamento judicial é mais duro para negros, sendo
que enquanto 49,4% dos brancos detidos permanecem presos e 41% receberem liberdade
provisória, tais percentuais alcançam 55,5% e 35,2% quando se trata de pessoas negras.
A discussão sobre os campos de construção de intervenção do Estado que
objetivavam a construção da ordem social na França do século XVII até o século XX de
Donzelot46, embasado nos estudos de Foucault sobre o poder disciplinar e biopoder, me lança
perspectiva de olhar para como a formação de diferentes profissões pautadas no discurso do
cuidado do indivíduo - subjetividade, corpo, desvios - construíram políticas apoiadas na
governança da vida, ou seja, introduzindo modos hegemônicos na formação das famílias,
cidade, saúde, entre outros.
39
Sob a égide da ‘guerra as drogas’ e assim de suas legislações e normativas, foi sendo
construída a ideia de que o uso de drogas é um grande mal, quer dizer, o uso de determinadas
drogas são um grande mal, e assim uma racionalidade de governo em torno da normalização do
comportamento desviante e da abstinência como norma tornam-se uma imposição para a busca
de um padrão ideal a ser alcançado. A partir desse sentido, o uso de drogas – no caso das drogas
que são classificadas como perigosas – é visto como um problema e precisa, então, ser corrigido
e governado.
Defronte de tais discussões, podemos dividir em três figuras simbólicas
hegemônicas que têm autorizadas determinadas intervenções:
1. Traficante: sujeito perigoso e assim seu caminho é a segregação social afim de torna-lo um
homem bom, ou seja, reinserido na sociedade enquanto mão de obra;
2. Doente: sujeito sem controle frente a seu uso e assim pode-se construir intervenções baseados
na ideia de “que precisa ser sequestrado, reprogramado segundo procedimentos baseados na
abstinência prolongada e na reengenharia da vida” 47 (p.34).
3. Pecador ou moralmente corrompido: sujeito afastado de deus e assim intervêm-se sob a ótica
da reconexão com a espiritualidade e de sua libertação através do divino;
Nesse sentido, a Lei sobre drogas de 2006, tinha relação direta com os dados
apresentados pela supervisão da Fundação CASA, já que o que se reafirmou foi que as
discussões do problema das drogas, ainda sob a égide da ideia de um fenômeno que é um “caso
de polícia” ou uma “doença” categorizada como dependência química. Apesar de tudo que foi
dito, tínhamos neste momento, em contrapartida, a atenção voltada para os usuários
problemáticos de drogas, a partir do estabelecimento de uma responsabilidade circunscrita no
campo da saúde, com a criação e aperfeiçoamento de programas de cuidado consonantes às
diretrizes instituídas pelo Ministério da Saúde que foram sendo transformados numa postura
contra hegemônica de uma rede discursiva baseada no perigo e doença.
2.2. A Redução de Danos: estratégia de combate ao discurso hegemônico sobre drogas?
Nunca é demais lembrar que a política de drogas não é um ramo da psicofarmacologia
aplicada às populações e, portanto, nunca trata apenas de substâncias. Ela é sempre
uma política feita por (poucas) pessoas com enorme impacto na vida de (muitas)
outras pessoas48 (p.12).
Quando assumi o cargo de Coordenadora de Saúde Mental do município de
Santos/SP, trazia em mim o desejo de me aproximar do histórico da região e da própria
construção pioneira da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), de uma política de
40
cuidado territorial em saúde mental que propunha prescindir o hospital psiquiátrico e também
do primeiro programa público de redução de danos do país.
O histórico dessa região, considerada como grande porta de entrada de cocaína no
Brasil, pode ser considerado como efeito da política norte-americana de ‘Guerra às drogas’ 49.
Uma vez que na década de 1970, políticas orientadas por uma perspectiva repressora aos países
andinos, produtores de coca, fizeram surgir caminhos alternativos para o tráfico de drogas,
colocando o território brasileiro na rota internacional do tráfico de cocaína. Santos, cidade
litorânea do estado de São Paulo, por possuir a maior zona portuária do país, passou a ser um
local de escoamento da droga para a América do Norte e Europa. Enquanto consequência,
houve aumento de usuários de drogas injetáveis na área, o que em 1988 rendeu à cidade o título
de ‘capital da Aids’ 49.
Foi então no ano de 1989, que a prefeita da cidade de Santos, Telma de Souza, do
Partido dos Trabalhadores (PT), embasada em experiências internacionais4, como forma de
tentar conter a epidemia de HIV entre os usuários de drogas injetáveis, criou no âmbito da
Secretaria de Saúde o Programa Municipal de Aids. Com a atuação desse programa, surgiu o
primeiro projeto de Redução de Danos (RD) associado ao uso de drogas injetáveis do Brasil50.
Isso, ao longo dos anos foi “se tornando uma estratégia de produção de saúde alternativa às
estratégias pautadas na lógica da abstinência, incluindo a diversidade de demandas e ampliando
as ofertas em saúde para a população de usuário de drogas” 51 (p.156).
Essa experiência trouxe em si um dos grandes debates no que diz respeito ao
cuidado de pessoas em uso de drogas, sendo que de um lado tínhamos um cenário nacional
constituído por políticas de guerra às drogas e, de outro, um momento de redemocratização do
país e da consequente construção de políticas públicas sociais voltadas à democratização de
acesso, como o SUS. Nesse contexto, “o então secretário municipal de saúde, David Capistrano,
e o Coordenador do programa de DST/AIDS, Fábio Mesquita, sofrem uma ação judicial por
adotarem a estratégia de Redução de Danos, acusados de incentivarem o uso de drogas” 51 (p.
156). Tal ação, anos depois arquivada, teve como efeito a suspensão do programa e colocou em
4 Foi a partir de 1926, na Inglaterra, com a publicação do Relatório Rolleston que a Redução de Danos (RD) teve
seu marco inicial. Esse relatório foi elaborado por um grupo de médicos que indicou que a melhor maneira de
tratar pacientes dependentes de morfina ou heroína era promover a administração das drogas por um médico, que
deveria, além de prescrever, monitorar o uso dessas substâncias naquela pessoa. Esse relatório foi um marco porque
defendia que não se poderia tratar dependentes impondo-lhes a abstinência de forma abrupta; recomendava o
acompanhamento dos usuários que desejavam se abster do uso de morfina ou heroína de forma a propiciar um
alívio dos sintomas da abstinência ou ajudando na administração das drogas aos que queriam continuar usando-
as49.
41
evidência as forças que se tencionavam nesse campo: as forças conservadoras, que reafirmavam
uma política antidrogas, e as forças mais progressistas, que buscavam adotar políticas e
estratégias de cuidado mais democráticas, numa perspectiva do direito constitucional de acesso
universal à saúde.
Essa experiência trouxe uma nova perspectiva no cuidado de usuários de drogas,
apesar de ainda circunscrita no âmbito das políticas e programas de prevenção a AIDS, que,
diferente das existentes no âmbito da focalização da droga, trazia a perspectiva de cuidar do
sujeito em seus territórios reduzindo os danos causados pelo uso e, desse modo, inaugurou-se
o debate de cuidado a pessoas que usavam drogas contrapondo-se aos debates proibicionistas
com foco estritamente na abstinência.
A construção de serviços voltados ao cuidado de pessoas com uso problemático de
drogas é datada, após anos de discussão, dentro da própria luta antimanicomial brasileira. O
‘Movimento da Luta Antimanicomal’ no final da década de 1970, período de efervescência
política, entre vários tensionamentos, objetivava uma resposta para o grande número de
denúncias sobre as graves violações de direitos humanos nos manicômios, propondo reflexões
e transformações à nível técnico-assistencial, político-jurídico, teórico-conceitual e
sociocultural52.
Apostou-se, pautados na afirmação de que estamos diante de um fenômeno de
exclusão social secular, na construção de um aparato político-técnico-discursivo-prático que
viria fazer contraponto aos espaços de exclusão dos ‘anormais’ – hospitais psiquiátricos,
comunidades terapêuticas – e as práticas produzidas sob tal lógica, instaurando-se como uma
disputa política que pudesse transformar-se enquanto processo de enfrentamento à
estigmatização da loucura. O movimento se constituiu na composição de forças de
trabalhadores dos hospitais psiquiátricos, usuários, familiares e entidades da sociedade civil e
conquistou, através da Lei 10.216/200153, institucionalidade. Tal feito, trouxe consigo o
paradigma da substituição de um modelo hospitalocêntrico e médico-centrado numa tentativa
de um cuidado que se transformasse numa “[...] importante ruptura com o modo psiquiátrico de
olhar e compreender essa estranha e complexa experiência humana que podemos genericamente
nomear de loucura” 54 (p. 77).
O texto da Lei 10.216 de 06 de abril de 2001, marco legal da Reforma Psiquiátrica,
ratificou, de forma histórica, as diretrizes básicas que constituem o Sistema Único de
Saúde; garantindo aos usuários de serviços de saúde mental – e, consequentemente,
aos que sofrem por transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas - a
universalidade de acesso e direito à assistência, bem como à sua integralidade;
valoriza a descentralização do modelo de atendimento, quando determina a
estruturação de serviços mais próximos do convívio social de seus usuários,
configurando redes assistenciais mais atentas às desigualdades existentes, ajustando
42
de forma equânime e democrática as suas ações às necessidades da população53 (p.5-
6).
No entanto, foi apenas no início dos anos 2000, frente ao discurso de uma ‘epidemia
do crack’, rebatido por vários pesquisadores e que em 2015 tomou forma de dados na “Pesquisa
Nacional sobre Uso de Crack” 55. Essa pesquisa apontou que a suposta ‘epidemia de crack’ não
se sustentava na realidade, o que foi reforçado, em 2019, através da divulgação da pesquisa “3º
Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira” – realizada entre 2014 e
2017 – engavetada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) devido a possível
explicação, de que os dados não corroboram com a afirmação de que viveríamos uma epidemia.
Apesar disso, a afirmação de uma dita ‘epidemia de crack’, criou um movimento que tenta
reforçar a necessidade de construção de programas e tecnologias de cuidado centradas em
intervenções estritamente pensadas sobre o uso de droga e, decorrente disso, focado na
utilização de intervenções basicamente restritivas e punitivistas que objetivavam a abstinência.
Pautados pelo discurso da abstinência e da reafirmação pelos veículos midiáticos,
de uma noção de que tais pessoas, principalmente os usuários de crack em cenas abertas, seriam
perigosas e incontroláveis, verdadeiros ‘zumbis’ e, portanto, possuídas pela droga tornam-se
consequentemente agressivas se não a usassem, reforça o imaginário social do usuário de drogas
enquanto pessoas criminosas e estritamente influenciadas pela droga. A conjunção desses
fatores, solidifica um terreno fértil para a construção de uma diversidade de tecnologias que
tem o intuito de tornar tal fenômeno operável, ou seja, que possibilitassem a ação sobre tais
condutas individuais e coletivas.
Antonio Lancetti47, em seu livro ‘Contrafissura e Plasticidade Psíquica’, debate um
fenômeno, o qual intitulou como ‘contrafissura’. Tal fenômeno é caracterizado pela influência
das mídias e por toda a construção social secular em torno da questão das drogas, imbuindo a
sociedade em geral e os trabalhadores, de crenças e valores morais, e que, desse modo, acabaria
por buscar muitas vezes soluções rápidas para problemas complexos voltadas basicamente para
o consumo das drogas. Nas palavras do autor:
Esse fenômeno de desespero, de fissura por resolver imediatamente, se manifesta na
prática de internações forçadas, muitas vezes de adolescentes que tiveram seu
primeiro contato com alguma droga ilegal. A esse afã por resolver imediatamente e
de modo simplificado problemas de tamanha complexidade, chamamos de
contrafissura. Assim como diz o samba “nós é que bebemos e eles que ficam tontos
(Turma do Funil, Marcha de Carnaval de 1956), noias queimam pedra, autoridades,
políticos e editores de jornais escritos e televisionados que ficam alterados47.
43
Trago aqui, alguns trechos de reportagens que indicam os discursos construídos em
torno da problemática:
1. Em referência a uma ação no Denarc em São Paulo na região da “Cracolândia”, 2000:
Nos últimos meses, o cenário mudou. Desde setembro do ano passado, o Denarc
(Departamento de Narcóticos) vem promovendo repressão ostensiva no local a fim de
"erradicar" a cracolândia, o que forçou a dispersão dos viciados e traficantes para outras
regiões da cidade. [...] A ordem do secretário (estadual da Segurança Pública, Marco Vinicio
Petrelluzzi) foi erradicar a cracolândia. Era uma vergonha ter uma Amsterdã ao lado do prédio
do Denarc", explica o delegado Ubiracy Pires da Silva, diretor da Divisão de Investigação. O
prédio está incrustado no ex-território dos usuários de crack. [...] Quando a repressão era mais
leve, viciados sentavam-se nas calçadas para partilhar cachimbos com a pedra de crack -droga
barata que, segundo especialistas, vicia quase imediatamente56.
2. Coluna Cotidiano Folha de São Paulo, 2005:
“Crack se expande e já atinge 19 Estados”
3. Em 2015, frente a uma novela da TV Globo “Verdades Secretas” uma reportagem intitulada
“Epidemia de crack atinge dois milhões e coloca Brasil no topo do ranking de consumo da
droga”:
Geralmente, pessoas que fazem uso dependente de crack tendem a ficar mais impulsivas,
irritáveis e com maior oscilação de humor. Com o tempo, ficam mais explosivas quando
frustradas ou questionadas sobre seu consumo por amigos ou familiares. [...] Além
disso, Miguel alerta que a necessidade do crack pode deixar a pessoa mais agressiva. [...] A
vontade de consumir e não ter a droga disponível no momento causa maior agressividade e
estresse, porque ela realmente precisa daquela quantidade de substância para se sentir
motivada57.
Em contraposição a essa formatação discursiva, partindo da premissa do direito à
saúde, novas abordagens foram inauguradas, na construção de uma rede substitutiva de serviços
comunitários e abertos, com o intuito de produzir uma mudança social frente à ideia de
criminalização, tutela e penalização dos usuários de saúde mental, álcool e outras drogas,
intitulada como Redução de Danos.
Vale ressaltar, que a RD não é uma prática contrária à abstinência, inclusive pode
ser um caminho até ela, sendo que a contraposição está em relação à forma de tratamento que
é oferecida, que ignora quem são essas pessoas, quais suas histórias de vida, quais seus motivos
para querer/não querer usar drogas. É sob tal reflexão, ao contrário do que muitas vezes é posto
– de que a RD incentiva o consumo de drogas – que se buscou através da construção de políticas,
44
programas e tecnologias, a produção estratégias que visavam a aproximação dos múltiplos
contextos de uso de drogas, de ações sem julgamento moral e de caráter informativo que
respeitasse a escolha do usuário. Nessa complexa compreensão, ao invés da associação pessoa-
droga, olha-se a partir da associação pessoa-relações-condições de existência, colocando a
droga como coadjuvante.
As políticas e programas no campo de drogas, quando pautadas pela lógica da RD,
buscavam assim produzir novas lentes capazes
[...] de olhar e lidar com os problemas ligados ao uso de drogas e deve constituir-se
em razão da promoção à saúde e atenção integral, proporcionando a reflexão dos
usuários de drogas, relacionados às formas, padrões, locais e sentidos para o uso,
sempre com relevância também aos seus contextos sociais de consumo58 (p. 46).
Nesse sentido, uma tentativa de inversão foi produzida, visto que o foco deixava de
ser as substâncias e passava a ser os sujeitos e suas existências. Isso validava que as políticas
sobre drogas precisavam estar alinhadas com as diferentes políticas públicas, compondo o
reconhecimento e a consolidação da cidadania dos usuários de substâncias psicoativas, sob o
manto dos direitos humanos. Essa construção apresenta uma visão ampliada da saúde,
respeitando as vontades e condições de usuários quando não pretendem ou não conseguem parar
o consumo, valorizando suas experiências de uso para elaborar em pares os melhores caminhos
para a promoção de saúde39.
Para transformar os cenários de segregação e violência é importante, então, estar
próximo das populações que mais são atingidas por estes sistemas e, desse modo, a RD seria
uma estratégia que defende a importância de políticas, que reconhece as diferenças e a
importância de seus protagonismos na sociedade, centralizando sua luta pela liberdade
individual e autonomia. Deu-se início, em um regime de constante tensionamento, a uma nova
discussão política que visava articular novas estratégias de cuidado, efetivando-se inicialmente
na criação da Política Nacional Antidrogas Drogas (PNAD), em 2002. Apesar de encontrarmos
nessa política uma tentativa de fomentar programas baseados na RD, o prefixo anti alertava ao
fato de que se tratava de
[...] um processo social complexo, vem sendo construída no interior de uma tensão
que atravessa a vida no contemporâneo, na qual práticas de resistência – que afirmam
a potência da vida de reinventar-se permanentemente – estão em embate com linhas
que tendem para a vigilância e o controle59 (p.599).
Ou seja, os modelos pautados numa lógica criminal/moral/doença ainda se faziam
presentes apesar de começarmos a ver o modelo da redução de danos que, conforme Marllat37,
tenta romper com a ideia de uso abuso de drogas, afirmando que o uso pode ser ou não
45
prejudicial. Somado a isso, segundo os pressupostos dos direitos humanos, o uso se drogas é
um direito humano, no qual se consideram os determinantes sociais de saúde, que, segundo a
Associação Internacional de Redução de Danos (IRHA), seria
[...] um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao
uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar
drogas, com foco na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas;
bem como nas pessoas que seguem usando drogas60.
A diversificação das ofertas em saúde para usuários de drogas sofreu significativo
impulso quando, a partir de 2003, as ações de RD deixaram de ser uma estratégia exclusiva dos
Programas de DST/AIDS no âmbito da saúde e se tornaram uma estratégia norteadora da
Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Ouras Drogas61.
Tal política, baseou em 2004 a regulamentação do “nota”, afirmando o posicionamento
contrário a internação de usuários de álcool e outras drogas em hospitais psiquiátricos,
normatizando as internações de curta permanência e propondo integração entre os serviços e
níveis de atenção à saúde e das redes de suporte social (grupos de autoajuda, associações), estas
últimas de caráter complementar e não como componentes da rede.
O SISNAD e a Política de Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
Outras Drogas definiram consensualmente a descentralização das ações, a capacitação
profissional, a abordagem multiprofissional e a socialização de conhecimento para proporcionar
um melhor acolhimento e projeto terapêutico que de fato atendesse às demandas e necessidades
dessa população. Enfatizava-se, nesse momento, então, a promoção de informação, educação e
aconselhamento; acesso à assistência social e à saúde; e a disponibilização de insumos de
proteção à saúde e de prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), HIV/AIDS e
hepatites, diferenciando-se do modelo preventivo tradicional62.
Além disso, com o tema das drogas ocupando lugar de importância nas agendas da
saúde mental brasileira, houve impulso significativo para a diversificação de ofertas de cuidado
para usuários de drogas, sendo regulamentado pelo Ministério da Saúde as ações que visavam
a RD na Portaria 1.028/200563 opondo-se claramente às propostas de tratamento que se
pautavam exclusivamente no paradigma proibicionista e da abstinência 64.
Apesar de a RD comparecer como importante diretriz clínica e política dos Caps-ad,
na experiência concreta ainda restam muitas lacunas sobre o modo como esta diretriz
tem sido exercida no cotidiano desses serviços. Por ser um movimento recente, o
processo de institucionalização da RD no campo da Saúde Mental precisa ser
analisado para que se potencialize a construção de uma rede territorial de atenção aos
usuários de álcool e outras drogas64 (p. 156-157).
46
Destacamos, que a partir de um movimento no SUS da construção de regiões de
saúde e da criação de Redes de Atenção à Saúde, sob a finalidade de garantir a integralidade da
assistência de modo articulado entre os diferentes serviços e ações de saúde, em 2013, a
institucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)65 . A RAPS era composta por sete
pontos de atenção, sendo: I) Atenção Básica, II) Atenção Psicossocial Estratégica, III) Atenção
de Urgência e Emergência, IV) Atenção Residencial de Caráter Transitório, V) Atenção
Hospitalar, VI) Estratégias de Desisntitucionalização e VII) Estratégias de Reabilitação
Psicossocial, e tais pontos seriam articulados através do Projeto Terapêutico Singular (PTS) de
cada usuário, ou seja, a produção de estratégias de cuidado apresentava-se múltipla e focada
nas necessidades específicas de cada usuário. Assim,
O enquadre da Política de Saúde destaca a promoção da saúde, da vida e da cidadania
como princípios éticos, realizados na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), conjunto
articulado de serviços territoriais que exercem o cuidado em saúde mental por meio
de equipes multiprofissionais e estratégias sociocomunitárias66 (p. 881).
Apesar da construção de novos aparatos políticos-institucionais pautados na
perspectiva da RD, em paralelo, num terreno de grandes tensões e divergências, também o
Ministério da Saúde, em 2009, lançou uma campanha com o slogan ‘Nunca experimente o
crack. Ele causa dependência e mata’ com o objetivo de alertar sobre os riscos e consequências
causados pelo consumo da droga. A ‘Figura 1’, a seguir, ilustra essa campanha.
Figura 1 - Material da Campanha do Ministério da Saúde sobre o uso de crack, 2009.
Fonte: Divulgação/Ministério da Saúde, 2009
Já em 2010 foi lançado, pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional
de Álcool e outras Drogas (SENAD), em parceria com outros Ministérios – Saúde,
47
Desenvolvimento Social e Combate à Fome Educação, e da Secretaria de Direitos Humanos –
o “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (PIEC)” 67 que cria o Comitê
Gestor sob a gestão do Ministério da Justiça e deu origem ao Programa ‘Crack é Possível
vencer’. Tal programa propunha-se numa ação integrada que envolvia três frentes de atuação:
prevenção, cuidado e autoridade. A Figura 2, a seguir, ilustra essa campanha.
Figura 2 - Campanha do Ministério da Justiça sobre o crack, 2010.
Fonte: Ministério da Justiça, 2010.
O eixo ‘Prevenção’ objetivava a promoção de ações para a redução de fatores de
risco no uso de drogas, ofertando assim a capacitação de profissionais de diferentes áreas,
disseminação de informações sobre o crack e outras drogas e estratégias de prevenção nas
escolas. Já o eixo ‘Cuidado’ visava a ampliação da rede de atenção em saúde e assistência social
para usuários de drogas e familiares, disponibilizando recursos técnicos e financeiros para
qualificação e ampliação das redes. Vale dizer que tal rede deveria trabalhar no acolhimento de
usuários e familiares, respeitando sua autonomia e singularidade, e oferta de cuidado necessário
a cada caso. Tomava, ainda, a defesa da vida e da RD como princípio. Para isso, os serviços de
saúde e de assistência social, incluídos aqueles prestados por organizações não-governamentais
como as Comunidades Terapêuticas, deveriam se articular para garantir um atendimento
integrado e de longo prazo. E, finalmente, o eixo ‘Autoridade’ objetivava a “redução de oferta
de drogas ilícitas no Brasil”, assim, aposta na articulação das forças de segurança com as áreas
diferentes áreas em parceria com os estados e municípios, além do fortalecimento das ações de
inteligência e investigação68 (p.7)
48
Vale destacar que, à época, o país estava esperando dois grandes eventos, a Jornada
da Juventude5 e a Copa do Mundo6, e assim, no interstício da construção de programas e da
crescente miadiatização do problema, o objetivo de limpar as ruas para que esses grandes
eventos pudessem acontecer fazia-se presente. Neste sentido, tivemos a formatação de
tecnologias governamentais que, se de um lado, apostavam na construção de estratégias de
cuidado pautados na RD, também presentificava-se àquelas que acabavam por reforçar a ideia
de um novo inimigo, este, que seria o usuário de crack, em cenas de uso em espaços públicos.
Na profusão de reportagens, campanhas e programas, apesar de construírem
composições distintas, enunciava-se uma substância perigosa e consequentemente seus
usuários, e desse modo, o ideário de um mundo sem pessoas que usassem drogas.
Lembro aqui de uma frase que Graziella Barreiros7 que em vários de nossos
encontros, desde as supervisões clínico-institucionais no CAPS-ad até nos dias atuais num
projeto de formação em RD, no qual éramos parceiras de trabalho, dizia: “Os enunciados
informam ao público que o problema é substância...mas veja bem, nunca vi a cocaína matar
alguém, ou exterminar famílias! A relação se dá entre sujeito, droga e contexto!! Não podemos
transformar o objeto em sujeito e o sujeito em objeto” (comunicação pessoal de 2018).
Esse caminhar sobre as políticas e programas no âmbito da saúde, me fizeram
refletir sobre como
As contradições são partes da engrenagem, elas são necessárias para o funcionamento
de um governo que une elementos díspares, de um governo em que a consistência não
passa pela coerência, mas pelo jogo de interesses. Nesse sentido não estaríamos
corretos em afirmar que a política de drogas é um governo das contradições. É antes
de tudo um governo de elementos heterogêneos movido por jogos de interesses que
resultam em sistemas contraditórios69 (p.46)
Temos assim, um campo de forças que de um lado, contam com mais de cem anos
de construção de discursos pautados em perspectivas punitivistas, morais e religiosas e de outro,
tentando produzir um deslocamento de verdades historicamente construídas, uma gama de
5A XXVIII Jornada Mundial da Juventude (JMJ/Rio 2013) aconteceu de 23 a 28 de julho de 2013 no Rio de
Janeiro/RJ, Brasil. Pela primeira vez, esse evento da Igreja Católica ocorreu em um país cuja língua
portuguesa é majoritária, e pela segunda vez em um país da América do Sul - o primeiro encontro no subcontinente
foi na Argentina em 1987. A escolha da cidade brasileira foi feita pelo então papa Bento XVI em 2011, no
encerramento da Jornada Mundial da Juventude daquele ano.
6 Copa do Mundo de 2014, no Brasil. 7 Cientista Social com experiência na área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, no setor público,
desenvolvendo as seguintes funções: Atuação , em funções diversas, nos seguintes pontos da Rede de Atenção
Psicossocial: CAPS II, CAPS III, CAPS AD II e CAPS AD III, CAPS Infanto-juvenil; Unidade de Acolhimento
Adulto e Infanto Juvenil; Serviço Residencial Terapêutico; Consultório de/na Rua; CAPS Itinerante; Urgência e
Emergência; Leitos de Saúde Mental em Hospital geral; Serviços de Geração de Trabalho e Renda; - Experiência
com populações indígenas na temática de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.
49
programas e tecnologias no campo da saúde mental que faziam grade esforço de produzir uma
mudança nas práticas sociais neste campo.
***
Trago dois episódios vivenciados na cidade de Santos/SP para evidenciarmos como
o campo em disputa esteve presente em vivências cotidianas, muitas vezes funcionando de
modos contraditórios, mas que fazem parte da mesma engrenagem. A cidade de Santos por ser
turística, apresentava nas discussões em relação ao uso de drogas em cenas abertas grande
tensão, haja vista, que podíamos verificar claramente uma disputa entre o cuidado em saúde
pautado na lógica de RD – baixa exigência, produção de vínculo, respeito ao desejo do outro –
e a frequente solicitação da comunidade em geral e das forças de segurança da necessária
produção de controle e retirada dos espaços públicos dessa população.
Logo que assumo a função de Coordenadora na referida cidade, posição que me
colocou em contato com uma diversidade de atores públicos sociais que implementavam,
fiscalizavam e determinavam políticas no campo AD, em uma Audiência Pública chamada pela
então vereadora Telma de Souza – que foi prefeita da cidade de Santos na época do primeiro
programa de IST/AIDS implementado –afim de discutirmos com diferentes atores sociais
(usuários, cidadãos, profissionais de saúde, assistência social, segurança) como vinha sendo
negligenciada a política de AD no município. Na ocasião, Telma apontou para o fato de que
tivemos no município, através do Programa ‘Crack é possível Vencer’ a injeção de recursos
oriundos do Ministério da Saúde para a implementação de serviços de ordem territorial
(CAPSad, Unidades de Acolhimento) e programas de RD que não tinham sido efetivados até
aquele ano. Pelo contrário, houve a injeção de dinheiro municipal em Comunidades
Terapêuticas e um sucateamento acentuado do único serviço existente no município para
população em uso problemático de drogas. A mesa, composta pela gestora do CAPS-ad, eu
como Coordenadora de Saúde Mental, a vereadora, uma professora de uma faculdade particular
de psicologia e um médico de um Polo Regional de Internação Psiquiátrica, tinha um claro
direcionamento, este de pensar na produção de estratégias coletivas de cuidado, em seus
diferentes níveis de atendimento, numa perspectiva de um cuidado em liberdade.
Relembrei, nesse momento, para os que ali estavam, que apesar da consolidação de
diretrizes baseadas na RD, um movimento nacional tenso fez também impulsionou, em 2015,
a regulamentação de entidades caracterizadas como Comunidades Terapêuticas (CT), que
seriam:
50
Art. 1º - As entidades que realizam o acolhimento de pessoas, em caráter voluntário,
com problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa,
caracterizadas como comunidades terapêuticas, serão regulamentadas, no âmbito do
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD, por esta Resolução70.
Sob outra perspectiva e cenário, outro episódio, vivido em fevereiro de 2018, foi
uma Audiência Pública do Conselho de Segurança da Região Centro-Histórica de Santos, no
qual pontuou-se a preocupação quanto o aumento de pessoas em situação de rua e foi cobrado
do poder público uma resolução para o fato. Os discursos dos que ali estavam compondo a mesa
de debate, sendo esses: o Secretário de Saúde, um delegado e o coordenador de uma
Comunidade Terapêutica de uma cidade vizinha, eram no sentido de “precisamos que vocês
tirem essas pessoas; elas afastam os clientes; o cheiro é ruim para quem quer comer; vamos
então criar uma ação de internação coletiva”, entre outras falas, que objetivavam a higienização
da cidade para ficar ‘mais bonita’. Aqui ficava claro que tentava-se construir um “conjunto dos
meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo
a boa ordem desse Estado” 71 (p. 421), ou seja, na afirmação de que a circulação de determinadas
pessoas não é desejável, tentava-se operar um conjunto de estratégias que objetivava a retirada
das pessoas, seja através da composição com serviços que não estivessem na cidade, ali
representado pela Comunidade Terapêutica, seja por forças de segurança que precisariam ser
mais ostensivas.
Vemos, a partir desses relatos, que de um lado temos a busca por estratégias que
efetivassem o cuidado das pessoas, e assim o centro da discussão são as pessoas e suas
necessidades, frente a legitimação dos usuários AD enquanto pessoas de direitos; por outro,
uma racionalidade baseada na proteção da sociedade dos ‘perigosos’, na segurança dos
‘cidadãos de bem’ e na limpeza da cidade, coloca o foco nos efeitos que os usuários de drogas,
entendidos como inimigos e promotores da desordem, produzem na cidade e por isso todo
esforço é válido para manter o indivíduo longe dela.
Apesar de diversos instrumentos legais para a ampliação de práticas sociais de
cuidado que aposte na garantia do acesso ao cuidado e na complexificação das ofertas, o que
ronda constantemente tais implementações é a lógica, presente nas legislações de drogas
brasileiras que tem afirmado uma posição de ‘guerra às drogas’, segundo a qual para evitar que
a droga prejudique a vida, a segurança e a liberdade da população – quero dizer, as pessoas que
tem vidas validadas – encarcera-se, seja pela via da justiça ou da saúde, segregando-se ou
exterminando-se parte da população que não tem valor social.
51
Assim, sob o manto da ambiguidade e ambivalência constrói-se programas que se
apresentam rentáveis ao governo das populações e na injunção da garantia de direitos e da
repressão, vê-se uma diversidade de ações públicas brasileiras que revelam os entraves de
políticas consideradas mais progressistas diante do marco proibicionista vigente.
2.3. Entre os ‘Braços Abertos’ e a ‘Redenção’
Governar é uma atividade problematizadora: ela expõe as obrigações dos governantes
em termos de problemas que eles procuram tratar. Os ideais de governo estão
intrinsecamente ligados aos problemas ao redor dos quais ele circula, as falhas que ele
procura retificar, as doenças que ele tenta curar5 (p.79).
A relação entre as racionalidades políticas e a formatação de programas de governo
apresenta-se pautada na produção de determinados espectros de conhecimento em torno do
problema que precisa ser enfrentado e que o torna operável. O conhecimento e teorias então,
enquanto engrenagens que tomam forma de procedimentos científicos, apoiam mecanismos que
tentam tornar o mundo e suas realidades rebeldes disciplinadas a uma determinada análise do
pensamento5.
Em 2016 assumi a Coordenação da Linha de Cuidado de Saúde Mental de uma
Organização Social de Saúde (OSS) no município de São Paulo/SP, função entendida como um
desafio enorme tanto pela diversidade de serviços que iria gerenciar como, e principalmente,
pelo fato de que um dos territórios de administração dos serviços de saúde da instituição era a
região Central, no qual estava presente o território da intitulado ‘Cracolândia’.
Vale aqui fazer um breve relato desse território, sendo que no município de São
Paulo/SP há aproximadamente 25 anos, algumas ruas do bairro da Luz foram sendo ocupadas
por um grande número de pessoas em situação de rua e uso de diversas drogas. Apesar da grande
vulnerabilidade ali presente, tal local ficou conhecido pela grande circulação de pessoas que
faziam uso de crack e, desse modo, a partir dos anos de 1990, várias iniciativas do poder público
foram direcionadas àquele território, com objetivo de reformular as características da região.
Tais iniciativas basearam-se na necessidade de revitalização do espaço urbano, utilizando-se da
construção de novos prédios culturais, como a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa.
Na repressão da população que ali habitava, enquanto território de existência, ocorreram
diversas operações de segurança pública, como: Operação Limpeza, de 2005, Operação
Dignidade, de 2007, e a Operação Sufoco, de 2012. De acordo com Frúgoli Jr e Spaggiari72 tais
estratégias, contribuíram tão somente para a consolidação de uma territorialidade itinerante que
52
ficou rotulada como “cracolândia”, sem garantir melhorias na qualidade de vida e nos direitos
das pessoas que ali ocupavam.
É no histórico dessa região, que me deparei com o que chamo de ‘território de
experimentação de políticas’, visto que enquanto um local de grande visibilidade midiática,
uma diversidade de programas coabita o espaço, disputando o campo discursivo do que dá certo
ou não no enfrentamento do problema: uso de drogas em cenas abertas. No ensejo dessa
percepção, foi na disputa eleitoral municipal de São Paulo/SP de 2016 que tal evidência foi
reafirmada. O debate entre os candidatos, principalmente entre Fernando Haddad (PT) e João
Dória (PSDB), foi em torno de afirmarem para a população qual seria o melhor modo de lidar
com a questão da ‘Cracolândia’, pautando-se em diferentes racionalidades historicamente
conflitantes: a lógica de tratamento com objetivo da abstinência versus a redução de danos.
O candidato João Dória (PSDB) venceu as eleições e assim teve início, a partir de
janeiro de 2017, a construção de um novo programa para a região, com a promessa de acabar
com aquela cena de uso e tráfico, e de circulação daquelas pessoas. Para tanto, utilizou-se do
discurso de que a estratégia seria de unificação do Programa Estadual conhecido como
Recomeço8, no qual o tratamento é baseado em internações e do programa “De Braços
Abertos”9, programa da gestão anterior, sob o comando de Fernando Haddad (PT), que é
baseado na tríade moradia-alimentação-trabalho.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Floriano Pesaro, Secretário de Estado de
Desenvolvimento Social de São Paulo, pontuou que a essência do programa de Haddad iria ser
preservada, contudo haveria exigência para inserção em tratamentos e desintoxicação ligados
ao Recomeço73. O ‘Programa Estadual de Enfrentamento ao Crack – Programa Recomeço’74
atualmente intitulado como "Programa Estadual de Políticas sobre Drogas - Programa
Recomeço: uma vida sem drogas” é composto conforme relatório escrito na época em que o
Secretário de Estado de Desenvolvimento Social era Floriano Pesaro,
A Rede Recomeço conta hoje com o total de 2.906 vagas distribuídas em hospitais,
comunidades terapêuticas, casas de passagem e repúblicas em diversos municípios.
De janeiro de 2013 a março de 2014, cerca de 32 mil dependentes químicos já
receberam tratamento da Rede Recomeço. Por intermédio do CRATOD (Centro de
8 Reorganizado pelo Decreto nº 61.674, de 02 de dezembro de 2015, do "Programa Estadual de Enfrentamento ao
Crack - Programa Recomeço", que passa a denominar-se "Programa Estadual de Políticas sobre Drogas - Programa
Recomeço: uma vida sem drogas" 75
9 Regulamentado pelo Decreto n°55.067 de 28 de abril de 2014, criado enquanto uma Política Intersetorial
Municipal, apresentava-se com duplo objetivo: intervenção no espaço urbano entendido como degradado e
violento e apoio para as pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas. Para tanto, colocou-se enquanto
objetivo principal “promover a reabilitação psicossocial de pessoas em situação de vulnerabilidade social e uso
abusivo de substâncias psicoativas, por meio da promoção de direitos e de ações assistenciais, de saúde e de
prevenção ao uso abusivo de drogas” 76 (Art 1°).
53
Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) já foram encaminhados para
tratamento mais de 4 mil dependentes químicos74 (p.1).
É sob o ideário de um sujeito usuário de drogas como ‘dependente químico’ que tal
programa se formata, ou seja, de um modelo de cuidado baseado num tratamento que objetiva
a abstinência. Para melhor visualização, trago abaixo a foto de um dos equipamentos existentes
nesse programa do Governo do Estado de São Paulo chamado de Unidade Recomeço Helvétia.
Figura 3 - Unidade Recomeço em São Paulo/SP, 2013
Fonte: Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Essa unidade, criada em 2013, apresenta uma arquitetura de construção
verticalizada, a qual permite de forma clara identificar alguns pressupostos do modelo para
acesso das ofertas terapêuticas que ali existiam, visto que, baseados na complexidade, cada
andar é acessado após alguma exigência ser alcançada pelo usuário. O primeiro andar é
composto por uma portaria, com seguranças e profissionais de saúde lado a lado, que tem o
papel de controle de entrada, sendo lá executados os primeiros atendimentos – intitulados como
‘ações de redução de danos’ – como banho, corte de cabelo, troca de roupas e acolhimento. O
segundo andar é o destinado ao atendimento ambulatorial, ou seja, atendimento médico,
psicológico e social. Já os demais andares são compostos por uma academia equipada, com a
presença de um educador físico, uma cozinha industrial para oficinas de geração de trabalho e
renda, um espaço de desintoxicação e moradia assistida, espaços estes que os usuários podiam
54
utilizar desde que passassem semanalmente por testes de abstinência (teste de urina). No caso
da moradia assistida, podiam ficar até seis meses, desde que não tivessem recaídas justificáveis
perante a avaliação da equipe. Para subir nos andares, o usuário precisava dizer que desejava
parar de usar drogas.
Conforme decreto 59.663/201377 a unidade se destinava a
Receber a população com alto grau de vulnerabilidade social causada pelo uso abusivo
ou dependência de substâncias em centro de convivência voltado às ações de
reinserção; prestar serviços hospitalares de internação de curto/médio prazo para
desintoxicação [...] que desejam iniciar voluntariamente um tratamento ou que
apresentam comorbidade clínica e/ou psiquiátrica grave aguda ou reagudizada;
proporcionar modarias monitoradas, tanto para egressos de internação para
desintoxicação como para pacientes em acompanhamento ambulatorial e que desejam
permanecer abstinentes77 (Art. 2º).
Por outro lado, o Programa ‘De Braços Abertos’ (DBA) se constituiu como
iniciativa inédita no país de um programa municipal pautado na RD, influenciado por modelos
internacionais como housing first (primeira moradia) e o low-threshold service (serviços de
baixa exigência) que significavam, literalmente, ‘baixo limiar de entrada e de disparo’. Tais
experiências afirmavam que o uso de enfrentamento e força só aumenta a resistência ao
cuidado78.
Diferente dos programas anteriores, após diversas tentativas parecidas com as
anteriores – ou seja, de limpeza urbana e retirada das pessoas – utilizando-se de ferramentas
outras, mas ainda com discurso de ‘revitalização’ da região da Luz, foi implementado, em abril
de 2014, o Programa de Braços Abertos (DBA), por meio do Decreto nº 55.06776. O programa
de base intersetorial tinha como diretrizes: a atenção à saúde sob a perspectiva da RD, da
prevenção do uso de drogas, do tratamento e da assistência social; com a oferta de alimentação,
hospedagem e acesso a atividades laborais – através de frentes de trabalho ou de cursos de
qualificação profissional – que lhe dariam renda. Sendo assim, pautado na perspectiva da RD,
deslocava da atenção da droga, ou seja, do tratamento para o uso de drogas, para a garantia de
um pacote de direitos (moradia, alimentação, trabalho e saúde).
Os direitos não eram vinculados à um tratamento em saúde que fosse focalizado no
uso de drogas, mas, sim, na construção de que o problema de drogas por estar relacionado a um
complexo psicossocial, necessitava de uma rede intersetorial que abarcaria o acompanhamento
desses usuários sobre a ideia da garantia dos direitos humanos – conforme própria constituição
cidadã.
55
Figura 4 - Espaço de convivência na Rua Helvétia do DBA
Fonte: Wagner Origenes (2015)
A foto acima é do espaço de convivência do Programa DBA. Em uma aposta num
local aberto, sem condicionalidades para a entrada, com a produção de uma diversidade de
oficinas abertas, o espaço tornou-se uma espécie de ‘quartel general’ dos usuários, que vinham
se proteger em momentos de tensão, mas também para pintar, conversar, dormir, serem
atendidos pelas equipes de saúde e assistência social. Tal espaço era localizado em frente à
Unidade Helvétia do Governo Estadual, o que evidenciava de modo concreto as disputas que
aconteciam naquele território e em todo o território nacional: modelos e perspectivas que
acabam por coabitar os mesmos espaços.
Se, por um lado, tal programa tornou-se vitrine por seu ineditismo, por outro
também não deixou de ser visto com certa desconfiança. Por ter nascido frente à uma pressão
política, afim de dar conta daquela população e como disputa sobre a melhor solução para o
território, em contraposição as ações do Programa Recomeço, direcionou ações que, por um
lado abriram espaço para o habitar de alguns usuários em hotéis e, por outro, circunscreveu a
um espaço determinado, vigiado e constantemente reprimido, num objetivo, não diferente das
56
demais ações já existentes naquele território, de ‘resgatar’, ‘revitalizar’ aquele local para todos
os paulistanos.10
Também nesse cenário, apresentavam-se críticas que entendiam o Programa DBA,
ao ofertar direitos àquelas pessoas, era um escândalo no qual era pago pelos ‘cidadãos de bem’.
Somadas a essas, ainda havia críticas de movimentos sociais que apontavam para ações
recorrentes de ordem estritamente repressiva.
Como esperado, na transição do governo municipal em São Paulo/SP, apoiados nas
discussões da não efetividade do Programa DBA e na associação entre o uso de drogas e a
criminalidade, numa reunião com a nova gestão de saúde da região Central, uma das pessoas
ali presentes e que representava essa transição, relatou que, o que enxergava na ‘Cracolândia’
eram pessoas circulando e procurando um modo fácil de conseguir droga, sendo que o programa
vigente na época apoiava o tráfico, pois a renda ofertada lhes rendia dinheiro para o
financiamento do uso.
Negando a vida e cuidado do que o DBA propôs produzir afirmavam: “precisamos
resolver isso, precisamos acabar com a cracolância!” (Diário de Campo - São Paulo, equipe
de transição do programa Recomeço, 2017). Para tanto, a única solução almejada, era pautada
centralmente no tratamento das pessoas dependentes de drogas, através de um da ‘limpeza’ do
corpo das pessoas, ou seja, na busca por desintoxicação e consequentemente abstinência e,
assim, em contraponto ao que vinha sendo desenvolvido no âmbito municipal, o que para aquele
grupo “só aumentava o problema” (Diário de campo de São Paulo, da equipe de transição do
programa Recomeço, 2017).
Foi, então, em maio de 2017, que às cinco horas da manhã, diferentes equipes me
ligaram para comunicar estavam ‘entrando’ na ‘Cracolândia’. Isso referia-se a uma força
extensiva policial – mais de 500 agentes de segurança – que estava se organizando para entrar
no território afim de acabar com a Cracolândia.
Para o prefeito de São Paulo, João Doria, a Cracolândia "acabou". "A Cracolândia
aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a Prefeitura permitirá, nem o governo do
Estado. Essa área será liberada de qualquer circunstância como essa. A partir de hoje,
isso é passado. Vamos colocar câmeras de monitoramento", disse. Segundo ele, os
hotéis do programa "Braços Abertos", que atendiam os usuários, da gestão de
Fernando Haddad, serão destruídos. Segundo Doria, a região vai ganhar moradias
construídas pela iniciativa privada.
A seguir são apresentadas duas imagens do episódio em questão: a dita
‘desocupação’ da ‘Cracolância’, ocorrida em 2017.
10 Baseado na fala do então prefeito, Fernando Haddad, em entrevista: “Luz, Campos Elíseos são bairros
importantes da cidade e nós estamos resgatando isso para todos os paulistanos”.
57
Figura 5 - Desocupação da 'cracolândia', 2017
Fonte: Mister Shadow/ASI/Estadão Conteúdo, 2017.
Figura 6 - Ação de desocupação na cracolândia, 2017.
Foto: reprodução/GloboNews, 2017.
Após tal ação, coube às secretarias de saúde e assistência social pensar em novas
ações. A grande estratégia pensada foi: a construção de um “CAPS-ad”, que tinha uma
característica de ser um ponto de apoio para internação com uma equipe composta por um
enfermeiro, um técnico de enfermagem e um médico, no regime de funcionamento 24h.
Conforme Portaria Ministerial, o CAPS-ad 24h deve ser composto por uma equipe mínima,
58
afim de conseguir produzir, em conjunto com o usuário e seus familiares, um Projeto
Terapêutico Singular que acompanhe o usuário nos contextos cotidianos, promovendo e
ampliando as possibilidades de vida e mediando suas relações sociais79. Tal legislação formata
assim, o CAPS-ad como dispositivo que não funcionava como articulador de internações, mas
sim enquanto um serviço substitutivo que deveria apostar em estratégias que garantissem o
cuidado das pessoas no próprio território de pertencimento, não se utilizando da utilização de
muros como tecnologia de cuidado.
Saio da função de Coordenadora da Linha de Cuidado de Saúde Mental da OSS em
São Paulo nesse momento, após uma discussão sobre tal equipamento e como exemplos das
mudanças ocorridas, destaco que foram executadas diversas ações policiais de combate ao
tráfico e a abertura de 290 novos leitos em hospitais psiquiátricos no intuito de desintoxicação
de usuários de álcool e outras drogas80.
Vimos, nesse contexto, a transformação de um programa baseado na reabilitação
psicossocial, ou seja, na compreensão de que fatores diversos se correlacionam para que aquelas
pessoas estejam em situação de vulnerabilidade e, por isso, se utilizaram de tecnologias
circunscritas aos paradigmas da RD e baixa exigência, para um novo programa que apresentava
como eixo central a ideia de dependência química e desse modo, ofertando cuidado com foco
no uso de drogas, numa perspectiva de abstinência.
Não se trata aqui de construir um imaginário polarizado, entre ‘boas’ e ‘más’ ações,
mas de lançar luz a um paradoxo permanente que formataram diferentes programas a partir de
diversos valores morais, para atentar ao fato de que diferentes práticas de governo são acionadas
simultaneamente, a depender do ator estatal que as estão mobilizando. As dimensões de direito,
repressão, cuidado, encarceramento e outras que podem vir a ser apontadas, não se opõem, mas
constroem ferramentas de gestão de populações consideradas inumanas.
2.4. (Re)Atualizações
Com as vivências, apresentadas aqui, trazidas no corpo e com olhar atento a quem
havia assumido a Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do
Ministério da Saúde após o impeachment, em 2016, da presidenta Dilma Roussef, entendido
por muitos analistas como um golpe de Estado, assumi a função de Coordenadora Municipal
de Saúde Mental de Santos/SP. A nomeação como Coordenador Nacional de Saúde Mental,
Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, do médico psiquiatra Quirino Cordeiro nos dá
clareza para os rumos que viriam ser construídos a partir de então. Quirino Cordeiro é ator
59
conhecido na cidade de São Paulo/SP por sua vinculação a Associação Brasileira de Psiquiatria,
instituição que tem posicionamento contrário ao modelo de tratamento ofertado pela RAPS,
reafirmando constantemente uma discussão do uso de drogas sob a conceituação de
transtorno/doença, que os posicionam então numa perspectiva de tratamento baseado em
intervenções pautadas no sintoma, ou seja, na medicalização e reclusão enquanto recurso
central. Vale destacar, que nesse sentido, no início do ano de 2017, o referido médico esteve a
frente da construção das primeiras linhas do Programa Redenção, apoiando a reinserção dos
hospitais psiquiátricos como um ponto da rede municipal para o enfrentamento à situação da
‘Cracolândia’.
As diretrizes iniciais do Programa Redenção, conforme publicado em site oficial da
prefeitura de São Paulo/SP, em 2017, foram calcadas no “tratamento de acordo com as
especificidades da fisiopatologia de cada indivíduo, através de política de redução de danos
e/ou promoção de abstinência”, criando uma “rede de moradias monitoradas no município e
uma rede de residências terapêuticas para a continuidade do tratamento. Também serão
utilizadas para esta finalidade as comunidades terapêuticas, em conjunto com o governo do
Estado, para dar apoio a dependentes químicos desintoxicados e sem comordidades”
(Secretaria Especial de Comunicação/SP). A seguir, apresento trecho extraído da página online
da Prefeitura de São Paulo/SP, sobre as principais diretrizes do Projeto Redenção, publicado
em 2017.
Diretrizes do Programa Redenção:
1. SAÚDE (MEDICINAL)
1.1 - CADASTRAMENTO: abordagem contínua, de caráter não impositivo
1.2 - PRESENÇA E PRONTIDÃO: disponibilidade de equipes de saúde no território, 24
horas
1.3 - ATENDIMENTO INTEGRAL: tratar o paciente em sua integralidade, durante e após a
desintoxicação
1.4 - INTERNAÇÃO: disponibilizar vagas para desintoxicação; promover a regulação de
leitos em conjunto com o Governo do Estado
1.5 - CONTINUIDADE: seguimento via prontuário eletrônico na abordagem e nos
atendimentos ambulatoriais, hospitalares e residenciais
1.6 - SINGULARIDADE: cada paciente abordado em Projeto Assistencial Singular;
Tratamento de acordo com as especificidades da fisiopatologia de cada indivíduo, através de
política de redução de danos e/ou promoção de abstinência
1.7 - EFETIVIDADE DE RESULTADOS: medição regular dos resultados das ações;
60
1.8 - PREVENÇÃO: campanhas de prevenção através da mídia e em escolas, além de
treinamento na rede de UBS para orientar famílias a tratar a drogadição ainda no início
Na função de gestora municipal, vivi a recorrente solicitação de informações pelo
Ministério da Saúde, da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, para
a construção de um diagnóstico que tinha, a meu ver, claro objetivo de retomada de uma
perspectiva de política de cuidado em saúde mental pautada em serviços e práticas de ordem
manicomial – Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos.
Assinalo, que tal processo não deve ser pensado descolado de uma nova agenda
política sob uma lógica fortemente conservadora, que através de um discurso forjado de uma
perspectiva puramente neoliberal – que defendem que a redução do Estado, tanto em questões
econômicas como sociais, é caminho para o crescimento econômico e desenvolvimento social
e assim, a lógica do livre mercado é embutida em todas as instâncias – trazem à tona uma
política conservadora-moral.
Sob uma pretensa ausência ideológica – embora carregado de ideologia unicamente
pelo motivo de que ela não transforma, mas conserva –, o conservadorismo é a favor
da vida, da “família”, do bem comum, da preservação da humanidade e dos costumes
estabelecidos que dão sentido à realidade mais imediata e material, apelando ao
mesmo tempo à ordem e à mudança81 (p.169)
Sob o discurso de retomada da democracia, contra a corrupção e do clamor da
construção de uma nação, o pensamento conservador se alastrou numa diversa agenda política
e, viu-se a implementação de uma força tarefa no âmbito do Ministério da Saúde, afim de
agregar dados que pudessem ser utilizados como demonstração do mau uso dos recursos e das
estratégias de cuidado implementados nos últimos anos.
Num claro processo de modificação das legislações sobre o campo de drogas
brasileiras, tivemos a publicação de uma diversidade de aparatos legislativos que trouxeram
novamente para o centro das diretrizes políticas, marcos que se contrapunham ao movimento
institucional dos últimos anos que apesar das tensões vinha tentando se produzir em práticas
sociais alinhadas à perspectiva de RD, e assim, um retorno a um paradigma fortemente
punitivista e reclusivo.
Nesse movimento, no que diz respeito à Política Nacional de Saúde Mental, Álcool
e outras Drogas, através da publicação da Nota Técnica nº 11/2019 “Esclarecimentos sobre as
mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre
Drogas”, emitida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do
Ministério da Saúde, em 04/02/2019, de autoria de Quirino Cordeiro Junior, reafirmou-se a
61
dissociação dessa política AD da política de saúde mental, ficando a política de drogas sob
responsabilidade do Ministério da Cidadania por meio da recém-criada Secretaria Nacional de
Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED)82.
Essa nota, revogada alguns dias depois, devido grande repercussão negativa,
abrangia uma série de mudanças descritas sob a justificativa de construção de “processo
evolutivo de reforma do modelo de assistência em saúde mental, que necessitava de
aprimoramentos, sem perder a essência de respeito à lei 10.216/2001”. Modificaria assim,
pontos importantes no que diz respeito ao alinhamento da política e principalmente no que diz
respeito à rede substitutiva, sendo que “não há mais porque se falar em ‘rede substitutiva’, já
que nenhum Serviço substitui outro” e assim recolocaria o hospital psiquiátrico e demais
serviços de internação na RAPS, destinando ainda financiamento para a compra de aparelhos
de eletroconvulsoterapia e colocando a abstinência como paradigma.
Vale aqui colocar um feixe de luz para o fato, de que três dias após a publicação da
nota, Quirino Cordeiro é nomeado como secretário da SENAPRED, com o provável objetivo
de aprofundar a articulação dessa política aos interesses de associações de comunidades
terapêuticas. Essas oferecem um modelo assistencial monoterapêutico, fincado no isolamento
e em práticas majoritariamente religiosas e na abstinência total83. Essa afirmação se dá frente
ao fato de que já em fevereiro, Quirino Cordeiro esteve em reunião com representantes das CTs
e alguns deputados, reunião que teve como repercussão a criação de uma Frente Parlamentar
na Câmara dos Deputados para fomentar os seus interesses.
No âmbito da Política Nacional sobre drogas, a partir de um projeto em discussão
desde 2013 (PLC 37) movimentado pelo Deputado Federal Osmar Terra, Ministro da Cidadania
em 2019, tivemos a sanção da Lei 13.840/201984 que altera a lei de drogas de 2006. Facilitou-
se, assim, as internações involuntárias, fortalecendo-se as CTs como componente de cuidado
da RAPS, sendo elas incluídas no SISNAD e podendo, a partir disso, receber dinheiro oriundo
de isenções fiscais, sendo a meta de tratamento a abstinência.
Também nesse mesmo movimento, tivemos a implementação da ‘Nova Política
Sobre Drogas’ pelo Decreto nº 9.761/201985, sob a coordenação da SENAPRED. Os
pressupostos dessa política, conforme item 2, são: a busca incessantemente de atingir o ideal de
construção de uma sociedade protegida do uso de drogas lícitas e ilícitas e da dependência de
tais drogas, posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto às iniciativas de
legalização de drogas; a conscientização do usuário e da sociedade de que o uso de drogas
ilícitas financia atividades e organizações criminosas; as ações, os programas, os projetos,
as atividades de atenção, o cuidado, a assistência, a prevenção, o tratamento, o acolhimento, o
62
apoio, a mútua ajuda, a reinserção social, os estudos, a pesquisa, a avaliação, as formações e as
capacitações objetivarão que as pessoas mantenham-se abstinentes em relação ao uso de
drogas; a busca de redução de demanda, entre outros.
A nova política, focada na estratégia da abstinência, que conforme Osmar Terra
pontuou, é devido ao fato de que
A droga está causando uma epidemia de violência no Brasil. Somos o país mais
violento do mundo em termos absolutos. Isso mostra que a política sobre drogas até
aqui não teve importância, não causou nenhum impacto. O presidente está propondo
novas formas de tratamento dos dependentes químicos com uma política integrada,
que terá um impacto maior86.
No ensejo, houve reforço no investimento das CTs, com a publicação de três
portarias11 no ano de 2019 que instituíram o cadastramento, a fiscalização e a certificação das
Comunidades Terapêuticas86, além da ampliação de vagas e o acirramento no que diz respeito
aos recursos enviados aos municípios para a manutenção da RAPS.
Posso dizer até aqui, que não se tratou de uma novidade as citadas implementações,
sendo que tais tentativas eram frequentemente discutidas. Contudo, apesar do acirramento e das
tentativas no que diz respeito à construção de tecnologias pautadas em práticas
descriminalizadoras do uso drogas e também do cuidado pautado no direito do usuário ao uso,
o que tivemos foram práticas sociais que foram sendo inovadas e causaram rupturas, mas que
não modificaram as noções enraizadas.
11 Portaria nº 562, de 19 de março de 2019; Portaria nº 563, de 19 de março de 2019 e Portaria nº 564, de 19 de
março de 2019.
63
CAPÍTULO 3: O CUIDADO EM SUAS DISTINTAS PERSPECTIVAS
Que palavras fazem mais sentido para nós? É a idéia do uso de drogas como algo que
pode concorrer para o sofrimento das pessoas, ou a idéia de uma dependência
química? Que tipo de clínica nós, que acreditamos numa atenção psicossocial,
podemos oferecer para uma dependência química. Se fosse uma dependência só
química, uma clínica psicossocial não teria nenhuma contribuição a dar87 (p. 179).
A partir das racionalidades levantadas até o presente momento dessa dissertação,
podemos afirmar que é num campo híbrido entre segurança, saúde, direitos humanos,
assistência social, entre outras, que se costuram às práticas de cuidado no campo AD, visto que
nossos conceitos, ideias e paradigmas nos colocam em determinados lugares que produzem
deste modo uma clínica que tem interface com a política.
E por que esse destaque da interface clínica- política? Porque aí nos encontramos com
modos de produção, modos de subjetivação [...], modos de
experimentação/construção [...], modos de criação de si e do mundo [...]. O que
queremos dizer é que definir a clínica em sua relação com os processos de produção
de subjetividade implica, necessariamente, que nos arrisquemos numa experiência de
crítica/análise das formas instituídas, o que nos compromete politicamente88 (p.166).
Uma clínica que se propõe ao caminho único e restrito da abstinência é baseada na
pretensa formatação de um sujeito que sofre de uma doença bioquímica, transformando o
sofrimento enquanto consequência direta da doença e localizando no corpo biológico. Essa
objetivação e focalização do olhar e da intervenção sobre o corpo biológico, exclui a
multiplicidade de fatores que constitui a vida, centrando a clínica em procedimentos, com
esvaziamento de interesse pelo outro e assim com uma escuta empobrecida num direcionamento
de busca de sintomas que o encaixariam em determinada patologia89. Esse é um modelo
hegemônico no campo das práticas de cuidado, no qual operam a partir da dicotomização entre
o sujeito e a vida, a interioridade e a exterioridade, a clínica e a política90.
Fundado na crença de uma postura neutra busca produzir a “correção” daquilo que
entende estar desviado e fora da norma. Alimenta- se pela representação de modos de
ser considerados ideais e que, do alto de sua certeza, constituem-se e impõem-se como
modelos de identificação a serem reproduzidos em nome da ordem e do bem-estar90
(p.30).
Assim, a constituição de dispositivos clínicos acaba por fazer operar o governo da
conduta na tentativa de domesticar os comportamentos, reinserir os sujeitos em valores de uma
dita normalidade, através da construção de determinados modos-indivíduos desviantes do que
é considerado normal e bom, ou seja, temos a formatação de subjetividades que transformam
“aquilo que é da ordem do impessoal e da história, conferindo, assim, um sentido para se estar
no mundo que, neste caso, seria o de sua reprodução permanente e indissolubilidade” 90 (p.30).
64
O desmantelamento das redes de segurança, a flexibilização dos padrões de conduta,
o acirramento da competitividade e a exaltação da competência pessoal, dentre outros
fatores, parecem levar os indivíduos a se transformarem, segundo as palavras de
Bezerra (op.cit), em “empresários de si mesmos”, exigindo-lhes uma constante
capacidade de auto-gestão. Paradoxalmente, observa-se que diante de tais tarefas de
auto-regulação, auto-exame, auto- aprimoramento, constitui-se uma espécie de
autonomia assistida que acaba por produzir a relação dos sujeitos com toda uma rede
de ajuda especializada90 (p.30).
Uma escuta que proponha a ampliação desse lugar de clínica, não se apoia num
paradigma que trata de um a priori universal, mas aposta na construção de táticas e produções
locais que visam construir respostas singulares e de um fazer no qual a transmissão de
conhecimentos fixos dê espaço à experimentação21. Tal inversão, traz para o centro do cuidado
toda a complexidade dos processos de saúde-doença-sofrimento posicionando o usuário como
um agente ativo na produção de um cuidado de si, bem diferente do lugar de objeto das ações89.
E é nesse movimento que a luta cotidiana da desconstrução da relação tutelar
realizada pelos manicômios e suas práticas, dos movimentos da luta antimanicomial e das
práticas dos serviços implementados pela Reforma Psiquiátrica, tem exigido dos profissionais
a criação de novas tecnologias de cuidado que rompam com “novos modos de sobrecodificação,
de segmentação, captura e controle” 91 (p.323).
É necessário derrubar não apenas os muros manicomiais, mas colocar em análise a
relação manicomial que se capilarizou no cotidiano das relações sociais, tornando-se
invisível, podendo insistir até mesmo nos espaços ditos “abertos” como é o caso dos
serviços substitutivos de saúde mental91 (p.325).
Nesse sentido, parti da ideia de que pensar no cuidado para pessoas em uso
problemático de drogas aponta para uma necessária análise dos movimentos que se produzem
no cotidiano de cuidado e, assim, pautar-se numa atuação que se faça inseparável dos aspectos
químicos das substâncias, jurídicos, históricos, culturais, políticos, bem como, do contexto de
cada sujeito e suas modulações sócio-histórica-culturais.
Procurei dar luz no meu fazer cotidiano que se de um lado esteve muitas vezes
impregnado de esquemas disciplinadores e planejados em protocolos, visto o forte
atravessamento na formatação de intervenções baseadas no controle e defesa da vida pautados
na ideia de proteção da segurança nacional que se tornam reféns da aliança entre segurança-
cuidado, por outro, também buscou fazer ver e dizer outras possíveis realidades, que não as já
representadas e idealmente construídas para serem seguidas, na busca de desconstruir as formas
pré-existentes de conhecimento sobre si e sobre os outros. Olhar de modo atento é compreender
que a construção de uma rede efetivamente substitutiva aos modelos manicomiais, implica na
transformação da relação entre as pessoas.
65
3.1. A moralidade e a doença
Numa reunião de equipe do Caps-ad levo um caso para discussão, o chamarei aqui de
Sr. do Samba. Ele tinha 68 anos, negro, aposentado devido uso de álcool intenso,
interditado e amante de samba e “das belezas que lá sambavam” como ele mesmo
dizia.
A médica psiquiatra de referência, esta que tinha auxiliado a sobrinha a aposentá-lo e
interditá-lo, entendia a necessidade do mesmo fazer uso de uma medicação que
popularmente é chamada de “anti-etanol” (Dissulfiram) devido sua reação colateral
se utilizado junto com álcool, de desconfortos como o aumento de temperatura
corporal e batimentos cardíacos e com possibilidade de parada cardiorrespiratória.
Ele não queria. Contudo, me pedia para ser sua porta voz: não sentia que tinha poder
para dizer isso. E lá fui eu, levar essa discussão sobre o poder sobre a própria vida do
Sr. do Samba. Entre muitas farpas e discussões - que tive que embasar de modo
aparentemente muito ‘técnico’ com bordões cientificistas - terminamos a discussão
quando pergunto: Se fosse prescrito uma medicação para você e não quisesse tomar o
que você faria?” Ela responde: “Eu não tomaria”. Assim digo: E qual a diferença entre
vocês?
O silêncio se faz (Diário de Campo –Caps-ad).
Foi neste serviço, que, pela primeira vez, vivenciei as tensões existentes no âmbito
da produção do cuidado para pessoas em uso de drogas. Por estar num equipamento de saúde
que fazia parte da rede substitutiva de saúde mental, utilizava-me das lentes de um cuidado que
se pretendia ser em liberdade, centrado no sujeito e seu contexto social, numa relação direta
com a vida das pessoas e seus valores. Tal posicionamento estava alinhado às diretrizes das
políticas e programas no campo de saúde mental, álcool e outras drogas vigentes naquele
momento.
Porém, minhas experiências foram abrindo uma fissura na certeza que carregava,
de que por estar num serviço com direcionamento de práticas de cuidado baseadas na atenção
psicossocial necessariamente o que vivenciaria eram tecnologias de cuidado alinhadas a tal
paradigma. Pude então ir percebendo que alguns dos usuários que procuravam o apoio dos
diferentes pontos de atenção que estive e que não se encaixavam no padrão clínico construído,
quero dizer, nas tecnologias e terapêuticas ofertadas, eram muitas vezes postos numa dinâmica
de “expulsão” do serviço. Digo isso, pautada em experiências que de um lado produziam
tecnologias de punição para aqueles que não se comportavam como deveriam, a exemplo do
Sr. Do Samba e de casos de tentativas de alta administrativa, mas também menos evidentes,
aquelas barreiras de acesso à uma diversidade de pessoas que procuravam atendimento e que
por não apresentarem um discurso de desejo de parar de usar ou então rever sua relação com o
uso de drogas eram postos de “escanteio” no que dizia respeito a ofertas de cuidado.
66
Conforme Cerqueira Gomes et al.92, essa produção de barreira é frequentemente
vista nas situações dos ditos casos difíceis, nos quais se associa o intenso sofrimento psíquico
a algum distúrbio de comportamento. Nesses casos é comum haver uma trans-
institucionalização dos pacientes, cujo destino é um nomadismo sem produção de vínculo em
qualquer lugar de cuidado. Tal percepção apontou-me para o fato de que os profissionais,
pautados primordialmente num modelo de cuidado baseado em concepções nas quais o uso de
substâncias é problemática central na vida das pessoas, acabavam por restringir uma amplitude
de ofertas de cuidado e de diálogo com as diversas subjetividades que ali se apresentavam.
Percepção, essa, que levantei enquanto questionamento nos primeiros anos de graduada e, como
exemplo, temos, como dito no capítulo 2, como o lugar da droga era posto como central na vida
dos adolescentes quando as supervisoras trazem a discussão do aumento de medidas
socioeducativas por tráfico de drogas.
Torcato93 analisando a problemática do controle das drogas refere que ela “faria
parte do autoritário processo que é denominado de medicalização da sociedade” (p. 22),
acompanhado por um enquadramento das pessoas na “normalidade”, quando se projeta os
papéis sociais esperados de cada um para sustentar o funcionamento padrão de uma forma de
organização e postura social pré-estabelecidas.
Nesse sentido, percebe-se que apesar do Sr. do Samba ter sido acompanhado num
serviço baseado num cuidado territorial, singular e em liberdade, essa liberdade era forjada por
um discurso médico-científico que o privava de seu próprio caminhar, e, mais ainda, tendia a
seu extermínio. Se a médica podia escolher a medicação para si mesma é porque tinha
legitimidade social para tal, enquanto o Sr. do Samba era um sujeito não legitimado e, assim,
não estava autorizado a fazer suas próprias escolhas.
Vimos aqui que a macropolítica de guerra às drogas, pautadas em leis e normativas
construídas por todo o século XIX e XX se presentifica através de intervenções micropolíticas,
agenciando-se a atores sociais legitimados para tal ação. Sob a ideia de interdição do desejo e
do domínio de classificação social de vidas que têm valor e utilidade, apostava-se em uma
intervenção sobre o corpo do Sr. Samba, nada diferente das práticas de instituições manicomiais
e/ou práticas do poder soberano, que tinham, enquanto privilégio, o direito de vida e morte de
seus súditos25.
Na atualização dos mecanismos de poder moderno – biopoder – atualizam-se tais
práticas sob autorização de “poder matar para poder viver” 25 (p.129), sustentando uma tática
de guerra que “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi
substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (p.130, grifo meu). Como uma
67
agente de poder-saber, a profissional, se propunha a executar técnicas que dominavam,
exterminavam e feriam aquilo que escapava à normalidade, numa relação de poder que
[...] não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do
soberano, opera distribuições em torno da norma. Não quero dizer que a lei se apague
ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada
vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num
conjunto de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo
reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de
poder centrada na vida25 (p.135).
Pensando sob a história da construção de políticas e programas, observa-se que
pressupostos morais, forjados em discursos técnico-científicos, comparecem num pacto com a
prioridade da segurança nacional, produzindo práticas de cuidado que se mostram imbuídas das
mesmas perspectivas, ou seja, carregando pressupostos que são da criminalização do usuário e
da ideia de seres possuídos pelas drogas coloca em funcionamento
O consumo zero é eleito como princípio norteador, de modo que a abstinência
comparece como única direção de tratamento, objetivo que precisa ser atingido
prontamente. Para algumas linhas terapêuticas, a instalação do estado de abstinência
chega a ser condição necessária e exigida para início e manutenção do tratamento64
(p.144).
Essa rede de significados encontra-se impregnada no imaginário dos usuários e dos
próprios trabalhadores, que acabavam justificando intervenções até hoje muito presentes, como
aquelas baseadas numa noção de um sujeito que pelo uso da droga está fora de controle, incapaz,
anormal, pecador e que por isso necessita de tecnologias, técnicas e práticas de cuidado que
operem diretamente sobre o corpo, a droga e seus comportamentos. O foco do tratamento,
portanto, é a droga, entendida como substância ativa, perigosa e provocadora de todos os males,
subentendendo-se que o cidadão moralmente bem constituído resiste completamente ao seu
uso64 (p.144-145).
***
Não há sujeitos universais de governo: os que devem ser governados podem ser
concebidos como crianças a serem educadas, membros de um rebanho a ser
conduzido, almas a serem salvas ou, podemos acrescentar agora, sujeitos sociais aos
quais devem ser concedidos direitos e deveres, indivíduos autônomos a serem
assistidos, compreendendo-se o potencial deles mediante sua própria livre escolha, ou
ameaça potenciais a serem analisadas segundo a lógica do risco e da segurança. Não
são sujeitos, portanto, mas subjetivações, como um estilo de ação sobre ação. Não
uma crítica a disciplina para esmagar o sujeito auto realizador autêntico do
humanismo, mas uma abordagem que reconhece que nossa própria ideia do sujeito
humano, como individuado, capaz de escolhas, com a aptidões de autorreflexão e em
busca de autonomia, é um resultado de práticas de subjetivação, não a base históricas
para uma crítica de tais práticas" 5 (p.17).
68
É também nesse mesmo CAPS-ad que me encontrei com operadores clínicos que,
sob o discurso de que os usuários pediam por uma condução mais restritiva, justificavam a
utilização de testes de urina e bafômetro como dispositivos de apoio ao “autocontrole” do uso
de drogas pelos usuários. Além disso, ressalto também uma roda da manhã que tinha como
ponto de partida um livro de pensamentos relacionados aos 12 passos do Alcoólicos Anônimos
(AA). Neste tópico, será explorada a utilização do livro, visto que foi a partir dele que me
aproximei pela primeira vez do método dos 12 passos e descobri um apurado recurso de
reengenharia da vida, o que seria uma espécie de manual de como se tornar uma pessoa boa e
longe do uso abusivo de álcool e outras drogas.
As ideias que percorriam os 12 passos do AA partem da ideia de que um sujeito
possuído por uma doença incurável e progressiva, adicto, e, como tal, perde o domínio sobre
sua vida sendo prisioneiro da substância. Nesse sentido, organizou-se uma tecnologia pautada
num caminho que o usuário devia admitir seus defeitos para, então, conseguir a cura da
impotência e da perda de domínio sobre sua vida. Com isso, ele também enxergaria que uma
energia sobrenatural é quem lhe daria forças para que se iniciasse a jornada de libertação para,
enfim, entregar-se aos cuidados que outros lhe proporcionariam, que, no caso, remetia a algum
poder divino.
Trago abaixo os 12 passos tirados do livro “Doze passos e as doze tradições” 94 e
destaco o que, para mim, eram os discursos que me chamavam mais atenção:
1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio
sobre nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à
sanidade.
3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O
concebíamos.
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata
de nossas falhas.
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a
reparar os danos a elas causados.
9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo
quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o
admitíamos prontamente.
69
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus,
na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação
a nós, e forças para realizar essa vontade.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos
transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas
atividades.
A organização dos passos do AA, modelo esse capilarizado e de grande presença
nas ações do campo de cuidado, principalmente nas CTs, indica como a noção de sujeito está
enraizada na valoração de comportamentos que são identificados como falha moral do sujeito
e assim baseia-se numa linha, segundo a qual o sujeito é quem deve, através de operações de
refazer a si mesmo, apoiado pelos agentes de verdade, transformar-se em outro. Vemos para
tanto, o cuidado baseado:
• num sujeito incapaz de escolher (ele precisa de alguém para indicar o caminho)
• na ideia de que há um saber (da saúde, justiça, espiritual) sobre sua vida que está
acima de seu próprio saber.
É sobre a formatação de um sujeito pecador ou moralmente prejudicado que tais
tecnologias se apresentavam como uma relação entre o pastor-rebanho, quero dizer, entre o
usuário que nada sabe e os cuidadores que têm fórmula da salvação. Tal processo, pode ser lido
a partir da noção de pastorado de Foucault71 que o identifica como um
[...] processo pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constituiu como
Igreja, isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida
cotidiana a pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não
apenas de um grupo definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de
toda a humanidade71 (p.196).
Conforme Foucault71 indica, é no advento da Igreja Cristã que o modelo de governar
pastoral tomou forma, sendo então, a teologia cristã um marco na modernidade, pois foi quando
apareceu a primeira vez a ideia de governo das almas, ou seja, o ato de governar pautado na
condução de comportamentos indesejados. Nesse sentido, o governar seria realizado por
pastores ‘indicados’ pelo grande chefe, ‘Cristo’, com a ideia de conduzir o rebanho. Tal
condução estaria a serviço do bem do pastorado, da garantia da vida, sendo realizado através
do exame de si e da confissão.
[...] desenvolve-se entre os séculos XVI e metade do XVIII, sendo este um poder de
origem religiosa. Em nome da salvação construía-se um projeto de dirigir os homens
nos detalhes de sua vida. Tal poder se exerce sobre o indivíduo com o objetivo de
conhecer sua interioridade, produzindo uma verdade subjetiva – através de técnicas
de confissão, exame da consciência e da direção espiritual95 (p. 31).
70
O poder pastoral caracterizava-se, desse modo, por um estado de minuciosa
vigilância frente aos próprios comportamentos e na abdicação das vontades individuais pelas
que o pastor indicava serem melhores. Em correlação com os 12 passos do AA, apoiava a
análise da produção de um cuidado que se respaldava na produção de um inventário de moral
de si, com assunção dos erros e falhas existentes em si mesmo colocando-se de prontidão para
que Deus, ou os pastores, retirasse os defeitos de caráter.
A pedra angular então de toda organização da igreja é que apesar do primeiro pastor
sempre ser Cristo, também há outros pastores: os apóstolos, os bispos que são postos
para guardar o rebanho71 (p. 202).
Foucault71, argumentava que o pastorado cristão é o pano de fundo do processo da
governamentalidade do Estado moderno, estando relacionada com três coisas:
1) a salvação, fundada na lógica do mérito e do demérito;
2) a lei, que vai consubstanciar a servidão;
3) a verdade, revelada por meio do pastor.
Os passos do AA, me remeteram, desse modo, à confissão, no sentido da busca de
uma verdade interiorizada do sujeito, a fim de apoiar o fortalecimento moral através da renúncia
de si mesmo, como um projeto de dirigir os sujeitos em todos os detalhes de sua vida. Nesse
sentido, as instituições de saúde e seus operadores, como pastores de um rebanho, assumiriam
a responsabilidade pelas ações e destino de seus pacientes, indicando-lhes a melhor vida a ser
vivida e a mais saudável, num jogo de direcionamento da consciência a partir do exercício
cotidiano de
[...] cada um falar de si, buscar a verdade em seu interior e confessá-lo a seu diretor.
Alguém se constitui sujeito à medida que fala sua verdade, mas falar sua verdade é
um ato de obediência. É o poder que subjetiva, assujeitando. Institui-se, assim, um
“governo de si pela verdade 1 (p.85).
Podemos assim dizer, a partir dessas duas narrativas – do Sr do Samba e do livro
do AA – que dispositivos clínicos guiados por uma perspectiva moral e também com foco
restrito na doença acabam por impedir a possibilidade da prática clínica se inventar e se
reinventar96. Temos, portanto, aqui a ideia de criar ações que possam servir a reorganização de
falhas morais e/ou psíquicas, para, assim, exterminar os mau hábitos, numa operação de
treinamento do sujeito que deve se afastar da substância, haja visto, essa ser o grande mal.
3.2 A Rua e os Anormais: O Jogo do Tudo Pode
71
É andando pelas ruas da “cracolândia” imaginariamente construída pela mídia e com
olhar de quem está de perto, que entendo que a cidade é um território recortado entre
Museus Públicos, que têm públicos proibidos de circular; e ruas, que fechadas pela
circulação das pessoas que não entram no Público, devem sair do espaço PÚBLICO.
Que território é esse? (Diário de Campo – Gestão OSS).
Pensar a rua enquanto espaço de multiplicidades e diferenças dos que a habitam e
das práticas de cuidado ofertadas nesta, frente aos complexos problemas sócio sanitários, nos
coloca questionamentos, a todo tempo, dos limites dos saberes profissionais, programas e
práticas sobre o cuidado da saúde (e da vida) intituídos.
No Brasil, apesar de o País estar comprometido com um processo capitalístico e estar
em vias de tornar-se uma grande potência, há imensas zonas de população “não
garantida” que escapam a esse tipo de esquadrinhamento, a esse tipo de produção de
subjetividade, e isso é muito importante” 31 (p. 57)
Reconhecemos, então, de antemão, que este espaço de ‘desvio’ social produzido
historicamente tornou-se objeto de intervenções e com a construída ideia da “epidemia do
crack”, os usuários em uso de drogas, em seus distintos territórios, foram transformados numa
categoria de sujeito não-humanos “vitimizados pela captura-dependência que as substâncias
químicas ilícitas lhes provocariam, de tal maneira que eles deixaram de ser sujeitos desejantes
para serem meros objetos inertes e irresponsáveis, quanto aos seus próprios atos” 4 (p. 1).
Conforme Merhy4, essa construção social afirma que para transformar-se em um
‘ser humano’ deve-se “possuir a capacidade de fazer uso da boa razão”, razão esta que é
responsável por humanizar o “mundo e os incivilizados” (p.2). Nesse sentido,
[...] a sociedade cria o problema e a medicina os mecanismos de disciplinarizá-los, ao
contrário do que advoga, não é a evolução dos seus saberes que produz esses seus
objetos. Esses não são frutos de mais conhecimentos científicos sobre o normal e o
patológico no humano, mas construções societárias do que são os normais e os
anormais sociais (p.1).
A saúde, então, muitas das vezes, parte da racionalidade de que sujeitos em uso
abusivo de drogas – principalmente no recorte de populações em situação de rua – apresentam
uma doença e/ou um desvio social-moral, tornando-os uma categoria não humanizada,
acabando por fazer funcionar uma série de procedimentos “de identificação social [...] o qual
requer das práticas em saúde o estabelecimento de medidas de tratamento para isso que hoje é
entendido como questão de saúde pública” 96 (p.163). Aliado a tal discurso da saúde temos o
discurso da segurança pública sob a primazia de segurança nacional e que apresenta este grupo
de pessoas como sujeitos perigosos, contra a lei e a ordem social.
72
Nessa correlação entre saúde e segurança, apoiados em seus discursos de verdade,
há uma construção de realidade social que causa efeitos nas subjetividades, que conforme
Taniele Rui97
Nesse processo, a figura do nóia tomou uma dimensão não prevista e ganhou
centralidade na investigação, concentrando o meu enfoque. Pois, ao contrário do que
mostra a matéria do jornal que, a partir dessa nomeação, generaliza e homogeneíza a
experiência dos usuários, bem como as distintas possibilidades de uso, a pesquisa
empírica revela que trata-se de uma categoria, a um só tempo, de acusação e de
assunção que agrupa abstratamente apenas um segmento muito particular de usuários:
aqueles que, por uma série de circunstâncias sociais e individuais, desenvolveram com
a substância uma relação extrema e radical, produto e produtora de uma corporalidade
em que ganha destaque a abjeção (p.09).
É sob a prerrogativa de um sujeito despossuído de si e perigoso que se apresentam
como principal estratégia a necessidade de intervenções que retirem essas pessoas de ruas, que
se organizam políticas pautadas em internações forçadas e que se medica à força. Tais ações,
entre tantas outras, têm forte presença nos discursos e práticas de cuidado, cuja lógica baseia-
se prioritariamente na tutela e no controle das pessoas. Como exemplo:
Uma nova operação foi deflagrada no domingo (21) na cracolândia, área degradada
do centro de São Paulo onde, há anos, dependentes químicos compram e usam
livremente o crack, seja ao ar livre, em barracas montadas nas ruas ou em pequenos
hotéis. É a primeira intervenção na área feita durante a gestão do prefeito João Doria
(PSDB), que ocorre depois de uma série de tentativas fracassadas de lidar com
esse problema crônico, que envolve questões sociais, urbanísticas,de saúde e de
segurança pública (G1, 2017).
O sujeito colocado enquanto um zumbi perde sua dimensão humana frente ao olhar
da população em geral e muitas vezes dos trabalhadores e, assim, torna-se legitimado qualquer
dispositivo para a interdição e controle dessa população. A condição de extrema
vulnerabilidade, apresentada a todo momento em cenas midiáticas espetaculares, traz uma
sensação social de que algo precisa ser feito de modo resolutivo e assim
Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-
se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O
espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o
mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido
humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais abstrato, e
o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o
espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele
é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É
o contrário do diálogo. Em toda a parte, onde há representação independente, o
espetáculo reconstui-se98 (p. 19).
A produção de imagens e de discursos são instrumentos de exercício de poder,
sendo que na sociedade capitalista, tal exercício acaba se disseminando a toda vida social,
73
constituindo-se uma forma capilar que tem apoio na produção incessante de imagens
assustadoras que despertam certo senso de justiça para sua justificação98. Sob tal movimento,
um conjunto de estratégias discursivas e imagéticas de natureza ideológica adotadas
nas notícias, que, por um lado, tornam salientes a naturalização do crack como
avassalador, violento e viciante ‘craving’ e a substância como inimigo público e que,
por outro, oculta, exclui ou secundariza o papel da rede substitutiva na garantia de
direitos, produzindo bens simbólicos que coadunam com a política da repressão em
detrimento das políticas de promoção da saúde66 (p.881).
Focalizando no combate da droga e da doença, e, como, consequência nas pessoas,
a ideia da internação como tecnologia central de enfrentamento no âmbito da saúde, sob o
argumento de tratar, responde à demanda de segregação e retirada dos ditos perigosos que
circulam a rua41. O cuidado é então produzido, baseando-se na ideia de recaída e abstinência,
certo e errado, circular e não circular, partindo de definições a priori, excluindo as diversas
experiências de uso e focando no controle das condutas.
Tal proposta pressupõe ser insolúvel o problema com a droga. A única estratégia
possível é limitar-se à criação ou intensificação de força psíquica e/ ou moral de
rechaço ao “mau hábito”, em um treinamento para fortalecimento de atitudes de
esquiva ao apelo recorrente da substância64.
E foi nas ‘andanças’ na região da ‘cracolância’ em São Paulo/SP que mais pude
sentir como mecanismos de normatização de condutas não desejadas são em suas diferentes
perspectivas implantadas e experimentadas, um território recheado de ações, na composição de
cultos religiosos, kombis de grupos de CTs oferecendo local para as pessoas irem se tratar,
programas estaduais e municipais, profissionais de diferentes movimentos, ONGs, tráfico de
drogas, entre outros que meu olhar não conseguiu captar.
As normativas legislativas apesar de criarem dispositivos para a população em
situação de rua que lhe garantam a efetivação de princípios e diretrizes do SUS, como aqueles
que fazem menção ao acesso universal e a equidade na atenção, não conseguem anular por
completo as barreiras e dificuldades em se produzir um cuidado que atenda à complexidade e
singularidades existentes, isto ocorre aparentemente pelo modo que os serviços operam o
cuidado nestes ‘espaços marginais’, sem levar muitas vezes em consideração à riqueza
existencial e multiplicidade de saberes que habitam a rua.
Nessa composição tão heterogênea, os ‘anormais’ que circulam pelas ditas
‘cracolândias’ brasileiras, após pesquisa evidenciou-se, conforme a Pesquisa Nacional sobre o
Uso de Crack, que pretendia responder “Quem são os usuários de crack no Brasil?”, enquanto
um grupo, no qual, aproximadamente 80% dos usuários se autodeclaravam negros ou pardos,
60% tinham até o ensino fundamental e apenas 2,35% tinham ensino superior55. Nesse sentido,
74
as intervenções para essa população, estão intrinsecamente relacionadas a intervenções de
populações historicamente marginalizadas no país.
Sobre isso, lançando olhar sobre quem são eram essas pessoas – descritas enquanto
uma população – pode-se reafirmar que as políticas de drogas, fossem elas apoiadas em
discursos da abstinência ou de RD, são constructos que objetivam a regulação da conduta de
determinadas populações. Se olharmos para o código penal de 1890, o primeiro após a abolição
da escravatura no Brasil, encontramos uma roupagem que coloca no campo penal uma
determinada população, que não se mostrava diferente nos territórios entendidos como
cracolândias. Destaco a seguir alguns artigos,
Art. 391. Mendigar, tendo saúde e aptidão para trabalhar
Art. 396. Embriagar-se por hábito, ou apresentar-se em público em estado de
embriaguez manifesta.
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a
vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a
subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da
moral e dos bons costume99.
Vê-se a partir desses artigos do código penal brasileiro de 1890, que ações como:
perambular pela rua, não ter emprego e alcoolizar-se, figuravam enquanto provas do caráter das
pessoas, sendo, portanto, comportamentos sobre os quais cabiam intervenções do campo penal,
apresentando-se como uma estratégia de coerção e controle àquelas condutas ‘anormais’. Nesse
mesmo movimento, apesar de diferentes roupagens, várias intervenções12 foram realizadas na
região da Cracolândia, em São Paulo/SP, como a que se apresentou concretamente para mim
na intervenção realizada em maio/2017, que tinha a ideia de inaugurar o novo programa do
governo municipal, já descrito anteriormente, me trazendo com muita clareza como as ações
sob este grupo são (re)atualizados e continuam com as mesmas características penais e bélicas,
com alvo apontado, como nos mostra a pesquisa da FioCruz, para o mesmo grupo
marginalizado do código penal de 1890.
12 Criação da Delegacia do Crack em 1995 no governo Mário Covas (PSDB); Crack Some, ainda no governo
Covas com ações estritamente de repressão; em 2000 na gestão municipal da prefeita Marta Suplicy (PT) através
de um empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento; em 2005 no governo de José Serra (PSDB) com
a criação do projeto Nova Luz; em 2009 com o governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) e gestão municipal
de Gilberto Kassab (DEM) com mega operações ao tráfico de drogas; em 2012 com ações que foram chamadas de
“Dor e Sofrimento” que conforme dito pelo então Secretário de estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, Luiz
Alberto de Oliveira, a dor e o sofrimento fariam com que aquelas pessoas pedissem ajuda; em 2013 com a
implementação pelo governo do estado de uma ação de internação compulsória de usuários; e também em 2014,
antes da formatação do DBA, diversos episódios de uso de força policial.
75
3.3. Práticas de Resistência
Meu maior desafio aqui é raspar a ideia que o usuário tem de si mesmo, de que ele é
um sujeito desajustado do normal...que não leva uma vida normal... que é uma pessoa
sem caráter (Diário de Campo – CAPS-ad).
Enquanto atora social de diferentes pontos de atenção no cuidado às pessoas em uso
problemático de drogas, vi que a formatação de dispositivos macropolíticos como os CAPS-
ad100, e os diversos pontos de atenção da RAPS65 não davam conta, por si só, da produção de
práticas que fossem pautadas na multiplicidade de formações subjetivas dos usuários. Apesar
desses dispositivos adotarem como diretriz de cuidado, o atendimento comunitário e aberto, por
meio da construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), que funcionavam como
gerenciadores da rede de cuidados para cada usuário, incluindo tanto a rede de serviços de saúde
como também outros dispositivos sócio assistenciais e comunitários, de modo a produzir um
cuidado que desse conta da complexidade dos diferentes modos de viver dos usuários, a
premissa de sujeitos que tem vidas legitimadas para suas escolhas, com um complexo e
histórico processo de marginalização muitas vezes não são postas como centrais.
Esse tipo de lógica de cuidado, reforçada pela Reforma Psiquiátrica, é pautada no
chamado modelo psicossocial, que parte do pressuposto de que o adoecimento psíquico está
além da noção de doença, colocando a doença em parênteses para ver o sujeito em processo de
sofrimento psíquico a partir dos seus determinares econômicos, políticos e sociais101. Nesse
sentido, os recursos usados precisariam ir além do uso de medicamentos e da segregação, na
direção de intervenções que não foquem na cura sintomática, que, no campo AD significaria a
abstinência, mas sim na busca da redução de possíveis danos à sua saúde e da ampliação da
vida.
Esse modelo de cuidado centra-se no respeito às diferenças, à defesa da vida e ao
direito à liberdade e à dignidade da pessoa, cujo objetivo é inclusão e reinserção social,
e a toxicomania ou a dependência de drogas é vista como resultante do encontro de
uma pessoa com uma droga em um dado momento sociocultural, numa tríade
indivíduo-droga-contexto102 (p.1456).
Em vários momentos vividos, posso dizer que o que sempre me sustentou enquanto
uma apaixonada pelo cuidado das pessoas em vulnerabilidades diversas foi me encontrar com
os que ‘não abaixavam a cabeça’ e, assim, reinventavam frente às mais adversas situações um
novo modo de lidar com a vida. Foi com eles que aprendi o significado de resistir.
Assinalo, que parto de uma noção de sujeito enquanto uma formatação produzida
dentro de determinadas relações de poder-saber-verdade e que não são apenas submetidas a
estas, haja vista os fatores ativos de produção de si mesmo. Junto a isso, entendo que a
76
construção de práticas de liberdade tem o compromisso de uma análise política do tempo
presente, ou seja, uma história do presente, que passa pelas diferentes formas de relação comigo
mesmo - mulher, militante, trabalhadora, gestora, pesquisadora – e nos encontros que, de algum
modo, colocaram-me no cuidado de mim e na evidencia de resistências viventes frente a
determinadas subjetivações que foram sendo construídas para esta população.
Nesse sentido, as ações e intervenções produzidas com essas populações foram,
para mim, uma questão de recusar o que diziam sobre ‘sujeitos drogados’ e imprimir uma
abertura para todos os possíveis, que pensados em termos micropolíticos,
[...] faz-se na contraposição a um sistema de dominação, faz-se na construção de
fissuras a este grande modelo de relações, produzindo linhas de fuga e uma espécie
de resistência ativa, que produz, que cria e transforma nas próprias brechas do modelo
instituído. É por isso que, num modelo político centrado nas ideias de segurança e de
produção de seguridade, as práticas de liberdade são uma opção pelo risco, pelo
instável, pelo heterogêneo27 (p. 386).
Conforme Gallo1 traça em seu texto “Biopolítica e Subjetividade: resistência?”, nas
últimas décadas do século XX e XXI um constructo foi produzido através de políticas públicas
centradas na afirmação e promoção da cidadania, o que acabou por evidenciar uma
“governamentalidade democrática [...] azeitada pela constituição de cidadãos” (p.89) e que nos
subjetiva como ‘sujeito de direitos’. Foucault13 destaca que a palavra ‘sujeito’ em seu duplo
sentido, é operado de um lado pela submissão através de mecanismos de controle e jogos de
poder e também na relação consigo mesmo e, desse modo, destaca três modos de luta:
[...] aquelas que travamos contra os processos de exploração, como as lutas dos
trabalhadores contra a expropriação do produto de seu trabalho; e aquelas contra a
submissão, isto é, contra os modos pelos quais somos subjetivados, somos
constituídos como sujeitos. E afirma: “hoje, é a luta contra as formas de sujeição –
contra a submissão da subjetividade – que prevalece cada vez mais, mesmo se as lutas
contra a dominação e a exploração não desapareceram, muito pelo contrário” 1 (p. 90).
Assim, a produção de práticas de cuidado no campo de produção de resistência é
pautada na recusa de todo modo de individualização e formação de modos-sujeitos para
promovermos novas formas de subjetividade, que sob uma tarefa de uma luta pela liberdade,
pauta-se muitas vezes na insistência de existir e resistir, ou seja, na produção de práticas de
liberdade, aqui entendidas, como invenções de linhas de fuga nas relações cotidianas, sejam
com outros, sejam consigo mesmo.
[...] não se trata de liberar o indivíduo do Estado e das instituições; é nela que somos
constituídos, logo não podemos ser fora delas; mas, sendo constituídas nas e pelas
instituições, podemos agir sobre nós mesmos, recusando aquilo que somos e
investindo em transformações de nossos panoramas subjetivos1 (p.91).
77
Conforme Foucault25, onde há relações de poder há relações de resistência. Nesse
sentido, o poder não existe senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência,
sendo eles, em grande maioria, móveis e transitórios e colocam na sociedade “clivagens que se
deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos,
recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis”
(p.91).
Assim, poder e resistência dialogam com o que Foucault25 disse sobre poder e
liberdade, sendo que por entender que não estão em oposição ou em relação de exclusão, o
poder é sempre exercido sobre sujeitos livres. Vale aqui destacar que ‘livre’ é um entendimento
de que sujeitos, sejam eles individuais ou coletivos, têm um campo de possibilidades, reações,
condutas e modos de comportar-se que podem tomar lugar13.
É pela definição de contra conduta como luta contra práticas existentes para
conduzir os outros, que Foucault traduz como procedimentos ativos de um exercício de si sobre
si, a desobediência ao pressuposto no pastorado e abre, portanto, a ideia de um sujeito agente
de sua própria subjetivação a partir da não obediência incondicional71. Desse modo, a aposta é
na produção de uma clínica que deva funcionar como Lancetti47 apresenta enquanto um
“organizador do cuidado”, que considera “o território existencial do usuário e seu contexto. E
por fim a potencialidade do sujeito individual e coletivo em questão” (p. 122).
Vivi experiências que concretizam a ideia de que a existência de um determinado
grupo, muitas vezes é trazido na tentativa de dominar, subjugar e exterminar, contudo seus
corpos combativos afirmavam que ‘o samba não pode parar’. A cada cena, que tentei estar
atenta às sutilezas existentes, pude ter a garantia de que nós construímos incessantemente novos
modos de sentir, habitar, viver e fazer-se ser visto, ampliando meu olhar sobre os modos de
subjetivação existentes. No deslocamento de uma noção de seres despossuídos, que muitas
vezes em minha vida esteve presente frente à minha formação familiar católica-cristã, pude ir
encontrando combatentes possuídos de si mesmos e resistentes às formas de opressão de suas
diferenças e produção de modos de viver normatizados.
***
É no território, também, que se exerce o controle das subjetividades. É nele que se
instala o olho vigilante do poder disciplinar que se ramifica e adere às rotinas
cotidianas, transmutando-as ao sabor das conveniências do mercado. E o que se vende
com as mercadorias são modos de ser, novos mundos e novas formas coletivas de
conceber a vida e a existência – subjetividades capturadas e ansiosas pelo consumo.
Mas se, como propõe Foucault, ali onde o poder incide é onde se exerce a resistência,
o território é ainda lugar de produção contínua de modos de vida e de relações que
escapam ao controle59 (p. 598).
78
Conforme Lima e Yasui59, o território enquanto espaço de habitar de uma
racionalidade dominante é também “lugar de emergência de formas de resistência” (p.598) e
deste modo, não se garante uma prática de cuidado coerente ao cuidado em liberdade, tão
discutido na Reforma Psiquiátrica, se não garantirmos formas de ruptura com esses modelos
dominantes de se viver a vida. Deve-se para tanto dar “lugar a processos de produção de saúde
e de subjetividade, o que implica a inserção em processos de criação voltados para a construção
de novas línguas, novos territórios, novos sentidos” (p.599).
Foi pautada nessa perspectiva, que logo que cheguei no CAPS-ad, percebi que os
usuários que apresentavam algum sofrimento psíquico, inscritos na denominada ‘clínica da
loucura’ e que tinham também o uso de drogas em suas vidas, não eram cuidados efetivamente
no serviço. Numa briga entre ‘o que veio primeiro, a loucura ou o uso de drogas?’, acabavam
por ficar no limbo do cuidado, já que, se de um lado o CAPS Adulto os entendia como um risco
para os outros, o CAPS-ad não produzia novas tecnologias para cuidar deles.
Foi nesse contexto que, junto com uma colega terapeuta ocupacional, que tinha
vasta experiência no cuidado de pessoas em CAPS Adulto, construímos um espaço grupal que
pretendia ser um espaço de construção de narrativas de si, a fim de que pudessem sair do limbo
que as nomenclaturas psiquiátricas lhe colocavam – louco ou dependente químico – para o
status de um sujeito que tem sua própria história. Essa ideia veio após a leitura do livro de
Antonio Lancetti, “Clínica Peripatética”, no qual discute-se, a partir de seis ensaios, alternativas
ao cuidado normalmente realizado em algum setting. Peripatética remete a passar, ir e vir
conversando, numa tentativa de construir um cuidado que está mais ocupado com o sujeito do
que com a “recuperação” das pessoas afim de torna-las normais.
Foi então a partir dessas perspectivas e do encontro com o filme da Eliane Caffé,
“Narradores de Javé”, de 2003, que conta a história da cidade de Javé, que seria represada e,
para isso, fora submersa pelas águas. Com isso, os moradores numa tentativa de bloquear o
represamento, descobriram que só conseguiriam preservar Javé se conseguissem mostrar ao
poder público que a cidade tinha um patrimônio histórico de valor comprovado em ‘documento
científico’. Decidem, então, escrever a história da cidade, sendo que só o carteiro sabia escrever,
e, entre histórias e estórias, contam que o patrimônio existente eram suas próprias vidas e
relações.
Lembro ainda, que para apresentação para a equipe do CAPS-ad dessa atividade
grupal na qual chamávamos de ‘Oficina Terapêutica: o entre andar e narrar’, nós fizemos slides
e a primeira frase que colocamos foi “Todo Delírio é Social, Histórico e Político”, em referência
79
a uma das teses trazidas por Gilles Deleuze e Félix Guattarri no livro ‘O Anti-Édipo103, que faz
luz a todo o debate dos modos de subjetivação já discutidos nos capítulos anteriores, mas que
tinha o foco ali de abrir um campo de diálogo que pudesse sair do ideário ‘psi’ e médico.
Desenvolvemos a oficina entre idas a locais de afeto dos usuários do serviço, produzindo a
escrita de narrativas desses lugares – ‘por que era um lugar de afeto?’ – e a construção de um
mapa da cidade com pontos de afeto para cada um. E nessa experiência pude ver a potência de
[...] sustentar a construção de territórios existenciais, mesmo que efêmeros e nômades,
que possam se abrir, estabelecendo relações com outras vidas e com outros mundos.
E esses territórios não coincidem necessariamente com aqueles circunscritos pelos
serviços, e podem aí constituir vetores de desterritorialização59 (p.600).
Falo isso pensando principalmente num usuário que tinha uma fala recorrente de
que seus dentes estavam podres. Numa das rodas para construir o novo trajeto que iríamos fazer
na cidade ele trouxe isso e outro usuário falou para ele “você quer muito trabalhar né? Mas só
os escravos e cavalos que são avaliados a partir do dente!” (Diário de campo – CAPS Ad).
Naquele dia, ampliamos nosso olhar sobre o cuidado desse usuário e produzimos a possibilidade
junto com ele dele voltar a trabalhar.
A seguir apresento outra vivência que traz a afirmação do território enquanto
experiência de existências múltiplas e, assim, como espaço de cuidado em meu Diário de campo
da época da prática em São Paulo/SP.
A cidade e o centro de São Paulo, seriam para todos? Para mendigos, ricos e outras
ambições?
Numa intervenção da nova gestão municipal de São Paulo em maio de 2017, na região
da Cracolândia em São Paulo, um usuário precisa de remoção para um hospital. A
única profissional disponível sou eu, visto que enquanto gestora estava tentando
organizar um cuidado para os feridos - não havíamos sido avisados de nenhuma ação.
Vou chamá-lo de Chico.
Chico tem aproximadamente 35 anos, negro, e apresenta uma atrofia nas pernas que
impedem sua mobilidade através dos membros inferiores. Ele então anda em cima de
um skate, e sempre o vejo na região, entre ‘corres’ e piração. Hoje estava machucado,
devido balas de borracha, e quando vou junto na ambulância pergunto: ‘cadê seu
skate?’(sic) Ele diz que na ação policial tinha sido retirado dele e por isso tinha levado
tanta bala de borracha. “Tiraram meu jeito de andar na cidade”(sic) (Diário de Campo
OSS/SP - Cracolândia).
Chego para conhecer um dos Hotéis do programa municipal de SP “De braços
abertos”, uma Menina vem ao meu encontro e diz que ela irá apresentar o hotel.
A Menina, que aqui chamo assim, tinha 9 anos, negra, morava com a mãe, outra irmã
mais velha e 3 sobrinhos mais novos. A mãe usuária de crack, com história em
diversas instituições de acolhimento familiar, não estava; a irmã mais velha em toda
a visita cheirava cola e andava com os filhos de um lado para outro.
Terminando a visita, em que Menina mostrou seu quarto, seus brinquedos, os
utensílios da cozinha coletiva e do espaço de convivência, ela me pergunta “tia gostou
da minha mansão? (Diário de Campo OSS/SP – Hotel DBA).
80
Lembro aqui da discussão trazida por Antonio Lancetti47 “o proibicionismo, acaba
por ser construído e construir uma racionalidade que de forma nebulosa nos apresenta a
substância como mal, perigo e assim os seus usuários enquanto possuídos, perigosos” (p.30). E
deste modo, intervenções ‘policialescas’ são efetivadas, conforme já discutido anteriormente.
Mas por outro lado é na multiplicidade das existências nos territórios que Chico e a Menina
afirmam sua existência enquanto ato de resistir. O primeiro, através de uma rede de amigos,
consegue um novo skate para circular na cidade e, a segunda afirma que tem um lugar para
chamar de “sua mansão” e, deste modo, reafirmam sua existência apesar dos investimentos para
sua não existência, sendo o território deste modo relativo tanto a um espaço vivido quanto a um
sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’ 31 (p. 323).
Tais experiências me apresentam que as formas de resistência neste campo,
precisam estar pautadas na desconstrução de verdades que normatizam as vidas a um contorno
de não-humano e assim desumanizadas, para que possamos garantir uma existência real. Assim,
corroboro a afirmação de que
A abstinência não pode ser, então, o único objetivo a ser alcançado. Aliás, quando se
trata de cuidar de vidas humanas, temos que, necessariamente, lidar com as
singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitas. As práticas
de saúde, em qualquer nível de ocorrência, devem levar em conta esta diversidade.
Devem acolher, sem julgamento, o que em cada situação, com cada usuário, é
possível, o que é necessário, o que está sendo demandado, o que pode ser ofertado, o
que deve ser feito, sempre estimulando a sua participação e o seu engajamento61.
As duas vivências trazidas, apoiados pela perspectiva de cuidado da RD, me
lembram da ideia de Passos e Barros62, segundo a qual o analista além de criar ‘intercessores’,
ou seja, novos elementos para desterritorializar, também deve provocar passagens de um
território para outro. Os autores referem a este tipo de clínica como uma clínica transdisciplinar,
que se trata de produzir na clínica dispositivos ou intercessores.
Não uma verdade a ser preservada e/ou descoberta, mas que deverá ser criada a cada
novo domínio. Os intercessores se fazem, então, em tomo dos movimentos, esta é a
aliança possível de ser construída quando falamos de transdisciplinaridade, quando
falamos de clínica62 (p. 77).
Sendo assim, o trabalhador de saúde estaria defronte, conforme Rolnik8 nos
apresenta, de processos de construção e desconstrução de territórios existenciais, quer dizer,
apostando que cada um tem formas de significar e interagir com o mundo.
O fato do território existencial habitar o sujeito, significa que onde ele estiver, seja,
na atenção básica, no hospital, atenção especializada, domicílio, etc., vai produzir o tipo de
81
cuidado que se inscreve no seu universo como uma ética, num modo de ser no mundo a ser
construída. Portanto, o que define o perfil do cuidado não é o lugar físico onde se realiza o
cuidado, mas o território existencial no qual o trabalhador se inscreve como sujeito ético-
político, e que anda com ele onde ele estiver operando seu processo de trabalho104 (p.167).
Se de um lado, quando vemos as políticas, programas e as práticas de cuidado,
apesar de tentativas de construção de novas racionalidades e, assim, produção de cuidado, ainda
pautadas em determinadas racionalidades que são hegemônicas como saudável-não saudável,
normal-anormal, recreativo-problemático, por outro temos a produção constante de práticas que
conseguem de algum modo operar enquanto dispositivo de cuidado de si, ou seja, de olhar sob
si não como um determinado sujeito e assim abrir espaços para produzindo novos. Seria este o
caminho para uma resistência? Se por dentro dos anos marcados por um discurso
antimanicomial práticas manicomiais ainda se presentificavam, podemos nesta mesma
premissa apostar que apesar dos discursos higienistas, violentos, excludentes, mortíferos tão
presentes em nossa atualidade construir práticas que rompem com essa lógica?
Se Foucault sempre recusou uma visão negativa do poder, tomado estritamente como
repressão, colocando sempre o tema da resistência, parece que em seus últimos cursos
vemos uma ênfase maior na afirmação. Uma coisa é dizer que todo exercício de poder
implica em resistência; outra, bastante diferente, é dizer que a ética do cuidado de si
significa a produção de práticas de liberdade, como ele enuncia na conhecida
entrevista de 20 de janeiro de 1984, reproduzida nos Dits et Écrits. Nesta perspectiva,
as questões éticas atravessam e estão atravessadas pelas questões políticas, não
podendo ser dissociadas. Ou, para dizer em outros termos, as relações consigo mesmo
não podem ser dissociadas das relações com o poder, nas dobras do dentro e do fora
do pensamento27 (p.2).
82
CONVERSAÇÕES FINAIS, OU INICIAIS?
As considerações finais são muitas vezes colocadas numa dissertação como
apresentação dos resultados obtidos no decorrer da pesquisa. Contudo, como esta pesquisa não
se propôs fazer um caminho de busca de respostas, mas sim uma ‘andança’ que se pautou nos
movimentos que se apresentaram entre a vivência, os diários de campo, as memórias da
pesquisadora, a pesquisa documental e a escrita, com suas conexões e (re) conexões, trago, aqui
o que ressoou desses encontros.
Essa conversação, deste modo, não se pretende final, já que se lança enquanto feixe
de luz para propor um olhar sob as relações existentes entre as políticas, programas e práticas
de cuidado no campo AD, anunciando linhas que podem a qualquer momento serem (re) abertas
e (re) pensadas.
O campo AD é aqui analisado com especial interesse na discussão em torno da
produção de subjetividades nas relações de poder-saber na sociedade e, desse modo, indago-
me: quais produções de modos-sujeitos nos deparamos nas problematizações trazidas nessa
dissertação?
Vale destacar, que quando falamos de subjetividades estamos partindo de um
paradigma que se contrapõe a uma noção de sujeito do conhecimento, este imbuído de uma
essência previamente dada, sob um princípio de individuação e que independe das condições
sócio-históricas-culturais-econômicas105.
Compreender o plano da subjetividade como uma produção operada por meio de
vetores plurais é compreender que; a despeito da tentativa constante de fixação da clínica num
território científico que dicotomiza e recorta a subjetividade a partir de noções identitárias, que
tendem decodificar e controlar as múltiplas produções de subjetividade, e também, sob a
pretensa ideia de dissociá-la da política e das relações de poder, sejam elas macro e/ou
micropolíticas; o campo da clínica começa a ser engendrado a partir de uma composição de
diversas forças e esquemas que se deparam com as vidas em suas múltiplas existências.
Foucault71, numa análise da política neoliberal contemporânea, situa o surgimento
da biopolítica como um exercício de poder direcionando a vida populacional e que na
composição de diversos fatores como a educação, a segurança e a saúde, criam uma teoria do
capital humano. Sob tal modo de funcionamento do poder, o governo estaria então focado no
desenvolvimento populacional, sob a égide da busca da qualidade de vida, tendo como efeito,
a produção de subjetividades.
83
O exercício do poder é então constituído a partir de atos de governo, que em sua
dupla inflexão – governar aos outros e a si mesmo – passa a colocar o sujeito enquanto agente
de ação71. O governo se dá assim, numa tentativa de funcionar a regulação das condutas
desviantes à sombra de uma gama de discursos científicos, estes últimos enquanto base para a
constituição de aparelhos políticos-científicos-pedagógicos-sociais que interferem na produção
de leis, normas, regras e intervenções, alcançando a própria relação do usuário consigo mesmo,
ou seja, um constante atravessamento de forças, práticas e discursos que tentam intervir sobre
as ações, comportamentos, sonhos e desejos.
O diagrama de forças que atravessam o cuidado aos usuários de AD, sob a égide da
saúde, da segurança, do controle, da cura e da salvação, acaba por tomar uma forma prescritiva
baseada em modelos de vida considerados ‘normais’ e ‘desejáveis’, organizando uma clínica
da disciplinarização que, embasada pelo saber ‘psi’, apoia-se num ideal de sujeito psicológico
e interiorizado à luz da ideia de erro, falta e culpa. O sujeito normal é, então, aquele que NÃO
tem isso ou aquilo, NÃO apresenta estes ou aqueles comportamentos e, assim, técnicas são
produzidas no direcionamento de um possível plano de correção.
Vale aqui sublinhar, que tal perspectiva não está presente apenas em determinados
modelos aqui apresentados (criminal, moral, da doença e redução de danos), já que, apesar de
muitas vezes anunciarem discursos que nos levam a uma ideia oposição e, também, produzirem
tecnologias distintas, há um atravessamento constante da determinação de modelos de cuidado
que devem objetivar a busca pelo saudável e normal. Quero aqui dizer, que nos interstícios dos
imperativos ‘não use drogas’, ‘a droga é (o) mal’ e/ou ‘reduza para viver melhor’ encontramos
racionalidades que se compõem e que implicam diretamente nos corpos e nas condutas dos que
são entendidos como ‘anormais’.
De acordo com Gallo1, a década de 1980 com o fim da ditadura militar e a
construção de uma constituição democrática é marcada pelo esforço da “afirmação dos direitos
humanos e civis dos cidadãos [...] mas também, e sobretudo, na construção de uma forma de
governar nitidamente inscrita na biopolítica, no governo das populações, mais do que
territórios” (p.86). Neste movimento, pode-se analisar que nas últimas três décadas teríamos a
constituição de uma “governamentalidade democrática” (p.86), centrada na noção de cidadania
e que por sua vez, implica na sentença de que para ser governado democraticamente, e não de
forma autoritária, é preciso ser cidadão.
Tal assinalamento é de suma importância para a discussão, já que a população
usuária de drogas, mais especificamente àquela que se encontra em maior situação de
vulnerabilidade social, é marcada por uma dupla intersecção no que diz respeito as tentativas
84
de regulação de suas condutas. Quero dizer, de um lado considerados como sujeitos de direitos,
uma diversa rede de cuidados foi produzida desde a final do século XX com objetivo de garantir
o acesso a direitos constitucionais; por outro, com a caracterização de não-humanos, também
são alvos de ações estritamente violentas, autoritárias e de extermínio, sem que para isso precise
de muita justificativa.
Essa dupla dimensão da produção biopolítica brasileira1, é um possível olhar sob o
fato de que apesar dos avanços alcançados através dos dispositivos legais e práticas sociais
cotidianas nas últimas décadas, que tentaram se apresentar enquanto uma produção que se
contrapunha aos modelos baseados em premissas estritamente morais, jurídicas e do espectro
da saúde conhecido como dependência química, a presença de um campo de forças que,
moduladas por uma construção secular que tende a formatação de uma determinado modo de
se pensar e descrever os sujeitos usuários de drogas, pronuncia-se constantemente no cotidiano,
produzindo um constante paradoxo.
Torna-se, assim, necessário identificar as principais marcações, dessa determinada
objetivação que aqui chamarei de ‘sujeito drogado’, para que possamos efetivar, principalmente
num momento de retrocesso das políticas sociais brasileiras e práticas de cuidado de usuários
AD, ações que se transformem em operadores cotidianos de resistência.
Buscar as racionalidades que normatizam, regulam e constroem verdades sobre os
usuários AD, entre tantas possibilidades existentes, é também apontar para um lugar que é
terreno de justificação para a implementação de políticas, programas e práticas de cuidado,
podendo transformar-se por outro lado, numa ferramenta de desconstrução de mecanismos e
dispositivos que tentam produzir o governo da vida cotidiana através de ações estritamente
punitivistas e restritivas.
Deparei-me no decorrer da pesquisa, com uma noção que me parecia clara nas
discussões, contudo, que poucas vezes vi sendo discutida a fundo: a de que temos racionalidades
políticas hegemônicas, das quais o exercício do poder é conceituado e justificado, podem ser
pensadas a partir dos seguintes campos discursivos:
• Na ilicitude do uso de drogas e de um mundo livre das drogas, sendo que o usuário
de drogas é colocado aqui enquanto um criminoso, visto apresentar um
comportamento transgressor da lei que está posta e que mais que isso, é produtor
de um mal social: o tráfico de drogas;
85
• Na ideia moral do uso enquanto perda de controle sobre si mesmo e de defeito de
caráter, que coloca o sujeito como um ser passivo e objeto da substância, muitas
vezes descrito na imagem midiática de um ‘zumbi’;
• Na ideia de doente, ou seja, da dependência química ou vício, que é colocado sob a
formatação de um sujeito fora da normalidade.
Temos assim, a formação de subjetividades drogadas, pautadas na formação de
concepções científicas, jurídicas, de saúde e morais que apoiam o desenvolvimento de
tecnologias e práticas de governar baseadas em concepções alinhadas ao ideário da interdição
e do acompanhamento para o regramento dos comportamentos entendidos como
desviantes/anormais.
É através desse método que a expectativa governamental se transforma, a um só
tempo, numa possibilidade de tutela e de produção de subjetividades. Tal rede discursiva,
capilarizada para a sociedade de modo recorrente através dos meios de comunicação, cria
também um desejo social-coletivo de ações que busquem erradicar o problema, criminalizando
o desejo das pessoas e assim empurrando os usuários de drogas ao status de ‘lugar de não-
humano’, nas margens dos espaços societários autorizados.
Os diários de campo aqui trazidos, marcam tal questão, quase que sob uma pergunta
não dita, mas sempre apresentada nos interstícios: “não acha que precisamos resolver isso?”.
Neste sentido, posso aqui dizer que a significação dos sujeitos usuários de drogas,
principalmente aqueles em maior marginalidade, tem como consequência nas práticas de
cuidado uma demanda social imposta, que coloca para os agentes operadores de políticas
públicas a necessidade de uma acentuada atenção para que não caiam em armadilhas que
tendem a produzir um aparato clínico focado no desvio e que assim na criação de tecnologias
que tem por finalidade a reintegração do sujeito ao campo da licitude, da boa saúde, da salvação,
e da cura, fazendo funcionar no cotidiano operações que tendem ao aprisionamento de
comportamentos entendidos como ‘anormais’ e ‘não saudáveis’, seja no campo do indivíduo
ou da coletividade, numa ordem de ações que objetivam a dominação dos indomáveis.
A busca por abstinência, nesse sentido, é apenas uma das tantas possibilidades de
se fazer efetivar uma prática de cuidado que tenta conduzir a vida das pessoas, já que, com a
capilarização de tais noções, as ações de cuidado tenderiam à disciplinarização, medicalização
e tutela, sendo esses exercidos tanto por atores socais legitimados para tal execução como pelo
próprio usuário. Tal manejo está intrinsicamente relacionado a via da moral e privilegia alguns
modos de vida desejáveis, em detrimento das forças que fogem à curva delimitada a partir de
86
uma perspectiva social, econômica – a lembrar do enclausuramento da loucura por não se
encaixar nos interesses do Estado.
A escuta quando atravessada por tais perspectivas acaba por formatar-se, numa
implicação direta com as práticas de cuidado, a partir do que Denis Petuco87 conceitua como:
discursos autorizados e os interditos. Os primeiros, baseados no desespero ou sentimento de
derrota, produz uma relação de subserviência às intervenções e os segundos, apoiado no heroico
e vitorioso, cria a ideia de superação individual e busca interna.
Este modo de escuta, conforme Merhy e Feuerwerker89, são ‘práticas do agir
torturador’, já que uma certa modulação do discurso, consistindo em orientar os sujeitos a dizer
o que se quer ouvir coadunam com uma clínica baseada no ideário de um sujeito que tem que
se portar dentro de um padrão esperado.
Apesar dessas pontuações, foram nos encontros em minha trajetória, alguns
apresentados neste trabalho, que pude ir construindo pistas no sentido de lidar com a ‘tentação’
de produzir intervenções que tendessem a busca de sujeitos ‘assujeitados’ ao meu saber. Se de
um lado temos tais formatações, por outro, a resistência em existir me mostrou modos de vida
que não se rendem as constantes tentativas de seu extermínio.
Proponho, desse modo, nada novo, mas uma atenção especial à produção de uma
clínica que seja fuga às formas apriorísticas, sendo essa possível apenas junto com os usuários,
mapeando e evidenciando lado a lado as forças e potências que atravessam nossos
corpos. Instauraríamos, portanto, uma preferência pela diferença, em contraposição a uma
determinada identidade e universalidade do eu e do sujeito.
Num engendramento que se opõe radicalmente ao tecnicismo programado, a
referenciais postos como verdades, à noção de homem com boa saúde e conduta, apostar na
sensibilidade do acontecimento e encontro, para deles fazer experimentar, sempre junto,
possibilidades de ouvir, sentir, afetar e ser afetado. Assim, não mais nos identificaríamos como
detentores de um saber maior e, as dicotomias entre anormal-normal, doença-saúde, crime-não
crime saíram de cena para a presentificação efetiva dos elementos sociais, políticos e
econômicos dos processos de saúde e doença.
Experimentar, dessa maneira, modelos que apostam no constante desmoronamento
de uma clínica que nega as vidas como elas são, numa tentativa de serializar a subjetividade
para ser restaurada a favor de um ideal, para fazer funcionar dispositivos que abram espaço para
as múltiplas existências, de modo que possam ser inventadas e experimentadas a todo momento.
Como efetivar? Não espero responder essa pergunta, já que isso seria a construção
de um paradigma de saber-verdade, porém entendo que apostar em dispositivos que produzam
87
espaços efetivamente dialógicos e que coloquem em cena os atravessamentos que formatam
nossa relação com usuários pode fazer-inventar formas de derrubar o modo como enxergamos
os usuários e como eles também se enxergam.
Isso me remete a uma discussão num Curso de Redução de Danos, no qual era
coordenadora técnica, que agente de segurança que ali participava da formação, num momento
de muito incômodo frente às falas constantes de uma polícia que efetivava ações violentas a
todo momento, nos fez refletir como somos juntos muitas vezes a presentificação dessa rede
violenta.
vocês sempre chamam os ditos trogloditas quando acham que estão diante de um risco
para vocês mesmos...os trogloditas são os que são também chamados pela população
para ‘dar jeito’ aos que sujam as ruas...o troglodita sou eu que sempre sou chamado
para conter os possíveis riscos e depois sou chamado para dizer porque tenho ações
violentas!! Entendam..quando se trata de violência e risco, as forças de segurança
utilizam-se de mais violência e vocês também clamam muita vezes por isso (Diário
de campo – Santos/SP).
Abro então novas perguntas: Não precisaríamos fazer uma análise constante dos
enunciados efetivamente operacionalizados nas práticas de cuidado? Não precisamos nos despir
das concepções ‘biomedicaspsis’, que produzem representações pseudocientíficas sobre as
vidas que acompanhamos, para criar concepções que façam ressonância efetiva com a vida que
os usuários de drogas produzem? Não precisamos de radicalidade na implementação de
enunciados que se contrapõem a ordem discursiva hegemônica?
88
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crack-atinge-dois-milhoes-e-coloca-brasil-no-topo-do-ranking-de-consumo-da-droga-
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76 São Paulo. Estado. Decreto nº 55.067, de 28 de abril de 2014. Regulamenta o Programa De
Braços Abertos e altera o Decreto nº 44.484, de 10 de março de 2004, que regulamenta o
Programa Operação Trabalho.
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96
ANEXO: Parecer CEP/UNICAMP
97
98
99
100
101
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