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5/21/2018 TextoAula3(28.03)-MELLO,Joana-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/texto-aula-3-2803-mello-joana 1/32 revista do ieb n43 set 2006 5 Sumário  Artigos 9 Entre Narciso e o colecionador ou o  ponto cego do criador Bento Prado Jr. 37  Notas sobre o método crítico de Gilda de Mello e Souza Otília Beatriz Fiori Arantes 51 O terror na poesia de Drummond Luiz Roncari 69 Da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira Joana Mello 99  A rima nos cantos populares: contribuições para o rimário brasileiro  Álvaro Silveira Faleiros 127 Um ‘tesouro’ redescoberto: os capítulos inéditos da Amazônia de João Daniel.  Antonio Porro 149 Quando dois acervos se completam: a biblioteca de Mário de Andrade no Brasil e a Staatsbibliothek de Berlim Rosângela Asche de Paula 159 Manuscritos de Outros Escritores no Arquivo Mário de Andrade: Perspectivas de Estudo Márcia Jaschke Machado  Depoimentos 177 Traduzindo a literatura brasileira  para o tcheco – entrevista com Pavla Lidmilová Sarka Grawova  Resenhas 187 Chico Buarque de Fernando de Barros e Silva por  Walter Garcia

Texto Aula 3 (28.03) - MELLO, Joana

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  • revista do ieb n43 set 2006 5

    Sumrio

    Artigos9 Entre Narciso e o colecionador ou o

    ponto cego do criadorBento Prado Jr.

    37 Notas sobre o mtodo crtico de Gilda de Mello e SouzaOtlia Beatriz Fiori Arantes

    51 O terror na poesia de DrummondLuiz Roncari

    69 Da arqueologia portuguesa arquitetura brasileiraJoana Mello

    99 A rima nos cantos populares: contribuies para o rimrio brasileirolvaro Silveira Faleiros

    127 Um tesouro redescoberto: os captulos inditos da Amaznia de Joo Daniel.Antonio Porro

    149 Quando dois acervos se completam: a biblioteca de Mrio de Andrade no Brasil e a Staatsbibliothek de BerlimRosngela Asche de Paula

    159 Manuscritos de Outros Escritores no Arquivo Mrio de Andrade: Perspectivas de EstudoMrcia Jaschke Machado

    Depoimentos177 Traduzindo a literatura brasileira

    para o tcheco entrevista com Pavla LidmilovSarka Grawova

    Resenhas187 Chico Buarque

    de Fernando de Barros e Silva por Walter Garcia

  • 6203 Histria da Alimentao no Brasil de Lus da Cmara Cascudo por Claude G. Papavero

    207 A contribuio italiana para a formao do Brasil de Srgio Buarque de Holanda por Lucy Maffei Hutter

    211 A crtica cmplice de Ana Berstein por Vilma Aras

    221 Uma Enciclopdia Amaznica de Pe. Joo Daniel por Antonio Porro

    Literatura233 poemas de Zuca Sardana234 poemas de Fabrcio Corsaletti236 Ambulncia - Airton Paschoa237 Corpo - Ricardo Lsias

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    Da arqueologia portuguesa arquitetura brasileira

    Joana Mello*

    Ricardo Severo: entre o elogio e a crticaA imagem de Ricardo Severo legada posteridade foi

    em larga medida forjada pelo prprio engenheiro luso e por bigrafos encomiastas1, em geral compatriotas, condisc-pulos e admiradores. Para estes, Severo foi a figura de maior destaque no ambiente cientfico, artstico e poltico dos dois pases em que viveu o Portugal nativo e a ex-Colnia to-mada por ele como segunda ptria seja pelo carter mul-tifacetado de sua obra, seja pelo brilhantismo com que teria desempenhado as mais diversas atividades ao longo da vida, como arquelogo, antroplogo, cientista, historiador, es-critor, arquiteto, artista e construtor. Homem de ao e de cultura, dono de invejvel erudio e de uma personalidade inquieta que faria dele um publicista contumaz, Severo teria desempenhado com nobreza o lugar de patriarca da colnia portuguesa no Brasil, incentivando o movimento associativo luso-brasileiro e a ele dedicando grande parte de seu esforo intelectual. Ao renome como mestre da arquitetura tradi-cional no Brasil se somaria a destacada atuao profissional ao lado de Francisco de Paula Ramos de Azevedo no requi-sitado Escritrio Tcnico, na Companhia Iniciadora Predial e no Liceu de Artes e Ofcios de So Paulo. No quadro pintado por esses bigrafos destoante da leitura especializada2 posterior, diga-se de passagem Severo teria encontrado em Ramos de Azevedo um companheiro da causa tradicio-nalista, podendo a ele ser igualado na transformao da fi-sionomia arquitetnica da antiga Vila de Piratininga. Reno-vao ecltica do cenrio urbano e campanha em prol das artes tradicionais surgindo assim como atividades simult-neas em sua obra arquitetnica.

    * doutoranda da FAU-USP e professora da FAU-UniABC

    1 Carlos Malheiro Dias, Discurso do Sr. Carlos Malheiro Dias. DIAS, Carlos Malheiro. Homenagem a Ricardo Severo. So Paulo: Companshia Melhoramentos, 1932, pp. 8-17; Discurso do Dr. Roberto Moreira. Idem, ibidem, pp. 21-28; Discurso do Dr. Marques da Cruz. Idem, ibidem, pp. 31-36;

    2 Lemos, Carlos A. C. Ramos de Azevedo e seu Escritrio. So Paulo: Pini, 1993; Carvalho, Maria Cristina Wolff. Ramos de Azevedo. So Paulo: Edusp, 2000.

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    Na bibliografia sobre a histria da arquitetura brasi-leira h tambm um lugar obrigatrio, ainda que restrito, para a personalidade e atuao de Severo. Em linhas ge-rais, os historiadores tenderam a atribuir um papel conser-vador cruzada tradicionalista empreendida pelo enge-nheiro luso em prol da recuperao das artes e da arquite-tura do perodo colonial. De um lado, Severo aparece como principal mentor terico do movimento neocolonial, orador apaixonado, precursor da pesquisa em torno de uma su-posta nacionalidade artstica brasileira, patrocinador dos primeiros estudos in loco da arquitetura colonial feita no pas, alm de um de seus maiores colecionadores e defen-sores contra a vaga acadmica e modernizadora que se alastrava no campo das construes desde os ltimos de-cnios do sculo XIX. De outro, o engenheiro surge como dos maiores dilapidadores e falsificadores da arquitetura colonial; como restaurador inepto e arquiteto mediano, res-ponsvel pela produo de mais uma variante do ecletismo europeu no j carregado panorama historicista local (a di-ferena ficando por conta do sotaque portugus) e pela va-lorizao duvidosa, quando no manipuladora, de elementos de arquitetura colonial e portuguesa, civil e religiosa, que misturaria sculos e procedncias, incongruentes no tempo, no espao e no estilo. Ocupando na historiografia um lugar semelhante ao do prprio neocolonial, o principal mrito de Severo teria sido o ter aberto caminho para a retomada, es-tudo e preservao de uma arquitetura pretrita; caminho este que s seria corretamente percorrido a partir dos anos 1930 com os arquitetos modernos cariocas.3

    Se entre os admiradores predominou o culto de uma personalidade absolutamente singular em seu tempo, desta-cada de seu contexto, para os crticos a importncia do en-genheiro portugus se restringiu a um episdio circunscrito (e menor) da arquitetura brasileira. As imagens convencio-nais de seu papel histrico ora apologticas, ora crticas, ora auto-indulgentes mostram o quo inespecfica a classificao pura e simples de Severo como conservador, nacionalista ou tradicionalista. Participando ativamente

    3 Costa, Lucio. Muita construo, alguma arquitetura e um milagre (1951). Lucio Costa: registro de uma vivncia. So Paulo, Empresa das Artes, 1995, pp. 164-165; Goodwin, Phillip L. Brazil Builds Architecture New and Old 1652-1942. New York, Museum of Modern Art, 1943; Mindlin, Henrique. Arquitetura Moderna no Brasil (1956). Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 1999; Bruand, Ives. Arquitetura Contempornea no Brasil. So Paulo, Perspectiva, 1981; Lemos, Carlos A. C. Arquitetura Brasileira. So Paulo: Melhoramentos, 1979.

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    do esforo de compreenso e definio da nao brasileira, o engenheiro portugus e sua obra ajudam a problematizar um perodo j to estudado de nossa histria intelectual, as dcadas de 1910, 1920 e 1930, apontando para a diversidade de projetos em curso naquele momento. Afinal, a busca dos elementos fundantes de uma nao, a constituio de uma identidade capaz de particulariz-la no confronto com o outro, as tentativas de compreenso de sua insero inter-nacional e as possibilidades futuras eram preocupaes re-correntes para os intelectuais que no comeo do sculo XX se engajaram nos mais diversos movimentos nacionalistas4. Se as preocupaes eram comuns, as respostas ou sadas por eles elaboradas eram diferentes e at divergentes, o que poderia ser explicado levando-se em conta os parmetros a partir dos quais elaboravam suas vises de mundo, o ar-senal analtico que manejavam e a misso social e poltica que cada um deles se atribua. Identificar e analisar esses parmetros em Ricardo Severo pode ajudar a ampliar a compreenso do debate artstico daquele perodo, tornando mais complexa e matizada a leitura da produo arquitet-nica ecltica, neocolonial ou moderna.

    Dessa forma, para compreender as idias de Severo, bem como precisar o sentido de suas propostas e atuao pblica, preciso recuperar algo de sua biografia e itine-rrio intelectual, buscando sua inscrio no tempo e na so-ciedade que lhe foi dado viver. De modo geral, os textos es-critos pelo engenheiro portugus sugerem a existncia de dois momentos em sua vida: o primeiro em Portugal, entre 1884 e 1908, no qual domina quase que exclusivamente o interesse pela arqueologia; e o segundo no Brasil, entre 1908 e 1940, quando o engenheiro diversifica suas ativi-dades, dedicando-se luta republicana, valorizao do legado luso no Brasil, unificao e fortalecimento da co-lnia portuguesa no pas e arquitetura. Se a ntida demar-cao desses dois perodos corresponde a uma mudana sig-nificativa nos focos de atuao de Severo, ela tambm per-fila uma linha de continuidade marcada pelo compromisso com as tradies lusitanas e as idias raciais-evolucio-nistas. Seus escritos e projetos, imbudos de tom polmico e programtico, eram caractersticos de um nacionalista ator-mentado pelas transformaes geopolticas internacionais e pelo modo como estas incidiam sobre as realidades brasi-

    4 Candido, Antonio. Uma palavra instvel. Vrios Escritos. So Paulo, Duas Cidades, 3 edio, 1995, p. 293-305.

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    leira e portuguesa na virada do sculo XX. Nota-se que o discurso do engenheiro, sem projetar uma trajetria indivi-dual absolutamente coerente e perfeitamente encadeada no tempo5, dialoga com o contexto social, poltico e cultural em que foi produzido, sendo possvel recompor historica-mente os sentidos de seu controverso nacionalismo e tra-dicionalismo.

    Um mundo portugus em runasRicardo Severo da Fonseca e Costa (Lisboa, 1869

    So Paulo, 1940) viveu as profundas transformaes po-lticas, econmicas, sociais, cientficas e culturais que de-finiram a chamada era dos imprios.6 Como se sabe, os anos de 1870 a 1914 foram marcados por intensas disputas entre Estados imperialistas jovens e velhos pela dominao de mercados consumidores mundiais e territrios coloniais na frica e no Oriente. Estas disputas, ocasionadas por um tipo curioso de crise econmica7 implicaram uma mu-dana profunda no antigo arranjo de foras entre as potn-cias do perodo, alm de sinalizar o advento de um novo tipo de imperialismo.8

    Portugal, pas essencialmente agrrio, ocupava um lugar bastante frgil nessa nova ordem mundial. Seu do-mnio colonial, principalmente na frica, se via ameaado tanto pelas fortes presses comerciais britnicas, quanto pela dificuldade administrativa de transformar os antigos enclaves africanos em colnias. Ameaa cuja gravidade s pode ser medida levando-se em conta que a manuteno e controle das colnias africanas no representava nesse momento apenas a possibilidade do imprio reconquistar o posto de entreposto comercial de produtos tropicais, mas tambm a garantia da conservao do prprio territrio metropolitano e sua independncia como nao, abalada ento pelo ameaa real de uma nova Unio Ibrica9. A esse quadro externo complexo somavam-se internamente su-

    5 Bourdieu, Pierre. A iluso biogrfica. RazesPrticas. Sobre a Teoria daAo. Campinas, Papirus, 1996.

    6 Hobsbawm, Eric J. A Era dos Imprios. So Paulo,:Paz e Terra, 1988.

    7 Arendt, Hannah. As Origens doTotalitarismo. So Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 147-187.

    8 Thomaz, Omar Ribeiro. Ecos do Atlntico Sul:Representaes sobre oTer-ceiro Imprio Portugus. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/ FAPESP, 2002, p. 38.

    9 Idem, ibidem, p. 30-80.

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    cessivas crises, cujo foco central era a prpria Monarquia, desgastada por sua orientao econmica que privilegiava a atividade agroexportadora em detrimento do pequeno produtor rural e da indstria nacional , pela incapacidade de administrar os territrios coloniais e por uma sensvel queda no nvel de vida da populao, sobretudo entre as camadas mais pobres e a pequena e mdia burguesia.10

    O quadro de crise generalizada desembocaria em uma srie de protestos contra a Coroa11, que ecoavam um dos temas centrais dos debates polticos-culturais da Europa deste perodo: a decadncia e a salvao.12 Em Portugal, esse ser o tema dileto do movimento republicano que, em consonncia com outros movimentos de redeno em curso no continente, via na busca das origens das naes, dos traos primitivos das raas fundadoras e das formas ances-trais de governo, o nico caminho possvel de retomada da grandeza nacional frente s ameaas internas e externas de desestruturao.13 Era a partir dessa investigao das origens que se acusava a artificialidade da Monarquia e o declnio do imprio portugus, afirmando-se a Repblica como nica possibilidade de salvao nacional, seja por constituir o pice da evoluo humana no mbito poltico, seja por emanar diretamente do carter tnico e, portanto, da natureza de seu povo.14

    O ncleo de oposies republicanas monarquia, que foi gradualmente se constituindo desde meados do sculo XIX, tinha como canais principais de divulgao e propa-ganda os meios de comunicao de massa e as instituies de pesquisa e ensino superior em Coimbra, Lisboa e Porto.15 Mais do que um simples projeto poltico, o movimento repu-blicano em Portugal se configurou como um iderio social, espiritual e cultural que fomentava uma viso de mundo marcada pelo anticlericalismo, cientificismo, evolucionismo

    10 Cartroga, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da formao ao 5 de outubro. Coimbra, Faculdade de Letras, 1991, pp. 12-19.

    11Idem, ibidem, pp. 12-19.

    12 Oliveira, Lucia Lippi, Decadncia e salvao. A Questo Nacional na Primeira Repblica. So Paulo, Brasiliense, 1990, pp. 49-73.

    13 Arendt, Hannah. Op. cit., pp. 147-187.

    14 Catroga, Fernando, Op. cit.., p. 45.

    15 Ramos, Rui. A nao intelectual. RAMOS, Rui. A segunda fundao (1890-1926). MATTOSO, Jos (org.) Histria de Portugal. Lisboa, Crculo de Leitores, 1994, pp. 43-67.

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    e nacionalismo.16 No a toa que, entre o final do sculo XIX e os anos 1930, o movimento coincida com o perodo de supervalorizao das tradies lusitanas e de construo da nao num sentido amplo, e que os principais smbolos, instituies e personagens que do identidade ao pas ainda hoje tenham sido definidos nesse perodo.17

    Ricardo Severo participa do movimento republicano portugus em seus vrios mbitos. Do ponto de vista estri-tamente poltico, envolve-se ativamente na revolta do Porto de 189118 participao que lhe custaria um perodo de exlio no Brasil e produz entre 1910-192319 uma srie de conferncias sobre a causa republicana. Nestas confern-cias postulava a partir da reconstituio histrica e arque-olgica da nao portuguesa ser possvel comprovar cien-tificamente que a Repblica era a prpria sntese indisso-lvel do carter tnico, moral e social dessa nacionalidade, cujas origens se confundem com a histria do prprio solo nacional, desde os perodos geolgicos do Quaternrio.20 Tanto esta afirmao como sua atuao s podem ser enten-didas neste contexto, em particular no tocante ao veio mais profcuo de sua militncia republicana: a arqueologia.

    Poltica de redeno: republicanismo e arqueologiaA primeira notcia do envolvimento de Ricardo Se-

    vero com o mundo cientfico portugus, sua participao no IX Congresso de Antropologia e Arqueologia Pr-hist-rica (Lisboa 1880)21, coincide com a conjuntura de queda no nvel de vida da populao e radicalizao dos protestos contra a Coroa. O congresso foi particularmente marcante para o engenheiro. Primeiro, porque foi naquela ocasio que

    16 Catroga, Fernando. Op. cit., p. 197.

    17 Ramos, Rui. Op. cit, pp. 565-595.

    18 Sobre a revolta de 1891 do Porto ver Catroga, Fernando, Op. cit., p. 113-135.

    19 Ramos, Rui. op. cit.

    20 Severo, Ricardo, Origens da nacionalidade portuguesa. Revista Portuguesa. So Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, p. 336.

    21 Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. Rio de Janeiro/ Lisboa: Editorial Enciclopdia, 1945, pp 618-619. A data suscita dvida, dado que em 1880 Severo contava apenas com 11 anos. nesse mesmo ano, contudo, que Severo passa a editar, em parceria com Alberto Ortigo Miranda, o jornal semanal O Instrutivo, publicado at pelo menos 1883, cujos exemplares foram esto em posse do neto de Severo, Luis Roberto Severo Lebeis.

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    ele tomou contato com as pesquisas de Nery Delgado (1835-1908)22 e de Carlos Ribeiro (1813-1882)23, cuja influncia seria decisiva em sua vida profissional; segundo, porque o evento ocorreu no ano em que se festejava o centenrio da morte de Luis de Cames, cujas comemoraes ensejaram o fortalecimento do at ento incipiente movimento republi-cano portugus.24

    Severo ingressou na Academia Politcnica do Porto25 em 1884, formando-se em Engenharia Civil de Obras P-blicas em 1890 e em Engenharia Civil de Minas em 1891. No se sabe se constava destes cursos uma introduo pesquisa arqueolgica, ainda que em Portugal a matria tenha se vinculado ao estudo de minas, geologia e cincias naturais26. Tambm no se pode afirmar ao certo se a opo de Severo pelo curso de Minas foi a extenso natural de um interesse prematuro pela arqueologia, anunciado desde o congresso de 1880. Percebe-se, entretanto, que nos anos em que freqentou a Academia, a matria assumiu a prio-ridade entre as suas atividades acadmicas e profissionais e que seu interesse pela disciplina era compartilhado com um grupo de intelectuais republicanos portuenses.27 Com esses, desenvolveu uma srie de iniciativas em que se manifesta o

    22 Sobre Nery Delgado ver a biografia escrita por Ana Carneiro no site do Instituto Cames, http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p37.html e no site do Instituto Geolgico e Mineiro de Portugal http.//www.igm.pt/document/centros/museu_geologico/biografias/nery_delgado.htm

    23 Sobre Carlos Ribeiro ver a biografia escrita por Vanda Leito no site do Instituto Cames, http://www.intituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p38.html e Severo, Ricardo. Carlos Ribeiro. Revista de Cincias Naturais e Sociais. Porto, 1897/98, v. V, fasc. 20, p. 153-187.

    24 Catroga, Fernando. Op. cit.

    25 Sobre a Academia Politcnica do Porto ver: Santos, Cndido dos. Universidade do Porto razes e memria da instituio. Porto, Universidade do Porto, s.d.; Rodrigues, Maria de Lurdes. Os Engenheiros em Portugal: Profissionalizao e Protagonismo. Oeiras, Celta Editora, 1999 e os sites Engenharia do sculo XX http://www.engenharia.com.pt; e Universidade do Porto/ Faculdade de Engenharia http://sifeup.fe.up.pt.

    26 Martins, Manuela. Martins Sarmento e a arqueologia. Revista Guimares. Guimares, 1995, n. 105, pp. 127-138. Casa Sarmento http://www.csarmento.uminho.pt/docs/ndat/rg/RG105_08.pdf.

    27 Faziam parte deste grupo Jlio de Matos, Wenceslau de Lima, Baslio Teles, Alfredo Xavier Pinheiro, Joo Barreira, Artur Augusto da Fonseca Cardoso, Antonio Augusto da Rocha Peixoto, entre outros. Severo, Ricardo. Origens da nacionalidade brasileira, 1930, tomo I, fasc. I, pp. 58- 62; Severo, Ricardo. op. cit., 1932, Ricardo Severo, Recordando orao pronunciada no Centro Republicano Portugus de So Paulo, em 31 de janeiro de 1937. Revista Portuguesa. So Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, p. 372-375.

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    compromisso duplo: de um lado, com a pesquisa cientfica, de outro, com o projeto poltico republicano de redimir a ptria decada.

    Exemplo da atuao poltico-cientfica do grupo a fundao da Sociedade Carlos Ribeiro28 (1887- 1898). Para os jovens, essa personalidade hbrida de oficial do exr-cito e cientista, era um dos pioneiros da geologia, paleon-tologia, paleoetnologia e arqueologia em Portugal, seu tra-balho servindo como exemplo de pesquisa cientfica. Va-lendo-se de supostas descobertas arqueolgicas feitas por Ribeiro s margens do Tejo, a sociedade instituda em sua homenagem buscava endossar sua principal tese: a origem pr-histrica e independente da nacionalidade portuguesa.

    Carlos Ribeiro, no entanto, no era a nica referncia terica dos membros da sociedade. O trabalho dos arque-logos e etnlogos vimarenses Francisco Martins Sarmento29 (1833-1899) e Alberto Sampaio (1841-1908)30, tambm digno de nota, sobretudo no que diz respeito aos estudos comparativos que o primeiro realizou nos castros e ci-vidades da regio do Minho, que comprovariam no s a antigidade destas acrpoles fortificadas, como a origem pr-romana e pr-celta do povo portugus. Partindo dessas descobertas, estes cientistas se contrapunham tanto queles que defendiam o celtismo e orientalismo na origem desse povo, quanto queles que, como o historiador e romancista Alexandre Herculano (1810-1877), afirmavam a inexis-tncia de relaes genealgicas entre os portugueses e as populaes pr ou proto-histricas, especialmente com os Lusitanos.31

    28 Sobre a Sociedade Carlos Ribeiro ver Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. Rio de Janeiro/ Lisboa: Editorial Enciclopdia, 1945, p. 583-584.Ver Peixoto, Rocha. A Sociedade Carlos Ribeiro, Revista de Cincias Naturais e Sociais. Porto, 1898, v. V, n. 20, Idem, A Sociedade Carlos Ribeiro. Portuglia. Porto, 1899, tomo I, fasc. 1, p. 155.

    29 Sobre Francisco Martins Sarmento ver o site da Casa Sarmento http://www.csarmento.uminho.pt/sms.asp e do Museu Martins Sarmento http://www.geira.pt/MSMartinsSarmento. O primeiro artigo de Ricardo Severo de que temos notcia, escrito em co-autoria com Fonseca Cardoso, segue os mesmos passos e premissas da pesquisa desenvolvida por Sarmento nas estaes pr-histricas de Briteiros, Citnia e Sabroso. Severo, Ricardo, e Cardoso, Fonseca. Notcia arqueolgica sobre o Monte da Cividade. Revista Guimares, 1886, http://www.csarmento.uminho.pt/sms.asp.

    30 Sobre Alberto Sampaio ver o site do Museu Alberto Sampaio http://www.geira.pt/malbertosampaio.

    31 Martins, Manuela. Op. cit, p. 7.

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    Outros dois exemplos importantes da atuao do grupo de Severo so: a Revista de Cincias Naturais e Sociais32 e a Portuglia. Materiais para o estudo do povo portugus. Fun-dada em 1890 como o principal instrumento de ao da Sociedade Carlos Ribeiro, a Revista de Cincias Naturais e Sociais era dirigida por Rocha Peixoto, Ricardo Severo33 e Wenceslau de Sousa Pereira Lima (1858-1919)34, dedicando-se a publicao de estudos sobre paleoetnologia, etnologia, etnografia, geologia, botnica, zoologia e arqueologia, a maioria deles dedicados pr-histria da nacionalidade portuguesa. A revista circulou por oito anos, sendo seu en-cerramento justificado em nome de uma nova publicao que a suplantaria em alcance e envergadura: a Portuglia.

    A maioria dos colaboradores da Revista de Cincias Naturais e Sociais est presente na Portuglia, que mantm e amplia o projeto editorial anterior. Em consonncia com o discurso nacionalista do grupo de republicanos ao qual pertencia, Severo afirmava que o objetivo central da publi-cao era o de levantar os verdadeiros elementos da vida e do carter nacional, a nossa razo de ser e da nossa his-tria, o substractum da nacionalidade, para inaugurar um novo perodo de renascena dentro da prpria naciona-lidade, que [era] tambm a renascena de um velho povo.35

    De volta a Portugal, depois do perodo de exlio no Brasil (1891/92-1897/98), Severo lidera a criao da Por-tuglia. Nesta nova iniciativa, o engenheiro era ao mesmo tempo proprietrio, diretor e editor da publicao, tendo es-crito dezenas de artigos, quase todos dedicados arqueo-logia. Nos que abordava as origens da nacionalidade por-tuguesa, o engenheiro seguia as trilhas abertas por Ribeiro e Sarmento, defendendo que do ponto de vista mesolgico

    32 Sobre os objetivos gerais da Revista de Cincias Naturais e Sociais ver Telles, Bazlio. Introduo. Revista de Cincias Naturais e Sociais. Porto, 1890, vol I, fasc. 1, pp. 1-5 e Peixoto, Rocha. Publicaes peridicas Portuglia. Porto, tomo I, fasc. 1, 1899, p. 176.

    33 Severo aparece como diretor da revista em todos os fascculos, mas colaborou efetivamente, escrevendo artigos, notcias e/ou resenhas, nos fascculos 1 a 4 (volume 1/1890); fascculos 5 a 8 (volume 2/1893) e fasc-culos 17 a 20 (volume 3/1897-98). Nos fascculos 9 a 12 (volume 2/1894-95) e fascculo 13 a 16 (volume 4/1895-96), Severo pode no ter participado por ainda estar em So Paulo.

    34 Sobre Wenceslau de Sousa Pereira de Lima ver o site do Instituto Geolgico e Mineiro de Portugal http://www.igm.pt/document/centros/museu_geologico/biografias/wenceslau.htm.

    35 Severo, Ricardo. Prospecto e Programa Geral. Portuglia. Porto, tomo I, fascculo 1, 1899, p. VII

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    a constituio do territrio [portugus] como unidade ge-ogrfica independente era garantida pela topografia e hi-drografia, cuja constituio teria isolado Portugal do resto da Europa; e que do ponto de vista racial, a nacionalidade portuguesa tinha como clula matriz o ibero-ligrico. A defesa da pureza racial portuguesa era, ao mesmo tempo, essencial e problemtica em seu discurso. Essencial, por ser naquele momento, ao lado da unidade territorial, um dos atributos decisivos da afirmao da nao e de sua inde-pendncia. Problemtica, na medida em que o ideal de pu-reza racial era turvado pelo fato, admitido pelo prprio en-genheiro, de que a Pennsula Ibrica tinha sido palco das mais diversas migraes, sendo sua populao sob o ponto de vista da sua composio tnica [...] assaz mesclada. Ca-racterstica que indicaria a degenerao da nacionalidade e, portanto, a impossibilidade de concretizao do projeto de redeno da nao em declnio. Era para escapar da ameaa da mestiagem e do perigo de desintegrao nacional que Severo afirmava, ainda que de modo contraditrio e for-ado, que os diversos povos que passaram pelo territrio portugus desde a pr-histria pertenciam ao mesmo grupo racial lusitano ou no tinham um papel de relevo na cons-tituio daquela nacionalidade.36

    Depois de vinte e quatro anos dedicados arque-ologia, Severo interrompe aquele que declarou ter sido o trabalho mais importante de sua vida: a Portuglia. A revista deixa de circular em 1908, quando Severo se v obrigado a abandonar sua terra natal, em virtude de difi-culdades financeiras advindas da vida suntuosa de editor de uma revista de luxo, mas de pblico reduzidssimo e agravada pela m administrao dos bens que conquis-tara em sua primeira estadia em So Paulo. Na medida em que o encerramento de sua atuao como arquelogo no significou o arrefecimento de sua f republicana, nem o abandono de seu interesse pela nacionalidade portuguesa, o engajamento de Severo conheceria outros desdobra-mentos no Brasil, convivendo com outras crenas e formas de atuao.

    36 Para acompanhar passo a passo os argumentos do engenheiro sobre o tema ver Origens da Nacionalidade Portuguesa (1911). Revista Portuguesa. So Paulo, 1930, tomo I, fasc. I, pp. 1- 4; Origens da Nacionalidade Portuguesa (1911). Revista Portugal. So Paulo, 1930, tomo I, fasc. 2, pp. 100-114; Origens da Nacionalidade Portuguesa (1911). Revista Portuguesa. So Paulo, 1936, tomo I, fasc. 4, pp. 253-259; Origens da Nacionalidade Portuguesa (1911). Revista Portuguesa. So Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, pp. 329-337.

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    Laos de famlia e atuao profissionalRicardo Severo veio ao Brasil pela primeira vez em

    1891/9237, engrossando a massa de imigrantes portugueses que, entre o sculo XIX e XX, tiveram o pas como des-tino38. Representante bem sucedido das camadas mdias portuguesas ligadas ao comrcio e indstria, possvel que sua opo tenha sido animada pela vinda de outros republicanos igualmente perseguidos pela revolta do Porto de 189139 ou que tenha pesado a amizade com o colega dos tempos da Academia Politcnica, o engenheiro brasileiro Carlos Villares. Tanto nessa primeira passagem quanto na posterior estadia definitiva no Brasil, chama a ateno a diversidade e prosperidade alcanada pelo engenheiro nos investimentos mais variados, comrcio, construo civil, mercado financeiro e imobilirio40. Surpreendente tambm, desde a primeira estadia, sua rpida, slida e marcante insero, no s no mbito protegido da colnia portuguesa, como nos meios sociais, empresariais e cultu-rais paulistanos.

    Severo se preocupou em promover, acima de suas convices polticas, a unio entre os imigrantes portu-gueses ao redor de uma nica instituio, a Casa Portu-

    37 Sobre esta primeira estadia ao Brasil h vrias verses quanto s datas de chegada e partida de Severo: Gonalves, Ana Maria do Carmo Rossi. A Obra de Ricardo Severo. So Paulo, FAU-USP, 1977; Lemos, Carlos A. C, Op. cit., 1993, p. 60, Rial, Mariana Fontes Prez. Movimento ou Estilo: Estudos sobre a Arquitetura Neocolonial Paulistana. So Paulo, texto mimeografado, relatrio final de pesquisa CNPq/FAUUSP, 2000; Severo, Ricardo. Discursos. Rio de Janeiro: Real Gabinete de Leitura, 1937, p. 5; Severo, Ricardo, Op. cit., 1930, p. 9.

    38 Sobre a imigrao portuguesa para o Brasil ver: Pereira, Miriam Halpern. A Poltica de Imigrao Portuguesa. Lisboa, A Regra do Jogo, 1981; Alencastro, Luiz Felipe de. Proletrios e Escravos. Novos Estudos CEBRAP. So Paulo, n. 21, 1988; Scott, Ana Silvia Volpi. Verso e reverso da imigrao portuguesa: o caso de So Paulo entre as dcadas de 1820 e 1930. Oceanos. Lisboa, out/dez 2000, n. 44, p. 127; Rowland, Robert. Portugueses no Brasil independente: processos e representa-es. Oceanos. Lisboa, out/dez 2000, n. 44, pp. 8-21; Venncio, Renato Pinto. A imigrao portuguesa, 1822-1930, Oceanos. Lisboa, out/dez 2000, n. 44, p. 63; Lobo, Eullia Maria Lahmeyer. Imigrao Portuguesa no Brasil. So Paulo: Hucitec, 2001.

    39 Entre eles estavam: Baslio Teles, tenente Coelho, alferes Carlos Malheiro Dias e Ramalho Ortigo.

    40 As informaes sobre o patrimnio de Severo foram colhidas em entrevistas com a filha mais nova de Severo, Elisa Germano Severo, e no documento Inventrio e partilhas do esplio do dr. Ricardo Severo da Fonseca e Costa 1940-41, cedido pelo neto Luis Roberto Severo Lebeis.

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    guesa41, e em aproximar as relaes econmicas, polticas e culturais entre os dois pases em que viveu,42 fazendo de si prprio uma espcie de patriarca da colnia portuguesa e um dos principais mentores do movimento associativo luso-brasileiro.

    Os laos familiares tecidos por Severo no Brasil ti-veram incio em 1893, ano de seu casamento com Francisca Santos Dumont. O engenheiro fora apresentado famlia Dumont por Carlos Villares que tambm havia se casado com uma das filhas do famoso rei do caf, Henrique Du-mont.43 Portanto, passado apenas um ou dois anos de sua vinda ao pas, o engenheiro se estabelece no seio da so-ciedade tradicional paulista, angariando a ascendncia e o prestgio social que lhe seriam de grande valia para o resto da vida. Tal prestgio, entretanto, no seria fruto apenas de seu matrimnio.

    Antes mesmo de se casar, Severo publicara um artigo sobre o Museu Sertrio44 no jornal Correio Paulistano, no qual criticava a organizao geral da instituio, apontando as deficincias em suas sesses, especialmente aquelas de-

    41 O programa da instituio est bem esboado no artigo Severo, Ricardo. A Casa Portuguesa em So Paulo. Portugal. Rio de Janeiro, 1925, n.43, pp. XIX-XX.

    42 As conferncias, discursos e artigos em defesa do luso-brasileiro so: As relaes luso-brasileiras (1916); A misso dos portugueses. O Estado de S. Paulo. So Paulo, 5/12/1918. p. 3; Relaes Luso-Brasileiras (1919), conferncia pronunciada na Cmara Portuguesa de Comrcio de So Paulo; Portugal-Brasil (1920), conferncia pronunciada no Automvel Club em Homenagem Colnia; Imigrao portuguesa no Brasil (1925), conferncia pronunciada na Cmara Portuguesa de Comrcio de So Paulo, Um prefcio para a Revista Portuguesa. Revista Portuguesa. So Paulo, 1930, tomo I, fasc. 1, p. III-VIII. e Um Tombo Luso-Brasileiro (1937), conferncia pronunciada no Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro. Infelizmente s pudemos loca-lizar o artigo A misso dos portugueses no Brasil, o prefcio escrito para a abertura da Revista Portuguesa e a conferncia Um Tombo Luso-Brasileiro.

    43 O filho mais velho de Henrique Dumont, formou-se pela Escola Politcnica do Rio de Janeiro, tendo trabalhado em 1881 na construo da estrada de ferro Mogiana, onde conheceu Eduardo Villares. Eduardo casou-se em 1885 Cocota Santos Dumont. Em 1886, Guilherme Villares, irmo de Eduardo, casou-se com Virginia Santos Dumont. Em 1887 chega ao Brasil Carlos Villares, irmo de Eduardo e Guilherme que se formou como engenheiro civil na Academia Politcnica do Porto e se casou com Gabriela Santos Dumont em 1891. Ribeiro, Anamaria Germano. A Histria da Famlia Dumont. So Paulo, texto impresso, 1998.

    44 O Museu Sertrio foi o germe do atual Museu Paulista. Sobre a histria do Museu Paulista e de seu acervo ver o site www.mp.usp.br.

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    dicadas s cincias naturais, etnografia, arqueologia e pr-histria. O artigo importante por confirmar a pre-sena do engenheiro portugus em terras paulistanas a partir de 1892, e porque sua crtica refletia a atitude po-lemista e publicista comum ao crculo de intelectuais por-tuenses ao qual pertencia, apontando ainda o seu envolvi-mento precoce com a cidade que acabara de o acolher. Alm disso, a polmica gerada pelo artigo chegou aos ouvidos do ento Secretrio de Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas, Alfredo Maia, que o apresentaria a seu parente e amigo, o engenheiro-arquiteto campineiro Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928).45 O episdio lhe renderia um em-prego como auxiliar no escritrio do j ento famoso en-genheiro-arquiteto e, ao mesmo tempo, o cargo de chefe da seo construtora do Banco Unio de So Paulo, cuja car-teira predial era [tambm] dirigida por ele46.

    A sociedade entre Ramos e Severo se estendeu por mais de vinte anos tendo extrapolado os limites do Escri-trio Tcnico F. P. Ramos de Azevedo. Destoante da biblio-grafia especializada, que insiste na especificidade e auto-nomia do percurso de cada um deles, parece importante restabelecer os vnculos entre ambos, ressaltando o ritmo empresarial que ambos imprimiram prtica profissional em So Paulo, a carreira e o papel de cada um dos scios na sociedade, e os debates e transformaes arquitetnicas em curso na cidade no alvorecer do sculo XX.

    O estudo simultneo de suas trajetrias mostra que a biografia de ambos apresenta uma srie de coincidncias relevantes. Como Severo, Ramos de Azevedo era filho de um negociante portugus, se casou com uma jovem de fa-mlia abastada e influente de fazendeiros paulistas, tendo ascendido rapidamente fina f lor da oligarquia cafeeira. Projetaria palacetes luxuosos, chegando igualmente a parti-cipar do seleto circuito de investimentos e intermediao de contratos, encomendas e favores pblicos de toda espcie,

    45 Segundo Cndido Campos Neto, a Superintendncia de Obras estadual era subordinada Secretaria de Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas, dedicada ao aparelhamento material do estado de So Paulo. As inter-venes urbansticas [nesse momento] eram vistas como aspecto indisso-civel de um processo econmico baseado na agricultura e apoiado pela atividade comercial . Campos Neto, Candido Malta. Os Rumos da Cidade:Urbanismo e Modernizao em So Paulo. So Paulo, Editora do SENAC, 2002, p. 60.

    46 Lemos, Carlos A. C., Op. cit., 1993. p. 61. Severo, Ricardo. Op. cit., 1930, p. 10

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    seja como empresrio, seja nas instituies de cultura e no mundo das artes com que se envolveu intensamente.47

    Severo torna-se scio do arquiteto no ano de seu re-torno capital paulista e apenas um ano depois da reestru-turao que Ramos empreendera em seu escritrio, de modo a organiz-lo em bases empresarias. O arquiteto transfor-mara o escritrio em uma empresa de projeto e de cons-truo que funcionava como ncleo central de um verda-deiro conglomerado de negcios imobilirios, produo e comrcio de materiais de construo, agenciamento e inter-mediao de contratos e encomendas.48 A partir desse mo-mento, sua carreira foi impulsionada a tal ponto que Ramos passaria da condio de arquiteto renomado e laureado entre seus pares para a de maior e quase exclusivo cons-trutor de obras pblicas no perodo.49

    No parece exagerado supor que Ramos tenha re-cebido neste momento a ajuda de seus scios, Domiziano Rossi e Ricardo Severo. Ao que tudo indica Severo ocuparia um papel de destaque na administrao do escritrio ao se envolver com as questes financeiras e de relaes pblicas da empresa, deixando em segundo plano os projetos e as obras.50 possvel que a formao que recebera na Aca-demia Politcnica do Porto, sobretudo do curso de Enge-nharia Civil de Obras Pblicas, o tenha qualificado para exercer com competncia as atividades no s de cons-truo, mas tambm de administrao. Isso porque o ensino da engenharia no perodo tinha como objetivo principal a formao de profissionais capacitados para as atividades de fomento de obras pblicas e administrativas com vistas no gerenciamento e controle dos negcios coloniais na frica.51

    Em 1930, ao recapitular a sua atuao ao lado de Ramos, o engenheiro portugus incluiria o acompanhamento

    47 Segundo Srgio Miceli, Ramos de Azevedo ilustra com perfeio esse trip de funes polticas, empresariais e tcnicas, indispensvel ao exer-ccio profissional de encargos e responsabilidades no espao da classe dirigente ilustrada. Miceli focaliza o seu papel no mecenato e no colecio-nismo de arte e bens culturais em So Paulo, como tpico representante de uma elite perrepista de perfil convencional e gosto acadmico. Cf. Miceli, Srgio. Nacional Estrangeiro, So Paulo, Companhia das Letras, 2003, pp.27-42.

    48 Sobre o Escritrio Tcnico Ramos de Azevedo e seus colaboradores ver Fischer, Sylvia. Os Arquitetos da Poli. So Paulo, Edusp. 2005; Lemos, Carlos A. C., Op. cit., 1993; Carvalho, Maria Cristina Wolff, Op. cit.

    49 Lemos, Carlos A. C., op. cit, 1993, p. 55

    50 Idem, ibidem, p. 60

    51 Rodrigues, Maria de Lurdes, Op. cit., p. 74.

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    de praticamente todas as obras normalmente destacadas pela bibliografia como de responsabilidade do Escritrio Tcnico e notabilizadas pela assinatura de seu fundador: entre elas, as Secretarias de Agricultura e Fazenda, o Palcio da Justia, a Escola Normal, a Escola Politcnica, o Liceu de Artes e Of-cios de So Paulo e de Campinas, a Faculdade de Medicina, o Quartel da Luz, a Penitenciria do Estado, o edifcio dos Correios e Telgrafos, o Teatro Municipal e uma longa srie de palacetes construdos em Higienpolis e nas avenidas Paulista, Anglica e Brigadeiro Luis Antnio52. A afirmao problemtica pois muitas dessas obras foram construdas durante a sua primeira estadia em So Paulo quando ele ainda no era scio de Ramos , outras, iniciadas quando ele ainda estava em Portugal e outras ainda, terminadas quando o engenheiro j tinha retornado a capital paulista ou reali-zadas depois da morte de Ramos.

    O que interessa destacar, no entanto, o sentimento de Severo de ter sido parte integrante e responsvel pelas obras mais caractersticas do Escritrio Tcnico, cujas tra-dies dizia procurar manter com os preceitos [daquele] grande Mestre da Arte de construir, pleiteando no apenas a sua autoria, como a continuidade da obra do engenheiro-arquiteto campineiro. De certo modo, Severo estava cor-reto, pois o prestgio alcanado pelo escritrio se preservou mesmo depois da morte de seu fundador em 1928, quando assumiu a direo do escritrio ao lado do sobrinho e genro de Ramos de Azevedo, Arnaldo Dumont Villares53 e de seu filho, Antnio Severo. 54 Este acontecimento to decisivo no

    52 Severo, Ricardo, Op. cit., 1930, pp. 10-11.

    53 Arnaldo Dumond Villares, filho de Guilherme Villares e Virginia Santos Dumont, irm da esposa de Severo, casou-se com Laura Lacaze Ramos de Azevedo, filha de Ramos de Azevedo em 1912. Ribeiro, Anamaria Germano, op. cit., 1998.

    54 O nome de Ramos de Azevedo a frente da empresa s desapareceu 10 anos depois, quando esta passou a se chamar simplesmente Severo & Villares Cia Ltda. Em sua ltima fase - da morte de Ricardo Severo at os anos 1970-80 - a empresa era dirigida por Arnaldo Dumont Villares, falecido em 1965 e Antnio Severo, segundo Luis Saia arquiteto formado pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro na mesma turma de Oscar Niemeyer e coorde-nador da sesso de projetos do escritrio desde os anos 1930. A empresa Severo & Villares fazia projetos em So Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo Carlos Lemos, nos anos 1980 no passava de um mero escritrio de administrao e bens imobilirios, tendo sido vendido em 1991 a holding Partisil. O acervo do Escritrio Tcnico Ramos de Azevedo e da Severo & Villares Cia Ltda foi doado para a biblioteca da FAUUSP. Carlos A. C. Lemos, Catlogo de desenhos da biblioteca da FAU-USP. So Paulo, FAU-USP, 1998, p. 14; Lemos, Carlos A.C., Op. cit., 1993, pp 59-60 e nota 60; Saia, Luis. Arquitetura paulista, Xavier, Alberto (org.). Depoimento de uma gerao. So Paulo, Cosacnaify, 2003.

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    teria alterado o ritmo de produo da empresa, que at meados dos anos 1950 continuaria a ser reconhecida no s pela ca-tegoria de seus projetos mas, principalmente, pela alta quali-dade tcnica construtiva de suas obras.55

    Entre as empresas que gravitavam ao redor do Escritrio Tcnico, Severo era acionista da Companhia Cermica Villa Prudente e da Companhia Iniciadora Predial. Esta ltima, fun-dada em 1908 por Ramos, Severo, Frederico Vergueiro Steidel e Arnaldo Vieira de Carvalho, era uma espcie de banco de financiamento imobilirio que construa residncias de alu-guel e financiava a construo de residncias particulares56, destinadas classe mdia ou queles que no podiam pagar nem construir os requintados palacetes concebidos no Escri-trio Tcnico. Ricardo Severo dirigiu a companhia desde a sua fundao at 1940, quando veio a falecer, concentrando nessa empresa os seus conhecidos projetos neocoloniais.57

    Severo tambm participou ativamente de outra en-tidade de fundamental importncia para o funcionamento das empresas de Ramos de Azevedo, o Liceu de Artes e Of-cios de So Paulo. De 1909, quando entrou para a insti-tuio, at 1928, o engenheiro portugus desempenhou no Liceu as funes de secretrio e inspetor escolar, assumindo a direo da instituio aps a morte de Ramos de Azevedo. Assim, tambm ali, a sucesso seria desempenhada por Se-vero, que exerceu o cargo de diretor at sua morte e man-teve a orientao da instituio de formar no apenas arte-sos, operrios e tcnicos, mas tambm artistas.58

    Acompanhando a sua variada atividade no meio em-presarial e institucional local, percebe-se que Ricardo Se-vero, alm de scio ativo, foi continuador da obra que Ramos de Azevedo edificara a partir do final do sculo XIX e que transformara profundamente o cenrio arquite-tnico da capital paulista, apagando sua feio colonial e tornando-a uma capital atualizada, seguindo os moldes das cidades europias de feio ecltica e universalista. Curiosamente, como se v, foi no interior deste processo de modernizao capitalista e beaux-arts da cidade, que trans-formou sua paisagem arquitetnica, pblica e burguesa,

    55 Lemos, Carlos A. C., Catlogo de desenhos da biblioteca da FAU-USP, p. 14.

    56 Sobre o escritrio de Ramos de Azevedo ver Lemos, Carlos A. C., op. cit., 1993.

    57Idem, ibidem., p. 4-11.

    58 Severo, Ricardo. Liceu de Artes e Ofcios. So Paulo: S.N., 1934; Gitahy, Maria Lucia. Qualificao e urbanizao em SP: a experincia do Liceu de Artes e Ofcios, 1873-1934. Ribeiro, M.A.R. Trabalhadores urbanos e ensino profissional. Campinas,:Ed. da UNICAMP, 1986, pp. 21-88.

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    dando-lhe um carter cosmopolita, para muitos, como o prprio engenheiro, demasiadamente estrangeiro, que Se-vero se tornou o chefe de fila da arquitetura tradicional no Brasil, de carter nacional.

    Essa aparente contradio entre sua atuao no Es-critrio Tcnico e na campanha tradicionalista, assim como as incongruncias de seu discurso demonstram que a questo, de fato, no estava resolvida para Severo. Afir-mando ter aproveitado a prestigiosa influncia do Escri-trio Tcnico para lanar a orientao tradicionalista na arquitetura, Severo, de um lado, criticava veementemente o ecletismo extico ao meio racial e mesolgico brasileiro e por outro, deixava uma porta aberta a esta arquitetura, considerando-a adequada ao edifcio de exceo, aqueles que, diferentemente da casa, no configurariam a feio tradicional das cidades.59

    A incoerncia do discurso e da prtica arquitetnica de Severo aponta para a ambivalncia do engenheiro na definio do nacional/estrangeiro, local/universal, tradi-cional/cosmopolita, mostrando que esta era uma questo em aberto. Presente na obra de arquitetos como Heitor de Melo, Archimedes Memria (1893-1960), Francisque Cuchet, Lucio Costa (1902-1998), Victor Dubugras (1868-1933) e no discurso de intelectuais como Menotti del Pic-chia (1892-1988), Monteiro Lobato (1884-1948), Mrio de Andrade (1893-1945), entre outros, esta ambivalncia re-vela o quadro de intensa disputa em torno da construo da modernidade, universalidade e/ou nacionalidade arts-tica entre ns naquele momento.60

    Imprensa, cultura e nacionalismo A rpida insero de Ricardo Severo nos meios sociais,

    empresariais e culturais paulistanos pode ser entendida, de um lado, a partir de seu casamento com Francisca Santos Dumont e, de outro lado, por sua associao com Ramos de Azevedo. Contudo, o engenheiro portugus no ficou restrito nem a esse crculo familiar e profissional, nem quele composto por sua colnia. To logo se estabeleceu definitivamente na cidade, Severo comeou a ampliar as suas relaes, aproximando-se dos intelectuais que gravitavam ao redor do Instituto Histrico

    59 Severo, Ricardo. A Arte Tradicional no Brasil: a casa e o templo (1914). Sociedade de Cultura Artstica. Conferncias 1914-1915. So Paulo, Tipographia Levi, 1916, p. 43-44.

    60 Candido, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. (Panorama para estrangeiros). Literatura e sociedade. Estudos de teoria e histria literria. So Paulo, T. A. Queiroz Editor, 2000.

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    e Geogrfico de So Paulo (IHGSP)61 e do jornal O Estado de S. Paulo. So justamente esses vnculos que, somados aos des-tacados anteriormente, ajudam a compreender o contexto e a repercusso da campanha de arte tradicional no Brasil enca-beada por Severo a partir de 1914.

    O engenheiro portugus se associou ao IHGSP em 1911, proferindo uma srie de conferncias entre esta data e os anos 1930. Na primeira delas, intitulada Culto tradio (1911), Severo discorreu sobre o trabalho desenvolvido no Instituto, classificando-o como uma verdadeira obra de concentrao nacionalista, de resistncia defensiva contra o cosmopolitismo destruidor das unidades cristalinas que representam no mundo humano as naes.62. Obra com a qual pretendia contribuir atravs da recuperao e venerao das tradies nacionais brasileiras, to inseparavelmente ligadas s de seu pas. Na se-gunda, intitulada Origens da Nacionalidade Portuguesa (1911) recuperava parte de seus estudos arqueolgicos em Portugal, bem como suas teses acerca da evoluo da nacionalidade por-tuguesa. Na ltima delas, realizada em 1932 durante o evento Conferncias Vicentinas, promovido em comemorao ao IV Centenrio da Fundao de S. Vicente (1532), Severo abor-dava o problema das Origens e fatos da expanso portuguesa no Brasil at 1530.63 As conferncias de Severo, claramente comprometidas com a divulgao e valorizao da nao por-tuguesa e de seu legado colonial no Brasil, somavam-se ao es-foro de compreenso da formao das elites coloniais e da es-pecificidade brasileira, empreendido pelo IHGSP.64

    A preocupao com o nacional parece ser a chave da relao entre o engenheiro portugus e o assim chamado grupo dO Estado de S. Paulo. Entendido por alguns au-tores como o maior ncleo nacionalista existente na cidade naquele momento65, O Estado fazia a defesa do nacional

    61 Sobre o Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo ver Schwarcz, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas: Cientistas, Instituies e Questo Racial no Brasil 1870-1930. So Paulo, Companhia das Letras, 1993.

    62 Academia Paulista de Letras, Homenagem a Ricardo Severo: Centenrio do seu Nascimento 1869-1969. So Paulo, SN, 1969, p 52.

    63 Severo, Ricardo. Origens e fatos da expanso portuguesa no Brasil at 1530 Revista do Instituto Geogrfico e Histrico de So Paulo, 1932, n . 29, p 13-37.

    64 Schwarcz, Lilia Moritz. Op.cit., p. 127. Ver tambm Santos, Fbio Lopes de Souza. Modernismo e Visibilidade: Relaes entre as Artes Plsticas e a Arquitetura. Dissertao de Mestrado, FAU/USP, 2000.

    65 Chiarelli, Tadeu. Um Jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o Desejo de um Arte Nacional no Brasil. So Paulo, Edusp, 1995, p. 93.

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    sem desconsiderar o legado portugus66, to caro ao nosso engenheiro. Em evento organizado pelo Clube Portugus de So Paulo, em janeiro de 1929, na qual foram entregues insgnias do Governo Portugus para Julio de Mesquita Filho, Roberto Moreira e Nestor Rangel Pestana princi-pais acionistas e diretores dO Estado -, Severo chamava ateno para o fato do jornal ter sido desde sempre um ve-culo aberto para suas idias, prestando enormes servios colnia portuguesa.67 De fato, entre os anos de 1908 e 1940, Severo publicou dezenas de artigos naquele jornal68, que abrangiam desde temas relacionados colnia portuguesa e ao Liceu de Artes e Ofcios at aqueles dedicados especifi-camente sua campanha de arte tradicional. As suas re-laes com o jornal, entretanto, no eram apenas profissio-nais ou intermediadas pela colnia. Severo era amigo pes-soal de Jlio de Mesquita e Rangel Pestana, projetando para o primeiro uma residncia em estilo tradicional, e com ele compartilhando da companhia do segundo nas diversas ini-ciativas culturais que desempenharam em torno do jornal69, como, por exemplo a Revista do Brasil e a Sociedade de Cultura Artstica.

    A preocupao dO Estado com o nacional de modo geral definiu o carter de boa parte desta crtica de arte local em formao70, fossem elas de servio ou mili-tante, estando presente tambm na publicao de contos regionais, como os de Waldomiro Silveira, ou na seo

    66 Martins, Wilson. Histria da Inteligncia Brasileira. Vol.VI (1915-1933). So Paulo, Cultrix/ Edusp, 1978, p. 74.

    67 Discurso de Ricardo Severo no referido evento, publicado nO Estado de S. Paulo, 27/01/1929.

    68 Neves, Joo Alves das. As Relaes Literrias de Portugal com o Brasil. Lisboa, Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1992, Santos, Paulo. A presena de Lucio Costa na arquitetura contempornea no Brasil. Rio de Janeiro, 1960, nota 16.

    69 Sobre a casa de Jlio de Mesquita ver Homem, Maria Ceclia Naclrio. O Palacete Paulistano e outras Formas Urbanas de Morar da Elite Cafeeira 1867-1918. So Paulo, Martins Fontes, 1996, pp. 233-246.

    70 Tadeu Chiarelli divide essas crticas entre crtica de servio, cujo prop-sito central era o de informar o leitor acerca das exposies e artistas presentes na cidade, e a crtica de arte militante, que revelaria o desejo de intervir decisivamente na cena artstico-cultural, propondo sua transfor-mao, sempre a partir de um parmetro tico, estranho especificidade artstica no caso, o forte nacionalismo e que comearia a ser veiculada somente a partir de meados da dcada de 1910. Segundo o autor a partir de 1913 muitas das crnicas de servio eram escritas por Nestor Rangel Pestana, redator do jornal desde os primeiros anos do sculo e seu diretor a partir da morte de Jlio de Mesquita em 1927. Chiarelli, Tadeu. op. cit.., pp. 69-106.

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    Tradies populares, na qual Amadeu Amaral divulgou os seus famosos ensaios sobre a cultura popular paulistana e brasileira.71 Essa mesma preocupao orientou os jornalistas e intelectuais ligados ao grupo na criao de associaes culturais e cvicas, como a Sociedade de Cultura Artstica e a Revista do Brasil. Nessas outras duas frentes nacionalistas no campo da cultura, tambm a participao de Ricardo Se-vero foi marcante.

    A Sociedade de Cultura Artstica, fundada em 1912, foi a primeira associao cultural paulistana fortemente mar-cada pela necessidade de valorizar a cultura nacional. Foi justamente com este intuito que se organizaram no seu in-terior uma srie de saraus ltero-musicais, alm de palestras sobre artes plsticas e arquitetura. A antolgica conferncia A Arte Tradicional no Brasil72, proferida por Ricardo Severo em julho de 1914, integrava uma dessas sries de confern-cias realizadas na sociedade. De acordo com Tadeu Chia-relli, esta primeira conferncia de Severo teria antecipado, ao lado de Oswald de Andrade (1890-1954) e de seu artigo Em prol de uma pintura nacional (1915), o papel e os objetivos da crtica militante na defesa de uma arte e arquitetura na-cionais. Para o crtico, a conferncia teria manifestado no apenas o desejo de uma arte nacional, mas tambm a confi-gurao de um programa para ela, cuja proposta central era pensar uma arte brasileira futura a partir do estudo e da re-flexo sobre o passado nacional.73

    Esse duplo comprometimento, de um lado com o es-tudo e valorizao do passado e das tradies nacionais, e de outro, com a proposio de uma arte nacional presente e futura que se evidencia em todos os textos da campanha de arte tradicional de Ricardo Severo , definia tambm o programa artstico-cultural da Revista do Brasil, mensrio de cincias, letras, artes, histria e atualidade, idealizado por Jlio de Mesquita e lanado em janeiro de 1916 em So Paulo. A revista, que se tornou a mais prestigiada publi-cao cultural da Repblica Velha, pertenceu at 1918 a uma sociedade annima cuja diretoria era composta por v-rios jornalistas e colaboradores dO Estado, dentre eles Ri-cardo Severo, seu presidente.74

    71Idem, ibidem., p. 93.

    72 Severo, Ricardo, op. cit., 1916, p. 37-82.

    73 Chiarelli, Tadeu, op. cit., p. 96.

    74 Severo, Ricardo. A Arte Tradicional no Brasil. Revista do Brasil. So Paulo, ano I, n. 1, jan/ 1917, pp. 394-424.

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    75 Luca, Tnia Regina de. A Revista do Brasil: um Diagnstico para a (N)ao. So Paulo, Editora da UNESP, 1999, p. 78.

    76 Apud idem, ibidem., p. 90

    77 Idem, ibidem, p. 85-130

    78 Amaral, Aracy, (org.), Arquitectura Neocolonial: Amrica Latina, Caribe, Estados Unidos. So Paulo, Memorial da Amrica Latina/ Fondo de Cultura Econmica, 1994.

    79 Scully, Vincent, The Shingle Style and the Stick Style. New Haven, Yale University Press, 1971; Wilson, Chris. The Myth of Santa Fe: Creating a Modern Regional Tradition. New Mexico,University of New Mexico Press, 1997.

    Se das pginas da revista emerge claramente esse de-sejo persistente de promover uma releitura do pas que re-sultasse numa ao de sentido regenerador ou identitrio, no possvel afirmar que a proposio do problema, a maneira de enfrent-lo e as sadas sugeridas fossem homo-gneas.75 Recuperar a tradio nacional e mais do que isso uma tradio que sintetizasse o pas enquanto nao no era uma tarefa nada fcil, mas extremamente polmica. A questo que despontava nas pginas da revista, to bem co-locada por Alceu Amoroso Lima, era a seguinte: Deve um povo em plena mocidade prezar suas tradies? Ou, pelo contrrio, esquecer o passado para melhor encarar o fu-turo?76

    Se alguns propunham veementemente o esqueci-mento do passado em prol das tarefas impostas pelo futuro [, sugerindo] que simplesmente se desconsiderasse o 1500 e se tomasse a Independncia como marco inaugural da nossa histria, negando dessa forma, qualquer sentido ou perti-nncia ao perodo colonial outros defendiam apaixonada-mente as tradies, procurando ao contrrio valorizar e re-dimir nosso passado colonial77. Ricardo Severo e seu culto tradio se encaixam perfeitamente neste ltimo grupo.

    A campanha de arte tradicional: arqueologia, etnografia e arteFoi em meio a esse ambiente nacionalista, acirrado

    pela conflagrao mundial e pelas comemoraes do cente-nrio da independncia do Brasil, que a campanha de arte tradicional no Brasil lanada por Severo comeou a tomar forma. A campanha coincide com uma srie de movimentos artsticos de cunho nacionalista em curso na Amrica La-tina, Caribe, Estados Unidos e Europa, dos quais poder-amos citar o neocolonial78, a arquitetura hispnica ou mis-sion style79, o liberty e o art nouveau em pases como a Es-

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    ccia, a Blgica, a Finlndia ou a Alemanha80, sem contar o da casa portuguesa, liderado por Raul Lino (1879-1974).81 No caso de Severo possvel reconhecer, ao lado das moti-vaes ideolgicas, polticas e nacionalistas que o levaram a propor a recuperao do passado colonial brasileiro e de seu legado portugus, o interesse pronunciado pela histria da arquitetura, o estabelecimento de uma relao operativa entre o passado e o presente e o desejo de criar um estilo nacional, independente da tradio clssica, caractersticas que marcaram os revivals deste perodo.82 Alm disso, em seu discurso patente a preocupao com a atualizao das tradies e a modernizao, ou adequao, dos edifcios s novas necessidades fsico-espaciais e tcnico-construtivas da sociedade naquele momento.

    O termo campanha s foi empregado pelo enge-nheiro portugus a partir de 192283, entretanto, olhando retrospectivamente possvel afirmar que as confern-cias e projetos anteriores a esta data tambm fazem parte

    80 Sobre o liberty e Art Nouveau nestes pases ver Curtis, William. The search for new forms and the problem of ornament. Modern Architecture since 1900. London, Phaidon Press Limited, 1999, pp. 53-71; Frampton, Kenneth. Histria Crtica da Arquitetura Moderna. So Paulo, Martins Fontes, 1997, captulos 4, 5 e 6; Escritt, Stephen. Art Nouveau. London, Phaidon, 2000.

    81 Raul Lino contemporneo de Severo e como ele manteve relaes com o Brasil. Em Portugal era considerado um dos arquitetos portugueses de maior renome naquele momento a defender sem hesitaes a recuperao das formas portuguesas, num percurso nacional, alternativo produo ecltica novecentista. Sobre o tema ver: Gonalves, Jos Fernando. Ser ou No Ser Moderno. Consideraes sobre a Arquitetura Modernista Portuguesa. Coimbra, Departamento de Arquitetura da Faculdade de Cincias e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2002, p.60-68; Frana, Jos Augusto. Raul Lino e a casa portuguesa . A Arte em Portugal no Sculo XIX. Lisboa, Livraria Bertrand, 1966; Campos, Isis Alexandra Marques. Raul Lino (1879-1974). A Casa Popular Portuguesa e o seu Carter Proletrio. Trabalho de disciplina FAU-USP, 2003 (mimeo); Santos, Paulo Ferreira. Presena de Lucio Costa na Arquitetura Contempornea do Brasil. Conferncia, 1960, nota 15.

    82 Patetta, Luciano. Los revivals en arquitectura. ARGAN, Giulio Carlo et alt. El Passado em el Presente: el Revival en las Artes Plsticas, la Arquitetctura, el Cine y el Teatro. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1977, pp. 129-163 e Argan, Giulio Carlo. El revival.ARGAN, Giulio Carlo et allii, op. cit., p. 7-28.

    83 O termo campanha s aparece textualmente no artigo Da Arquitetura Colonial no Brasil: arqueologia e arte, publicado em 7 de setembro de 1922 nO Estado de S. Paulo, em razo das comemoraes do centenrio da inde-pendncia do Brasil.

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    desta iniciativa84, tanto pelo teor, quanto pelo tom proposi-tivo que as caracterizam. O levantamento de seus projetos e textos tradicionalistas revela que a campanha em prol da arte tradicional no Brasil se concentrou nas dcadas de 1910 e 1920, mas que seu discurso e sua prtica extrapolam os limites temporais como espaciais normalmente definidos pela bibliografia especializada sobre o neocolonial. Desta forma, o estudo das relaes entre as campanhas tradicio-nais lideradas por Severo no Porto e em So Paulo, propa-ladas, pelo prprio engenheiro, se revela fundamental.

    Os motivos que levaram Ricardo Severo a lanar sua campanha tradicionalista no Brasil so diversos, mas ab-solutamente intrincados. Seu interesse pela arquitetura do perodo colonial, sua inteno de fazer uma arte tradi-cional brasileira que congregasse o velho e o novo, o por-tugus e o brasileiro, sua pretenso de desvendar as origens da arquitetura brasileira e, atravs dela, as da nacionali-dade, eram alinhavados pelo intuito deliberado de valorizar a herana lusitana. No parece ser toa que tanto a ani-mao quanto o arrefecimento de sua campanha coincida com o esfriamento de sua proposta associativa luso-brasi-leira, tambm levada a cabo entre os anos 1910 e 1920.

    O eixo central de sua campanha era a discusso acerca das origens, desenvolvimento e caractersticas da arquitetura tradicional brasileira. Desde suas primeiras manifestaes sobre o tema, o engenheiro tomava as an-tigas e modestas construes do perodo colonial como ves-tgios poderosos de identificao do momento original de formao desta jovem nao, considerando-os to revela-dores e dignos de nota quanto haviam sido os antigos fs-seis por ele pesquisados em Portugal. Atribuindo quelas

    84 Textos e projetos da campanha: Culto Tradio (1911) e das confe-rncias a Arte Tradicional no Brasil (1914/ 1916), ao quais poder-amos acrescentar os artigos Arquitetura Velha (1916), Da Arquitetura Colonial no Brasil: arqueologia e arte (1922); a entrevista Arte Colonial III (1926 ) para o jornal O Estado de So Paulo, alm do artigo A casa da faculdade de direito de So Paulo 1634-1937 (1938); Palacete Numa de Oliveira (1916), a Casa Lusa(1920-24), os edifcios do Banco Portugus, da Portuguesa Beneficente de Santos e Campinas (1926), a restau-rao da Igreja da ordem terceira do Carmo, e por ltimo o projeto para o Congresso do Estado de So Paulo (1929) , aos quais reunimos apoiados na bibliografia especfica e na anlise dos projetos, a Casa do Porto (1900), a Casa Julio de Mesquita (contempornea a Numa de Oliveira), a Casa Praiana (1921), o Pavilho das Indstrias de Portugal (1922-23), a Casa Jos Moreira (1926), a Sociedade de Cultura Artstica (1926), a Faculdade de Direito do Largo So Francisco (1932) e a Casa Rui Nogueira (1939-40)

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    construes a capacidade de terem cristalizado perfeita-mente as manifestaes mais primitivas de nosso povo, ou numa palavra, nossa tradio, Severo acreditava poder re-cuperar atravs delas o nascimento e desenvolvimento da nacionalidade brasileira e assim descobrir suas verdadeiras origens tnicas. Entretanto, ainda que enfatizasse a impor-tncia seminal das manifestaes populares no campo das artes e arquitetura, estas no seriam, como veremos a se-guir, nem objeto de estudo mais detido em seus textos de campanha, nem mote de inspirao para seus projetos.

    O vnculo determinante entre nacionalidade, meio e manifestaes artsticas defendido por Severo, fazia com que ele afirmasse o carter etnogrfico da arte, sobretudo a tradicional, apontando na conferncia A Arte Tradicional no Brasil de 1916, assim como no ttulo do artigo Da ar-quitetura colonial no Brasil: arqueologia e arte (1922), para a inevitabilidade de se fazer histria da arte como se esta fosse arqueologia.

    Para Severo, a arqueologia conferia ao estudo da ar-quitetura a possibilidade de recompor atravs dos mais ru-dimentares documentos no apenas a sua histria, como a da prpria civilizao brasileira.85 Desse modo, ao es-crever a histria da arquitetura do Brasil o engenheiro construa ao mesmo tempo a histria da nacionalidade bra-sileira, fazendo com que ambas fossem absolutamente in-separveis. por isso que no podemos esquecer que, para ele, a busca dos fundamentos desta nacionalidade e de sua arte tradicional estavam intimamente ligadas campanha de valorizao da herana colonial lusitana, e a partir dela, da prpria nacionalidade portuguesa. justamente este seu comprometimento que guiar em grande medida sua leitura da arquitetura brasileira, como a de Portugal, e que expli-car a valorizao ou negao deste ou daquele estilo ar-quitetnico, tanto historicamente quanto do ponto de vista artstico. Em seu arraigado nacionalismo, ou antes, vee-mente lusitanismo, Severo validava apenas aquela arquite-tura que representava para ele a perfeita cristalizao da nacionalidade portuguesa, e de seus desdobramentos no novo mundo.

    O ponto de partida de sua genealogia tnico-artstica era o perodo histrico da colonizao portuguesa. Como em seu discurso racial, a ascendncia lusitana era super-valorizada em detrimento das contribuies, ou mesmo, da

    85 Severo, Ricardo, op. cit., 1917, p. 400.

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    participao dos ndios, negros e outros povos imigrantes na construo do mundo colonial e, no fundo, da prpria nao, ainda que, ao se referir a matriz tnica desta arqui-tetura, reconhecesse a influncia romana, rabe, moura e chinesa. Se com relao aos indgenas, considerava que as suas manifestaes artsticas, pelo seu carter e simbo-lismo original, se prestam a novas expresses estticas; afirmava que estas no seriam, porm tradicionais, se bem que caracteristicamente autctones e, portanto, estra-nhas no meio da famlia brasileira86. Com relao aos ne-gros, suas referncias no passariam de um breve comen-trio sobre a escravido, no qual o engenheiro se opunha idia de que esta teria sido no Brasil, pelas mos dos por-tugueses, de uma barbrie e crueldade sem tamanho87. Quanto aos imigrantes de outras nacionalidades, eram defi-nidos como aventureiros que no teriam se fixado terra com o intuito de constituir uma nova nao, moldada na sua original matriz tnica, como afinal haviam feito os co-lonizadores portugueses.

    Partindo da matriz lusitana, Severo traava a histria da arquitetura tradicional brasileira, de sua fundao, de-senvolvimento, desvirtuamento e retomada, a partir de uma periodizao bastante interessada, que estabelecia quatro momentos mais ou menos definidos88: o primeiro denomi-nado Brasil-Colnia, que ia do descobrimento at o final do sculo XVIII, quando experimentaramos o desenvol-vimento de uma arte verdadeiramente tradicional; o se-gundo, nomeado Brasil-Monarquia, que se inauguraria no incio do sculo XIX, com o primeiro momento de transfor-mao e depois de degenerescncia da arquitetura tra-dicional em funo do advento da Misso Francesa, da fundao da Academia de Belas Artes, mas principalmente do triunfo da independncia e do ecletismo; o terceiro, iniciado a partir de meados do XIX e denominado Brasil-Repblica, no qual a ferida aberta pela independncia no curso natural de nossa arquitetura se aprofundaria, esta arte perdendo totalmente seu cunho nacional; e o ltimo, em que as tradies eram retomadas dando incio a uma nova era de RENASCENA BRASILEIRA.

    86Idem, ibidem, 1916, pp. 44-46.

    87Idem, ibidem, 1917, p. 397.

    88 Essa periodizao est presente em todos os textos aqui selecionados, mas mais clara e explcita nas conferncias A Arte Tradicional no Brasil de 1914 e de 1916.

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    A leitura de sua obra tradicionalista revela a exis-tncia de um dilogo entre Severo e outros intelectuais, ar-tistas e arquitetos, igualmente preocupados com problema da nacionalizao e internacionalizao artstica, tendo como palco preferencial de divulgao os jornais e revistas em circulao naquele perodo89. Ao mesmo tempo, a con-versa entre eles aponta para o fato de que certas idias eram menos fruto de uma ou outra inteligncia especial, do que naturalizao de conceitos dispersos no cotidiano, constituindo-se, portanto, em lugares comuns entre aqueles que se vinculavam a este ou aquele nacionalismo. Isso no quer dizer que no houvesse pontos de vistas diferentes sobre o mesmo tema ou que partissem de um mesmo ponto em comum, apenas que certas idias se cristalizaram de tal maneira que ainda hoje se fazem presentes.

    A despeito de suas realizaes arquitetnicas, Severo revelava em seu discurso uma preocupao e um compro-misso caracterstico de sua poca.90 Ao lado da preocupao

    89 Souza, Ricardo Forjaz Christiano de. O Debate Arquitetnico Brasileiro, 1925-1936. Tese de doutorado, FFLCH-USP, 2004.

    90 Em seu estudo sobre a arquitetura moderna William Curtis afirma que na passagem do sculo XIX para o XX os arquitetos, filiados aos mais diversos estilos - do ecletismo ao modernismo reconheciam naquele momento um contexto comum de transformaes profundas nos mais diversos campos da sociedade com o qual se debatiam e ao qual buscavam responder. As dvidas eram muitas: como reconciliar o velho e o novo, o mecnico e o natural, o utilitrio e o ideal, o nacional e o internacional? Como as formas de um novo estilo contemporneo poderiam ser desco-bertas? qual deveria ser o verdadeiro contedo da arquitetura frente s transformaes profundas geradas pela industrializao? As repostas dadas pelos arquitetos deste perodo foram muitas, medida que tanto o ponto de partida para se repensar a arquitetura do presente quanto o que era entendido como caracterstico da poca podia variar conforme o arqui-teto, a regio e o pas, alm disso, nem todos os arquitetos e tericos viam as transformaes geradas pela industrializao de maneira positiva. O que estou tentando salientar na interpretao de Curtis desenvolvida para um contexto diferente, o europeu e americano na virada do sculo XIX para o XX - o tratamento dispensado arquitetura no moderna daquele momento. Ao considerar um contexto e uma busca comum tanto para arquitetos eclticos quanto modernos ele procurava validar tambm as investigaes estticas e arquitetnicas dos primeiros, normalmente descar-tadas como meras manifestaes atrasadas e extemporneas pela histo-riografia (moderna) da arquitetura. Algo que nos pareceu vlido tambm para o estudo do neocolonial e do moderno nas primeiras dcadas do sculo XX no Brasil. Veja, no se trata de no admitir o fato inconteste do salto esttico e artstico dado pelo moderno naquele momento, mas de recon-siderar o neocolonial tambm como uma busca contempornea, que deve ser entendida no a partir da arquitetura moderna, mas sim dentro de um dado contexto histrico e a partir de proposies estticas especficas. Ver Curtis, William. Modern Architecture since 1900. London, Phaidon Press Limited, 1999, sobretudo a introduo e o captulo 1 intitulado The Idea of modern architecture in the nineteenth century.

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    em conhecer, estudar e recuperar esse passado, tanto o en-genheiro portugus como aqueles que seriam seus compa-nheiros, inimigos ou crticos intentavam fundar uma ar-quitetura nacional, presente e futura, que no significasse a retomada pura e simples do que havia sido realizado an-teriormente, mas sim sua reinterpretao e atualizao. A convico de que as origens de nossa arquitetura nacional moravam no at ento desprezado passado colonial era compartilhada, por exemplo, por personagens to diversos quanto os engenheiros Ricardo Severo e Alexandre de Al-buquerque (1880-1940)91, o mdico e mecenas Jos Ma-rianno Filho (1881-1946)92, os arquitetos Adolpho Morales de los Rios (1887-1973)93, Lucio Costa94 e Paulo Santos95, os escritores Monteiro Lobato (1884-1948)96, Mrio de An-drade97 e Manuel Bandeira (1886-1968)98, entre outros. Cer-

    91 Engenheiro e professor da Escola Politcnica de So Paulo, envolvido ao mesmo tempo com a reconstruo da catedral da S em estilo gtico - defen-dido pelo engenheiro pelo carter monumental da obra incompatvel com a arquitetura colonial - e excurses cientficas para o estudo e levantamento de plantas dos tempos das casas coloniais. Ver Fischer, Sylvia, op. cit.

    92 Principal promotor do neocolonial no Rio de Janeiro entre as dcadas de 1920 e 1930. Ver Kessel, Carlos. Entre o Pastiche e a Modernidade: Arquitetura Neocolonial no Brasil. Tese de Doutorado, UFRJ, 2002.

    93 Arquiteto espanhol, radicado no Brasil, que tambm se envolveu simul-taneamente com a arquitetura ecltica e neocolonial.

    94 Aps assumir a direo da Escola Nacional de Belas Artes em 1930, Lucio Costa filiasse a arquitetura moderna e a partir desse momento torna-se um dos principais crticos neocolonial, movimento ao qual se vinculara desde os tempos de estudante. Ver Wisnik, Guilherme. Lucio Costa. So Paulo, Cosacnaify, 2001.

    95 Contemporneo de Lucio Costa, Paulo Santos tambm se vinculou ao neocolonial no incio de sua carreira para depois de filiar a arquitetura moderna. No seu caso, entretanto, a crtica ao neocolonial no parece to ferrenha quanto a promovida por Lucio Costa, a ponto do arquitetura esta-belecer vnculos entre os dois movimentos. Ver Santos, Paulo Ferreira. A Influncia do Neocolonial na Arquitetura Moderna do Brasil. Conferncia no Instituto dos Arquitetos do Brasil, 1951.

    96 Monteiro Lobato apoiou a campanha de arte tradicional de Ricardo Severo e sobre ela dedicou uma srie de artigos. Ver Chiarelli, Tadeu. op. cit.

    97 Intelectual que se vinculou ao neocolonial at o final da dcada de 1920, quando ento reviu a sua posio e foi aos poucos se aproximando da arquitetura moderna. Severo, alis, foi uma referncia importante na construo de seu estudo sobre a arte religiosa no Brasil. Sobre as relaes entre Mrio, Severo e o neocolonial ver do prprio escritor A Arte religiosa no Brasil. So Paulo, Experimento/ Giordano, 1993; Aspectos das Artes Plsticas no Brasil. So Paulo, Martins/ Braslia, INL, 1975 e Arquitetura Colonial. Arte em Revista, no. 4, ano 2, ago. 1980.

    98 Ver Amaral, Aracy. Artes Plsticas na Semana de 22. So Paulo, Ed. 34, 1998.

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    teza que animava e era alimentada por uma srie de via-gens de busca das fontes primitivas da cultura brasileira, que ocorreram entre as dcadas de 1910 e 1920, e que no se restringiram ao meio arquitetnico.99 As viagens reali-zadas pelo pintor Jos Wasth Rodrigues (1891-1957)100 e os arquitetos Felizberto Razini (1881-1976)101 e Lucio Costa no foram as nicas, mas so exemplares do intuito central das incurses pelo pas no campo da arquitetura. Alm do de-sejo de conhecer e analisar a produo artstica do passado, essas viagens tinham como objetivo procurar um manan-cial de inspirao que desse sustentao ao projeto romn-tico de constituio de uma arte que fosse ao mesmo tempo nacional e contempornea. O que parecia interessar essen-cialmente aos artistas e intelectuais do perodo era a arti-culao entre as manifestaes artsticas do passado com os projetos culturais que eles comeavam a esboar.102 E a a reconstituio de nossa histria da arquitetura assumia um papel estratgico.

    Nessa reconstituio, a prevalncia de uma mesma periodizao presente nos escritos de Severo, Wasth Rodri-gues, Jos Marianno Filho, Mrio de Andrade e Lucio Costa curiosa. Para todos, nossa tradio arquitetnica fora len-tamente se constituindo desde o descobrimento do Brasil, para desabrochar com toda exuberncia e autenticidade entre os sculos XVII e XVIII, sobretudo em Minas Gerais. O verdadeiro caminho seguido pela arquitetura brasileira ao longo desse perodo, teria sido interrompido no sculo XIX por um ecletismo cosmopolita estranho ao meio e as tradies nacionais. As divergncias comeam a aparecer justamente neste ponto.

    Para uns, como Severo e Marianno, a verdadeira atu-alizao da arquitetura brasileira propiciada pela retomada do fio da meada tradicional interrompido com o ecletismo, se dava com aquilo que ficou conhecido como o neocolo-

    99 Meyer, Marlyse. Um Eterno Retorno: as Descobertas do Brasil. Caminhos do Imaginrio no Brasil. So Paulo, Edusp, 1993, p. 19-46.

    100 De suas viagens resultou o livro, Rodrigues, Jos Wasth. Documentrio Arquitetnico Relativo Antiga Construo Civil no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/ So Paulo: Edusp, 1979, publicado originalmente nos anos 1940.

    101 Lemos, Carlos A, O Ecletismo em So Paulo. Ecletismo na Arquitetura Brasileira. So Paulo, Nobel/ Edusp, 1987, pp. 68-103.

    102 Gomes Jr., Guilherme Simes. Palavra Peregrina: o Barroco e o Pensamento sobre as Artes e Letras no Brasil. So Paulo, Edusp, 1998.

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    nial. Para outros, como Lucio Costa e Paulo Santos, isso s ocorreria de fato com o advento do moderno.

    Outro ponto interessante de confronto se d com re-lao constituio tnica da arquitetura brasileira. Se em Severo a figura chave era a do colonizador portugus que no Brasil se aclimatara reinventando a arquitetura de sua terra natal conforme o clima e os meios disponveis, em Mrio de Andrade quem se sobressai o mulato, especialmente re-presentado por Aleijadinho e Valentim.103 Ademais, desde a viagem a Minas com Cendrars em 1924, o crtico vinha de-senvolvendo o conceito de nacionalismo universalista, a partir do qual, podia religar sem constrangimentos a infor-mao europia de vanguarda com a pesquisa etnogrfica, psicolgica e folclrica mais atual.104 Mrio, diferentemente de Severo, no via o estrangeiro como uma ameaa. Ele o pensava a partir de sua condio de ser brasileiro e, portanto com um ponto de vista outro que transformava a informao que chegava de outros pases. Lucio Costa tambm enfatiza a contribuio dos negros, ndios e mestios no amoleci-mento da matriz arquitetnica portuguesa, notado por Gil-berto Freyre em outros campos da vida nacional.105 E como Mrio, seria menos avesso contribuio estrangeira que o engenheiro portugus e Marianno, desde que tal contribuio fosse bem assimilada.

    As coincidncias e divergncias entre os discursos destes engenheiros, arquitetos, artistas, escritores e inte-lectuais, refora a complexidade e a ambigidade do debate acerca do moderno e do nacional no Brasil em curso na pri-meiras dcadas do sculo XX. Em sua trajetria, Severo pa-

    103 Andrade, Mrio de. A Arte Religiosa no Brasil. So Paulo, Experimento/ Giordano, 1993; Idem, Aleijadinho: posio histrica. O Jornal, Rio de Janeiro, ed. especial sobre Minas Gerais, 1928. Fernanda Peixoto faz ainda interessantes consideraes, a partir da leitura de Roger Bastide e de seu dilogo com Mrio de Andrade, sobre como este entendia o barroco e a constituio de uma arte brasileira. Sobre isto ver Peixoto, Fernanda Aras. Roger Bastide e o modernismo: dilogo interessants-simo. Dilogos brasileiros: uma anlise da obra de Roger Bastide, So Paulo, Edusp/ FAPESP, 2000, pp. 45-92.

    104 Lira, Jos Tavares Correia de. Localismo Crtico e Atualidade na Arquitetura. Mrio de Andrade e a informao moderna (1925-1929). Texto mimeografado, 2002.

    105 Costa, Lucio. Documentao Necessria. Revista do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, 31/09/1937. Como aponta Henrique Mindlin em seu texto Gilberto Freyre e os Arquitetos. Arquitetura, So Paulo, 1962, n. 4, Freyre teve grande influncia sobre os arquitetos modernos nas dcadas de 1930/40, sobretudo no que diz respeito a definio do que seria a verdadeira arquitetura brasileira.

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    rece justamente sintetizar e exibir lados e verses confli-tantes naquele momento, aproximando a partir das noes de tradio, nao e modernizao artstica, movimentos que a princpio estariam em lados radicalmente opostos como o ecletismo, o neocolonial e o moderno, ou agentes to distantes como os intelectuais do Instituto Histrico e Ge-ogrfico que acolhem com entusiasmo suas idias e os modernistas paulistanos que num primeiro momento o aclamam, para depois o criticarem. Se possvel perceber, por um lado, o quanto o moderno e o modernismo naquele momento reivindicam o novo e uma nova forma de falar sobre o Brasil beneficiando-se surpreendentemente de idias e sugestes caras ao sculo XIX - como as de tradio e evoluo, apenas para citar duas bastante influentes no pe-rodo por outro, fica clara a importncia de se pensar a produo da poca a partir de um solo de disputas em torno dessas e outras noes, no qual o campo de batalha a arena social.

    sumarioa01n43a02n43a03n43a04n43a05n43a06n43a07n43a08n43a09n43a10n43a11n43a12n43a13n43a14n43a15n43a16n43a17n43a18n43