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SAMIZDAT 44 agosto 2015 ano VIII ficina www.revistasamizdat.com

Samizdat 44 Kranz Kafka

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Page 1: Samizdat 44 Kranz Kafka

SAMIZDAT

44agosto2015

ano VIII

ficina

www.revistasamizdat.com

Page 2: Samizdat 44 Kranz Kafka

Edição, Capa e DiagramaçãoHenry Alfred Bugalho

Editor de poesiaVolmar Camargo Junior

Revisão (sujeita a aceitação)Joaquim Bispo

AutoresTatiana AlvesJoaquim BispoMaria BrockerhoffHenry Alfred BugalhoEber dos Santos ChavesMarcus GrozaCinthia KriemlerZulmar LopesLeandro LuizRafael PerpétuaWagner PontesMarcelo José dos SantosEllen Maria Martins de Vascon-cellosVander Vieira

Textos de:Franz Kafka

www.revistasamizdat.com

ISSN 2281-0668

SAMIZDAT 44agosto de 2015

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty free ou sob licença Creative Commons.

Os textos publicados são de domínio público, com consenso ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de Copyright dos EUA (§107-112).

As ideias expressas são de inteira responsabilidade de seus autores. A revista adota o Novo Acordo Ortográfico. A aceitação da revisão proposta depende da vontade expressa dos colabora-dores da revista.

Editorial

A imortalidade é um jogo perigoso e sem regras.Penso que, no fundo, todos que escrevem almejam, de um

modo ou outro, que a sua memória se preserve, que seja dura-doura.

Para os gregos antigos, com uma cultura que não se fundava na expectativa de uma vida após a morte, imortalidade signifi-cava ser lembrado, por isto, preponderavam os ideais de valor e glória, dos grandes feitos em vida.

Mas a aclamação pela posteridade independe de mérito, é injusta e arbitrária. Às vezes, eleva artistas menores e olvida grandes gênios. Tudo é possível nesta roda da fortuna.

Há vários mestres da escrita que só obtiveram reconhecimen-to ou sucesso após terem deixado esta terra: Fernando Pessoa, Jane Austen, Henry David Thoreau, Edgar Allan Poe, Emily Dickinson, Stieg Larsson, Herman Melville, para citar alguns.

Franz Kafka foi um destes brilhantes autores que obtiveram pouca ou nenhuma repercussão em suas épocas, mas que foram celebrados pelas gerações futuras.

Em 2015, comemoramos 100 anos do lançamento de “A Metamorfose” de Kafka, esta obra que redefiniu os rumos da Literatura no século XX.

Henry Alfred Bugalho

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SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

CoNtoo Paladino 8

Joaquim Bispo

adeus, i 13Leandro Luiz

Entrevista com um papagaio de pirata 14Zulmar Lopes

miragem 16Maria Brockerhoff

Fóssil 18Cinthia Kriemler

Gosto de ti como um eufemismo 20Rafael Perpétua

traduÇÃoum artista da Fome 22

Franz Kafka

artiGoA Farsa de Inês Pereira: a figura feminina num mundo em transição 32

Tatiana Alves

Cavaleiros e romances de cavalaria 40Joaquim Bispo

romantik und das Ewige Selbst 46Wagner Pontes

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CrÔNiCaCarta a um Jovem Filósofo 48

Henry Alfred Bugalho

PoESiadrama 50

Eber dos Santos ChavesO fio da história 51

Ellen Maria Martins de Vasconcelloso espantapássaros 52

Vander Vieiraas Baleias 53

Marcelo José dos Santosquatro poemas 54

Marcus Groza

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5

A Revista SAMIZDAT conta com a sua participação para manter o alto padrão das publicações.

Aceitamos e estimulamos a participação de autores estreantes, pois o nosso objetivo é apresentar a maior diversidade possível de autores, gêneros e textos.

instruções para envio de obras

1 - Cada escritor poderá inscrever, nos respectivos campos, somente 1 (um) texto literário para publicação, de qualquer gênero - conto, crônica, poesia, microconto - ou um (1) texto teórico, como artigo de teoria lite-rária, resenha de livros, ou entrevista, além de traduções de textos literários em domínio público, sob licença Creative Commons ou com a expressa autorização do autor. O autor também deve enviar uma breve biografia na primeira página do arquivo.

2 - O limite máximo para cada texto lite-rário é de mil (1000) palavras, ou 4 páginas em A4, fonte Times ou Arial 12, espaça-mento 1,5. O envio dos textos não implica a aceitação automática; a seleção dependerá da quantidade de textos enviados, da qualidade literária e da disponibilidade de espaço na revista. A revisão dos textos é de responsabi-lidade de seus autores. O texto não precisa ser inédito.

3 - Os textos devem ser enviados até o dia 30 de setembro de 2015 através do nosso gerenciador de submissões (link abaixo) em um arquivo anexo, em formato .DOC, .DOCX ou .TXT. Por favor, aguarde o período de um mês após receber a resposta antes de enviar um outro texto.

http://revistasamizdat.submishmash.com/submit

Não aceitamos mais textos enviados por e-mail.

4 - Os textos selecionados serão publi-cados na edição 45 da Revista SAMIZDAT no final do mês de outubro de 2015, no site www.revistasamizdat.com ou poderão apare-cer como postagens no site, caso a edição em .PDF já esteja fechada.

5 - Os textos serão publicados sob licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Co-mercial-Vedada a Criação de Obras Deriva-das e o autor não será remunerado. O envio de textos implica a aceitação por parte do autor destes termos.

6 - os organizadores da SAMIZDAT se reservam o direito de não publicar a revis-ta, caso o número de submissões não seja o suficiente para o fechamento da edição.

7 - O não cumprimento dos itens acima poderá implicar na desqualificação da obra enviada.

Contamos com a sua participação!

Atenciosamente.

Henry Alfred Bugalho

Editor

Participe da revista Samizdat 45 – outubro de 2015

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inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâ-mica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus princípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito evidente, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no caminho dos dirigentes é afastado e ostraci-zado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigo-so, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabelecido. Por isto, é necessário suprimir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de demais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária,

igualitária, mas logo se converte em uma dita-dura como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não queriam, ou não conseguiam, fazer parte da máquina administrativa – que estipulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo –, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeografando, ou sim-plesmente manuscrevendo, tais autores rus-sos disseminavam suas ideias. E ao leitor era incumbida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa em russo do que "auto-publicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exemplo de um samizdat. Cortesia do Gulag Museum em Perm-36.

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7www.revistasamizdat.com 7

E por que Samizdat?

A indústria cultural – e o mercado literário faz parte dela – também realiza um processo de exclusão, baseado no que se julga não ter valor de mercado. Inexplicavelmente, estabele-ceu-se que contos, poemas, autores desconhe-cidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maiores do que o lucro.

A indústria deseja o produto pronto e com consumidores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mesmo o lixo possui prioridades na hora de ser absor-vido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regi-me excludente, torna-se a via para produtores culturais atingirem o público.

Este é um processo solitário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes aparatos midiáticos – como TV, revistas, jornais – onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os autores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escrevem (quando há) surge em questão de minutos.

A serem obrigados a burlar a indústria cul-tural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato quase pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de contatos que, se não é tão influente quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há grandes tiragens que substituam o prazer de ouvir o respaldo de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofistica-rem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneida-de.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de autopublicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica gratuita, escrita, editada e publicada pela novíssima geração de autores lusófonos. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profissionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

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8 SAMIZDAT agosto de 2015

Joaquim Bispoo Paladino

Conto

8 SAMIZDAT agosto de 2015

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9www.revistasamizdat.com

O rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na floresta de Ga-mywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme doze-hastes, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:

— A esta distância, homem algum lhe consegue acertar!

Que prémio me dareis, se o atingir? — inquire Guloz, sobranceiro.

O rei semicerra os olhos e avalia a distân-cia: “Impossível!”

— O que me pedirdes! — declara o rei, categórico.

O senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo. Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal. Surpreendentemen-te, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.

Levanta-se um coro de regozijo na comi-tiva. O cavaleiro Potranc está apreensivo. O rei grita:

— Hurrah! Que bela peça vamos ter hoje para a ceia. Felicitações, sire! Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei não volta atrás!

Guloz olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.

— Quero a rainha Florence.

Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos das espadas. A

rainha intervém:

— Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafio justo.

Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.

Potranc diz ao rei:

— Vós, pela vossa palavra, nada podeis fa-zer, mas eu, que não aceito a perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.

O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover. Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstáculo, sãos e salvos.

Logo à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desem-bainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se desequi-libra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.

Potranc não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma bifurca-ção. Há sinais de cascos em ambos os ca-minhos. Vê um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:

— Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu.

— Todos os caminhos vão dar ao Senhor,

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10 SAMIZDAT agosto de 2015

mas o do evangelho é mais direto que o da epístola — responde o santo homem.

— Deixai-vos de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes — ripos-ta Potranc de mau humor. — Indicai-mo sem demora!

— À vossa direita, sire — diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.

Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tom-ba e morre. O cavaleiro prossegue a pé.

Num troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com um enor-me javali. O animal, ou porque está a defen-der o território ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc, surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga, mas o cavalei-ro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de crânio aberto.

Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça no seu carro puxado por uma mula.

— Para onde vais, almocreve? — indaga o cavaleiro apeado.

— Para o castelo do rei Justin. Se quiser-des, posso levar-vos — responde o carregador, solícito.

Potranc não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.

Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita. Sobe os

degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio, pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria, arremete de espada em riste contra os se-quazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz as-soma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho.

— Minha senhora, morrerei, se tal for pre-ciso, para vos salvar — grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.

Guloz, com um gesto, manda parar o combate.

— Que quereis daqui, cavaleiro?

— A minha senhora, que vós, malicio-samente, usurpastes — responde Potranc enraivecido.

— Vistes bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal.

— Aposta, sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não tendes nobreza.

— Já que quereis tanto bem à vossa se-nhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espa-da que deixei cair ao Lago do visco — enu-mera Guloz com um sorriso furtivo.

— Não vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas — riposta Potranc. — Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a vossa própria palavra e criás-seis outros obstáculos. Vós sois matreiro e

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cobarde!

O cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços, quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:

— Guloz tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc, como seu paladino, tem direi-to a procurar contestar essa condição que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?

Ambos os contendores assentem. Na ma-nhã seguinte, à hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se aglomeram junto ao palan-que real, alinham-se os antagonistas. Justin dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O pri-meiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e recomeçam o combate.

Neste reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não se aproveita da vantagem. Des-monta e prossegue o combate a pé. Guloz já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantêm-se silenciosos, mas as

damas não conseguem evitar um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o defensor da rainha Florence.

De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abun-dantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A rainha Florence será confia-da à proteção de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do seu reino.

Após uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo nobremente ajaezado. Embrenham-se na floresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.

De repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não tenha segredos para a rainha, desta vez, não con-segue dominá-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cava-lo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.

Daí a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por um forno

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12 SAMIZDAT agosto de 2015

de carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estôma-go com maçãs silvestres e descansam, como podem — Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.

Na manhã seguinte, quando Potranc acor-da, fica amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também, perce-be o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manhã, e renova a enorme ternura que desde sempre sente por este jovem, que se sujeita a tan-tos perigos por sua causa. Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mu-tuamente afeiçoadas. Nenhum tenta resistir à atração. Os seus lábios encontram-se e os seus corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo há muito sublimado.

Nesse momento, o cavalo de Potranc relin-cha e ambos regressam à sua realidade.

─— Sei que me amais tanto quanto me respeitais — sussurra a rainha, enquanto de-posita um beijo suave na fronte possante de Potranc. — Sois o meu mais querido paladi-no.

— Sim, minha rainha, amo-vos mais do que a tudo na vida, e o meu respeito por vós só tem paralelo na minha lealdade ao nosso rei ─ declara Potranc, comovido. — Estarei sempre a vosso lado.

A emoção toma conta de ambos. Abra-çam-se longamente, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris.

Retemperados, prosseguem o regresso ao castelo, onde as pessoas que são tudo nas suas vidas, os esperam inquietas, sem saber que Potranc já resgatou, galhardamente, a rai-nha e a traz de volta sã e salva. Cavalgando a caminho do seu lar, levando a sua senhora na garupa, Potranc é o cavaleiro mais feliz do mundo.

Joaquim BispoPortuguês, reformado, ex-técnico da televisão pública, licenciado tardio em História

da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a escrita de ficção desde 2007. Integra várias coletâneas resultantes de concursos lite-rários dos dois lados do Atlântico e publica regularmente na revista Samizdat desde 2008.

Contacto: [email protected]

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Leandro Luiz

adeus, iConto

Após anos de um trabalho muito intenso, i começou a apresentar alterações emocio-nais e comportamentais nos textos nos quais aparecia. Nos últimos dez anos, ele vivia uma dualidade quanto à sua individualidade, pois, em algumas situações, acreditava ser uma vogal. Já em outros momentos, acreditava ser um ponto de exclamação.

Esse distúrbio deu início a uma série de problemas aos autores e leitores de todo o mundo, principalmente, na interpretação de importantes contos, crônicas, fábulas, repor-tagens e tantas outras narrativas que eram escritas.

Foi encaminhado a um renomado institu-to linguístico e, ao se submeter a alguns exa-mes, o professor de português foi categórico no seu diagnóstico: i sofria de transtorno de personalidade, uma perturbação irreversível que piorava a cada dia, para a tristeza de sua família de fonemas.

Seus últimos dias literários foram marca-dos por uma grande dislexia, além de muitos espaços deixados em branco nas páginas dos livros.

Significados ficaram incompletos. Frases incompreendidas. Parágrafos sem sentido. i

estava realmente muito confuso. Não sabia mais qual era a sua classe morfológica. Nem mesmo o dicionário conseguiu ser eficien-te no seu tratamento. Alguns poetas até se mobilizaram para ajudá-lo, mas não tiveram êxito.

Para agravar a situação, i entrou em uma profunda depressão. Já não tinha mais von-tade de ser vogal. Tampouco um ponto de exclamação. Ele não tinha mais vontade de viver, de escrever ou de falar. i parou de se alimentar e não queria mais saborear o que tanto amava – a educação.

Infelizmente, i não aguentou. Ele se foi para sempre sem escrever nada. Para a tristeza de todos os vocábulos, partiu sem ao menos dizer uma só palavra.

Adeus, i. Adeus. Perdemos uma importan-te letra. A ortografia custa acreditar na sua partida repentina. A grafia chora. As laudas estão inconsoláveis.

O que nos resta agora é aceitar o destino, que é certo e irreversível para todo e qual-quer conjunto de palavras. A única certeza que temos é que um dia chegaremos ao tão temido ponto final.

Leandro Luiz33 anos, é publicitário, redator e escritor. É autor do livro “Hora da Escrita – Contos, Crônicas e

Outras Mentiras de Leandro Luiz”, baseado no seu blog.

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14 SAMIZDAT agosto de 2015

Zulmar Lopes

Entrevista com um papagaio de pirata

Conto

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– Estamos aqui na Cinelândia com o senhor Jair. Ele é conhecido como o maior papagaio de pirata do Rio de Janeiro, aqueles sujeitos que ficam atrás das equipes de reportagens e dos entrevistados com o único objetivo de aparece-rem na televisão. Bom dia, seu Jair.

– Bom dia, dona...

– Cláudia Freitas...

– ... dona Cláudia Freitas.

– Quando o senhor começou sua carreira de papagaio de pirata?

– Isso foi há muitos anos. Eu estava indo para o escritório onde eu trabalhava depois do almoço quando uma pessoa caiu dentro do

buraco da obra do metrô lá na Rua Uruguaia-na. Juntou gente para ver o resgate e quando eu fui assistir o jornal à noitinha, vi que eu estava atrás do bombeiro que fez o resgate e estava sendo entrevistado por uma mocinha que agora é apresentadora daquele programa de domingo à noite e que esqueci o nome. Mal acabou a reportagem, meu telefone não parou de tocar. Era um tal de parente, amigo da roda de chope, colega de trabalho dizendo. “Pô, cara! Te vi na televisão! Aí, eu tomei gosto pela fama e estou aqui até hoje.

– O senhor é muito conhecido por suas apa-rições. Como o senhor sabe onde as equipes de televisão estarão?

– Ah, minha filha... feeling... Tem uns luga-

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res básicos onde sempre tem jornalista de TV. Aqui, na Cinelândia, é um deles. O Largo da Carioca é outro lugar fácil de achar repórter. A Praça Nossa Senhora da Paz em Ipanema tam-bém é outro ponto bom. Tenho que ficar aten-to aos horários também. Os jornais de manhã e da hora do almoço sempre entram ao vivo. Aí eu dou uma arriscada por estes lugares e, de cada cinco, seis tentativas, uma eu acerto.

– O senhor não se incomoda de ser chama-do de papagaio de pirata?

– Que nada, minha filha. Essa gente é invejo-sa. Já fiquei atrás do ombro de ministro, joga-dor de futebol, cantor de dupla sertaneja e até de um governador de estado. Tudo inveja.

– E a concorrência?

– Pois é. Tem uns caras agora que querem competir comigo, mas eu sou mais eu. Se for necessário, eu dou um chega pra lá e me po-siciono melhor. Essa garotada tem que comer muito arroz com feijão para aparecer na tele-visão. Mas tem uns meninos que me respeitam, pedem até umas dicas. Pra estes eu até dou uma mãozinha, mas não ensino o meu pulo do gato.

– E quais são as dificuldades que o senhor encontra nesta sua atividade, seu Jair?

– Os cinegrafistas! São piores que os repór-teres. Tem uns que já chegam dando espor-ro, mandando a gente ficar de longe. Outros desfocam a nossa cara, movem a câmera para

deixar a gente fora de cena mas, eu já sou macaco velho e quando percebo o movimento da câmera, dou um passo de leve para a dire-ção que o cinegrafista aponta e fico em cena. Tem uns entrevistados que também ficam fulos da vida. Quando acaba a entrevista saem logo para a ignorância, dizendo que eu atrapalhei o desempenho deles e o diabo a quatro. Mas eu fico na minha, mantenho minha postura. Sou um gentleman. Não vou ficar dando cartaz a qualquer um.

– Afinal de contas, por que o senhor faz isto?

– Por quê? Para ser famoso, minha filha. Todo mundo quer ser famoso, aparecer na te-levisão. Você mesma não tá aí na batalha para ficar famosa? Aliás, de que canal você é?

– De canal algum. Isto aqui é uma reporta-gem para o jornal de faculdade de jornalismo onde eu e o Bruno, que está operando a câme-ra, estudamos. Vai passar só lá.

– Caramba, minha filha! E eu perdendo o meu tempo com você? Faça-me o favor! Jornal-zinho de faculdade! Era só o que me faltava! Tá me achando com cara de palhaço? Quem não tem o que fazer? Ora essa!

zulmar LopesO autor é jornalista. Premiado no 1º concurso literário “Contos do Rio”, pro-

movido pelo jornal “O Globo”. Menções honrosas no “7º concurso de Contos Luís Jardim, “11º Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães” e 23º Concurso Na-cional de Contos Cidade de Araçatuba, Concurso Nacional de Contos José Cândi-do de Carvalho e Prêmio Cataratas. Vencedor do XXXIII Concurso Literário Felippe D’Oliveira/2010 na categoria conto e do Prêmio Escriba 2013. Colaborador da Revista Eletrônica Samizdat. Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente” lançado em 2010. Membro Correspondente da Academia Cachoeirense de Letras. Tem contos e crônicas publicados em diversas antologias. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”.

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Maria Brockerhoff

miragemConto

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As estrelas salpicam o céu. Com um sentimento de inquieta-ção e prazer aguardo os passos lépidos, o sorriso largo à porta destrancada… num átimo, o calor de um abraço em rodopio apagaria o hiato infinito do desejo.

A mesa preparada com a cerveja escura na medida do seu paladar. As frutas suculentas e o cheiro de semente de papoula no pão nos envolveriam num recreio de brincadeiras de roda, de cabra-cega.

Ao som do piano, compreenderíamos ser a aceitação da aco-lhida a única via para amenizar a travessiadeste deserto humano.

Já no ponto, a água tépida do banho para enxaguar-lhe o chei-ro lá de fora, o pó das regras oficiais e a nos dissolver a couraça.

Agora, o coração pronto para tecer

os enredos perdidos

os silêncios truncados.

Para remendar os segredos

e cerzir os desencantos.

A noite, a única espectadora do diálogo dos corpos, da entrega por inteiro, da experiência nova a cada reencontro...

… depois, o inefável descanso como o da sombra de uma árvore e o gosto de um gole d’água fresca no côncavo de uma outra mão…

Foram-se as estrelas… o seu lugar… vazio.

Maria BrockerhoffNo calendário chinês, o meu símbolo, a serpente, tem a virtude de

renascer das cinzas, de trocar de pele e de ter muitas vidas! Também representa um espaço onde se encontram o bem e o mal, o claro e o escuro, a plenitude e o vazio, o perigo e a bonança.

Sob essas ideias românticas e divertidas existe a certeza de uma profunda perplexidade… onde a escrita é uma pulsão salvadora…

Blogs:

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lounge.obviousmag.org/da_janela_das_eumenides/

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18 SAMIZDAT agosto de 2015

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Conto

Cinthia Kriemler

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Um pouco de ânimo e ela poderá voltar a fazer planos. Arrumar os cabelos, tirar as sobrancelhas, fazer as unhas dos pés e das mãos. Talvez uma maquilagem leve. Talvez o corpo perfumado por cremes e por um fran-cês usado a conta-gotas. Natação, academia, massagem, caminhada, saladas verdes em todos os tons, penetradas por frutas e flores e grãos. Ou dança de salão. Ela sempre quis fazer dança de salão. Um pouco de motiva-ção e pode ser que consiga até um empre-go novo. Um que receba de braços abertos aquele diploma guardado num tubo. E ela vai ganhar dinheiro para comprar roupas novas, objetos para a casa, presentes para o filho que nunca a visita.

Mas pode ser que ela não queira nada disso. E que num momento de honestidade intensa abandone os pode ser, os condicio-nais, os pretéritos imperfeitos, e seja o sono-ro imperativo que decide um foda-se. Porque ela não foi feita dessa massa de vontades agitadas. Ela veio descanso. E por isso não vê sentido na agonia matutina de levantar pou-co depois do sol nascer para caminhar num parque ou numa rua cheia de transeuntes que se ignoram e em seguida ir esfriar o cor-po suado em uma piscina morna que mais vai deixá-la mole do que vai lhe dar vontade de exercitar braçadas sincopadas para enrije-cer os braços e dar pernadas vigorosas para endurecer as pernas antes de voltar para casa e comer as saladas verdes invadidas por mangas ou maçãs ou morangos ou grano-las ou chias ou flores que lhe afirmam ser comestíveis.

Ela é cama até que o cheiro do almo-ço de carnes e massas a convide a abrir os olhos para o prato colocado na mesa móvel que mora no quarto. Ritual. Os olhos que descem a tela do celular lendo mensagens e notícias intercaladas às garfadas estão sem-pre sonolentos. No alto da cabeça, o cabelo emaranhado forma desenhos engraçados. Dentro da cabeça, um pensamento a alerta de que a lista de compras do supermercado precisa ser feita. Mas isso implicaria descer as escadas, ir à rua, dirigir, dar voltas com-pletas em gôndolas cheias de possibilidades, suar, sentir os pés inchando numa fila que sempre está lá. Não. Ela escolhe a internet, que vende e manda entregar.

A janela aberta para a rua é o passeio do dia. E basta. O roupão abotoado dispensa vestido, bermuda, sutiã, sapatos. E serve para chegar à janela. O rosto lavado é a desistên-cia declarada. Um texto que comunica silen-ciosamente a distância interposta entre ela e as pessoas e coisas que teimam em lhe exigir atitudes. Como o companheiro, que esperou dela mais do que havia. Quando ele abriu a porta, quase arriscou um gesto lhe pedindo para ficar. Mas o final da novela das nove era mais real e urgente que o abandono.

Como os fósseis, ela morreu e se de-compôs. Como os fósseis, sua carcaça está incrustada em rochas. E as rochas são inaba-láveis.

Cinthia KriemlerCarioca e mora em Brasília. Contista, cronista e poeta, escreve para a SAMIZDAT todo dia 16. Au-

tora dos livros: Na escuridão não existe cor-de-rosa (2015); Sob os escombros (2014); Do todo que me cerca (2012), pela Editora Patuá. E Para enfim me deitar na minha alma (2010), projeto aprovado pelo FAC-DF. Na Amazon Brasil, publicou os e-books Atos e omissões e Contações.

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Rafaela Perpétua

Conto

Gosto de ti como um eufemismoht

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Tu. Foste tu que me mostraste que eu sou feita de saudades. És a minha metáfora em forma de gente, que corre de mim, querendo fugir, corre para mim, querendo fugir. E eu corro para ti, e quase te alcanço nessa tua bolha formada pelos teus mais puros sen-timentos, emoções em turbilhão, gritos que deixaste de gritar. Para mim é impossível entrar. O mundo não somos só nós os dois. Tens que sair para mim, que eu deixo que me encontres, mesmo sem me procurares. Grita para mim. Grita, que eu irei ouvir to-dos os teus devaneios e irei ser louca contigo! Connosco tudo é possível desde que seja loucura...

Eu quero-te tanto e quero tanto não te querer. És, por isso, a minha antítese mais pura e verdadeira. Se te quero desta forma, porque haveria de te querer de outra? Só te quero: apenas.

Permite-me que te diga que és, em mim, algo que eu sinto que não existiu. Não foste real. Nem és. Quem és tu, que me deixou terrivelmente caótica? Parece impossível que seja verdade. Qual paradoxo em constante rodopio... Para mim não és real, e no entan-to, continuas a ser das realidades que mais mexe com o meu coração. Sinto-o estremecer perante qualquer coisa que me faça lembrar de ti. E qualquer coisa? É tudo...

O tempo vai passando, de forma tão lenta, tão rápida, tão confusa, que já nem te sei. Deixei de te saber. E fui abrindo uma bolha só minha, não permitindo que mais ninguém entre. Se achares que sim, é o meu corpo que está a mentir. Porque só a ti é que ele diz a verdade. Só a ti é que ele cede, cometendo os erros mais puros.

Sabes? Sei que pensas que sempre soubeste

tudo o que me dizia respeito, mas nem que te abrisse por completo o meu coração, con-seguirias perceber isto que eu sinto, porque nem a mim ele se quer explicar. É um ser com vontade, o meu coração. É a personi-ficação de tudo aquilo que eu sinto por ti, de tudo aquilo que me fazes sentir. E fazes sentir tanto!

Dás-me um conjunto de sensações que me entorpecem. Deixaste o meu coração parado a bater por ti. Desfizeste as minhas mágoas e moldaste-as à tua maneira, tornando-as mais reais. Fizeste-me ser tão eu e tão des-vairadamente louca por ti, que me trocaste as voltas, deixando-me perdida. E eu, que já era perdida de mim, agora encontro-me perdida de ti...

Quero apenas que saibas que gosto de ti como um eufemismo. E haverá melhor forma para dizer isto se só assim o consigo dizer? Se nunca tive palavras para o dizer, se nun-ca gostei de algumas palavras para te dizer aquilo que sinto. Sabes que eu não gosto de certas palavras, não sabes? Mas sempre gostei de ti... E não quero que saibas a verdade. Por isso, tapa-me a boca com um beijo dos teus, que é para mim como uma culpa inocente, uma desculpa que me condena, reprime, con-trola, sufoca. Enlouquece. Enlouqueces-me.

És o meu conjunto de figuras de estilo, loucura a andar pelas ruas, a dormir ao meu lado na cama onde ficamos acordados, por-que é impossível conseguir adormecer quan-do te tenho tão próximo de mim, quando te posso passar os dedos pelos lábios, e delinear o sorriso que é teu, mas eu te dou. És mais complicado que regras gramaticais. É difícil seguir os teus passos, sem nunca saber onde vou parar. Sabes, mostraste-me apenas que és a exceção da regra...

rafaela Perpétua23 anos, psicóloga, futura mestre em Psicologia da Educação. Sendo uma eterna

perseguidora das palavras, conseguiu juntar uma parte delas em 2011 com a publica-ção do seu primeiro livro “Não me peças que te ame”, uma edição da Chiado Editora. Se se conseguisse resumir a si e ao mundo, em meia dúzia de frases, não seria certa-mente uma apaixonada pela leitura e pela escrita.

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tradução

Franz KafkaTrad.: Henry Alfred Bugalho

um artista da Fome

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Na última década, o interesse em artistas da fome decaiu consideravelmente. Embora antigamente podia-se ganhar um bom di-nheiro realizando grandes produções deste tipo sob sua própria gestão, atualmente isto é totalmente impossível. Aqueles eram tempos diferentes. Antigamente, o artista da fome capturava a atenção da cidade inteira. Dia após dia, enquanto durava o jejum, a partici-pação aumentava. Todos queriam ver o artista da fome pelo menos uma vez ao dia. Durante os últimos dias, havia pessoas com ingressos que se sentavam durante o dia inteiro dian-te da pequena jaula com barras. E havia até horas de exibição à noite, com seu impacto aumentado por luz de tocha. Em dias bons, a jaula era arrastada para fora, para o ar livre, então o artista da fome era posto em exibição particularmente para as crianças. Ainda que para os adultos o artista da fome fosse fre-quentemente uma divertimento, algo em que eles participavam porque era uma moda, as crianças observavam deslumbradas, com as bocas abertas, segurando as mãos umas das outras por precaução, enquanto ele se senta-va ali sobre palha espalhada — desdenhan-do uma cadeira — em collants pretos, com aparência pálida, com suas costelas proemi-nentemente pontiagudas, às vezes aquiescendo educadamente, respondendo perguntas com um sorriso forçado, até mesmo esticando seu braço através das barras para deixar que as pessoas sentissem quão emaciado ele estava, mas, depois, mergulhando de novo comple-tamente em si, de modo que ele não presta-va atenção a nada, nem mesmo ao que era importante para ele, o soar do relógio, mas meramente olhando para a frente de si com seus olhos quase cerrados e, de vez em quan-do, bebericando de um copinho de água para umedecer seus lábios.

Além dos cambiantes grupos de especta-dores, havia também observadores constantes escolhidos pelo público — estranhamente eles geralmente eram açougueiros — que, sempre em três por vez, recebiam a tarefa de obser-var o artista da fome dia e noite, para que ele

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não obtivesse nada de comer de algum modo secreto. Contudo, era mera formalidade, introduzida para tranquilizar as massas, pois aqueles que compreendiam bem o suficiente que durante o período de jejum o artista da fome nunca, sob qualquer circunstância, teria comido a menor das coisas, nem mesmo se fosse obrigado. A honra de sua arte o proi-bia. Naturalmente, nenhum dos espectadores compreendia isto. Às vezes, havia grupos no-turnos de observadores que conduziam sua vigília de maneira bastante relaxada, delibe-radamente sentando-se juntos em um canto distante e depositando toda sua atenção nas cartas, claramente com a intenção de dar ao artista da fome um pouco de refresco, que, de acordo com o modo de pensar deles, ele poderia obter de algum suprimento secreto. Nada era mais excruciante para o artista da fome do que tais observadores. Eles o depri-miam. Eles faziam com que seu jejum ficasse terrivelmente difícil. Às vezes, ele superava sua fraqueza e cantava durante o tempo que eles estavam observando, até quando pudesse aguentar, para mostrar às pessoas quão injus-tas eram as suspeitas delas em relação a ele. Mas isto pouco ajudava. Pois, então, eles se indagavam entre si sobre a habilidade de ele conseguir comer mesmo enquanto cantava. Ele preferia os observadores que se sentavam bem perto das barras e, não satisfeitos com a fraca iluminação do ambiente, iluminavam--no com lanternas elétricas que o empresário lhes disponibilizava. A luz brilhante não o incomodava nem um pouco. Geralmente, ele sequer conseguia dormir, e ele podia sempre cochilar um pouco sob qualquer iluminação e em qualquer hora, mesmo em um auditó-rio lotado e ruidoso. Para tais observadores, ele estava bastante preparado para passar com contentamento a noite inteira sem dor-mir. Ele estava pronto para contar piada com eles, para relatar histórias de sua vida nomá-dica e, então, ouvir de volta as histórias deles — fazendo de tudo apenas para mantê-los acordados, para que ele pudesse continuar exibindo-lhes novamente que ele não tinha nada para comer em sua jaula e que ele jeju-

ava como nenhum deles conseguiria. Entre-tanto, ele ficava mais feliz quando a manhã raiava e um suntuoso café-da-manhã era tra-zido para eles por sua conta, sobre os quais eles se lançavam com o apetite de homens saudáveis após uma noite de trabalho sem sono. É verdade que ainda havia pessoas que queriam enxergar neste café-da-manhã um meio desonesto para influenciar os observa-dores, mas isto estava indo longe demais, e se elas fossem indagadas se queriam assumir o turno noturno dos observadores por conta própria, sem o café-da-manhã, elas se escu-savam. Mas, mesmo assim, elas continuavam suspeitosas.

Contudo, em geral, fazia parte do jejum que estas dúvidas estivesse intrinsecamente associadas a ele. Pois, na verdade, ninguém estava em condições de gastar seu tempo observando o artista da fome todos os dias e noites sem interrupção, então ninguém poderia saber, baseado em sua própria obser-vação, se este era um caso verdadeiramente contínuo e impecável de jejum. Apenas o artista da fome poderia saber disto e, ao mesmo tempo, era o único espectador capaz de ficar completamente satisfeito com seu próprio jejum. Mas a razão porque ele nunca estava satisfeito era diferente. Talvez não fosse sequer o jejum que houvesse deixado--o tão emaciado para que muitas pessoas, por seu próprio remorso, se mantivessem afastadas de sua apresentação, porque elas não conseguiam suportar olhar para ele. Pois ele era esquelético por causa de insatisfação consigo próprio, porque somente ele sabia algo que até iniciados não sabiam — de quão fácil era jejuar. Isto era a coisa mais fácil do mundo. Ele não se silenciava quanto a isto, mas as pessoas não acreditavam nele. Na melhor das hipóteses, elas pensavam que ele estava sendo modesto. A maioria delas, contudo, acreditava que ele estava buscando publicidade ou era um vigarista completo, para quem, seja como for, jejuar era fácil porque ele compreendia como torná-lo fácil, então ainda tinha coragem de admitir isto

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parcialmente. Ele tinha de aceitar tudo isto. Com o passar dos anos, ele se acostumou a isto. Mas esta insatisfação continuava remo-endo em suas entranhas todo o tempo e ele ainda nunca — e isto tinha de ser dito a seu crédito — havia deixado a jaula por sua von-tade própria após qualquer período de jejum. O empresário havia estabelecido a duração máxima de tempo para o jejum de quaren-ta dias — ele nunca permitiria que o jejum ultrapassasse este ponto, nem mesmo em cidades cosmopolitas. E, na verdade, ele tinha uma boa razão. A experiência havia demons-trado que, por aproximadamente quarenta dias, podia-se paulatinamente gerar o interes-se de uma cidade ao aumentar gradualmente a publicidade, mas depois o público voltava as costas — podia-se demonstrar uma queda significativa em popularidade. Em relação a isto, havia, é claro, pequenas diferenças entre diferentes cidades e entre diferentes países, mas, como uma regra, era verdade que qua-renta dias era a duração máxima de tempo. Então, no quadragésimo dia, a porta da jaula — que era coberta com flores — era aberta, e uma plateia entusiasmada enchia o anfitea-tro, uma banda marcial tocava, dois médicos entravam na jaula para poderem fazer as medições necessárias do artista da fome, os resultados eram anunciados para o auditório através de um megafone e, finalmente, duas jovens chegavam, felizes de terem sido sele-cionadas por sorteio, e procuravam ajudar o artista da fome a descer um par de degraus para fora da jaula, onde sobre uma pequena mesa uma refeição hospitalar cuidadosa-mente escolhida era posta. E, neste momento, o artista da fome sempre relutava. É claro, ele ainda descansava voluntariamente seus braços ossudos nas prestativas mãos esten-didas das senhoritas inclinando-se sobre ele, mas ele não queria se levantar. Por que parar bem agora, após quarenta dias? Ele poderia ter prosseguido por ainda mais, por uma duração ilimitada de tempo. Por que parar bem agora, quando ele estava em sua melhor forma, sem ter atingido ainda sua melhor forma para jejuar? Por que as pessoas que-

riam roubar-lhe a fama de jejuar por mais tempo, não apenas para que ele se tornasse o maior artista da fome de todos os tempos, o que, na verdade, ele provavelmente já devia ser, mas também que ele pudesse superar-se a si mesmo de algum modo inimaginável, para que ele sentisse que não havia limites para a sua capacidade de jejuar. Por que esta multidão, que fingia admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele? Se ele prosseguisse e jejuasse por mais tempo, por que eles não tolerariam? Então, ele também estava cansado e se sentia bem sentado na palha. Agora ele deveria se levantar ereto e alto e ir comer, algo que, quando ele mera-mente imaginava, fazia com que se sentisse imediatamente nauseado. Com grande difi-culdade, ele reprimia mencionar isto apenas por consideração às mulheres. E ele olhava para cima nos olhos destas mulheres, apa-rentemente tão amigáveis, mas na realidade tão cruéis, e balançava sua cabeça excessiva-mente pesada sobre seu débil pescoço. Mas então aconteceu o que sempre acontecia. O empresário veio adiante sem dizer uma palavra — a música tornava a fala impossí-vel — ergueu seus braços sobre o artista da fome, como se convidasse o céu para olhar para seu trabalho aqui na palha, seu desa-fortunado mártir (algo que o artista da fome certamente era, mas em um sentido comple-tamente diferente), agarrou o artista da fome ao redor de sua fina cintura, desejando no processo que seu cuidado exagerado fizesse as pessoas acreditarem que ele tinha de lidar com algo frágil, e o entregou — não sem se-cretamente chacoalhá-lo um pouco, de modo que as pernas e o torso do artista da fome balançaram incontrolavelmente para a frente e para trás — às mulheres, que, naquele ínterim, haviam empalidecido como mortas. Até este momento, o artista da fome havia suportado tudo. Sua cabeça jazia sobre seu peito — era como se ela houvesse inexplica-velmente rolado e parado somente ali — seu corpo curvado para trás, suas pernas, em um impulso de autopreservação, estavam pressio-nadas juntas no joelho, mas se arrastavam no

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chão, como se elas não estivessem realmen-te no chão, mas buscassem pelo chão real, e todo o peso de seu corpo, evidentemente muito pouco, repousava contra uma das mulheres, que suplicava ofegante por ajuda, pois ela não havia imaginado que seu posto de honra seria como isto, então ela esticou seu pescoço o máximo possível, para manter o seu rosto afastado do menor contato com o artista da fome, mas, então, ela não conseguia fazer isto e sua companheira mais afortuna-da não vinha em seu auxílio, mas tremia e permanecia contente em segurar diante dela a mão do artista da fome, aquela pequena coleção de articulações, ela desatou a chorar, para o deleitoso riso do auditório, e teve de ser libertada por um atendente que estava de prontidão há algum tempo. Então veio a refeição. O empresário pôs um pouco de co-mida na boca do artista da fome, agora tonto como se estivesse desmaiando, e mantinha uma animada conversa destinada a desviar a atenção da condição do artista da fome. Então um brinde foi proposto ao público, que foi supostamente sussurrado para o empresário pelo artista da fome, a orquestra confirmou tudo com uma grande fanfarra, as pessoas se dispersaram, e ninguém tinha o direito de estar insatisfeito com o evento, ninguém excetuando o artista da fome — ele era sempre o único.

Ele vivia assim, tirando pequenos inter-valos regulares, por muitos anos, aparente-mente sob os holofotes, honrado pelo mundo, mas a despeito disto tudo, seu humor era geralmente sombrio, e continuava se tor-nando mais sombrio todo o tempo, porque ninguém compreendia como ele levava isto a sério. Mas como ele encontraria consolo? O que havia restado para ele desejar? E se um homem bondoso que sentisse pena dele qui-sesse explicar-lhe que esta tristeza provavel-mente derivava de seu jejum, então poderia ocorrer, especialmente neste estágio avançado do jejum, que o artista da fome respondia com uma explosão de fúria e começava a chacoalhar a jaula como um animal, ate-

morizando todo mundo. Mas o empresá-rio tinha um modo para punir momentos como este, algo que ele ficava feliz de usar. Ele pediria desculpa ao público reunido, em nome do artista da fome, reconhecendo que a irritabilidade havia sido provocada apenas pelo jejum dele, que pessoas bem alimenta-das não compreendiam prontamente e que eram capazes de escusar o comportamento do artista da fome. A partir daí, ele passaria a falar sobre a afirmação igualmente difícil de entender de que o artista da fome podia continuar jejuando por muito mais tempo do que ele estava fazendo. Ele elogiaria o nobre esforço, a boa vontade e a grande autoab-negação inquestionavelmente contida nesta afirmação, mas então ele tentaria contradizer isto ao oferecer fotografias, que também es-tavam à venda, pois nas imagens era possí-vel ver o artista da fome no quadragésimo dia de seu jejum, na cama, quase morto de exaustão. Embora o artista da fome estives-se muito familiarizado com esta perversão da verdade, ela abalava seus nervos todas as vezes e era demais para ele. O que era um resultado do fim prematuro do jejum, as pessoas agora propunham como sendo sua causa! Era impossível lutar contra esta falta de compreensão, contra este mundo de incompreensão. De boa-fé, ele ainda sempre ouvia avidamente o empresário nas barras de sua jaula, mas todas as vezes, assim que os fotógrafos partiam, ele se afastava das barras e, com um suspiro, afundava-se de novo na palha, e um público seguro voltava de novo e o via.

Quando aqueles que haviam testemunha-do tais cenas pensavam de volta nelas alguns anos depois, frequentemente eles mesmos eram incapazes de compreender. Pois, neste ínterim, a mudança mencionada acima ocor-reu. Isto aconteceu quase imediatamente. Tal-vez houvesse razões mais profundas para isto, mas quem se importava em descobrir quais eram? De qualquer modo, um dia o papari-cado artista da fome se viu abandonado pela multidão de ansiosos por prazer, que prefe-

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ria fluir para outras atrações. O empresário percorreu metade da Europa mais uma vez com ele para ver se conseguia redescobrir o velho interesse aqui e lá. Tudo isto era fútil. Era como se um acordo secreto contra apre-sentações de jejum houvesse sido realmente desenvolvido em algum lugar. Naturalmente, a verdade é que isto não poderia ter ocorri-do tão rapidamente, e as pessoas mais tarde lembravam algumas coisas que, nos dias de sucesso embriagante, elas não haviam presta-do atenção o suficiente, algumas indicações inadequadamente suprimidas, mas agora era tarde demais para fazer algo para contê-las. É claro, certamente a popularidade do jejum retornaria outra vez um dia, mas para aque-les vivos agora não havia consolo. O que o artista da fome faria agora? O homem cujo milhares de pessoas haviam ovacionado não conseguia se apresentar em cabines em pe-quenas feiras, e o artista da fome não apenas era velho demais para assumir uma profissão diferente, mas era fanaticamente devotado ao jejum mais do que a qualquer coisa. Então, ele disse adeus ao empresário, um incompa-rável companheiro em sua vida na estrada, e deixou-se contratar por um grande circo. Para poupar seus próprios sentimentos sensí-veis, ele nem mesmo olhou os termos de seu contrato.

Um grande circo com sua enorme quan-tidade de homens, animais e acrobatas, que constantemente eram dispensados e substi-tuídos, pode usar qualquer um em qualquer momento, mesmo um artista da fome, desde que, é claro, suas exigências fossem modes-tas. Além disto, neste caso em particular, não apenas o próprio artista da fome estava envolvido, mas também seu antigo e famoso nome. Na verdade, dada as características naturezas de sua arte, que não diminuía com a idade avançada, ninguém poderia nunca afirmar que um artista desgastado, que não mais estivesse no ápice de suas habilidades, desejava escapar para uma quieta posição no circo. Pelo contrário, o artista da fome declarava que ele podia jejuar tão bem quan-

to nos velhos tempos — uma afirmação que era inteiramente fiável. Na verdade, ele até afirmava que, se as pessoas o deixassem fazer o que ele quisesse — e isto lhe foi prometido sem reservas —, ele realmente agora fasci-naria legitimamente o mundo pela primeira vez, uma afirmação que, no entanto, dado o humor da época, algo que o artista da fome facilmente ignorou, apenas trouxe sorrisos para os especialistas.

Essencialmente, contudo, o artista da fome também não havia esquecido do modo como as coisas realmente eram, e ele assu-mia como autoevidente que as pessoas não o poriam com sua jaula como uma atração principal no meio da arena, mas o moveriam para fora em algum outro ponto prontamen-te acessível perto das barracas dos animais. Enormes cartazes pintados com cores vivas cercavam a jaula e anunciavam o que havia ali para ser visto. Durante os intervalos na apresentação principal, quando o público geral empurrava-se em direção à coleção de animais para vê-los, as pessoas mal podiam evitar de passar perto do artista da fome e parar ali por um instante. Elas talvez tives-sem ficado com ele por mais tempo se aque-les empurrando atrás na passagem estreita, que não compreendiam esta pausa no cami-nho para as barracas dos animais que eles queriam ver, não houvessem tornado impos-sível uma pacífica observação mais prolonga-da. Esta era também a razão porque o artista da fome começava a tremer antes destas horas de visitação, as quais ele naturalmente costumava ansiar como o principal propó-sito de sua vida. Nos primeiros dias, ele mal conseguia esperar pelas pausas nas apre-sentações. Ele aguardava com alegria pela multidão brotando ao redor dele, até que ele se convenceu rapidamente demais — e mes-mo o teimoso, quase deliberado, autoengodo não conseguia resistir contra a experiência — que, julgando pela intenção delas, a maio-ria destas pessoas estava, uma e outra vez sem exceção, apenas visitando a coleção de animais. E esta visão de uma certa distância

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ainda permaneceu seu momento mais lindo. Pois quando elas vinham diretamente para ele, imediatamente ele recebeu uma saraiva-da de gritos e xingamentos de dois grupos que aumentavam constantemente, daqueles que queriam aproveitar seu tempo para dar uma olhada no artista da fome, não com en-tendimento, mas como um capricho ou por mero desafio — para ele, estes eram os mais dolorosos — e um segundo grupo de pessoas cuja única exigência era seguir diretamente para as barracas dos animais. Uma vez que as grandes multidões passavam, os retardatá-rios chegavam, e embora não houvesse mais nada evitando tais pessoas de ficarem por ali quanto elas quisessem, elas apressavam--se com largas passadas, quase sem uma espiadela, para chegar a tempo nos animais. E era um golpe de sorte raríssimo quando o pai de uma família vinha com suas crianças, apontando seu dedo para o artista da fome, dando explicações detalhadas sobre o que estava acontecendo ali, e falava de anos pas-sados, quando ele havia estado presente em apresentações semelhantes, mas incompara-velmente mais magníficas, então as crianças, como elas haviam sido inadequadamente preparadas na escola e na vida, sempre fica-vam ao redor ainda que sem compreender. O que era o jejum para eles? Entretanto, o bri-lho no olhar de seus olhos inquiridores reve-lava algo dos novos e mais graciosos tempos que chegavam. Talvez, o artista da fome dizia para si mesmo às vezes, tudo fosse um pouco melhor se este local não ficasse tão perto das barracas dos animais. Assim, seria fácil para as pessoas fazerem sua escolha, sem contar o fato de que ele ficava muito incomodado e constantemente deprimido por causa do fedor das barracas, da comoção dos animais à noite, dos pedaços de carne crua carrega-dos passando por ele para as feras carnívoras e os rugidos na hora da alimentação. Mas ele não ousou abordar a administração sobre isto. De qualquer modo, ele devia agradecer aos animais pelas multidões de visitantes, en-tre os quais, de vez em quando, havia alguém destinado para ele. E quem sabia onde eles o

esconderiam se ele desejasse recordá-los de sua existência e, com isto, o fato de que, es-tritamente falando, ele era o único obstáculo a caminho da coleção de animais.

Um pequeno obstáculo, de qualquer modo, um obstáculo constantemente menor. As pessoas se acostumaram a pensar que era estranho naqueles tempos que elas quisessem prestar atenção ao artista da fome, e com esta consciência habitual o julgamento sobre ele era pronunciado. Ele poderia jejuar tão bem quanto podia — e ele o fez — mas nada poderia salvá-lo mais. As pessoas passavam direto por ele. Tente explicar a arte do jejum a alguém! Se alguém não senti-la, então não poderá compreendê-la. Os cartazes bonitos se tornaram sujos e ilegíveis. As pessoas os rasgaram e ninguém pensou em substituí--los. Uma pequena mesa com o número de dias que o jejum havia durado, que a prin-cípio havia sido renovado cuidadosamente todos os dias, permaneceu inalterada por um longo tempo, pois após as primeiras semanas a equipe se cansou até mesmo desta pequena tarefa. E assim o artista da fome continuou jejuando e jejuando, assim como ele havia sonhado antigamente, e ele não tinha dificul-dade alguma para atingir aquilo que havia previsto então, mas ninguém estava contando os dias — ninguém, nem mesmo o próprio artista da fome sabia quão grande era sua conquista neste ponto, e seu coração ficou pesado. E, quando ocasionalmente uma pes-soa caminhando passava por ali troçando do antigo número e falando de um embuste, isto era em um sentido a mentira mais estúpida que a indiferença e a malícia inata poderiam inventar, pois o artista da fome não estava sendo enganador — ele estava trabalhando honestamente — mas o mundo o estava tra-paceando como recompensa.

Muitos dias passaram outra vez, e este também chegou ao fim. Finalmente, a jaula despertou a atenção de um supervisor, e ele perguntou ao atendente por que eles haviam deixado esta jaula perfeitamente útil parada ali sem uso com palha apodrecendo dentro.

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Ninguém sabia, até que um homem, com a ajuda da mesa com o número nela, lembrou--se do artista da fome. Eles empurraram a palha ao redor com varas e encontraram o artista da fome ali. “Você ainda está je-juando?” perguntou o supervisor. “Quando você vai finalmente parar?” “Perdoe-me por tudo”, sussurrou o artista da fome. Apenas o supervisor, que estava apertando a orelha contra a jaula, o compreendeu. “Certamente”, disse o supervisor, batendo com seu dedo na testa para indicar à equipe o estado em que estava o artista da fome, “nós perdoamos você.” “Sempre quis que você admirasse o meu jejum”, disse o artista da fome. “Mas nós admiramos,” disse o supervisor amavelmente. “Mas você não devia admirar”, disse o artista da fome. “Muito bem, então,” disse o supervi-sor, “mas por que não deveríamos admirar?” “Porque eu tenho de jejuar. Eu não posso fa-zer nada mais,” disse o artista da fome. “Olhe para si”, disse o supervisor, “por que você não consegue fazer mais nada?” “Porque,” disse o artista da fome, erguendo sua cabeça um pouco e, com os lábios crispados como que para um beijo, falou direto para o ouvido do supervisor para que ele não perdesse nada, “porque eu não consegui encontrar uma comida que tivesse um bom sabor para mim. Se houvesse encontrado isto, acredite em mim, eu não teria feito um espetáculo de mim mesmo e teria comido com todo o contentamento de meu coração, assim como você e qualquer outro.” Aquelas foram suas últimas palavras, mas em seus fraquejantes olhos havia a ainda firme, mesmo que não mais orgulhosa, convicção de que ele conti-nuava a jejuar.

“Tudo bem, limpem isto agora,” disse o

supervisor. E eles enterraram o artista da fome junto com a palha. Mas em sua jaula eles puseram uma jovem pantera. Mesmo para uma pessoa com a mente mais banal era evidentemente agradável ver este animal selvagem rondando por sua jaula, que havia sido triste por tanto tempo. Ele carecia de nada. Sem ter de pensar muito sobre isto, os guardas trouxeram a comida que o animal desfrutava. Ele nunca pareceu sentir falta de sua liberdade. Este nobre corpo, equipado com todo o necessário, quase ao ponto de ex-plodir, parecia até carregar consigo a liberda-de ao redor. Isto parecia estar localizado em outro lugar ou em suas presas, e sua alegria de viver brotava com tamanha forte paixão de sua garganta que não era fácil para os espectadores continuarem observando. Mas eles se controlavam, continuavam se empur-rando ao redor da jaula e não tinham vonta-de alguma de se mover.

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A história pessoal de Franz Kafka (1883–1924) é repleta de altos e baixos, mal-enten-didos, frustração e uma inquietante aura de incompletude.

Poucos autores canônicos nos legaram tantas obras clássicas inacabadas quanto Kafka.

Este rapaz judeu de Praga, falante de ale-mão, que dividia seu tempo entre o trabalho burocrático em um escritório de seguros, de dia, e ao ofício literário nas madrugadas, tornou-se um dos pilares da Literatura do século XX.

Ao contrário de William Faulkner, outra importante influência literária do período, com escrita e tons realistas, Kafka foi um dos primeiros escritores contemporâneos a mergulhar no absurdo e no fantástico, abrin-do as comportas que permitiriam o surgi-mento do realismo mágico latino-americano, obras como as de Camus, Calvino e Eco, dentre muitos outros que encontrariam em Kafka o ideal do autor atormentando, para quem a perfeição é a meta última, porém inatingível, de toda arte.

Sua notória solicitação, antes de morrer, de que seu melhor amigo Max Brod des-truísse todos os seus manuscritos é um dos grandes mistérios dos bastidores literários; se ele realmente desejava ser esquecido, ou se era um derradeiro gesto de modéstia, com a certeza que seu pedido não seria respeitado.

Os temas de Kafka, que dariam origem ao termo “kafkiano”, como o absurdo, a opres-são patriarcal, a burocracia, o abandono e o fracasso são, de certo modo, um espelho da biografia do autor, como retratado no livro “O Outro Processo” de Elias Canetti, que ana-lisa os diários do autor.

Em “A Metamoforse”, certamente a obra--prima kafkiana e uma de suas poucas obras publicadas em vida, acompanhamos as desventuras de Gregor Samsa, que desperta tornado um bicho repugnante. A impressio-nante e asfixiante descrição de seus movi-

mentos, de suas ansiedades, de sua luta para talvez retomar normalmente a sua vida e seu trabalho, a despeito de sua transformação, faz desta novela um dos mais relevantes produ-tos ficcionais do século XX. Poucos autores mergulharam tão profundamente na essência de seu tempo em tão poucas páginas.

Publicada em 1915, quando a Primeira Guerra Mundial recém havia sido deflagrada na Europa, parecia, de um modo profético e até bastante sombrio, antever todo o horror que as décadas seguintes reservavam. O ser humano como uma criatura repugnante e, justamente por isto, descartável e sem pro-pósito, aprisionada em quatro paredes que poderiam ser interpretada das mais diversas formas - e aí também reside parte da gran-diosidade de Kafka, com suas obras abertas e enigmáticas, capazes de estimular interpre-tações completamente distintas, a partir de pontos de vistas e bases teóricas até mesmo contraditórias. Kafka pode ser lido através da Psicologia, da Filosofia, da História do Pensa-mento, da Sociologia...

O fato é que Kafka continua mais moder-no do que nunca, como se o vazio essencial de seus personagens e obras o tornassem atemporal e universal.

Kafka representa o esvaziamento dos sentidos, a aniquilação da identidade, o quão baixo podemos decair, sem esperança alguma de redenção. Entretanto, ao mesmo tempo, também apresenta a luta incessante e inglória para resistir.

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artigo

Tatiana Alves

a Farsa de inês Pereira:a figura feminina num mundo em transição

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A Farsa de Inês Pereira, um dos mais co-nhecidos autos de Gil Vicente, teatrólogo do Humanismo português, conta a história de uma moça que recusa os papéis preestabele-cidos e questiona o destino imposto à mu-lher na sociedade quinhentista. Com a ironia característica das farsas medievais, o referido auto apresenta um desfecho surpreendente, sugerindo as transformações que ocorriam à época. As personagens femininas do texto são marcantes – não por acaso, uma delas, além de ser a protagonista, dá título à peça – e apresentam diferenças fundamentais entre si, sendo expressivo o fato de cada uma refletir um aspecto da sociedade de então. Por meio dos diferentes discursos enunciados por elas, o texto desvela a ideologia de cada uma, num entrelaçamento de falas, provér-bios e negações.

Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discur-so – simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentis-ta, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão, à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e linguístico, no olhar desse escritor situado entre dois mun-dos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher e à sua representação.

Originalmente concebido como o desen-volvimento dramático do provérbio “mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube”, a Farsa de Inês Pereira, publicada em 1523, constitui-se no primei-ro provérbio glosado em teatro. Trata-se de uma sátira com intenção moralizadora, apre-sentando traços de uma comédia de caráter e de costumes com tipos bem definidos. Além de explorar a dicotomia ser/parecer, o texto reflete acerca do momento históri-co, na medida em que mostra a decadência da nobreza – um cavaleiro sem posses – e a ascensão de um povo pré-burguês, na figura do parvo Pero Marques.

Segundo classificação proposta por Fide-lino de Figueiredo (apud FONSECA, 1990, p.

28), o auto estrutura-se a partir de sete qua-dros que se sucedem, organizados da seguin-te forma: apresentação da vida de Inês, ainda solteira, com a mãe; conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento; apresentação de Pero Marques; entrada do escudeiro; as desilusões do casamento; a viuvez de Inês Pereira e a vida de casada com Pero Marques.

A apresentação de Inês, já no início do texto, é marcada por uma atitude de revolta, por parte da protagonista, diante das tediosas tarefas impostas à mulher na época. Só, em casa, cantarola e amaldiçoa a própria condi-ção:

Inês: Renego deste lavrar

e do primeiro que o usou!

Ao diabo que o eu dou,

que tão mau é d’aturar!

Ó Jesu! Que enfadamento,

e que raiva, e que tormento,

que cegueira, e que canseira!

Eu hei de buscar maneira

d’algum outro aviamento.

(VICENTE, 1984, pp. 303–304)

A fala da moça é marcada pela amargura e pela revolta diante de um trabalho que lhe é odioso, sensações acentuadas pelos termos tormento, cegueira e canseira, refletindo o tédio presente em sua vida. Seu discurso é repleto de expressões que sugerem uma críti-ca à falta de perspectivas para a mulher da época. Seu desencanto diz respeito, principal-mente, à estagnação que vitimava as moças de então.

Isabel Allegro de Magalhães, em seu estu-do O Tempo das Mulheres, destaca o tempo estático das mulheres da Idade Média, um tempo de ficar, em contraste com o tempo masculino, um tempo de partir, este marca-do por aventuras e por um espaço aberto e

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externo. Já às mulheres resta a clausura, o emparedamento. Note-se que é justamente nesse aspecto que reside a queixa de Inês, que lamenta o marasmo de sua vida:

Inês: Já tenho a vida cansada

De jazer sempre dum cabo.

(...)

Esta é mais que morta.

São eu coruja ou corujo,

Ou são algum caramujo

Que não sai senão à porta?

(Ibidem, p. 304)

A Farsa de Inês Pereira apresenta a condi-ção da mulher encerrada em casa, mas, num vislumbre do novo tempo, mostra uma pro-tagonista que se revolta, renitente, contra o destino que lhe é oferecido. Inês representa a fala destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudança. Seu posicionamento ideológico, de recusa dos valores vigentes, verifica-se, linguisticamente, por meio de um discurso repleto de exclamações – marcando o seu temperamento intempestivo –, e por indagações, como que a interrogar a própria condição:

Inês: Coitada, assi hei d’estar

encerrada nesta casa

como panela sem asa,

que sempre está num lugar?

E assi hão de ser logrados

dous dias amargurados,

que eu possa durar viva?

E assim hei d’estar cativa

Em poder de desfiados?

(Ibidem, p. 304)

O lamento de Inês esbarra na oposição da mãe, mulher humilde e simples, cuja fala reflete o conformismo diante da sociedade de então. Além de censurar os desejos da filha, defende as regras e os valores da época, ao aconselhar Inês a ter bom senso:

Mãe: Toda tu estás aquela...

Choram-te os filhos por pão?

(...)

Como queres tu casar

com fama de preguiçosa?

(...)

Não te apresses tu, Inês:

“Maior é o ano que o mês”.

Quando te não precatares,

virão maridos a pares,

e filhos de três em três.

(Ibidem, pp. 305–306)

O discurso da Mãe, impregnado de luga-res-comuns e provérbios populares, marca a reprodução de valores da época. Sua fala, que atua como contraponto à de Inês, é marcada pelo conservadorismo. Valendo-se de frases feitas, demonstra, no plano discur-sivo, sua identificação com o pensamento de então. Enquanto Inês simboliza a renovação, as demais personagens femininas represen-tam a perpetuação de um pensamento ainda marcado pelo ranço medieval. A mãe ainda aconselha a moça a não se preocupar, argu-mentando que logo surgirão vários preten-dentes e um filho atrás do outro, reprodu-zindo um olhar cristalizado em relação ao papel da mulher. Conformista, pensa que o destino natural da filha é o casamento e a maternidade, chegando mesmo a instruí-la a agir de modo a causar boa impressão no pretendente:

Mãe: Se este escudeiro há-de vir

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e é homem de discrição

hás-te de pôr em feição,

e falar pouco e não rir.

E mais, Inês, não muito olhar,

e muito chão o menear,

porque te julguem por muda,

porque a moça sesuda

é ua perla pera amar.

(Ibidem, pp. 323–324)

A Mãe parece sugerir à moça que repre-sente um papel para agradar ao rapaz, suge-rindo a hipocrisia vigente. Expressivos são os conselhos dados à filha, demonstrando que os atributos femininos desejáveis então eram aqueles ligados à passividade e à submissão: falar pouco, não rir, não encarar e olhar para baixo, numa atitude subserviente condizente com a misoginia reinante na época.

O conservadorismo da Mãe é visto tam-bém por ocasião da chegada de Lianor Vaz, que afirma ter sido violentada por um clé-rigo. Dignas de destaque são as palavras de ambas, uma valendo-se de subterfúgios para se justificar por não ter resistido ao ataque – estava cansada, teve um acesso de tosse, outro de riso – e outra desfiando todas as possibilidades, e demonstrando desconfiança, uma vez que Lianor não apresentava as mar-cas de laceração decorrentes do autoflagelo que deveria seguir-se ao estupro. Ambas co-mungam dos códigos vigentes, fato que pode ser percebido também nos conselhos dados por Lianor a Inês:

Lianor: Não queirais ser tão senhora!

Casa, filha, que te preste,

não percas a ocasião.

Queres casar a prazer

No tempo d’agora, Inês?

Antes casa em que te pês,

que não é tempo d’escolher.

Sempre eu ouvi dizer:

“ou seja sapo ou sapinho,

ou marido ou maridinho,

tenha o que houver mister.”

Este é o certo caminho.

(Ibidem, p. 312-313)

Em uma sociedade em que a única forma de sobrevivência feminina estava no matri-mônio, a alcoviteira aconselha a moça a se casar, mesmo que isso a incomode e que o futuro marido não lhe agrade, numa repro-dução dos valores da época. Na repetição de ditados, vê-se um discurso que se limita a reiterar os costumes e pensamentos de então, sem questioná-los:

Mãe: “Mata o cavalo de sela

e bô é o asno que me leva”.

Lianor: Filha, “no Chão do Couce

quem não puder andar, choute.”

E “mais quero eu quem me adore

que quem faça com que chore”.

(Ibidem, p. 313)

Significativa é uma das imagens evocadas pela Mãe: mais vale um asno que a leve do que um cavalo que a derrube, numa retoma-da do mote e num prenúncio do desfecho do auto. Inês é firme em suas convicções: quer um homem culto, ainda que não seja rico, e que a faça feliz. Movida por essa ilusão, despreza o primeiro pretendente, o rude Pero Marques, filho de lavradores ricos, mas que peca pela rusticidade. A linguagem do simplório personagem revela sua timidez e ignorância, além de marcar a sua ingenui-dade, aspecto fundamental para o desfecho da peça. No processo de caracterização por meio da linguagem, os traços mais flagrantes

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e negativos de Pero Marques são evidencia-dos, gerando o repúdio por parte de Inês. Seu discurso denuncia a sua inocência quase pueril, ora exagerando na formalidade, ora indicando a sua forma provinciana de se expressar:

“Senhora amiga Inês Pereira,

Pêro Marquez, vosso amigo,

que ora estou na nossa aldea,

mesmo na vossa mercea

me encomendo. E mais digo,

digo que benza-nos Deus,

que vos fez de tão bom jeito;

bom prazer e bom proveito

veja vossa mãe de vós.

e de mi também assi,

ainda que eu vos vi,

estoutro dia de folgar,

e não quisestes bailar,

nem cantar presente mi...”

(Ibidem, p. 311)

Inês repudia o pretendente em virtude de sua rusticidade, chegando mesmo a depreciá--lo, criticando-lhe a simplicidade. Sua condi-ção financeira não é fator que a atraia, e ela rejeita o pedido de casamento. Tal recusa, nesse momento, é importante, pois marcará a mudança de perspectivas da protagonista no decorrer da história. Curiosamente, a inge-nuidade de Pero Marques, que será vista ao final como algo extremamente conveniente, é agora motivo de escárnio por parte de Inês, que o ridiculariza por não se ter aproveitado do fato de estarem a sós:

Inês: Pessoa conheço eu

que levara outro caminho...

Casai lá com um vilãozinho,

mais covarde que um judeu!

Se fora outro homem agora,

e me topara a tal hora,

estando assi às escuras,

falara-me mil doçuras,

ainda que mais não fora...

(Ibidem, p. 318)

E, na sociedade em que o parecer vale mais do que o ser, surge a figura do escudei-ro Brás da Mata, calculista e mentiroso, que finge viver de forma abastada apenas para impressionar. Os Judeus casamenteiros, atra-vés das críticas que fazem entre si, desnu-dam a verdade sobre o Escudeiro, bem como sobre o Moço que o acompanha, fazendo-nos conhecedores de suas mentiras e dificuldades financeiras. Impressiona Inês de imediato, pois seu discurso galante é habilmente utili-zado para conquistá-la. Curiosamente, tanto a má impressão deixada por Pero Marques quanto o deslumbramento inspirado por Brás da Mata são decorrentes de seus discursos. Com um tom sentimentalista que remonta aos cantares de amor, o Escudeiro encanta a moça:

Escudeiro: Antes que mais diga agora,

Deus vos salve, fresca rosa,

e vos dê por minha esposa,

por mulher e por senhora;

Que bem vejo

Nesse ar, nesse despejo,

Mui graciosa donzela,

que vós sois, minha alma, aquela

que eu busco e que desejo.

Obrou bem a Natureza

em vos dar tal condição

que amais a discrição

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muito mais que a riqueza.

(...)

Sei bem ler

e muito bem escrever,

e bom jugador de bola,

e quanto a tanger viola,

logo me ouvireis tanger.

(Ibidem, pp. 325–326)

Entretanto, logo após se casar com o escu-deiro, Inês é rapidamente confrontada com a verdade: o marido revela-se um déspota, proibindo-a de cantar, chegando mesmo a ameaçá-la fisicamente em caso de desobe-diência. A reclusão de Inês fica ainda mais patente, pois ele a informa de que a manterá trancada, sob permanente vigilância:

Escudeiro: Ó esposa, não faleis,

Que casar é cativeiro.

(...)

Vós cantais, Inês Pereira?

Em vodas m’andáveis vós?

Juro ao corpo de Deus

Que esta seja a derradeira!

Se vos eu vejo cantar

Eu vos farei assoviar.

(...)

Vós não haveis de falar

com homem nem mulher que seja;

nem somente ir à igreja

não vos quero eu leixar

Já vos preguei as janelas,

porque vos não ponhais nelas;

estareis aqui encerrada,

nesta casa tão fechada,

como freira d’Oudivelas.

(...)

Vós não haveis de mandar

Em casa somente um pêlo.

Se eu disser: – isto é novelo –

Havei-lo de confirmar

E mais quando eu vier

De fora, haveis de tremer;

E cousa que vós digais

Não vos há-de valer mais

Que aquilo que eu quiser.

(Ibidem, pp. 332–335)

Arrependida de sua precipitação, Inês afir-ma que, se lhe fosse dada outra chance, não incorreria no mesmo equívoco. Significativa-mente, ela principia seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldiçoava o lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui é a discrição, qualidade que a fez des-posar impulsivamente um homem que agora a faz infeliz. A protagonista modifica-se ao longo do auto, passando por um processo de amadurecimento e de aprendizagem:

Inês: Renego da discrição,

comendo ao demo o aviso,

que sempre cuidei que nisso

estava a boa condição;

cuidei que fossem cavaleiros

fidalgos e escudeiros,

não cheos de desvarios,

e em suas casas macios,

e na guerra lastimeiros.

Juro em todo meu sentido

que, se solteira me vejo,

assi como eu desejo,

que eu saiba escolher marido,

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à boa fé, sem mau engano,

pacífico todo o ano,

e que ande a meu mandar...

Havia-me eu de vingar

deste mal e deste dano!

(Ibidem, p.337)

A trama sofre uma reviravolta, pois Inês é informada de que o escudeiro havia sido morto. Tal acontecimento possibilita que ela ponha em prática sua nova visão de mundo, bem diferente da ingenuidade de antes. Pero Marques, ainda mais abastado, volta a corte-já-la, e dessa vez a moça aceita seu pedido:

Inês: Andar! Pero Marques seja!

Quero tomar por esposo

quem se tenha por ditoso

de cada vez que me veja.

Por usar de siso mero,

asno que me leve quero,

e não cavalo folão;

antes lebre que leão,

antes lavrador que Nero.

(Ibidem, p.340)

Após ter sofrido nas mãos do escudeiro, Inês chega a uma conclusão que resgata o mote proposto a Gil Vicente e prepara o desfecho da história: mais vale asno que a carregue do que cavalo que a derrube. Numa sociedade em transição, os valores aos pou-cos se modificam: mais vale o camponês simplório e ignorante – o asno – do que o representante de uma aristocracia decadente – o cavalo –, que, simbolicamente, a derruba. Dessa vez, é a moça quem ditará as regras, com as quais Pero Marques prontamente concorda. Em dado momento, Inês reencon-tra um ermitão a quem desprezara no passa-do, e o texto sugere que ela o tomará como

amante. A referência ao asno que a carrega assume aqui uma dimensão literal, uma vez que o casal tem de cruzar um rio, e ela pede que o marido a leve às costas. A passagem, presente no final do auto, mostra-nos ainda Pero Marques fazendo-lhe todas as vontades. Inês, numa dose de ironia, começa a cantaro-lar, e o marido a acompanha no refrão Pois assi se fazem as cousas, num indício de que Inês dará as ordens, cabendo a ele apenas repetir o refrão, numa frase que sintetiza a sua incondicional aquiescência aos desejos da mulher:

Inês: Pois eu hei só de cantar

e vós me respondereis,

Cada vez que eu acabar:

Pois assi se fazem as cousas.

Canta Inês Pereira:

Inês: Marido cuco me levades,

e mais duas lousas.

Pero: Pois assi se fazem as cousas.

Inês: Bem sabedes vós, marido,

quanto vos amo;

sempre fostes percebido

pera gamo.

Carregado ides, noss’amo,

Com duas lousas.

Pero: Pois assi se fazem as cousas

Inês: Bem sabedes vós, marido,

quanto vos quero;

sempre fostes percebido

pera cervo.

Agora vos tomou o demo

Com duas lousas.

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tatiana alvesTransgride em poemas, comete delitos literários em contos, crônicas e ensaios e

viaja em livros infantis. Rabisca na Revista Samizdat e no site Escritoras Suicidas, já tendo rascunhado nos sites Anjos de Prata, Cronópios e Germina Literatura. Possui dezessete livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Lite-ratura no CEFET/RJ.

Pero: Pois assi se fazem as cousas.

(Ibidem, pp.346–347)

A ingenuidade de Pero impede-o de per-ceber o comportamento de Inês. Ela, irônica, mostra que o fará de bobo, num discurso em que o chama primeiramente de gamo, símbo-lo do homem traído, e em seguida de cervo, numa exploração lúdica do léxico, que refor-ça a ideia do gamo, e remete, por semelhança fônica, à subserviência do servo. Ambos – traição e submissão – marcarão o casamento de ambos. Observe-se que a mudança de postura de Inês reflete os valores do mun-do em que está inserida: do encantamento e da fantasia em relação à figura cortês do cavaleiro – imagem que significativamente desmorona no decorrer da farsa –, a protago-nista percebe as vantagens de aceitar a che-gada do simplório porém bem situado Pero Marques, numa troca que sugere as inúmeras mudanças a que a sociedade assistia. O mote da farsa – antes quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube – constitui a síntese estrutural do auto, e a dicotomia que atravessa o texto metaforiza a transição da sociedade medieval para a renascentista. Gil Vicente, um homem situado entre dois mundos, soube como poucos escrever a his-tória de uma sociedade ainda guiada por um pensamento religioso e medieval, mas que se descobria aos poucos tão mais valiosa quan-do assinada pelo homem.

BIBLIOGRAFIA

FONSECA, Maria Amália Ortiz da. Gil Vi-cente – Farsa de Inês Pereira. Lisboa: Europa--América, 1990.

MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das Mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.

SARAIVA, António José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. Lisboa: Livraria Ber-trand, s/d.

VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introdução e estudo crítico por Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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artigo

Pesquisa: Joaquim Bispo

Cavaleiros e romances de cavalaria

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Um dos géneros literários profanos mais emblemáticos da Idade Média é a novela ou o romance de cavalaria, derivados dos poe-mas épicos e das canções de gesta francesas e inglesas. São narrativas literárias em capí-tulos que contam os grandes feitos de um herói, entremeados de atribuladas histórias de amor.

São geralmente agrupadas pela sua temá-tica específica: o Ciclo Clássico, com narra-tivas baseadas na história e lendas clássicas, incluindo as façanhas de Alexandre, o Gran-de, e dos heróis da Guerra de Troia; o Ciclo Carolíngio ou Francês, com romances que têm por heróis Carlos Magno e seus cava-leiros; e o Ciclo Bretão ou Arturiano, tratan-do assuntos de origem celta, especialmente centrados na mítica corte do Rei Artur e de seus célebres cavaleiros da Távola Redonda. Embora o primeiro tenha por referência o mundo antigo, alvo permanente de nostalgia, todos refletem o mundo medieval através da cultura cavaleiresca, nos seus aspetos dos códigos da Cavalaria e do amor cortês.

A importância da Cavalaria surgira por

necessidade de dar resposta à desorganiza-ção social da Europa, nos últimos séculos do primeiro milénio, assolada por incursões de vikings, magiares e sarracenos, instituindo--se como classe, a dos “bellatores” – os que guerreiam para manter a paz –, para que os “oratores” possam orar e os “laboratores” trabalhar.

A cultura cavaleiresca evoluiu desde esses primeiros tempos, em que predominavam as virtudes militares absolutas de bravura guerreira e lealdade, de domínio do cavalo e destreza nas armas, para posturas influencia-das pela Igreja, em que essas virtudes estão ao serviço de causas nobres, como a defesa dos mais fracos e indefesos.

O cavaleiro medieval sempre foi um peri-to na arte da guerra, treinado em combates com armaduras, cavalos, lanças, espadas e escudos pesados. Iniciando-se desde muito jovem ao serviço de um cavaleiro, progride para escudeiro pelos 14 anos, exercitando-se nas artes do manejo de armas e do combate, e prepara-se para a investidura nas armas pelos 21. (Ver a educação do cavaleiro.)

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a educação do cavaleiro

«O cavaleiro aprendiz, antes de ser inves-tido, serve “pelas armas”, quase sempre como escudeiro, um senhor do seu parentesco, de preferência um tio materno, de posição supe-rior à sua. Polindo-lhe as armas, tratando-lhe os cavalos, assistindo-o nos combates, servindo--o à mesa e na caça, ele familiariza-se com o essencial da vida cavaleiresca. Pode assim treinar para combate nos exercícios de “quin-taine”, em que se procura atingir com a lança um manequim ou um escudo, e de “behourds”, justas de treinamento mais próximas do com-bate real. Quanto aos cavaleiros, aperfeiçoam a sua técnica em torneios, que surgem a partir de meados do século XI e se multiplicam no século seguinte, apesar das repetidas proibi-ções da Igreja [concílio de Clermont, 1130]. Até ao fim do século XII esses torneios não se diferenciam das guerras verdadeiras, de que são réplica codificada. Como na guerra feudal, dois campos se opõem, em combates coletivos feitos de ataques compactos e de emboscadas destinadas a isolar do grupo alguns indivíduos, se possível bem nascidos ou de prestígio, a fim de capturá-los para obter resgate ou desmontá--los para se apossar do seu cavalo. O objetivo,

nos torneios como na guerra, consiste mais em acumular o saque e ampliar a glória do que em matar o adversário, mesmo que tais acidentes não sejam raros, tão completa é a semelhança entre torneios e combates guerreiros. É tam-bém a oportunidade para os cavaleiros pobres de atrair a atenção de algum patrono rico e entrar para a sua equipa, ao seu serviço. O prestígio da façanha cavaleiresca também pode ganhar os favores de uma rica viúva e, graças ao casamento, assegurar a promoção social do herói. Pelo menos este é o sonho dos cavaleiros pobres.

Utilitários, mas prestigiosos desde a origem, os torneios tornam-se mais faustosos e menos perigosos com o decorrer do tempo, com o surgimento das armaduras e das armas para diversão [sem ponta de ferro] que, sem anular totalmente os riscos, distanciam, contudo, os torneios da verdadeira guerra. A proeza torna--se mais individual, mais teatral e os grandes torneios “flamejantes” dos séculos XIV e XV tomam rumos sumptuários: a nobreza procura afirmar-se neles, tranquilizar-se e distrair-se, ante a crescente ameaça económica e social burguesa.» – Jean Flori

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Quando não estão em campanha, os ca-valeiros residem nas cortes de reis, duques e outros grandes senhores. O seu ambiente é o castelo, solar campestre fortificado, cons-trução apressada em madeira do século X assegurando uma proteção contra o invasor, fortaleza mais sólida dos séculos XI e XII controlando estradas e vales e proporcionan-do, por detrás das suas muralhas de pedra, uma certa autonomia aos seus detentores. Nobres e cavaleiros comungam dos mesmos ritos, de uma moral, de um género de vida idêntico. A castelania é a célula básica da feudalidade; a possessão de um castelo fonte de poder. O nobre alimenta-se do trabalho de outros homens. A caça, mas antes do mais a guerra “viçosa e jovial” preenchem a sua atividade essencial: o combate é um remédio contra o tédio, um maná de lucro graças às pilhagens e aos resgates. A guerra, enquanto excesso e libertação do instinto conservador, é uma réplica da festa – em ambas se esban-jam bens, em ambas é permitido suspender normas morais.

Esta postura apenas é atenuada pela in-fluência da Igreja que, a partir do século XI, promove o ideal do combatente de Deus, o “miles Christi”, ideal que enquadra os mem-bros das Ordens Militares. Este ideal refe-re: Valentia; Defesa de amos, fracos, Nação,

Igreja; Fé em Deus; Humildade; Procura da Justiça; Generosidade; Temperança; Lealdade; Nobreza de caráter. O conceito de cavaleiro andante deriva da circunstância dos cava-leiros regressados das cruzadas, idealistas solitários e desenraizados, militantes destas virtudes.

Na segurança e amenidade da corte, vão crescendo as sofisticações da cortesania – cultivo da poesia, da música, de jogos e pra-zeres refinados e de elegância no trato social, que junto do elemento feminino se traduz em cortejamento, encarado como manobras de conquista de outro tipo de fortaleza – a dama –, às vezes como ritual de treinamento, às vezes por genuíno enamoramento. “É o amor que educa a virtude da cortesia e só é aceite no amar quem é cortês.” Pelo cultivo da literatura trovadoresca e cortês – verda-deira ideologia de classe –, exalta-se o fausto, a generosidade e a arte de amar que, através do serviço da dama, deve conduzir o homem nobre aos píncaros da virtude e do bem.

A teoria do amor cortês pressupõe uma conceção platónica e mística do amor:

– Os enamorados são sempre de condição aristocrática.

– A amada é sempre distante, admirável e uma síntese de perfeições físicas e morais.

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– O estado amoroso é uma espécie de estado de graça que enobrece quem o pratica (por inserção do amor no sistema de senti-mentos do imaginário religioso cristão).

– Total submissão do enamorado à sua dama (por inserção do amor no sistema de relações sociais sob o feudalismo).

– O enamorado pode chegar a aproximar--se da sua inatingível senhora, após uma progressão de estados que vão desde o supli-cante ao amante. Como se trata, frequente-mente, de um amor adúltero, o poeta oculta o objeto do seu amor, substituindo o nome da amada por um pseudónimo poético. A esposa do suserano, congregando na perfei-ção a dupla condição de inacessibilidade e ascendência social, aparece com frequência nos romances de cavalaria como a dama que suscita a paixão não completamente subli-mada de cavaleiros impetuosos e dedicados.

Características gerais essenciais dos ro-

mances de cavalaria:

– Ficções de primeiro grau: Os factos são mais importantes do que os personagens, que são muitas vezes arquetípicos e planos. São constantemente movidos pela ação, sem que esta os transforme e sem que importe a sua psicologia.

– Estrutura aberta: Aventuras interminá-veis, infinitas continuações possíveis; neces-sidade de hipérbole ou exagero, e “ampli-ficação “ para superação das façanhas dos ancestrais. Os heróis não morrem, há sempre caminho aberto para nova aventura. Total falta de verosimilhança geográfica e plausibi-lidade lógica. Livros longuíssimos, de aventu-ras entrelaçadas.

– Busca de honra, valor, aventura através de diferentes provas: É uma estrutura epi-sódica onde o herói passa por várias provas para merecer a sua senhora, desencantar um palácio, ou conseguir alguma honra reserva-

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da para o melhor cavalheiro do seu tempo. Quase sempre a motivação principal do cavaleiro é a fama e o amor.

– Idealização do amor do cavaleiro pela sua dama: Amor cortês, serviço da dama, idolatria masoquista; sexo fora do casamento com filhos ilegítimos, em que se acaba sem-pre por casar.

– Violência glorificada: Valor pessoal ganho pelos feitos de armas; combate indi-vidual para conseguir a fama; o valor mais elevado implica moralidade superior; tor-neios, provas, duelos, batalhas com monstros e gigantes. Como contraponto, o masoquis-mo amoroso.

– Nascimento extraordinário do herói: Filho ilegítimo de pais nobres desconheci-dos, muitas vezes reis; tem de fazer-se herói, ganhar fama e merecer o seu nome; muitas vezes tem espada mágica ou outros poderes sobre-humanos, e goza da ajuda de algum mago ou feiticeiro amigo.

– Ideal cristão de uma Guerra Santa contra os Infiéis: Cruzada para defender Constantinopla (realmente perdida em 1453); evocação nostálgica da Reconquista ibérica (concluída em 1492).

– Geografia totalmente fantástica: Viagens para novas terras; monstros, gigantes, povos pagãos com estranhos rituais; barcos encan-tados que podem navegar grandes distâncias em pouco tempo; palácios mágicos, lagos encantados, florestas misteriosas.

– Tempos históricos remotos, míticos: Não há referências a circunstâncias históricas sociais contemporâneas.

– Tópico da tradução falsa: Os livros são apresentados como traduzidos de originais escritos em grego, alemão, inglês, toscano, árabe ou outras línguas, ou como Manuscri-tos Encontrados, após muito tempo escondi-dos ou enterrados.

Chrétien de Troyes (1135–1191) é o nome mais conhecido e o primeiro a escrever romances de cavalaria – cinco sagas paradig-

máticas: Erec e Enida; Cligès; Lancelote – o Cavaleiro da Carroça; Ivain – o Cavaleiro do Leão; Perceval – o Conto do Graal. Miguel de Cervantes, com o seu paródico Dom Quixo-te de La Mancha (1605–1615), põe um fim simbólico a este paradigma literário.

Principais fontes utilizadas:

– BALARD, Michel, et al, A Idade Média no Ocidente, Dom Quixote, Lisboa, 1994, pp. 157, 159.

– CARDINI, Franco, «O Guerreiro e o Ca-valeiro», in O Homem Medieval, dir. Jacques Le Goff, Editorial Presença, Lisboa, 1989.

– https://pt.wikipedia.org/wiki/Amor_cort%C3%AAs

– https://es.wikipedia.org/wiki/Novela_de_caballer%C3%ADas

– https://en.wikipedia.org/wiki/Chivalry

– https://es.wikipedia.org/wiki/Caballer%C3%ADa_medieval

– http://www.infoescola.com/historia/cava-laria-medieval/

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artigo

Wagner Pontes

ROMANTIK UND DAS EWIGE SELBST1

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O Romantismo por excelência (Clássico) entende-se do movimento ocorrido na Ale-manha na metade do século XVIII, onde a ideia ‘contra a crença iluminista do império da razão e do progresso’ é substituída pelo conceito da razão subjetiva (metafísica). Em que o olhar sobre o homem é voltado para si, isto é, para a razão de seus sentimentos. Já que o Romantismo alemão teria sido o único dos movimentos capaz de assumir--se como filosofia de vida, garantindo assim seu destaque diante dos demais movimentos românticos.

O filósofo francês Rousseau, a partir das publicações de seus livros Confissões e Os Devaneios do Caminhante Solitário, contra-punha toda a realidade racional da época do Iluminismo. Investigou, de forma subjetiva, uma perspectiva antes abandonada por varia-dos filósofos, à concentração e apuração do Eu.

A natureza (entende-se por razão dos sen-timentos) era o ponto de partida para a for-tificação do movimento alemão. Acreditava Rousseau, que, ao voltar-se para si, o homem construiria a sua base de conhecimento de sua realidade intrínseca perante o mundo exterior e seus conflitos:

‘Deixei, pois, de lado a razão, e consultei a natureza, isto é, o sentimento interior, que se dirige a minha crença, independentemente da razão.’ (GUINSBURG. J, p. 80, O Romantis-mo (.) ROUSSEAU, Carta de 1758 a Vernes).

Sendo assim, o sentimento se constituiria

como a razão do indivíduo. Já que esta ne-cessitaria primeiramente do sentimento para existir, ou seja, é preciso o homem sentir primeiramente para depois racionalizar. Por-tanto, o desenvolvimento do homem se daria a partir do conhecimento interior.

O grande dilema do Romantismo seria as ideias filosóficas de Johan Gottlieb Fichte, no livro intitulado Fundamentos de toda Teoria da Ciência. Em que a explicação para a reali-dade tinha um viés metafísico, não podendo ser considerado um fato estático, mas dinâ-mico, capaz de induzir o indivíduo a uma ação concreta que Fichte denominava de ‘Eu, uma autoconsciência pura’.

Este Eu se tratava da pura subjetividade do homem, em especial da época romântica, considerado como divino, infinito e absoluto, já que partia da pura criação interior, sem influências extramentais. Ele acreditava na realidade de cada ser como algo singular e individual, nos permitindo dizer que se tratava de um princípio, no qual permitia compreender a realidade do eu (intrínseca) à do mundo (exterior) a partir do esforço de conhecer a si mesmo internamente.

1 O romantismo e o seu eu eterno.

Wagner PontesPernambucano de 1986. Estudou Letras pela Universidade de Pernambuco, leciona

Inglês, trabalha como Revisor de Textos e já teve textos publicados no Quotidianos (quotidianos.com.br). Edita o blog Crônicas, contos e poesias (cronicascp.blogspot.com.br). Arriscou-se também no cinema com alguns curtas produzidos como: Retratos de Cecília, Rosas dos Ventos e Salgada e Doce. A literatura e o cinema são suas paixões. EMAIL: [email protected]

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48 SAMIZDAT agosto de 2015

Henry Alfred Bugalho

Carta a um Jovem Filósofo

Crônica

Ontem li algumas cartas de cientistas es-critas para elas mesmas quando mais jovens, em algum momento crítico ou desafiador de suas vidas.

Passei então a noite a divagar o que eu escreveria para mim mesmo e para qual período.

Sempre tive muitas dúvidas. Sempre me senti diferente. Sempre esforcei-me para ser diferente.

Entretanto, talvez o momento divisor para mim tenha sido aos dezesseis ou dezesse-te anos, quando o futuro era uma imensa incógnita e qualquer decisão errada poderia afetar-me pelo resto dos meus dias.

Então, esta é a carta que, se possível, a pes-soa que hoje sou escrevia para a pessoa que um dia fui.

Caro Henry,

Deus não existe, ou, se existe, ele não se importa conosco. Sei que você está, neste exato momento, indagando-se exaustivamen-te: existe algum propósito para estarmos aqui? Qual é o sentido disto tudo? Há desti-no ou tudo é por acaso?

Não se preocupe, pois um dia você com-preenderá que não há respostas absolutas nem eternas. Tudo muda. Tudo se transfor-ma. Tudo morre, e renasce, e morre nova-mente. Sei que esta constatação pode ser asfixiante e insatisfatória. Você anseia por uma solução, mas não há nenhuma.

Você se conformará com isto. É o que lhe resta.

A sua decisão de cursar Filosofia é a me-

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lhor que poderia ter tomado. Você não traba-lhará um dia sequer nesta sua área, mas você já devia saber disto.

O mundo não precisa de filósofos; precisa de jogadores de futebol, modelos e atores e apresentadores de TV. As pessoas querem e gostam da ilusão, da falsa sensação de con-forto, do riso descompromissado e do vazio. Viver é deixar-se levar, mas esta é uma lição que você nunca aprenderá.

Você descobrirá que tudo precisa ser des-truído para ser reconstruído.

Você será feliz. Feliz e livre. Justamente você que nunca imaginou que estas duas coi-sas existissem, muito menos que pudessem conviver. A sua liberdade é, essencialmente, uma negação. Na privação dos luxos que você nunca ansiou é que residem as asas que lhe permitirão voar.

Você amará e será amado. Sim, há alguém que o entende e que compartilhará dos seus mais loucos devaneios. Vocês serão bastante diferentes um do outro, mas, mesmo assim, estarão sempre juntos. Se existe alma gêmea (outra de suas grandes indagações), saiba que você terá encontrado. E isto será incrível!

Você aprenderá com os livros e com a vida. E viverá muitas vidas diferentes que valerão por muitas existências. Terá tantas histórias para contar que nem a sua ima-ginação seria capaz de concebê-las. Verá o mundo e o mundo o verá. Constatará que a fama é uma tolice efêmera, mas se alegrará quando vir o seu rosto na TV ou nas páginas

dos jornais.

Sinto lhe dizer que você nunca se tornará um pianista. Você não é bom o suficiente. Não importa quantas horas estude, quanto tempo dedique, quanto se esforce. A música será um prazer para os ouvidos ou um mero passatempo.

Não fique triste.

O seu futuro é a palavra. A escrita. Os livros e a literatura.

Você escreverá livros e mais livros. Vende-rá muitos milhares deles. Um dia, escreverá livros tão bons quanto os que admira. E isto lhe dará uma satisfação muito maior do que tocar a Patética ou a Appassionata.

Pode parecer inacreditável, mas você terá um filho e um cachorro. Aprenderá a dirigir e cruzará a Europa, sem rumo, com todos dentro de um carro. Como um nômade mo-derno, você se perderá numa busca incansá-vel por um destino impossível.

Encontrará um descanso um dia?

Ainda não sei responder.

O futuro é assustador. Eu sei. Nunca dei-xará de ser.

Mas não se preocupe. Tudo dará certo. E se der errado será apenas mais uma lição para colecionar.

Confie em si mesmo.

Bona fortuna, meu amigo, e saiba que o tempo passa muito depressa.

Henry Alfred BugalhoCuritibano, formado em Filosofia, com ênfase em Estética. Especialista em Literatu-

ra e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, “O Covil dos Inocentes”, “O Rei dos Judeus”, da novela “O Homem Pós-Histórico”, e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best--selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do “Nova York, Bairro a Bairro”, cida-de na qual morou por 4 anos, e do “Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!”. Após viver em Buenos Aires, Itália, Portugal e Espanha, está baseado, atual-mente, na Inglaterra, com sua esposa Denise, o bebê Phillipe e Bia, sua cachorrinha.

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50 SAMIZDAT agosto de 2015

O quão penoso foi

quando atravessei a aflição

do revolto mar azul de infortúnios

e no meio do caminho

avistei uma ilha.

Mas ao abrigar-me sob a sombra acolhedora

de um coqueiral imaculado,

não resisti atribulado

ao desejo de olhar o sol a olho nu.

O quão penoso foi

quando atravessei a solidão

do insensível deserto de indolências

e no meio do caminho

avistei um riacho.

Mas ao transpô-lo e molhar os pés em vívidas águas,

livrei-me das sandálias

e, descalço, caminhei

sobre o musgo de pedras afiadas.

drama Eber dos Santos Chaves

Poesia

Eber dos Santos ChavesNasceu em 1979, em Itaquara/BA. Atualmente, reside em Vitória da Conquista/BA. Graduado

em Administração, é blogueiro, apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, fil-mes de ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. Alguns de seus poemas já foram publicados em páginas literárias e participou de algumas antologias da Câmara Brasileira de Jovens Escritores e Editora Itacaiunas.

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/A faca que cortao instante da fomeé a mesma que separaas sobrasda carne cruada saciedade do presente.

já foi lavadaafiadae repousasecano gaveteiro.

Não anseiapelo próximo uso.Esperaa chegada da estaçãodas frutassem casca duraque derretem na mão.

(quando eu penso que posso me machucaré que estou apaixonada de novo).

O fio da históriaEllen Maria Martins de Vasconcellos

Poesia

Ellen maria martins de Vasconcellos28 anos, formada em Letras na USP, cursa o mestrado, investigando literatura argentina

contemporânea, cinema e televisão. Atua como revisora, preparadora e tradutora de textos. Já vendeu livros e foi professora de espanhol e português para estrangeiros. Publicou poemas em quatro antologias pela Andross Editora, e em três antologias pela Editora Annablume. Também já marcou presença na Revista Zunái, El humo, Ombligo e Mallarmargens, e na antologia “Fron-tera”, publicada pela Lagrullita Cartonera, no Chile. Tem suas traduções publicadas na Revista Saúva e Qorpus. Seu livro de poemas bilíngue “Chacharitas & Gambuzinos” acabou de ser lança-do pela editora Patuá. Acredita em fantasmas e desconfia dos vivos. Enxerga muito bem, mas às vezes fecha os olhos. E não tem o coração de pedra. Escreve no blog http://ritepramim.blogspot.com

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52 SAMIZDAT agosto de 2015

Vander Vieira

o espantapássaros

Vander VieiraPoeta, mineiro do interior e tem 26 anos. É bacharel em Filosofia e vive em Vitória/ES desde 2009. Venceu o prêmio UFES de Literatura 2013/14 na categoria Coletânea de poemas e também foi publicado pelas revistas Subversa, Diversos Afins, Samizdat e Desenredos. Aten-de aos emails enviados para [email protected].

Poesia

qual o lar do espantapássaros?

quem sorri a ele? os senhores? os vermes? as viúvas?

se ele trocasse de roupas, nós o reconheceríamos?

na capa do jornal de domingo

escondido entre as feras, alheio

ao reto do caminho, caminha

o espantapássaros.

mastiga ele a areia fina dos temporais

e sua caixa de fósforos

está encharcada de visões solitárias.

alguém ouve o espantapássaros? suas fendas?

seus fecundos sonhos intranquilos?

as sensíveis assembleias camponesas

ouviram seus apelos por um guarda-sol?

se a solidão torce os ossos dos não-vivos

o que faremos com quem tem coração?

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I

A Terra já não cede a nossos desejos.

Em vão nascemos e vivemos

Caminhando sem cessar.

Mas queremos o infinito sob as nuvens brancas.

Por isso deixaremos a sílica, os rochedos, e a partir de agora nos lançaremos

Nesse azul sem fim, nesse mar denso

E intumescido de mistérios.

II

Um dia tocaremos o céu

E saberemos o sabor

Que experimentam as aves.

Deixaremos o sal e o gelo

E nos lançaremos no meio límpido do dia,

No meio da noite, entre as estrelas.

aS BaLEiaSMarcelo José Santos

Poesia

marcelo José SantosBancário, nasceu em Recife, tem 41 anos e é formado em comunicação social pela Universi-

dade Federal de Pernambuco. Ao final do curso apresentou uma tese sobre a tradução intersemi-ótica nos encartes de CD, na qual procurou mostrar que a criação de encartes envolvia uma cui-dadosa escolha de símbolos que procurava verter para a linguagem visual elementos essenciais da obra musical. Publicou seu primeiro livro, Confissões e Profecias, em 2011, numa parceria com o selo Moinhos de Vento – uma coletânea de poemas escritos pelo menos treze anos antes dessa publicação. O e-book de Confissões & Profecias está disponível gratuitamente em: Amazon, Cultura, iBooks, Googleplay e Kobo.

Seu segundo livro, O Dia Imprescindível, já está pronto e sairá em breve.Saúva e Qorpus. Seu livro de poemas bilíngue “Chacharitas & Gambuzinos” acabou de ser lançado pela editora Patuá. Acredita em fantasmas e desconfia dos vivos. Enxerga muito bem, mas às vezes fecha os olhos. E não tem o coração de pedra. Escreve no blog http://ritepramim.blogspot.com

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54 SAMIZDAT agosto de 2015

Marcus Groza

quatro poemasPoesia

I

deito nu

como num filme velho-oeste

artificialmente colorizado

deito

teu colo

esmiúço o sumiço da

entre os papéis velhos de uma pasta

por acaso um músculo acho

desenhando dediquei para:

Pesadelo sem culpa

Rua carne entre as articulações

sob a epiderme injeção de tinta

deixa o mal inteiro à mostra

acumulo de cór

o teu carinho

a língua o saquê

lamber

até perderem o gosto tuas gavetas

avolumo

pelos furos

deito nu

escondido

atrás dos poros

II

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passou tanto tempo

e você me diz que continua

reescrevendo os antigos poemas

pode parecer piegas

mas foi você o primeiro a me dizer

da impossível

deselegância de um louva-deus

continuo também aqui

mesmo que ande envenenado

e hoje responda que isso

me lembra dos meninos

fazendo jogo do espelho

diante do seu caminhar perdido

nem vendo

que uma pipa

no alto muito longe

presa ao umbigo

puxa

seu corpo e você nem olha pra cima

mira reto a paisagem

54 SAMIZDAT agosto de 2015

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marcus GrozaPalavrero e devoto do céu violado. Autor dos livros Do Buraco à Poça (Ed. Patuá, 2013) e Sossego Abutre (Ed. Patuá, 2015); os poemas aqui apresentados integram este último livro. Graduado em Filosofia (USP), Mestre em Artes (UNESP), atualmente é doutorando em Artes Cênicas (UNIRIO) e coeditor da Revista Saúva e da Revista Abate.

se encurva

como se marchasse

III

Rua Chuí

dizzy desvairado

uma só nota sem refresco

madrugada me pergunto

se é o mesmo

de antes ou filho ou sobrinho daquele antepassado

daquele pássaro desafinando

que a gente ouvia há poucos anos

mas se nós mesmos já somos

netos bisnetos tataranetos

daqueles que fomos

corro pro banheiro

a gente já não vomita vaga-lumes

olho pro espelho parece

empoeirado

não esteja tão certo disso!

desconfio há muito tempo

que

unhas afiadas fossem

deixadas ali mapas

do terror noturno

de um animal sonâmbulo

e você confundisse

opacos

hematomas

num espelho com muito pó

em que nos deixamos recados

IV

Sossego Abutre

não me insulta o teu açúcar

o teu sol já não me insulta

não me insulta o teu silêncio

o carinho mal feito o gosto

de caqui verde a tua sarna

não me insultam as filas

a burocracia a luz no fim

do túnel já não me insulta

não me insultam as queloides

as câimbras a existência dos Estados

Unidos já não me insulta

(às vezes acontece que mesmo

o Cristianismo não me insulta)

o mais são calos sensíveis: sangro http

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56 SAMIZDAT agosto de 2015

Também nesta edição, textos de

tatiana alves

Joaquim Bispo

Maria Brockerhoff

Henry Alfred Bugalho

Eber dos Santos Chaves

marcus Groza

Cinthia Kriemler

zulmar Lopes

Leandro Luiz

rafael Perpétua

Wagner Pontes

marcelo José dos Santos

Ellen maria martins de Vasconcellos

Vander Vieira