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SAMIZDAT 43 fevereiro 2015 ano VIII ficina www.revistasamizdat.com

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Edição, Capa e DiagramaçãoHenry Alfred Bugalho

Editor de poesiaVolmar Camargo Junior

Revisão (sujeita a aceitação) Joaquim Bispo

Autores

Mateus Baldi Joaquim BispoMaria Brockerhoff Henry Alfred BugalhoVolmar Camargo JuniorMario Filipe CavalcantiRicardo Escudeiro

João Paulo HergeselCinthia KriemlerEdweine LoureiroNathalie Lourenço

Leonardo Lima RibeiroAna Lygia dos SantosMaria de Fátima Santos

Textos de:Paul BritoMarcelo Gama

www.revistasamizdat.com

ISSN 2281-0668

SAMIZDAT 43fevereiro de 2015

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedaa Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público, roya free ou sob licença Creative Commons.

Os textos publicados são de domínio público, com consensou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com- mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei deCopyright dos EUA (§107-112).

As ideias expressas são de inteira responsabilidade de seusautores. A revista adota o Novo Acordo Ortográ co. A aceitaçda revisão proposta depende da vontade expressa dos colabordores da revista.

Editorial

Em grande medida, são os símbolos que proporcionam senti-do às nossas vidas. Símbolos universais ou particulares, símbo-los religiosos ou laicos, símbolos construtivos ou destrutivos.

A nossa sociedade ocidental pauta-se por valores estabeleci-dos após milênios de guerras, revoluções e ignorância. Fundam--se nas mais esclarecidas re exões dos mais esclarecidos pen-sadores. Foram a base de nações, instigaram líderes, tornaram o

mundo melhor.Entretanto, o nosso conceito de mundo também é simbólico.O nosso mundo não é o mundo todo, e as melhorias para osnosso mundo foram, muitas vezes, a origem de atrocidades parao mundo dos outros. Enquanto o Outro não tinha voz, oprimi-do pelo poder dos nossos símbolos, podíamos ignorá-lo, ngirsimplesmente que não existia.

Nada nos afeta mais do que ataques aos nossos símbolos,supostamente intocáveis e sagrados, mesmo quando mundanos.Talvez seja quando en m percebemos quão frágeis e abstratoseles realmente são, mesmo que nem sempre consigamos perce-ber como os nossos símbolos também são as armas que utiliza-mos para desquali car os símbolos alheios.

Os pensamentos e a ideologia também são materiais bélicos.

Henry Alfred Bugalho

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SumárioPOR QUE SAMIZDAT? 6

Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÃO DE LEITURADoris Lessing 8

Maria Brockerhoff

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESAPoemas 10

Marcelo Gama

CONTOAs Incertezas de Crpt 14

Joaquim Bispo

Bem feita! (ou, melhor dizendo: Schadenfreude) 18Maria de Fátima Santos

Andaime 22Nathalie Lourenço

Recônditos da Esbórnia Cidadã 24Leonardo Lima Ribeiro

Asas na Noite 28Mateus Baldi

O Pássaro 30Cinthia Kriemler

Hypnos 32Mario Filipe Cavalcanti

Um 36Volmar Camargo Junior

TRADUÇÃOPesos e Pálpebras 40

Paul Brito

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ARTIGO“Porque sim” não é resposta: um estudo dos estilemas emCastelo Rá-Tim-Bum 44

João Paulo Hergesel

CRÔNICAVocê morreria por uma ideia? 46

Henry Alfred BugalhoQuatro 48

Ana Lygia dos Santos

POESIAO Balão 50

Edweine Loureiro

na ribeirinha dum latifúndio 52Ricardo Escudeiro

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IN MEMORIAM DE MARCIA SZAJNBOK

É estranho como nos afeiçoamos a pessoas que nunca vi-mos de fato. Nossos tempos são assim, tão distantes, mas tãopróximos.

Conheci a Marcia em 2006, num grupo de escritores na

internet. Ela integrou uma o cina literária que eu organizei e,por mais de um ano, ela nos presenteou com suas profundasnarrativas, sempre mergulhando na psique de seus personagens,talvez uma inclinação natural de sua formação como psiquiatra.

Em 2008, quando lançamos a primeira edição da RevistaSAMIZDAT, a Marcia foi um dos seis autores a integrá-la, eassim foi durante 24 edições, tornando-se uma das colaborado-ras que mais esteve presente na revista, com seus contos, seuspoemas e traduções a partir do francês.

Neste mês de janeiro, nós nos despedimos da Marcia.

Obrigado pelo tempo que passou conosco.Sentiremos saudades.

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Inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâ-mica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria naturezarestritiva do poder, costuma excluir ou ignorartudo aquilo que não pertença a seu projeto, ouque esteja contra seus princípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão émuito evidente, sob forma de perseguição,censura, exílio. Qualquer um que se interponhano caminho dos dirigentes é afastado e ostraci-zado.

As razões disto são muito simples de secompreender: o diferente, o dissidente é perigo-so, pois apresenta alternativas, às vezes, muitomelhores do que o estabelecido. Por isto, énecessário suprimir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferentede demais regimes autocráticos. Origina-secomo uma forma de governo humanitária,

igualitária, mas logo se converte em uma dita-dura como qualquer outra. É a microfísica dopoder.

Em reação, aqueles que se acreditavamcomo livres-pensadores, que não queriam,ou não conseguiam, fazer parte da máquinaadministrativa – que estipulava como deveriaser a cultura, a informação, a voz do povo –,encontraram na autopublicação clandestina ummeio de expressão.

Datilografando, mimeografando, ou sim-plesmente manuscrevendo, tais autores rus-sos disseminavam suas ideias. E ao leitor eraincumbida a tarefa de continuar esta cadeia,reproduzindo tais obras e também as passandoadiante. Este processo foi designado "samizdat",que nada mais signi ca em russo do que "auto-publicado", em oposição às publicações o ciais

do regime soviético.

Por que Samizdat?“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuoe posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exemplo de um samizdat.Cortesia do Gulag Museum em

Perm-36.

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8 SAMIZDAT fevereiro de 2015

Recomendação de Leitura

Maria Brockerhoff

Doris LessingTodo o bom escritor, conforme Graham

Greene, tem uma lasca de gelo no coração. Agrande Lessing demonstra essa verdade noslivros e na própria vida.

Nobel de Literatura em 2007, Doris Lessingnasceu na antiga Pérsia em 1919. Os pais ingle-ses mudaram-se para a Rodésia do Sul — hojeZimbabwe, África — em busca das promissorasfazendas de milho. A esperança se desfez sobas condições precárias naquelas colônias britâ-nicas no início do Século XX.

Uma escola-convento era o lugar para aeducação das donzelas. A menina Doris, lá, se

insurgiu contra os rígidos conceitos religiosos,principalmente os de danação eterna e as seve-ras regras de comportamento feminino.

Foi, então, estudar em Salisbury — a atualcapital Harare. Doris, aos 13 anos, já sentindoa força mutiladora do ajustamento à socieda-

de, abandonou a instrução regular e tornou-se,como vimos, uma bem-sucedida autodidata.

Seus mestres foram, dentre outros, Dickens,Stendhal, Tolstoi, Dostoiévski. Absorveu lo-so a, psicanálise, su smo, budismo, história epolítica! Daí, certamente, a fonte da insuperávele diversi cada produção literária desta bonita,determinada e inteligente mulher.

Essa escritora vai além de qualquerlimitação ou gênero. Suas obras foram ao maisfundo céu e inferno da condição humana.

Casou-se em 1938 — muito cedo, comoreconheceu mais tarde — tendo dois lhos Johne Jean. Do segundo casamento, em 1944, veioo lho Peter. A experiência da maternidadefoi-lhe um “Himalayas of tedium”, segundo suascorajosas e lúcidas palavras. Assim, levantouquestões sobre a maternidade, a subserviênciafeminina e o direito de contrariar o status quo,

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a tribo, a moda.Aliás, isto Doris Lessing o fez sempre; ou

melhor, viveu sem pertencer a qualquer classe,categoria ou hierarquia. Foi a voz altiva contraa crueldade da colonização, do racismo e dosprivilégios dos europeus. Essa independênciatrouxe-lhe a pecha de persona non grata em1956, sendo proibida de visitar a lha residen-te na África do Sul. 40 anos depois, as portasforam-lhe abertas com justiça.

Recebeu inumeráveis prêmios, culminandocom o Nobel; a atitude de Lessing perante aglória foi sempre a mesma: um chiste bem--humorado e a surpresa com as entrevistas.Recusou a condecoração de Dama do ImpérioBritânico, sob o fundamento de não existir talimpério!

A obra de Doris Lessing é inesgotável.Assim, o objetivo, aqui, é fruir da leitura de:“Os Sabores do Exílio” (“The Sun Between Their

Feet”) de 1973, e “As Avós” (“The Grandmo-thers”) de 2003.O primeiro é uma coletânea de contos em

que Doris se revela uma observadora densa,sensível e perspicaz. Está justi cada a alcunhade “arqueóloga das relações humanas”.

A edição esgotada de “Os Sabores do Exílio”— esta preciosidade deve estar em bons “sebos”— reúne histórias preferidas da autora, relatatraços autobiográ cos com momentos incríveise revelações surpreendentes. Só há um jeito desaber…

“As Avós” é um livro incompreendido! Paracomeçar, a autora insistiu e manteve o títuloquando os escolados editores sugeriram umoutro mais chamativo e/ou comercial — mas,do assunto “avós” passa longe.

O conteúdo é, claro, impensável para ospadrões atuais, para a hipocrisia vigente e paraos habituados aos dogmas. Por isto mesmo, al-gumas resenhas são descorteses ao bisbilhotar— quase sempre — uma das questões funda-mentais do livro; tais resenhas cortam o pro-cesso delicioso da leitura de, aos poucos e cadaum por si mesmo, desvelar todo o mistério dasrelações profundas entre os personagens. O livro descreve um invejável estado de fe-licidade e a solução — nada convencional — decon itos amorosos e familiares. Mostra, commaestria, o emaranhado das paixões; assimcomo quem não quer nada… sem lições…sem propósitos… Lessing se dá ao luxo de, às

vezes, deixar no ar frases do diálogo!A cada leitura um novo ângulo, um outro

lado do personagem, uma faceta não apreendi-da…

Quem já aprendeu a ler subtextos enxerga

a interpretação que Lessing dá ao esquecidoadágio “os incomodados que se retirem”. Con-cluímos, então, que nos triângulos desamorosos,quando a pessoa tem a sensação de não per-tencer ao mundo do parceiro, bate em retiradase tiver boa autoestima! Logo, irá buscar o seulugar afetivo longe dali, sem exigências, sem“indenizações”.

Se, ao contrário, for ressentida e invejosatentará destruir o parceiro, o grupo, os -lhos… não importam as feridas, os golpes,ainda que na própria pele. Lessing demonstra,com lucidez, estas duas escolhas.

Este é apenas um dos “insights” que o livroprovoca… há muitos outros… descubra-os!

Maria BrockerhoffSerão con áveis as biogra as? As de próprio punho são subjetivas, insossas. As não

autorizadas, duvidosas e, por isto, mais interessantes…Aqui, uma tentativa.As primeiras lembranças são de olhar mapas. Uma ilha — lááá em cima — me

atraía. Não tinha a menor ideia de espaço e de distância. Mas, sempre passeava poraquelas nuvens de neve. Bem mais tarde estive na Islândia e… a terra encantadaexiste.

Ler é um dos prazeres da vida. Os outros são as cachoeiras, os vulcões, os desertose a dádiva mais preciosa: o bom amor! Blog: erinias.net

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10 SAMIZDAT fevereiro de 2015

Autor em Língua Portuguesa

Marcelo Gama

Poemas

CHUVA DE ESTRELAS

Li uma vez em páginas antigasque, se uma estrela cai do céu clemente,concede tudo o que lhe pede a gente.Como as estrelas são nossas amigas!

Por isso agora, insone e sem fadigas,

to os céus toda a noite atentamente.Chovem estrelas… E eu: – Astro fulgente,quero que eterno o nosso amor predigas!

– Faze-me bom! Conserva-lhe a doçura!– Estrela, dá-nos paz, serenidade!– Que a nossa lha seja linda e pura!

Doiradas ambições! Como dizê-las,

se elas são tantas? Deus, por piedade,manda que caiam todas as estrelas!

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SONETO DE UM PAI

Vê-la crescer, orir — viço e perfume; Já sorri; quer falar; tartamudeia;Diz "mamãe" e "papai" sufoca o ciúme.Os dentinhos lhe vêm. Anda. Chilreia.

Traz a casa de risos sempre cheia.Vai ao colégio, mas com azedume.

Aborrece as bonecas. Cresce alheiaÀ formosura e à graça que resume.

De moça tem cismas e alvoroços.Põe vestidos compridos; fala pouco,Suspira, sonha, anseia e pensa em moços.

Vê-la como fulgura numa sala...Envaidecer-me e... chorar como um louco

Quando o noivo vier arrebatá-la!

h t t p s : / / w w w .

i c k r . c o m

/ p h o t o s / h e r b r a a b / 7 9 0 5 5 4 5 6 4 4 / s i z e s / o /

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12 SAMIZDAT fevereiro de 2015

MULHERES

Pela simples razão de eu ser viril e poetaque celebra, encantado, eternas bodas,olho as mulheres todas

com o mais impertinente interesse deesteta.

Por isso, às três da tarde e às vezes antes,desconhecido entre desconhecidos,levo para a avenida uns ares importantese a nado o quinteto dos sentidos.

E co a deambular a tarde inteira

entre snobs e Apolos de pulseira.

Fico-me unicamente para vê-lasno orir do seu viço,para senti-las, para analisá-las,do autêntico ao postiço,umas — soberbas, fúlgidas estrelas,outras — de um palor lânguido de opalas...

E enrodilhando-as em olhares ledos,o que se passa em mim pode ser compa-

radoàquele querer-tudo alvoroçadodas crianças nas lojas de brinquedos.

Olho-as, remiro-as de alto a baixo, sigo-as,dispo-as, ponho-as em pose, impassíveis e

brancas,

ora aqui desvendando imperfeições ambí-guasde atafulhadas ancas,ora ali descobrindo, entre êxtase e surpre-

sa,formas de nitivas de beleza.De algumas eu já sei nomes, histórias,

vidas,crônicas passionais,prestigiadas do encanto de um mistério;biogra as heroicas, doloridas,escândalos banaise banais episódios de adultério.

Porém, todas as mesmas, em conjunto,maravilhoso assuntode um poema intenso, em que ando a

meditar,e com um título antigo, assim ao jeitodas inscrições dos velhos pergaminhos:"Das perfídias que hão feitoas mulheres, os vinhose as cartas de jogar".

(...)

(Poema integrante da série Dispersos.)

Rio de Janeiro — 1909.

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Marcelo Gama, pseudónimo de PossidônioCezimbra Machado (Mostardas, 1878 – Rio de

Janeiro, 1915), foi um poeta e jornalista brasi-leiro, considerado um dos maiores representan-tes da poesia simbolista no Rio Grande do Sul.

Supõe-se que fosse autodidata, porque nemfez os estudos regulares. Nunca se submeteu àsobrigações de uma vida regular, à burocracia,nem buscou sinecuras. Tinha horror à vida doquotidiano, à vida do pro ssional. Integralmen-te poeta queria viver no sonho e no mundo dapoesia.

Sem ser um boémio radical, referênciasà vida noturna aparecem por vezes na suapoesia. Poeta lírico intimista cultiva o humore certa rebeldia ético-política de caráter anar-quista. A sua linguagem é de fácil acesso, e asua poesia, mesmo que colorida pelo humor, émuitas vezes ácida, sarcástica, até escarninhaou indignada com a vida e com os viventes.

Três aspetos são bastante evidentes na suapoesia: o decadente, o supersticioso e o anár-quico.

A sua obra resume-se a três livros: Via Sacra(poesia), de 1902; Avatar (peça dramática em

versos), de 1905; e Noite de Insônia (poesia), de1907. Estas obras foram reunidas com outrospoemas inéditos e publicadas postumamentecom o título Via Sacra e outros poemas (Riode Janeiro, 1944).

Para o teatro criou revistas musicais comoA Peste Bubônica, em parceria com Zeferi-no Brasil e outros. Do convívio com FelippeD‘Oliveira reconhecem-se-lhe traços proto--surrealistas.

Foi membro fundador da Academia Rio--Grandense de Letras e fundou em Porto Alegreo quinzenário Artes e Letras, em 1898, e arevista A Lua, em Cachoeira do Sul, em 1900.Foi redator do Jornal da Manhã.

Morreu ao cair de um bonde, nos trilhos doEngenho Novo, no Rio de Janeiro. No centená-rio da sua morte, é forçoso lembrá-lo e à suaobra.

Fontes:http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcelo_Gama

http://www.centenariomarcelogama.blogspot.com.br/

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/7096/5736

Pesquisa e síntese de Joaquim Bispo

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14 SAMIZDAT fevereiro de 2015

Joaquim Bispo

As Incertezas de Crpt

Conto

14 SAMIZDAT outubro de 2014

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Quando Crpt se religou, encontrou-se sen-tado na zona de acesso às partidas aéreas dacidade arqueológica de Ur. De imediato, dete-tou o imperativo de entregar uma mensagemimpregnada na área encriptada, dirigida aoarqueólogo “Gilgamesh”. A instrução de ação

era clara — “A mensagem deve chegar à CasaBranca na véspera de Natal do ano 2899” —mas o que isso signi cava era um completoenigma. Por enquanto.

Tratou de consultar mentalmente a enci-clopédia interna de acesso expedito. Ficou asaber que Natal era uma primitiva data reli-giosa, que se transformara numa festividadefrívola, realizada pelo solstício de inverno nohemisfério norte, e que o signi cado prin-cipal de Casa Branca era o de um antigoedifício de comando mundial situado numadas zonas irradiadas na última Guerra doPetróleo. A escavação arqueológica do localiniciara-se havia uns vinte anos e era umadas mais prometedoras da Zona Oriental.

Para o esclarecimento de data tão bizarra,não havia qualquer pista. Decorria o ano 643da era de Wu Wang e, seguindo a instruçãoà risca, tinha mais que tempo de a cumprir— 2256 anos e dois dias, mais precisamen-te. Isso era uma eternidade. Provavelmente,nem o seu corpo duraria tanto, apesar deser fabricado com as mais dúcteis e resis-tentes ligas biometálicas e com tratamentosautorregeneradores. O seu trabalho quasepermanente nas zonas irradiadas expunha-oa corrosões intensas. “Para quê, enviar umamensagem com um prazo de entrega demilénios?”, perguntava-se. Havia, com certeza,um erro na data indicada. Ou, quiçá, umacharada a resolver na própria instrução deação, que o destinatário sob pseudónimoprenunciava. Qualquer das hipóteses erapouco verosímil, dado o rigor normativo ha-bitual das comunicações. Quando acontecia

um erro, era invariavelmente da responsabili-dade de um Homem.

Uma pergunta começou a dominá-lo: “oque esperaria dele o comando da Delegaçãode Kandahar, numa situação como esta?”Enviou um pedido mental de iluminação aoConselho Central, mas, mais uma vez, o si-lêncio foi a resposta. Dantes, acreditava obterrevelação, quando pedia ajuda em momentosde incerteza, mas havia muito tempo queuma ausência absoluta de sinal era a norma.Sentiu-se abandonado por um momento,mas depois reagiu, con ando no permanentecontrolo da Delegação, ainda que silencioso,sobre o seu livre-arbítrio.

O melhor a fazer seria entregar a mensa-gem, o quanto antes. Mas, interrogava-se: “porque levar uma mensagem a uma zona irra-diada, proveniente de outra zona irradiada,mas com escavações apontando para épocastão diferentes? Por que tanto enigma na ins-trução de entrega da mensagem?” É certo quenão lhe competia questionar, mas obedecer.Devia fazê-lo, embora sentisse que, apesar doimperativo subjacente, tinha autonomia paradesobedecer. Mas, se contrariasse este, podiacorrer o risco de fazer algo pernicioso parao Homem. E isso era o pecado máximo. Poroutro lado, a mensagem saía muito da rotina,a começar por não conseguir identi car aentidade que inculcara a mensagem encrip-tada no seu âmago.

O seu trabalho, nos últimos meses, eratransportar informação classi cada entreo centro arqueológico de Ur e a Central.

Já havia levado várias mensagens à capitalterrestre, com resultados das escavaçõesarqueológicas nos níveis sumérios e, umaou outra vez, sobre os progressos da descon-taminação na região. Lembrava-se de todasessas viagens, mas, desta vez, só se recordava

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16 SAMIZDAT fevereiro de 2015

da preparação da viagem para a Região doMeio e de se religar já na estação aérea, cominstruções para se dirigir à Zona Oriental.

Obedecendo à imposição imanente, cujaorigem desconhecia, estaria a servir o Con-selho Central dos 21 sábios de Wuhan ou

a ser usado para ns proibidos, talvez poruma entidade revoltosa? Esta última intuiçãodo seu intelecto perturbou-o. O que menosqueria era ser manipulado por entidadesperniciosas para os Homens.

Pensou, computou algumas das hipótesesprováveis para a explicação da situação edecidiu-se. Não seguiria para a Zona Orien-tal sem ter algumas pistas sobre o teor damensagem que transportava, ou a entidade

de origem; também não iria a Kandaharrevelar as suas hesitações sobre a missão deque estava incumbido; nem voltaria à es-cavação de Ur a queixar-se de angústia e atentar obter respostas. A existir uma hipoté-tica alteração da sua estrutura inconsciente,provavelmente, fora lá feita.

Como que respondendo a esta intençãode desobediência, uma angústia as xianteinvadiu-o. Olhou em volta à procura deajuda, mas apenas ao longe divisou outrasunidades cibernéticas autónomas. Comdi culdade ligou mentalmente a unidade deenergia sobressalente e saiu para o exterior.O sol atingiu inúmeras das nanocélulas fo-tovoltaicas embebidas no revestimento, o quelhe transmitiu um novo ânimo, e a angústiadesvaneceu-se.

Iria a Bagdad pedir ajuda e conselho auma unidade cibernética de pesquisa e dete-ção, a única a quem alguma vez se afeiçoara,quando ela prestara serviço em Ur, uns doisanos antes. Era muito estimada na escavaçãoe um arqueólogo Homem chegou a apaixo-nar-se por ela. A Delegação agiu sem demorae os amantes foram deslocados para escava-

ções separadas. Agora, dedicava-se à desco-berta, identi cação e recuperação dos objetosdo antigo museu de Bagdad, dispersos aquan-do duma invasão oriental, numa das primei-ras Guerras do Petróleo, especialização comque fora entretanto impregnada.

A consciência cibernética dele proibia quelhe zesse uma revelação integral das ins-truções recebidas, mas avaliou que era baixaa probabilidade de a divulgação restrita dainstrução comprometer a missão. Aliás, semajuda, o desempenho da missão podia estarem risco. O máximo que podia acontecer —acreditava —, era reeducarem-lhe o processa-dor central e mergulhar temporariamente naausência de computação e mesmo de fun-cionamento elementar. O máximo era dema-siado, mas estava disposto a sacri car-se porum límpido serviço pelo Conselho, que porm reconheceria os seus bons serviços e lhedevolveria a ligação.

Psqs recebeu-o com algumas manifesta-ções de agrado, o que reconfortou Crpt. Ana-lisaram ambos a situação deste e tambémPsqs estranhou a instrução que Crpt recebe-ra. O protocolo de origem parecia regular,mas vago — Base Ur —, e os dados individua-lizados do emissor estavam encriptados.

Ela lembrou-se, então, de calcular a queano da era em vigor na época das guerras dopetróleo corresponderia o ano em curso. In-tuição certeira: 2899. O que poderia denotaruma instrução, toda ela codi cada com re-ferências de mais de 600 anos? Seita cultorado passado? Brincadeira de técnicos ciberné-ticos? Casa Branca seria uma metáfora parao atual edifício das decisões mundiais emWuhan? Por que Natal?

Psqs cou silenciosa e introspetiva duran-te uns momentos. Depois, revelou que tinha

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Joaquim BispoPortuguês, reformado, ex-técnico da televisão pública, licenciado tardio em Históri

da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimentaa escrita de cção desde 2007. Integra várias coletâneas resultantes de concursos lite - rários dos dois lados do Atlântico e publica regularmente na revista Samizdat desde2008.

Contacto: [email protected]

acesso a um descodi cador de mensagensencriptadas pelo método Ling; que se ele qui-sesse, podiam tentar abrir a mensagem. Entreo pecado cibernético e o perigo de estar aser usado para trair o Conselho, Crpt optoupela transgressão.

O descodi cador era adequado. Cautelo-samente, começaram por aceder à identida-de do emissor: “Arq. Lalit Chandra”. Ambosreconheceram o nome do vaidoso arqueólo-go de Ur, especialista da civilização suméria,que denunciara o envolvimento do arqueó-logo Gellert com Psqs. Dizia-se que, secreta-mente, realizava rituais de religiões antigas.A seguir, descodi caram a mensagem encrip-tada:

“Gilgamesh”!Soube que foste instalado nessa base de

elite, depois daquele episódio lamentável, coma nossa “amiga” cibernética. Se estás a ler estamensagem, é sinal de que a lata eletrónica ondesegue é tão arguto como eu suspeitava. Tive decriar uns enigmas na instrução, para contornaro controlo de comunicações.

“Gilgamesh”, grande amigo! “Enkidu” não teesqueceu. Como podia? Fazíamos uma equipeimbatível, coesa em todos os aspetos, que ainda

hoje é lembrada em Ur. Andávamos sempre juntos, adorávamos estar juntos, por isso nosderam estes epítetos mitológicos que adotámoscom gosto. Éramos tão felizes!

Não, “Gilgamesh”, “Enkidu” não te esqueceu.Nem te perdoou. Como pudeste rejeitar-me,

envolver-te com… Nem sequer era uma pessoa!Não passava de uma criação de engenheiroscibernéticos, uma escavadora com mamas.Nunca aceitei a rejeição, nunca a aceitarei.

Presumo que estejas bem instalado, se calharbem acompanhado. Eu? Chafurdo na lamamesopotâmica. Sozinho. Terrivelmente triste.Sem um carinho. Não aguento mais. Por isso teenvio esta lata, com um voto de sonhos felizes.Bye!

Os amigos perceberam de imediato oque estava prestes a acontecer e só puderamabraçar-se, antes que a explosão levasse me-tade do edifício onde se localizava o aloja-mento de Psqs.

Na Delegação de controlo cibernético deKandahar, perdeu-se, de repente, o sinal deduas unidades em Bagdad.

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18 SAMIZDAT fevereiro de 2015

Conto

Maria de Fátima Santos

Bem feita!(ou, melhor dizendo: Schadenfreude)

https://www. ickr.com/photos/jeffbelmonte/15921928/sizes/o/

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– Ótimo, ótimo…As palavras enrolam-se-lhe, pastosas, sob o efeito do an-

tidepressivo que tomou, empurrado por um gole de vodkacom sumo de laranja.

– Ótimo! – ainda repete.Maria Teresa tinha acabado de dizer-lhe, e ele tem ne-

cessidade de expressar contentamento, mesmo sabendo quemente, mesmo perante ela que sabe. Ainda assim, a rma, acompor melhor o quadro:

– Estou tão contente, tão feliz por eles.E despede-se.Frederico Esteves a baloiçar o corpo magro de um lado

ao outro da sala imensa que é o estúdio onde vive. O meutugúrio, como diz, por graça.

Maria Teresa tinha sido direta. Nem boa tarde, nem oláxuxu como ela gosta de tratá-lo. Atirou certeira: é apenas

para te dizer que acabei de casá-los. Assim, sem mais delon-gas, e ele naquele: ótimo, ótimo, tão amaricado que, mesmopela voz, mesmo ao telefone, se juraria dos seus gostos emmatéria de género. E no entanto, ele diz de si mesmo nummaneirismo repleto de trejeitos: eu não me assumo bicha,que querem... E jura que gosta é de mulheres. E a dizer assim,ri como só ele sabe, a cabeça ligeiramente descaída para trássobre o ombro esquerdo, e a mão do mesmo lado a tapar-lhea boca que propositadamente escancara em demasia.

Com que então, José Pedro tinha mesmo casado.Frederico Esteves a remoer no que acaba de saber, senta-

-se no sofá, as pernas esticadas em cima da caixa que um diaencontrou num contentor de lixo. Trouxe-a para casa numanoite de copos. Recuperou-a ele mesmo. Nela guarda as be-bidas além do stock da dispensa. Hoje, faltou suco de laranja,mas é raro, e Frederico Esteves despeja no copo o que restana garrafa.

– Pois que sejam felizes – diz assim em voz que outrosouviriam se ali estivessem, e simula um brinde erguendo ocopo no braço esticado para o ar da sala.

Que aquele consórcio lhe seja fonte de penas sem medida,pensa Frederico Esteves, como praga que rogasse, mas afasta

de si esse sentimento, e emborca o copo de um só gole, e volta a enchê-lo com Vodka ardente.***

Maria Teresa fez o que ele tinha pedido: quando os casa-res, por favor, avisa-me. E ela telefonou-lhe.

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20 SAMIZDAT fevereiro de 2015

Tinha sido numa outra noite, e tinham jantado. Frederico Esteves chorara-lhe asmágoas daquela paixão, e ela tinha-o acon-selhado. Que não dramatizasse, dissera-lhea notária do alto de uns sapatos muito altose muito encarnados. Era o seu aniversário e,não estando reduzida à amizade de Frederi-co Esteves, não lhe tinha apetecido senão elepara comemorar. Gostava daquele seu modode ser abichanado. Dava-lhe gozo percebê-losofrendo pelo lado errado. E com ela Fre-derico Esteves sofria todo o seu sofrimentosem ensaios nem segredos, que Maria Teresatinha aquele modo especial de o fazer carcada vez mais sofrido, cada vez mais umhomem sem rumo e sem sentido, pequeni-no, perdido de si mesmo, angustiado, e eladeleitava-se a ouvi-lo, e consolava-o exacer-bando-lhe os desgostos.

Tinham-lhe dito que era sadismo, mas elaachava que era mais a raiva de não ter o pé-nis dele, de não poder usá-lo. E detestava-o.Que ele sofresse fazia-a sentir-se num quaseorgasmo.

Fora assim na noite dos seus quarenta ecinco anos. Frederico Esteves sofrendo peloamor imenso que José Pedro nutria por aque-la criatura esquelética e inculta, assim diziaele da que seria muito em breve a esposado seu idolatrado. Maria Teresa apressara-sea dizer-lhe: vai casar, está con rmado. E elechorara de baba e de ranho.

Maria Teresa apressara-se a contar-lhe,como se apressou, ainda há nada, a dizer-lheque os tinha casado.

****– Nunca perceberei tanto gastar de tinta,

tanta discussão a interpretar o que só pode-ria ter sido de um modo.

É Frederico Esteves remoendo o artigo queacaba de ler numa página do jornal que temdesdobrado sobre a mesa.

Está sentado na esplanada do cafezinhoonde, por um costume de anos, passa as ma-nhãs de domingo. Uma esplanada arrumadi-

nha que se debruça, lá de cima, sobre o rio.Frederico Esteves gosta de gracejar dizendoque ca ali na hora em que os amigos, os deinfância e muitos dos que ainda lhe restam,ouvem missa em alguma igreja. E acrescenta,impertinente: eu faço a minha consagraçãocom um café bem quente e torradas quelambuzo em doce de cereja. Mas não dizque esse é o seu local de leitura dos jornaissemanais, que ele não lê outros, e quase sólê a secção literária. No resto, passa os olhosnos títulos, ou saltita-os pelas linhas de umanotícia ou outra.

– Mais um a insistir na versão do Benti-nho traído – tartamudeia Frederico Estevesolhando o rio que o sol pintalga de re exosinquietos.

Os articulistas e os estudiosos da obra deMachado preferem que a culpa tenha sidode Capitolina. Preferem isso, a darem umsentido novo à trama urdida pela matreiricede mestre Assis.

Frederico Esteves sorri-se a imaginar comopoderia ter sido com Bentinho e Escobar,e vem-lhe à memória a notícia que MariaTeresa lhe deu nem há dois dias. E nisto vai

virando as páginas dos jornais, a ler apenasas mais gordas.

Mas aquelas letras ali são diferentes.Aquelas cegam-no. São letras enormes queo estonteiam. Letras muito negras a salta-rem da folha e a dizerem-lhe: acidente mata

jornalista e sua jovem esposa. E os olhosde Frederico Esteves cegam-se de lágrimas,que eles já se desviaram sobre as letras maispequenas, as da linha de baixo, que gritamacima do ensurdecer que é o silêncio da es-planada: José Pedro Reis e sua esposa mortosnum brutal acidente.

Frederico Esteves não lê os detalhes, ou as

letras pequeninas lhe diriam que o casal iaem viagem de núpcias.Nos olhos marejados, apenas a imagem

do seu amantíssimo José Pedro, e no entanto,não é um soluço, e nem é um choro o que

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lhe está acontecendo, é sim um riso, umagargalhada sem pejo e sem remorso. Um rirgenuíno que condiz com um imenso bem--estar, enquanto as lágrimas lhe correm caraabaixo.

Morreram os dois.

Não lhe resta a quem tenha que dizer,insincero e cínico: que sejam felizes, e aqueleardor no peito, e aquele despeito, e aquelehorror de não ter sido com ele.

Gargalhadas sonoras tremulam-lhe o peitoe a garganta, saem-lhe pela boca, e o senhorda mesa ao fundo voltando-se perturbadoe curioso do rapaz tão despudoradamentehilariante.

– Boas notícias?! – atira-lhe o homenzinhoa tentar colmatar a euforia que amachuca o

silêncio daquela manhã de domingo.Frederico Esteves domina o riso. Controla--se e pede desculpas embrulhadas em gestosmudos. E evitando o ruído que seria o metala rojar na tijoleira da esplanada, afasta a ca-deira. Quadrados verdes e brancos, nota ele,e já de pé, arruma os seus pertences espalha-dos pela mesa.

Ri ainda, mas apenas no silêncio pruden-te do modo como coloca os olhos e a boca,e no modo como se desloca, que parece ele

que nem sente os pés fazendo pressão paraque ande, primeiro na esplanada que atra- vessa de uma ponta à outra, e alguns olhan-do, da sua pasmaceira de domingo, aquelehomem tão contente: terá lido uma boa

notícia, parece que pensam. Frederico Estevesretira-se preocupado com o desarranjo quepossa ter causado na quietude que é supostanuma esplanada debruçada sobre o rio numamanhã de domingo

Atravessa o salão diminuto que é o cafezi-nho, e sai para a rua, os pés sempre naqueledesatino de o fazerem ir voando, e o peitonum indecoroso sentir-se com o coraçãoleve.

Frederico Esteves num bem-estar que nãopodia ter previsto ao ler a notícia da mor-te de José Pedro. E aceita como dádiva dealgum céu que ele nem sequer venera, aquelesentimento que deveria ser contraditório.

Nunca mais ter que os ver. Nunca maister que os cumprimentar. Não ter que repetiro ardor imenso do ciúme, ou a dor incisivada inveja que o sufocava de cada vez que os

via, de cada vez que os visse: José Pedro e aesposa no restaurante, no cinema, em casados amigos que ambos frequentariam.

E liga para Maria Teresa.Palavras de desgosto, é o que dizem um

ao outro, e que Maria Teresa lhe encomendeuma coroa linda, pede Frederico Esteves, queele não tem cabeça. Que está destroçado, iadizer-lhe, mas contém-se, e ela jura que serãoas ores mais bonitas no cemitério, e quenão desespere, que se precisar dela, a chameem qualquer momento.

Maria de Fátima SantosAposentada de professora de Física e Química, Maria de Fátima Marques Correia Santos

nasceu em Lagos, Portugal, em 1948.Contos seus ilustrados por T.C.A. estão publicados no livro Papoilas de Janeiro. Outros in-

tegram antologias, alguns deles distinguidos com menções honrosas como seja no ConcursoNovos Talentos Literatura da FNAC.

Em 2012 a novela “Só mais um abraço” recebeu uma menção honrosa no Prémio Literário João Gaspar Simões promovido pela Câmara Municipal da Figueira da Foz.

Tem alguma poesia publicada em antologias.

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22 SAMIZDAT fevereiro de 2015

Nathalie Lourenço

Andaime

Conto

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Tão apertada, que parecia pintada na pele.A calça. Tão apertada, que eu teria pena dacirculação da moça. Se não estivesse ocupa-do, acompanhando o movimento ritmado dosbolsos, um pra cima, outro pra baixo, cada vezmenores até ela dobrar a esquina. E nem ouviu— ou ngiu que — quando o Salomão atirou doandar de cima:

— Deus é justo, mas tua calça é mais, hem!E era. Um brilho nesse mar de tijolo, em

cima de tijolo, em cima de tijolo. Nossa tele- visão de cachorro. Sabe, televisão de cachorro?Aquele trambolho na padaria, os frangos noespeto assando, girando. Um balé de frango. Oque um cachorro pode fazer além de sentar,abanar o rabo e olhar? Mas tem a cabeça dagente, e lá é um mundo onde o vidro abre, eo dono da padaria não tem balde d’água nem

vassoura e lá a gente termina com a língua prafora e o focinho brilhando de gordura.Meio-dia, quase. A calça crocante de cimen-

to e argamassa. Vai começar a segunda leva,todos os tipos de menina, saindo pro almoço.O Salomão desce, eu limpo o suor das mãosno jeans. Meio-dia, quase. O tradicional goled’água, para tirar o pó da garganta antes de ati-rar gracejos como quem atira confetes, o hobbyda categoria, benefício que tinha mesmo é queser garantido em carteira assinada para todomundo que passa o dia botando a cidade de pé.

Ali na curva, aparecem as primeiras. Umamorena alta, de blusa estampada e argolasimensas nas orelhas. Uma mulata de batom

vermelho e shortinho. Mãe do céu. Está dada alargada do Torneio Anual de Louva-ancas. Dodia. Eu começo.

— Minha Nossa Senhora da Bunda!

Mais dois minutos, vem a próxima. Loira,daquelas com as raízes pretas. E um bocão.Deve saber chupar, e bem. Mas, calma. Nem é aminha vez. O oponente dá uma engasgadinha,mas tira uma da manga no último segundo:

— Lôrinha! O que eu faria contigo dava um

lme. Pornô!Outra morena, mais velha, de vestido comestampa militar. Um desa o.

— Tá camu ada, minha linda? Que roupaboa pra eu te levar pro matinho...

Sacanagem sob medida ganha ponto. Fazerela olhar também. A temporada promete e nãoé nem meio-dia e dez. Vem vindo uma bembranquinha, com um cara do lado. Salomãocrava a clássica.

— Tá tudo bem, meu anjo, eu não sou ciu-

mento...Passam minutos, e ninguém. Mais um goled’água, pra ocupar o silêncio de decidir seterminou o torneio. E vira a esquina uma moçabem magrela, de moletom e rosto cavado, comaqueles sapatos de plástico cascudos feios comoo diabo, depois de ir no cabeleireiro do infer-no (que é uma bosta). A ereção ao contrário.A gravidade vezes dez. O anticoncepcionalgenético.

— Vem pra cá que eu te chupo toda!Ela apressou o passo. Ela não olhou pra trás.

Mas dava pra ver nos pelinhos da nuca que elagostou.

Sabe como é. Se a gente não diz nada, elasse ofendem.

Nathalie LourençoPaulista e paulistana desde 1984. Trabalha como redatora publicitária e já teve

textos publicados nas revistas Parênteses, Flaubert, Vacatussa e Quincas, assim comona coletânea Edifício Marquês de Sade (Ed. Valer). Atualiza, ainda que raramente, oblog www.sabedoriadeimproviso.wordpress.com.

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Leonardo Lima Ribeiro

RECÔNDITOS DA ESBÓRNIA CIDADÃ

Conto

Para Goethe e Schiller, in memoriam

Coração aberto; Coração fechado; o Aber-to e o Fechado; a Expansão e a Contração; oAbraço e a Fuga do abraço; a Amabilidade eo Amedrontado recolhimento: segue adianteo diagnóstico do coração em seu pendularmovimento, do amor ao sofrimento, da no-breza à apatia.

Coração Aberto; coração Fechado – naabertura é patente que com amor intenteapalpar os matizes hodiernos, sejam imanen-tes à sociedade da natureza ou inerentes ànatureza da humanidade. O cotidiano, em

seus clamores dispostos geogra camente,topologia de dissolutos dissabores, talvez, detodo modo, não se disponha por seu lado,enquanto efêmero indeterminado, a reajustar--se aos potenciais limites que margeiam oaberto coração; coração juvenil, o qual emexpansão com sua injunção já ensejaria deantemão, com carinho, abraçar a realidadeem sua esfera. O real como esfera, o coraçãocomo envoltório, envoltório destinado aoabraço do esquivo e sorrateiro circuito doreal.

Estaria o real, em sua totalidade plurisso-cial e/ou multinatural, disposto a recepcionar

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as carícias do aberto coração, sem, contudo,imputar-lhe a punição que realiza o preçodas duras penas, tecendo sobre ele as cica-trizes que entravam a própria expansão?O Real é matreiro entrave à expansão docoração, que com paixão está provisoriamen-

te destinado a amar, desejar aberta e inge-nuamente o real e sua multiplicidade. Amarabertamente o real é paradoxalmente arqui-tetar em si e para si zonas internas de morte.Assim, estilhaços de amor sob a tutela da

vida transmutam-se na as xia e entupimen-to das expectativas: tanto mais se ama tantomais o peso da morte recobre os processosdescompassados da gênese do amor, qualseja: o coração que, no decorrer da existên-cia, tende inexoravelmente ao recolhimento,ao enclausuramento, acorrentando a si mes-mo às frustrações, ou seja, ao envergonhadopseudônimo das nostalgias da virilidade.

E segue a história do coração fechado, aser recoberto por angústias ou doses de rea-lidade xadas no peito, realidade a qual, paraconjurar, inicia seu projeto com a exigên-cia de que, antes de tudo, a moeda de trocadeve ser a inocência incandescente do amor.Aquele que ama (o coração) é um credor,

o qual, ao conferir o amor como crédito àrealidade, encarna a falência da combustão.Decorre-se o amor, que conquista a mortecomo sintoma de sua histórica expressão àmedida que escorre do coração. Entrementes,razão se produz e coração se reduz aos limi-tes da velhice a qual, en m, paira na idadecontemporânea: ocasião que já havia recebi-do da modernidade a missão de a todos oshomens empobrecer e aniquilar, elencandopara tal projeto o coração e sua amputaçãoprogressiva como vítima primeira do inci-piente morticínio.

Os tempos singulares para experiência doamor em crise, tanto quanto do progresso

do recolhimento do coração antes aberto e varonil, decerto são descontínuos. A cliva-gem da experiência do amor em crise namorti cação dos corações esbeltos é própriaaos nossos tempos amiúde inarticuláveis.Nisso, patenteia-se também o mapa desco-

nexo dos dissabores das almas empanzina-das, que simulam e atestam, cada qual a seumodo, um palimpsesto de fantasmas móveise tristonhos na carne, espectros os quais seinscrevem uns sobre os outros na semitrans-parência onírica peculiar, conferindo entãoao mundo antropológico a pintura que lheé devida: um hermético tom de horroresdistintos, cujos sujeitos nele circunscritos hátempos intuíram que justamente os temoresindividuais marcados nos corações pavimen-tados ou revestidos de cimento são inapela- velmente a tonalidade plural e inescapávelque, em desnível, exprime no limite umquadro assombroso para a história do espíri-to do mundo.

Possivelmente, todas as máscaras da socie-dade civil nos marcos do capital, bem comosuas políticas institucionais público-privadasministeriais ou partidárias e sindicais emprocesso de manutenção ou reprodução

das contradições de classes, só se expressemcomo tal porque contêm como aparato osubsídio processual da auto-reconstituiçãodo quadro acima expresso, cuja molduratende à captura frenética das pinturas, porvirdos amorosos corações vilipendiados, tantoquanto insinua sobre eles mórbidos fantas-mas, disponibilizados enquanto cicatrizes dedor, recônditos de sofrimento cuja plasticida-de libidinal mais deslumbrante e singular seassenta como potência do esquecimento, aofundo da pele dos preconceitos miscigena-dos e expressos tecnologicamente à esbórniacidadã, ou melhor, no poço sem fundo dossujeitos de direito maquiados para explora-ção, labor e diversão na mixórdia nacional.

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ESTÉTICA DAS GARÇASÉ regra anunciar que a estética das garças

pode ser intuída ao atravessarem límpidosares, os quais lhes tocam as penas que, porseu lado como asas, intentam acariciar cris-talino oceano celeste. Todavia, tal percepçãodecorre de pí a sensibilidade, cuja condiçãode possibilidade secou há tempos patentefelicidade viril, sob exigência e forma dehonestas lágrimas. Eis então a secura estéticaproporcionada pelos homens de mau gosto.

Primeiramente, a beleza das garças aindanão se efetivou como imagem, porquanto osolhares para elas destinados como prenúncioda escrita não foram ainda capazes de pro-duzi-la (a beleza das garças); talvez em razãode a sua sensibilidade — relativa aos olharesanunciados — decerto não conferir garantiapara si na sustentação de própria elastici-dade (potência de efetividade). Para tanto,fechar os olhos não é sequer opção, uma vezque através desse delicado gesto apenas tería-mos a capacidade de perceber como estamospreenchidos de e por terrores que nos revisi-tam amiúde, terrores próprios ao passado oqual nos oprime a possibilidade de plasmarbeleza. Ao contrário da época de Baudelai-re, hoje não podemos mais extrair ores domal, sob forma de poesia ou ensaio. Segueentão o pretérito de nós próprios, turbu-lência onírica que nos arrasta para todos oslados no bojo das angústias que demarcam anostalgia como dimensão interna: pressão doespírito sobre o próprio espírito, que voltan-do-se para si intenta exprimir re uxo, resí-duos descompassados no registro das dores

da carne que os encarna.Por outro lado, talvez pudéssemos insi-

nuar pontuar a beleza das garças caso aspróprias garças se encarregassem da missão,abandonando hodiernos hábitos de espécie,

como os de circundar montanhas e assentar--se de bico nos lagos à procura dos frágeispeixes. Aqui, não há possibilidade de escolhaa qual possa minimamente ressoar comoprática incipiente da liberdade. Liberdadecomo escolha seria o mesmo que trazer ao

campo das próprias escolhas a iminênciada ruptura com os códigos da espécie, zonaanimal que, sendo passível de se desdobrarem distintos gestos, permitiria direcionarhumanos olhos à captura de original beleza.O que também não vem ao caso.

Torço para que a brancura dessas avespossa certo dia conduzi-las à des guraçãopor meio de que, de modo distinto, garanta--se outro instintivo campo de ação. Gostaria,

viciadas garças, que extravasassem, rom-pessem com as imposições de minha fan-tasmática imaginação, tanto quanto achariaconveniente que despedaçassem os próprioscondicionamentos operadores da interinstin-tividade imanente a vós. Ao ssurar minhaimaginação, os processos reais pelos quais seapresentariam não poderiam ser capturadosimediatamente à ocasião para as aventurasdos preconceitos por mim já desenvolvidos,condicionados à deliberação corriqueira da

pintura dos mesmos quadros, os quais postu-lariam sua dignidade (a das garças) enquantobazó a das minhas verdades. Ao distorcer osinstintos com outro afã ou matiz de brancoclamor, por outro lado, poderiam autorreve-lar peculiar imagem, através de que, em teusnomes, poderia eu pintar não sem angústiaas letras de amarga, conquanto voraz, beleza.Sonho ou suponho esperançosamente umdia encontrar distintas aves, cujos instintosnão condigam com a imaginação enquantoespelho re exo, tanto quanto clamo paraque minha imaginação se desprenda ou nãoendosse interna empá a, análoga ao brutalpassado que impõe a cristalização do vivoexperienciado e pintado como estátuas da

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morte que me persegue: sombra que suspiracalafrios no cérebro, reverberando sopros deinconsciente sensação no amargurado cora-ção.

Algum dia, decerto hei de observar céle-bres aves, capazes de, com lâminas acopladas

às asas, recortar o mundo ao invés de man-samente circundá-lo, descortinando então suacortina inerente — a qual estaria a velar osrecônditos de insensível vazio; algum dia, heide observar célebres aves, capazes de, comespadas no entorno do corpo, despedaçar eoprimir homens, reconduzidos aos gemidose prantos enquanto de nitiva catarse da suamaldade, cuja passional alegria, até o mo-mento, ainda lhe serve de máscara ou prisão.As garças serão as únicas a pintar o quadrodo mundo despedaçado, com pedaços en mmisturados ao negrume do vazio que lheshonra como causa — o que renderá ao mun-do e aos homens a ruptura da carcaça.

Tais aves também poderão serpassíveis de colorir o in nito vazio com osangue dos homens dispostos no limite deinexorável pranto. O vazio, então pintado de

vermelho como couraça ou bruma, terá, emparalelo, seu som original: a cor e o som, o

vermelho do sangue e os gritos melódicosda carne, ambos oportunos do morticínio,recobrirão e cantarão o porvir, numa ode de

horrores como uma só vibração. Seguir-se-áentão a obra de arte pintada às duras penaslaminadas de autênticas garças, passíveis derevisitar a beleza perdida e imiscuída numbreve horizonte. Aqui, à época da mortehumana, reencontrar-se-á o vazio colorido,

colorido em detrimento de humanos gemi-dos. Assim o sendo, jazerá sob os temoresda presente época o quadro latente, a serpintado, para o qual as garças se voltarãocomo empreendimento ou enquanto agentesde produção; um quadro através do qual —arrancando-nos a cabeça e as falsas expecta-tivas — a própria imaginação do homem nãosomente se libertará de si, mas do passadodas torturas históricas que não cessam de serepetir. Apenas desse modo Deus se extravia-rá, tanto quanto a beleza talhada às custas dosangue, com originalidade, reinará.

Leonardo Lima RibeiroPossui graduação em Comunicação Social pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR); é

especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela UFC (Universidade Federal doCeará); é mestre em Filoso a (linha de pesquisa: Ética) pela UECE (Universidade Estadual doCeará). É autor do livro Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza [2013].Tem interesses em: Ética; Filoso a Social e Política; Antropologia losó ca; Filoso a do direi-to; Lógica; Filoso a da Ação; Metafísica; Teoria do conhecimento; Estética; Audiovisual; Teo-rias da comunicação e da imagem; Cinema.

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Mateus Baldi ASAS NA NOITE

Conto

Para Bá e An, que sequer cogitaram me con- denar a essas linhas.

Família é uma merda.

Rubem Fonseca

Resolvi sentar e escrever porque nãoconsigo mais dormir. Tem sido assim há al-gumas semanas, desde que meu lho nasceu.Ele nasceu bem, se é o que você quer saber.O nome é Tiago. Bonito, né? Forte, ele. Masme tira o sono. E nem é porque não dorme– ele dorme, e muito. O problema sou eu.Sou eu que acordo de madrugada, às trêsda manhã, e vou até a janela sentir o vento

gelado e ver o caminhão de lixo estacionadodo outro lado da calçada, os garis em uni-formes laranjas apanhando sacos pretos e

jogando na caçamba, e então vem o barulhoensurdecedor do triturador mastigando todoo lixo. Virou passatempo de quinta-feira.

Mas só às quintas-feiras. Nos outros diaseu co sentado vendo os morcegos batendosuas asas na noite e sugando o sangue dasfrutinhas nas copas das árvores que de diatremeluzem num verde-abacate lindo. Mas

essa história não é sobre mim. É sobre meusono. É um ensaio sobre o sono. Talvez sejaisso. O sono e como ele não existe em mim.Antes do bebê nascer eu dormia bem, eu iapara o trabalho e escrevia poemas na horado almoço – coisa boba, tipo esse:

TERRORISMOUma bombanos servidores

do Twitter,Facebook e WhatsAppE o 11/9 vira guerrade confete.

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Mas hoje em dia eu só consigo deitar nacama depois de um dia exaustivo e encararo teto. De vez em quando tento me hipno-tizar: observo o ventilador girando à luz dalua e engano meu cérebro. Mas ele, maisesperto, desperta e eu lembro que estou acor-dado. Hoje, por exemplo, estou acordado há

vinte e duas horas. Não sei como vou conse-guir trabalhar.

O bebê passou o dia comigo. Minhamulher viajou para a casa dos pais porque amãe está com câncer terminal. Começou nopeito e se espalhou. Uma merda. Ficamos eue o Tiago zanzando pela sala, ele dormindo,eu tentando. Não consegui – o telefone to-cou. Atendi e era ela. Queria saber como euestava. Bem, eu estava bem, só queria dormir.Mas você dormiu noite passada! ela disse eeu concordei. Sim, querida, dormi por umahora e meia, noventa minutos, coisa boa, né?Ela não respondeu, mudou de assunto, come-çou a forçar um choro e disse que a mãe iriamorrer no m de semana. O bebê começoua chorar, preciso parar de escrever.

Patrícia voltou de viagem. A mãe morreue eles enterraram o cadáver no cemitério dacidade. Escrevendo essa última frase penseiem quão engraçada é a dissociação mãe/ca-dáver. Observe, leitor, que meu inconscienteconsidera o cadáver algo diferente da minhasogra, o que é muito engraçado, porque um

milissegundo antes do desenlace eles estavam juntos. Mas não. A velha morreu. Está no céue o cadáver está sob a terra sendo devoradopor minhocas. Que tristeza, o m da vida.

Patrícia quis saber que diabos é isso queeu vivo escrevendo. Você se levanta todanoite, ela diz, e começa a martelar o teclado.Isso me acorda. Mando ela calar a boca, masela continua e diz que eu não sei o que elapassa, e eu digo: você está de licença-mater-nidade, quem se fode sou eu, que só tenhodireito a uma semana, não fode! E assim abriga começa e o bebê chora e ela me afastadele. Enquanto Tiago tenta dormir eu ten-to bater o mais devagar possível nas teclas,mas é difícil, meu computador é velho e nãoposso gastar dinheiro com um teclado novo.O bebê, sempre o bebê, precisa de fralda e

chupeta e chocalho e mil coisas.Essa é a última entrada desse diário. Foibom enquanto durou. Enterrei Tiago no altodo Horto, numa trilha de difícil acesso. Subide carro com ele – Patrícia estava dormin-do – e cavei com uma pazinha no chão. Oburaco cou pequeno, mas botei ele de carana terra e cobri. Ninguém ouviria o choro deum recém-nascido. Voltei para casa, compreium teclado novo na loja de computadores edormi como um anjo.

Mateus BaldiNasceu no Rio de Janeiro em 1994. Roteirista e editor da Revista Poleiro, atualmente

naliza seu primeiro romance. Mais contos podem ser encontrados no sitewww.impublica- veiscontos.com.br

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30 SAMIZDAT fevereiro de 2015

O pássaroConto

Cinthia Kriemler

Que rissem. Que o chamassem de doi-do. O sumiço do pássaro lhe revirava asentranhas. Os olhos de perda, a barba porfazer, o cenho permanentemente franzidoe um silêncio incomum o tornaram umacaricatura do homem que era. Talvez fosseum presságio de que o pássaro não voltaria.Talvez a criaturinha tivesse morrido. Ou se

juntado a um bando de aves e migrado parao sul — pássaros migram como patos? O fatoé que ninguém criava coragem para dizerisso a ele.

Na varanda enorme do apartamentoimenso, o ninho vazio e o comedouro eramreferências cruéis à perda inexplicável, aoabandono sem razão. Ele, absorto em pensa-mentos recorrentes. Tinha feito alguma coi-sa? Um grito, um gesto brusco, uma tentativade aproximação indevida? Não, não. Nadaque rompesse a rotina.

Todo dia, acordava com os trinados dobicho. Dava-lhe comida e água. E só então sesentava na mesa redonda da varanda para o

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café da manhã. Como um ritual, nem bemterminava o pão, via o pássaro se aproxi-mar e bicar as migalhas que, com o tempo,se tornaram verdadeiros nacos de comida,deixados de propósito no prato. Na hora doalmoço, mal abria a porta de casa, era rece-bido por um ou dois voos de boas-vindas do

outro lado da porta de vidro que separava asala da varanda.E, agora, esse sumiço.Na terceira semana, depois que não havia

mais árvore ou grama na qual procurar, veio--lhe uma tosse nervosa, seca. De nhava comose tivesse perdido toda a energia. Como senão lhe restassem forças ou motivação paranada. Virou alvo de deboche, de desprezo.Um homem desses fazendo tamanho escar-céu! Um marmanjo agindo feito criança! Será

que surtou? Ah, que absurdo! Logo ele quesempre fora um homem sensato, centrado.Uma dessas criaturas fortes, imbatíveis, pron-tas a receber as porradas que a vida distribuifartamente. Capazes de agir, reagir, revidarofensas, humilhações, provocações; de rejei-tar possibilidades ambíguas ou perigosas, decontornar problemas nanceiros, de equili-brar a saúde entre um porre e uma corridano parque. Um desses campeões de aguentar.Aguentar o tranco, as quedas, as recaídas, osfracassos. Aguentar os amigos quebrados, os

vizinhos chatos, os clientes insuportáveis, osns de semana repetitivos: baralho, vinhoou cerveja, vinho e cerveja, lmes, um tea-tro, uma exposição, jantar, sexo programado,música, sono.

Então, o pássaro apareceu. Inteiro. Re-petindo trinados e voos. E quem sabe ondetenha estado. Vagando com um bando deaves à toa, namorando um pouco, fazendopouso em outras varandas, visitando parentesdistantes. Impossível dizer. Fez como todos ospássaros: foi ser livre por aí. Depois, voltou.

Em desespero, conversou com o animal,xingou, esbravejou, cobrou, implorou. Pensouem fechar toda a varanda com vidros e redese telas. Fez planos de trabalhar somente emcasa, de deixar aberta a porta de interliga-ção entre a varanda e o resto da casa, deconstruir um lago em miniatura, com ape-nas dois dedos d’água, para o bicho molharos pés e o bico. No auge do medo, esteve aponto de comprar um pequeno viveiro. Atéque, exausto, percebeu a si mesmo. E sentiu

vergonha.Desfez-se das ideias absurdas, uma a uma.

Desalterou-se. De início, obrigando-se; depois,naturalmente. E foi se acostumando às idase vindas do pássaro, aos seus sumiços episó-dicos, até que, lentamente, voltou às rotinas.Mas não a todas elas. De vez em quando, fazcomo o pássaro: vai ser livre por aí.

Cinthia Kriemler Contista e poeta. Começou a escrever em 2007, na o cina Desa o dos Escritores do Núcleo de

Literatura da Câmara dos Deputados. Autora dos livros: “Sob os escombros” e “Do todo que me cerca pela Editora Patuá; “Para en m me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal — FAC; e do e-book “Atos e omissões”, pela Amazon Brasil. Participa de

diversas coletâneas de poesia, de contos e de minicontos. Membro da Academia de Letras do Brasil,Seção DF, do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRCarioca, mora em Brasília há mais de 40 anos. Graduada e pós-graduada em Comunicação Social.Escreve para a Revista SAMIZDAT todo dia 16.

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HYPNOSMario Filipe Cavalcanti

Conto

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É que tudo tinha se dado como uma tentativa de fuga. Sóagora eu consigo divisar um pouco do que me aconteceu.Mas é que agora eu estou tão longe de todos aqueles fatosrepulsivos... Não, não sei ao certo se posso chamar assim...É que me apareceu novamente, após longos, longos anos deausência. Apareceu-me tudo de novo e eu não sei o quefazer. Sei que não posso falar com qualquer pessoa sobreisso. Não posso pedir um conselho sabendo que a respostaao meu pedido será a entrega de um cartão de um psiquia-tra ou o e-mail de um terapeuta. Não acredito nesses caras.Não acredito em nada do que façam e falem, a não ser emsua capacidade incansável de nos tirar dinheiro. E por issobusco pelo papel em branco com minha caneta preta segurapor uma mão trêmula que passeia no papel enquanto sua.Espero que não te canses de mim assim tão facilmente.Agora, enquanto escrevo na esperança de que alguém umdia leia, tenho-te como o único ser disposto a ouvir o queme aconteceu.

Tinha sido educado muito rigidamente num semi-inter-nato de cinzentas paredes e almas. Tudo isso no intuito deque eu fosse um bom cristão. Eu seria um cristão temente aDeus, que seguiria todas as regras da moral, bons costumes,da ética, do Direito e, com isso, teria a alma tão cinzentaquanto as paredes de meu internato. Todos os dias rezá-

vamos bem cedo, assim que se divisava o sol no horizonteaturdido do interior do Estado. Depois líamos, fazíamosnossas lições, jogávamos brincadeiras de roda, almoçávamos,cochilávamos na sesta e depois voltávamos a estudar. Nossanoite inteira eram dois fatos: janta e sono. De toda minha

vida no internato o sono era a parte mais insigni cante deminhas ânsias de menino, até o dia em que aquilo começou.Antes preciso dizer uma coisa: a gente nunca foi cristão

de verdade. Digo, eu e meus amigos. Estávamos ali, estudan-do e fazendo outras coisas a que éramos obrigados, mas nãotínhamos o menor medo do diabo, nem o menor respeitopor Deus.

Voltando. Tudo começou numa noite bastante escura,clareada aqui e ali por raios que caíam aos montes. Tínha-mos ido dormir cedo e eu não havia atendido o conselhoda irmã Da Glória que tinha dito para nunca dormirmos debarriga cheia para não termos pesadelos. Não tinha medode pesadelos, assim como não tinha medo do demônio, nemacreditava nas bestagens de Deus. Estava deitado esticadona cama, de vez em quando me mexia, espalhando-me peloslençóis, até que dormi.

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Não sei ao certo o instante exato do sono.Sei apenas que fechei os olhos e abri denovo. Estava num lugar completamente estra-nho. Havia uma luz tão forte, tão forte quenão podia abrir os olhos sem ter de súbitouma dor gigantesca de cabeça. Pus minhasmãos nos olhos e quei parado, quandosenti que o chão se movia. O chão se moviacomo se fosse o balançar das vagas agitadasde um mar tempestuoso. Caí. A sensação decair foi terrível porque não teve pouso. Euia caindo e caindo e caindo enquanto tenta-

va gritar, berrar, chamar por alguém, pedirajuda. Minha voz havia sumido e os sons quearticulava estranhamente pareciam de umnascido mudo. Aquilo teve uma duração semmarcação de tempo. É que eu havia perdidocompletamente a noção de tempo e de espa-

ço. De repente minha queda foi estancadapor um mar branco e gelatinoso. Eu estavaimerso num mar branco fosco e gelatinoso,como se fosse um gigantesco oceano. Ape-nas minha cabeça estava para fora daquiloque eu tentava entender como água. Quandoolhei para cima o que poderia compreendercomo céu era completamente branco e hou-

ve um instante em que toda aquela brancurame cegou.

Eu abria os olhos com toda força e do

mesmo jeito que me esforçava mas nãoemitia som articulado com minha voz, es-bugalhava olhos que não enxergavam. Estoucego! Gritei em pensamento e naquele exatoinstante em que havia gritado interiormente,senti que algo se enrolara em meus pés eme puxara para dentro de todo aquele mar.Num impulso que até hoje não compreen-do, tomei o máximo de ar que pude, comose estivesse numa das aulas de natação dointernato, e afundei.

Quando abri os olhos novamente, tornaraa ver e estava diante dele. Ao contrário doque diziam os livros ele era horrível. Pior,muito pior em imagem que seu irmão. Orosto era todo branco, de um branco alvoresplandecente que dava vontade de suicídio.

Não tinha boca nem nariz, apenas uns olhosgigantes de cor amarela, mas sem nenhumapupila ou íris para onde olhássemos. Eramapenas duas bolas gigantes de cor amarela.Não me lembro muito de seu corpo, lembroapenas de que abaixo de sua cabeça algoesvoaçava como que lençóis brancos enfu-nados pelo vento de uma janela aberta. E elefalava através de minha mente.

Olhei xamente para ele com o maiorpavor que pude ter em toda a minha vidae ele ia me dizendo, aquilo era como umsussurro. Um sussurro demoníaco de umdeus que não tinha nada a ver com a criançabirrenta de barba branca do cristianismo. Eleme cobrava. Era como se ele fosse um agentedo Fisco. Ele me cobrava o fato de eu nun-ca ter tido sonhos quando dormia. De fato,meu sono sempre fora dos melhores, dormiacomo um pássaro inocente. E ele cobravaisso. Quando eu ousei responder às suascobranças, antes que minha voz mentalizadapudesse ser pronunciada, bradou como ummonstro alucinado, enquanto sua cabeça seincendiava agora da mesma cor das bolas deseus olhos opacos. Disse-me que eu estavacondenado. Eu estava condenado a viver den-tro de um pesadelo durante todo o resto daminha vida. Durante TODO O RESTO DA

MINHA VIDA...Eu enlouqueci. Naquele momento eu en-louqueci. É que queria chorar, mas por maisque me esforçasse, não saía de meus olhossequer um milímetro cúbico de lágrimas. Euqueria gritar e havia perdido a voz, queriacorrer, mas estava paralisando ante a gurahorrenda daquele monstro das profundezasdos sonhos e queria chorar, mas meus olhosestavam secos como as areias quentes do Sa-ara. Daí a voz dele tornou-se mecânica como

a de um robô maquinal. E ele disse que eutinha apenas uma escolha a fazer que ele mefacultava. Pensei como se gritasse imploran-do que me dissesse qual – ele entendeu osmeus pensamentos e disse que eu poderiaescolher o pesadelo em que queria cair para

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MARIO FILIPE CAVALCANTIÉ jurista e escritor. Nasceu no Recife, em 1992. É colunista da revista Samizdat

e da revista Página Cultural (MG). Autor dos livros de contos Comédia de enganos(Penalux, 2013) — semi nalista no Prêmio SESC de Literatura 2014 —, Morte e vidae outros contos e O circo (Editora Universitária da UFPE, “Coleção Novos Talen- tos 2013/2014”, prelo). Publicou nas 9ª e 11ª edições da revista brasileira de contosFlaubert e nas 7ª e 8ª edições da revista de poesia 7faces, bem como participa dasedições da Samizdat desde a 39ª. Mantém o blog literário www.mario lipecavalcanti.blogspot.com

o resto de minha vida, ou poderia escolhero momento de minha vida em que quisessecair no maldito pesadelo que ele escolhesseao seu alvedrio.

Tive vontade de rir por achar ele bobo deme propor isso, mas pensei bem rapidamenteque ele poderia saber o que eu estava pen-sando. Foi aí que gritei em pensamento queoptava pela segunda hipótese. Gostaria deescolher quando cairia no inferno dos pe-sadelos, abriria mão de escolher o pesadeloem que cairia. Ele olhou-me bem de perto esenti que perguntava em qual época de mi-nha vida me entregaria ao seu poder. Penseirapidamente: em minha velhice humana.Quando eu estiver bem velhinho.

Foi aí que senti um enorme calafrio tomarmeu abdômen e vi aquele ser se agigantarem minha frente até que de um salto, esmur-rou o chão onde estávamos em pé e eu caínum abismo escuro.

A sensação da queda foi algo como umpiscar de olhos, de repente acordei com ocoração a mil, sobre minha dura cama no in-ternato escuro. Estava lavado em suor e meuslençóis estavam quentes como um braseiro.

Será que você imagina o que aconteceu?Sim, justamente! No dia seguinte eu havia

seguido com minha vida de internato e emsemanas havia esquecido completamente ofato. Voltei àquela minha realidade sonolenta

de ausência total de sonhos no sono. Cresci,saí do internato, casei, me formei na uni-

versidade. Virei um homem de negócios eagora sinto um calafrio terrível como se algome tomasse. Sim, estou velho. Estou bastante

velho e sei que minha hora chegou. Lembro--me de seus olhos horrorosos... Lembro-meque disse: Assim que sua época chegar, a luaestará amarelada num fundo muito escu-ro de céu e você adormecerá e nunca maisacordará... Você cairá no pesadelo que pre-parei para si com muita ânsia... Agora estouem minha escrivaninha, pondo tudo isso atermo. Quero que saibam pelo que passeiantes que eu vá. Quero que saibam, não queentendam. Ninguém é capaz de entender oque é estranho demais para essa nossa vidade faz de contas. Agora sei que tudo aquilo

era real. É. A luz sem a escuridão é só maisuma forma de cegueira.A lua está cheia e intensamente amarelada

num fundo negro de céu, e eu estou adorme-cendo...

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Volmar Camargo Junior

Conto

UmConto publicado originalmente em F417s

D1ver5novembro/dezembro de 2014

Tudo mudou quando entendi que ele era

eu. Eu, talvez, não eu. Minha imagem e seme-lhança, não é o que dizem? Ele era eu, passoua ser eu, ele passou a ser eu.

No princípio, de nada me servia. Ele che-gava, ou melhor, ele estava lá, ele passava aestar lá depois de certa hora da noite, depoisque eu chegava em casa, depois que ligava ocomputador. A primeira vez aconteceu quan-do eu estava no banho. Lavando a cabeça, euacho, não, estava lavando a cabeça com cer-teza. Eu estava deixando o cabelo crescer naépoca. Vi através da porta do box. Ele estavano vaso, nu. Encarou-me de volta, foi quando vi os olhos dele, que não eram os dele, eramos meus olhos. Olhou-me do modo comoquando se olha, se encara alguém sem umapergunta ou uma a rmação, do modo como

eu olho, como eu encaro as pessoas, cara depaisagem, como se diz. Percebeu-me olhandopara ele, devolveu-me o olhar, e mais nada.Blasé, é essa a palavra. Blasé. Ele terminou.Tirou um pedaço grande de papel higiênico,do comprimento do braço, dobrou em dois,

depois novamente, mais uma vez e outra, ese limpou, como eu me limpo. Reconhecio cheiro da minha merda. Não precisariaolhar para saber que era a minha merda, nãoidêntica. Era a minha merda. Ele terminou,

vestiu as calças, lavou as mãos, esfregandoo sabonete nas mãos embaixo da torneira,num movimento circular, meio descuidado, omodo como eu lavo as mãos. Olhou-me umaúltima vez e saiu. Terminei o banho.

Na noite seguinte, deixei as chaves namesinha ao lado da porta. Estava morto defome, acho que só tinha comido ao meio-dia,um sanduíche de frango, meio velho, no bardo meio. Nós gostávamos mais do café do

japa, mas subiu para um real, “não tá valen-do isso tudo”, disse uma das gurias. Eu nãome importava muito, café é café. Uma delas

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disse que o café de lá era queimado, e eununca entendi como o café pode queimar, “seo café já é preto”, eu perguntei, “como é queeu vou saber se ele tá queimado ou não?”,e uma delas disse que só provando. “Caféqueimado tem gosto de velho”. Eu acho quesempre tomei café queimado e nunca perce-

bi, ou nunca me importei. “Não sei que gostotem velho. Nunca provei um velho”. Só umadelas riu. Tomei o café do bar do meio e nãonotei diferença. Talvez estivesse queimadotambém. Comi um sanduíche de frango, queuma das gurias pediu um pedaço e recla-mou que estava velho. Eu mandei à merda,“tu reclama de tudo!”. Ela concordou. Chegueiem casa à noite, deixei as chaves na mesi-nha. Ele estava na cozinha, a geladeira com aporta escancarada. Ele comeu o resto do pãocom torresmo, e tomou minha cerveja. Ele

era eu, na verdade. A cerveja era minha, nãoera? Então, eu tomei a cerveja, e comi o pãocom torresmo. Não era eu, era ele, mas eraeu. Fiquei assistindo ele terminar de beber,catando os farelos no prato. Riscava com odedo a água acumulada no vidro do copo,nunca entendi bem por que isso acontececom um copo gelado, a coisa da transferên-cia de temperatura, mas gostava de fazer de-senhos naquela água que se desfaziam assimque os terminava. A cerveja não era grandecoisa, foi o que deu pra comprar no m do

mês.***Outro dia eu acordei com uma canção

do Roberto Carlos na cabeça. Acordar como cérebro sintonizado numa rádio AM nãotem qualquer explicação. Acontece muitocomigo. Esse dia, era o Roberto. Meu bem,meu bem. Use a inteligência uma vez só.Quantos idiotas vivem só. Gosto mais na vozda Gal, naquele programa Ensaio, não lembrobem em que ano, setenta, eu acho. Pensei queessa conjugação tava errada. Não seria “quan-tos idiotas vivem sós”? Então eu começou acantarolar a mesma música na cozinha, antesque eu me levantasse. Ouvi eu preparando ocafé. Senti o cheiro do café passando. Aindatinha café. Esqueci que ainda tinha, mas eu

deve ter lembrado. Eu ri pensando numacoisa, em outra canção do Roberto. Amanhãde manhã vou pedir um café pra nós dois.Ri muito. Fui até a cozinha. Eu não estava lá.Tomei café sozinho.

***Quando éramos crianças, a gente perce-

bia que, cada vez que coisas novas vinhampra casa, as coisas velhas começavam oua parar de funcionar, ou a sumir. Não erasuperstição. Ou era. Eu não sei dizer. Eu seique, quando quebrava uma taça, ou quandoeu procurava o outro pé da meia na gaveta,era certo que era de birra das coisas porquehavia uma roupa, um eletrodoméstico, umdisco novo — quando ainda comprávamosdiscos.

Foi engraçado quando eu comecei a

namorar. Contei pra ela essa história. Elaperguntou se alguma coisa tinha estragadodesde que ela passou a ir lá em casa. Eu dis-se que ainda não, mas um dia ela ia partir omeu coração. Ela riu muito, disse que isso iacar bem num para-choque de caminhão —quando ainda escreviam frasezinhas cretinasnos para-choques de caminhão. Ela partiumeu coração mesmo assim.

Por isso que eu quei assustado quan-do eu apareceu aqui. Eu, esse outro eu, que

varre a casa do mesmo jeito que eu varro.Tenho que admitir que a casa ca muitomais limpa se eu limpa do que quando eulimpo. Os vidros, cara. Eu nunca tinha vistoos vidros transparentes. Meu medo de sairna rua durou uns três dias. Me imagineienvelhecendo, cando deformado, enquantoeu continuava vivendo a minha vida, nosdetalhes mais idiotas, como pegar mosquitosno ar, do jeito que eu faço.

Até que uma das gurias veio aqui, prasaber se eu tava mal, e cou puta, “tu memata de preocupação, não atende, não entrano face, e eu chego aqui, e tu fez faxina, e euachando que tu tinha te matado, ou morri-do no chuveiro que nem a minha tia” e euperguntei “tá decepcionada porque eu nãomorri?” e ela “não, porra, só me preocupei

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mesmo”. Então a gente saiu pra beber na casade alguém que eu não conhecia.

***Eu sentou-se no meu lugar na cama, com

um pote de sorvete. Estava descalço e estavausando a minha camisa do Iron. Eu me ob-servava, ou melhor eu o observava, assistia eucomendo. Peidou e arrotou umas duas vezes.Sem se levantar, esticou o braço até a estantee pegou o livro que eu tinha que ter devolvi-do semana passada, e já devia estar custandomais em multa do que se tivesse compradonovo. Acompanhei a leitura. Abriu ondeestava o marcador. Na cena em que o fazen-deiro pendura o menino pelos braços no altodo galpão e deixa o cachorro brabo soltoesperando a hora que o menino caísse, eu riumuito.

Fiquei aterrorizado com um pensamen-to que me ocorreu. No meu quarto, só nomeu quarto, para qualquer item dentro dele,havia algum tipo de regra que me proibiade fazer alguma coisa relacionada àqueleobjeto, e que, de uma forma ou de outra, euseria punido se zesse aquilo que a regradiz pra não fazer. Olhei tudo em casa. Praminha história. Pra minha vida. Pro históricodo meu navegador da internet. Deus. Quasetudo à minha volta pode ser usado comouma prova contra mim.

Eu pingou sorvete no chão, na cama e naminha camiseta do Iron. “Porra, che!”***Sentei no ônibus atrás de um sujeito que

tinha uma mosca colada atrás da cabeça.Um inseto, na verdade, mas era do tamanhode uma mosca varejeira. Não tive coragemde tirá-la de onde estava. Fiquei intimidadocom a aparência do cara: cabelo raspado,óculos escuros esportivos cobrindo até as so-brancelhas, caninos inferiores proeminentes.Acho que eram os únicos dentes dele. Masti-gava a língua, como fazia minha bisavó. Eraum personagem de Mad Max usando óculosde um personagem de Matrix. Ele levantou,deu o sinal ao motorista, desceu na paradaseguinte. Não bateu nem atirou em ninguém,

nem caminhou pela parede, nem entrou numcarro feito de tubos enferrujados. Pensei noquanto a vida é sem graça.

Cheguei no condomínio. Eu estava noelevador quando eu entrei. Me olhou comose fosse dizer algo. Ignorei. Quando chega-mos no andar, deixei eu ir na frente. Estava

com um inseto do tamanho de uma mosca varejeira colado na parte posterior da cabe-ça. Nem hesitei. Dei-lhe um tapão na nucafazendo-o cair e bater a cara na parede docorredor. Antes que a porta do elevadorfechasse, agarrei-o pela jaqueta, arremessei-ocom toda a força para dentro. O inseto es-tava meio zonzo no chão. Pisei nele ouvindoum estalinho extremamente satisfatório.

Entrei em casa, larguei minhas coisas nasala. Fui tomar um banho e tocar uma pu-nheta grati cante.

***Quando o casal Fode-fode se mudou

para o apartamento de cima, a doce paz queimperava nas madrugadas do meu edifício, aúnica coisa que ainda me prendia àquele lu-gar, se foi por tempo indeterminado. Assegu-ro, o tempo era realmente indeterminado. Ocasal Fode-fode não tinha nenhuma regula-ridade, nem para começar as atividades, nema duração de cada sessão. A minha teoria éque eles trabalhavam para algum site desses

de putaria, onde os punheteiros sérios secadastram para assistir amateurs transando,escolhendo entre couples ou singles. Punhe-teiros não sérios ou casos mais doentios nãosão do meu escopo, então, me permito nemfalar a respeito. A internet facilitou a vida detarados de todo o tipo, e o bom senso e a féna espécie são o limite daquilo que se podeencontrar com meia dúzia de cliques. Nãoque eu entenda muito disso. Confesso queco curioso, mas sou das antigas: eu gosto delme pornô, com atrizes e atores de quem

eu lembro o nome (um salve aí para a SylviaSaint e o Rocco Sifredi!).Mas o casal Fode-fode, meus vizinhos,

transavam em cima de mim, pelo menos,duas vezes toda madrugada. Depois de per-

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Volmar Camargo Junior[V.] é natural de Cruz Alta, RS, vive em Rio Grande, RS. Publica nos blogs F417s -

-d1ver5, Pragas urbanas renitentes, Dicionário giratório, e InVitro. É editor de poesiada Revista Samizdat.

der completamente a atenção dedicada aomeu trabalho, ou à leitura, precisava parare ir fazer outra coisa. Qualquer coisa, por,pelo menos quinze minutos, ou meia hora, ouuma hora a cada trepada. Depois de umastrês semanas nesse ritmo, comecei a entendermais ou menos a lógica das trepadas. Quan-

do era o cara que cava por cima, as bomba-das eram enérgicas, frenéticas e as molas dacama batiam com força, quase até o assoalho,e eram breves sessões de dez ou doze bom-badas, com uma breve pausa, até começar denovo. Geralmente a primeira transa da noiteera assim. O outro padrão, que eu entendiacomo quando a guria estava por cima, as ses-sões eram de vinte a vinte e cinco bombadasmais longas e dinâmicas, rápidas, mas comum ritmo menos objetivo que as dele. Tinhatambém aquelas em que o box da cama batia

contra a parede e o soalho simultaneamente,e essas sequências eram tipo 6+6+6+6+15.Essas duas variantes eram mais comuns nastransas do meio da madrugada, com algumaalteração nas transas do início da manhã —horário que oscilava entre cinco e meia esete horas. Aos sábados, quando eu cava emcasa praticamente o dia todo, meus interva-los de sono eram de, no máximo, três horas,intercalados por um surto intermitente detrabalho árduo dos meus vizinhos. Eu pen-sava que era impossível que alguém tivesse

tanta disposição para o sexo sem nenhumacompensação, só como prática desportiva.E como isso estava passando de dois meses,realmente con rmava a minha tese de quesó a sensação de novidade entre os parceirosnão seria uma justi cativa.

Então, numa madrugada em que os vi-zinhos estavam especialmente inspirados ebem dispostos (pelo ritmo, quei na dúvida

sobre quem estava por cima, ou por trás, ou...en m...) eu levantou-se da cama resoluto.Tomou um banho, fez a barba, penteou-se,

vestiu-se dosando entre o desleixo e o es-mero e saiu. Fui atrás. Eu tomou as escadas,percorreu o corredor, parou em frente à por-ta do casal Fode-fode. Eu, a ito, mas curio-

síssimo, acompanhei escondido na curva daescadaria. Eu tocou a campainha, uma vez.Uns minutos depois, alguém abriu uma fres-tinha da porta. Eu estava calmo. Gesticulou,apontando em direção ao chão, e encolhendoos ombros, fazendo um gesto de “bah!”, comambas as mãos, como quem deixa escaparum balão. Mais meio minuto, e a porta seabre totalmente.

Não sei o que aconteceu lá, sinceramente.Durante as semanas que passaram, eu apare-cia de manhã pela porta da frente. Eu evitavaolhá-lo, para não deixá-lo constrangido. Eletambém não me olhava, mas sorríamos, meiocúmplices, cada um preparando seu café. Eume arrumava para ir à aula, e eu, depois decomer, ia para um banho demorado, de qua-se uma hora. Não sei o que fazia no resto dodia, se cava dormindo ou ia visitar os novosamigos. Talvez eu até estivesse ganhandouma grana com eles; talvez tenham feito umcadastro de threesome ou mmf no site. Nãosei mesmo. Eu nem acordo mais de madru-gada.

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ainda não tinha chegado, que estava no cine-ma com umas amigas. Ficou satisfeita commeu interesse. Peguei a toalha e me meti nochuveiro. A ducha me deixou totalmente de-sanuviado. Coloquei uma roupa limpa e saí.

Ainda não era tarde, então passei na venda da esquina e pedi um energético. Olugar fedia a geladeira estragada, a carnecrua e a queijo rançoso. Atrás da vitrine suja,se amontoavam as mercadorias até o topo.Havia operários falando aos gritos e beben-do cervejas; empregadas domésticas fazendocompras para o dia seguinte e meninos dechinelos comprando refrigerantes.

O atendente da venda era um homemseboso, de uns 40 anos, que usava um bonéimundo sobre a farta cabeleira. Tinha osolhos sinistramente puxados e a bochechamarcada por pelos grossos e espalhados, quemais pareciam pelos pubianos.

Terminei a bebida e segui para a casa deSamir. Ele perturbava a avó, como de costu-me. Gostava de encher a paciência dela. Erauma forma de mostrar carinho. Ela reclama-

va, mas também gostava. Às vezes, lhe rouba- va beijos na boca e ela o perseguia por todaa casa para lhe bater com um jornal. Pare-ciam marido e mulher. Contemplava os doispor uma janela até um deles me surpreender.

Aquela senhora de setenta e tantos anosde idade apreciava muito o rum. Samir mecontou que todos os dias, assim que se levan-tava, fazia bochechos com uma garrafa queguardava no armário. “Não sei como os ho-mens podem gostar dessa merda!”, exclamava,franzindo a cara e engolindo o bochecho.

Samir era vulgar e descarado com ela.Gostava de provocá-la e fazê-la soltar o

verbo. Uma vez lhe disse: “Vó, não imaginacomo é gostoso comer uma bucetinha”. E elarespondeu destemida: “Diz isso porque nuncaprovou um pau.”

Certa vez, no aniversário dela, quando acasa estava repleta de familiares e amigos,apareceu um senhor com um chapéu e umaroupa fúnebre. Tinha um jeito sério e levava

um envelope na mão. Procurava pela avóde Samir. Ela o chamou para um canto e oescutou atentamente, enquanto ele abria oenvelope. Ela terminou de dar uma olha-da no papel e despediu-se do homem comuns tapinhas nas costas. Todo mundo couintrigado, mas a avó de Samir acabou com oassunto rasgando o papel. “Que a festa conti-nue!”, gritou, e voltou a empinar a garrafa derum. No dia seguinte, deu a notícia: uma desuas irmãs tinha morrido.

Saí com Samir. Pegamos um ônibus aalgumas ruas. Samir estava mais alegre doque de costume. Disse que ia me apresentar

várias mulheres. Conhecia muitas e sempreestava enrolado com duas ao mesmo tempo.Eu gostava de estar com ele, pois era muitodiferente de mim e o único amigo que tinha.

Ele me perguntou por Cláudia. Sempre meperguntava por ela. Fazia isso para me son-dar, para avaliar meu despeito. Respondi quenão a via há várias semanas.

Íamos em um ônibus destruído, queparecia que ia desmontar a qualquer mo-mento. Tínhamos que falar muito alto paranos escutarmos. Por dentro, o ônibus pa-recia um prostíbulo, com luzes coloridas ecortinas vermelhas penduradas nas janelas.Corria a toda velocidade e não se detinhanas paradas. O motorista constantemente nosexaminava pelo espelho retrovisor, com umaolhada dura e cansada.

Samir me contou que tinha visto Cláudiauma noite dessas. “Estava abraçada com umcara”, me disse. “Esquece essa mulher, não épara você.” Respondi que de alguma maneira

já tinha a esquecido, que me cansava a ima-gem dela repetida, viciada; mas, ao mesmotempo, era uma referência obrigatória nosmomentos de tédio e tesão.

— Precisa encontrar outra mulher.— Outro dia estive com uma, mas não sei

se é isso que preciso.— Cuidado para não virar um maricas.Ri. Creio que não ria há dias, porque senti

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os músculos do rosto contraídos.Chegamos a nosso destino. O ônibus deu

uma freada repentina e nos cuspiu na para-da. Foi embora sozinho, sem nenhum passa-geiro. Creio que não pegou mais ninguém.

Entramos em uma casa gradeada, antece-

dida por um corredor largo, que mais pare-cia um túnel. A aniversariante se chamavaLuci. Samir lhe entregou um CD de presente.Atravessamos toda a casa até chegar aosfundos. Lá, estavam dispostos cadeiras deplásticos e um aparelho de som que berravaa todo vapor. Não tinha muita gente, mas es-peravam chegar mais. Em pouco tempo, nãocabia mais nenhuma alma.

Samir tirou uma morena forte, de olhos verdes, para dançar.

— E você, por que não dança? — me per-guntou— Estou frio — respondi. — Não pegamos

peso hoje.— Começa pelas mais feiinhas para es-

quentar.Virei o copo de rum. Sentia-me tranqui-

lo, sem necessidade de dançar de imediato.Menos ainda me a igia o desejo de conhecermulheres. Vi que Samir já não dançava maiscom a morena. Agora estava com os músicose tinha o reco-reco nas mãos. Sabia tocarmuito bem e brilhava. As pessoas o aplau-diam.

Em pouco tempo, pensei que também nãoera bom car sentado, bebendo inde nida -mente, porque ia acabar enjoado. Levantei-mepara ir ao banheiro, ainda que não estivessecom vontade de ir. Tinha uma pequena laatrás da porta e me alinhei. Atrás de mim,parou uma mulher que não tinha notadoantes. Vestia-se de negro, tinha um olhar frioe soltava um aroma de terra úmida.

Chegou minha vez de entrar no banheiro.Derramei umas poucas gotas de urina e meolhei no espelho. Meu olho direito já come-çava a cair, como sempre acontece quandoestou bebendo ou tenho sono. Saí, mas a

mulher já não estava mais lá. Passei pela an-tessala e pela sala revisando atentamente osrostos de todas as mulheres, mas não a vi emlugar algum. Procurei no quintal: ela tinhadesaparecido.

Samir começou a me incitar para quetirasse para dançar uma mulher que estavasozinha, do outro lado da sala. Alguns ami-gos perceberam a insistência dele e reforça-ram o coro. Logo me vi rodeado de cinco ouseis caras me estimulando a dançar. Neguei

veementemente, cruzando os braços. Nisso, amorena forte de olhos verdes se aproximoue me levou para a pista. Certamente, Samira teria enviado. Dançava suavemente, comose tivesse uma roda nos pés. Excitei-me como roça-roça. Ela, seguramente, sentiu minhaereção, mas não se incomodou.

Mais tarde, quando a festa estava liqui-dada, Samir pediu para irmos. Pela maneiraenviesada com que me olhava, deduzi queestava bêbado. Não z objeções. Procuramosa aniversariante e nos despedimos. Lá fora,camos olhando a rua vazia. Não passava ne-nhum táxi. O ar pesado da noite me sufocou.Caminhamos até a rua principal, debaixo deum brilho intenso das estrelas, e tomamos oprimeiro táxi livre que vimos. A motoristaera uma mulher de sobrancelhas espessase escuras. Samir estava tão embriagado quenem se deu conta de que era uma mulher.“Muito amável, senhor”, disse quando desce-mos.

Para certi car-me de que ia entrar bem, oacompanhei até em casa e encontramos asluzes da sala acesas. A avó de Samir nuncase esquecia de apagá-las. A embriaguez deSamir se foi de imediato. Procuramos por elanos quartos, mas não a víamos. Tampoucoestava no banheiro. Finalmente, a encon-tramos esparramada no chão da cozinha,

com os olhos abertos. Samir se ajoelhou elevantou em seus braços aquela cabeça dealgodão. Colocou o ouvido no peito dela ecomeçou a chorar convulsivamente. Beijavaaquela boca pálida e aberta, e cheirava ob-sessivamente as mãos e os dedos dela. “Ainda

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Paul Brito(Colômbia, 1975) é escritor e jornalista. Estudou edição em Barcelona e atualmente

é editor da revista Actual, em Barranquilla. Também é colaborador de El Malpen- sante, El Tiempo, Clarín e de outros meios de comunicação. Em 2008, publicou olivro Los intrusos, com o qual ganhou o Prêmio Nacional de Livro de Contos (UIS,2007). Também ganhou outros prêmios como o Concurso Internacional de CuentosNoble Villa de Portugalete (Vizcaya, 2005). É autor de El ideal de Aquiles, 101 mini- cuentos para alcanzar a la tortuga (2010) e La muerte del obrero (2014).

têm cheiro de cebola”, murmurou.Sentei-me à mesa da cozinha e servi um

copo de água. Perguntei se ele queria quechamasse alguém, “a polícia, uma ambulân-cia, ou não sei quem se chama nesses casos”.Respondeu-me que não chamasse ninguém,que queria car um tempinho a mais daque-le jeito. Começou a acariciá-la e a beijá-lameticulosamente, como se beija ou se mimaum recém-nascido.

Pediu-me que a levássemos até o quar-to. Quando passamos pela sala de jantar,lembrei-me do banco de fazer exercícios.Deitamo-la na cama e Samir me pediu quesaísse por um momento. Quando voltei, a

velha estava cuidadosamente penteada etinha a cara cheia de pó, os lábios pintadose o corpo metido em um vestido de festa, omesmo que usava quando completava anos.Mas continuava com os olhos abertos.

— Não vai fechar os olhos dela, Samir?— Ainda não — respondeu.Examinei aquela roupa de festa e, de re-

pente, me lembrei de todas as mulheres que vi na festa, em especial daquela vestida denegro, já que, justo nesse momento, senti operfume de terra úmida no ar. Lembrei-metambém do motorista do ônibus e do seuolhar duro e cansado, pois era o mesmo quea avó de Samir tinha agora.

— Por que não fecha os olhos dela? — in-sisti.

— Ainda não — repetiu

Ele se deitou ao lado dela e a abraçoufortemente. Peguei a cadeira da penteadeira eme sentei para continuar observando. “Dis-so se trata a vida”, pensei. “De ir observan-do…”

“Mas a avó de Samir está morta”, pensei.“Temos que fechar os olhos dela o quandoantes.”

E esperei que Samir dormisse. Quandoestava seguro de que tinha sido vencido pelocansaço e pela dor, me aproximei da cabe-ceira da cama e realizei esse simples gestode compaixão, que é fechar os olhos de ummorto. Os dois caram com os olhos fecha-dos, como se estivessem mortos, como seestivessem dormindo. Só então saí para avi-sar à casa ao lado, porque não sabia a quemchamar naqueles casos.

O ar puro da manhã me encantou. Nãohavia no céu nenhum sinal de nuvem, ne-nhuma mancha, nenhum resíduo da noiteanterior. Cheguei à casa da vizinha e chamei,mas ninguém me atendeu. Em outras casas,os idosos buscavam suas cadeiras de balanço.Cumprimentavam-me com muita cordia-lidade, como se eu tivesse acabado de melevantar e estivesse indo rumo a meu traba-lho. Não tive ânimo de informá-los sobre amorte da senhora.

Caminhei até minha casa e me tranqueino quarto. Custei a fechar os olhos.

(*) Este conto faz parte do livro Los intru-sos, de Paul Brito.

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Artigo

João Paulo Hergesel

“Porque sim” não é resposta: um estudodos estilemas em Castelo Rá-Tim-Bum

Há duas décadas, estreava na televisão umprograma educativo direcionado ao públicoinfantil: Castelo Rá-Tim-Bum. Em noventaepisódios, o cenário, o enredo e os perso-nagens conquistaram crianças e adultos doBrasil. Vinte anos após a estreia, as situa-ções lúdicas e as lições aprendidas caramna memória dos telespectadores da época econtinuam agradando os jovens contemporâ-neos. É inevitável ouvir os famosos bordõesda série e não se lembrar automaticamentedo personagem que o utilizava.

Por que “raios e trovões” as frases feitaspara série se consagraram e mantêm seu va-lor estilístico ainda hoje? “Por quê? Por quê?Por quê?” É possível simplesmente responder:“Porque sim”, mas “‘porque sim’ não é res-posta”. Para compreender melhor as causasdesse fenômeno, é necessário recorrer a umadisciplina da Língua Portuguesa denomina-da Estilística, que estuda os fatos afetivos dalinguagem.

Grosso modo, é possível enumerar di- versos fatores estilísticos, responsáveis poravivar, atenuar, exagerar ou enfocar deter-minada expressão. Entre eles, encontra-seo estilema, cuja de nição gera certo atritoentre os estudiosos. Enquanto alguns autores,como Carlos Ceia, tratam-no como recursounicamente literário, outros, como CésarGiusti, consideram-no um elemento subjetivo,a a nidade eufemística ou hiperbólica.

Acredita-se, no entanto, que a ideia mais

adequada é a de que o estilema é umaidiossincrasia, uma marca pessoal e exclusivade um indivíduo, quer dizer, uma expres-são (verbal, visual ou sonora) que remete ointerlocutor ao seu respectivo usuário. Emoutras palavras, é a menor unidade do estilo,

um traço estilístico que torna desnecessáriaa identi cação mencionada do seu falante,

visto que esse reconhecimento é feito peloprocesso cognitivo.

Em Castelo Rá-Tim-Bum, muitos bordõesse tornaram consagrados, bem como seuspersonagens. Nossa memória consolida aimagem do poderoso Dr. Victor ao ouvir aexpressão “Raios e trovões!”, bem como a domalé co Dr. Abobrinha, no momento emque a expressão “Este castelo será meu!” épronunciada. Além disso, também há estro-fes poéticas, como as ditas pelo Relógio, e ascanções, como a interpretada pelos passari-nhos, que também se tornaram uma espéciede registro. São os estilemas presentes nasérie.

É comum que se confunda estilema combordão. O dicionário eletrônico AuleteCaldas apresenta a seguinte de nição paraa palavra “bordão”: 1. Pau grosso ou varaque serve de apoio; cajado. 2. Fig. Arrimo,amparo. 3. Bastão com uma das pontas maisgrossa que a outra; cacete; porrete. 4. Palavraou frase que alguma pessoa repete frequente-mente, na fala ou escrita, por hábito vicioso.5. Bras. Rád. Telv. Palavra, expressão ou fraseque um apresentador ou personagem repetefrequentemente para efeito humorístico e/oucaricatural.

Com isso, torna-se possível perceber quea relação entre estilema e bordão é muitopróxima e que os termos, portanto, podem

inclusive ser considerados sinônimos. Tendoem vista as opiniões de autores continua-mente pesquisados e o prévio conhecimen-to estilístico derivado de outras pesquisas,defende-se aqui que o estilema é todo traçoexclusivo de uma pessoa ou personagem; já

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o bordão é o traço peculiar de alguém quepassa a ser reproduzido por outrem. Emoutras palavras, todo bordão é um estilema,mas nem todo estilema pode ser consideradoum bordão.

Analisando o estilema mencionado acima,“Este castelo será meu, meu, meu!”, referenteao Dr. Abobrinha, notamos uma epizeuxe (oupalilogia, ou reduplicação) na repetição dopronome meu. Esse processo de insistênciaé e caz para representar o forte desejo depossessão do imóvel. A ênfase em cada pala-

vra – o primeiro meu é pronunciado nor-malmente; o segundo é emitido em som maisalto; o terceiro é praticamente um berro quese mescla com o riso prosseguinte – reforçaa vontade do personagem.

O próprio nome do personagem, Dr.Pompeu Pompílio Pomposo, já apresentacaracterísticas estilísticas relevantes, especial-mente na aliteração presente. A repetição dofonema /p/, oclusivo labial surdo, além de seruma brincadeira com a sonoridade da língua,resulta simbolicamente na pompa, no luxo,

visto que a boca “se enche” ao falar o nomecompleto. Também pode ser considerado umtrava-língua tão confuso quanto as atitudesdo personagem, assim como seu apelido, Dr.Abobrinha, cuja palavra é pronunciada comdi culdade pelas crianças, devido à repetiçãodo /b/ e à colocação do /r/ posterior a umdeles.

Outro estilema famoso na série é o “Plift,ploft, still, a porta se abriu!”, marca caracte-rística do Porteiro. A expressão contém nãoapenas onomatopeias, representação escritado som, como também a rima de “still” com“abriu”. A princípio, a primeira parte focaapenas a sonoridade, remetendo a porcas,

parafusos e outros elementos que compõemum “homem robotizado”; já a segunda, alémde ser uma declaração utilizada como ho-meoteleuto, ou seja, a provocação de um ecoproposital, ainda apresenta a porta comosujeito, aproveitando-se de um pronomere exivo, deixando subentendido, novamente,que os objetos mecânicos são agentes, têm vida própria.

Além desses, outros estilemas são facil-mente lembrados e associados a seus perso-nagens; o mais interessante é que as gurasde linguagem, recursos estilísticos que zelampela beleza da expressão, estão presentesem praticamente todos eles. Notam-se, porexemplo: a antítese, aproximação de ele-mentos contrários, em “Porque sim não éresposta”, do Telekid; a anadiplose, repetição

da palavra nal de um verso no início do verso seguinte, em “Passa hora, / Hora inteira,/ Meia hora, / Hora e meia”, além da grada-ção em clímax, enumeração de elementos emsérie de forma crescente, em “Está na hora doDr. Victor chegar, o Dr. Victor está chegan-do, o Dr. Victor chegou”, ambas do Relógio;a aliteração do fonema /s/ em “Passarinho,que som é esse? / Esse som assim é o som dacítara”, cantado pelas Patativas.

Seria possível escrever cada vez maissobre a cintilação de maravilhas estilísticaspresente na composição das marcas caracte-rísticas dos personagens da série; entretanto,apenas com essa breve explanação, pode-sechegar a uma consideração plausível: os es-tilemas de Castelo Rá-Tim-Bum prevalecemcotidianos, mesmo após tanto tempo, porqueos recursos da Estilística, quando aplicadosem um produto midiático, elevam o nível desuscetibilidade, aproximam-no do poético eperenizam o objeto.

João Paulo HergeselMestre em Comunicação e Cultura e licenciado em Letras pela Universidade deSorocaba. Membro do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Nami), docente

do Colégio Objetivo São Roque e administrador da Editora Jogo de Palavras. Dedica- -se produção literária e pesquisa na área de Narrativas Midiáticas, com enfoqueno estudo do estilo. Contato: [email protected].

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Henry Alfred Bugalho

Você morreria por uma ideia?

Crônica

Há uma linha invisível entre heroísmo eestupidez...

Dizem que foram os gregos que, pela pri-meira vez na história do Ocidente, defende-ram com unhas e dentes a liberdade contraa servidão.

As cidades-estados gregas, entre elas Es-parta e Atenas, chocaram-se contra o mons-truoso exército persa, liderado primeiro porDario e, posteriormente, por Xerxes.

Conta a História (de Heródoto) que aliberdade venceu: ideologicamente, com amorte suicida dos trezentos bravos esparta-nos e de seus aliados na Batalha de Termópi-las e, militarmente, com a engenhosa estraté-gia naval dos atenienses em Salamina.

Os homens livres preservaram sua liber-dade, e o seu direito de terem escravos —pois sim!, os homens livres da Grécia tinham

seus escravos, com os mais ricos dos atenien-ses possuindo até 50 servos.

E na História Ocidental esta dinâmica foipreservada durante muitos séculos. Aindahoje muitos de nós são escravos: do dinheiro,da comodidade, do luxo, da ostentação, dascorporações, do trabalho, inclusive escravosaté de princípios que pouco correspondem àrealidade.

Pensa-se no Ocidente como livre, demo-crático, justo e tolerante. É a mentira que

repetimos dia após dia para convencermos anós mesmos.O problema ca realmente evidente quan-

do tentamos de nir o que cada uma destasqualidades realmente quer dizer e, para isto,

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centenas de tratados já foram escritos. São al-guns dos principais temas que ocuparam asmentes dos lósofos de todos os tempos, masparticularmente da Modernidade em diante.

O que é Liberdade? O que é Justiça? É

possível uma sociedade verdadeiramentedemocrática?

O Iluminismo francês forneceu as basesteóricas para algumas das maiores trans-formações sociais dos últimos séculos, daRevolução Americana, passando pela própriaRevolução Francesa, e por todos os movi-mentos independentistas da América Lati-na. A revolução burguesa serviu até comoreferência para a revolução do proletariado,

à qual esta se opunha.

As ideias que movem o mundo. As ideiasque transformam a sociedade. As ideias queàs vezes até nos impedem de ver as coisascomo elas realmente são.

Eu acreditava que a era digital, comtamanha informação disponível, com comu-nicação sem fronteiras, inevitavelmente nostornaria mais tolerantes, muito mais aptos acompreender e aceitar a diversidade.

Pelo contrário...Entramos com os dois pés numa nova

era de intolerância e ódio, e tudo que se diz,

escreve-se, publica-se, canta-se e mostra-se érecebido com ira e palavras ásperas.

Todos têm opiniões sobre tudo, mas asopiniões alheias estão sempre equivocadas.E, para isto, não basta apenas discordar, énecessário defender até a morte a “verdade”.

É preciso tornar-se um mártir da verdadee do que é correto.

Mas este é um segundo problema insolú- vel. O que é a nal a verdade?

Ela está aqui, ali ou algures? Quem temacesso a ela? Existe uma única verdade ine-quívoca, ou terá ela mil facetas fragmentadase contraditórias?

Onde você vê liberdade, eu vejo servidão.Onde você vê tolerância, percebo cada vezmais o discurso de ódio que de tempos emtempos ressurge.

Onde você vê uma imprensa livre, eu meassusto com a manipulação da mídia.

Onde você vê a verdade, eu postulo ques-tões in nitas e insolúveis.

Eu não morreria por ideia alguma, pois

elas são tão efêmeras e impalpáveis e inde-níveis quanto as ideias contrárias.Morrerei apenas porque é inevitável, do

modo como for.

Henry Alfred BugalhoCuritibano, formado em Filoso a, com ênfase em Estética. Especialista em Litera-

tura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, “O Covil dos Inocentes”“O Rei dos Judeus”, da novela “O Homem Pós-Histórico”, e de duas coletâneas decontos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da O cina Editora. Autor do livrobest-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do “Nova York, Bairro a Bairro”,cidade na qual morou por 4 anos, e do “Curso de Introdução Fotogra a do Cala aBoca e Clica!”. Após viver em Buenos Aires, Itália e Portugal, está baseado, atualmenem Madri, com sua esposa Denise, o bebê Phillipe e Bia, sua cachorrinha.

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Ana Lygia dos Santos

QuatroCrônica

De todas as casas da Rua Afonso Gianni-co aquela era a que chamava mais a atenção.Não por ser bonita, absolutamente; tampou-co pela excentricidade de sua arquitetura econservação da fachada – longe, muito longedisso.

Na rua antiga de casas antigas, aquelecasarão, com portas e janelas de duas folhase pé direito bem alto, chamava a atenção da

vizinhança por estar sempre fechado, ne-

nhuma fresta de janela por onde passasse arou luz do dia, gradeado, sujo e apartado detodos por grossas correntes encerradas emcadeados... Apesar do aspecto de abandono,sabia-se que havia gente morando no casa-rão. E gatos. Denunciados pelo fedor de fezese urina que ninguém limpava.

Um pai, uma mãe e uma lha: três mora-dores e um mistério...

Três solidões e o silêncio...Três sobreviventes e a loucura...Nenhuma das casas da rua trazia tan-

tas cruzes coladas às portas e janelas comoaquele casarão. Ao longo das folhas de ma-deira que, no passado, foram verdes, con-tavam-se mais cruzes do que os dedos dasmãos de toda a vizinhança.

Na nossa inocência infantil, só queríamossaber “do que tanto tinham medo?”. Nemminha avó, beata assídua das Ave-Marias naigrejinha; nem Titia, a benzedeira da rua,buscavam tanta proteção.

Não era fé aquilo que sentiam, nem res-peito: era medo.

Do pouco que se podia ver através dasgrades que separavam a rua daquilo quedeveria ser uma varanda, mas que tinha ares

de esconderijo, tamanha a quantidade defolhas e plantas, oratórios, mais cruzes, velase imagens de toda a legião de santos, vez ououtra um vulto passava, arrastando consigosilêncio e solidão. Durante tais brevíssimasaparições, nem para a rua olhavam. Tais epi-sódios eram acontecimentos na vizinhança:

– Você viu quem estava molhando asplantas?

– Já reparou como eles não deixam as velas se apagarem?

– Como sobrevivem?– De que se alimentam?– Ninguém trabalha? A menina não estu-

da?Um pai, uma mãe e uma lha:Três moradores e o mistério...Três solidões e o silêncio...Três sobreviventes e a loucura...Nenhuma antena de televisão, nem som

de rádio. Tudo era silêncio naquele ato decontrição feito de melancolia e dor. Ouvia-se,

vez ou outra, um murmúrio que não se faziacompreender se era de choro ou de reza.

O velho – ninguém nunca soube com exa-tidão a idade daquela gente – com o tempopassou a blasfemar contra a vida, movimen-to seguido por sua companheira. Se estavaquente, xingavam. Se estava frio, reclamavam.Se chovia... A vida era motivo para que se

des asse um rosário de imprecações, que sefazia comum em resposta à pilhéria da mo-lecada. Fora isso, não se ouvia conversa entreeles. O silêncio era a sentença de mortedaqueles viventes. Corrente que se arrasta só.Fardo cujo peso não se divide.

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A lha, que regulava idade com as de-mais crianças da rua, raramente saía; nem noquintal, nem para xingar. Da única vez quefoi vista, chamou a atenção pela brancurada tez e cabelos crespos, muito armados eemaranhados.

Os moleques da rua jogavam pedras e sa-cos com urina nas janelas, chamavam-lhes defeiticeiros, diziam que faziam negras magiasem um dos cômodos da casa. A vizinhançatemia, ainda que curiosa.

No começo via-se um dos velhos prague- jando; depois, nem isso.

Os anos passavam proporcionalmente aonúmero de cruzes, velas e imagens de san-tos, que eram acrescidas às partes visíveis dacasa. Somado a isso, novas versões para expli-car o mistério que envolvia aquela família.Sentia-se ao longe o cheiro da fogueira depalma benta em certos dias do mês. Da cercado quintal da casa de Dona Nina, via-se, vezou outra, o pai ou a mãe lidando com asplantas. Não gostavam de ser observados.

Os vizinhos diziam que o casal enlouque-cera depois que o lho mais velho fora con-

vocado para a guerra e nunca mais voltou.O moço, doutor formado, alistara-se, pois osonho dos pais era o de que o lho fosse mi-litar: a dor da culpa. Outros atestavam que

o tal moço, após ter sido aleijado no corpoe na alma pela guerra, jazia entrevado nacama, deprimido e abandonado pela noiva.

Alguns a rmavam que foi ou a meningite,ou a hepatite, ou a pneumonia que levouo rapaz dos braços da mãe, a despeito detodo o empenho do pai para salvá-lo. Havia,também, a corrente que defendia o crimepassional em que o pai, incorporando umaentidade maligna, sacri cou com sangue aprópria carne. E outra que falava em suicídiodo moçodiante dos velhos.

Não se sabe com quem o jovem se pare-cia, se era doce ou rebelde, que sonhos oucor dos olhos tinha. Sabe-se que de todosos viventes, trancados até os dentes, daquele

velho casarão à esquina da Afonso Giannico,ele era o mais real.

Era quem tinha uma história, era o rioque levava a canoa e os outros três a rebo-que; satélite a ditar a órbita dos demais. Pre-sença a chorar a própria ausência nos olhosde outrem. Uma vida inteira que queria tersido e não foi, mas que era... e estava – comseus verbos no presente e sua presença cons-tante, fato. Lamento de muezim a invocar onome que não responde e nunca responderá.Membro amputado que lateja e dói sua ine-xistência, ausência sentida, silêncio que grita.Era o coração que batia à esquina da AfonsoGiannico.

Um pai, uma mãe, uma lha e a saudade.

Ana Lygia dos SantosPaulista de Guaratinguetá, abandonou a engenharia mecânica s vésperas da for -

matura e abraçou a literatura. É formada em Letras-Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC/Rio. Pesquisa Literatura Brasileira e Cultura Popular, assuntos que lhe ren- deram publicações e prêmios na área. No ofício das letras é colunista da seção Gra-

as do Jornal O Lince, além de colaborar em outros veículos de comunicação. Mãeda Carolina, de dois cães e dois gatos. Não resiste or de vento, bolhas de sabão,empadinha e café. Adora cadernos artesanais, faz seus rascunhos a lápis e, apesar da

produção constante, admite sentir preguiça de ter um blog. Um dia, longe ou perto,cria coragem para publicar um livro

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50 SAMIZDAT fevereiro de 2015

O BALÃOEdweine Loureiro

Poesia

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Da janela do apartamento, vejo um balão vermelho,

levado por brandos ventos.

Não sei de onde veio:se alguém o perdeu,ou se mesmo o largou,não sei dizer ao leitor.

Tudo o que sei é que,em meio ao ódio

e à incompreensão,que pintam a vida de cinza,

ver pelos céus um balãofez minha tarde mais linda.

Edweine LoureiroAdvogado, professor de Idiomas e reside no Japão desde 2001. Premiado em diversos concurso

literários no Brasil, Portugal, Espanha, Estados Unidos e Japão – incluindo o primeiro lugar noConcurso de Poesia “Casa de Espanha” (2014) –, é autor dos livros Sonhador Sim Senhor! (2000)Clandestinos (2011), Em Curto Espaço (2012) e No mínimo, o In nito (2013).

h t t p s : / / w w w .

i c k r . c o m / p h o t o s / a l i a_ q u n

h u a / 3 5 7 6 2 3 9 6 9 0 / s i z e s / o /

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Ricardo EscudeiroNasceu em Santo André-SP, em 1984, onde vive. É autor do livro de poemas tempo espaço re trato(Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP, ensaia já há algum tempo um mestrado em

Literatura, com interesse nas obras de José Craveirinha e José Saramago. Leciona e aprende noensino fundamental II e no ensino médio. Possui publicações no site da Revista CULT, nas revistasmallarmargens-revista de poesia e arte contemporânea, Revista Nefelibata, SAMIZDAT, RevistaSoletras (Moçambique). Como poeta convidado participou de diversos eventos, entre eles o Sarauno Caos e o Espaço Literatura da 13ª Feira Cultural Preta. Em 2013 juntou-se ao Coletivo TantasLetras, de São Bernardo do Campo, onde publica poemas no Zine Lapada Poética.

ah mia senhor fremosaaqui donde pisopor vontade tua

jamais por própria

clamaram estribilhossoltos

com a sola do joelhoque de mim outra posturaa ti não agradacanto em tom impostocantigas de desamorsobre ti

sobre mimsobre os meus

deserdeiroschamaram de novoos estribilhos outros

a eles ensino a sinaolha lhodaqui até donde a vista pisanada é teu

é tudo engenho

e do ladose de pai ou de lho ou de ninguémninguém sabemais de uma voz em levantecanta pro arame mantofarpado jamais idealizado

amor não te devotampouco algum teu me encanta

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8/9/2019 SAMIZDAT 43

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54 SAMIZDAT fevereiro de 2015

A Revista SAMIZDAT conta com a sua

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de autores estreantes, pois o nosso objetivoé apresentar a maior diversidade possível deautores, gêneros e textos.

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1 - Cada escritor poderá inscrever, nosrespectivos campos, somente 1 (um) textoliterário para publicação, de qualquer gênero- conto, crônica, poesia, microconto - ou um(1) texto teórico, como artigo de teoria lite-rária, resenha de livros, ou entrevista, alémde traduções de textos literários em domíniopúblico, sob licença Creative Commons oucom a expressa autorização do autor. O autortambém deve enviar uma breve biogra a naprimeira página do arquivo.

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Henry Alfred BugalhoEditor

Participe da Revista SAMIZDAT 44 – julho de 2015

8/9/2019 SAMIZDAT 43

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Também nesta edição , textos de

Mateus Baldi

Joaquim Bispo

Maria Brockerhoff

Henry Alfred Bugalho

Volmar Camargo Junior

Mario Filipe Cavalcanti

Ricardo Escudeiro

João Paulo Hergesel

Cinthia Kriemler

Edweine Loureiro

Nathalie Lourenço

Leonardo Lima Ribeiro

Ana Lygia dos Santos

Maria de Fátima Santos