Samizdat 36

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    SAMIZDAT

    36abril

    2013

    ano VI

    ficina

    www.evss.c

    http://samizdat.oficinaeditora.com/http://samizdat.oficinaeditora.com/
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    Edio, Capa e Diagramao

    Henry Alfred Bugalho

    Editor de poesia

    Volmar Camargo Junior

    Autores

    Adriane Dias BuenoAndr Foltran

    Andria PiresBernardo Lins BrandoCinthia KriemlerEdweine LoureiroFabio Guimares BensoussanFabio RamosFelipe CattapanFernanda VierGuilherme CanedoHenry Alfred BugalhoJapone Arijuane

    Joaquim BispoJu BlasinaLucas C. LisboaMaraza LabancaMaria de Ftima SantosRodrigo DomitRui SotaVander VieiraVolmar Camargo JniorWilson Franco

    Textos de:Ryunosuke Akutagawa

    www.revistasamizdat.com

    Imagem da Capa: Watanabe

    Tsuna ghting the demon at the

    Rashomon, Utagawa Kuniyoshi

    ISSN 2281-0668

    SAMIZDAT 36abril de 2013

    Obra Licenciada pela Atribuio-Uso No-Comercial-Vedadaa Criao de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

    Todas as imagens publicadas so de domnio pblico, royaltyfree ou sob licena Creative Commons.

    Os textos publicados so de domnio pblico, com consensoou autorizao prvia dos autores, sob licena Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de fair use da Lei deCopyright dos EUA (107-112).

    As ideias expressas so de inteira responsabilidade deseus autores. A revista adota a ortograa do Novo Acordo

    Ortogrco. A aceitao da reviso proposta depende davontade expressa dos colaboradores.

    El

    Frequentemente me indago sobre quem so nossos leitores,ou at se h algum que, de fato, esteja lendo nossas obras.

    Esta uma questo genuna, pois, quem escreve, anseiapor ser lido. Todavia, alguns dias atrs, encontrei-me, emdiferentes ocasies, com trs autores portugueses que partici-param ou ainda participam da SAMIZDAT Joaquim Bispo,Maria de Ftima Santos e Jos Esprito Santo e z uma

    constatao.Esta oportunidade de estar pessoalmente com eles, auto-res que admiro e que fazem parte da minha trajetria comoescritor, trouxe luz um aspecto que muitas vezes passadespercebido. Os leitores so importantes, anal so o mde toda Literatura, mas a companhia de nossos pares, daque-les escritores com quem podemos trocar ideias e tambmangstias, igualmente fundamental.

    Dialogo a todo instante com os mestres pretritos e pre-sentes e cada grande livro uma lio, mas o contato realcom autores reais, com as mesmas indagaes e anseios queos meus, com os mesmos obstculos a serem superados, com

    as mesmas frustraes e que, assim como eu, alegram-se comas pequenas e sofridas conquistas, insua-me com um poucomais de coragem para seguir adiante.

    No somos rivais, pois a Literatura no uma disputaonde um ganha e os outros perdem. Estamos todos nestemesmo barco e, coletivamente, estamos deixando nossos tmi-dos legados.

    E, um dia, se um de ns atingir o cimo, poderemos estarcertos que no chegamos l sozinhos.

    Henry Alfred Bugalho

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    SumrioPor quE Samizdat? 8

    Henry Alfred Bugalho

    rEComENdaES dE LEiturate s Css Vs, e an eLenes 10

    Volmar Camargo Junior

    o t 13Fabio Bensoussan

    oBra Em LNGua PortuGuESaNfg e Seplve 14

    Hs tgc-m 21

    Joaquim Bispo

    ENSaioan-n 22Joaquim Bispo

    CoNtoa al Cpl 28

    Henry Alfred Bugalho

    mne b engn 32Wilson Franco

    o m 34Guilherme Canedo

    o ven e f s ns e lg 36Rui Sota

    bano e Marfm 38Fernanda Vier

    Csnh e beb 42Andria Pires

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    a Cl 44Maria de Ftima Santos

    aee 48Cinthia Kriemler

    a qn e P 50

    Japone Arijuane

    traduoRash mon 56

    Rynosuke Akutagawa

    N Bse 64Rynosuke Akutagawa

    CrNiCaqn sbe lhs 72

    Lucas C. Lisboa

    PoESiaa V anj 76

    Volmar Camargo Junior

    Hs ol 77Volmar Camargo Junior

    ele se 78Andr Foltran

    o Enees rel 79Fabio Ramos

    Nc 80Bernardo Lins Brando

    ee 81Maraza Labanca

    a B 82Ju Blasina

    tpece, e e nv 84Vander Vieira

    t 85Rodrigo Domit

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    5

    Ves 86Felipe Cattapan

    Flh Fles 87Edweine Loureiro

    mlplene 88

    Adriane Dias Bueno

    LaNamENtoa C Sl, e rfel F. Cvlh 89

    Sg-ns n Fcebk e twe e cpnhe s nves

    revs Samizdat

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    6 SAMIZDAT abril de 2013ficina

    www.ofcinaeditora.com

    O lugar onde

    a boa Literatura fabricada

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    7www.revistasamizdat.com

    A Revista SAMIZDAT conta com a suaparticipao para manter o alto padro das

    publicaes.

    Aceitamos e estimulamos a participaode autores estreantes, pois o nosso objetivo apresentar a maior diversidade possvelde autores, gneros e textos.

    inses p env e bs

    1 - Cada escritor poder inscrever, nos

    respectivos campos, somente 1 (um) tex-to literrio para publicao, de qualquergnero - conto, crnica, poesia, microconto- ou um (1) texto terico, como artigo deteoria literria, resenha de livros, ou entre-vista, alm de tradues de textos literriosem domnio pblico, sob licena CreativeCommons ou com a expressa autorizaodo autor. A temtica livre.

    O autor tambm deve enviar uma brevebiograa na primeira pgina do arquivo.

    2 - O limite mximo para cada textoliterrio de mil (1000) palavras, ou 4pginas em A4, fonte Times ou Arial 12,espaamento 1,5. O envio dos textos noimplica na aceitao automtica, a seleodepender da quantidade de textos envia-dos, da qualidade literria e da disponibi-

    lidade de espao na revista. A reviso dostextos de responsabilidade de seus auto-res. O texto no precisa ser indito.

    3 - Os textos devem ser enviados at odia 31 de julho de 2013 atravs do nossogerenciador de submisses (link abaixo)em um arquivo anexo, em formato .DOC,.DOCX ou .TXT.

    Por favor, aguarde o perodo de um msaps receber a resposta antes de enviar um

    outro texto.

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    No aceitamos mais textos enviados pore-mail.

    4 - Os textos selecionados sero publi-cados na edio 37 da Revista SAMIZDATna segunda quinzena de agosto de 2013, nosite

    www.revistasamizdat.com

    ou podero aparecer no site, caso aedio em .PDF j esteja fechada.

    5 - Os textos sero publicados soblicena Creative Commons Atribuio-Uso

    No-Comercial-Vedada a Criao de ObrasDerivadas e o autor no ser remunerado.O envio de textos implica na aceitao porparte do autor destes termos.

    6 - Os organizadores da SAMIZDAT sereservam o direito de no publicar a revis-ta, caso o nmero de submisses no sejao suciente para o fechamento da edio.

    7 - O no cumprimento dos itens acima

    poder implicar na desqualicao da obraenviada.

    Contamos com a sua participao!

    Atenciosamente,

    Henry Alfred Bugalho

    Editor

    Participe da Revista SAMIZDAT 37

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    incls e Excls

    Nas relaes humanas,sempre h uma dinmica deincluso e excluso.

    O grupo dominante, pelaprpria natureza restritivado poder, costuma excluirou ignorar tudo aquilo queno pertena a seu projeto,ou que esteja contra seusprincpios.

    Em regimes autoritrios,esta excluso muito eviden-te, sob forma de perseguio,censura, exlio. Qualquer umque se interponha no cami-nho dos dirigentes afastadoe ostracizado.

    As razes disto so muitosimples de se compreender:o diferente, o dissidente perigoso, pois apresentaalternativas, s vezes, muitomelhores do que o estabe-lecido. Por isto, necessriosuprimir, esconder, banir.

    A Unio Sovitica nofoi muito diferente de de-mais regimes autocrticos.

    Origina-se como uma formade governo humanitria,igualitria, mas

    logo se converte em uma di-tadura como qualquer outra. a microfsica do poder.

    Em reao, aqueles quese acreditavam como livres-pensadores, que no que-riam, ou no conseguiam,fazer parte da mquinaadministrativa que esti-

    pulava como deveria ser acultura, a informao, a vozdo povo , encontraram naautopublicao clandestinaum meio de expresso.

    Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmentemanuscrevendo, tais autoresrussos disseminavam suasideias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar

    esta cadeia, reproduzindo taisobras e tambm as passandoadiante. Este processo foidesignado "samizdat", quenada mais signica em russodo que "autopublicado", emoposio s publicaes o-ciais do regime sovitico.

    P e S?

    Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,

    distribuo e posso ser preso por causa disto

    Vladimir Bukovsky

    Henry Alfred Bugalho

    [email protected]

    Foto: exemplo de um samizdat. Corte-

    sia do Gulag Museum em Perm-36.

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    E p e S?

    A indstria cultural e omercado literrio faz par-te dela tambm realizaum processo de excluso,baseado no que se julga noter valor de mercado. Inex-plicavelmente, estabeleceu-seque contos, poemas, autoresdesconhecidos no podemser comercializados, que novale a pena investir neles,pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

    A indstria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. No basta qualidade,no basta competncia; sehouver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridadesna hora de ser absorvidopelo mercado.

    E a autopublicao,como em qualquer regimeexcludente, torna-se a viapara produtores culturaisatingirem o pblico.

    Este um processo soli-trio e gradativo. O autorprecisa conquistar leitor aleitor. No h grandes apa-ratos miditicos como TV,

    revistas, jornais onde elepossa divulgar seu trabalho.O nico aspecto que conta o prazer que a obra causa noleitor.

    Enquanto que este um

    trabalho difcil, por outrolado, concede ao criador umaliberdade e uma autonomiatotal: ele dono de sua pala-vra, o responsvel pelo quediz, o culpado por seus erros, quem recebe os louros porseus acertos.

    E, com a internet, os au-tores possuem acesso diretoe imediato a seus leitores. A

    repercusso do que escre-vem (quando h) surge emquesto de minutos.

    A serem obrigados aburlar a indstria cultural,os autores conquistaram algoque jamais conseguiriam deoutro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores,o dilogo capaz de tornar aobra melhor, a rede de conta-tos que, se no to inuen-te quanto a da grande mdia,faz do leitor um colaborador,um co-autor da obra quel. No h sucesso, no h

    grandes tiragens que subs-tituam o prazer de ouvir orespaldo de leitores sinceros,que no esto atrs de gran-des autores populares, queno perseguem ansiosos os10 mais vendidos.

    Os autores que compemeste projeto no fazem partede nenhum movimentoliterrio organizado, noso modernistas, ps-modernistas, vanguardistasou qualquer outra denioque vise rotular e denir aorientao dum grupo. Soapenas escritores interessadosem trocar experincias e

    sosticarem suas escritas. Aqualidade deles no umaorientao de estilo, mas sima heterogeneidade.

    Enm, Samizdat porque ainternet um meio de auto-publicao, mas Samizdatporque tambm um modode contornar um processode excluso e de atingir oobjetivo fundamental da

    escrita: ser lido por algum.

    SAMIZDAT uma revista eletrnicagratuita, escrita, editada e publicada pelanovssima gerao de autores lusfonos.Diariamente so includos novos textos deautores consagrados e de jovens escritoresamadores, entusiastas e prossionais. Contos,crnicas, poemas, resenhas literrias e muitomais.

    www.revistasamizdat.com

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    10 SAMIZDAT abril de 2013

    Assim que acabei de ler, pousei o livronas pernas. Olhei para a capa por umminuto, talvez nem isso. Estava num localpblico, a trabalho (mas numa situaoem que podia pr minha leitura em dia).Depois desse intervalo de silncio, senti-metentado a compartilhar com algum. Escre-vi numa mensagem de celular, para contara uma pessoa querida, que sabia o que euestava lendo.

    Terminei de ler Terra de casas vazias.Muito bem escrito. Um rico universo psi-colgico. Personagens bem construdos que vivem numa espcie de silncio socialdifcil de romper. A narrativa acontecemuito no imaginrio de cada um deles,atravessada pelo peso da solido em que

    se vive, por perdas irrecuperveis, mas poruns os de esperana tambm: a possibi-lidade de existir, viver e cruzar desertos(fsicos, como Braslia, um hospital, Israel;e ntimos, como a separao, a doena, ostraumas e a morte). timo romance. Mes-mo.

    O romance dividido em cinco partes,com uma brevssima sinopse abrindo cadauma.

    A primeira parte deste romance tam-bm intitulada Terra de casas vazias e sepassa em 2009. Nela, encontramos Arthur eTeresa. Eles vivem em Braslia. Tentam lidarcom uma grande perda. No nal, decidemfazer uma viagem.

    Volmar Camargo Junior

    tErra dE CaSaS VaziaS

    e an e Lenes

    recen e Le

    http://www.

    ickr.com/photos/67382043@N06/6153410477/

    Terra de casas vazias

    Andr de LeonesRocco, 2013318 p.R$ 34,50

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    A segunda parte de Terra de casasvazias intitulada Miastenia. Continuamosem Braslia, agora na companhia de Aure-liano e Camila. A pedido de Camila, Aure-liano parou de fumar.

    A terceira parte de Terra de casas vazias

    intitulada Presente contnuo. Ela se passaem meados de 1986. A pequena cidadede Silvnia, no Centro-Oeste do Brasil, ocenrio. Arthur vive ali com seus pais, erecebe a visita de Aureliano.

    A quarta parte de Terra de casas vaziaschama-se A inutilidade. Nela, somos apre-sentados me e s irms de Aureliano eviajamos por So Paulo e Goinia. A mese chama Isadora e as irms, Maria Fernan-da e Marcela. Marcela escritora e, anos

    atrs, esteve internada numa clnica, ondeconheceu Nathalie.

    A quinta e ltima parte de Terra decasas vazias intitulada Mar Morto.Acompanhamos Arthur e Teresa em suaviagem a Israel e reencontramos Marcela eNathalie em Jerusalm. Ao nal, lemos umconto de Marcela, passamos rapidamentepelo apartamento de Aureliano e Camilaem Braslia e em seguida descemos ao MarMorto com Arthur e Teresa, e o romance

    termina.Em algumas entrevistas sobre este e

    outros livros, Andr de Leones diz que esta uma narrativa pretensiosa, diferente desuas outras anteriores, onde apresenta umestilo mais cinematogrco e gil. Desejosode que este fosse mesmo de ao mais len-ta, mergulhou na pesquisa dos romancespsicolgicos, nos clssicos do sculo XIX eXX. Parece-me ter sido feliz nesse ponto.

    A leitura desse romance contrariou mui-

    to positivamente minhas expectativas (demodo geral, no as crio antes do nal daprimeira pgina). Entendi-o, se ainda pos-svel esse tipo de classicao, como um

    romance psicolgico: o tempo difuso, aao em alguns pontos anulada e a imer-so da narrativa se d para o imaginriodos personagens. Longos trechos passaminteiros, ou quase inteiros, na reexo dospersonagens sobre as coisas, os sentimen-tos, a autoimagem, os eventos passados, asinstituies, Deus, os lugares e as impres-ses que eles lhes causam. Esse transbor-damento da imagtica para o espao fsicocria uma bonita construo do ambiente:todos os lugares so desertos. Bonita, e svezes assptica, livre de sentimentalismo.O autor narra a existncia desses desertoscomo uma constatao.

    O o condutor, a histria que aconteceno romance a viagem do casal Arthure Teresa, de Braslia para Jerusalm, seucontexto e suas implicaes, para ambosos personagens. Como se pode supor, huma tristeza longe de ser melanclica, queperpassa suas vidas e suas maneiras dever e perceber o mundo. Tudo motivadopela perda irrecupervel de um lho. Comisso, outras histrias se desdobram paraconhecermos esse contexto, e a transversa-lidade desse sentimento nas vidas de outraspessoas, mais ou menos prximas, dessecasal. Assim tambm sabemos dos seus

    dramas, as suas perdas, os seus desertos,suas viagens, e suas mudanas geogrcasque representam (ser? no z nenhumesforo exegtico nessa leitura) o transcor-rer da vida, dos uxos da vida, e a travessiadesses desertos, e o que se encontra depoisda travessia.

    Terra de casas vazias uma leitura maisque interessante para quem pretende come-ar por algum lugar na literatura em prosabrasileira contempornea. Segue um excer-

    to da primeira parte no para exemplo,mas pode-se perceber muito claramente otom e a forma empregues por Andr deLeones.

    Vl Cg Jn

    V., nativo de Cruz Alta, ativo em Rio Grande, poeta, vendedor de livros, professor no prati-cante, arquivista em formao, pai do Dimitri. Escreveu os blogs Um resto de caf frio e O balcodas artes impuras. Escreve o Verbo.

    http://samizdat.oficinaeditora.com/http://samizdat.oficinaeditora.com/
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    12 SAMIZDAT abril de 2013

    Garoava quando Teresa deixou o pr-dio. A viso atravs das lentes dos culosescuros impossibilitada em questo desegundos, o mundo mais e mais emba-ado e disforme. Esperou at que tudose transformasse em um borro para

    tirar os culos e encaix-los na blusa,junto ao pescoo. No precisava deles, naverdade. O dia to escuro. Em seguida,cobriu a cabea com o capuz, colocou asmos nos bolsos da blusa de moletome saiu pela calada. Uma adolescentecabulando aula. Dia til para os outros,no para mim. Seus passos eram incer-tos, como se tivesse bebido um pouco,e caminhava olhando para o cho, commedo de tropear no pavimento cheio de

    buracos, rachaduras, poas d'gua, entu-lhos. Estava agora a favor do vento, o queno era ruim. O vento investia contra assuas costas e era como se a empurrasse.(Veja: sem raizes aqui.) esquerda, dooutro lado da rua, as rvores do parqueainda se dobravam. Lembravam pessoasse alongando antes de correr num do-mingo ensolarado. Evitou olhar para asrvores. A mesma sensao desoladoraque tivera ao observ-las pela janela da

    sala, de que elas migrariam a qualquermomento. No queria v-las ir embora.Ou talvez elas apenas se dobrassem atquebrar. (Tudo se dobra e vai ao chonum estrondo, de um jeito ou de outro,mais cedo ou mais tarde.) No queria

    v-las se dobrando at quebrar. Noqueria ver nada, mas um trecho menosacidentado da calada permitiu quelevantasse a cabea. A cidade ao redorcom que interditada, ningum vista. Ocenrio desolado de um lme apocalp-tico. O mundo acabou: agora, podemos

    viver. Mas no havia runas. Os prdios,inteiros, se repetindo a distncias regu-lares. Braslia, ora essa. Tudo em Brasliase repete a distncias regulares. Fim domundo, mas um apocalipse higinicoque extinguisse a vida humana, no asedicaes. Todos os apartamentos va-zios, como os de um prdio terminado e

    nunca inaugurado. Silenciosa e tranquilaterra de casas vazias. Por alguma razo,isso lhe pareceu justo. Deus estala osdedos e desaparecem os seres, deixandoos prdios intactos: concreto deiforme.

    Justo e agradvel, sim. Glria a Deus nas

    alturas. Ao Senhor, que matou o prpriolho e tambm o meu. Tambm o meu.Respirou fundo. No se sentiu melhor.Qual a porra do Seu problema? Arran-cando os lhos de suas mes. Disseram aela que no pensasse nisso. No pensassenessas coisas. No pensasse. Todos, semexceo. Mas como no? Quando a falta o que h. Quando tudo se reduz au-sncia. Creio Em Deus Pai Todo-PoderosCriador Do Cu E Da Terra E Em Jesus

    Cristo Seu Filho Ungnito Nosso Senhoretc. Seu Filho Ungnito. Tenta no pensarnisso, disseram. difcil, quase impos-svel. Mas tenta. Para no enlouquecer.Para se recompor. Para seguir em frente.Voc e Arthur. Ele precisa de voc. Queinfantil, ela penso. Tudo, tudo isso. Docomeo ao m, afora e adentro. Pensarou no pensar, seguir em frente ou no.Que besteira, que.

    Tropeou.

    Uma rachadura na calada, o tropeoe ela caindo de joelhos, as duas mos ain-da nos bolsos. Soltou um gemido, a bocamal se abriu. No doeu com a testa nocho por muito pouco. Levantou-se comdiculdade. Dois pequenos rasgos nacala. Os joelhos agora poderiam enxer-gar o que estivesse frente. Dois olhos

    vermelhos bem no meio das pernas. Omoletom preto, quase no se percebia.

    Algumas lgrimas rolaram, poucas. Maispelo susto. Esperou que o tremor daspernas passasse. Ento, seguiu viagem,mais do que nunca concentrada no cho.

    (Qual a porra do Seu problema?)

    ______________

    (Terra das Casas Vazias, PrimeiraParte, captulo 2, pp. 21-23)

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    Ersan ldes levou aos pncaros a m-xima italiana do traduttore, traditore. Emum conto Professional Behaviour pu-blicado em 2011 na antologia Best Europe-an Fiction, organizada por Aleksandar He-mon, o autor turco nos conta a histria deum tradutor que, indignado com os textosem que trabalha, resolve alter-los ao seutalante. Assim, por exemplo, inconformadocom a morte de um personagem apenas

    algumas pginas aps a sua criao, resol-ve mant-lo at o m do romance. A ideiafoi um sucesso os leitores do texto tra-duzido adoraram, e um renomado crticochegou a armar que o texto (a essa altura,do tradutor) ombreava Proust e Beckett... Oautor era mais famoso na Turquia do queem seu pas de origem, certamente porqueo texto era melhorado. O sucesso fez comque nosso tradutor passasse, a cada traba-lho, a ousar ainda mais e, presumivelmen-te, este foi o seu erro. Uma escritora alem,Judith Wohmann, descona do seu mtodo,e escreve um romance, O nmero Pi: um

    romance. Um romance imune ao nossotradutor e isso l existe? , que acabadesmascarado e banido da prosso.

    Uma histria muito interessante, encon-trando o autor uma oportunidade de usara co para discutir a questo da con-abilidade das tradues. Lembro-me, porexemplo, do trabalho de Mamede Mustaf,que acaba de lanar o quarto volume desua verso dO Livro das Mil e Uma Noites,

    traduzido diretamente dos originais. Bemdiferente das pudicas verses inglesas dosculo XIX. E imagino como deve ser tra-duzir Guimares Rosa para outro idioma.Ou como deve ser diferente ler o Ulyssesde Joyce no original.

    Um belo conto, esse de ldes se quepodemos conar na traduo feita do tur-co para o ingls por Idil Aydogan e AmyMarie Spangler.

    Se que voc pode conar no que euacabei de escrever.

    Fabio Bensoussan

    o tu

    Fb BensssnNasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e

    os dois lhos. procurador da Fazenda Nacional e recentemente comeou a escrevercontos e a traduzir textos literrios. Mantm o blog http://bibliotecadofabio.blogspot.com

    recen e Le

    https://si0.twimg.com/prole_

    images/2576789877/504y6hmbvk9ukll70gpa.jpeg

    http://samizdat.oficinaeditora.com/http://samizdat.oficinaeditora.com/
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    14 SAMIZDAT abril de 2013

    Nufg e Seplve

    ob e Lng Pges

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    15www.revistasamizdat.com

    Vou contar-vos a histria dos queembarcaram no galeo grande S. Jooquando saiu da ndia em princpios deFevereiro de 1552.

    Nos portos de Coulo e de Cochimrecebeu o navio a pimenta com que devia

    de regressar a Portugal. No se podedizer que fosse muita: no passava, comefeito, de uma dzia de milhares de quin-tais; mas a carga cou ainda demasiada,pelas outras mercadorias que se embarca-ram. Foi este excesso nos carregamentosuma das grandes causas de tantos naufr-gios. Junte-se o descuido na construodas naus, e, no caso do S. Joo, o pssi-mo estado em que se achavam as velas.

    Manuel de Sousa Seplveda capitane-ava a nau, e trazia a bordo sua mulher etrs lhinhos. Embarcou tambm Panta-leo de S, cunhado de Manuel de Sousa.

    Partiram pois a 3 de Fevereiro, e atra-vessaram o Oceano ndico a leste da ilhade Madagscar, que se chamava ento deS. Loureno. A cinco semanas da parti-da a 11 de Maro encontravam-se avinte e cinco lguas, mais ou menos, dofamoso Cabo da Boa Esperana. Saltou-

    lhes o vento na direo da proa, muits-simo rijo, acompanhado de numerososfuzis. Ao cair da noite, o capito chamouo mestre e o piloto, e perguntou-lhes quedeciso tomar. Meterem de capa com ospapa-gos (responderam eles) e aguarda-rem tempo menos ruim.

    Assim se fez. E, vindo arribando des-ta forma, j a uma centena de lguas doCabo virou-se-lhes o vento para leste-nordeste, mais forte ainda, obrigando-os

    a correr outra vez para sudoeste. O mar,feito do poente at ento, era batidoagora do levante: e tornou-se to grossoe desencontrado que a cada balano queo galeo tomava parecia que as vagas ometeriam no fundo.

    Desta maneira se passaram trs dias.Ao cabo deles, o vento acalmou; o marporm cou to revolto, e tanto e tanto

    trabalhou a nau, que trs machos do lemese perderam ento. O carpinteiro, quandodeu pela perda, comunicou o facto emsegredo ao mestre. Este, como bom ociale bom homem que era, recomendou queo no dissesse ao capito da nau nem a

    nenhuma das pessoas que vinham a bor-do, para evitar o alvoroo e o terror.

    Saltou ao ls-sudoeste outra vez o ven-to, e cresceu com o temporal. Deixou onavio de obedecer ao leme, e ps-se de l;nisto, viram rasgar-se toda a vela grande,e voar pelos ares. Acudiu a gente a to-mar o traquete; no estava ainda tomadaa vela quando se atravessou a nau aosvagalhes enormes, e recebeu a fria detrs mares grossssimos, que arrebenta-

    ram as enxrcias de bombordo. Lanou-se mo de viradores, para com eles sefazerem uns brandais; vendo, porm, queera impossvel, decidiram cortar o mastrogrande. J estavam os homens de macha-do em punho quando, com a fora dovento, estoirou o mastro. Tudo saltou porestibordo: mastro, gvea, aparelho, enxr-cia. Cortaram esta e o aparelho, e tudo decambulhada se foi para o mar.

    Sobre o p do mastro que lhes caraarmaram mastaru com um pedao deantena, e do outro pedao zeram vergaque guarneceram com tiras de velas ve-lhas. Pouco depois, levou-lhes a ventaniaessa mesma vela, e em breve o galeo seatravessou outra vez. Nesta situao seencontravam eles quando se lhes quebrouo leme pelo meio. J a gua do mar inva-dira tudo. O mastro do traquete, com osgrandes balanos de um bordo a outro,

    punha a nau em risco de se lhe abrir ocasco, e pareceu-lhes que o melhor eracort-lo. A isso se dispunham, quandodeu nele um to grande mar que o que-brou logo pelos tamboretes e o lanoutambm para o meio das ondas, com onico trabalho de lhe cortarem a enxr-cia.

    Sem mastros e sem leme, iam impeli-dos na direo da terra, de que estariam

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    distantes umas quinze lguas. Lanaram-se, ento, a construir um leme de fortuna,e de alguma roupa zeram velas, comque se dirigissem a Moambique. Nessescuidados se gastaram dez dias. Acabado oleme, quiseram met-lo; no serviu, po-

    rm, porque no tinha as dimenses quelhe cumpriam. Manuel de Sousa, como jse achassem bem perto da terra, tomou oparecer dos ociais. Aconselharam estesque se deixassem ir, at se encontraremcom dez braas de fundo; que com essefundo ancorasse a nau, para lanarem obatel e desembarcarem. Entretanto arria-ram uma manchua com alguns homens,para irem explorar ao longo da costa eescolher o stio para o desembarque. J

    perto da terra, lanaram o prumo; acha-ram a ainda muito fundo, e deixaram-seir. Regressaram nalmente os da man-chua, informando haver perto uma boapraia; tudo mais era rocha a pique, ondese no via modo de salvao.

    Trataram, pois, de fazer navegar o ga-leo para o stio indicado pelos da man-chua, com os remedos de velas que ha-viam feito. Quando chegaram, lanaramprumo, e viram que tinham fundo de sete

    braas. Largaram uma ncora nesse fundoe guarneceram os aparelhos para arria-rem o batel, com o qual portaram, nadireo da costa, uma segunda ncora.

    J a manchua conduzira para a praiaManuel de Sousa, sua mulher e lhos, euma trintena de pessoas mais (no semse virar e se afogarem algumas), quan-do o vento e o mar cresceram tanto queimpeliram o galeo para cima da terra.

    A tempo em que j esta estava prxima,embarcaram no batel o piloto, o mestree cerca de quarenta dos passageiros. Togrossas rolavam ento as ondas, todavia,que despedaaram o batel de encontro praia, sem no entanto morrer algum.

    Ficaram a bordo umas quinhentaspessoas, das quais duzentos portugue-ses e trezentos escravos. Trataram estesde largar a amarra para se irem assim

    aproximando da terra. A quilha assentou;pouco depois, porm, com a fora domar, partiu-se em dois o galeo. Passadauma hora, esses dois troos zeram-seem quatro. Arrombadas as cobertas, as fa-zendas e as caixas vieram acima, e todos

    os passageiros que se achavam a bordose lanaram aos cepos e caixaria, parautuarem agarrados neles. Quarenta por-tugueses e uns setenta escravos morreramafogados neste lance; os demais consegui-ram chegar a terra, alguns com ferimen-tos de gravidade. Quatro horas depois,todo o galeo desaparecera desfeito. Napraia acumulavam-se os seus destroos,arremessados pela fria dos vagalhes.

    Determinaram os nufragos manter-se

    ali, entrincheirados, at que convalesces-sem os mais doentes. Tinham dado comgua naquele lugar. Passados dez dias,avistaram num outeiro uns sete cafres,que traziam consigo uma vaca presa. Poracenos, convenceram-nos a descerem at praia, e foi o capito falar com eles,acompanhado por quatro dos portugue-ses. Signicaram por sinais que queriamferro. Manuel de Sousa, percebendo-os,mandou que trouxessem meia dzia de

    pregos, e lhos mostrou. Os cafres che-garam-se mais aos nossos, e discutiramo preo da sua vaca. Nisto, apareceramcinco negros em outro outeiro, e comea-ram a bradar aos sete primeiros que nodessem a vaca a troco de pregos. Foram-se ento, levando a vaca, e sem dizerempalavra mais.

    Uns dias ainda se mantiveram ali, commuito cuidado e vigilncia, levantando-

    se o capito para rondar os quartos trse quatro vezes durante a noite, o que erapara ele trabalho grande. Convalescerampor m os doentes e feridos; e, vendotodos j aptos a caminhar, chamou-os aconselho sobre o que deviam fazer.

    Como no cara do galeo com quepudessem construir uma jangada, decidi-ram caminhar ao longo das praias at aorio de Loureno Marques. Estaria este, ao

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    que lhes parecia, a umas cento e oitentalguas daquele local (31 de latitude sul),seguindo sempre a linha da costa; os quel chegaram, porm, andaram mais quetrezentas lguas, pelos muitos rodeiosque foram fazendo para passar os brejos

    e cursos de gua com que iam topandopelo caminho; depois tornavam orlado mar; e nisto gastaram cinco meses emeio.

    Partiram pois a 7 de Julho (1552). Ia navanguarda Manuel de Sousa com oiten-ta homens portugueses e escravos, comAndr Vaz, o piloto, que levava uma ban-deira com um crucixo erguido, e DonaLeonor em cima de um estrado, que eracarregado por alguns escravos; ao centro,o mestre do galeo com a gente do mare as escravas; na retaguarda, Pantaleode S com o resto dos portugueses e dosescravos, que seriam cerca de duzentaspessoas. Orava por quinhentas o total.

    Caminharam assim durante um ms,com muitos trabalhos, com fomes, comsedes horrveis, porque no tiveram decomer por todo este tempo seno aque-

    le arroz que do galeo escapara e umaspoucas frutas que no mato acharam.Haveriam andado uma centena de lguas(que fariam umas trinta, no mais, ao lon-go da costa), e tinham j perdido umasdez pessoas, que se deitaram no cho porno poderem mais. Um lho bastardo deManuel de Sousa, de dez ou doze anos,vinha muito fraco por causa da fome; umescravo o trazia com muito custo, e am-bos se deixaram atrasar. Manuel de Sousa

    no deu por isso, por supor que vinha naretaguarda com seu tio Pantaleo de S.Perguntando por ele, e no o encontran-do, cou como louco. Prometeu que dariaquinhentos cruzados a quem voltasseatrs em busca do lho: no houve po-rm quem lhos aceitasse, por se acharemj boquinha da noite, em que os que sedeixavam atrasar os devoravam os tigrese os lees.

    Por vezes, tinham tido que lutar combandos de cafres. Diogo Dourado, quesempre pelejara como bom cavaleiro,veio a falecer numa dessas brigas. Uma,duas, trs pessoas, cavam por dia na-quelas praias, ou ento metidas por meio

    dos matos, por j no poderem cami-nhar avante. Sabiam que os tigres ou asserpentes as haviam de devorar de a apouco, pois os havia ali em grande nme-ro; apesar disso, deixavam-se cair, porquej no podiam andar mais, e rogavam aosoutros que os encomendassem a Deus.

    Cerca de trs meses, j agora, haviamdecorrido nessa caminhada em buscado rio de Loureno Marques, ou seja daAguada da Boa Paz. Alimentavam-se defrutos, se acaso os achavam, e de os-sos torrados. Quem topava coisa que sepudesse comer e que lhe fosse possveldispensar, vendia-a por preos exagera-dssimos: um quartilho de gua por dezcruzados, e por quinze cruzados umapele de cobra. Comiam mariscos quandopassavam nas praias, ou peixe morto queo mar lanava.

    Ao cabo deste tempo encontraram umcafre, velho senhor de duas aldeias, queos recebeu com alegria e muito bem.Pediu-lhes o reizete que no passassemdali. Deixassem estar na companhia dele,que trataria de os manter o melhor quepudesse.

    Estava o velho em guerra com um reivizinho, pelo qual passariam os portugue-ses se continuassem o caminho na dire-o do norte: e desejava por isso o auxlio

    dos nossos. Armava-lhes que se insis-tissem em prosseguir seriam roubadospor esse rei; de maneira que, em virtudeda ajuda que esperava obter e tambmdo conhecimento que dos portugueses jtinha (por Loureno Marques e AntnioCaldeira, que ali haviam estado de umaoutra vez) trabalhava o cafre quanto po-dia por que se demorassem os nufragosjunto dele.

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    Em se determinar se detiveram seisdias. E, vendo o cafre que Manuel de Sou-sa continuava no desejo de seguir avante,pediu-lhe que o ajudasse, antes disso, comalguns homens da companhia, contra cer-to inimigo que lhes atrs cara. Pediu o

    capito a Pantaleo de S que quisesse irajudar o rei amigo com uns vinte portu-gueses da companhia. Foi ele, com efeito,com os vinte dos nossos e quinhentoscafres. Retrocederam umas seis lguas,tomaram ao inimigo todo o gado, e trou-xeram-no ao arraial onde estava o rei,com Manuel de Sousa e os companheiros.Gastaram nisto meia dzia de dias.

    Tornou Manuel de Sousa a reunir con-selho. Ficou decidido retomarem a mar-

    cha at quele rio de Loureno Marques,que havia trs meses andavam buscando.Ora, a verdade que j l se achavam,sem o saberem. Com efeito, o rio quebuscavam tem trs braos, e Manuel deSousa e seus companheiros encontravam-se na margem do primeiro. Cegou-os,porm, sua m fortuna, e no quiseramseno prosseguir. Pensou por isso ocapito em tomar sete ou oito almadiasque ali viram fechadas com cadeias. O

    rei cafre, todavia, no lhas queria dar,pelo muito desejo de os ter consigo. MasManuel de Sousa tanto instou que o bomdo rei, anal, os deixou servirem-se dasalmadias e transporem-se nelas outramargem, onde se ordenaram para cami-nhar. Passados sobre isto uns cinco dias,chegaram beira do rio do meio, ondesofreram sede por ser salgado. Desejou ocapito mandar buscar gua; ningum oquis, todavia, fazer, a menos de cem cru-zados o caldeiro.

    Ao outro dia, perto da noite, aparece-ram uns negros em trs almadias. Poruma negra do arraial, que comeava aentender o falar dos cafres, zeram saberaos portugueses que viera ali gente pa-recida com eles, tripulantes de um navioque partira j. Perguntou-lhes o capito:quereriam pass-los para a outra banda?

    Os negros disseram que no dia seguinte,se lhes pagassem bem.

    Ao amanhecer, com efeito, vieram oscafres com quatro almadias, e comea-ram o trabalho combinado, pelo preo dealguns pregos.

    No meio do rio, de repente, Manuel deSousa arrancou da espada, e bradou paraos negros:

    Perros, onde me levais?

    Os cafres saltaram gua; e os nossos,abandonados, estiveram em risco de seafundar.

    Dona Leonor e os que iam com elapediram-lhe que no zesse mal aoshomens, que com tal se poderiam per-der. Manuel de Sonsa, at ali, fora pessoaconhecida e admirada por sua brandurae discrio; quem viu aquilo, por issomesmo, facilmente concluiu que perderao tino, pelas muitas viglias e cuidadosque naquela jornada padecera. O certo que dali em diante nunca mais ele pdegovernar a gente como at ali havia feito.Chegado outra banda do rio, queixou-se muito da cabea. Ataram-lha comtoalhas, e ali se tornaram a juntar todos.Decidiam-se a caminhar, quando se apro-ximou um grupo de cafres. Prepararam-se os nossos para a defesa, cuidandoque viriam para os assaltar. Perguntadosquem eram e que buscavam, os portugue-ses responderam que cristos e nufragos,e rogaram-lhes que os guiassem para umrio grande que sabiam situado mais alm;se tinham mantimentos, lhos trouxessem,pois estavam decididos a compr-los. Por

    uma cafra que de Sofala viera lhes disse-ram os negros que os acompanhassem,pois seriam agasalhados pelo seu rei.Deixaram-se pois conduzir por eles, atao local que lhes haviam dito. Uma vezchegados, mandou-lhes comunicar o reidos cafres que no entrassem naquele lu-gar e que se fossem postar ao p de umasrvores, onde lhes enviaria de comer.

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    E, com efeito, receberam mantimentosa troco de uns pregos.

    Assim se detiveram uns cinco dias,parecendo-lhes que poderiam car ali at chegada de uma nau da ndia, segundoo que os negros lhes haviam contado.

    O rei, porm, disse-lhes que no pode-riam continuar juntos, por falta de man-timentos naquela terra. Ficasse o capitocom a mulher e os lhos e alguns doscompanheiros que preferisse; e os outrosse repartissem por aqueles lugares. Istodizia com ruim teno; no se atrevia,porm, a pelejar com os nossos, pelomedo que tinha das espingardas, de quehavia cinco no arraial. Os portuguesesentregaram-se sua fortuna e aceitarama ideia do insidioso cafre, esquecidos doconselho daquele rei amigo que tinhamanteriormente conhecido.

    O negro, assente que os nossos serepartissem, acrescentou que tinha alicapites seus, cada um dos quais se en-carregaria de um grupo determinado deportugueses, a m de os alojar e susten-tar; propunha, porm, que estes abando-nassem as suas armas, porque os cafres,

    com medo delas, os no tomariam en-quanto as tivessem; e que ele as mandariameter numa choa, para lhas restituirquando chegasse o navio.

    Cara o capito, como j sabemos, gra-vemente enfermo, e no respondeu comoo teria feito se se achasse na inteireza doseu juzo. Prometeu por ento que falariacom os seus. Reuniu-os, pois, e disse-lhesque o rio de Loureno Marques era aque-le mesmo em que agora se viam, segundo

    Andr Vaz, o piloto, lhe havia armado;que quem quisesse poderia seguir; ele, po-rm, o no podia fazer, por amor de seuslhos e de sua mulher, que vinha debili-tadssima dos grandes trabalhos, e j semescravas que lhe assistissem. Sua determi-nao, portanto, era acabar com sua fam-lia, quando disso fosse Deus servido. Pe-dia aos que seguissem seu caminho, e queachassem embarcao de portugueses,

    que lhe trouxessem ou mandassem no-vas. Os outros cassem, e, por onde elepassasse, passariam eles. Para sossegar osnegros, todavia, e para no cuidarem queeram ladres, seria necessrio entregaremas armas. Era o que lhes cumpria agora

    fazer. Mandou portanto que as depuses-sem. Assim zeram, contra vontade dealguns deles e muito mais de D. Leonor.Porm, ningum o contradisse seno esta,ainda que de nada lhe aproveitou.

    Exclamou ela ento:

    Entregais as armas? Pois agora medou eu por perdida, com toda a genteque aqui est!

    Tomaram-nas os negros imediatamente,

    e logo as levaram para casa do rei.Mal viram os portugueses desarmados,caram os cafres sobre os desgraados,apartaram-nos, bateram-lhes, roubaram-nos, arrastaram-nos por esses matos, cadaum deles como lhe cabia em sorte. Che-gados s aldeias, j os levavam completa-mente despidos; e com muitas pancadasos lanavam fora.

    A Manuel de Sousa, sua mulher e seuslhos, ao piloto e a umas vinte pessoas,deixaram-nos car na companhia do rei,porque traziam joias, pedrarias, dinheiro.Assaltaram-nos, e de tudo os roubaram.Depois, disse o rei a Manuel de Sousa quese fosse em busca dos demais compa-nheiros, que se no arriscavam a nenhumoutro mal.

    Os dos outros grupos se foram juntan-do. Seriam ao todo umas noventa pessoas.Muito maltratados, despojados de tudo,

    recomearam dessa forma o seu fad-rio. Cada um, no havendo j quem oscomandasse, tomou o caminho que lheapeteceu. E muitos dos desgraados seperderam assim.

    Manuel de Sousa, com sua mulher,os meninos, o piloto, o contramestre, ealguns companheiros que com eles ca-ram, seguiram aquele grupo dos noventanufragos.

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    Ao m de dois dias, porm, tornaramos cafres, deram neles, e despiram-noscompletamente.

    Dona Leonor no se deixou despir,defendendo-se s punhadas e s bofeta-das; e ento decerto acabaria a vida se

    no fossem os rogos de Manuel de Sousa,que lhe dizia que todos nascemos nus eque mostrasse resignao vontade deDeus. Choravam entretanto os dois me-ninos, pedindo comer: e nada havia quelhes pudessem dar

    Vendo-se nua, lanou-se na areia,cobrindo-se toda com os seus cabelos,Fez uma cova e meteu-se nela. Ainda lhederam uma mantilha rota; porm, nuncamais Dona Leonor se ergueu dali.

    Os companheiros, quando a viram as-sim e ao seu bom capito, por piedade evergonha se afastaram um pouco. E disseela ao piloto, com voz fraqussima:

    Bem vedes como estamos, AndrVaz. Percebeis que no podemos passardaqui; aqui acabaremos os nossos peca-dos. Ide vs embora. Fazei por vos salvar,e encomendai-nos a Deus. Se puderdesainda chegar ndia, e a Portugal, em

    algum tempo, contai como foi que aquicmos.

    Eles, vendo que no lhes podiam darsocorro, l se foram errando por essesmatos, em busca de remdio para as suasvidas.

    Ficaram com Manuel de Sousa e comsua mulher o contramestre do galeo ealgumas escravas que os acompanhavam.Destas ltimas se salvaram trs, que con-

    seguiram chegar a Goa. Por elas se soube,mais tarde, como morreu D. Leonor.

    Manuel de Sousa, ainda que maltra-tado do entendimento, no esquecia anecessidade de comer de sua mulher ede seus lhos; e, estando ainda mancode uma ferida que os cafres lhe zeramnuma perna, entrou pelo mato a buscarfrutas. No regresso, achou Dona Leonor

    muito enfraquecida, assim de fome comode chorar. Um dos meninos morrera j,e por suas mos o enterrou na areia. Nodia seguinte tornou ao mato, em busca defruta. Quando voltou, Dona Leonor e omenino estavam mortos. Em redor, chora-

    vam e gritavam umas cinco escravas.Apartando as escravas, foi sentar-se omarido junto dela, com o rosto apoiadonuma mo. Esteve assim a olh-la, pormeia hora, sem chorar nem dizer palavra.Por m ergueu-se, escavou a areia com aajuda das servas, e enterrou-a a ela e aoseu lhinho. Todo esse tempo se conser-vara mudo.

    Depois de enterrada Dona Leonor, esempre calado, embrenhou-se no mato edesapareceu.

    Os que de toda a companhia conse-guiram salvar-se seriam uns oito por-tugueses, catorze escravos e trs dasescravas que acompanhavam a dama nomomento da sua morte. E, andando porali sem nenhuma esperana de chegarema terra de gente crist, sucedeu que umnavio, em que ia um parente de Diogo deMesquita, foi ter quele rio para comprar

    marm. Tendo notcia de portuguesesperdidos, mandou procur-los, resgatan-do-os pelo preo de algumas contas, queseria de dois vintns por cada um. Em-barcaram, pois, e chegaram a Moambi-que a 25 de Maio de 1553.

    (Este relato foi redigido por autor an-nimo, talvez sobre informaes de lva-ro Fernandes, guardio da nave, e pela

    primeira vez impresso cerca de 1554.Cames, em trs estncias do Canto V deOs Lusadas, pe o Adamastor a profeti-zar o acontecimento.)

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    Hs tgc-m

    Joaquim Bispo

    Chama-se Histria Trgico-Martima coleco de relaes e notcias de nau-

    fragios, e successos infelizes, acontecidosaos navegadores portuguezes, reunida porBernardo Gomes de Brito, e publicada emdois tomos em 1735 e 1736. Relatava 12eventos martimos trgicos ocorridos entre1552 e 1602 na rota da ndia. Outros trstomos estariam previstos, mas no saram.Mais tarde, foram compiladas outras 6 rela-es com a mesma tipologia. Algumas dasrelaes, sobretudo as doze originais, foramsendo reimpressas ao logo do tempo, sofren-do geralmente atualizaes ortogrcas, mastambm depuramentos de estrutura.

    Calcula-se que, na segunda metade dosculo XVI, uma em cada quatro naus envia-das ndia naufragou. As causas prendiam-secom o frenesi de ganncia que atravessavaa sociedade portuguesa. No nal do sculocerca de 1/4 (360.000) da populao andavaembarcada ou estava diretamente envolvidanos negcios da navegao. Uma s viagempodia enriquecer qualquer dos membros daexpedio. O prprio aspeto dos navios e a

    sua qualidade nutica alteraram-se, tradu-zindo a presso econmica sobre as tcnicasde construo: O bojo das naus alargou,cresceu a altura; era preciso que a capacida-de aumentasse. A carreira da ndia transfor-mou-se num sorvedouro de vidas e fazendas.

    Se o naufrgio ocorria longe da costa,o mar comera a nau e dela nada mais sesabia. Foi a maior parte dos casos. Mas sealgum grupo de nufragos lograva salvar-se,o relato do sucedido, quase sempre pela mopouco letrada dum sobrevivente, era impres-so em folhetos avulsos, criando um subgne-ro literrio caracterstico, raras vezes cuidadono estilo, mas sempre intenso de realismo.A se apontavam as causas dos naufrgios: alargada fora da poca regulada pelas normas;as excessivas dimenses e a m construodos navios, utilizando madeiras inadequadase calafetagem insuciente; o exagero das car-gas e a sua m distribuio; as tempestades,a decincia das bombas de gua, a carncia

    de velas sobressalentes; a inexperincia, a ig-norncia e a incapacidade dos pilotos; os ata-ques de inimigos. A se encontram os maisextraordinrios relatos das horas dramticasdo naufrgio e da dolorosa peregrinaodos escapados morte, percorrendo lguase lguas atravs de terras desconhecidas e

    inspitas, tragados pelas feras, padecendo fo-mes e sedes, traies e ataques dos indgenas,roubados, escarnecidos, maltratados e sujeitosa mil vexames.

    Ento, quando o ser humano tomba noabismo da desgraa e da misria, despoja-do de todos os seus bens e inexoravelmenteposto frente a frente com a morte, ele mos-tra, em plena transparncia de alma: oorgulho, a arrogncia, a cupidez, o egosmo,a mesquinhez, a barbaridade. Mas tambm

    o altrusmo e a renncia, caldeando com oherosmo a brutalidade frequente.

    A descrio direta, quase jornalstica, doseventos funestos, carregada de realidade,emana uma fora dramtica que a co,tantas vezes salpicada de articialismosliterrios, tem diculdade em atingir. Estesrelatos inclementes constituem o reverso si-nistro/srdido da viso pica/heroica do co-mrcio, da conquista e da navegao perpe-tuados nas Dcadas e nos Lusadas e podeser considerada como uma antiepopeia dos

    Descobrimentos, contribuindo talvez parao sentir nostlgico e fatalista da alma lusa,sensvel no Fado, e que fez dizer a FernandoPessoa: mar salgado, quanto do teu sal solgrimas de Portugal!

    Sites consultados:

    http://purl.pt/191

    http://cvc.instituto-camoes.pt/navega-port/f04.html

    http://www.esas.pt/jaca/docs/HTM.pdf http://www.bocc.ubi.pt/pag/madeira-

    angelica-historia-tragico-maritima.pdf

    www.vidaslusofonas.pt/manuel_sepulve-da.htm

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    22 SAMIZDAT abril de 2013

    Timandro: Ora vivam, on e Clistes! Htempos que vos no via. Por onde tendesandado?

    on: Viva! Estivemos nas festas do Epidau-ro, onde pusemos prova os nossos dons.

    Clistes: Viva!

    Timandro: Ah, sim; ouvi dizer que oconcurso de rapsodos muito apreciado econcorrido. Tambm h concurso de aedos?

    Clistes: Sim; e dos mais importantes. Euconcorro sempre.

    Timandro: E que tal vos sastes?

    on: Eu venci o concurso de rapsodos.

    Clistes: E eu s perdi para o aedo deEgina. Em onze concorrentes.

    Timandro: Ento estais de laurel. Ficomuito feliz, por vs. Dizei-me: o que vos fezenveredar por essas to belas ocupaes?Qualquer um consegue ser rapsodo ou aedo?

    on: No, de modo algum. o dom comque se nasce. A excelncia que ponho nasminhas atuaes e que faz chorar os que meouvem um dom com que nasci.

    Timandro: Ah, sim? Dize-me: j em crian-a sabias recitar Homero?

    on: Sim, mas s pequenos trechos. Aospoucos que fui dominando a extensa obra

    Joaquim Bispo

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    do gnio.

    Timandro: Ento o dom com que nascesteera pequenino?

    on: Sim, posso dizer que sim. Felizmenteque o meu tio Perilo era um apaixonado porHomero e no descansou enquanto no me

    pegou o gosto. Recitava-me frequentementeas mais emocionantes passagens da Odisseia.

    Timandro: Queres dizer que se no tives-ses um tio que te estimulou o gosto pelasepopeias homricas talvez esse pequeno domcom que nasceste tivesse murchado?

    on: Nem mais. Estou muito agradecido aomeu tio.

    Timandro: De bem pouca valia um dom

    que no se usa. Imagina que nasceste como dom do auriga e que o deixaste estiolar.Como saberias que tinhas nascido com ele?

    on: Provavelmente, nunca o saberia.

    Timandro: Ento, possvel que nasamoscom muitos dons que no desenvolvemos e,portanto, nem deles tomamos conscincia.

    on: Assim deve ser, como dizes.

    Timandro: E tu, Clistes, nasceste com odom de fazer e cantar poesia ao som da lira?

    Clistes: Depois do que disseste, creio queno; s comecei a gostar do no vibrar dascordas da lira quando me apaixonei porMagide, lha de Macrio. Nessa altura quea musa se apoderou de mim.

    Timandro: Ento, segundo on, no deviaster dom, porque no nasceste com ele.

    Clistes: Tenho, tenho. Componho comfacilidade e toco e canto com gosto.

    Timandro: Desculpai, se insisto: esse domque, de uma maneira ou de outra, tendes que vos levou vitria, mas tambm traba-lhais para conseguir tais xitos, presumo, ouo dom suciente?

    on: No, eu estudo incessantemente Ho-mero. preciso conhecer o seu pensamentoem profundidade e no s decorar-lhe as pa-lavras. E recito partes da Ilada todos os dias.

    Timandro: Queres dizer que nasceste comum dom que foi sendo aperfeioado comtrabalho!

    on: Sim, pode-se dizer isso.

    Timandro: Ento, o que mais contribuiupara te levar vitria, o trabalho que puseste

    no estudo ou o dom?on: Ambos. O dom com que nasci ou

    que aprendi com o meu tio forneceu-meo interesse pela representao das epopeias;o trabalho d-me a competncia no conhe-cimento de Homero. Mas nada disto seriasuciente para empolgar a assistncia se nofosse o que Clistes j referiu. Alis, aindaontem tive esta mesma conversa com Scra-tes que me provou que eu estou fora de mim

    quando fao emocionar a audincia.Timandro: Scrates sbio.

    on: Scrates estranhou que, falando Ho-mero, Hesodo e outros poetas dos mesmosassuntos guerra, relaes entre os homens edestes com os deuses, e dos deuses entre si, eda genealogia dos heris e dos deuses eu ssaiba falar e interpretar bem as palavras deHomero e no saiba nem goste de falar dosoutros poetas.

    Timandro: Por que achas que isso aconte-ce?

    on: Eu pensava que era porque Homerofala das mesmas coisas, mas muito melhorque os outros poetas, mas Scrates conven-ceu-me de outra coisa.

    Timandro: E o que disse ele?

    on: Que se eu sei reconhecer que Homerofala melhor que os outros, mas das mesmas

    coisas, eu tambm deveria saber falar bemdos outros poetas.

    Timandro: Aparentemente...

    on: Acontece que no sei falar dos outrose aborrece-me mesmo ouvir falar deles. Ora,Scrates diz que isso signica que o que eudigo de Homero no advm de conhecimen-to, mas de outra causa.

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    Timandro: Scrates sbio. No ignora,certamente, que possvel falar das mesmascoisas mas de modos totalmente distintos, as-sim como possvel representar Zeus comoFdias o fez, ou como o fazem outros esculto-res menores.

    on: E, na verdade, Homero inexcedvel.Timandro: No considerou Scrates que

    sempre viveste rodeado de Homero e queestudas Homero ancadamente e no osoutros poetas, e que, por isso, lgico que oconheas melhor e o preras?

    on: No. A interpretao dele a de queestou possudo por uma fora divina, quandoo recito.

    Timandro: Curioso! O caso tal que seja

    necessrio recorrer a explicaes to poten-tes?

    on: Scrates diz que a mesma musa queinspirou Homero, quando ele comps a suaobra, transmite a sua inuncia para mim ede mim para a audincia.

    Timandro: A musa! Scrates sbio, mas,como ele prprio est sempre a dizer quenada sabe, natural que muitas vezes setenha reconhecido em erro e se precate deequvocos futuros. De cada vez que oio in-vocar as musas como explicao de algumacoisa humana, lembro-me sempre do mauteatro.

    on: Como assim?

    Timandro: As aes de uma pea devemestar encadeadas numa relao de causa eefeito, de modo que cada uma seja a resul-tante lgica e necessria dos acontecimentosanteriores. Uma pea assim encadeada temverosimilhana os espectadores reveem-senela, como na vida. Uma m pea, pelo con-trrio, quando no consegue criar desenlacesconsequentes com o n que a trama enredou,recorre ao deus ex machina, dando um mabrupto histria, no congruente com o oda narrativa, o que desagrada sobremaneiraaos espectadores.

    on: A mim agrada-me que, pelo menosem certos momentos, eu seja instrumento dodivino.

    Timandro: Isso evita-te, certamente, seresdesaado por aqueles que so da mesmaopinio que Scrates. Os que te consideram

    instrumento do divino podero travar a in-veja com a desculpa de que no se conseguecompetir com o divino. Por um momento,vislumbrei a possibilidade de Scrates teinvejar.

    on: No creio. Mas os teus remoques aScrates que me parece indiciarem algumador de cotovelo

    Timandro: Sem dvida! Quem me deraque o meu losofar tivesse a acutilncia e a

    profundidade do jeito de losofar do feioso.Mas, voltando ao nosso tema: e tu, Clistes,tambm sentes a possesso da musa?

    Clistes: Compor poesia deveras misterio-so. No sei onde vou buscar as palavras e aspersonagens que me surgem. Acredito que a musa que mas insua, como num sopro.

    Timandro: Dize-me!: surgem-te palavras epersonagens desconhecidas?

    Clistes: No; todas as palavras so por

    mim conhecidas, mas aparecem-me organiza-das de uma maneira to sensata e harmonio-sa que me surpreendo que tenha sido eu ager-las, naquele encadeamento. J as perso-nagens so mais difceis de caraterizar. Todaselas me so desconhecidas naquela forma.

    Timandro: Naquela forma? J as conhecessob outra mscara?

    Clistes: Cada personagem parece-me umamistura de outras, que conheo das epopeias;de heris, de deuses, de homens.

    Timandro: Ento dirias que elas j exis-tiam em ti, como as palavras que referiste?Isso signicaria que no houve qualquersopro exterior e que tudo criado no teuesprito.

    Clistes: Sim, mas, nas formas e atributoscom que me surgem, so-me totalmente

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    J BspPortugus, reformado, ex-tcnico da televiso pblica, licenciado tardio em Histria

    da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimentaa escrita de co desde 2007. Integra vrias coletneas resultantes de concursos lite-rrios dos dois lados do Atlntico e colabora na revista Samizdat desde o nmero 7.

    Contacto: [email protected]

    inesperadas.

    on: Tambm me surpreendo com aspalavras que saem da minha boca, quandoestou no estrado. Scrates disse que os beloslouvores que teo a Homero no so devi-dos a uma techn que pudesse ser atribuda

    ao meu mrito, mas ao privilgio exteriorconcedido pela musa; que eu falo sem nadacompreender. Senti-me humilhado.

    Timandro: Scrates o mais sbio lsofoda Grcia, o que no quer dizer que no pos-sa vir a mudar de opinio em relao a al-gumas das convices que agora mantm. Hquem diga que a imaginao uma amlga-ma de perceo e julgamento e que implicasempre a presena da perceo. No aceitas

    que a inspirao seja um estado de exaltaoemotiva que atinge a alma do poeta que, qualtecedeira a escolher os os coloridos de lpara compor tapetes sempre diferentes, usaum carter deste, uma sionomia daquele,um atributo de outro, para compor uma per-sonagem inesperada?

    Clistes: Assim poder acontecer.

    Timandro: Esclarece-me uma dvida queme assaltou agora. Se estivermos atentos e

    formos honestos connosco, reparamos quea genealogia dos deuses varia conforme asregies, como Afrodite, que para uns nasceude Zeus e Done, e para outros lha exclu-siva de Urano. A questo a seguinte: nessesteus momentos de criao, j criaste algumdeus ou, ao menos, modicaste os atributosde deuses ou heris?

    Clistes: Envergonho-me de o dizer, mas j.Quando no me lembro bem da histria dealgum, componho-a com o que me parece

    melhor. Uma peripcia em que Dioniso raptado por centauros foi criada por mim.E j criei um deus Metaro que lho deHefesto e que quando quer vigiar os homensincorpora nas esttuas de bronze.

    Timandro: Era o que eu pensava. No

    me custa admitir que Hesodo que criou amaior parte dos nossos deuses. H um l-sofo em Abdera Demcrito que diz queno h deuses nenhuns. No fundo, a nossavida no se alteraria muito sem a sua exis-tncia. No h dvida, no entanto, que tor-nam a nossa vida menos montona e semprenos sentimos mais acompanhados, que asolido funesta.

    on: Na verdade; mas c estamos ns,

    rapsodos, aedos, poetas, dramaturgos e atorespara tornar a vida mais empolgante.

    Timandro: Por outro lado, h um abismoentre a situao do artista que consideraa sua obra manifestao de uma entidadeexterior e, portanto, nenhuma responsabi-lidade e mrito tem nela , e a situao deoutro artista que, atuando sem o pressupostode inuncias metafsicas, considera a obrasua, com tudo o que isso implica: batalharpor ela, pr nela todo o seu esforo, no seentregar preguia, sabendo que s o seutrabalho a far emergir. Agora, dize-me, on:preferes ser o ttere manipulado por umaimprovvel divindade, ou o autor da admir-vel arte que move a alma das multides?

    on: Se pes as coisas nesse p

    Fonte (emulada na forma e contestada nasteses): PLATO, Victor Jabouille (traduo),

    on, Lisboa, Editorial Inqurito, Lda., 1988.

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    n, e PlJoaquim Bispo

    on um pequeno livro de Plato (427 a.C. 347 a.C.), sob a forma de dilogo. Os persona-gens so on, um rapsodo, isto , um artista que

    vai s festividades de cada cidade, recitandopoemas picos populao, e Scrates, o cele-brado lsofo da Grcia antiga, especialista emdilogos argutos nos quais, atravs de perguntasbem dirigidas, leva o interlocutor a reetir, aadmitir a fragilidade das prprias opinies, e achegar a concluses corretas, supostamente asteses do prprio Scrates.

    Nos dilogos ditos socrticos ou da juven-tude, de que on faz parte, Plato transmite asideias e os mtodos do Scrates histrico. Doponto de vista literrio e losco, so discus-ses loscas com estrutura dramtica. ComPlato, adquiriram o estatuto de gnero liter-rio independente.

    O tema da obra on gira volta da origemdo talento na interpretao, e da inspirao nagnese da poesia. Aps a habitual barragemde perguntas, o prprio on reconhece que aexcelncia da sua atuao se d por inspira-o divina e no por qualquer arte ou cinciaprprias, aceitando que tambm a obra do bompoeta tem a mesma origem, o que menoriza orespetivo trabalho.

    Rejeitando a tese do gozo que Plato, emmuitos dilogos de juventude, parece ter emcontradizer e ridiculizar as opinies dos seusadversrios, que explicao haver para quedefenda uma ideia ultrapassada pela sua poca,e que validade ter a questo no nosso tempo?

    Segundo Krishnamurti Jareski:

    A inspirao do poeta pelas Musas ad-mitida sem reservas pela conceo grega dapoesia, mas, a partir do sculo V a.C., podem

    ser encontradas referncias explcitas ao poetacomo poiets (fabricante/poeta), ou seja, pos-suidor de uma tchne. No tempo de Scrates,os poetas eram denominados como sopho(sbios), assim como os mdicos, engenheiros,entre outros, e a habilidade desses poetas eracompreendida como resultante de uma tchne(arte/saber fazer). A poesia, assemelhada aoartesanato, seria o produto nal de uma aoconsciente daquele que logra o adequado ajustede palavras e sons musicais, maneira de um

    arquiteto, sendo o poeta digno de honra erespeito, por conferir imortalidade glria dosmortais.

    A tendncia da crescente identicaodo poeta como um techntes no foi capazde erradicar o antigo retrato da poesia comouma ddiva divina, e o on de Plato deve ser

    visto como uma tomada de posio do l-sofo perante essas duas concees da poesia,que aparentam ser antitticas. Plato rompeparcialmente com as tradicionais concees depoesia da poca sustentando a possibilidadede uma ligao direta com as Musas, capaz deanular temporariamente as faculdades intelecti-

    vas do homem.

    A pretensa sapincia dos poetas fora exa-minada por Scrates, confrontando-a com ade polticos e artesos, que tambm tinhamreputao de sbios. Vericou, dececionado,

    que os poetas eram capazes de dizer muitascoisas belas, mas eram incapazes de prestarcontas do que diziam, pois nada sabiam arespeito dos assuntos de seus poemas. Falhavamem interpretar o pensamento (dinoia), queforma a essncia da mensagem potica, o queindicava no ser oriunda de um pensamentointeligente. Scrates concluiu que, assemelhadosaos adivinhos e aos profetas, os poetas pronun-ciavam muitas coisas verdadeiras e belas emsuas obras, mas no por sabedoria, e sim poruma espcie de disposio natural (phsei), um

    estado de inspirao.O on, de Plato, pe em relevo a oposioentre a pretensa sabedoria do poeta e a entonascente sapincia do lsofo. A sua autentici-dade foi posta em dvida no sc. XIX. Goethe,em particular, repele a incongruncia dos tra-os dos personagens: on, por um lado, de umatacanhez inefvel e, por outro, um Scrates deuma malevolncia pouco habitual.

    Vincando a atualidade da questo, a hist-ria da literatura ocidental testemunha o abismoque separa os verdadeiros poetas capazes de,

    eventualmente, aliarem fora de expresso auma imensa facilidade descritiva , daquelescujas criaes deixam transparecer o esforopara lograr ns artsticos preconcebidos.

    Principal stio citado:

    http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasE-letronicas/Kinesis/20_KrishnamurtiJareski.pdf

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    Henry Alfred Bugalho

    a alm CplCn

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    http://agenciabrasil.ebc.com.br/sites/_agenciabrasil/les/gallery_assist/29/gallery_assist663709/21042010-210410VC4337.jpg

    Minha coroa quase nunca falousobre meu pai, e eu, em respeito aopadrasto, que me criou como a um ver-dadeiro lho, tambm no tocava nesteassunto.

    Conviver no fcil, pois s vezesmagoamo-nos uns aos outros sem nemtermos inteno.

    No entanto, ao avisar minha me queme mudaria para Braslia para assumirum cargo no funcionalismo pblico, osolhos dela se encheram de lgrimas, elasegurou delicadamente minhas mosentre as delas e me puxou para a sala.

    Seu pai teria orgulho de voc.

    Sim, eu sei...

    Promete que se cuida? Ouvi nordio sobre os atentados nas bancas dejornal. Os nimos esto or da pele.

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    No v se envolver com politicagem,meu lho, nem com estes grupos radi-cais.

    Eu ri, um pouco nervoso. No en-tendia nada de poltica, nem me inte-ressava o comunismo, apesar de vrios

    amigos da universidade terem levadoborrachada da cavalaria em protestos.Eu no estava nem a para o Figueiredo.A minha diverso eram os lmes doChuck Norris, Bruce Lee e James Bond,nada muito intelectualoide, e Marxnunca havia dado as caras por minhasprateleiras. Tudo que mais me impor-tava era a minha garota, e eu estavadepr pacas por deix-la pra trs.

    No se preocupe, me respondi,enquanto ela me abraava com fora.

    Sabe, foi l que conheci seu pai...

    Em Braslia?!

    Sim, era um dos pees que ergueuaquela cidade, isto, vinte anos atrs.Vindo do serto baiano, pele queimadado sol e olhos cor de grate. Um bai-ta homem, eu lhe digo! Daqueles que

    pareciam sados das histrias de jagun-os e cangaceiros. Muitos tinham medodele, um sujeito calado e que nuncasorria, trabalhando incansvel do nas-cer ao pr do sol. Meu noivo e ele logose tornaram os melhores amigos, unhae carne, como se diz. Na hora do almo-o, eu levava a marmita para os doisno canteiro de obra e seu pai falavaque, assim que juntassem um dinhei-rinho, ele e meu noivo abririam umasociedade no Rio de Janeiro e cariamricos. Aquela era a poca dos sonhos,meu lho, mesmo que todos ns esti-vssemos comendo o po que o diaboamassou. o progresso atropelando osfracos para que os fortes quem aindamais poderosos. No estou certa dequando reparei que seu pai me olhavacom outros olhos, desejando-me, mas

    sei que tambm me apaixonei por ele.Ningum manda no corao, e todoo jovem capaz de fazer loucurasquando est apaixonado. Uma manh,seu pai me chamou num cantinho eme disse: Quero encontrar voc mais

    tarde. E foi na escurido, no meio dasobras, no esqueleto do que viria a sero Palcio do Planalto, que eu e seu painos amamos, cheios de medo que oscapatazes nos agrassem.

    E o seu noivo?

    No sabia de nada, a princpio.At que os boatos comearam a circu-lar entre os pees e a notcia chegouaos ouvidos dele. Meu noivo era pac-

    co, um santo, no quis acreditar no queescutava. Mas, uma noite, com a pulgaatrs da orelha, ele foi atrs de mimna construo e nos pegou juntos. Umrebulio! Seu pai puxou uma peixeirae s no matou o meu noivo porqueno deixei. No queria nenhum mortopor minha culpa, no sou assim. Junteiminhas trouxas e fui de vez pra casi-nha de seu pai. Ele e meu noivo no se

    falaram mais, apesar de trocarem olha-res atravessados quando se esbarravam.E eu morria de medo que por um atode vingana eles ainda se matassem.Seu pai se isolou ainda mais, todos oevitavam e ele virou um homem amar-go. Era no meu seio, na escurido danoite, que ele sussurrava para mim queme amava e que, quando possvel, cai-ramos no mundo e seramos felizes,

    como casal algum jamais foi.E minha me enxugou com um len-cinho a lgrima que lhe deslizava pelaface.

    J estava tudo certo e em umasemana partiramos de Braslia rumoa Salvador, onde um amigo de seu paihavia lhe arranjado um emprego. Entoo andaime onde trabalhava meu antigo

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    Heny alfe Bglh

    Curitibano, formado em Filosoa pela UFPR, com nfase em Esttica. Especialistaem Literatura e Histria. Autor dos romances O Canto do Peregrino, O Covil dosInocentes, O Rei dos Judeus, da novela O Homem Ps-Histrico, e de duas colet-neas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Ocina Editora. Autordo livro best-selling Guia Nova York para Mos-de-Vaca e do Nova York, Bairro aBairro, cidade na qual morou por 4 anos, e do Curso de Introduo Fotograado Cala a Boca e Clica!. Aps uma temporada de um ano e meio em Buenos Airese outra de oito meses na Itlia, est baseado, atualmente, em Madri, com sua esposaDenise e Bia, sua cachorrinha.

    noivo tombou. A amizade entre elesfalou mais alto e seu pai correu paraacudir, segurando o amigo pelo brao.No vou te soltar, ele disse, mas osdois despencaram trinta metros abai-xo. Foi um milagre, muitos disseram,

    porque meu noivo se salvou ileso, nemum arranho, enquanto seu pai caiu decabea e morreu no ato. Uma semanaantes de irmos embora, d para acredi-tar?

    E o que aconteceu depois? per-guntei.

    Meu noivo veio e me consolou.Ele era um homem bom, ele me disse,um verdadeiro amigo. Eu respondi:

    Estou grvida... E o pai do meu lhoest morto. O que ser da minha vida?.Eu chorava. Meu noivo se ajoelhoudiante de mim e jurou: Vou cuidar devoc at o m de seus dias. Cone emmim. Parecia at cena de lme.

    Meu padrasto? perguntei.

    Sim, lho, ele sempre cumpriu apromessa, nunca deixou de me amparare, com o tempo, voltei a am-lo comoantes. Viemos para o sul, voc nasceu efomos muito felizes at agora.

    A luz vermelha do entardecer atra-vessava as cortinas e iluminava o rostode minha me. Era a primeira vez quetransparecia a dor ntima que ela haviaocultado por tantos anos.

    E voc pensa nele?

    Todo o santo dia. Nem todo otempo do mundo apaga o verdadeiroamor. E tem voc, com o olhar pro-fundo e cinzento do seu pai, como umretrato vivo do homem que conheci

    vinte anos atrs. Ele era um verdadeirobrasileiro, no daqueles que usam ter-nos e fazem leis, ou que esto sentadosem poltronas de couro fumando charu-tos. Era daqueles brasileiros que pem amo na massa, que erguem os prdiosde luxo nos quais jamais podero ha-bitar, que constroem as capitais ondetrabalharo os polticos que no do amnima pra gente simples como ns.

    Ele era a alma do nosso pas, e morreutrabalhando para nos dar um futuro.

    No nibus, a caminho para a capital,reeti muito sobre esta histria. Eu erajovem quando minha me me reveloueste segredo e, desde ento, vi o mda ditadura, meia dzia de presidentespassarem pelo Planalto e maracutaias eescndalos sem m. No entanto, sem-pre que caminho pelas ruas da cidade,

    penso que por aquelas veias corre osangue do meu sangue, daquela classede heris annimos que so a argamas-sa do mundo, cujas insignicantes vi-trias cotidianas jamais sero contadasnos livros de Histria. Como minhame havia dito: a alma de nosso pas.

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    Wilson Franco

    mne b engn

    Parece que vai chover.

    Voc adorava quando estvamos aqui echovia, lembra? Ficava animada espera do

    momento em que a chuva cessaria, quandopoderamos sentar na varanda e apreciaras cores, os sons, os cheiros.

    Acho que voc sabia que eu no perce-bia muito do que a encantava, no sabia?

    Sabia que eu no me importava muito,e em muitos momentos estava perdido emmeus pensamentos?

    Eu s vezes me arrependo olho paramim mesmo hoje e penso que deveria ter

    feito as coisas de forma diferente. Mascomo poderia? Mesmo hoje, se me esfor-asse muito e me pusesse na mesma situ-ao, se tentasse pensar com a cabea quetinha poca, como poderia ser diferente?

    Eu no percebia, ento, que era rude.Sabia que muitas pessoas diferentes mediziam de muitas formas diferentes que eudeveria ser diferente. Disso eu sabia; mas

    no me importava. Ou me importava, masme importava como um incmodo, comose todos fossem um estorvo. Como se no

    entendessem nada, e se metessem em meucaminho.

    Sentia isso em relao a voc, tambm. triste, di admitir, mas eu sentia. E aolongo de todo o tempo, tudo o que soubefoi de meus projetos, dos prazos e desaos,do objetivo sempre alhures, sempre tonecessrio e inadivel; e voc, e seu corpo,e sua voz, me chegavam como algo incom-preensvel, algo estranho; eu gostava nochegava a amar, creio que era, e talvez

    ainda seja incapaz de amar gostava det-la comigo, mas assim que partia eu mesentia enfraquecido, como quem perdeuum tempo que no poderia perder, comoquem estava sendo seduzido e tivesse de sedefender.

    Talvez voc casse feliz hoje se soubes-se que eu comprei essa casa; talvez cassefeliz se soubesse que eu me animo quando

    Cn

    http://www.

    ickr.com/pho

    tos/dsoltesz/3576177210/

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    Wlsn FncNatural de So Paulo, cresceu em Valinhos, interior do estado, retornando capital

    paulista aos 18 anos. Mestre em psicologia, atua como psicanalista, acompanhanteteraputico, pesquisador e escritor. Mantm o blog http://errancias.wordpress.com, quealimenta com produes literrias, acadmicas e textos opinativos.

    chove, e quando a chuva cessa eu sento varanda e co l, tentando ver a beleza dascores e cheiros e sons que s voc via.

    Mas eu no vejo nada.

    Hoje eu bati no funcionrio que traba-lha aqui. Ele queria me ajudar a cuidar do

    gramado, pelo que eu entendi ele falamuito rpido e quase no o entendo; seique estava andando pelo gramado, que hojeparece um matagal, quando ele me alcan-ou. Perguntou se eu conhecia os equipa-mentos, se queria que ele ajudasse a cui-dar do gramado, talvez quisesse que eu opagasse para faz-lo, no sei, sei que ele fa-lava rpido e abria o brao em um amplogesto de olha s essa zona e perguntava oque eu faria, e eu dizia que estava tudo sob

    controle e que estava pensando no assun-to, e ento ele disse que o Maurcio teriacuidado do gramado j duas semanas antese eu lhe dei um bofeto.

    Eu no sei por que dei um bofeto nomoo (eu no decorei o nome dele, seique tem um ides no m). Por que eu batinele?

    Talvez ele v embora, junte sua famliae deixe a casinha dele, deixe o matagal e acasa e o pomar e a varanda aos cuidados

    do velho louco que eu estou me tornando.Talvez seja melhor assim.

    Ou talvez ele se esgueire at meu quartopela madrugada e corte meu pescoo comseu faco.

    Talvez seja melhor assim.

    Acho que estou me prolongando demais;escrevi porque queria te agradecer, Bel.Passamos pouco tempo juntos, e depois demim voc certamente encontrou para si

    uma vida melhor, com algum que saiba

    te ouvir, saiba cuidar de voc e estar aoseu lado. Algum que saiba te querer. Maseu queria que voc soubesse ainda quesaiba que no vai saber, j que no sei seest viva ou onde mora e guardarei estacarta na gaveta quando termin-la que eute queria; te queria muito. Eu s no sabiaquerer, e por isso me descuidava e trope-ava e trocava as coisas de seus lugares efazia tudo errado.

    Mas eu te queria, Bel; eu te queria muito.

    Eu queria poder pedir desculpas aoAristides, ou Benevides, ou Alcides; queriadizer-lhe que no sei porque bati nele, queno sei cuidar do matagal, e tambm nosei porque comprei essa casa no meio donada e deixei toda minha vida para trs.

    Queria dizer a ele que no sou um doutore que esses livros que entulham todas essascaixas so s tijolos de uma fortaleza queconstru de mim para mim.

    Queria que chovesse, e que a chuvaparasse, e eu sentasse varanda e pudesse,ao menos uma vez, apreciar toda a bele-za do sol entre as nuvens iluminando ogramado, do cheiro da grama e das rvoresmolhadas, do som do vento passando entreos galhos; queria sentir isso tudo, e que

    isso tudo entrasse em mim e me zessedizer como num suspiro como isso tudo bonito.

    Como voc dizia.

    Queria, Bel, que voc estivesse comigo,e que eu pudesse, com voc, sentir todo osentido que voc me faz depois que te per-di. Queria no estar sozinho, to sozinho.

    A qualquer momento vai chover, Bel.Mas no sei se isso muito bom.

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    Guilherme Canedo

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    Um homem morreu nesta ma-nh e ouve-se daqui de casa e detodo o prdio os gritos melanc-licos da famlia do apartamentoao lado. Todos, inclusive eu, que-

    rem saber o que est acontecendo,todos sentem-se de certa formaatingidos e abalados pelos espas-mos da morte. O pensamentoest vivo e a morte, como diziaminha falecida av, que Deus atenha, mora ao nosso lado. Ospelos do corpo arrepiam-se, certoamargo apodera-se da nossa boca

    quando sabemos que algumpartiu dessa pra melhor e tudo oque nos resta, acredito que comoconsolo, alisar com a ponta dosdedos o velho crucixo de pratae rezar, rezar bastante, para queSanta Rita de Cssia nos livredesse mal. Amm.

    Tudo pareceu parar naqueleinstante de gritos e splicas ma-tinais. O trnsito pareceu menostrnsito, o mar pareceu maisbrando e o vento parou de so-car as janelas de vidro. O mundonalmente havia respirado, puxoudo fundo sua essncia para serevelar vivo. Seria Deus agindo?

    Aquilo parecia comum, no se-ria a primeira pessoa a morrer,

    porm aquilo era diferente, eratriste demais, pois todos rezavame agradeciam pelo acontecidoocorrer do lado de l da parede.

    Eu me senti mais solitrio do

    que de costume, tudo se torna toinstintivo quando esse perfumede rosas mortas passa beirandopela medula. Arrepiam-se os pe-los, a alma se agita, ca mexidade liquidicador, so neblinas,silncio e s. A gente passa aentender um pouco de tudo ouum pouco de nada ou tanto faz.

    O que precisamos saber mesmo que somos a poeira esquecidadebaixo do tapete, pode demorar,mas um dia algum nos acha edeixa o cho limpo. assim oprincpio da vida. A eternidadeque dura o tempo de um abrao,um encontro.

    Eu sentia pena em saber que al-gum partiu assim to de repente,mas o que eu podia fazer? Nada.Dizem os sbios que existe umprincpio bsico pra tudo e o b-sico de cada um ter que sobre-

    viver e foi o que eu z. Quandoa morte veio at mim e me per-guntou se eu gostaria de morrer,

    respondi-lhe: Eu no, mas possote indicar algum.

    Glhee Cne

    Nascido no interior do Rio de Janeiro, Miguel Pereira, 26 anos, jornalista e qumico.Mora, hoje, na capital, onde trabalha para ter o que comer no nal do ms. No sabe dizermuito sobre si prprio, mas sabe dizer muito sobre o que gosta.

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    Rui Sota

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    r S

    Tenho uma licenciatura em psicologia clnica mas na msica que a imaginao se

    transforma em escrita. As minhas short stories parecem faixas de um CD de msica semtempo. So comparveis aos andamentos de uma sute e foram escritas ao som das 6 sutespara violoncelo de Bach.

    O vento que faz as dunas mudarem de lugar uma das short stories que constituem asDoze histrias para um arco-ris que nunca apareceu nas festas de sbado noite, aindano publicado.

    A escrita uma vontade antiga mas s agora chegou o momento de poder divulgar algunsdos meus trabalhos. Tenho em preparao 3 histrias que perseguem um nal feliz, quereetem um contedo mais elaborado e mais extenso.

    Hoje fao 41 anos e acordei assim;desconforto intenso, suores, dicul-dade em respirar, sensao de sufoco,opresso e dor no peito. Sinto tam-bm algum desequilbrio e tonturas.Tenho medo de perder o controlo

    sobre os meus atos, e angstia apalavra que mais me persegue quandoprocuro a resposta.

    So 11 horas e chove intensamente.Espreito atravs do vidro da janela e ocu est escuro, parece m do dia. O

    vento sopra com fora. O vento, essevento que faz as dunas mudarem delugar.

    Visto os cales e a camisola como nmero 1 nas costas, calo as botascom pitons, ponho as chuteiras, agar-ro nas luvas e na bola e saio para arua. Dirijo-me a um local descampa-do e espero pela restante equipa. Nopercebo porque teimam em estacio-nar os carros perto de mim e meolham com ar estranho.

    No encontro a resposta. A respos-

    ta levou-a o vento.Quando estava em casa, espreitei

    atravs do vidro e chovia. Na ruanem uma gota de gua, nem umapoa, e o sol est mais quente do quequando sa. Vou-me apercebendo aos

    poucos olho em redor e o quepensava ser o campo de jogos umparque de estacionamento. Um grupode midos por entre gritos e garga-lhadas chama-me a ateno. Estou

    vestido de soccer, sozinho, no parque

    entre os carros estacionados. Sinto-meridculo e quero regressar a casa.

    No encontro a resposta. A respos-ta levou-a o vento.

    Tremo descontroladamente, eno-me na cama e tapo a cabea com oedredo. Cerro os olhos com fora epreparo-me para o tormento da noite.Talvez o medo da morte me abando-

    ne.De manh espreito atravs do vidro

    e est um sol radiante. Escolho umblazer no de algodo, pego na pastacom documentos de trabalho e saiopara a rua mas percebo que o cenrio diferente daquele que vi da minha

    janela. Chove intensamente, as pessoasvestem gabardine e lutam de guarda-chuva em punho contra o vento.

    No encontro a resposta. A respos-ta levou-a o vento. Esse vento que fazas dunas mudarem de lugar.

    Rui Sota (Lisboa, 17.Abril.1957)

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    Fernanda Vier

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    No comeo era s pele. Mais queisso, era pica, amor de pica, aqueleque sempre ca, frasezinha infamemas que tem l sua verdade. Era umnegro alto forte lindo, uma coisa. Vi

    e pensei na mesma hora, vou levaresse nego pra minha cama custe oque custar. Cheguei perto da orelhadele e disse, voz sexy, estou procu-rando algum pra preencher minhacota, quer se candidatar? Ele se virousorrindo, me perscrutou at o dedodo p e voltou, quantas vagas? Suma, pegar ou largar, respondi.

    Se h quem ainda acredite na tesede que grandes amores no surgemde uma trepada casual, saiba que euinventei a anttese. No levou doismeses pro Roni ir morar no meu jo-tac. Que alis foi todo redecorado,gastei os tubos colocando no choe nas paredes coisas pretas e bran-

    cas, eu queria uma casa toda preta ebranca, porque era a coisa mais bo-nita do mundo a minha pele bran-qussima junto dele escurssima eeu quis que tudo nossa volta tives-se esse contraste maravilhoso, umacoisa assim meio Seal e Heidi Klum,meio ebony and ivory da msica deStevie Wonder e Paul McCartney, li-

    ving together in perfect harmony.Eu quis at comprar um piano decauda, mas ele no deixou, primeiroporque teramos de escolher entreo piano e a mesa de jantar, segun-do porque iramos bancarrota. (Ofato de nenhum de ns dois tocarpiano no era importante.) Mas eu

    estava obcecada pela ideia do pre-to e branco, estava completamenteapaixonada e cava toda arrepiadas de v-lo entrando no meu jotacem seus jeans desbotados e a camisa

    clara colada pele marrom escuraluminosa, quando eu poderia ima-ginar que ia ter um homem dessesmorando comigo, dormindo na mi-nha cama e me comendo toda santanoite.

    Minha me achou a maior graaquando levei o Roni na casa dela,eu nem queria levar mas ela meincomodou tanto, como que eupodia estar vivendo com um carae ela no conhec-lo, j fazia trsmeses e tal e coisa. Minha me separada do meu pai e vive sozinhamuito bem obrigada segundo elamesma, j teve um que outro namo-rado porque bonita que s vendo

    e a homarada cai em cima, mas elararamente se interessa porque vivesozinha muito bem obrigada. Sque da ela vive me importunandoquerendo saber se estou namorandoou pelo menos dando pra algum eprincipalmente de que gnero essealgum, mame morre de medo queeu vire lsbica porque cou sabendo

    um dia por uma amiga minha mui-to da linguaruda que eu tive umafase meio duvidosa em que comeceia achar que nunca mais ia querersaber de pau. Mas essa fase passou,isso fato. Pensei sinceramente queela ia car orgulhosssima em me

    ver com um homem como o Roni,

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    ela que s quer que eu seja feliz etoda aquela conversa de me. Toda-

    via eu sa de l com uma sensaoesquisita de que a dona Eleonoraentendeu que eu s estava me di-

    vertindo com o Roni, tipo assim,entendi, enquanto tu esperas apare-cer algum que valha a pena vais teocupando com esse da, nada mal,bem melhor do que car sozinha.Ela cou o tempo todo com umsorrisinho no canto do lbio, mali-cioso, no olhava o Roni de frente edeu um jeito de terminar a reunio

    rapidinho porque tinha marcadomanicure para logo mais.

    Com minhas amigas no era mui-to diferente, elas me davam beliscese piscadelas e faziam caras e bocasescondidas atrs dos cabelos, algu-mas cochichavam em meu ouvidocoisas como, mas esse a, hein, at

    eu, na cama deve ser um negcio. Eera mesmo, mas quando eu explica-va que aquele era o relacionamentomais srio de toda minha vida elasarregalavam uns olhos gaguejantes emudavam de assunto, como se noquisessem supervalorizar o proble-ma, que nem se faz com crianateimosa.

    Seis meses morando juntos de-pois minha me resolveu aparecerno meu jotac e quase caiu pra trsquando viu que tudo estava preto ebranco. Menos a cara dela, que -cou vermelha. O que faz esse Roni,ela perguntou. Trabalha num res-taurante, eu respondi. garom, ela

    armou. No, o gerente, rebati. Elaengasgou um pouco e disse que ge-rente de botequim qualquer um era.Eu disse que no era botequim esim um restaurante e perguntei por

    que ela estava querendo saber aque-las coisas. Ela me olhou e disse queeu no podia estar levando aquiloa srio. Aquilo o qu, indaguei. Tusabes. No sei. Sabes sim. No sei,no. Para de fazer isso comigo. Euno estou fazendo nada, mame. Es-ts me forando a falar. Se no falar,nunca vou saber. Tu sabes muito

    bem. No sei. Sabes. No sei, por-ra! Eu odeio palavro. Ento timo,porra, caralho, cacete, o que anal tuqueres, mamezinha? J vi que nod pra conversar contigo, quandocar mais calma, me avisa.

    Nessa mesma semana convideidois casais mais chegados para jan-

    tar no meu jotac porque j eramais que tempo de o Roni fazerparte da turma. Preparamos juntosum monte de guloseimas e oferece-mos vinho tinto da melhor qualida-de. Eu estava extasiada porque meusamigos pareciam estar curtindo acompanhia do Roni e ele a deles eeu s pensava que no queria nunca

    mais car longe desse homem. Meiobbada eu olhava pra ele e tinhaquase vontade de chorar de tantoamor que sentia, queria gritar e es-pernear pra que todo mundo sou-besse que aquele era o grande amorda minha vida, baita clichezo queeu pensava que nunca ia acontecer

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    comigo porque meus amores sem-pre tinham sido mais ou menosdescartveis e eu nunca tinha sofri-do muito por amor, s um pouco,nunca muito. Mas com o Roni s de

    imaginar que ele pudesse me deixareu j queria cortar os pulsos.

    No meio desse devaneio o mari-do da minha amiga Denise, j bementorpecido de vinho como todosns estvamos, bradou que negoquando no caga na entrada caga nasada. Estavam falando do Obama,acho. Eu no estava acompanhandoa discusso. Mas nessa hora todomundo calou a boca e por umainfeliz coincidncia o CD que es-tava tocando terminou e o silnciocou quase insuportvel. Dava prasentir os coraes batendo, o sanguepulsando em cada veia. Isso durouassim uns cinco segundos mas pa-

    receu eterno. Engraado como asmulheres sentem vergonha por seusmaridos e querem salvar situaescomo essa, porque foi a pobre daDenise quem primeiro tentou que-brar aquele iceberg dizendo, no bem isso o que o Rogrio quis dizer, s uma frase boba, praticamenteum provrbio, no signica que ele

    realmente pense dessa forma, n,Rogrio? Ele concordou rindo ama-relo, imagina, isso mesmo, no temnada a ver. O Roni nem deu bola,ele mesmo mudou de assunto, mas

    nossos amigos logo se lembraram deque tinham compromissos no diaseguinte, que teriam de acordar cedoe tal, e se despediram prometendoque o prximo jan