TCC Cesar Diab

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS, JORNALISMO E SERVIO SOCIAL

    CURSO DE JORNALISMO

    CSAR RAYDAN DIAB

    JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS:

    Antagonismos do contemporneo na narrativa da Agncia Pblica

    Monografia

    Mariana

    2013

  • 2

    CSAR RAYDAN DIAB

    JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS:

    Antagonismos do contemporneo na narrativa da Agncia Pblica

    Monografia apresentada ao curso de Jornalismo da

    Universidade Federal de Ouro Preto como requisito

    parcial para obteno do ttulo de Bacharel em

    Jornalismo.

    Orientador: Prof. Dr. Reges Schwaab

    Mariana

    2013

  • 3

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Ana, a mxima da minha vida.

    Aos meus pais e meus irmos, parmetros da minha perseverana.

    Ao Reges, meu professor e, sobretudo, grande amigo.

  • A maioria das pessoas so subjetivas a respeito de si

    prprias e objetivas algumas vezes terrivelmente objetivas

    a respeito dos outros. O importante ser-se objetivo em

    relao a si prprio e subjetivo em relao aos outros.

    Sren Kierkegaard

    No sculo 20 ns tentamos mudar o mundo de forma muito rpida,

    chegou a hora de interpret- lo de novo, de comear a pensar.

    Slavoj Zizek

  • 6

    RESUMO

    O presente texto prope uma investigao em torno da reportagem em espaos

    narrativos independentes, criados e mantidos por jornalistas no ambiente digital. Analisa um

    conjunto de matrias publicadas no site da Agncia Pblica de jornalismo investigativo e que tratam de tenses sociais do Brasil. Para uma leitura mais apurada, so trabalhadas 11

    reportagens ampliadas, produzidas em 2012, todas situadas na categoria Marcadas para morrer e que, no entendimento deste trabalho, compartilham das caractersticas foucaultianas da reportagem de ideias. Para produzir conhecimento a partir da anlise da narrativa, a

    investigao est ancorada na proposio reflexiva do filsofo Slavoj Zizek sobre os antagonismos do capitalismo atual. Alm disso, problematiza a Agncia Pblica como lugar

    no-hegemnico de jornalismo. No encontro das marcas textuais que caracterizam os modos de narrar e reconhecer o presente no espao em questo, so discutidos alguns caminhos possveis para o jornalismo. A cartografia da Pblica permite encontrar um complexo mapa

    sobre os antagonismos e emergncias que caracterizam nosso tempo e os modos de narr- lo.

    Palavras-chave: narrativa; jornalismo; agncia Pblica, contemporneo; novos apartheids.

    ABSTRACT

    This study presents an investigation about news reports in independent narrative spaces created and maintained by journalists in the digital environment . Examines a range of materials published on the agncia Pblica investigative journalism website and dealing with

    social tensions of Brazil . For a more accurate reading , the paper enlarged 11 reports , produced in 2012, all located in category Marcadas para morrer and that the understanding of

    this work , share the features of Foucault's "story ideas". To produce knowledge from the analysis of narrative, this research is anchored in the reflexive proposition of philosopher Slavoj Zizek about the antagonisms of contemporary capitalism . In addition , questions the

    agncia Pblica as place non - hegemonic in journalism. In search of textual elements that characterize the ways of narrating and acknowledge the present in this place in question, we

    discuss some possible ways for journalism. The cartography of Pblica allows to find a map on the complex emergencies and antagonisms that characterize our time and ways to narrate it.

    Keywords: narrative, journalism, Pblica agency, contemporary, new apartheids.

  • 7

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Anlise Contextual ...................................................................................... 45

    Quadro 2 Anlise da Ordem ........................................................................................ 50

    Quadro 3 Anlise dos Personagens ............................................................................. 55

    Quadro 4 Anlise do Narrador ..................................................................................... 59

    Quadro 5 Anlise da Recomposio da Intriga............................................................ 62

  • 8

    LISTA DE ILUSTRAES

    Ilustrao 1 Diagrama de Venn: Antagonismos do contemporneo ........................... 64

    Ilustrao 2 Diagrama de Venn: Agncia Pblica ....................................................... 64

  • LISTA DE ANEXOS

    Anexo I Reportagens e site da Agncia Pblica .......................................................... 73

  • 10

    SUMRIO

    1 INTRODUO ........................................................................................................... 11

    2 VIVENDO EM TEMPOS ANTAGNICOS ........................................................... 14

    2.1 Biogentica e propriedade intelectual ........................................................................ 22

    2.2 Ecologia ..................................................................................................................... 22

    2.3 Novos apartheids ....................................................................................................... 23

    3 NARRATIVA, JORNALISMO E REPORTAGEM ............................................... 26

    3.1 Narrativas no jornalismo ............................................................................................ 30

    3.2 Notas sobre a reportagem........................................................................................... 31

    3.3 Do jornalismo digital ................................................................................................. 33

    3.4 Agncia Pblica e seu engajamento no contemporneo ............................................ 37

    4 A PBLICA E AS TENSES DO CONTEMPORNEO ...................................... 40

    4.1 Movimento analtico 1: Anlise do contexto das reportagens ................................... 43

    4.2 Movimento analtico 2: Anlise da ordem narrativa................................................. 48

    4.3 Movimento analtico 3: Anlise do personagem ....................................................... 52

    4.4 Movimento analtico 4: Anlise do narrador e suas marcas textuais ......................... 57

    4.5 Movimento analtico 5: Recomposio da intriga ..................................................... 61

    5 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 66

    REFERNCIAS .............................................................................................................. 70

    ANEXOS .......................................................................................................................... 73

  • 11

    1 INTRODUO

    Na atualidade, frente a um cenrio marcado pelos avanos das tecnologias da informao

    somado a outras possibilidades de comunicao em meios digitais, o jornalismo se atualiza

    periodicamente neste novo ambiente de plataformas da Web 2.0 (ou 3.0). Tomando o jornalismo

    como prtica social e discursiva, importante dizer que a diversidade dos espaos pelos quais se

    pode narrar uma histria tambm abre fronteiras sobre como tecer os fatos. Se o jornalismo o

    lugar onde mais se fala sobre a vida do outro (RESENDE, 2009), coerente dizer que a

    contingncia digital cria diferentes possibilidades de mobilizar os sujeitos, lugares e espaos ao

    longo da narrativa, seja pela flexibilidade organizacional, pela interatividade/interao e/ou pelo

    encurtamento das distncias oferecido por estes meios.

    Concomitantemente, a reportagem jornalstica, pois produto desse jornalismo, tambm

    afetada pela abrangncia digital. Ao conceito de reportagem, soma-se no apenas a idia de uma

    notcia mais aprofundada, mas tambm a ideia de um produto do jornalismo que interpreta, apura

    o presente, molda sujeitos no texto e abre caminhos para a subjetividade. Tambm se agregam a

    este termo derivaes desse produto jornalstico, como o caso das Reportagens de Ideias, que,

    por sua vez, renem informaes e vozes poucas vezes - ou raramente - privilegiadas no discurso

    do jornalismo. Neste caminho para a reportagem digital, encontra-se o site Agncia Pblica de

    jornalismo investigativo (http://apublica.org), criado em 2011 por iniciativas de jornalistas com o

    propsito de produzir reportagens de cunho social acerca dos problemas que afligem o Brasil.

    Sob essa tica, salientando as potencialidades do cenrio digital e a possibilidade de

    averiguar outros espaos para a reportagem jornalstica, o problema maior que norteou este

    estudo foi pensar de que forma a narrativa jornalstica da Pblica elucida questes do Brasil. A

    partir disso, percorrendo e salientando a abrangncia do problema citado, tomamos o site

    nacional de jornalismo investigativo Agncia Pblica como um lugar jornalstico a ser estudado

  • 12

    e atuamos em suas reportagens com o objetivo de investigar que singula ridades de sua narrativa

    nos permitem interpretar o mundo a partir os acontecimentos reportados.

    Para chegarmos ao resultado, o presente estudo abarcou reflexes acerca da narrativa

    jornalstica e os usa na elaborao da metodologia capaz de entrar no corpus selecionado. Desse

    modo, o estudo visou explorar o qu do contemporneo nos dado pela narrativa da Pblica e

    vice-versa, isto , quais afetaes da atualidade moldam sua narrativa. Com isso, consta tamos

    que a Pblica, atravs de sua narrativa, coloca em tenso antagonismos do contemporneo

    problemas ecolgicos, propriedade privada e novos apartheids - sob uma perspectiva dos

    problemas do Brasil. Assim sendo, a amostra consiste em 11 reportagens da srie

    #MarcadasparaMorrer (publicadas no segundo perodo do ano de 2013), que tratam, a priori, de

    sujeitos e suas experincias de vida, pois a inteno deste gesto investigativo utilizar a

    reportagem de ideias como um lugar receptvel representao do outro e das coisas vividas.

    Parte das ideias desenvolvidas neste texto, bem como a escolha do objeto, so resultado

    da nossa pesquisa de iniciao cientfica, PROBIC/FAPEMIG 2013/2014, intitulada Narrativas

    jornalsticas e o reconhecimento das emergncias do presente, sob orientao do Prof. Dr. Reges

    Schwaab. Este projeto vai ao encontro de narrativas jornalsticas que possam produzir algum

    tipo de ruptura sobre o contemporneo e que se instalam em novos campos possveis dentro do

    cenrio da comunicao digital.

    Os estudos do campo jornalstico, usualmente, resgatam sua abrangncia complexa ao

    problematizar a prxis atravs de axiomas que tangem a trade produo, circulao e recepo

    (RESENDE, 2002, p. 2). Dentro dessas abordagens, campos interdisciplinares Estudos

    Culturais, Sociologia, Filosofia contribuem para um alargamento das possibilidades de

    interpretao e posicionamento diante das prticas miditicas. Neste caminho, a pesquisa fez

    trabalhar ideias do filsofo Slavoj Zizek (2009, 2010, 2011) com o objetivo de criar um eixo

    terico para compreenso da sociedade contempornea e das questes sociopolticas que

    circundam nosso tempo. Em traos grossos, para Zizek, existem, hoje, pelo menos quatro

    antagonismos inerentes ao capitalismo global:

    a sombria ameaa da catstrofe ecolgica, a inadequao da propriedade privada para a

    chamada propriedade intelectual, as implicaes socioticas dos novos avanos

    tecnocientficos (especialmente em biogentica) e as novas formas de apartheid, os

    novos muros e favelas (ZIZEK, 2012, p. 88).

  • 13

    Tambm, a fim de evitar amarras conceituais e ampliar o debate, resgatam-se

    ponderaes do socilogo Boaventura de Sousa Santos (2002), que sugere uma leitura diferente

    para as emergncias que marcam o presente.

    Acreditamos na importncia deste estudo pela necessidade de problematizar a prtica do

    jornalismo no contemporneo, sondar novos espaos para o jornalismo sem, no entanto,

    negligenciar o desafio de tratar as relaes tcitas que atravessam o nosso tempo. Advogamos,

    tambm, pela pesquisa, tendo em vista que, nos estudos do campo, pouco se diz sobre a

    reportagem, narrativa jornalstica e as emergncias do contemporneo.

  • 14

    2 VIVENDO EM TEMPOS ANTAGNICOS

    Neste captulo, abordaremos conceitos e reflexes tericas que norteiam o estudo como

    forma de tensionar o nosso objeto. Tambm, usaremos este aporte para investir no problema

    central, pois, se nosso objetivo tratar do mundo que nos cerca, acreditamos que teorias da

    sociologia e filosofia contribuem para esta proposta de anlise. Antes de adentrarmos nas

    reflexes tericas acerca do tempo atual, necessrio, sobretudo, citar alguns indicadores

    sociais, polticos, econmicos e ambientais da atualidade como um suporte para situar os

    problemas que alcanam escala global. Para isso, em primeira ordem, seguem estatsticas da

    ONU (Organizao das Naes Unidas) no mbito mundial, que indicam o desenvolvimento

    humano nos anos de 2012 e 2013, disponibilizadas nas categorias: sade, fome, pobreza, gua, e

    meio ambiente. Posteriormente, traremos informaes das mesmas categorias que retratam a

    conjuntura atual do Brasil.

    Hoje, a realidade nos apresenta um somatrio de desastres acumulado por dcadas de

    injustias onde as promessas modernas de paz, justia, igualdade e liberdade permanecem

    descumpridas ou o seu cumprimento resultou em efeitos infames (SANTOS, 2002, p.23). Apesar

    dos avanos em 2012 no IDH mundial (ndice de Desenvolvimento Humano), a ONU ainda

    estima que 1,57 bilho de pessoas esto em estado de "pobreza multidimensional"1. Dentre os

    30% do universo de pessoas que vivem na pobreza, mais de 800 milhes dormem famintas todos

    os dias, dentre elas 300 milhes so crianas2. Entre elas, mais de 90% sofrem de subnutrio e

    dficit de micronutrientes. Ainda segundo dados da Unric (Centro Regional de Informaes das

    Naes Unidas), a cada 3,6 segundos, uma pessoa morre de fome no mundo. Entretanto, fazendo

    aqui uma comparao com o Brasil, se a rea de produo de soja brasileira fosse substituda por

    1 Disponvel em: http://www.pnud.org.br/arquivos/FAQ-IPM.pdf. Acesso em: 16 nov. 2013

    2 Disponvel em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumpro ject4.html Acesso em: 16 nov.

    2013.

  • 15

    outros alimentos como milho e feijo, daria para alimentar 40 milhes de pessoas famintas.

    (SANTOS, 2002, p. 24).

    Pases africanos ainda ocupam posies perversas nos rankings de desenvolvimento

    humano mundial, todavia nem sempre tais problemas existiram no continente africano. Para se

    ter noo, em 1969, a frica era um grande exportador de alimentos; hoje, o continente importa

    um tero dos cereais de que precisa. Mais de 40% dos africanos no tm capacidade de obter

    diariamente os alimentos suficientes. E os que produzem ainda pagam pelos fertilizantes

    convencionais entre trs e seis vezes mais do que o seu custo no mercado mundial.

    No mago dessa escassez de alimentos, a situao da sade ainda mais assombrosa.

    Todos os anos morrem no mundo aproximadamente seis milhes de crianas por subnutrio

    antes mesmo de completar cinco anos. O equivalente populao da cidade do Rio de Janeiro. A

    cada 30 segundos, uma criana africana morre devido malria3, isto , mais de um milho por

    ano. Mais de 40% da populao mundial carece de saneamento bsico e mais de 1 bilho

    utilizam gua no potvel para consumo. Apesar do aumento significativo da populao mundial,

    a decrescente fertilidade dos solos, bem como a sua degradao, acarretou uma diminuio da

    produo de alimentos per capita de 23% nos ltimos 25 anos. Pensando nos efeitos da pobreza

    nas mulheres, mais de 40% das africanas no tm acesso ao ensino bsico. Uma mulher da frica

    subsaariana4 tem uma possibilidade em 16 de morrer durante a gravidez ou o parto. Na Amrica

    do Norte, o risco de 1 a cada 3.700 casos5

    Apesar da centralidade desses dados em pases antes chamados de terceiro mundo, a

    Europa, considerada distante dos excessos do sistema global, sofre com alarmantes nmeros de

    desemprego, resultado da crise financeira de 2008 a pior desde 1929 . Resultado, um perodo

    de recesso econmica nos pases capitalistas onde o antdoto para a crise seu prprio veneno,

    isto , mais cortes de gastos, demisses e dvidas. A zona do Euro enfrenta, atualmente, ndices

    considerveis de desemprego entre os jovens. O ndice de 62%. Dados da OIT (Organizao

    Internacional do Trabalho) apontam que, no mundo inteiro, ainda so necessrias 30,7 milhes

    de vagas para que o emprego retome o nvel pr-crise.

    3 Disponvel em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html . Acesso em: 16 nov.

    2013. 4 Regio do continente africano a sul do do Deserto do Saara, isto , aos pases que no fazem parte do norte da

    frica. 5 Disponvel em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html . Acesso em: 16 nov.

    2013.

  • 16

    Tendo em vista esse panorama, no podemos negligenciar o fato de que o Brasil, em

    comparao aos pases mais frgeis ou em relao sua histria, obteve um considerado avano

    no ndice de desenvolvimento humano desde o incio deste sculo, principalmente no que se

    refere aos indicadores de mortalidade infantil. Em 20 anos, o IDH das cidades brasileiras

    avanou 47,5% e a mortalidade infantil caiu 77% entre 1990 e 2012. 6 Deve-se dizer que o pas

    mudou muito em pouco tempo.

    Conforme outros ndices, no entanto, vrios problemas ainda persistem. Segundo o IBGE

    de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica), a porcentagem de brasileiros que

    possuem algum tipo de insegurana alimentar caiu de 34,9 para 30,2 entre 2004 e 2009 7.

    Entretanto, aproximadamente 11,2 milhes de pessoas passam fome no pas, com grande maioria

    no Norte e Nordeste, mais que a populao inteira de Portugal. Ainda motivo de extrema

    preocupao o crescimento das favelas nas cidades brasileiras. De acordo com o ltimo censo do

    IBGE, existem mais de 11 milhes de favelados no Brasil8. Outro ndice que assusta o nmero

    de pessoas morando nas ruas. S na capital So Paulo so 14.478 moradores de rua, dos quais

    sete mil recebem assistncia social e seis mil so desprovidos de qualquer auxlio do Estado.

    Em mbito geral, ainda de acordo com o IBGE, 58,4% dos brasileiros apresentaram pelo

    menos um tipo de carncia em quatro itens, como atraso educacional, qualidade dos domiclios,

    acesso aos servios bsicos e acesso seguridade social. Lanando um olhar para a questo

    ambiental, as estatsticas mostram um futuro pouco confortvel. O Brasil, pelo terceiro ano

    seguindo, o pas que mais consome agrotxicos do mundo. Em mdia, cada brasileiro consome

    cinco quilos de agrotxicos por ano. A fauna e flora brasileira tm mais de mil espcies

    ameaadas, 544 s na Mata Atlntica.9

    De acordo com IBGE, conclui-se que o total de terras destinadas agropecuria

    representa um montante de 330 milhes de hectares, equivalente a 36% de todo o territrio

    nacional do Brasil. Desses 330 milhes de hectares, cerca 141,9 milhes de hectares so

    latifndios. Acrescenta-se o fato: do total de terras do pas, metade est em situao irregular.

    6 Disponvel em: http://www.pnud.org.br/ODM4.aspx. Acesso em: 16 nov. 2013.

    7 Disponvel em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=1763. Acesso em: 16

    nov. 2013 8 Disponvel em:

    http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/agsn2010.pdf. Acesso em

    17 nov. 2013 9 Disponvel em: http://www.ecodebate.com.br/2012/06/19/fauna-e-flo ra-no-brasil-tem-mais-de-mil-especies-

    ameacadas-544-so-na-mata-at lantica/. Acesso em 17 nov. 2013

  • 17

    Conclui-se, ento, que a distribuio agrria no pas ainda encontra-se de maneira bastante

    concentrada e monopolizada. No a toa que o pas ocupa a triste segunda pior distribuio de

    renda segundo estudo da OCDE (Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento

    Econmico).

    Apesar de os dados e estatsticas serem ausentes de rostos, a enumerao de ndices

    fornece pistas em abundncia para refletir e criticar o andamento da organizao da nossa

    sociedade, bem como questionar suas instituies e buscar solues diferentes s j tentadas no

    decorrer dos anos. Alguns so problemas que se tornaram histricos e, portanto, se repetem. Mas

    bom lembrar que se tais problemas so casuais, podem at se repetir, mas parafraseando Karl

    Marx (2011) - primeiro como tragdia, depois como farsa. Porm nosso objetivo aqui no

    especular solues s questes acima, muito menos culpar os pases de terceiro mundo e seus

    lderes pela desordem mundial. O que queremos expor um pouco mais a teia complexa que

    circunda as emergncias do presente e defender que o jornalismo - mais especificamente, a

    reportagem enquanto prtica social afetada por essas questes e, principalmente, o contrrio.

    Sob essa tica de tencionar o contemporneo, indo para alm dos nmeros, recorremos

    aqui a dois pensadores que olham para tais descompassos, resgatam e problematizam a

    conjuntura social, econmica e poltica dos tempos recentes. Pretendemos reunir apontamentos

    tericos a fim de sinalizar um mapa de conflitos que caracterizam o tempo presente.

    Atento aos problemas listados, o socilogo Boaventura Santos (2002) se questiona sobre

    a razo de hoje ser to difcil construir uma teoria crtica num mundo repleto de coisas a serem

    criticadas. Santos levanta questes efmeras do nosso milnio - com as quais justifica a

    necessidade de uma reflexo acerca dos assuntos mundanos. So impasses existentes que geram

    desassossegos, rompem a passividade do conformismo e criam ambientes propcios para teorizar

    superaes. O autor subdivide os problemas que nos causam desconfortos a partir de quatro

    grandes promessas da modernidade, questes que dizem respeito promessa da igualdade entre

    os pases, da liberdade do ser, da paz eterna, da dominao e equilbrio do ecolgico:

    No que respeita promessa da igualdade os pases capitalistas avanados com 21% da

    populao mundial controlam 78% da produo mundial de bens e servios e

    consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do

    setor txtil ou da eletrnica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e

    da Amrica do Norte na realizao das mes mas tarefas e com a mesma produtividade.

    (...) (SANTOS, 2002, p. 23).

  • 18

    A seguir, Santos questiona a promessa de paz e liberdade no sistema atual:

    No que respeita promessa da liberdade, as violaes dos direitos humanos em pases

    vivendo formalmente em paz e democracia assumem propores avassaladoras. Quinze

    milhes de crianas trabalham em reg ime de cativeiro na ndia; a violncia policial e

    prisional atinge o paroxis mo no Brasil e na Venezuela, enquanto os incidentes raciais na

    Inglaterra aumentaram 276% entre 1989 e 1996 (...). (SANTOS,2002, p . 23).

    Para o sociolgo, a destruio do meio ambiente tambm denota uma falha da sociedade

    em conviver em equilbrio com a natureza

    Promessa da dominao da natureza fo i cumprida de modo perverso sob a forma de

    destruio da natureza e da crise ecolgica. Nos ltimos 50 anos o mundo perdeu cerca

    de um tero da sua cobertura florestal. Apesar de a floresta tropical fornecer 42% da

    biomassa vegetal e do oxignio, 600.000 hectares de floresta mexicana so destrudos

    anualmente. As empresas multinacionais detm hoje direitos de abate de rvores em 12

    milhes de hectares da floresta amaznica. (SANTOS, 2002, p. 23).

    Santos designa tais promessas descumpridas que enfrentamos como alimento para criao

    de uma teoria crtica ps-moderna que no mais se ancora nas dicotomias da modernidade

    determinao/contingncia ou estrutura/ao, ou seja, no conhecimento crtico produzido na

    modernidade . Para o autor, as ideias dessa nova teoria, para que d conta da complexidade do

    tempo atual, precisam validar a dinamicidade das estruturas e de suas aes bem como a

    anulao das questes filosficas entre determinao e indeterminao. Heranas, segundo autor,

    da terica crtica moderna. Santos sugere ainda que, para enfrentar os desencontros atuais,

    devemos centrar na dualidade entre a ao conformista e a ao rebelde para elaborarmos um

    conhecimento-emancipao ligado sociologia, essencialmente. A primeira refere-se ao

    conformismo subjetivo que se cria na pluralidade e multiplicidade do capitalismo atual,

    principalmente ao domnio do consumo, onde a substituio relativa de bens e servios do

    mercado se confunde com livres escolhas e autonomias do sujeito. Entretanto, essa prpria

    fronteira cria contexto para que a ao conformista passe para a segunda, a ao rebe lde, e

    portanto, molde subjetividades inconformistas e capazes de indignao (SANTOS, 2002, p.

    33). Mas dessa autonomia de escolhas e suas fragilidades em se concretizar atravs de ao, pode

    emergir a fragilidade e facilidade de se indignar e transformar esse sentimento em um

    conformismo alternativo. Assim, subjetividades rebeldes, motivadas pelo descrdito ancorado

    nesta revolta, conformam-se perante as condies que as envolvem.

  • 19

    Em outra corrente, embora no muito inversa, de se pensar do ponto de vista filosfico

    o atual perodo e a problemtica que subjaz o funcionamento do mundo nos dias atuais, o

    filsofo Slavoj Zizek (2009, 2011, 2012) sugere que o endossamento de hoje do capitalismo se

    deu aps o sistema englobar os discursos contrrios ao capital nos tempos de resistncia (nfase

    na dcada de 60). Para alm de Santos, onde a pluralidade e fragmentao do capitalismo criam

    limites a serem rompidos pela ao rebelde, Zizek encontra na prpria resistncia ao capital o

    triunfo do sistema. Em outras palavras, o capitalismo atravs de sua prpria negao atualmente

    visto com forma poltica e econmica aceita globalmente, impassvel de ser questionada. Para

    ele, apesar da rejeio ao sistema, o capitalismo superou os protestos da modernidade adquirindo

    um novo esprito que perpassa as estruturas e se instala nas atitudes e subje tividades do ser. Ou

    seja, hoje o capitalismo liberal-democrtico aceito como a frmula finalmente encontrada da

    melhor sociedade possvel, e tudo o que se pode fazer torn- la mais justa, tolerante etc.

    (ZIZEK, 2009, p.2). Partindo dessa afirmao, ainda conforme o filsofo, a pergunta que se cria

    : ns endossamos essa naturalizao do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contm

    antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reproduo? (ZIZEK, 2009, p. 2).

    No mago do conflito, Zizek, principalmente, situa quatro antagonismos que subjazem as

    ambivalncias de nosso tempo, ecologia, propriedade intelectual, impasses da biogentica e

    novas formas de apartheid:

    (...) o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalptico. Seus quatro

    cavaleiros do Apocalipse so a crise ecolgica, as conseqncias da revoluo

    biogentica, os desequilbrios do prprio sistema (problemas de propriedade intelectual,

    a luta vindoura por matria -prima, comida e gua) e o crescimento exp losivo das

    divises e excluses sociais. (ZIZEK, 2012, p. 11).

    O filsofo salienta, ainda, a diferena qualitativa entre os quatro antagonismos. A

    biogentica, a propriedade intelectual e a ecologia tratam de questes da sobrevivncia (fsica,

    econmica e antropolgica). Os novos apartheid tratam de uma questo de justia, perpassam a

    existncia de todos os outros antagonismos e expem as relaes de classe entre eles. Co m isso,

    em termos gerais, os problemas supracitados podem supor solues viveis, ainda que a

    diferena entre as divises sociais aumentem e novos muros sejam criados. Essa ideia ser

    melhor desenvolvida no decorrer do captulo.

    Zizek atribui a causa desses antagonismos no s perpetuao do capitalismo, mas

    tambm proliferao global do consumo e da produo inesgotvel de bens-materiais, bem

  • 20

    como a apropriao individual daquilo que se enquadra na ordem do comum, seja na esfera

    pblica ou privada. Esse somatrio, acredita o filsofo, cria paradigmas dos bens comuns, tanto

    do ecolgico quanto do sociopoltico e fazem de nosso tempo um perodo imprescindvel de

    reviso do comportamento sobre como tratar do atual e seus devires.

    Apesar da adaptabilidade do lucro no capitalismo na qual uma ameaa catastrfica

    poderia facilmente gerar investimentos e concorrncia o risco identificado hoje no se

    enquadra em um patamar globalizante gerador de frutos futuros para o desenvolvimento e

    fortalecimento do mercado, pois o capitalismo funciona em condies sociais claras em que se

    subentende a confiana no mecanismo objetivo da mo invisvel do mercado que, como uma

    espcie de Artimanha da Razo, garante que a competio entre egosmos individuais sirva ao

    bem de todos (ZIZEK, 2011, p. 416-417). Ou seja, Zizek atribui aos diveres dos antagonismos a

    possibilidade da degradao do capital, pois, segundo ele, vivemos uma mudana radical onde a

    possibilidade de um evento catastrfico no horizonte ameaa, mais do que nunca, a lgica da

    mo invisvel e, sobretudo, a ideia salvaguarda de que seja o que fazemos ou deixamos de fazer,

    a histria continuar (2011, p. 417). Portanto, nas trilhas do filsofo, os antagonismos que

    apontam no horizonte, traduzem situaes efmeras de nosso tempo por serem capazes de

    produzirem uma queda irreversvel do capitalismo ou, no mnino, alterar radicalmente sua lgica

    de funcionamento. O terreno que subjaz tais ponderaes messinicas e criam credibilidade est

    muito imbricado no funcionamento da ideologia no tempo presente. Por outras palavras, as ideias

    de Zizek (2009, 2011) se sustentam em sua maneira de olhar e criticar a ideologia que nos

    envolve. Embora o estudo da ideologia possua grande peso no trabalho do autor, traremos breves

    inferncias sobre o assunto, pois se trata de um exerccio filosfico de flego e dar conta de toda

    sua complexidade desviaria o foco do nosso estudo.

    Zizek (2011) ressalta a ideia difundida hoje, de que vivemos em uma sociedade ps-

    ideolgica frutos do perodo ps-poltico, onde no estamos mais presos ao fardo das grande

    causas e das narrativas ideolgicas e, portanto, temos liberdade para fazermos nossas prprias

    escolhas, sem interferir no jogo poltico, deixando que ele o faa por conta prpria. Assim, no

    precisamos mais nos agarrar a pensamentos crticos para interferimos no fluxo das coisas.

    Entretanto, o filsofo defende o ponto de vista crtico a essa ideia. Para ele, podemos entender

    esse pensamento conformista como sintoma de que o poder no precisa mais de uma estrutura

    ideolgica consistente para legitimar seu domnio; pode se dar ao luxo de afirmar diretamente a

  • 21

    verdade bvia: a busca do lucro, a imposio violenta dos interesses econmicos. (ZIZEK,

    2011, p. 298). Sob essa tica, defender o ps- ideolgico aparece como uma crena ainda mais

    ideolgica. Isto , dizer que ultrapassamos o poder da ideologia significa que estamos claramente

    no centro dela, na ideologia da negao. Por exemplo, pensando nos antagonismo, nega-se a

    existncia catastrfica destes, ou mesmo que creiamos em seu devir destrutivo, agimos contra

    tais ameaas como a crise ecolgica, por exemplo, e ainda assim defendemos que tais atos

    precisam ser moderados, sem uma necessria revoluo no sistema, pois no fim das contas, a

    catstrofe de fato no acontecer.

    O autor investe nas relaes precedentes aos antagonismos e que os tornam aceitveis em

    escala global. Para ele, o melhor modo de compreendermos como tais relaes se propagam

    trabalhar e explorar a ideologia em voga. Por outras palavras, tensionado a ideologia que nos

    apresentada conseguimos mapear as razes pelas quais o capitalismo se impe e se justifica na

    contemporaneidade. Levantamos a noo de ideologia predominante hoje com aquilo que fixa,

    ou naturaliza, atravs de um processo histrico, no apenas os problemas atuais, mas as suas

    solues para os mesmos. Portanto, ver as coisas como dinmicas e parte de um processo

    histrico (ZIZEK , 2011, p. 401).

    Entretanto, Zizek argumenta, se ver as coisas como plurais e fragmentadas faz parte da

    ideologia hegemnica deveramos, ao contrrio, perguntar desafiando as condies ideolgicas

    o que h hoje que permance imvel e constante. Em resposta a esse ponto, podemos ler o

    capitalismo e suas atividades como parte dessa estabilidade. Mas o irnico aqui o que se

    perptua como igual o prprio meio pelo qual se fomentam as mudanas, pois a maior e mais

    marcante caracterstica do capitalismo sua capacidade dinmica de se adaptar a novos tempos,

    como uma autorevoluo constante (ZIZEK, 2011, p. 401). Para tanto, o filsofo no se precipita

    ao dizer que, hoje, a ideologia hegemonia difunde a ideia de que o capitalismo liberal

    democrtico chegou para ficar e qualquer mudana por mnima que seja nesta lgica poltica

    econmica soa como perversa e inalcancvel. Neste aspecto, o capitalismo triunfa novamente em

    suas formas de resistncia.

    Tomada essa problematizao acerca do contemporneo, enquadramos como sendo esse

    o lugar (uma realidade marcada por fortes antagonismos globais) no qual o jornalismo da

    Pblica se instala. Intricado na possibilidade de enquadrar as emergncias do presente em

    antagonismos intrnsecos ao capitalismo, nesta etapa do texto, descrevemos cada um deles.

  • 22

    2.1 Biogentica e Propriedade Intelectual

    Os resultados scioticos dos novos desenvolvimentos cientficos e tecnolgicos como a

    biogentica colocam em xeque a relao com o aquilo que se entendia por natureza. A principal

    conseqncia dos avanos cientficos na biogentica o fim do que entendemos por natureza.

    Uma vez que sabemos as regras de sua construo, os organismos naturais so transformados em

    objetos passveis de manipulao. Alm disso, as empresas de biogentica investem em

    desenvolvimento de genes dos quais eram, ao menos em essncia, certos indivduos e neste

    instante o material j possui seu copyright e pertencem a terceiros (ZIZEK, 2009, p. 417).

    O problema que gira em torno da propriedade privada atualmente, com nfase na

    propriedade intelectual, descobrir como ganhar dinheiro na indstria digital a ponto da empresa

    conseguir manter e gerir seus negcios. Se tratando dos direitos de uso, se parece at com a

    questo das indstrias de biogentica.

    2.2 Ecologia

    No seio de um consumo global e da produo incontrolvel de bens-materiais, bem

    como a apropriao individual daquilo que se enquadra na ordem do comum, seja na esfera

    pblica ou privada, nos deparamos com um somatrio de delitos ambientais irreversveis at

    ento. Extino da fauna e flora, esgotamento de combustveis fsseis, aglomerao de lixo

    txico, emisso de gases poluentes, trazem ao nosso tempo um compromisso inescapvel de

    reviso do comportamento sobre como tratar a ecologia. Na possibilidade de ruptura com o

    capitalismo e os novos lugares que redefinem a perspectiva revolucionria, a ecologia, ento, se

    coloca como um antagonismo intrnseco. Apesar da aceitao do sistema vigente, o filsofo

    investiga nas brechas da reprodutibilidade complexa do capitalismo, lugares que redefinem a

    capacidade de mudana nas atuais condies. Brechas essas geradas pelo prprio capitalismo em

    sua base substancial que medeia e gera os excessos (favelas, ameaas ecolgicas etc.) que criam

    locais de resistncias (ZIZEK, 2011, p. 415-416).

    Apesar dos problemas ambientais, Zizek examina a maneira pela qual a causa sustentvel

    ecolgica em voga tornou-se, hoje, uma forma de suprimir a existncia da nocividade do capital

  • 23

    e seus efeitos colaterais. Para ele no se resolve a questo ecolgica atravs do desenvolvimento

    sustentvel ou com atitudes consideradas verdes. Ao contrrio, o discurso de sustentabilidade

    permite que as empresas poluidoras legitimadas por nossa economia - transfiram sua culpa no

    s aos consumidores de seus produtos, mas a todos. O filsofo ainda especula dizer

    parafraseando a famosa colocao de Karl Marx sobre a religio que a ecologia candidata a

    ser um novo pio do povo (2011), no sentido de remediar as massas pelos danos ambientais de

    hoje e negligenciando, assim, os efeitos pouco modestos do sistema em outros mbitos globais:

    O mes mo truque ideolgico usado hoje pelas injunes que nos bombardeiam de

    todos os lados para reciclar nosso lixo, jogar garrafas, jornais etc. em lixeiras separadas

    e adequadas... Assim, culpa e responsabilidades so personalizadas, no a organizao

    da economia que culpada, mas nossa atitude subjetiva que deve mudar. (ZIZEK,

    2010, p. 36).

    Subjacente a essa constatao, possvel identificar duas formas polticas distintas que

    fazem uso do desequilbrio ecolgico e do suposto devir desastroso. Uma seria a poltica do

    terror emancipatrio; a outra, no entanto, diz respeito poltica do medo. Esta utiliza a ecologia

    com base no medo em sua forma mais crua, na qual a repulsa e o pavor pela catstrofe ambie ntal

    e sua possibilidade de fim faria com que ns, indivduos sociais, finalmente, encontrssemos a

    soluo para os problemas e agiramos em prol da espcie humana. Isso seria ignorar o real

    problema, segundo Zizek, pois tenta enganar com a potencial ameaa e se espera secretamente

    que nada seja to ruim quanto se teme. A primeira, mais utpica (no bom uso do termo),

    encontra nas vias catastrficas uma possibilidade de mudana, uma poltica onde questes

    ambientais no sejam apenas tratadas e resolvidas como problema de desenvolvimento

    sustentvel ou excesso de consumo, mas que o mau uso da natureza e sua degradao, em geral,

    sejam impossveis.

    2.3 Novos apartheids

    Falar de apartheid tratar do conflito entre os indivduos, instituies, leis e organizaes

    econmicas que oprimem aqueles que esto margem da sociedade. Em outras palavras uma

    forma de segregao, latente ou disfarada, na qual excluem certos indivduos e os probem da

    cidadania, dos direitos fundamentais do homem, em suma, do convvio social em todas as

  • 24

    instncias. Aqui, como j vimos, a relao includo versus excludos emerge nos interesses de

    cada classe. Exemplos de novas formas de apartheid podem ser lidas no aumento das favelas ao

    redor do mundo, dio entre pases e etnias, fortalecimento do racismo como problema de

    tolerncia10ascenso de partidos anti- imigrantes na Europa. Alm disso, novos muros surgir por

    toda parte: entre Israel e Cisjordnia, em torno da Unio Europia, na fronteira entre Estados

    Unidos e Mxico e at no interior de Estados-naes.(ZIZEK, 2009, p. 17-18)

    (...) nenhum outro lugar as formas de apartheid so mais palpveis do que nos ricos

    Estados produtores de petrleo do Oriente Mdio: Kuwait, Arbia Saudita, Dubai.

    Escondidos nos subrbios, muitas vezes por trs do muro, h dezenas de milhares de trabalhadores imigrantes invisveis, que fazem i trabalho sujo, da manuteno at a

    construo civil, separados de suas famlias e sem nenhum priv ilg io. Isso claramente

    acrescenta situao um potencial explosivo que hoje explorado pelos

    fundamentalistas e deveria ser canalizado pela esquerda na luta contra a explorao e a

    corrupo. Uma forma mais comum de excluso inclusiva so as favelas, grandes reas

    no inseridas nos mecanis mo estatais de governana. Embora sejam sobretudo um

    campo em que gangues e seiras religiosas disputem o controle, as favelas abrem espao

    para organizaes polticas radicais, como na ndia, onde o movimento maosta dos

    naxalitas vem organizando um amplo espao social alternativo. (ZIZEK, 2009, p. 11).

    Sob essa perspectiva, este antagonismo se mostra como o mais elementar entre todos os

    outros pois, sem a relao excludos versus includos, extrai-se o vis subversivo dos outros

    antagonismos, onde a ecologia se transforma em problema de desenvolvimento sustentvel, a

    propriedade intelectual em desafio jurdico complexo, e a biogentica em questo tica (ZIZEK,

    2011). Sem a relao oprimidos e opressores, podemo persistir na ideia opressora de que se deve

    lutar pelo meio ambiente culpando os excludos poluidores, eliminando os agricultores pobres e

    disciplinando os pases de Terceiro Mundo. possvel, ainda, tratar das questes genticas

    sem entrar no mbito de classes, pois com os avanos da manipulao de genes anuncia no

    horizonte a possibilidade haver no somente uma distino entre classes social, mas tambm

    corporal. Pode-se continuar excluindo aqueles que precisam ter acesso ao conhecimento de

    forma gratuita, em prol da propriedade privada do conhecimento.

    No se pode negar que a globalizao encadeou um entrelaamento entre as questes que

    acabamos de ver por todo o mundo. Junto a isso, houve um generoso alargamento entre as

    formas de olhar e agir para o problema, no entanto, conforme Santos (2007, p. 20), nos falta um

    conhecimento to global como a globalizao.

    10

    Para Zizek (2011), tratar problemas de segregao pelas vias da tolerncia esconder as reais solues para o

    apartheid. Pois, segundo o filsofo, ao tratar a excluso como problema de tolerncia, retira-se da questo a culpa da

    poltica, justia e da econmia, o que, na verdade, so os eixos que realmente causam o problema.

  • 25

    Esse breve percurso pelas adversidades do tempo ps-moderno nos possibilita ir atrs de

    contedos alm da filosofia e sociologia que produzem algum tipo de ruptura sobre o nosso

    tempo e colocam em conflitos os diferentes interesses socioeconmicos. Ao fazerem isso,

    trabalhamos na hiptese de que nesses contedos encontraremos informaes capazes de mapear

    lugares onde tais antagonismos ganham forma e projetam incertezas no futuro.

    Pensando a reportagem como um espao privilegiado de enunciao sobre os

    acontecimentos do mundo, o estudo na prxima etapa desloca a problematizao acerca dos

    espaos complexos que medeiam nossa organizao poltico-social para a atividade jornalista e

    sua narrativa pensando qual o lugar dessa atividade miditica no presente e como suas

    narrativas operam nesse mundo pr-concebido, at ento.

  • 26

    3 NARRATIVA, JORNALISMO E REPORTAGEM

    O filsofo Walter Benjamin, em sua famosa crtica obra de Leskov, foi pioneiro ao

    problematizar e associar a narrativa com o jornalismo, chegando anunciar at que ela estava em

    vias de extino. Para o filsofo, narrar est essencialmente relacionado tradio oral, e mesmo

    que ela seja escrita, as melhores so as que mais se parecem com a fala. Ou seja, narra-se uma

    histria quando o narrador dialoga diretamente com o receptor e, nessa troca de vivncia, a

    imaginao de ambos seria exercitada, as experincias compartilhadas; e emoes, desejos e

    valores seriam agregados intriga. Assim, toda a grandeza da narrativa se mantm inalterada.

    Neste aspecto, Benjamin compara o trabalho do narrador ao trabalho de um arteso pois assim

    como a narrativa, o arteso molda seu objeto a partir dos seus gostos e desejos para, ao final,

    expor ao pblico o resultado esperado. Entretanto, o filsofo argumenta com pessimismo que as

    novas formas lingsticas em meados do sculo 20 vm na contramo das narrativas. Ele

    enfatiza que o romance, na fico, estaria destruindo a narrativa, pois trancafiavam o poder da

    experincia em relatos simplistas, cujo foco econmico e tecnicista exclua, na recepo, a

    possibilidade do envolvimento com os efeitos da tradio oral.

    a experincia de que a arte de narrar est em v ias de extino. So cada vez mais raras

    as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que algum narre

    alguma coisa, o embarao se genraliza. como se estivssemos privados de uma

    faculdade que nos parecia segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar

    experincias. (BENJAMIN, 2000, p. 198).

    Benjamin atribui este olhar pessimista sobre o futuro da narrativa s informaes e

    notcias que chegavam at ele. .

    Cada manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em

    histrias surpreendentes. A razo que os fatos j nos chegam acompanhados de

  • 27

    explicaes. Em outras palavras: quase nada do que acontece est a servio da narrativa,

    e quase tudo est a servio da informao [...] (2000, p. 207).

    Na obra, A Modernidade e os Modernos, Benjamin investe mais uma vez contra o

    jornalismo e em prol da narrativa, s que agora, sob outro ponto de vista:

    Se a imprensa se propusesse agir de tal forma que o leitor pudesse apropriar-se das

    informaes como parte de sua experincia, no alcanaria, de forma alguma, seu

    objetivo. Mas seu objetivo outro, e o alcana. Seu propsito consiste em exclu ir,

    rigorosamente, os acontecimentos do mbito no qual poderiam atuar sobre a experincia

    do leitor. Os princp ios da informao jornalstica (novidade, brevidade, inteligib ilidade

    e sobretudo ausncia de qualquer conexo entre notcias isoladas) contribuem para este

    efeito, tanto como a paginao e o estilo lingstico (Karl Kraus demonstrou infati-

    gavelmente como, e at que ponto, o estilo lingstico dos jornais paraliza a imaginao

    dos leitores). (BENJAMIN, 2000, p. 36).

    As reflexes de Benjamin sobre a narrativa so marcantes e possuem um lugar

    considervel na narratologia e nos estudos da linguagem. No nosso Campo, atualmente, esse

    ponto de vista negativo da narrativa no mais adotado pelos estudiosos de jornalismo.

    Devemos reconhecer e valorizar as reflexes de Benjamin, principalmente, sem negligenciar o

    perodo histrico do qual o filsofo escrevia, no auge da sociedade industrial ps-guerras. Mas

    defendemos aqui que essa tica pessimista sobre a narrativa ainda ecoa no jornalismo tradicional,

    principalmente, no estilo que presume brevidade e objetividade do texto. Em contrapartida, nos

    deparamos, hoje, com produes jornalsticas que favorecem a conexo entre narrativa e

    jornalismo. Por exemplo, a oferta de livros reportagens nos dias atuais surge, tambm, para

    preencher essa lacuna entre a informao no-ficcional, o literrio, e o relato histrico em busca

    de uma boa histria. Antes de aprofundarmos no tema, discutiremos em torno dos conceitos de

    narrativa e, em seguida, faremos a ligao entre eles e o jornalismo.

    Narrar no apenas relatar acontecimentos experimentados em forma textual. Muito

    alm disso, narrar estabelecer um modo de compreenso do mundo, de configurar

    experincias e realidades, de comunicar-se com o outros. (LEAL, 2013, p. 3). o meio que

    encontramos para tornar a vida vivvel (RESENDE, 2009) onde as atualizaes do tempo so

    organizadas, e, nas trilhas de Genette (1995), o lugar em que se instalam modos, sujeitos e os

    contextos. Narrativizar, ento, dar a conhecer um mundo caracterizado por suas ambivalncias

    e marcas do tempo que ultrapassa a memria do homem, intercalando experincias entre sujeitos

    (BENJAMIN, 1994) e, sobretudo, atribuindo sentidos e valores a essas vivncias, tendo na

  • 28

    imaginao sua fonte criadora. Conforme Carvalho (2012) ao citar o filsofo Paul Ricoeur,

    narrar:

    [...] tornar humano o tempo, assim como a forma por excelncia de guard-lo, de

    preserv-lo, um ato que no se limita s narrativas literrias ou histricas, assim como

    se espraia para dimenses das atividades humanas que podem alcanar a arquitetura, o

    cinema, as artes plsticas e uma srie de outras aes dos homens, dentre elas, as

    modalidades de contar os acontecimentos acionadas pelo jornalismo. (CARVALHO,

    2012, p. 183).

    Somando a essa definio, nas palavras de Ricoeur (1996, p. 70), ela uma obra de

    sntese: pela virtude da intriga, objetivos, causas, acasos, so reunidos sob a unidade temporal de

    uma ao completa e total. Em suma, se narrativa tornar humano o tempo, vivvel a vida,

    configurar experincias e discernir pelo esprito, as narrativas no jornalismo exploram

    acontecimentos que colocam o mundo diante de si (GROTH, 2001) elencando sujeitos no

    tempo. Esta postura nos oferece uma realidade marcada por suas contradies, que so capazes

    de nos fazer ver, a partir da singularidade, as conexes mais amplas com o particular e com o

    universal (CARVALHO, 2012, p. 181).

    Um elemento primordial na narrativa a intriga. Ao contar uma histria, ns elencamos

    elementos no narrar que seguem uma lgica na qual colocamos em ordem os eventos, lugares e

    sujeitos no mundo (LEAL, 2013). Por exemplo, quando contamos uma experincia nossa a

    algum, selecionamos fatores iniciais como dia, hora, lugar acrescentamos sujeitos e

    caractersticas do mundo que predominaram nessa experincia, atribuindo valores, sentimentos,

    profundidade e sensibilidades - mais para algumas coisas, menos para outras. Estabelecemos

    tambm equilbrios e desequilbrios para chegarmos a um final escolhido. Nessa srie de fatores

    que influenciam na maneira como contamos uma histria, a intriga, o tempo, a heterogeneidade,

    a unidade, a ao e o tempo subjazem todos eles, ou seja, atravs de tais elementos que

    perpassam e do coerncia todos os outros modos de narrar (LEAL, 2013).

    Se quisermos contar uma vivncia sobre algum parente refugiado de guerra, no exemplo,

    tratamos de elencar que tempo foi esse, de que modo as aes dos sujeitos aparecem na histria,

    a existncia das diferentes situaes e, fundamentalmente, a intriga dos fatos. Valoriza-se esta

    ltima, pois narrar compor intrigas e isso se d quando os fatos so ditos, lembrados,

    mencionados e articulados entre si, ou seja, agenciados. Dessa agenciao, escolhemos o que

    entrar no narrativo com base em valores e o que deixar de ser dito, pois narrar implica uma

  • 29

    sntese e no h espao suficiente para totalizar a gama de informaes que constituem num

    acontecimento. Entretanto, entendemos a intriga no como sinnimo de trama, pois

    caracterizamos esta como uma estrutura imvel na narrativa, onde todos os outros elementos da

    narrativa obedecem a sua lgica e, ela em si, faz sentido independentemente do tom narra tivo.

    Em contrapartida, a idia de intriga aqui defendida, conforma Ricouer, refere-se a um conceito

    muito mais dinmico, que depende da historia contada, dos modos e apelos que ela suscita, e que

    emana situaes mais complexas por tratar da demanda do meio e da interatividade entre

    emissor/receptor. Por outras palavras, tratar da intriga no significa falar de um enredo especfico

    que funciona como um eixo imvel aonde os elementos narrativos so organizados para se tornar

    inteligvel. A ideia aqui pensar a intriga como um conceito mvel, passvel de modificaes a

    partir dos elementos resgatados pela memria em relao ao conhecimento de mundo e ao

    receptor, envolvendo questes culturais, ticas, sociais de um determinado sujeito e espao

    (LEAL, 2013).

    Assim, a intriga sofre influncias nas intercalaes complexas que precedem o ato

    narrativo, e no desenrolar da histria, onde no h um fim em si mesmo. Ou seja, a narrativa no

    se fecha medida que seu fim se aproxima. Ela afeta, inclusive, a forma pela qual o ouvinte,

    leitor agir na sua vida, como ela atribui valores para as co isas e criam desejos. Voltando

    histria do parente refugiado de guerra que precisou mudar de sua terra natal: aps o fim da

    narrativa onde as experincias desse sujeito foram intercaladas, efeitos podero ser provocados

    neste receptor sobre como ele concebe, a partir dessa histria, o pas desse personagem, a guerra

    enfrentada por ele, e como ele olhar para este sujeito sempre que o mesmo for resgatado pela

    memria. Isso vale no somente para o receptor da narrativa, mas tambm para o emissor que

    organizou vivncias em seu dizer, pois quem fala algo no fala apenas para o outro, mas tambm

    para si prprio. Portanto, dessa forma, entende-se que a narrativa ecoa, tambm, nas

    subjetividades daqueles que fazem parte da intriga e que a contam e recebem a histria narrada.

    Exploraremos brevemente, na seqncia, reflexes que cercam o conhecimento sobre a

    narrativa no jornalismo para aplicar o seu conceito e criar subsdios para entrarmos no corpus

    deste estudo, pois a metodologia aqui construda e defendida pretende, fundamentalmente,

    analisar as narrativas jornalsticas da Agncia Pblica.

  • 30

    3.1 Narrativas no Jornalismo

    O jornalismo molda sua enunciao sob regras e valores sociais definidos por uma

    conduta que dita prticas especficas de dizer e tratar do agora, porm sempre atreladas ao

    interesse pblico. As pretensas normas do Campo, apiam-se na crena na verdade, que pode ser

    lida nas coordenadas epistemolgicas e nas diretrizes formuladas por manuais de redao com as

    quais padronizam o texto jornalstico e instrumentalizam maneiras de dizer. Autores como

    Traquina (2002) e Lage (1985) exemplificam essas frmulas e moldes sobre como um texto deve

    se portar para ser considerado material jornalstico. Fatores como brevidade, objetividade,

    impessoalidade so imprescindveis neste modo de fazer jornalismo e reverberam no apenas na

    construo da notcia, mas tambm nos demais gneros como crnica, reportagem, etc.

    Este vis no s acarretou na padronizao de ser do texto, mas, sobretudo, implicou na

    ideia de que outras formas, que rompem com esse modus operandi, apresentam fragilidades e so

    passveis de questionamento, como se o texto hegemnico estivesse isento de resistncia. Aqui, o

    argumento da defesa pelo padro se consolida na noo da credibilidade, ou melhor, a vinculao

    com o real. No obstante, este lugar no qual se instala o fazer jornalstico, suas tcnicas de

    sondagem da verdade irredutiva, denota problemas justamente com aquilo que a neutralidade que

    o Campo prope, pois na nsia de respeitar o dever da verdade, deixamos de lado, muitas vezes,

    o dever da imprensa que, no quadro atual, mais do que nunca, talvez seja o de apresentar as

    vrias verses do que se pretende que seja verdade (RESENDE, 2012, p. 162). Vale lembrar

    que a questo do ritmo veloz e o curto tempo para aprovao das matrias tambm so fatores

    que interferem na apurao da notcia. Deste modo, a predominncia da postura metdica no

    contedo jornalstico cria narrativas enclausuradas, pois, de acordo com Resende, partem do

    princpio de que sua construo depende exclusivamente de normas/regras previamente

    estabelecidas que, uma vez aplicadas ao texto jornalstico, so capazes de explicar os

    acontecimentos do mundo.

    Ainda de acordo com as normas padro do jornalismo, existe a ideia de que pluralidade

    de informao, vozes e lugares fazem parte da essncia do contedo jornalstico. E isso no

    exclui o texto no-hegemnico das diferentes possibilidades reconhecidas e aceitas pelo Campo.

    Entretanto, se a pluralidade permitida, acima de tudo, exigida, as formas pelas quais o

    jornalismo se insere no precisam fechar as portas para o plural.

  • 31

    Hoje, muita coisa produzida e considerada jornalismo de forma transgressora, como

    nos alerta Leal: a informao jornalstica neste sculo XXI vm assumindo cada vez mais uma

    postura que d valor s formas criativas das reportagens e livros no ficcionais de jornalismo

    (2013, p. 6). Embutido nesse caminho, que cria terreno frtil para potencializar o tratamento da

    informao, as reflexes a cerca da narrativa jornalstica merecem ateno, pois partimos do

    pressuposto que o real produto do jornalismo nos chega sob forma de narrativas (CARVALHO,

    2012). Entendemos que olhando para o que h de narrativo neste devir, abrem-se trajetrias

    possveis para tencionar a energia dessas formas criativas do jornalismo que apontam no

    presente.

    Voltando aos conceitos prottipos do Campo, resgatamos aqui a idia que tais frmulas

    surgem atreladas aos valores, tendncia e normas adquiridas com o tempo pelo jornalismo e

    defendido como correto e til por parte da academia, das empresas miditicas e manuais de

    redao. Dessa angulao, o conceito de narrativa emerge nos estudos e manuais de tcnicos

    como uma das modalidades da prtica jornalstica, isto , como uma ferramenta disponvel ao

    jornalista quando h necessidade de contar uma histria mais a fundo ou detalhada. Porm, como

    nos lembra Leal (2013), a narrativa tratada como tcnica perde seu vnculo com as realidades

    histrico-culturais especficas [da histria] que do sentido sua adoo e uso (p. 25). Ainda

    segundo Leal (2013), como se a maneira de fazer estivesse mais atrelada aos interesses

    daqueles que gerem o jornalismo, do que s necessidades e vontades do prprio trabalho do

    reprter.

    3.2 Notas sobre reportagem

    O jornalismo uma prtica social que representa por meio da linguagem os

    acontecimentos da vida por meio de notcias, dados, reportagens, etc. coletar, redigir, averiguar

    - utilizando artifcios lingsticos prprios do Campo - interrupes factuais da sociedade

    escolhidas pelos profissionais da rea atravs de valores que determinam o que produto

    jornalstico. Esse juzo em escolher o que se transformar em notcia, informao e pauta

    consequncia de um conjunto de pensamento, opinies e costumes compartilhados por um grupo

    de pessoas ou instituio que geram conformidades sobre assuntos, e que sempre so de seus

  • 32

    interesses. Portanto, assegura-se que o jornalismo atua na sociedade e retira dela o seu propsito,

    se sustenta e sustentado pela ideologia com a qual o meio interpelado

    Alm do cuidado e preocupao em selecionar os fatos a serem publicados, a projeo do

    efeito transmitido pelo veculo tambm importante nessa rea especfica dos meios. Efeito esse

    que possui grande proximidade com crena de veracidade daquilo publicado por parte do

    emissor. Em outras palavras, podemos dizer que a pretenso do jornalismo de narrar os reais

    fatos (ou prximo ao real) de um acontecimento precisa de credibilidade para se afirmar como

    um veculo de informao no-ficional. Isto , o capital simblico do jornalismo o tratado que

    o mantm existente - a estrita relao com a verdade, pois sem tal concordncia os assuntos

    tratados pelas notcias, reportagens, informaes no criam o efeito desejado pelo emissor.

    No decorrer do sculo XX, o jornalismo tambm se modernizou, outros gneros, alm da

    notcia, foram agregados - como a crnica, artigo, entrevista, resenhas, colunas e reportagens. A

    mudana estilstica sofrida significou, tambm, um alargamento das possibilidades de se fazer

    jornalismo, tanto dos dispositivos, bem como das maneiras de tecer o real. Consequncia disso,

    o jornalismo faz trabalhar outras vertentes e se subdividiu em categorias que compartilham sua

    essncia: esportivo, investigativo, literrio, internacional, sindical entre muito outros.

    Concomitantemente, atenuaram pela linguagem outras realidades e formas de vida na qual

    extrapolam fronteiras do padres do campo. Podemos, aqui, salientar a reportagem como um dos

    principais gneros que no somente alargou os espaos da notcia, mas construiu um dizer

    especfico de tratar do contemporneo (MAROCCO, 2009). Ela, muito mais que um

    acontecimento, precisa de uma histria para ser lida, ouvida, sentida e/ou visualizada.

    O estudo da reportagem atravessa dois modos, um mais especfico que, na rea dos

    gneros, se descola da notcia e se desdobra em um sem- fim de tipos (MAROCCO, 2009, p.

    173), e outro abriga as prticas e o modo de objetivao jornalstica, nas tcnicas de investigao

    e coleta de dados, redao e estilo que supe. (MAROCCO, 2009). Mais que uma apurao

    detalhada sobre um fato, esse gnero trabalha rupturas com o cristalizado texto noticioso,

    buscando em textos mais soltos brechas para a utilizao de artifcios da literatura, do romance,

    onde a profundidade da apurao alia-se ao uso de sujeitos e lugares sem, no entanto,

    desvencilhar da pretensa relao com a verdade. Como bem lembrou Medina:

    As linhas do tempo e do espao se enriquecem: enquanto a notcia fixa o aqui, o j, o

    acontecer, a grande reportagem abre o aqui num crculo amplo, reconstitui o j no antes

  • 33

    e depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos

    presente. Atravs da contemplao de fatos que situam ou explicam o fato nuclear (...) a

    reportagem leva a um quadro interpretativo do fato. (...) Foge-se a das frmulas objetivas para formas subjetivas, particulares e artsticas. (...)

    Nesse momento, s se diferencia do escritor de fico pelo contedo informativo de sua

    narrao, por isso narrao noticiosa (MEDINA, 1978, p. 134).

    certo dizer que essa ruptura entre reportagem e notcia nasce do desejo de buscar maior

    aprofundamento no fato, de uma narrativa que d conta das relaes complexas que antecedem e

    precedem o acontecimento. A possibilidade alcanvel da reportagem em expandir normas

    estilsticas do campo, criar narrativas que no somente sejam feitas de certezas, mas, tambm de

    dvidas, foram fortemente influenciadas pelas inquietaes polticas e sociais dos anos 60

    (FARO, 2013). Ou seja, no s pela forma a reportagem do newjournalism se consolidou, mas

    sobretudo, das afetaes culturais que permearam os processos jornalsticos, propriamente dito.

    3.3 Do jornalismo digital

    O jornalismo de internet visto como uma recente prtica no campo comparado a outros

    suportes e sofre modificaes aceleradas na medida em que os avanos da digitalizao ganham

    adeso e facilitam o acesso aos seus usurios. Gradim nos lembra que essas mudanas no vm

    de hoje, pois as profisses jornalsticas, ligadas produo de contedo noticioso difundido por

    meios de comunicao de massas, sempre estiveram sujeitas a velozes mutaes tecnolgicas

    (2005, p. 81).

    A Web 2.0, segunda gerao de comunidades e servios da internet, marcou esse espao

    singular de fazer jornalismo. Podemos citar como exemplo a no finitude do texto em pginas

    na internet, o que permite um alargamento dos espaos de criao, bem como a interatividade,

    isto , a possibilidade do leitor de participar da construo das pautas, notcias, reportagens.

    Somam-se a essas caractersticas do jornalismo para a Web diversos conceitos que ocupam um

    importante lugar na modificao de sua prtica: a customizao de contedo configurao de

    produtos jornalsticos de acordo com interesses e desejos dos usurios , hipertextualidade

    conectar ao texto links, replicaes exteriores ao seu contedo e multimidialidade

    convergncia de imagem, som e texto na narrativa (MIELNICZUK, 2005). A adeso desses

  • 34

    elementos ecoam, tambm, nos conceitos que denominam esta forma de se fazer jornalismo.

    Como exemplo, alguns dos termos encontrados so ciberjornalismo, jornalismo eletr nico,

    jornalismo online, jornalismo digital, jornalismo hipertextual (MIELNICZUK, 1998). Utilizamos

    aqui o termo jornalismo digital, pois entendermos que a abrangncia desta definio e sua

    capacidade de reunir todas as outras noes, flexibiliza o uso do conceito ao longo do trabalho.

    Hoje, passados 30 anos da criao da Word Wide Web (www), considera-se o jornalismo

    digital estando em sua terceira gerao. Esta definio, como nos lembra Mielniczuk (2005, p.

    2), refere-se ao uso de recursos avanados da informtica para o desenvolvimento os quais

    permitem a explorao das caractersticas oferecidas pelo suporte (PALACIOS, 2002). Isto ,

    enquanto na segunda e primeira gerao a internet era uma rede tmida, com pouco domnio por

    parte do pblico, hoje, na terceira gerao, encontramos uma grande expanso da web e no

    nmero de usurios. Isso acarretou um alargamento das fronteiras do jornalismo digital cujos

    leitores encontram-se disponveis tecnologia e fcil acessibilidade atravs dos custos da

    internet.

    Na flexibilizao do suporte nas narrativas jornalsticas, encontramos em blogs, redes

    virtuais, sites independentes dizeres que diferem daqueles atrelados aos tradicionais meios de

    comunicao de massa. coerente dizer que dessa pluralidade impulsionada pela internet do

    contedo ao suporte - modifica tambm conceitos dos gneros jornalsticos (SEABRA, 2002).

    Uma dessas modificaes se refere modificao na pirmide invertida - norma padro do texto

    jornalstico - para a vertical. Isto , delega-se pirmide invertida uma postura de disposio das

    informaes no texto que obedece a lgica de relevncia. Nessa ordem, aparecem nos

    primeiros lugares as informaes mais importantes na base da pirmide -, e as menos

    relevantes ocupam um espao secundrio, tercirio, aproximando-se do topo. O primeiro

    pargrafo, chamado lead, ento, o que contm os informes de maior valor na matria.

    Faz parte do jornalismo digital construir notcias que tratam do instante, do tempo

    imediato. Esse tratamento veloz da informao aparece atrelado a espaos textuais no finitos

    proporcionado pelo suporte online. Diante disso, a postura textual descrita acima vem sendo

    questionada por jornalistas e estudiosos da comunicao por no suprir as necessidades

    demandadas pelo suporte. Parte desse descrdito advm da possibilidade do digital de abalar essa

    estrutura ao propor uma ordem que desprivilegia a importncia das informaes, em detrimento

    da quantidade de informao. Como sugere, Canavilhas:

  • 35

    a quantidade (e variedade) de informao disponibilizada a varivel de referncia, com

    a notcia a desenvolver-se de um nvel com menos informao para sucessivos nveis de

    informao mais aprofundados e variados sobre o tema em anlise (CANAVILHAS,

    2005).

    Essa nova arquitetura da informao precede a relevncia qualitativa da pirmide

    invertida, optando pelos diferentes nveis de informao com os quais se efetivam pela

    hipertextualidade. Dessa forma, podemos dizer que a pirmide nas matrias do jornalismo digital

    pode ser horizontalizada.

    O jornalismo digital, apesar disso, conserva vrios aspectos do jornalismo em outros

    suportes, especialmente o impresso, pois limitaes editoriais e temporais fizeram com que as

    empresas utilizassem contedos j produzidos pelos meios tradicionais. Isso se reflete no grande

    nmero de portais de notcias de empresas jornalsticas j consolidadas pelos formatos

    tradicionais (impresso, rdio e televiso). Entretanto, a facilidade econmica e jurdica de criar

    meios jornalsticos na Web flexibilizou caminhos para novos espaos de narrar, exclusivamente

    digitais, geridas de maneira coletiva ou individual, motivadas pelos descontentamentos com o

    jornalismo hegemnico e/ou pela possibilidade de independncia administrativa, editorial. A

    rigor, seus criadores moldam suas enunciaes jornalsticas de acordo com seus anseios

    respeitando, ou no, fundamentos do jornalismo cristalizados por sua histria. Desse

    desprendimento com a forma e contedo das mdias corporativas que a Web possibilita, nota-se

    um maior participao de agentes engajados que tendem a privilegiar fatos negligenciados pelas

    grandes agncias de notcia (MATOS, 2011).

    Vemos, tambm, uma implicao desse engajamento (para alm do suporte) nas pautas

    de cunho social, denunciativo e humano, s vezes negligenciadas pelos jornais de grande

    circulao. Com outras palavras, assuntos que deixaram de ser noticiados por interesses

    econmicos, empresariais ou por desconhecimento, pode ter voz nas mdias exclusivas digitais.

    Assim, pode-se dizer que a mdia (hegemnica) no fala mais sozinha11.

    Se falamos do jornalismo hegemnico, ou melhor, da dita grande mdia, importante

    criar um olhar crtico sob como os grandes jornais conduzem seus negcios no mbito poltico e

    econmico. Resgatamos, ento, os interesses comerciais do jornalismo hegemnico. Oliveira

    (2009), ao citar Biondi e Charo (2008), nos lembra da necessidade de expor o funcionamento

    desse jornalismo:

    11

    Devo essa ideia professora Hila Rodrigues.

  • 36

    no se pode deixar de pensar nos grupos de md ia como empresas, jogando o jog o do

    capital, avanando e retrocedendo com os mercados, empresas que, claramente, lidam

    com um capital simblico que, certamente, mult iplica o seu peso nas economias e

    polticas nacionais. (BIONDI E CHARO, 2008, p. 2).

    Entretanto, nosso objetivo aqui no problematizar as afetaes, perversas ou no, do

    mercado no jornalismo. De forma menos pretensiosa, o que buscamos nestas reflexes foi pensar

    numa forma miditica onde tais influncias no existem, ou pelo menos no de maneira to

    incrustada. Para tanto, o jornalismo digital vai ao encontro da chance em desvencilhar a relao

    acima tratada. A prpria alternativa que aponta no horizonte de jornalistas serem donos,

    criadores e administradores de seu prprio veculo caminha na contramo da interferncia

    mercadolgica no contedo das notcias.

    Das breves reflexes feitas acerca do jornalismo digital, pontuam-se trs primordiais para

    o nosso estudo: (1) possui uma linguagem potencializada pelo suporte que, no entanto, conversa

    prticas anlogas ao jornalismo tradicional, (2) cria possibilidade de trabalhar pautas alternativas

    aos padres reiterando vozes silenciadas pela grande mdia, (3) d condies de funcionamento

    do veculo adversos relao mercadolgica contida nas empresas miditicas. Essas trs

    reflexes recaem em nosso objeto de estudo, Agncia Pblica (http://apublica.org), por ser um

    meio restrito web onde se mesclam linguagens prprias do jornalismo digital, permitir material

    jornalstico que trata de minorias e direitos humanos, e, sobretudo, ter sido crida e mantida

    atravs de iniciativas de jornalistas (essas ideias sero melhor explicitadas no captulo seguinte).

    O mtodo construdo neste estudo abarcou as pontecialidades em torno da narrativa

    tornar o mundo inteligvel, encadear sujeitos, lugares, sentimentos, valores ao longo da trama,

    possibilidade de desencadear efeitos para alm da histria ao olhar para as reportagens de

    nosso objeto e refletir acerca delas. Antes de explicar de que maneira essa construo se deu,

    iremos, na prxima etapa, descrevem mais detalhadamente nosso objeto e suas peculiaridades.

    Esse movimento importante para recompor onde essa narrativa vai entrar, entendendo essa

    como uma caracterstica de anlise, pois, como vimos, a narrativa, ao criar sentido e tornar as

    coisas inteligveis, no se desvincula de seu lugar de materializao.

    3.4 Agncia Pblica e seu engajamento no contemporneo

  • 37

    Impulsionados pela importncia de se olhar para a narrativa, entendendo que sua

    abrangncia nos permite investigar caractersticas, modos e estratgias do texto jornalstico

    propriamente dito, neste captulo descrevemos as peculiaridades jornalstica de nosso objeto,

    Agncia Pblica. importante sublinhar novamente que nossa expectativa nesta averiguao foi,

    no s responder, mas problematizar de que forma a narrativa jornalstica da Pblica elucida as

    questes do Brasil. Antes mesmo de expormos a metodologia construda, bem como a anlise

    feita, abarcaremos nos prximos pargrafos informaes sobre o site de jornalismo, A Pblica, e

    seu funcionamento especfico. Consideramos essa ateno ao meio citado, pois faz-se

    fundamental alcanar os espaos que excedem o nosso corpus para facilitar o entendimento deste

    estudo, visto que a Pblica possui pouco tempo de existncia e ainda um meio desconhecido

    por muitos.

    Diante do horizonte onde h outro espao para o jornalismo e, concomitantemente, uma

    possvel outra escrita do jornalismo, nosso objeto emprico se insere em um ambiente lido aqui

    como um lugar diferenciado de fala, em especial, por se configurar em um espao narrativo

    digital criado por iniciativa de jornalistas, mantido por organizaes independentes, com certa

    autonomia econmica e editorial. Estes fatores so fundamentais para enquadrarmos aqui a

    Agncia Pblica como parte do jornalismo no-hegemnico, pois, como veremos a seguir, se

    trata de um espao narrativo mantido, pensado e elaborado inteiramente por jornalistas.

    A Agncia Pblica (http://apublica.org) foi criada em 2011 pelas jornalistas Marina

    Amaral e Natalia Viana. um projeto independente, financiado por fundaes internacionais,

    como Ford Foundantion e Open Society Foundantions, sem qualquer vinculao comercial e

    sem interferncia de seus financiadores no contedo produzido. Algumas de suas produes e

    projetos so financiadas atravs do Catarse, (catarse.me) um site de financiamento coletivo que

    agrega valores monetrios atravs de doaes online feitas por qualquer pessoa e instituio. A

    Pblica disponibiliza todo seu material jornalstico atravs da licena Creative Commons,

    atravs da qual permite a reproduo do seu material - desde que seja citada (ao menos) a autoria

    - por qualquer pessoa, instituio ou organizao sendo ela jornalstica ou no. Nos moldes de

    uma agncia de notcias, o site financia bolsas e microbolsas para elaborao de reportagens

    investigativas por jornalistas residentes no Brasil. Soma-se a isso o fato de a Pblica ser uma das

  • 38

    principais reprodutoras das informaes da organizao, WikiLeaks12 na Amrica Latina com as

    quais tambm pautam diversas matrias confeccionadas pela Agncia. Vale lembrar, ainda, que a

    Pblica opera em uma lgica com a qual permite ao leitor acessar todas as bases documentais

    utilizadas nas reportagens. Assim,

    [...] a veicu lao dessas bases constri um carter de transparncia da agncia, sendo

    que o leitor pode ter acesso aos documentos utilizados na construo da reportagem,

    alm d isso, pode revisit-los e ressignific-los cruzando as informaes com outros

    contextos. O leitor torna-se aqui pea chave para a significao da narrativa

    (SCHWAAB et al, 2013, p. 3).

    Dos assuntos investigados pelo site, priorizam-se relatos que trazem desequilbrios

    sociais, ou at mesmo em lugares onde esse desequilbrio e a ausncia de direitos humanos so

    permanentes e constantes (DIAB, 2013, p.8). Na descrio que a Pblica faz de si, h muito

    destes aspectos: Nossa misso produzir reportagens de flego pautadas pelo interesse pblico,

    sobre as grandes questes do pas do ponto de vista da populao visando ao fortalecimento do

    direito informao, qualificao do debate democrtico e promoo dos direitos humanos.

    A Pblica trabalha dentro de uma lgica jornalstica organizada por 22 categorias de

    investigaes indicadas por hashtag (#), que renem matrias dentro de uma mesma temtica.

    Do montante, destacam-se como de maior produo as investigaes: #Wikileaks, que tratam das

    informaaes vazadas pelo site Wikileaks; #AmazniaPblica, sobre os diversos problemas que

    afetam a floresta e sua populao; #Microbolsas, destinada s produes de jornalistas

    escolhidos, porm no vinculados a Pblica; alm da editoria especial #CopaPblica, que tange

    assuntos sociais e ambientais da Copa do Mundo 2014 no Brasil.

    Encontram-se na plataforma, outros formatos e contedos que convergem nas

    reportagens contidas no site. recorrente a utilizao de infogrficos, fotografias e vdeos no

    decorrer das matrias, sempre dialogando com o assunto relatado na investigao. Esse

    tratamento da informao ntido na categoria #JornalismoDeDados, espao destinados

    especialmente interao do contedo com o leitor. Na aba, Documentos, localizam-se as bases

    documentais utilizadas nas confeces das reportagens pela Agncia. So arquivos digitalizados,

    disponveis ao acesso, mesclado entre dossis, aes civis e pblicas, documentos legais,

    projetos, contratos, relatrios, depoimentos, etc.

    12

    WikiLeaks (http://wikileaks.org/ ) uma organizao sem fins lucrativos que publica na plataforma digital

    postagens de fontes annimas sobre informaes sigilosas de governo e empresas.

  • 39

    Um dos focos da Pblica, se tratando de contedo, so as tenses ocorridas no norte do

    Brasil, para ser especfico, a floresta Amaznia e todo territrio que a envolve os nove estados

    brasileiros, Amaznia, Acre, Par, Maranho, Roraima, Amap, Tocantins, Rondnia, Mato

    Grosso. Os conflitos socioambientais dessa regio esto contidos, mais abundantemente, na

    categoria #AmazniaPblica, e tambm nas sries #GuaraniKaiow, #CrditosDeCarbono,

    #Futuro da Amaznia, #JornalismoDeDados, #BNDESnaAmaznia, #ViolnciaNaAmaznia e

    #MarcadasParaMorrer. Esta ltima investigao e suas 11 reportagens - uma das mais recentes

    feitas pela Agncia, entrou neste estudo como nosso recorte metodolgico a fim de observamos

    seu grau narrativo para, a partir disso, mapearmos de que maneira as questes que afligem o

    Brasil no presente so colocadas pela Pblica.

  • 40

    4 A PBLICA E AS TENSES DO CONTEMPORNEO

    A inteno que impulsionou a pesquisa averiguar de que forma a narrativa jornalstica

    da Pblica elucida questes do Brasil. Essas questes, conforme vimos possuem aspectos de

    dimenso global, bem como nacional, fundamentais para problematizarmos o mundo que nos

    dado pelo site. Por isso, o estudo tencionou as ideias de Slavoj Zizek acerca dos antagonismos da

    atualidade, procurando expandir algumas fronteiras para pensar tais impasses. E se atravs da

    narrativa que o jornalismo torna o mundo compreensvel, a construo do modo de alcanar esse

    jornalismo na pesquisa tomou tal vis como norte.

    A inteno foi construir um mtodo coerente para olhar e tensionar a narrativa de nossa

    amostra, sem fixar em alguma estrutura impermevel e inflexvel, onde fossem permitidas as

    nossas interpretaes sob o recorte e que dessem conta da complexidade que os estudos da

    narrativa demandam. Embora estes estudos estejam buscando formas de construir uma

    metodologia de fato, ousamos utilizar conceitos e ponderaes da narratologia - rea que

    pesquisa as narrativas, embora mais ligadas literatura ficcional - e mesclar com a anlise de

    contedo do jornalismo, muito embora, trazendo especificidades da anlise pragmtica narrativa

    desenvolvida por Luiz Gonzaga Motta (2005).

    O procedimento adotado para a construo do mtodo se deu atravs da disposio de

    cinco perguntas sobre as reportagens que se desdobraram em movimentos de anlise. A primeira

    pergunta foi pensar que intriga que perpassa cada reportagem, a saber, em que situao, lugar,

    cenrio a trama aparece e qual antagonismo a reportagem suscita. Com isso, criamos o

    movimento de anlise (1) Anlise do contexto. A segunda pergunta buscou responder de que

    forma as informaes das reportagens aparecem no texto e como as matrias so organizadas.

    Portanto, desenvolvemos o movimento (2) disposio dos elementos no texto. Procurando saber

    como os sujeitos so utilizados pelo autor, criamos o critrio (3) anlise dos personagens para

    compreendermos modos de aparecimento de cada sujeito, sua valorizao moral na verso, e o

    espao de voz dentro do texto. Tambm questionamos a maneira pela qual o narrador, por sua

    vez, conduziu as reportagens. Assim, construmos o movimento (4) anlise do narrador

  • 41

    buscando suas intenes e marcas contidas na narrativa. De forma mais ampla que as demais

    perguntas, tratamos de investigar quais temas em comum subjazem todas as reportagens. A partir

    disso, questionamos o que desse tema tratado no interior das matrias pode ser trazido ao exterior

    do jornalismo. Por outras palavras, averiguamos o que se pode dizer do contemporneo a partir

    da intriga relatada pela Pblica. Desta forma, elaboramos o movimento (5) recomposio da

    intriga. Nesta etapa, exclusivamente interpretativa e d issertativa, trouxemos a contribuio de

    Zizek sobre o mundo ps-moderno (antagonismo do tempo presente) a fim de sondar em o qu

    da viso do filsofo pode ser lido na intriga das reportagens.

    Escolhemos como material emprico as reportagens da srie de investigao

    #MarcadasparaMorrer. A escolha se deu pela exclusividade dessas produes, que tratam de

    sujeitos e suas histrias de vida, sem perder o tom jornalstico e denunciativo das informaes.

    Tambm foi critrio selecionar um material que traduz a parte pelo todo, isto , que representa as

    peculiaridades do texto publicado na Pblica e, alm disso, o contedo com o qual nosso site

    trabalha, ou seja, emergncias sociais no contemporneo brasileiro. J que muito se fala da

    atualidade neste estudo, queramos trabalhar em cima de reportagens recentes que lanam luz s

    situaes efmeras do presente. A partir dessas premissas, entramos nas reportagens que

    constituem a srie, a fim de perceber o que nelas servem de exemplo para se pensar como a

    narrativa da Pblica traduz os problemas efmeros do contemporneo.

    No recorte para esse estudo, selecionamos 11 reportagens de flego da Pblica, escritas

    pelo reprter Ismael Machado Agncia Pblica e Dirio do Par - relacionadas s histrias de

    mulheres ameaadas de morte por questes agrrias, ambientais e sociais, todas elas publicadas

    neste ano. So mulheres do Estado do Par, Norte do Brasil, que lutam por sua comunidade,

    reforma agrria e pelas terras de sua famlia. Como consequncia disso, convivem com a fa lta de

    sossego ocasionado por conflitos constantes com latifundirios e esto merc da negligncia

    jurdica e poltica do Governo do Estado e da Unio. Como este estudo se pauta no

    contemporneo, faz-se coerente tratar de um material recente. Ainda no momento da escolha,

    mapeamos textos em que novos apartheids so, essencialmente, lugares dimensionais que

    conduzem as emergncias e o terreno em que os conflitos sociais aparecem no tempo atual.

    Foram trazidas para anlise pautas que valorizam no somente o diferenciado uso das fontes,

    mas tambm o interesse humano nas apuraes e investigaes do site. Nas onze reportagens da

    Agncia, analisaremos seu contedo, tendo como premissa que suas narrativas centralizam

  • 42

    experincias do cotidiano das fontes e se apresentam como sendo aquelas mais sensveis e

    humanas, trazendo histrias pessoais de sujeitos subjacentes ao tom denunciativo do evento

    perpassados por elas.

    O recorte constitui: a) Essa Maria Raimunda, lder do MST no Par, ameaada de

    morte13; b) Presa e ameaada de morte, testemunha ainda teme pela vida14; c)Tu sabes que se

    a gente perder a terra, tu vais perder a vida15; d) Graciete carrega na carne a bala dos

    assassinos de seu pai16; e) Nicinha e o sindicato rural dirigido apenas por mulheres17; f) Cleude,

    com medo, tenta pegar na mo de Deus18; g) Ameaada desde 1996, Regina sonha viver em

    paz19; h) Maria do Carmo luta por sua comunidade e pela floresta20; i) Maria Joel da Costa

    herdou a luta e as ameaas de morte21; j) Lasa luta pela terra e pela memria da irm22 e k)

    Elas, marcadas para morrer23. Esta ltima reportagem entrar apenas no primeiro movimento de

    anlise, pois uma descrio das reportagens que estariam por vir, e no uma reportagem que

    trata dos personagens propriamente dito. Para tanto, enquadramos as outras dez reportagens em

    cinco quadros de anlise, um que engloba todo o material a fim de perceber as relaes entre

    elas, do que dizem e por qual vis, e outros quatro que tensionam cada reportagem isoladamente

    recortando trechos, organizaes, dizeres do texto e interpretaes nossas perante o fragmento

    estudado.

    Em suma, o mtodo de investigao que se deu pela construo de cinco movimentos

    analticos da narrativa jornalstica, tratou de mapear as relaes textuais da Pblica com aquilo

    que exterior ao texto, isto , nas trilhas da no finitude da narrativa, o mundo possvel de ser

    13

    Disponvel em: www.apublica.org/2013/07/essa-e-maria-raimunda-lider-mst-para-ameacada-de-morte/ Acesso

    em: 20 nov. 2013. 14

    Disponvel em: http://www.apublica.org/2013/07/presa-ameacada-de-morte-testemunha-ainda-teme-pela-vida/

    Acesso em: 20 nov. 2013. 15

    Disponvel em: www.apublica.org/2013/07/tu-sabes-se-gente-perder-terra-tu-vais-perder-v ida/ Acesso em: 20

    nov. 2013. 16

    Disponvel em: www.apublica.org/2013/07/graciete-carrega-na-carne-bala-dos-assassinos-de-seu-pai/ Acesso em:

    20 nov. 2013. 17

    Disponvel em: http://www.apublica.org/2013/07/nicinha-sindicato-rural-dirig ido-apenas-por-mulheres/ Acesso

    em: 20 nov. 2013. 18

    Disponvel em: www.apublica.org/2013/07/cleude-medo-tenta-pegar-na-mao-de-deus/ Acesso em: 20 nov. 2013. 19

    Disponvel em: www.apublica.org/2013/07/regina-sonha-viver-em-paz/ Acesso em: 20 nov. 2013. 20

    Disponvel em: http://www.apublica.o rg/2013/07/maria-carmo-luta-pela-sua-comunidade-pela-floresta/ Acesso

    em: 20 nov. 2013. 21

    Disponvel em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas-para-morrer-maria-joel-da-costa-herdou-luta-

    ameacas-de-morte/ Acesso em: 20 nov. 2013. 22

    Disponvel em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas-para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-

    irma/ Acesso em 20 nov. 2013. 23

    Disponvel em; http://www.apublica.org/2013/07/