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SOBERANIA E TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS 1 PAULA PRUX Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Bacharel em Direito pela Faculdade do Norte Novo do Paraná, Apucarana - FACNOPAR. [email protected] RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso tem como fim primordial a análise da aplicação prática da soberania, quando postos em jogo, por meio de tratados internacionais, os direitos humanos. A soberania, que, antigamente, era tida como um poder absoluto, hodiernamente, relativizou-se em decorrência do desenvolvimento do próprio Direito, conforme demonstra o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O avanço da legislação internacional reflete as necessidades do mundo globalizado, em que os direitos humanos têm- se destacado, sobremaneira. Apesar de serem objeto da jurisdição interna de cada Estado, os direitos humanos têm grande respaldo no palco internacional. Por meio de tratados, estendem- se a diversos Estados, assegurando o que existe de fundamental a todos os seres humanos, indistintamente. Os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, bem como os tribunais internacionais que visam a efetivar esses direitos, refletem, não apenas as necessidades do contexto mundial em que nos inserimos, mas, também, uma grande evolução do pensamento humano. Tal evolução é resultado, justamente, da caminhada histórica que percorremos na luta pelos direitos, envolvendo guerras mundiais, assassinatos em massa, terrorismo e demais atrocidades, que trouxeram à tona a importância dos direitos humanos e de meios que viabilizassem a sua efetivação. Assim, os estudos realizados para a elaboração desta monografia, abrem as portas a novos paradigmas, a um novo entendimento da soberania frente aos tratados internacionais da mais elevada importância, aqueles que tratam dos direitos humanos. 1 Trabalho de monografia apresentado como requisito parcial de Conclusão do Curso de Direito, da FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo do Paraná - Apucarana, apresentado na área do Direito Internacional, sob a orientação do Prof. Dr. Wanderlei de Paula Barreto.

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SOBERANIA E TRATADOS

INTERNACIONAIS DE DIREITOS

HUMANOS1

PAULA PRUX Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.

Bacharel em Direito pela Faculdade do Norte Novo do Paraná, Apucarana - FACNOPAR. [email protected]

RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso tem como fim primordial a análise da aplicação prática da soberania, quando postos em jogo, por meio de tratados internacionais, os direitos humanos. A soberania, que, antigamente, era tida como um poder absoluto, hodiernamente, relativizou-se em decorrência do desenvolvimento do próprio Direito, conforme demonstra o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O avanço da legislação internacional reflete as necessidades do mundo globalizado, em que os direitos humanos têm-se destacado, sobremaneira. Apesar de serem objeto da jurisdição interna de cada Estado, os direitos humanos têm grande respaldo no palco internacional. Por meio de tratados, estendem-se a diversos Estados, assegurando o que existe de fundamental a todos os seres humanos, indistintamente. Os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, bem como os tribunais internacionais que visam a efetivar esses direitos, refletem, não apenas as necessidades do contexto mundial em que nos inserimos, mas, também, uma grande evolução do pensamento humano. Tal evolução é resultado, justamente, da caminhada histórica que percorremos na luta pelos direitos, envolvendo guerras mundiais, assassinatos em massa, terrorismo e demais atrocidades, que trouxeram à tona a importância dos direitos humanos e de meios que viabilizassem a sua efetivação. Assim, os estudos realizados para a elaboração desta monografia, abrem as portas a novos paradigmas, a um novo entendimento da soberania frente aos tratados internacionais da mais elevada importância, aqueles que tratam dos direitos humanos.

1 Trabalho de monografia apresentado como requisito parcial de Conclusão do Curso de Direito, da FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo do Paraná - Apucarana, apresentado na área do Direito Internacional, sob a orientação do Prof. Dr. Wanderlei de Paula Barreto.

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“Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram; e raspar a

tinta com que me pintaram os sentidos; desencaixotar

as minhas emoções verdadeiras; desembrulhar-me e ser

eu; é preciso esquecer a fim de lembrar; é preciso

desaprender a fim de aprender de novo”. Alberto

Caeiro – Fernando Pessoa

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo principal o estudo da coexistência das

categorias jurídicas soberania e tratados internacionais de direitos humanos, no contexto atual.

Buscar-se-á demonstrar o quão tênue é a linha entre a soberania, que é, também, a defesa do

Direito Positivo Nacional, e os tratados, que buscam interesses comuns a Estados, muitas

vezes, completamente diferentes, em termos de cultura, política, economia, etc.

Mais especificamente, serão estudados os tratados internacionais de direitos

humanos, que possuem importância singular, dado o caráter histórico, inato, irrenunciável e

universal de tais direitos.

Assim, no primeiro capítulo, estudar-se-ão o conceito e demais aspectos da

soberania, bem como o processo de relativização deste conceito, tendo em vista o fenômeno

da globalização. Traçar-se-á uma linha histórica do conceito de soberania, o qual teve início,

significativamente, no século XVI, com a obra “Les Six Livres de la Republique”, de Jean

Bodin, e percorrendo os dias de hoje com recentes estudos de grandes doutrinadores, como

Miguel Reale, que apresenta um conceito atualizado de soberania em sua obra “Teoria do

Direito e do Estado”.

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No segundo capítulo, examinar-se-ão, fundamentalmente, o conceito e

desenvolvimento do Direito Internacional, seguindo-se o estudo da Sociedade Internacional

no capítulo terceiro.

Nos demais capítulos, analisar-se-ão as características dos tratados

internacionais, dos direitos humanos, e far-se-á uma correlação entre ambos.

Os tratados constituem a principal fonte do direito internacional; o

instrumento de que se utilizam os Estados para firmarem acordos acerca de questões de

interesse comum. Quando tratam de direitos humanos, adquirem posição de destaque nos

ordenamentos jurídicos, tanto nas esferas nacionais quanto na internacional, pois os direitos

humanos concretizam as exigências da dignidade da pessoa em todas as suas expressões.

Finalmente, far-se-á uma reflexão acerca da relação existente entre

soberania e tratados internacionais de direitos humanos, abordando os pontos controversos e

polêmicos que permeiam a questão.

Sob o ponto de vista interno e jurídico-social do Estado, a soberania garante

a supremacia do poder estatal em relação a outros ordenamentos sociais, sendo de essencial

importância à manutenção da ordem que caracteriza o próprio Direito Positivo Nacional.

As maiores controvérsias surgem, quando a análise é feita sob o ponto de

vista externo. Há, sem dúvida alguma, uma grande dificuldade em se conciliar a noção de

soberania do Estado com a ordem internacional, de modo que uma maior valoração deste

ordenamento internacional implica certas restrições à soberania do Estado e vice-versa. O

conceito de soberania deixa, então, de ser absoluto, como antes era considerado por alguns

doutrinadores, e passa a ser relativo.

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Atualmente, com a tecnologia moderna, as comunicações e o crescimento

do comércio, a interdependência entre os Estados é fato inegável e a necessidade de se

manterem relacionamentos, no âmbito internacional, implica, freqüentemente, uma renúncia

aos interesses próprios do Estado, pois a busca de interesses comuns significa, sempre,

limitação a interesses particulares.

I. SOBERANIA

I.1 A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE SOBERANIA

A palavra soberania deriva do latim superanus, que significa o grau

supremo de hierarquia política.

A noção de soberania surgiu na Grécia, na Antigüidade Clássica, visto que

as cidades da época já possuíam uma organização autárquica. Essa noção de soberania era

apenas fática, e não conceitual, pois os antigos gregos ainda não haviam se dedicado à criação

do conceito de soberania.

O Estado antigo, na concepção grega, representava uma ordem auto-

suficiente capaz de suprir todas as necessidades dos cidadãos que estivessem sob a mesma. A

sociedade política grega desconhecia o conflito interno de poderes sociais e era tida como o

único poder responsável pelo plano de vida de cada cidadão grego.

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Desde a Antigüidade, até o fim do Império Romano, portanto, não se

encontra qualquer definição do que, hoje, entende-se por soberania. No Livro I de “A

Política”, Aristóteles menciona as características da polis grega e a denomina de autarquia. A

expressão apenas indica que a cidade-Estado era auto-suficiente; mas, não significa que havia

uma supremacia interna ou qualquer tipo de poder de amplitude externa do Estado. Da mesma

forma, não há noção de soberania, em Roma. Há indícios de que havia um poderio militar ou

civil, no entanto, não há indícios de que o Estado gozasse de um poder supremo em relação

aos demais.

A razão pela qual não se chegou ao conceito de soberania, até o fim do

Império Romano, é simples, porém, brilhantemente, explicada por George Jellinek, quando

este apontou que não havia, no Mundo Antigo, outros poderes que se contrapusessem ao

poder do Estado. A intervenção do Estado visava, basicamente, a manutenção da segurança,

sendo que não havia um grande número de funções que pudesse ensejar a necessidade de se

terem poderes privados paralelos. O Estado era o único responsável pelos seus cidadãos e

jamais teve de competir com qualquer outro tipo de poder.

No século XII, eram concomitantes os poderes senhoril e real, o que não

permitia ao monarca exercer sobre seus súditos um poder absoluto e supremo. A partir do

século XIII, no entanto, os monarcas passam a ter autoridade suprema sobre todo o reino,

tornando-se superiores aos barões (o que não significa que eles não teriam de competir com

outras classes).

Na Idade Média, o Santo Império Romano Germânico significou, em grande

parte, uma simbologia, uma referência ideológica, mais do que uma realidade viva, pois

coexistiu com uma série de poderes intermediários, de instituições competentes que

representavam rivalidade ao poder estatal. O poder que mais se impôs, na época, em

contraposição ao poder estatal, foi o da Igreja.

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No final da Idade Média, os monarcas, enfim, passaram a governar dotados

de um poder supremo, o que inspirou os estudiosos da época, em especial Jean Bodin, a

desenvolverem um conceito de soberania.

O conceito de soberania teve o início de sua formação na França, no século

XVI. O primeiro a definir o que vem a ser soberania foi o francês Jean Bodin, jurista e

professor de Direito e, ainda, posteriormente, magistrado e diplomata. O estudioso sempre

esteve atento aos aspectos governamentais de sua pátria e à forma como o rei da França

afirmava sua independência no âmbito externo de suas relações. Talvez tenham sido a

realidade histórica de sua época e o seu interesse pelos assuntos políticos que o tenham levado

a definir soberania.

Em sua obra “Lês Six Livres de la Republique”, publicada por volta de

1576, Bodin, para entender a soberania, toma como base a realidade histórico-social da

França. No capítulo VIII do Livro I, Bodin2 esclarece que: “É necessário formular a definição

de soberania, porque não há qualquer jurisconsulto, nem filósofo político, que a tenha

definido e, no entanto, é o ponto principal e o mais necessário de ser entendido no trabalho da

República”. Menciona, ainda, que: “soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma

República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que

manipulam todos os negócios de estado de uma República”3 (apud DALLARI 2001, p. 77).

Na concepção de Bodin, portanto, a soberania é elemento inseparável do

Estado, é um poder absoluto e perpétuo. Absoluto, porque não possui qualquer limite senão as

leis divinas e naturais, às quais até os monarcas estão sujeitos. Perpétuo, por não existir um

tempo de duração dentro do qual este poder deve ser exercido. O poder soberano era o Estado

que, em sua natureza, carregava as idéias do governante, de quem emanavam todas as leis.

2 BODIN, Jean. Lês Six Livres de la Republique. Paris, 1583

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Apesar de não ter mencionado a inalienabilidade como característica da

soberania, Bodin atenta para o fato de que caso o soberano conceda poder a outro, “ele não

concede tanto que não retenha sempre mais”4. Está implícita em sua obra, portanto, a

característica da inalienabilidade, visto que se o soberano alienar uma porção de soberania a

alguém e reter menos do que alienou para si, terá alienado toda a soberania, uma vez que

ficará sem ela.

Posteriormente, em 1762, com a publicação de “O Contrato Social”, Jean

Jacques Rousseau traz um novo entendimento do que vem a ser soberania. O teórico explica a

soberania com ênfase na inalienabilidade e indivisibilidade e transfere sua titularidade da

pessoa do governante para o povo. A soberania é inalienável, por estar nas mãos do povo, por

ser um poder que pertence à grande maioria, não podendo sequer ser representada pelo

governante. É indivisível, porque exige a participação do todo. Deve ser o exercício da

vontade geral.

A definição de Rousseau é um exemplo claro de que com o passar do

tempo, na medida em que foram decaindo as idéias da monarquia absolutista, o poder

soberano deixou de se confundir com a soberania em si, ou seja, o Estado e o governante

passaram a ser figuras distintas.

I.2 O TITULAR DA SOBERANIA

3 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 22. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 77 4 DALLARI, loc. cit.

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No que diz respeito à determinação do sujeito de direito da soberania, é

necessário estudar algumas doutrinas, que vão desde o período em que o monarca era

considerado o detentor da soberania, no Estado Moderno, até as idéias mais recentes de que a

soberania tem como titular o próprio Estado.

I.3 AS DOUTRINAS TEOCRÁTICAS

Estas doutrinas partem do princípio de que todo o poder emana de Deus.

Foram bastante utilizadas na Antigüidade; mas, tiveram o auge de sua expressão no final da

Idade Média e permaneceram no auge até o período de absolutismo monárquico do Estado

Moderno. Apontam o rei como o titular da soberania, sendo ele considerado o próprio Deus

ou um privilegiado, que recebe poderes diretamente de Deus. As doutrinas teocráticas são:

I.3.1 A Doutrina da Natureza Divina dos Governantes

Segundo essa doutrina, os reis eram deuses vivos; eram titulares do poder

soberano com caráter divino. A soberania emanava de Deus e permanecia nas mãos de Deus,

pois os monarcas eram os próprios deuses. Essa doutrina da natureza divina dos governantes

remonta à época dos faraós do Egito, dos imperadores romanos e dos príncipes orientais.

I.3.2 A Doutrina da Investidura Divina

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De acordo com a investidura divina, os monarcas não eram deuses, mas

eram diretamente investidos do poder soberano pelos deuses. Eram responsáveis,

exclusivamente, perante Deus, nunca perante o povo, sendo dever deste prestar-lhes estrita

obediência. Essa doutrina é uma característica marcante do governo de Luis XIV e também da

época de propagação da doutrina protestante.

I.3.3 A Doutrina da Investidura Providencial

Essa teoria apenas admite a origem divina do poder, fazendo da investidura

do poder aos governantes uma obra dos homens, e não de Deus. Nesse caso, o poder vinha de

Deus, mas era entregue aos governantes pelos próprios políticos da época.

I.4 AS DOUTRINAS DEMOCRÁTICAS

De acordo com as teorias democráticas, o poder não emana de Deus, e sim

do povo. A primeira fase das teorias democráticas aponta o povo como titular da soberania.

Numa segunda fase, que emergiu no período da Revolução Francesa e teve peso sobre os

pensamentos políticos do século XIX e início do século XX, a nação, e não mais o povo em

si, passa a ser a titular da soberania. Por fim, numa terceira fase das teorias democráticas, o

titular da soberania passa a ser o Estado, idéia esta que ainda mantém grande prestígio dentre

os doutrinadores deste século. São doutrinas democráticas:

I.4.1 A Doutrina da Soberania Popular

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É esta, sem dúvida, a mais democrática de todas as doutrinas. Segundo

Rousseau e seus seguidores intelectuais, a soberania popular é a própria soberania do Estado

fragmentada em porções que pertencem a cada indivíduo que, como membro do Estado e

detentor da parcela do poder soberano que lhe cabe, deve participar ativamente da escolha dos

governantes. Foi a partir dessa doutrina que nasceram as idéias de igualdade política e

sufrágio universal.

I.4.2 A Doutrina da Soberania Nacional

Na doutrina da soberania nacional, a Nação surge como única e exclusiva

titular da soberania, exercida por meio de seus representantes. A Nação emerge como uma

entidade abstratamente personificada, cujas vontades sobrepõem-se às vontades individuais

daqueles que a compõem. Essa doutrina surgiu na época da revolução francesa e dominou

quase todo o direito político da França pós-revolucionária.

I.5 O QUE VEM A SER SOBERANIA?

I.5.1 Sob os Aspectos Político e Jurídico

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É importante que se tenha uma visão geral dos vários entendimentos acerca

do que vem a ser soberania. Inicialmente, considere-se que há autores que a definem como

uma qualidade do poder do Estado e outros como o próprio poder.

Na concepção normativista de Hans Kelsen, a soberania é a expressão da

unidade de uma ordem. Na visão de Miguel Reale e Heller, ela é uma qualidade essencial do

Estado e, ainda, para George Jellinek, ela é uma qualidade fundamental do poder do Estado.

Observa-se que o conceito de soberania está sempre ligado à idéia de poder;

no entanto, há uma evolução deste conceito, que mantinha um cunho eminentemente político

e passou a englobar uma análise jurídica de sua natureza.

Os conceitos meramente políticos trazem a soberania como o poder absoluto

de impor determinações. Não há, nestes conceitos, a preocupação de se ter um poder legítimo,

bastando que ele seja absoluto.

Os conceitos, puramente, jurídicos entendem a soberania como o poder

legítimo de decidir quanto às normas a serem seguidas por um Estado. Seria um poder estatal

utilizado para a eficácia do Direito.

Há, também, uma terceira corrente de doutrinadores, de cunho culturalista,

que conceituam soberania tanto sob o ângulo político quanto jurídico. De acordo com essa

corrente, a soberania não pode, meramente, representar a força de um Estado, como também

não pode limitar-se ao Direito, pois o Estado compreende fenômenos jurídicos, sociais e

políticos.

Miguel Reale5, em sua obra “Teoria do Direito e do Estado”, traz uma

brilhante definição de soberania, entendendo-a como “o poder de organizar-se juridicamente e

de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins

5 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. p. 127

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éticos de convivência”6. (apud DALLARI 2001, p. 80). Para Reale, portanto, a soberania não

é uma mera expressão do poder e tampouco se restringe às atribuições das normas jurídicas.

Conclui-se, portanto, que o conceito de soberania, apesar de ter sido gerado

dentro de uma visão puramente política, já se encontra adaptado a parâmetros jurídicos, pois a

soberania tida como o poder político, sem qualquer preocupação quanto à legitimidade do

mesmo, poderia significar o uso arbitrário da força com o fim de justificar a injusta imposição

das razões de um Estado perante seu povo ou perante outros Estados. Segundo Dalmo de

Abreu Dallari, “Como é natural, e os fatos o comprovam constantemente, é absurdo pretender

que a soberania tenha perdido seu caráter político, como expressão de força, subordinando-se

totalmente a regras jurídicas. Entretanto, sua caracterização como um direito já tem sido útil,

quando menos para ressaltar o caráter antijurídico e injusto da utilização da força

incondicionada, para a solução de conflitos de interesses dentro de uma ordem estatal ou entre

Estados, contribuindo para a formação de uma nova consciência, que repudia o uso arbitrário

da força”7.

I.5.2 Sob os Aspectos Interno e Externo

A soberania é vista, por grande parte dos estudiosos, como um conceito

histórico e relativo. Histórico, porque surgiu juntamente com o Estado Moderno, tendo sido

desconhecido na Antigüidade, como mostra o exemplo da polis, na Grécia. Relativo, pois a

soberania pode ser estudada tanto sob a ótica do direito positivo interno, quanto sob a ótica do

ordenamento internacional.

6 DALLARI, op. cit., p. 80 7 DALLARI, op. cit., p. 84

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Sob o ponto de vista interno, a soberania é um elemento essencial do

Estado. É necessário que, no ordenamento estatal, haja uma superioridade do poder do Estado

sobre todos os demais poderes sociais. A soberania exercida, internamente, consiste na

supremacia do poder estatal sobre todos os demais poderes, num determinado território. O

Estado, para existir e ser caracterizado em sua essência precisa ser portador de uma vontade

soberana – a suprema potestas – exigida pela própria função do ordenamento político que

rege a sociedade.

Internamente, portanto, a soberania significa um poder superior a qualquer

outro. Mesmo que haja grupos sociais dotados de competência e autonomia para exercerem

determinadas funções inerentes ao Estado, estes nunca poderão ter poder igual ou superior ao

poder estatal.

Sob o ponto de vista externo, a soberania demonstra a independência do

Estado dentro do contexto global, uma vez que nenhum poder é superior à soberania estatal,

podendo apenas igualar-se a ele.

Para alguns doutrinadores, é apenas uma qualidade do poder, da qual o

Estado pode ou não usufruir, o que é arriscado dizer, pois, nesse caso, admite-se a idéia de

existirem tanto Estados soberanos como Estados não soberanos. Segundo Paulo Bonavides,

por exemplo, o Estado não existe sem o exercício do poder soberano interno; no entanto, pode

existir sem que haja a manifestação da soberania perante outros Estados.

É certo que a soberania continua sendo invocada pelos dirigentes dos

Estados como um sinônimo de independência e expressão de uma supremacia jurídica. Ao

mesmo tempo em que o Estado tem o poder e os meios de fazer cumprir sua vontade, dentro

dos limites de sua jurisdição, tem o dever de respeitar os outros Estados, na medida em que

estes também são soberanos em seus atos políticos, sociais e jurídicos. Desta forma, quando

um Estado mais forte impõe, arbitrariamente, sua vontade a outro mais fraco, há a violação de

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soberania, caracterizando um comportamento antijurídico que pode não ser punido de

imediato pela falta de meios para tanto, mas que mesmo assim, continua sendo ilegítimo.

É fácil identificar que o conceito de soberania sempre esteve atrelado à

realidade histórica do período em que se o analisa. Na época das monarquias absolutistas, o

conceito de soberania era absoluto; mas, atualmente, com o processo da globalização, o

conceito de soberania já não possui esse mesmo caráter.

Nos dias de hoje, um Estado não vive mais isolado do mundo. Economias

fechadas dificilmente obtêm crescimento e o capitalismo tornou-se, praticamente, uma

imposição. A interdependência econômica entre os Estados e a formação dos grandes blocos

econômicos têm levado a uma flexibilização do conceito de soberania, pois um Estado não

pode mais ditar suas regras sem observar as regras do grupo econômico ao qual pertence.

A expansão do direito internacional tem exigido a relativização do conceito

de soberania. Para que haja a construção e evolução de uma ordem internacional, é necessário

que a coexistência dos Estados soberanos venha acompanhada de cooperação entre estes

Estados e da subordinação dos mesmos a normas internacionais.

Conforme o entendimento de Paulo Bonavides, os internacionalistas temem

determinados aspectos do princípio da soberania, pois vêem o poder soberano como um

obstáculo à concretização da comunidade internacional, à positivação do direito internacional,

à transformação de um direito meramente baseado em fundamentos éticos e morais em um

direito internacional positivo.

O fato é que o conceito de soberania é, até hoje, objeto de controvérsias

dentre os estudiosos do Direito, cientistas políticos, filósofos e internacionalistas. Em torno

deste conceito giram inúmeras teorias, o que dá margem a distorções ditadas pela

conveniência de alguns Estados. Não é possível solidificar-se um conceito em meio às

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inúmeras transformações político-sociais que a sociedade sofre, a cada dia. Com a mudança

do entendimento de soberania, muda, também, o entendimento de Estado e, por conseguinte,

o entendimento do próprio Direito, na sociedade.

I. 6 TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DA SOBERANIA

Inicialmente, cumpre fazer algumas considerações gerais sobre a relação

entre soberania e Estado.

O conceito fático de Estado nasceu na Antigüidade, com a polis grega e a

civitas romana. A palavra Estado deriva do latim status, que traduz a idéia de “estar firme”, e

foi utilizada, pela primeira vez, com sentido político, por Nicola Maquiavel, no século XVI,

em sua obra “O Príncipe”.

Para existir, um Estado deve possuir quatro elementos essenciais: território,

população e governo, no plano político-social; e soberania, no plano jurídico. A soberania é,

sem dúvida alguma, um dos elementos básicos essenciais à própria existência do Estado.

Justamente, por isso, o fato de haver mudanças quanto ao conceito de soberania, implica

também mudanças no que tange ao conceito de Estado, pois um é elemento formador do

outro. O que se entendia por Estado, na Antigüidade, certamente, já não é o que se entende

por Estado, hoje.

É interessante, também, diferenciar as expressões soberania do Estado e

soberania no Estado. A expressão soberania do Estado traz à luz a superioridade deste

ordenamento sobre os demais grupos sociais. Já, a expressão soberania no Estado refere-se ao

elemento do poder estatal que o diferencia dos demais poderes.

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Feitas estas breves considerações, cumpre comentar os traços característicos

da soberania que, segundo a maioria dos autores, são: unicidade, indivisibilidade,

inalienabilidade, irrevogabilidade e perpetuidade. De acordo com a teoria de Bodin, todas

essas características são enfatizadas com a afirmação de que a soberania é um poder supremo

e incontrastável.

A soberania é una, porque não pode existir mais de um poder superior, ou

estes deixariam de ser superiores, por coexistirem. É indivisível, porque se aplica a todos os

fenômenos jurídicos, sociais e políticos do Estado. É inalienável, por ser elemento essencial

daquele que a detém, seja o Estado, o povo ou a nação. E, por fim, é imprescritível, porque

não seria um poder, verdadeiramente, superior, caso houvesse um prazo de duração para o

mesmo.

Marco Tullio Zanzucchi, em sua obra “Istituzioni di Diritto Pubblico”,

aponta, ainda, que a soberania é um poder originário, pois nasce juntamente com o Estado;

incondicionado, pois só podem ser impostos limites ao mesmo poder pelo próprio Estado; e

coativo, pois o Estado não apenas detém o poder, mas também os meios para fazer cumprir

suas determinações.

I.7 SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

Como disciplina autônoma das ciências jurídicas, o direito internacional

surgiu por meio das obras de Hugo Grócio, segundo o qual existem leis que buscam

beneficiar a vários Estados, simultaneamente, sendo o conjunto de tais leis o próprio direito

internacional.

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O impulso para o surgimento do direito internacional público foi o período

da Segunda Guerra Mundial, pois com a expansão das idéias socialistas, a necessidade de uma

ordem internacional tornou-se, cada vez mais, presente. As regras jurídicas internacionais

emergiram como a melhor forma de solucionar os conflitos mundiais, prezar pela paz e, ainda,

dar maior segurança às relações internacionais, incentivando os investimentos externos e

contendo, desta forma, o crescimento da doutrina socialista.

Hoje, é evidente que para a efetiva construção de uma ordem internacional,

juridicamente sustentável, é preciso que se abandone a original concepção de soberania

absoluta, intransmissível, imprescritível, inalienável e indivisível. Este conceito clássico não

se adapta à realidade atual, em que a soberania precisa dar vazão à subordinação dos Estados

em relação aos organismos internacionais.

A reflexão sobre a soberania, dentro do atual contexto de um Direito entre

as nações, dá margem à seguinte indagação: como pode haver um direito internacional, se

todos os Estados forem soberanos e não houver poder acima deles?

No entendimento de Oliveiros Litrento8:

[...] a sociedade internacional não está organizada segundo o princípio da subordinação a uma autoridade superior aos seus membros, porquanto a soberania a isto não se submete, ou seja, os Estados soberanos, que compõem a sociedade internacional, não declinam de seu poder soberano.9 (apud LUPI, 2004, p. 101)

A idéia de soberania no contexto político interno de uma nação, em que não

há poder igual ou superior ao poder do Estado, quando analisada, paralelamente à noção de

um direito internacional, pode levar ao entendimento de que as normas de direito

internacional nunca estão acima do direito positivo interno e de que o direito internacional

8 LITRENTO, Oliveiros. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 39 9 LUPI, André Lipp Pinto Basto. Soberania e Direito Internacional Público. In: Soberania: Antigos e Novos Paradigmas – Adrian Sgarbi...{et.al.}. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 101

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seria apenas um direito de coordenação, visto que os Estados soberanos não podem ser

subordinados a qualquer poder superior.

No que diz respeito ao tema, alguns doutrinadores entendem que a soberania

no direito internacional caracteriza-se pela não subordinação entre os Estados. Nesse sentido,

Roberto Luis da Silva observa que “a soberania externa caracteriza-se por não haver

dependência nem subordinação de um Estado ao outro em suas relações recíprocas, devendo

haver igualdade”. 10 (apud LUPI, 2004, p. 103)

Interessante, também, citar a concepção de José Francisco Rezek11, segundo

a qual deve haver uma soberania horizontal dentro da ordem jurídica internacional, necessária

à manutenção do interesse coletivo:

[...] Identificamos o Estado quando seu governo – ao contrário do que sucede com o de tais circunscrições (municípios e províncias federadas) – não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece, em última análise, nenhum poder maior de que dependam a definição e o exercício de suas competências e só se põe de acordo com seus homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros desta ordem a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse coletivo. Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas; mas nenhuma outra entidade as possui superiores. 12 (apud LUPI, 2004, p. 104)

Tem prevalecido, na literatura contemporânea, a opinião de que a soberania é

relativa e limitada, fundamentando a idéia de que, atualmente, com o aumento da

interdependência entre os Estados, imprescindível se faz a cooperação entre os mesmos, não

apenas em prol da construção de uma ordem jurídica internacional, mas, também, pela própria

necessidade de crescimento econômico e desenvolvimento social que estes Estados possuem.

10 Ibid., p. 103 11 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 226 12 LUPI, op. cit., p. 104

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É importante lembrar que o conceito de soberania está positivado em alguns

tratados internacionais como, por exemplo, na Carta da Organização das Nações Unidas, que,

no artigo 2.1, declara o princípio da igualdade soberana dos Estados, dando reconhecimento à

igualdade formal dos mesmos.

A relativização do conceito de soberania frente ao processo de construção

do direito internacional é um assunto polêmico, que dá margem a uma série de interpretações.

Uma breve análise acerca do tema, no entanto, deixa claro que a radicalização, nesse caso,

não é coerente. Desta forma, convém entender que o direito internacional pode, com certeza,

coexistir com a soberania, uma vez que não se ocupa de interferir nas normas de direito

interno que não lhe afetem. Um Estado soberano tem competência única e exclusiva para

decidir assuntos pertinentes à sua autodeterminação, no âmbito de seu território e tem, no

ordenamento internacional, um horizonte de oportunidades que, se bem exploradas pelo

governante, podem resultar em um avanço nos aspectos político, econômico e,

principalmente, social.

I.8 DISTINÇÃO DE DUAS ACEPÇÕES DE SOBERANIA: AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA

Analisando-se as várias concepções do termo soberania e sua correlação

com o direito internacional, sobressaem duas acepções: uma, que está ligada à idéia de

independência, e a outra, que está ligada à idéia de autonomia.

A soberania, como característica formadora da personalidade jurídica do

Estado, está intimamente atrelada à independência, pois Estados que exercem a sua soberania

no âmbito internacional são Estados independentes, o que não significa que não sejam

subordinados às normas de direito internacional, muito pelo contrário, “a independência é a

condição normal dos Estados de acordo com o Direito Internacional”, como bem leciona

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Dionisio Anzilotti, na opinião consultiva da Corte Permanente de Justiça Internacional sobre a

União Aduaneira entre a Alemanha e a Áustria. Um Estado independente, portanto, não

depende de qualquer outro Estado, embora possa sujeitar-se a normas internacionais. (No

original: “Independence as this understood is really no more than the normal condition of

States according to international law; it may also be described as sovereignty (suprema

potestas), or external sovereignty by which is meant that the State has over it no other

authority than that of international law)”13.

Quanto à autonomia, pode-se dizer que a expansão do Direito Internacional

faz diminuir a autonomia do Estado soberano na criação do direito positivo interno, quando há

normatização acerca da mesma matéria pelos dois ordenamentos jurídicos (pelo interno e pelo

internacional). A liberdade de ação do Estado acaba, de certa forma, sendo restringida pelo

direito internacional, se houver sujeição ao mesmo por parte deste Estado.

Como já foi mencionado, para existir, um Estado deve possuir: território,

população e governo, no plano político-social; e soberania, no plano jurídico. A autonomia,

como acepção do elemento soberania, portanto, é também uma condição de existência do

Estado, uma vez que um Estado sem qualquer liberdade de ação, totalmente submisso a outro

ordenamento, deixa de ser, de existir, em sua natureza.

A independência pode ser tida como o aspecto formal da soberania, e a

autonomia, como o aspecto material. A independência está presente em relação aos outros

Estados e pode, ou não, existir em determinadas relações internacionais, ao passo que a

autonomia é gradativa, podendo ser o Estado mais ou menos soberano, na medida em que

possui maior ou menor autonomia.

13 The opinions of Judge Dionisio Anzilotti at the Permanent Court of International Justice. European Journal of International Law. Vol. 3-1, 1992, p. 121. Disponível em www.ejil.org. Acesso em 05/05/2001

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Para Celso de Albuquerque Mello14:

[...] a soberania tem um aspecto interno e um aspecto externo. O primeiro se manifesta nos diferentes poderes do Estado: no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. Ele é a consagração do direito de autodeterminação, isto é, o direito do Estado de ter o governo e as leis que bem entender sem sofrer interferência estrangeira. O aspecto externo é o direito à independência que se manifesta no direito de convenção; direito à igualdade política; direito de legação; direito ao respeito mútuo.15 (apud GUERRA, 2004, p. 329)

As noções de independência e de autonomia são necessárias à compreensão

do Estado como sujeito de direito internacional dotado de capacidade para o exercício de suas

razões, pois mesmo que a limitação à autonomia política de um Estado não afete a sua

independência, um mínimo de autonomia é imprescindível para que haja a independência e o

pleno exercício da soberania.

I.9 SOBERANIA E O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO

I.9.1 Breve Noção Histórica Acerca do Processo de Globalização

Não há um marco inicial claramente definido para o processo de

globalização. Ela é resultado do caminhar da História e gera polêmica até no que tange à

nomenclatura mais adequada que a defina.

Desde a Antiguidade, diversos povos já expandiam seus territórios e

buscavam conquistas muito além de suas fronteiras. Os persas, os gregos e, posteriormente, os

romanos foram exemplos de povos que construíram grandes impérios.

14 MELLO, Celso D. de Albuquerque. A soberania através da história. Anuário: direito e globalização: a soberania. 9. ed. São Cristóvão-RJ: Renovar, 1999, p. 17 15 GUERRA, Sidney. Soberania e Globalização: o fim do Estado-Nação? In: Soberania: Antigos e Novos Paradigmas – Adrian Sgarbi...{et.al.}. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 329

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Nos séculos XV e XVI, com as grandes navegações, as conquistas de

Portugal e Espanha já se revestiam de interesses econômicos, como demonstra o surgimento

do capitalismo mercantil na Europa e a busca por matérias-primas e mercados consumidores,

nas chamadas colônias de exploração.

A Revolução Industrial do século XVII proporcionou o desenvolvimento da

França, Inglaterra, Holanda e, já no século XIX, da Bélgica, Itália, Alemanha, Estados Unidos

e Japão, ocasionando a onda do que se chamou de neocolonialismo, quando foram

partilhadas, a Ásia, África e Oceania. O imperialismo neocolonialista desembocou na

Primeira Guerra Mundial, ocasião em que foi globalizada a luta armada.

Com a Segunda Guerra Mundial, a globalização andou a passos largos. Os

planos de reconstrução chegaram às economias da Europa e da Ásia e os Estados Unidos

emergiram como potência mundial.

Em 24 de outubro de 1945, foi assinada a Carta das Nações Unidas, ocasião

em que passou a existir a ONU – Organização das Nações Unidas, que até os dias de hoje

exerce papel fundamental na consagração dos direitos humanos, da autodeterminação dos

povos e da solidariedade dentro do contexto internacional.

A difusão das idéias socialistas pelo mundo deu início à chamada Guerra

Fria e fomentou o processo de descolonização da África e da Ásia. Conseqüentemente, novos

atores entraram no cenário global e a desigualdade social entre os Estados acentuou-se, cada

vez mais.

A partir da década de 1960, começaram a crescer as empresas transnacionais

e as relações econômicas interestatais expandiram-se, consideravelmente.

Finalmente, a partir da década de 1980, teve início a maior onda da

globalização que já se conheceu. Com uma rapidez tremenda e com a ajuda da contínua

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modernização tecnológica, o mundo foi, literalmente, conectado entre seus Estados. A

globalização passou a ser o centro dos debates políticos até mesmo nos países de economia

mais fechada, que sentiram a dificuldade de se manterem isolados no mundo.

Atualmente, a globalização continua crescendo em um ritmo

excepcionalmente acelerado, interligando cada vez mais os Estados por meio da mídia; da

política externa; da recente criação de um mercado de trabalho global, com um grande

número de atividades econômicas conduzidas por empresas e indivíduos de países

estrangeiros; enfim, por meio dos vários vôos alçados pelo homem nesta era de modernidades

e que o levam a novas conquistas e à invisível, porém real, expansão de suas fronteiras.

I.9.2 A Degradação do Conceito de Soberania

Nos dias atuais, praticamente, todos os países do globo têm sofrido as

conseqüências da globalização, seja de forma direta ou indireta. Alguns são protagonistas do

fenômeno, outros são coadjuvantes e, outros, ainda, são apenas anexos neste processo.

Na visão de Octavio Ianni16:

[...] a globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, formas de pensamento e vôos da imaginação.17 (apud GUERRA, 2004, p. 336)

E, ainda, o autor lembra que:

16 IANNI, Octavio. A era do globalismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 7 17 GUERRA, op. cit., p. 336

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[...] de maneira lenta e imperceptível desaparecem as fronteiras entre os três mundos, modificam-se os significados das noções de países centrais e periféricos, do norte e sul, industrializados e agrários, modernos e arcaicos, ocidentais e orientais. Literalmente, embaralha-se o mapa do mundo, umas vezes parecendo reestruturar-se sob o signo do neoliberalismo, outras parecendo desfazer-se no caos, mas também prenunciando outros horizontes.18 (apud GUERRA, 2004, p. 336)

De maneira mais rápida do que nunca, os conceitos de Estado e soberania

têm mudado. O Estado já não pode mais se preocupar apenas com a política interna que

almeja o bem-estar de seus cidadãos. Todo país tem, hoje, o compromisso de pensar na

sociedade global, de se voltar para as problemáticas que atingem os demais Estados.

Quanto à questão da soberania, cabe perguntar, levando-se em consideração

a idéia de uma sociedade global, analisando-se a crescente interdependência econômica entre

os Estados e a expansão das relações internacionais, em que aspectos estaria o conceito de

soberania ultrapassado.

De acordo com o entendimento de Otávio Ianni19:

[...] juntamente com a expansão das empresas, corporações e conglomerados transnacionais, articulada com a nova divisão transnacional do trabalho e a emergência das cidades globais, verifica-se o declínio do Estado-nação. Parece reduzir-se o significado da soberania nacional, já que o Estado-nação começa a ser obrigado a compartilhar ou aceitar as decisões e diretrizes provenientes de centros de poder regionais e mundiais.20 (apud GUERRA, 2004, p. 330)

I.9.3 O Princípio da Não-intervenção Dentro do Contexto Histórico Atual

Desde o início de 1980, as mudanças no contexto global têm sido, cada vez

mais, evidentes: as organizações internacionais ganharam maior espaço, aumentou

sobremaneira o número de organizações não-governamentais, o transnacionalismo

18 GUERRA, loc. cit. 19 IANNI, op. cit., p. 13 20 GUERRA. Op. cit., p. 330

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empresarial ganhou impulso com os avanços tecnológicos, os governos passaram a investir

mais na política externa, enfim, o mundo encontra-se em meio a um processo de metamorfose

acelerada.

É certo, também, que os valores comuns difundiram-se, largamente, devido

à evolução do direito internacional, à expansão da mídia e ao desenvolvimento dos meios de

comunicação. Quando ocorrem grandes crimes em um Estado, esta informação é repassada,

quase que imediatamente, aos demais Estados e a humanidade toda se sente agredida e, em

parte, responsável. Há, em todo o mundo, a consciência de que existe um padrão de

comportamento, um standard mínimo que deve ser respeitado nos limites de qualquer nação.

Os direitos humanos e ambientais constituem o fulcro temático desta nova realidade, em que a

colaboração de todos os Estados tornou-se essencial à manutenção da qualidade de vida no

espaço global.

Interessante citar a reflexão de Ricardo Seitenfus sobre o tema:

[...] Mergulhado em crises e dúvidas, faltou ao homem contemporâneo, entre outras, a resposta para o dilema fundamental das relações entre os dois mundos separados pela radical geografia da pobreza. Tanto a testemunha ocular de brutais violações dos direitos fundamentais, como o mais distante e rico cidadão do Hemisfério Norte, perguntam-se hoje: é preciso intervir militarmente num Estado cuja lógica dominante o leva a assassinar seus próprios nacionais ou é preciso que cada país tenha direito à sua própria guerra?21

O autor comenta, ainda, que:

[...] escondidos por detrás do princípio da soberania, os diferentes Estados detêm permissão para torturar, executar, provocar desaparecimentos forçados e utilizar-se das prisões sem julgamento para afastar aqueles que contestam. Por conseguinte, a solidariedade somente pode materializar-se caso intervenha nos assuntos ditos internos dos Estados.22

21 STEINFUS, Ricardo. Soberania e Intervenção: o Embate da Ordem Internacional Contemporânea. In: Soberania: Antigos e Novos Paradigmas – Adrian Sgarbi...{et.al.}. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 283 22 Ibid., p. 234

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Com exceção do período de Gorbatchev (1986-1992), o sistema de soluções

de conflitos mundiais estabelecido pela ONU nunca foi eficaz. O mundo vive em guerra

diariamente. A ausência de uma guerra mundial nunca pode ser confundida com um período

de paz. As guerras civis e militares por todo o mundo somam uma quantia sobre a qual a

ONU não tem qualquer controle, nem capacidade para intervir.

O princípio da não-intervenção em assuntos internos dos outros Estados é

predominante na cena internacional, tendo-se em vista o princípio da soberania. A não-

intervenção é um princípio, muitas vezes, explícito pelas próprias ordens jurídicas nacionais, a

exemplo do Brasil, e está implícito nas normas internacionais, como na Carta das Nações

Unidas.

I.9.4 A Consistência da Intervenção

É tênue a linha entre o relacionamento interestatal de comunhão de

interesses e a ingerência externa em assuntos de ordem interna. A ingerência, ou seja, a

imposição coercitiva de algo a um Estado não requer, necessariamente, o uso da violência.

Pode dar-se de maneira sutil, através de manobras políticas, por exemplo.

I.9.5 A Intervenção Segundo sua Finalidade

A intervenção se faz necessária, por exemplo, no caso de proteção aos

estrangeiros residentes em território instável. Aí, então, possui um caráter humanitário e

traduz, geralmente, o interesse de um Estado em proteger seus nacionais. Esse interesse deve

ser colocado acima da soberania do Estado objeto da intervenção, visto que preza por direitos

superiores, como os direitos humanos.

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I.9.6 Assistência Humanitária

Alarmantes catástrofes que atingem a população civil de todo o mundo

sempre existiram; mas, não com a dimensão de hoje. A multiplicação das formas de

extermínio e o alastramento da violência em todo o mundo conduziram à criação do Comitê

Internacional da Cruz Vermelha e, posteriormente, à assinatura dos Protocolos de Genebra,

que buscam um mínimo de humanidade em meio a situações caóticas.

A partir dessas experiências, surgiram inúmeras Organizações Não-

Governamentais e entidades privadas vinculadas às mesmas, que procuram atuar em socorro

das vítimas de guerras e catástrofes.

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II. DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

II.1 CONCEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

De maneira bastante simples, o direito internacional público pode ser

definido como sendo o conjunto de normas originado fora da jurisdição interna de cada

Estado, como resultado da integração entre eles. Há, no entanto, uma série de definições para

o direito internacional público, as quais variam de acordo com as correntes adotadas pelos

diversos estudiosos dessa área. Díez de Velasco23, por exemplo, tomando por base os aspectos

materiais e formais do direito internacional, o definiu como:

[...] um sistema de princípios e normas que regulam as relações de coexistência e de cooperação, freqüentemente institucionalizadas, além de certas relações comunitárias entre Estados dotados de diferentes graus de desenvolvimento socieconômico e de poder24. (apud SILVA e ACCIOLU, 2002, p. 3)

Seguindo a mesma linha de raciocínio, no entanto, de forma mais concisa,

Celso Mello25 afirma que o direito internacional “é o conjunto de regras que determinam os

direitos e os deveres respectivos do Estado nas suas relações mútuas”26. (apud MOON JO, p.

40)

Jorge Americano27, seguindo uma outra direção, refere-se ao direito

internacional tendo em mente o seu objeto. O estudioso entende que “o objeto do direito

internacional é o estabelecimento de segurança entre as Nações, sobre princípios de justiça

23 DÍEZ, Manuel de Valasco. Instituciones de derecho internacional público. 10. ed. Madrid, 1994, p. 99 24 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3 25 MELLO, op. cit., p. 63 26 MOON JO, Hee. Introdução ao Direito Internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, p. 40 27 AMERICANO, Jorge. O novo fundamento do direito internacional. São Paulo: 1945.

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para que dentro delas cada homem possa ter paz, trabalho, liberdade de pensamento e de

crença”28.

Hoje, é, praticamente, unânime o entendimento de que o principal objeto do

direito internacional é a manutenção de relações internacionais pacíficas. O bem comum da

sociedade é secundário e derivado.

Todavia, a tendência dos doutrinadores tem sido definir o direito

internacional a partir do entendimento de quem são os sujeitos deste mesmo direito. Até o

final do século XIX, os Estados eram os únicos a serem reconhecidos como sujeitos do direito

internacional. Posteriormente, também foi atribuída personalidade jurídica internacional às

organizações intergovernamentais e, recentemente, tem-se admitido, com muita restrição, a

personalidade jurídica internacional do homem. É, ainda, importante lembrar que as

organizações internacionais, passaram a serem citadas como sujeitos de direito internacional

após a primeira grande guerra, com a criação da Liga das Nações.

Quanto à questão de o homem ser ou não sujeito de direito internacional há

grandes controvérsias. Vários internacionalistas têm se dedicado ao estudo deste aspecto, e,

alguns entendem que o direito internacional deve alcançar, imediatamente, os Estados que,

possuindo personalidade jurídica internacional, podem reconhecer os direitos do homem.

Outros entendem que o direito internacional deve ter como primazia a proteção dos direitos

fundamentais do homem, o qual deve possuir capacidade para agir no direito internacional.

Finalmente, convém mencionar alguns aspectos das normas internacionais

contemporâneas, que, segundo Hee Moon Jô:

[...] são compostas por três partes, conforme seu campo de aplicação. Podem ser normas que regem as relações públicas entre os Estados e/ou organizações internacionais no campo internacional, podem ser normas que regem as relações entre Estados/organizações internacionais e entidades

28 SILVA; ACCIOLY, loc. cit.

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privadas, e ainda podem ser normas que regem as relações privadas das pessoas, aplicáveis principalmente por meio da internalização das normas internacionais29.

Com o processo de globalização e internacionalização das relações privadas,

há uma necessidade, cada vez maior, de se aplicarem normas internacionais, o que tem feito

do direito internacional matéria cada vez mais importante, essencial à realidade hodierna.

II.2 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DIREITO INTERNACIONAL

A maior parte dos estudiosos do direito internacional nega sua existência, na

Antigüidade. Henry Wheaton, por exemplo, considera o surgimento do direito internacional a

partir da Paz de Vestefália. Louis Lê Fur acredita que o direito internacional provenha do

cristianismo e, dentre os autores mais recentes, Mário Giuliano, adota, como referência para o

nascimento desta ciência jurídica, o século XVI.

Há, portanto, controvérsias no que diz respeito ao nascimento do direito

internacional; mas, os fatores que contribuíram para tanto podem ser estudados desde a

Antiguidade, a partir de dados históricos ligados aos primeiros indícios da caracterização do

direito.

É fato que, na Antigüidade, cada continente, ou cada região de um

continente era um mundo à parte. Quase não havia comunicação entre os povos, e as

diferenças culturais e sociais entre os continentes formavam verdadeiros abismos entre os

mesmos. Evidentemente, não havia um direito internacional ou qualquer possibilidade de se

contemplar uma universalidade.

29 MOON JO, op. cit., p. 42

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Na Grécia e em Roma, devido a aspectos políticos, o direito desenvolveu-se

com maior rapidez; no entanto, era ainda um direito interno, necessário para contornar os

problemas decorrentes das guerras, das invasões e conquistas praticadas na época,

principalmente, pelo poderio militar do império romano.

Com o advento do Cristianismo, as idéias de igualdade e fraternidade foram

ganhando espaço e alguns princípios jurídicos do jus inter gentes começaram a se

desenvolver.

Ao final da Idade Média, no século XV, houve a queda do sistema

medieval, o enfraquecimento do poder da Igreja e o aparecimento dos Estados soberanos. Tais

Estados adotaram a teoria da soberania absoluta. Estabeleceram-se, então, relações entre estes

Estados, o que se chamou de sistema internacional interestatal. Nesse sistema, o direito

internacional significava a lei que regia as relações entre os Estados e cuja formação se dava

pelo consentimento, explícito ou tácito, dos mesmos. Interessante citar que a interpretação

destas leis também era feita pelos próprios Estados, ao passo que não havia uma instituição

superior que coordenasse as relações internacionais.

É inegável que o descobrimento da América, no final do século XV, foi um

incentivo a mais para o desenvolvimento do direito internacional, pois surgiu a necessidade de

se regularem as relações entre os Estados independentes europeus e os povos americanos. A

partir de então, o direito internacional público começou a surgir como ciência jurídica.

No dia 24 de outubro de 1648, foi assinado o primeiro tratado de direito

internacional da história; o Tratado de Vestefália, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos na

Europa (1618-1648). Este tratado marcou o início de uma nova era para o direito internacional

e, a partir dele, o princípio da igualdade jurídica dos Estados passou a servir como base para o

sistema de relações internacionais que se estruturava.

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Por três anos houve negociações em Münster e em Osnabrücke, sendo que

os tratados concluídos nestas cidades foram reunidos no Ato Geral de Vestefália, em Munster,

no dia 24/10/1648.

Algumas das decisões mais importantes deste tratado, e que refletem o

desenvolvimento do direito internacional, foram: a criação de novos Estados; a independência

dos Países-Baixos (Holanda e Bélgica); e a incorporação da Alsácia à França. Foi a Paz de

Vestefália que colocou fim ao Sacro Império Romano Germânico e deu início ao

imperialismo francês.

Esse novo período do direito internacional foi, fortemente, marcado pelas

obras de Hugo Grócio, doutrinador holandês, que viveu entre 1583 e 1645. Sua obra De jure

belli ac pacis, em especial, serviu de inspiração à elaboração do Tratado de Vestefália.

No início da Idade Contemporânea, a Revolução Francesa contribuiu para as

unificações alemã e italiana, no século XIX. Por intermédio da Revolução, houve também a

proibição da guerra de conquista e a consagração do princípio da nacionalidade.

Em 1815, o Congresso de Viena declarou a queda de Napoleão, a partir do

estabelecimento de uma nova ordem política na Europa. Serviu de contribuição ao direito

internacional, pois proibiu o tráfico negreiro e declarou liberdade de navegação em

determinados rios, dentre outras medidas.

Já no final do século XIX, os países europeus exerciam grande influência no

mundo todo, inclusive mantendo várias nações sob sua dependência. Assim, o direito

internacional clássico foi, basicamente, o direito internacional europeu.

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32

II.3 FORMAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL MODERNO

Somente após a Primeira Guerra Mundial foi que o direito internacional se

desvinculou de suas características européias originais e começou a se tornar,

verdadeiramente, universal. Até então, predominava o intervencionismo entre os Estados.

Posteriormente, em 1945, a Carta da ONU proibiu o uso da força e a intervenção nos assuntos

internos dos Estados (princípio da não-intervenção).

Entre os vários fenômenos do direito internacional moderno, têm-se a

proibição do uso da força militar e a manutenção da paz por meio da organização sistemática

da sociedade internacional.

O período da Guerra Fria foi bastante significativo para o direito

internacional. Nessa época, houve a ameaça de uma guerra nuclear no mundo, fenômeno que

levou o direito internacional a uma dimensão superior. Não só os espaços terrestres, mas,

também, a lua, as profundezas dos oceanos, todo o espaço aéreo e atmosférico passaram a ser

objeto de tratados assinados pela comunidade internacional.

A proteção do meio ambiente também passou a ser objeto de preocupação

do direito internacional. Como reflexo disso, em 1972, foi realizada, em Estocolmo, a

Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, o que desencadeou uma série de

outros tratados concernentes a essa área.

Em 1989, realizou-se a primeira Conferência de Paz, de Haia, em que foi

criada a Corte Permanente de Arbitragem de Haia, visando a solução pacífica dos litígios

internacionais, bem como a humanização da guerra.

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33

Como no século XX o direito internacional teve uma ampliação

extraordinária, atualmente, o maior desafio para essa ciência jurídica tem sido buscar meios

para a efetivação de suas tarefas.

É fato que os sistemas jurídicos nacionais, isoladamente considerados, não

comportam mais todos os problemas do mundo de hoje. Os grandes desastres naturais, as

guerras, o terrorismo, os problemas globais no meio ambiente, o tráfico internacional de

drogas, armas e pessoas, enfim, todas as questões de âmbito global, precisam e devem ser

reguladas por meio do direito internacional, ao qual devem ser oferecidas as ferramentas

adequadas para sua implementação.

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34

III. SOCIEDADE INTERNACIONAL

Toda sociedade surge da necessidade ou conveniência de se estabelecerem

relações recíprocas entre os indivíduos. Assim também ocorre no domínio internacional, em

que passaram a existir relações entre os Estados, que só poderiam prosperar caso fossem

criadas normas que as regessem, o que determinou o nascimento do direito internacional.

O direito internacional, de forma bastante simples, pode ser visto como o

direito da sociedade internacional, que, por sua vez, é composta pelo conjunto de sociedades

nacionais. No período em que teve início a formação do direito internacional, essas

sociedades nacionais foram, jurídica e politicamente, representadas pelos Estados, que

convencionaram uma série de obrigações internacionais e promoveram a internalização dessas

obrigações aplicando-as aos seus respectivos cidadãos.

Desta forma, o direito internacional é predominantemente interestatal, pois

ainda carrega os resquícios da época em que os Estados eram os únicos sujeitos de direito

internacional.

Os Estados são, de fato, os sujeitos dominantes na formação do direito

internacional e na atuação em relações internacionais. As Organizações Internacionais são

criadas pela vontade dos Estados e, geralmente, dependem dos mesmos para a realização de

suas atividades. Os indivíduos, via de regra, gozam dos benefícios do direito internacional, a

partir da internalização das normas. Os Estados são os únicos que possuem capacidade

processual frente à Corte Internacional de Justiça, que podem ser membros da ONU e que

podem invocar ajuda do Conselho de Segurança. Os Estados são, portanto, os principais

atores do cenário internacional.

Interessante notar que o direito internacional moderno surgiu na Europa

Ocidental, na época de formação dos Estados Nacionais, tendo sido, portanto, um direito

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predominantemente europeu. Segundo Carls Schmitt, no período compreendido entre os

séculos XVI e XX, se “considerava (sic) as nações cristãs da Europa como criadoras e

possuidoras de um ordenamento que era válido para toda a terra” e “o termo civilização era

equivalente a civilização européia”30.

A partir do século XX, as necessidades da sociedade internacional passaram

a exigir que os Estados deixassem de ser os únicos sujeitos de direito internacional e as

sociedades internacionais ganharam espaço no cenário global, assim como o próprio homem

assumiu maiores responsabilidades e compromissos dentro do sistema jurídico internacional.

Os direitos fundamentais se internacionalizaram e o Estado, bem como, as

organizações internacionais, passaram a ver no direito internacional um mecanismo de

proteção jurídica capaz de alcançar todos os seres humanos.

III.1 CARACTERÍSTICAS DA SOCIEDADE INTERNACIONAL

A sociedade internacional é aberta (basta existir para se fazer parte dela);

universal; paritária (todos são iguais, no sistema da sociedade internacional); horizontal (não

há hierarquia interna); e descentralizada (não existe um governo à frente desta sociedade).

Cumpre ressaltar que as constantes mudanças sofridas pela sociedade

internacional, no decorrer dos tempos, exigem uma certa flexibilização do conceito de direito

internacional. De acordo com Hee Moon Jô:

[...] primeiramente, o Direito Internacional deve ser visto simplesmente como o direito da sociedade internacional. Essa definição geral é mais segura e duradoura, dada a constante mudança e evolução da sociedade internacional. Em segundo lugar, o Direito Internacional reflete a necessidade da sociedade internacional contemporânea. Por isso, ele evolui constantemente de acordo com as mudanças das necessidades da sociedade. Em terceiro lugar o Direito Internacional, por ser ramo do direito, visa o bem

30 MELLO, op. cit., p. 35

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comum da sociedade internacional, cujo benefício final direito e indiretamente deve ser o homem.31 (MOON JO, p. 44)

31 MOON JO, op. cit., p. 44

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IV. FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL

São fontes do direito internacional todos os atos ou fatos capazes de originar

a norma jurídica. Como num rio, a fonte de onde brota a água corresponde à fonte formal do

direito e todos os fatores que contribuem para que brote a água daquele local constituem a

fonte material.

A fonte formal, então, refere-se à forma de existência atual da lei, a todos os

documentos ou pronunciamentos em que constam os direitos e deveres dos sujeitos

internacionais, enquanto a fonte material refere-se a todos os fenômenos e fatores de valor que

contribuem para a formação do conteúdo da lei, como, por exemplo, o costume da sociedade,

a moral, a tradição, a história, a cultura, etc.

Convém mencionar o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de

Justiça, que contém uma relação das fontes do direito internacional, quais sejam: as

convenções internacionais; os costumes internacionais; os princípios gerais de direito

reconhecidos internacionalmente; e, em alguns casos, decisões judiciais e doutrina.

Ainda, o parágrafo 2o, do artigo 38, abre às partes a oportunidade de terem

uma questão resolvida ex aequo et bono, ou seja, pela aplicação da eqüidade, caso não exista

norma expressa regulando a matéria.

Durante séculos, a fonte mais importante do direito internacional foi o

costume, evoluído da prática dos Estados. A doutrina, também, é considerada fonte do direito

e tinha grande importância. Até 1960, as fontes do direito eram apenas costumeiras e

doutrinárias. Somente após 1960, quando houve uma expansão dos tratados, estes se tornaram

a principal fonte do direito internacional.

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A Convenção de Viena, de 1969, é importantíssima fonte do direito

internacional, pois foi por intermédio dela que houve a codificação das regras costumeiras em

vários tratados.

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V. SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL

No direito internacional, só eram considerados sujeitos capazes aqueles que

podiam firmar tratados – os que possuem o treaty making power. Os Estados e as

organizações internacionais têm o treaty making power, sendo que os Estados o possuem,

originariamente, e as organizações internacionais, de forma derivada.

As Convenções de Viena, de 1969 e de 1986, estabeleceram que o direito de

firmar tratados pode ser exercido por sujeitos de direito internacional e não somente pelos

Estados e organizações intergovernamentais.

O homem, no direito internacional, era somente objeto de direitos, pois não

tinha capacidade de agir. A partir de 1949, com o Tribunal de Nuremberg, o homem passou a

fazer parte de relações processuais dentro do direito internacional. O homem passou a ser um

sujeito processual, o que, segundo alguns estudiosos, o torna sujeito de direito internacional.

O fato é que o homem não tem o treaty making power; todavia, em algumas

relações, atua como sujeito de direito internacional.

Não são sujeitos de direito internacional as empresas e as ONGs. Ambas

estão ligadas ao ordenamento jurídico interno dos Estados.

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VI. TRATADOS

VI.1 NOÇÕES GERAIS ACERCA DOS TRATADOS

Os tratados são atos internacionais bilaterais ou multilaterais. São a

principal fonte do direito internacional, o processo legislativo de maior relevância na

sociedade internacional, tanto pela sua multiplicidade, quanto pelo fato de que são, na maioria

das vezes, os tratados que regulam os assuntos de maior relevância no direito internacional.

Ainda, os tratados são a fonte mais democrática do direito internacional, pois sua elaboração

conta com a participação direta dos Estados.

Conforme leciona Hee Moon Jô:

[...] os tratados têm cada vez mais importância no Direito Internacional. A tecnologia moderna, as comunicações e o comércio aumentaram mais do que nunca a interdependência entre os Estados e a disposição destes em aceitar regras internacionais sobre um grande número de questões de interesse comum: extradição de criminosos, normas de segurança para navios e aviões, ajuda econômica, propriedade intelectual, uniformização dos sinais de circulação rodoviária, etc.32 (MOON JO, p. 84).

Os tratados são instrumentos de cooperação entre Estados, são a

consolidação de ideais num âmbito global. Em alguns casos, substituem o direito

consuetudinário e servem para unir valores já solidificados pelas sociedades nacionais, em

uma escala única dentro do direito internacional.

VI.2 CODIFICAÇÃO DO DIREITO DOS TRATADOS

O direito dos tratados (law of treaties) é um ramo do direito internacional

que estuda, basicamente, o processo de formação, execução e extinção dos tratados. Até 1980,

32 MOON JO, op. cit., p. 84

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o direito dos tratados era regido, simplesmente, pelos costumes internacionais. A Convenção

de Viena sobre o Direito dos Tratados, que ocorreu em 1969, mas que só entrou em vigor em

1980, foi o resultado da codificação dos costumes internacionais existentes, até então. A partir

daí, grande parte dos costumes foram substituídos pelo estabelecido na Convenção.

Cumpre ressaltar, porém, que a Convenção só se aplica a tratados

posteriores a sua entrada em vigor (art. 4o); não abrange todos os Estados e nem todos os

assuntos relacionados ao direito dos tratados. Portanto, conforme consta da parte final do

preâmbulo da Convenção, as regras do direito internacional costumeiro devem continuar

regendo as questões não reguladas nas disposições da mesma.

No que tange ao Direito dos Tratados, são essenciais os seguintes

documentos:

1) Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969);

2) Convenção de Viena sobre Sucessão de Estados em respeito a Tratados

(1978);

3) Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e

Organizações Internacionais (1986);

4) Review of the Multilateral Treaty-making process.

VI.3 CONCEITO DE TRATADO

O artigo 2(1)(a) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de

1969; e o artigo 2(1) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e

Organizações Internacionais, de 1986, definem tratado como sendo “um acordo internacional

celebrado por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer inserido num

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único instrumento, quer em dois ou mais instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua

designação específica”33. (MAZZUOLI, 2006)

Interpretando essa definição, portanto, o tratado é um ato bilateral ou

plurilateral; realizado entre sujeitos de direito internacional; regido pelo direito internacional,

em um ou mais instrumentos conexos e para o qual existem inúmeras denominações, como o

próprio termo tratado, convenção, acordo, pacto, protocolo, carta, estatuto, ata, declaração,

etc. O único tratado que deve ter um nome específico é a concordata (todo tratado do qual faz

parte a Santa Sé). Cabe, ainda, acrescentar que os tratados são ato solene, formal,

manifestações expressas de vontade e cujo objeto deve ser lícito, em todos os países

participantes.

VI.4 CONDIÇÕES DE VALIDADE DOS TRATADOS

São condições de validade dos tratados a capacidade das partes contratantes,

a habilitação dos agentes signatários, o consentimento mútuo e o objeto lícito e possível.

VI.4.1 Capacidade das Partes

São capazes para firmar tratados os Estados, as organizações

internacionais, a Santa Sé e outros entes internacionais como, por exemplo, os territórios

internacionalizados. Segundo a Convenção de Viena, todo Estado tem capacidade para

concluir tratados. Já, as organizações internacionais tiveram o reconhecimento de sua

personalidade internacional pela Corte Internacional de Justiça e, posteriormente, a

capacidade para concluir tratados foi prevista pela Convenção de Viena, de 1986 (artigo 6o).

33 MAZZUOLI, Valério de Oliveira (Organizador). Coletânea de Direito Internacional. 4. ed. atual. São Paulo: RT, 2006.

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VI.4.2 Habilitação dos Agentes Signatários

Os agentes signatários podem ser plenipotenciários ou acreditados.

Plenipotenciários são aqueles que, em função do cargo, representam o Estado. São

plenipotenciários o chefe do Estado, o Ministro das Relações Exteriores e o embaixador em

missão diplomática. São acreditados aqueles que, em função da pessoa, são nomeados para

representar o Estado; geralmente, alguém que possui vasto conhecimento da matéria

pertinente ao tratado.

VI.4.3 Consentimento das Partes

É necessário, também, que o tratado seja um acordo de vontades. Todos os

Estados que realizam o tratado devem consentir com o mesmo. No caso de tratados

multilaterais, realizados em conferência internacional, estes devem ter a aceitação de no

mínimo, dois terços dos Estados presentes.

Como acordo de vontades, o tratado não pode sofrer vício algum, tal como o

erro, o dolo e a coação.

Só atinge a validade do tratado o erro de fato, e que serviu como base

essencial do consentimento para se aderir ao tratado. O erro de direito não é considerado um

vício do tratado, assim como o erro de redação, que deve ser corrigido. Ainda, não pode

invocar o erro o Estado que contribuiu para o mesmo.

O dolo é caracterizado pela manobra ou fraude de uma parte, a fim de

causar engano na outra, que aceita o tratado com base em um erro.

A coação pode existir contra o agente signatário ou contra o próprio Estado,

a partir da ameaça ou do emprego da força.

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VI.4.4 Objeto

O objeto do tratado deve ser possível e lícito em todos os Estados

signatários.

VI.5 ELEMENTOS DO TRATADO

Chama-se cimeira ou reunião de cúpula a reunião dos países em que há a

discussão da minuta. Somente após essa discussão inicial, o tratado é concretizado de maneira

efetiva.

O tratado é formado de três partes principais: o preâmbulo, em que são

expostas a justificativa, as finalidades do tratado, bem como, as partes contratantes; a parte

dispositiva, em que são estabelecidos os direitos e obrigações das partes, redigidos em forma

de artigo; e a fase conclusiva, em que há a ratificação e assinatura. A ratificação é uma

confirmação do tratado, uma declaração – ato unilateral internacional, que só pode ser feita

pelos plenipotenciários. A assinatura inclui tanto os plenipotenciários quanto os acreditados.

VI.6 CONCLUSÃO E ENTRADA EM VIGOR DOS TRATADOS

De acordo com o artigo 11 da Convenção sobre o Direito dos Tratados, “o

consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado pode manifestar-se pela assinatura,

troca dos instrumentos constitutivos do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão,

ou quaisquer outros meios, se assim for acordado”34. (MAZZUOLI, 2006). Há, portanto,

várias formas de um Estado obrigar-se a um tratado.

34 Ibid.

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Via de regra, os tratados internacionais passam pelas fases de negociação,

assinatura, ratificação, promulgação, publicação e registro. Tornam-se obrigatórios, após a

promulgação e publicação, no âmbito interno de cada Estado.

A assinatura, na época em que predominou a teoria do mandato para os

plenos poderes, tinha uma importância muito maior do que tem hoje, pois uma vez que o

soberano assinasse um tratado, via de regra, obrigava-se a ratificá-lo. Atualmente, a assinatura

é importante na medida em que atribui responsabilidade ao Estado e expressa a vontade de

seu representante; no entanto, na maioria dos Estados, sequer é condição de validade do

tratado, pois é necessária a ratificação para que o tratado seja aceito de fato.

Quanto à ratificação, esta é o ato por meio do qual o Chefe de Estado

declara aceito pelo Estado o que foi convencionado pelo agente signatário. A ratificação é

considerada uma das fases mais importantes do processo de conclusão dos tratados na maioria

dos Estados.

Importante mencionar, no entanto, que o procedimento de ratificação não é

uma regra sem exceções e ocorre, geralmente, quando o próprio tratado prevê a sua

necessidade, quando a assinatura é submetida à ratificação e quando é acordado, desta forma,

pelas partes. Em alguns casos, a ratificação é dispensada e, nestes casos, o tratado deve trazer,

expressamente, esta possibilidade.

O processo de entrada em vigor dos tratados pode se dar de duas maneiras

diferentes, dependendo do Estado em que este processo ocorrer. Nos Estados Unidos e em

alguns poucos países do mundo, por exemplo, a minuta passa pelo Congresso Nacional,

previamente, e o Chefe de Estado já assina o tratado com a autorização interna do Congresso.

Na maioria dos países, no entanto, o Chefe de Estado assina o tratado primeiro e, depois, este

vai para a análise do Congresso. É este o procedimento adotado pelo Brasil. Por isso, a

assinatura do tratado, no Brasil, não é condição de validade do mesmo.

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O direito internacional não prescreve uma forma como deve ser feita a

ratificação, em todos os Estados; por isso, alguns autores aceitam a possibilidade da

ratificação tácita, desde que o Estado demonstre, claramente, ter aceitado o tratado, dando

início, por exemplo, a sua execução. Na maioria das vezes, no entanto, a ratificação é formal,

e se concretiza a partir da carta de ratificação, assinada pelo Chefe de Estado e referendada

pelo Ministro das Relações Exteriores (no caso do Brasil, a ratificação é referendada pelo

Congresso Nacional). Nesta carta, é feita referência ao tratado assinado com a certificação de

que o Estado o cumprirá.

Nos tratados bilaterais, há a troca de ratificações entre os Estados que, via

de regra, se dá no Ministério das Relações Exteriores de um dos Estados, ou na capital de um

terceiro Estado escolhido pelos signatários, para este fim.

Quando se trata de tratados multilaterais, segue-se o procedimento de

depósito das ratificações. Todos os documentos são guardados pelo governo de um Estado

pré-determinado que, geralmente, é o governo do Estado em que foi assinado o tratado.

Um dos maiores problemas do direito internacional tem sido equacionar os

problemas referentes a reservas de tratados bilaterais ou multilaterais. Dependendo do tratado,

este pode ser aceito com emendas e/ou reservas. Reserva: o tratado tem que trazer

expressamente que não aceita reserva; senão, entende-se que ele aceita. Emenda: o tratado

deve trazer, expressamente, que aceita a emenda.

Até 1931, a maior parte da doutrina posicionava-se no sentido de que os

tratados só poderiam ser ratificados conforme foram assinados, ou seja, sem reservas. Em

1931, a Assembléia da Liga das Nações permitiu as reservas desde que o texto do tratado

trouxesse tal possibilidade ou que todos os Estados signatários concordassem. Posteriormente,

no artigo 19 da Convenção sobre o Direito dos Tratados, em 1969, ficou estabelecido que

“Um Estado pode, ao assinar, ratificar, aceitar, aprovar um tratado ou a ele aderir, formular

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uma reserva, a não ser que: a) a reserva seja proibida pelo tratado; b) o tratado disponha que

só possam ser formuladas determinadas reservas, entre as quais não se inclui a reserva em

pauta; ou c) nos casos em que sejam previstos nas alíneas a e b a reserva seja incompatível

com o objeto e a finalidade do tratado”35. (MAZZUOLI, 2006).

A promulgação é o ato mediante o qual é atestada a regularidade do

processo legislativo do tratado e a executoriedade do tratado no âmbito interno do Estado. No

Brasil, por exemplo, o Presidente da República, por meio de um decreto, determina a

execução do tratado (sendo o texto publicado no Diário Oficial), o que configura a

promulgação.

Na prática, a publicação do tratado é o que, realmente, determina a sua

obrigatoriedade no plano jurídico interno, pois, a partir do momento em que todos os

nacionais podem ter acesso ao conteúdo do tratado aprovado, este se torna obrigatório, dentro

dos limites do Estado. No plano internacional, a norma já é obrigatória antes da sua

publicação pelos Estados partes.

Finalmente, de acordo com o artigo 102 da Carta das Nações Unidas, todo

tratado deve ser registrado no Secretariado e publicado por este mesmo órgão, para que possa

ser invocado pelo Estado perante as Nações Unidas. O próprio depósito ou troca de ratificação

pelo Estado o autoriza a registrar o tratado. Apesar de o artigo ainda prever que só os países

membros da ONU podem registrar tratados, na prática, os países não membros também têm

essa possibilidade. Os tratados não registrados não podem ser invocados perante os órgãos das

Nações Unidas; no entanto, não deixam de ser obrigatórios para as partes.

35 Ibid.

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VI.7 PROCEDIMENTO DE TATIFICAÇÃO DOS TRATADOS NO BRASIL

No Brasil, primeiramente, o Chefe de Estado assina o tratado e o envia ao

Ministério das Relações Exteriores. O Ministério, por sua vez, envia o tratado ao Congresso

Nacional (artigo 49, I, CF), que o encaminha à CCJ – Comissão de Constituição e Justiça.

Essa Comissão verifica a constitucionalidade do tratado e emite um parecer de natureza

opinativa. Se for aprovado um tratado inconstitucional, caberá ao Supremo Tribunal Federal

julgar a questão (artigo 102, III, ‘b’, CF) e declarar a invalidade do tratado.

Após passar pela CCJ, o tratado volta para o Congresso Nacional.

Dependendo do tratado, este pode ser aceito com emendas e/ou reservas.

Se o Congresso Nacional aceitar o tratado, ele volta para o Chefe de Estado

com um decreto legislativo. Se o Congresso rejeitar, internamente, o tratado não gera

qualquer efeito. No âmbito internacional, gera responsabilidade para o Estado, pois o tratado

já foi assinado.

Se o Chefe de Estado sancionar o tratado, é elaborado um decreto executivo,

ratificando-o. Se ele vetar, o tratado volta para o Congresso Nacional. Neste caso, o

Congresso pode derrubar o veto do Chefe de Estado, transformando o tratado em uma lei

ordinária, sem validade no âmbito internacional.

Exceção: artigo 5o, parágrafo 2o da Constituição Federal. Os tratados, que

vêm apenas ampliar os direitos humanos que já são assegurados pela Constituição, não

precisam de ratificação do Congresso Nacional. Já entram direto no ordenamento jurídico

interno do Estado e têm patamar constitucional!

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VI.8 HIERARQUIA DOS TRATADOS

No âmbito jurídico interno do Estado signatário, o tratado, depois de

ratificado pelo Presidente da República, torna-se uma lei supra legal, no entanto,

infraconstitucional. As exceções são os tratados de direitos humanos, que possuem nível

constitucional.

VI.9 VIGÊNCIA DOS TRATADOS

Vigência é a mensuração do tempo durante o qual o tratado será aplicável.

Para que um tratado passe a vigir, em relação a um Estado, é preciso que, primeiramente, o

Estado o ratifique. Cada Estado especificará o seu tempo de vacacio e de vigência.

Quanto à questão da retroatividade, via de regra, os tratados não retroagem.

São exceções os tratados sobre direitos humanos.

VI.10 Efeitos dos Tratados

• Efeitos diretos: são os efeitos gerados para as partes.

• Efeitos reflexos: são os efeitos gerados a terceiros.

Via de regra, os tratados somente produzem efeitos em relação às partes,

conforme dispõe o preceito pacta tertiis nec nocent nec prosunt – “os tratados não beneficiam

nem prejudicam terceiros”.

Quando um Estado se compromete a cumprir com o disposto em um tratado

internacional, o Poder Judiciário deve aplicá-lo, - o Executivo deve cumpri-lo, - e, o

Legislativo, deve criar as leis que se fizerem necessárias à sua execução, se tais leis ainda não

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existirem no ordenamento jurídico interno do Estado. Desta forma, é por meio da

incorporação do tratado pelo Estado que os indivíduos são beneficiados e todo o Estado é

responsabilizado, caso haja o seu descumprimento.

Pelo princípio da relatividade, portanto, um tratado não cria nem obrigações

nem direitos para um terceiro Estado sem o seu consentimento. Esse princípio é,

expressamente, consagrado pela Convenção de Viena, em seu artigo 34.

Contudo, há a possibilidade de um tratado produzir efeitos em relação a

terceiro Estado, desde que haja o consentimento do mesmo. Até mesmo para ser outorgado

um direito a um terceiro Estado, é preciso que o mesmo concorde.

É importante notar, também, que, via de regra, quando um tratado é

firmado, há conseqüências para outros Estados. O tratado pode não interferir nos direitos e

deveres dos outros Estados; mas, dificilmente, não terá influência sobre os interesses dos

mesmos, sejam estes políticos, sociais ou culturais.

VI.11 OBRIGATORIEDADE DOS TRATADOS

O fundamento da obrigatoriedade dos tratados está na norma pacta sunt

servanda, que é um antigo princípio incorporado pelo direito internacional. As normas são

feitas para serem cumpridas, assim como os tratados, cuja revogação só pode ser feita, via de

regra, mediante um procedimento semelhante ao de sua criação, como ocorre com as leis, ou

por um modo previsto no próprio tratado ou estabelecido pelo direito internacional.

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VI.12 INTERPRETAÇÃO DOS TRATADOS

Os tratados podem ser interpretados pelas próprias partes (auto-

interpretação) ou por órgãos jurisdicionais (geralmente, pela CIJ – Corte Internacional de

Justiça).

O princípio geral para a interpretação dos tratados é o princípio da boa-fé,

consagrado pelas Convenções de 1969 e de 1986, nos artigos 31 a 33. O artigo 31, de ambas

as Convenções, dispõe em seu texto que “um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo

o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objeto e

finalidade”36.

Assim como ocorre com qualquer documento, o tratado deve ser

interpretado como um todo, em consonância com a realidade à qual serve a sua celebração. É

comum que as partes escolham um idioma diferente dos adotados pelos seus Estados para

evitar que aos termos do tratado sejam dados sentidos diversos dissonantes, conforme as

traduções realizadas.

36 Ibid.

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VII. DIREITOS HUMANOS

VII.1 NOÇÃO GERAL DE DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos podem ser entendidos como o conjunto de direitos

destinados à proteção da dignidade do ser humano, sob todas as formas.

Alguns defendem o posicionamento de que os direitos humanos são

inerentes ao ser humano; outros, entendem os direitos humanos como sendo o resultado de

incansáveis lutas políticas, que acabaram resultando em conquistas na área jurídica e social.

Seja como for, os direitos humanos não podem ser vistos como meras concessões do Estado;

tampouco, como uma simples expressão da criatividade do Legislativo.

Cumpre citar o entendimento de Wagner Rocha D’Angelis37 acerca do tema:

[...] Há de se ter o cuidado, pois, de refletir os direitos humanos como um tema global, significando – no plano das idéias – a adesão a um campo comum de valores que definam a humanidade, a dignidade de todo o (sic) ser humano. Observo que entender os direitos humanos como tema global não representa priorizar determinados interesses, por mais nobres ou internacionais que sejam, mas situar em primeiro plano a abrangência – global – de valores éticos enraizados nas noções de justiça e de igualdade38. (RIBEIRO; MAZZUOLI, 2004, p. 402)

Pode-se falar em direitos humanos como um conjunto de direitos e garantias

fundamentais, pertencente a todos os seres humanos, exigíveis tanto internamente, quanto no

âmbito internacional. Eles são indispensáveis para que uma pessoa tenha o mínimo da

dignidade de que necessita para viver e desenvolver suas capacidades, de maneira plena.

Os direitos humanos representam uma somatória de valores que englobam

todo ser humano, respeitando a individualidade de cada um, independentemente do tempo e

37 D´ANGELIS, Wagner Rocha. As raízes dos direitos humanos e a cidadania hoje. 38 In: RIBEIRO, Maria de Fátima; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (coords.). Direito internacional dos direitos humanos: estudos em homenagem à Professora Flávia Piovesan. Curitiba: Juruá, 2004, p. 402

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do espaço, bem como os princípios gerais da sociedade internacional, porque cada pessoa é

um universo e ao mesmo tempo, parte de um todo indissociável. Assim leciona Wagner

Rocha D’Angelis, ao mencionar que os direitos humanos:

[...] implicam a somatória de fatores e valores que, sendo direito de cada um e de todos, possibilitem a realização integral de todos os seres humanos em qualquer tempo e lugar. Afinal, toda a (sic) pessoa humana deve se perceber como um patrimônio único da humanidade, conquanto jamais dissociado da espécie toda, particularmente dos que integram a sua realidade circundante (comunidade)39.

VII.2 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos formam uma categoria jurídica, pois possuem as

mesmas características básicas, são inatos, históricos, universais, relativos, concorrentes e

irrenunciáveis.

São inatos, porque são inerentes à própria natureza do ser humano. Apesar

da importância que tem a positivação dos direitos humanos, estes não dependem da existência

da norma jurídica, pois nascem junto com o ser humano.

Os direitos humanos têm caráter histórico. Tiveram o início de sua

abordagem no período do Cristianismo, em que o homem passou a ser visto sob a ótica da

igualdade, da solidariedade, quando o mundo conheceu novos valores, até então não adotados

pelo Direito.

Depois do auge do período do Cristianismo, a discussão sobre os direitos

humanos ficou esvaziada, voltando à tona posteriormente, com as declarações de direitos

humanos, que marcaram a história do Direito. A título de exemplo, convém citar a Magna

Charta Libertatum, de 1215; a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 1776; a

39 Ibid.

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Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; e a Declaração Universal de

Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas, em 1948.

Atualmente, continuam crescendo as preocupações acerca da dignidade da

pessoa humana e da forma como alcançar a proteção desta dignidade, em todas as suas

dimensões. A história dos direitos humanos tem se tornado, cada vez mais, viva, pois cria-se

uma realidade em que os direitos não são mais limitados por fronteiras, têm alçado vôos, cada

vez mais, distantes, levando a uma universalidade dos ideais de dignidade inerentes a todo ser

humano.

A universalidade dos direitos humanos é um fato óbvio, pois caso não fosse,

o próprio princípio da igualdade estaria comprometido. Os direitos humanos são destinados a

todos os seres humanos, sem exceção, sendo até difícil imaginar direitos humanos destinados

a apenas uma classe de pessoas, distintas pela raça, cultura, poder sócio-econômico, etc. É

importante ressaltar que os direitos humanos pertencem a todas as pessoas, em qualquer lugar

e a qualquer tempo. Estes direitos transcendem qualquer questão de relativismo cultural ou de

soberania, sendo que não podem ser violados sob a justificativa de um destes fatores.

A limitabilidade se explica pelo fato de os direitos humanos não serem

absolutos, podendo chocar-se quando um indivíduo, no exercício de seu direito, invadir o

espaço de outro, que, também, se encontra amparado por um direito fundamental.

Outra característica dos direitos humanos é, como já foi mencionado, a

concorrência, o que significa que os direitos podem ser acumulados. Todo ser humano

acumula uma série de direitos fundamentais, previstos na Constituição do Estado ao qual

pertence, bem como, nos tratados internacionais.

Ainda, os direitos humanos são irrenunciáveis. Ninguém pode dispor das

garantias fundamentais que lhe protegem ou transferi-las a qualquer título a terceiros. Há

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casos em que uma pessoa pode deixar de exercer um direito por um determinado período de

tempo, como por exemplo, uma modelo fotográfica que permite a utilização temporária de sua

imagem, mas nunca renunciar ao mesmo. Ninguém possui, tampouco, o direito de violar,

legislar em oposição ou estabelecer um prazo prescricional para os direitos humanos.

Finalmente, todo ser humano precisa concentrar, no rol de seus direitos,

todos os direitos fundamentais à formação e manutenção de uma vida digna. O passar dos

tempos e as mudanças sofridas pela realidade histórica, social e cultural em que o ser humano

vive, exigem cada vez mais, novos direitos, assim como a concretização daqueles que já se

encontram positivados nos planos jurídicos internos e internacional (por isso, os direitos

humanos são inesgotáveis).

VII.3 AS GERAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS

Para, realmente, se entender o que são os direitos humanos e o que eles

significam para a humanidade, é necessário trilhar a caminhada de suas conquistas e de seus

ideais através da História.

Muitos autores falam sobre as gerações dos direitos humanos, que seriam

uma representação da evolução dos mesmos. A Primeira Geração dos Direitos Humanos teve

seu auge, no século XVIII, quando houve a positivação dos direitos civis e políticos, sendo o

norteador principal dos ordenamentos jurídicos o princípio da liberdade.

A Segunda Geração dos Direitos Humanos retrata o período de conquista

dos direitos sociais e econômicos, na época da Revolução Industrial (séculos XIX e XX),

quando o princípio da igualdade tornou-se o foco do Direito.

Posteriormente, emergiram os direitos dos povos, delineados pelo princípio

da solidariedade internacional. A partir da segunda metade do século XX, esta Terceira

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Geração de Direitos sobressaiu-se, introduzindo no contexto internacional uma série de

princípios como o da não intervenção, da defesa da paz, da solução pacífica de controvérsias,

etc.

Atualmente, com os avanços do século XXI, já se pode falar numa Quarta

Geração de Direitos Humanos, fundada no princípio da qualidade de vida, o que envolve

direito a um meio ambiente saudável, ao desenvolvimento sustentável, à participação na

política, etc.

Cumpre citar o esclarecimento que a renomada doutora Flávia Piovesan faz

acerca do tema, em dissertação sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos:

[...] Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual os direitos humanos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente, inter-relacionada e indivisível. Assim, partindo-se do critério metodológico que classifica os direitos humanos em gerações, adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia da sucessão “geracional” de direitos, na medida em que se acolhe a idéia de expansão, cumulação e fortalecimento dos diretos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação. Logo, apresentando os direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o direito à liberdade, quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito à igualdade, quando não assegurada a liberdade.40 (PIOVESAN, 2003, p. 36).

VII.4 RAÍZES OU FONTES DOS DIREITOS HUMANOS

Primeiramente, cumpre esclarecer que os direitos humanos não dependem

de leis, eles são intrínsecos à natureza humana, nascem com o homem e estão acima de

imposições legais.

40 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. atual. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 36

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No período da Antigüidade, até a Idade Média, não era admitida a idéia de

direitos individuais oponíveis ao Estado. O homem não tinha qualquer valor fora da

sociedade, não era visto com um indivíduo que possuísse direitos subjetivos. Mas, como os

direitos humanos são inerentes à pessoa, a crença em regras aplicáveis a todos, tanto a súditos

quanto a governantes, esteve sempre presente na evolução da humanidade e inevitável tornou-

se a manifestação constante desses direitos.

Desde o Código de Hammurabi (entre os séculos XXI a XVIII a.C), os

direitos humanos já são consagrados, mesmo que inconscientemente, pois não existe

civilização sem estes direitos. O antigo Código previa proteção às viúvas, aos órfãos e aos

mais fracos, bem como estipulava uma remuneração básica para as várias classes de

trabalhadores, o que fez com que surgisse a idéias do que, hoje, se conhece como salário

mínimo.

A civilização egéia – povos que viviam em locais próximos ao mar Egeu – é

considerada a mais antiga da Europa (3000 a 1100 a. C). Conforme indicam os dados

históricos, estes povos já conheciam o princípio da igualdade, pois as mulheres eram livres,

inclusive para trabalharem em atividades públicas, e não havia escravidão. A liberdade e a

igualdade já eram noções de direitos de grande respaldo, à época.

Na Grécia Antiga, por volta do século V a. C, o homem passou a ter maior

liberdade no âmbito da política, pois todos podiam participar das discussões que envolviam a

polis. Assim, haviam Assembléias Populares, tribunais populares, e, até mesmo, a

participação do povo na nomeação e supervisão dos magistrados.

Em Roma, no decorrer dos séculos V a III a. C, a plebe adquiriu os mesmos

direitos que os patrícios, podendo ingressar em colégios sacerdotais e candidatar-se a cargos

públicos. Apesar dos avanços que houveram até o final do império greco-romano, o homem

ainda era visto como parte de um todo, como cidadão dentro de um Estado, sendo que não

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tinha sido desenvolvida, ainda, a idéia de direitos que resguardassem o valor do homem como

ser humano único em sua essência.

Foi com o Cristianismo que os ideais consagrados pelos direitos humanos

deram um verdadeiro salto. Os princípios de fraternidade, solidariedade, igualdade e amor ao

próximo elevaram a mentalidade do homem a uma dimensão superior. Deus deixou de ser

algo inalcançável e passou a ser Aquele que se preocupa com todos, indistintamente, sem

qualquer preferência por raça, Estado, família ou cor. Com o Cristianismo o ser humano,

criado à imagem e semelhança de Deus, passou a ser visto, em sua individualidade como um

universo de valores.

VII.5 A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E SEU ALCANCE INTERNACIONAL

O Direito é uma ciência em constante evolução. Conforme evolui a

sociedade, mudam, também, as normas que a regem, pois as necessidades do homem se

tornam cada vez mais, complexas e abrangentes. Os direitos humanos, apesar de protegerem

as necessidades inerentes a todo ser humano, nem sempre tiveram o teor e o alcance que

possuem, hoje. A legislação atual acerca dos direitos humanos é resultado de uma série de

fatores sociais, culturais e políticos que se desenrolaram no caminhar da história e continuam

buscando o aperfeiçoamento da “máquina jurídica”, responsável pelo funcionamento de todo

o sistema de proteção a esses direitos.

O excesso de poder tem, sempre, como conseqüência a violação de

liberdades. Pode-se dizer que foi essa a causa principal das primeiras declarações de direitos

humanos. No período das monarquias absolutistas, o abuso do poder real levou os cidadãos a

reivindicarem seus direitos, o que deu um grande impulso inicial ao desenvolvimento dos

direitos humanos.

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O crescimento econômico, a revolução industrial, por exemplo, também

foram importantes para que o homem se conscientizasse acerca dos direitos mínimos

necessários para que se tenha uma vida digna. Os direitos trabalhistas e os direitos da mulher,

dentre outros, passaram a ganhar importância, por adentrarem o campo de abrangência dos

direitos humanos.

Desde a época do Código de Hammurabi, da Lei das Doze Tábuas e do

Alcorão, o homem já buscava o fortalecimento de seus direitos, o que fica evidente, a partir

do estudo de regras que serviam para a proteção do mais fraco dentro da sociedade.

Longo foi o caminho percorrido para que os direitos humanos fossem

reconhecidos, e foi no período iluminista que esses direitos ganharam alcance universal, o que

se tornou oficial com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 27 de

agosto de 1789. Antes disso, vários outros documentos existiram que consagravam os direitos

humanos; no entanto, todos estavam restritos a um território nacional.

Cumpre, também, mencionar a Declaração dos Direitos do Bom Estado da

Virgínia, de 1776, que já estabelecia em seu artigo 1o: “Todos os homens nascem igualmente

livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais, dos quais não podem, por

nenhum contrato, ser privados nem despojados na posteridade”41. (MAZZUOLI, 2006)

Em 1791, o documento estadunidense Bill of Rights introduziu os dez

primeiros princípios da Constituição dos Estados Unidos da América, sendo que, a partir de

então, foi iniciado o processo de constitucionalização dos direitos humanos naquele Estado.

41 MAZZUOLI , Valério de Oliveira (Organizador). Coletânea de Direito Internacional. 4. ed. atual. São Paulo: RT, 2006.

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A luta pelos direitos humanos esteve sempre presente na história, com maior

ou menor intensidade e, conforme já mencionado, a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão foi o primeiro documento de alcance universal, de proteção dos direitos humanos. É

inegável, no entanto, que a Segunda Guerra Mundial foi a verdadeira alavanca no processo de

internacionalização dos direitos humanos, pois, nesse período, vários Estados reuniram-se, a

fim de criarem documentos que impedissem, doravante, as atrocidades contra o ser humano.

Em 1945, por exemplo, vinte e um países reuniram-se, em Chapultepec

(México), para a elaboração de uma carta em defesa dos direitos humanos. A consolidação do

processo de internacionalização dos direitos humanos se deu, a partir desta iniciativa, que

resultou na assinatura da Carta das Nações Unidas, em 26 de junho de 1945. A Carta das

Nações Unidas elevou os direitos humanos a um patamar de destaque, transformando a

proteção dos mesmos em uma das principais finalidades da ONU.

A fim de assegurar a proteção dos valores resguardados pela Carta de 1945,

foi aprovada, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem consagrou uma série de

princípios que deveriam ser seguidos por todos os povos e possibilitou a todo indivíduo a

reivindicação de seus direitos perante qualquer Estado. De acordo com o texto do artigo

XXVIII, “toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e

liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”. Ainda, o

artigo XXX estabelece que:

[...] nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.42 (MAZZUOLI, 2006)

42 Ibid.

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A última Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que ocorreu em

Viena, em 1993, consagrou as características acima mencionadas, dispondo, no artigo 5o da

Declaração e Programa de Ação de Viena que:

[...] Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.43 (MAZZUOLI, 2006)

Interessante notar que os direitos humanos, apesar de serem objeto da

jurisdição interna de cada Estado, têm encontrado no âmbito internacional o grande palco para

as suas atuações. Pensar e repensar os direitos humanos é prática usual dos grandes eventos

internacionais. A maior dificuldade no que diz respeito a este mérito, hoje, está em definir

como criar meios de garantir esses valores, meios de “garantir as garantias” fundamentais,

tornando o direito efetivo, exeqüível.

VII.6 UNIVERSALISMO OU RELATIVISMO DOS DIREITOS HUMANOS

O caráter universal ou relativo dos direitos humanos é tema de grandes

controvérsias, no meio jurídico. Até hoje, não existe consenso e, dificilmente, um dia existirá,

no que tange ao entendimento de os direitos humanos serem os mesmos no mundo todo;

serem diferentes conforme a jurisdição interna de cada Estado; ou serem os mesmos, no

mundo todo, no entanto, com valorações diferentes.

É fato que a natureza humana é comum a todos os indivíduos. Os direitos

humanos, como o próprio nome já diz, são inerentes a todos os seres humanos, são universais.

43 Ibid.

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Partindo deste ponto de vista, a doutrina universalista tem como fundamento principal o

jusnaturalismo. De acordo com essa doutrina, o direito natural determina a existência de uma

série de direitos inerentes a todo ser humano, além de servir como parâmetro, standard

mínimo, que deve ser tido como referência na construção do direito humanístico interno e

internacional.

Assim, os universalistas defendem o posicionamento de que existe um

conjunto mínimo de direitos que todo ser humano possui, independentemente do Estado,

grupo social, econômico, cultural, étnico ou profissional ao qual pertence. Esse conjunto

mínimo de direitos tem como escopo principal assegurar, igualmente, em todos os Estados, a

dignidade da pessoa humana.

Importantíssimo passo para a universalização dos direitos humanos foi a

Declaração de 1948. A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabeleceu que a

humanidade partilha alguns valores comuns. Assim, comenta Noberto Bobbio44:

[...] podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens. (BOBBIO, 1992, p. 26-28).

Cumpre esclarecer, no entanto, que o caráter universal dos direitos humanos

não implica a impossibilidade de relativização da forma de aplicação destes direitos. O que

não pode mudar é a essência do Direito, o valor maior a ser protegido pela norma. Não há

dúvidas de que o mais coerente é que haja diálogo entre as culturas. Este é o primeiro passo

para a construção de um universalismo de direitos confluentes, e não conflitantes, como pode

acontecer quando culturas diferentes são postas sob uma mesma régua axiológica.

44 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 26-28

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Sobre o tema, leciona Paulo Bonavides45:

[...] a nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da fraternidade.

Continua o mestre:

[...] A nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele País, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela universalidade. (BONAVIDES, 1999).

A corrente que defende o caráter relativista dos direitos humanos, por sua

vez, entende que tais direitos estão, estritamente, relacionados ao sistema político, econômico,

social e cultural vigente numa determinada sociedade. De acordo com esta corrente, a

legislação interna e os costumes de cada Estado, refletindo as peculiaridades culturais do

contexto em que se inserem, devem ser os únicos instrumentos válidos para a defesa dos

direitos fundamentais. Não haveria, assim, a possibilidade de uma legislação internacional de

proteção aos direitos humanos se aplicar a todos, indistintamente, visto que, assim, estar-se-

iam tomando como modelo universal os padrões culturais de apenas algumas sociedades, em

desrespeito aos Estados que com esse padrão não se coadunassem.

Para os relativistas, cada Estado pode ter um discurso diferente acerca dos

direitos fundamentais, mecanismos próprios de proteção destes direitos e uma jurisdição auto-

suficiente. Assim, a intervenção do direito internacional no direito interno seria não apenas

desnecessária, mas, também, inadequada para prevenir e punir eventuais condutas derivadas

de um contexto social, econômico e cultural específico.

45 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999

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Ainda, os relativistas acreditam que a imposição de valores externos sobre

os costumes locais ocasiona uma rejeição natural da população a esses valores, o que dificulta

ainda mais o processo de universalização dos direitos. As principais expressões do relativismo

cultural em relação aos direitos humanos emergem da África, da China e do Islão.

Apesar de todas as peculiaridades culturais que ainda existem no mundo, é

fato que o processo de globalização tem aproximado os povos, padronizado alguns valores e

interligado as culturas. Há, hodiernamente, uma troca de experiências entre as mais distantes

nações. A informação alcança a todos e o que distingue o “certo” do “errado” já não é mais

um critério tão variável.

Pertinente se revela a afirmativa da ilustre professora Flávia Piovesan46 de

que:

[...] o debate entre os universalistas e os relativistas culturais retoma o velho dilema sobre o alcance das normas de direitos humanos: as normas de direitos humanos podem ter um sentido universal ou são culturalmente relativas? Esta disputa alcança novo vigor em face do movimento internacional dos direitos humanos, na medida em que tal movimento flexibiliza as noções de soberania nacional e jurisdição doméstica, ao consagrar um parâmetro internacional mínimo, relativo à proteção dos direitos humanos, aos quais os Estados devem se conformar. (PIOVESAN, 1966, p. 78).

Um dos fatores que move o Direito Internacional dos Direitos Humanos é a

expectativa de que as culturas predominantes respeitem as diversidades culturais na aplicação

do Direito e, ao mesmo tempo, que as minorias sejam tolerantes ao ideal de proteção dos

direitos humanos. Só desta forma se alcançará uma legislação efetiva que obtenha a aceitação

de todos os Estados, estabelecendo como fator comum a todos eles a consciência da

necessidade de se protegerem direitos inerentes ao ser humano.

46 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5. ed., São Paulo, Max Limonad, 1966, p. 78

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VIII. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

VIII.1 O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Os tratados internacionais de direitos humanos fazem parte de um ramo do

Direito que nasceu recentemente, ou seja, o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este

Direito nasceu, justamente, em resposta ao período de crimes e atrocidades do Nazismo e à

destruição humana ocasionada pela Segunda Guerra Mundial.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos surgiu, portanto, basicamente

em decorrência da Segunda Guerra Mundial, no século XX, e teve como impulso inicial para

o seu desenvolvimento as alarmantes atrocidades cometidas no período de Hitler e a certeza

de que muitas dessas atrocidades poderiam ter sido evitadas, se existisse, no momento, uma

legislação internacional de direitos humanos e formas efetivas de se proteger tais direitos.

O fundamento do Direito Internacional dos Direitos Humanos está na

obrigação que todos os Estados possuem de respeitar os direitos humanos e de protestar, caso

estes estejam sendo violados. A competência para legislar e decidir em matéria de direitos

humanos não pode ser, exclusivamente, da jurisdição interna de cada nação, até porque o

interesse pela causa dos direitos humanos é mundial.

De acordo com a ilustre doutrinadora Flávia Piovesan47:

[...] fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não se deve reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta para duas importantes conseqüências;

1) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos;

47 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. atual. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 32

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isto é, permitem-se formas de monitoramento e responsabilização internacional, quando os direitos humanos forem violados;

2) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito”. (PIOVESAN, 2003, p. 32).

Neste contexto do pós-guerra, em 1945, foi criada a Organização das

Nações Unidas e, em 1948, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que

trouxe uma visão contemporânea dos direitos humanos ao valorizar a universalidade e

indivisibilidade dos mesmos. Tanto a universalidade quanto a indivisibilidade são

características lógicas de direitos que são comuns a todo ser humano. Assim, os direitos

humanos são universais, porque se aplicam a todas as pessoas e são indivisíveis, porque estão,

inevitavelmente, relacionados a outros direitos, como aos direitos sociais e econômicos.

A Declaração Universal de 1948, além de ter delimitado uma nova

concepção dos direitos humanos, foi a alavanca inicial para o desenvolvimento do Direito

Internacional dos Direitos Humanos, pois, a partir dela, surgiram inúmeros tratados

internacionais visando à proteção dos direitos fundamentais.

Atualmente, existem dois sistemas paralelos de proteção dos direitos

humanos: o sistema normativo regional, que visa à internacionalização dos direitos humanos

no âmbito regional, principalmente na África, América e Europa e o sistema global. Este

último é composto por instrumentos de cunho geral, como os Pactos Internacionais de

Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, e por

instrumentos que possuem um cunho específico, como as Convenções internacionais que

visam à proteção dos direitos da mulher, do negro, do idoso, etc.

Os sistemas global e regional são complementares, interagem, e formam o

universo jurídico de proteção aos direitos humanos. Diante de uma violação dos direitos

humanos, cabe ao indivíduo lesado encontrar, dentro dos sistemas existentes, a proteção mais

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adequada ao direito violado e, provavelmente, encontrará garantias dentro do sistema de

alcance global, de alcance regional, referente à matéria geral e específica.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos é um ramo do Direito

Internacional que, indubitavelmente, vem conquistando considerável espaço na ordem jurídica

global, principalmente, após a segunda metade do século XX, momento da História em que a

pessoa humana tem ganhado maior importância como sujeito de Direito Internacional.

Até a Segunda Guerra Mundial, apesar de terem sido elaborados

documentos importantes para o desenvolvimento do estudo dos direitos humanos, não

existiam documentos que, realmente, consagrassem a dignidade e a igualdade, em todas as

suas formas, protegendo o ser humano por meio da consolidação e efetivação de seus direitos.

São exemplos de documentos que contribuíram para o desenvolvimento dos direitos humanos

a Magna Carta, de 1215, da Inglaterra, que coibia os abusos na cobrança de impostos; a

Declaração Inglesa de 1689 (Bill of Rights), que determinou as bases da monarquia

parlamentar, a garantia da liberdade de imprensa e da liberdade individual, a proteção à

propriedade privada e a autonomia de atuação do poder judiciário; a Declaração

estadunidense de Independência, elaborada por Thomas Jefferson; e a Declaração francesa

sobres os direitos do homem e do cidadão, de 1789, que teve inspiração nas discussões

jurídico-filosóficas em torno do jusnaturalismo europeu, e que influenciou os movimentos de

independência dos países da América do Sul. Até então, no entanto, os princípios dos direitos

humanos, acolhidos pelos documentos acima mencionados, apenas tinham validade no âmbito

jurídico interno de cada Estado.

As inúmeras atrocidades do período nazista e da Segunda Guerra Mundial

deixaram claro que os direitos humanos deveriam ter proteção no âmbito internacional. A

idéia de soberania, quando significar absoluta liberdade e autonomia jurídicas para um

Estado, deve ser descartada em prol da valorização do ser humano. Para que haja evolução de

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pensamento e progresso da Humanidade, deve haver, também, a relativização das idéias

primeiro, uma vez que o absolutismo, via de regra, gera injustiças.

Em 1945, a estruturação da Organização das Nações Unidas abriu as portas

à criação de um dos mais importantes, se não o mais importante, documento da história dos

direito humanos, que é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em

dezembro de 1948, em Paris. A Declaração tem um texto bastante amplo que contém, seja de

forma expressa, seja implicitamente, os princípios substanciais dos direitos humanos. A

Declaração não representa, no entanto, uma obrigação para os Estados que a adotaram, visto

que constitui uma resolução da Assembléia da Organização das Nações Unidas.

O sistema global de proteção dos direitos humanos funciona juntamente

com três importantes sistemas regionais, quais sejam, o europeu, o interamericano e o

africano. O sistema europeu se aplica à Comunidade Européia e está fundamentado na

Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais,

adotada em Roma, em 1950. O sistema africano se aplica à Organização da Unidade Africana

e é baseado na Carta Africana do Direito do Homem e dos Povos, assinada em 1981. O

sistema interamericano baseia-se na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem

e na Convenção Americana sobre a Proteção de Direitos Humanos, que entrou em vigor em

1978.

VIII.2 ALGUNS DOS CRIMES COIBIDOS PELA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS

HUMANOS

Um dos primeiros crimes a ser coibido pela legislação internacional foi o

tráfico de escravos. Desde o século XVIII, alguns países da Europa já coibiam o tráfico; no

entanto, a matéria começou a ser tratada, no âmbito internacional, com o Tratado de Paris, de

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1814. A partir de então, várias outras iniciativas marcaram o combate a este crime, como, por

exemplo, o Congresso de Viena, de 1815 e a Conferência de Bruxelas, de 1885, e a

Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Vergonhoso, mas é um fato, que a

escravidão e o tráfico de pessoas, ainda hoje, na sociedade “civilizada” em que vivemos,

constitui um problema a ser tratado pelo direito internacional, bem como pela jurisdição

interna de vários países.

Importante mencionar, também, os crimes contra a humanidade, pois dentre

as violações contra os direitos humanos, estes crimes estão entre os mais graves, o que se

torna visível quando da análise dos tratados internacionais. O Estatuto do Tribunal Penal

Internacional considera crime contra a humanidade qualquer ato praticado como parte de um

ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal

ataque, o que inclui: homicídio; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada

de populações; encarceramento ou privação grave da liberdade física em violação a normas

fundamentais de direito internacional; tortura; estupro; escravidão sexual, prostituição

compulsória, gravidez imposta, esterilização forçada ou outros abusos sexuais graves;

perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, por motivos políticos,

raciais, nacionais, étnicos, culturais ou religiosos; desaparecimento de pessoas; apartheid; e

outras práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde

mental das pessoas.48

Finalmente, um outro crime contra os direitos humanos de grande relevância

para o direito internacional, até pela crueldade que representa, é o genocídio. A palavra

48 http://www.mj.gov.br/sal/tri/estatuto.htm. Acessado em 27/05/2006

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genocídio é a junção de gen, que provém do grego e significa povo, raça, nação, origem; e

cídio, que tem origem no latim e significa morte, assassinato (FERREIRA49, 1999).

O genocídio é, portanto, o crime realizado contra determinados grupos

étnicos, sociais, religiosos ou que possuam outra característica peculiar que os identifique

como um grupo. O exemplo clássico de genocídio são os crimes que foram cometidos pelos

nazistas, que consistiram, basicamente, nos assassinatos em massa dos judeus, visto que Hitler

implantou na nação a idéia de que a raça ariana pura seria a única que deveria subsistir. Foi,

portanto, com o aumento no número de genocídios que, no período da Segunda Guerra

Mundial, iniciaram-se os esforços a fim de coibir tais crimes. Os crimes de genocídio foram

objeto de julgamento no Tribunal de Nuremberg, ocasião em que foram denominados, de

forma genérica, como "crimes contra a humanidade" (Estatuto do Tribunal Penal

Internacional50, 2006).

Em 1948, foi realizada a Convenção para a Repressão e Prevenção do Crime

de Genocídio, documento em que é feita a tipificação do crime e a especificação dos sujeitos

passivos, ativos, e daqueles a quem incumbe o julgamento destes crimes.

VIII.3 SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Quanto aos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos,

cumpre ressaltar que, apesar de os documentos de abrangência global preverem a existência

de garantias que asseguram os direitos humanos, não prevêem a criação de sistemas jurídicos

responsáveis pela efetivação de tais direitos, nem oferecem vias alternativas diretas para que

49 FERREIRA, Aurélio Buarque de Olanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. atual. ampl. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1999. 50 http://www.mj.gov.br/sal/tpi/decreto_capII.htm. Acessado em 26/05/2006

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cada um possa garantir seus direitos mediante ações afirmativas individuais. Segundo

Francisco Rezek51:

[...] somente em dois contextos regionais, o europeu ocidental e o pan-americano, chegaram-se a instituir sistemas de garantia da eficácia das normas substantivas adotadas, no próprio plano regional, sobre os direitos da pessoa humana. A Corte Européia dos Direitos do Homem, sediada em Estrasburgo, cuida de aplicar a Convenção de 1950. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em São José da Costa Rica, garante vigência à Convenção de 1969. Nenhuma das duas é diretamente acessível aos indivíduos52. (NETO; SOUZA; MENEZES; GOMES, 2006)

O direito internacional está enfrentando uma fase em que a positivação das

normas tem se dado satisfatoriamente; contudo, faltam formas de efetivação dos direitos

assegurados, o que demonstra a necessidade da criação de tribunais internacionais efetivos e

permanentes para julgarem os crimes tipificados nos tratados internacionais, em especial, os

crimes que violem os direitos humanos. São órgãos jurisdicionais de grande importância para

o Direito Internacional dos Direitos Humanos: a Corte de Haia, o Tribunal Europeu de

Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e o Tribunal Penal

Internacional, dentre outros.

A Corte Internacional de Justiça, ou Tribunal Internacional de Justiça, foi

fundada em 1946 e constitui o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas.

É sediada em Haia, razão pela qual é comumente denominada Corte de Haia ou Tribunal de

Haia. A principal função deste órgão, em poucas palavras, é julgar as desavenças jurídicas

entre os Estados soberanos e emitir pareceres sobre questões submetidas ao órgão pela

Assembléia Geral e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, ou por agências

51 REZEK, op. cit., p. 226 52 NETO; Rebouças; SOUZA, Edvaldo de; MENEZES, Alencar de Souza; GOMES, Bruno Leonardo. O Direito Internacional dos Direitos Humanos na ordem jurídica internacional. http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1606. Acessado em 17/05/2006

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especializadas autorizadas pela Assembléia da ONU, conformes com a Carta das Nações

Unidas.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos foi criado em 1959, com sede

em Estrasburgo, visando dar eficácia ao estabelecido pela Convenção para a Proteção dos

Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, documento este datado de 1950. Este

Tribunal foi transformado em órgão permanente, no dia primeiro de novembro de 1998, e só

pode efetuar julgamentos contra os Estados que assinaram a Convenção Européia acima

mencionada. Importante notar que o Tribunal não é um órgão da União Européia, mas sim

uma jurisdição do Conselho da Europa, organização internacional composta por 46 Estados

membros e cujos objetivos são promover a democracia, os direitos humanos, a cultura

européia, dentre outros.

Em 1969, a Comissão da Costa Rica deu reconhecimento à Comissão

Interamericana de Direitos Humanos e à Corte Interamericana de Direitos Humanos para que

dessem eficácia ao pactuado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em vigor

desde julho de 1978. A Comissão de Direitos Humanos realiza, basicamente, um trabalho pré-

jurisdicional, analisando as queixas e denúncias feitas e publicando suas conclusões sobre o

caso concreto e/ou submetendo a análise do mérito à Corte Interamericana de Direitos

Humanos.

A Corte Interamericana dos Direitos Humanos, com sede em San José, na

Costa Rica, é uma instituição judiciária autônoma, parte do Sistema Interamericano de

Direitos Humanos. A Corte foi criada por idealização dos Estados membros da Organização

dos Estados Americanos (OEA) e tem função jurisdicional, na medida em que julga os casos

submetidos a ela pelos estados-partes e pela Comissão Interamericana e tem função

consultiva, pois pode emitir pareceres aos Estados membros da Organização dos Estados

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Americanos (OEA) sobre a interpretação da Convenção Americana ou sobre a interpretação

de quaisquer tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos.

O Tribunal Penal Internacional, por sua vez, é o resultado da necessidade

que a Sociedade Internacional passou a sentir com mais clareza, a partir da segunda metade

do século XX. Devido aos horrores do período da Segunda Guerra Mundial, foram

constituídos dois tribunais penais internacionais: o Tribunal Militar Internacional de

Nuremberg, criado pelo Acordo de Londres, em 1945; e o Tribunal Internacional Militar para

o Extremo Oriente, em 1946. Ambos os Tribunais foram criados após o cometimento dos

crimes julgados e aplicaram, retroativamente, leis penais. Em 17 de julho de 1998, foi

adotado, com 120 votos favoráveis, 21 abstenções e apenas 7 votos contrários, o Estatuto de

Roma sobre a criação do Tribunal Penal Internacional. Este Tribunal: "com caráter

permanente e independente, no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com jurisdição sobre

os crimes de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto”

(Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Preâmbulo53, 2006), tem como objetivo

primordial garantir a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade. Em entrevista ao Centro

Preparatório para a Carreira Jurídica _, a ilustre Professora Flávia Piovesan afirmou que:

[...] é um privilégio testemunhar o surgimento de um Tribunal isento como é o Tribunal Penal Internacional. Historicamente, podemos citar alguns exemplos de tentativas de criar mecanismos sancionatórios internacionais, mas que não foram bem sucedidos devido às falhas existentes no processo de concepção. Nurenberg, por exemplo, foi um tribunal de vencedores julgando vencidos _ sem, portanto, qualquer grau de isenção neste julgamento. Outros exemplos foram tribunais Ad Hoc, mas, pela própria temporalidade da formação destes tribunais, havia uma seletividade política na escolha dos magistrados. O Tribunal Penal Internacional é o primeiro que tem amplas possibilidades de dar certo, pelo seu caráter de permanência e pela correção de conceitos _ já que mesmo quem redigiu o estatuto a ele se submete.54 (PIOVSAN, 2006)

53 http://www.mj.gov.br/sal/tpi/estatuto.htm Acessado em 10/05/2006 54 PIOVISAN, Flávia. Entrevista ao JusPodvim – Centro Preparatório para Carreira Jurídica. http://www.juspodivm.com.br/entrevistas/entrevistas_105.html. Acessado em 17/05/2006

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IX. SOBERANIA E TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos, de forma alguma, podem ser confundidos com meros

princípios morais norteadores da criação do Direito. Ao contrário, são normas jurídicas

expressas em inúmeras constituições, bem como em tratados internacionais que podem dispor

sobre um tema geral, ou especificamente sobre estes direitos. Importante lembrar que as

disposições que versam sobre os direitos humanos, em tratados internacionais, geram

obrigações aos Estados signatários, assim como as constituições também geram obrigações

concretas aos Estados em que se aplicam, visto que são o ápice da legislação interna de um

país.

Recentemente, com o fenômeno da globalização, novos desafios têm sido

apresentados aos países em desenvolvimento e, no processo de adaptação destes países à nova

ordem mundial, os direitos humanos têm adquirido posição de destaque. Isso ocorre porque,

quanto mais interação existe entre os Estados, seja de ordem econômica, social ou cultural,

maior a responsabilidade coletiva no que se refere à proteção dos direitos humanos que,

conforme já visto, aplicam-se a todo ser humano, indistintamente.

As reivindicações de ordem humanitária tornam-se, cada vez mais,

presentes no cenário internacional dando início, assim, à caminhada de aproximação dos

povos e universalização dos direitos humanos.

Apesar de a obrigação primária de assegurar os direitos humanos ser do

Estado, a criação de órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos, como o Tribunal

Penal Internacional, a Corte de Haia e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, evidencia a

inevitável mudança do conceito de soberania nos últimos tempos, principalmente, após

meados do século XX.

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É fato que ainda existem inaceitáveis violações aos direitos humanos, que se

dão sob pretextos relacionados à cultura, religião ou costume peculiares de um determinado

povo; no entanto, conforme leciona Mazzuoli55:

[...] os direitos humanos passaram a fundar-se nos pilares da universalidade e indivisibilidade, consagrados pela Declaração universal de 1948 e reiterados pela Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, no ano de 1993. Compreendeu-se, enfim, que o relativismo cultural não pode ser invocado para justificar violações aos direitos humanos internacionalmente consagrados. (MAZZUOLI, 2006)

Dentro deste contexto, em que os direitos humanos adquiriram importância

primordial na ordem internacional, por tratarem de aspectos tão essenciais à vida do ser

humano, cresce, também, a importância dos tratados internacionais de direitos humanos. Tais

tratados devem, não apenas gerar obrigações jurídicas aos Estados signatários, mas, também,

servirem como parâmetro aos demais, visto que representam os ideais comuns a todos os

povos e a principal fonte de formação do direito internacional dos direitos humanos.

Referindo-se aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos,

leciona Flávia Piovesan56:

[...] Registram ainda o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Estes institutos rompem, assim, com a concepção tradicional que concebia o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta em prol da proteção dos direitos humanos. Prenuncia-se o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, restrito ao domínio reservado ao Estado, decorrência de sua soberania, autonomia e liberdade. (PIOVESAN, 1966, p. 55)

55 MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos, cidadania e educação. Uma nova concepção introduzida pela Constituição Federal de 1988. http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2074&p=2. Acessado em 30/05//2006 56 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5. ed., São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 55

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A relação entre soberania e os tratados internacionais de direitos humanos é

de extrema importância, tanto para o direito interno de cada Estado quanto para o direito

internacional e envolve valores que, a princípio, se contrapõem. A soberania que, nas palavras

de Jean Bodin significava o poder absoluto e perpétuo de uma República, hoje, é um poder

que se relativiza diante de interesses maiores como a defesa da causa dos direitos humanos.

Os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, portanto,

transformaram a idéia de soberania nacional absoluta na idéia de uma soberania relativa e

limitada, dentro do contexto internacional, na medida em que os direitos humanos traduzem

valores que independem das fronteiras estatais e que não mais se restringem à jurisdição

interna dos Estados.

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X. CONCLUSÃO

Ficou claro, tendo em vista os estudos realizados na elaboração do presente

trabalho, que apesar de ainda ser objeto de muitas controvérsias, o conceito de soberania já

tem sido adaptado aos parâmetros jurídicos, mesmo tendo-se desenvolvido a partir de uma

visão puramente política.

A soberania, sob o ponto de vista interno, equivale ao poder superior; está

acima de qualquer outro ordenamento dotado de competência para decidir quanto aos

assuntos do Estado. Sob o ponto de vista externo, é expressão de independência e autonomia

dentro do contexto global, pois todos os Estados são, igualmente, soberanos, não havendo um

que se sobreponha a outro. Os Estados, portanto, têm o direito de impor sua vontade dentro

dos limites de seu território e, simultaneamente, têm o dever de respeitar os demais Estados,

na medida em que estes, também são soberanos.

Levando-se em consideração o desenvolvimento histórico do conceito de

soberania, observa-se que este esteve, sempre, atrelado à realidade do período em que se o

estuda. Na época das monarquias absolutistas, o conceito de soberania era absoluto; no

entanto, com o processo de globalização que temos vivido, este mesmo caráter absoluto já há

muito não é mais adequado.

Nos dias de hoje, a interdependência que se estabeleceu entre os Estados e a

conseqüente expansão do direito internacional têm imposto a relativização do conceito de

soberania. A nova visão da soberania traz consigo uma nova visão de Estado e, ainda,

modifica o entendimento do próprio Direito, na sociedade.

Com o desenvolvimento do direito internacional, que teve como alavanca o

período da Segunda Grande Guerra, ficou evidente que para a efetiva construção de uma

ordem jurídica internacional, é preciso abandonar a idéia de soberania absoluta,

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intransmissível, imprescritível, inalienável e indivisível. Este conceito clássico é,

definitivamente, inadequado à realidade atual, em que a soberania não se pode sobrepor aos

interesses da humanidade, defendidos pelos organismos internacionais e assegurados por meio

dos tratados.

Dentre os diversos interesses e valores que devem ser protegidos em prol da

humanidade, destacam-se os direitos humanos que, como já visto, são o conjunto de direitos

destinados à proteção da dignidade do ser humano, sob todas as formas. São direitos inatos,

históricos, universais, relativos, concorrentes e irrenunciáveis.

Apesar de terem uma importância imensurável, os direitos humanos nem

sempre alcançaram a dimensão que lhes foi atribuída nas últimas décadas. A atual legislação

acerca dos direitos humanos, no âmbito internacional, é resultado de guerras e massacres, bem

como resultado do fenômeno da globalização, que transpõe a responsabilidade dos Estados

para além de suas fronteiras. Os direitos humanos, além de encontrarem respaldo na jurisdição

interna de cada Estado têm sido, no âmbito internacional, o foco das discussões, eventos e

ações afirmativas.

A grande importância dos direitos humanos no palco internacional gerou o

surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que tem atuado por meio de uma

série de órgãos jurisdicionais criados com a finalidade de dar execução à legislação vigente,

como a Corte de Haia, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de

Direitos Humanos, e o Tribunal Penal Internacional.

A efetividade do Direito Internacional dos Direitos Humanos depende,

basicamente, da cooperação entre os Estados. Assim, tanto as culturas predominantes devem

respeitar a diversidade cultural das demais na aplicação do direito, quanto as minorias devem

entender o caráter universal dos direitos humanos.

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Finalmente, conclui-se que o processo de globalização contribuiu,

sobremaneira, para a universalização dos direitos humanos, bem como para o surgimento de

uma legislação internacional cada vez mais efetiva, traduzida, via de regra, nos tratados, que

são a principal fonte do direito internacional. Tais tratados, por sua vez, exigem a

relativização do conceito de soberania, que, originalmente, significava um poder absoluto e

ilimitado. Em outras palavras, a soberania deve ser flexível, de forma a coexistir com o ideal

dos direitos humanos, que representam valores maiores, universais, e que servem de padrão

mínimo ao alcance do que se entende por dignidade da pessoa humana.

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