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SacerdoteS 05

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Vilarejo Rismã

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Capítulo 5 – Vilarejo Rismã

A dor em seu peito acordou Elkens. Ele estava deitado em algum lu-gar, mas não conseguia se recordar onde era. Estava deitado em uma cama confortável, num pequeno aposento. Não havia nenhuma janela, apenas uma porta, mas estava fechada com uma pesada cortina. Aos poucos foi se lembrando de tudo o que aconteceu: o rio, as folhas-barco, e por último a cachoeira. A única coisa de que se lembrava era que estava caindo muito rápido e que Mifitrin estava ao seu lado… mas onde estava Mifitrin? E Meithel? Elkens assustou-se por consta-tar que estava sozinho. Onde estavam seus amigos? Tentou levantar-se da cama, mas não conseguiu, como se algo o estivesse prendendo. Moveu dolorosamente a cabeça, tentando ver o que estava acontecen-do, e assim constatou que nenhuma corda prendia-o à cama, era o seu próprio corpo que não lhe respondia. Ele reparou que não estava mais com suas vestes rubras, que se trans-formaram em trapos sujos e rasgados no rio Arman; desta vez estava vestido com uma roupa de aparência rústica, mas esta foi apenas a primeira impressão. Era feita de algum tecido leve, cuidadosamente costurado à mão e cheio de detalhes. Por todo o seu corpo havia cura-tivos, todos feitos com cuidado e eficiência notáveis. Elkens retirou um dos curativos e percebeu que sob eles havia uma pasta feita com ervas amassadas que ficavam em contato direto com o ferimento. Ele pegou um pouco da pasta no dedo e levou-a lentamente até o nariz, mas pelo cheiro não foi capaz de responder o que era aquilo. Mas com toda certeza não havia nada de magia ali, era apenas uma técnica co-mum de algum curandeiro humano, nada mais. — São folhas de erva sinarin. São boas para ferimentos como os seus – era a voz de uma jovem. Elkens olhou para os lados e viu quando

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uma menina de uns dezessete anos entrou no aposento, passando pela cortina pesada que isolava o aposento do que havia lá fora. A menina tinha cabelos castanhos claros e compridos, muito compridos, e seus olhos grandes eram surpreendentemente azuis, num tom claro, dife-rente dos de Mifitrin. Tinha uma faixa que lhe prendia os cabelos e suas vestes eram semelhantes as que Elkens usava. Sua voz era doce como a de uma criança e tinha as maçãs do rosto rosadas. — Quem…? – Elkens tentou perguntar, mas sua garganta doeu quando tentou falar e parou. Sua garganta estava seca, mas também havia dor. Passado um segundo ignorou a dor e completou sua per-gunta: – Quem é você? — Sou Laserin – respondeu a jovem gentilmente. – Estou encarrega-da de cuidar de você. Fico feliz que tenha acordado. — Onde… onde estou? A garota sorriu, embora demonstrasse pena pelo sofrimento de Elkens. — Você está no vilarejo Rismã. Elkens alegrou-se ao descobrir onde estava, mas o que aconteceu após a queda na cachoeira? Ele ainda não sabia. Por que Mifitrin e Meithel não estavam com ele? — Onde estão meus companheiros? — Não se preocupe – disse a jovem sorrindo. – Eles estão bem. Você foi o único a se machucar, parece que não teve tanta sorte quanto eles – enquanto falava, a jovem verificava os ferimentos de Elkens, e fi-cou satisfeita ao perceber que estavam melhorando. – Agora, se me permite, vou me retirar. Alguém me pediu para avisar quando você acordasse. Laserin deu às costas para Elkens e saiu do pequeno aposento. Assim que a jovem passou pela cortina, Elkens pôde ver a luz de Tunmá lá fora por um instante e achou isso muito estranho, mas nem um minuto

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se passou e novamente viu a luz de Tunmá quando alguém entrou no aposento. Desta vez era Mifitrin e Elkens ficou mais tranqüilo em vê-la. — Que bom que acordou – ela disse sorrindo; estava longe de ser um sorriso sincero, mas para Elkens já era o bastante. Mifitrin ainda usava sua armadura anil de Guerreira do Tempo, e nenhum arranhão era visível no seu corpo todo. Talvez a própria armadura a tivesse protegido. Elkens não conseguiu retribuir o sorriso da Guerreira, pois seu corpo estava todo dolorido, então apenas perguntou: — Há quanto tempo estou aqui? Vi que já está dia e… — Faz algumas horas que você está dormindo. Pra falar a verdade faz quase um dia. Foi ontem que caímos na cachoeira e já estamos na metade da tarde. Elkens tentou se sentar, mas sentiu muitas dores e seu corpo ainda não respondia, então permaneceu deitado. — O que aconteceu depois de cairmos? Não me lembro de nada… — Você ficou inconsciente antes de cairmos – respondeu Mifitrin desviando os olhos do rosto de Elkens e analisando seus ferimentos, assim como Laserin fez. – Meithel e eu tivemos muito trabalho para encontrá-lo no fundo da água e você quase se afogou. Depois que te encontramos, Meithel conjurou uma nova embarcação e nos apoiamos nela até vermos as luzes do vilarejo. Os curandeiros cuidaram dos seus ferimentos e você está dormindo desde então. Elkens esperou um tempo para ter certeza de que ninguém estava do lado de fora para ouvi-lo, então perguntou em voz baixa: — E o cristal? — Ainda não comentamos nada sobre o ele. Ninguém sabe por que es-tamos aqui. Meithel e eu decidimos que seria melhor falar sobre o cris-

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tal depois que você estiver curado e pronto para partir, o que pode le-var alguns dias. Elkens sentia-se mal em estar atrapalhando mais uma vez, mas não disse nada sobre isso. Pouco antes de caírem na cachoeira decidiu que tentaria ser mais útil naquela jornada, mas tudo estava saindo exa-tamente ao contrário. — Por que fiquei inconsciente? – perguntou ele voltando ao tom de voz normal. — Parece que perdeu muito sangue, mas isso não é tudo – havia um pesar na voz de Mifitrin. – Os curandeiros disseram que há algum ve-neno no seu sangue. Acho que tinha algum veneno naquela planta que você se cortou antes de chegarmos ao rio. Elkens ficou em silêncio, então esfregou o corte superficial que a plan-ta lhe fizera no braço, o corte que o incomodou durante todo o dia an-terior e que insistia em continuar ardendo. Agora ele entendia por que ardia tanto e por que não parava de sangrar, era por causa do veneno. — A sua bolsa está ali no canto – disse ela indicando um canto do aposento. – Você a perdeu no rio, mas um dos habitantes a encontrou boiando depois que chegamos. Acredito que tenha algo importante ne-la… Elkens olhou curioso pelo modo como Mifitrin falou. Com certeza ela estava se referindo à relíquia da Alma, mas como ela sabia que estava ali? Talvez tivesse visto enquanto ele ainda estava inconsciente ou talvez o próprio Kalimuns tivesse contado à ela. — E Meithel? – Elkens perguntou após algum tempo. Mifitrin encarou o companheiro por um segundo, não demonstrando ter ouvido a pergunta, mas na verdade estava pensando no que dizer. Sabia que a notícia não melhoraria o ânimo de Elkens:

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— Bom… ele está no rio faz algum tempo. Ele está tentando encon-trar o seu colar… Assustado, Elkens levou imediatamente a mão até o pescoço. Sentiu uma dor no peito, mas não era por causa dos ferimentos ou por causa do veneno, era porque realmente estava sem seu colar. Havia perdido seu colar no rio, sua identidade de protetor… Meithel já estava se cansando de ficar ali, mas não podia desistir de encontrar o colar de Elkens. Se o colar não fosse encontrado Elkens deixaria de ser um protetor e passaria a ser um humano comum. Meithel não acreditava que pudesse encontrar um colar perdido no meio de um rio tão grande, mas ainda assim não desistia. Estava a uns três quilômetros da cachoeira, pois não tinha como saber se o colar desceu com as águas do rio ou se ficou enroscado em algum galho ou alguma pedra. Sua única chance de encontrar o colar era chegar muito perto dele; como protetor da Magia, Meithel tem o dom de sentir a magia mais claramente que um protetor da Alma ou do Tempo. Mas mesmo assim seria difícil de sentir a presença do colar a menos que re-almente chegasse perto. Tentou realizar um feitiço detector de magia, mas o feitiço insistia em apontar em direção ao vilarejo Rismã. Com certeza havia algo com um grande poder mágico no vilarejo, algo tão poderoso que ofuscava o colar perdido; Meithel suspeitava que fosse o cristal ao qual vieram buscar, mas não sabia ele que além do cristal, ainda havia mais duas relíquias: uma com Elkens e outra com Mifi-trin. As relíquias que estavam no vilarejo eram tão poderosas que ofuscavam o poder do colar completamente, tornando-o insignificante. Meithel, ele ouviu de repente em sua mente. Mifitrin estava se comu-nicando telepaticamente com ele. O Elkens acordou. Ele está tentan-

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do se concentrar no colar que perdeu. Se ele conseguir talvez fique mais fácil para você encontrá-lo. Meithel ficou feliz em saber que Elkens finalmente havia acordado depois de tantas horas inconsciente. Como está o envenenamento?, resolveu perguntar. A resposta demorou a vir, e Meithel temeu que fosse algo ruim. Os curandeiros não conseguem fazer nada para combater o veneno. Eles disseram que se Elkens não se recuperar logo talvez não agüente até o anoitecer… Mifitrin não era uma pessoa de muitos amigos. Ela era uma mulher forte e determinada, mas parecia não se relacionar com as pessoas. Pa-recia que ela não tinha a capacidade de se aproximar de alguém, ou que tinha medo disso. Mas apesar de tudo, Meithel sabia como Mifi-trin estava sofrendo por Elkens, apesar de não demonstrar. — Vamos parar um pouco. Um homem desceu de seu cavalo. Suas vestes eram negras, a mesma cor de Selo, o cavalo. O homem carregava uma grande espada, negra como todo o resto. Seus cabelos escuros eram despenteados e sujos, e precisavam de um corte. Seus grandes olhos castanhos eram a única coisa no homem que demonstravam uma certa compaixão pela vida. Três listras negras riscavam cada uma das laterais de seu rosto, e esta era a marca do seu clã. Vinte homens vinham atrás dele e todos ti-nham as mesmas listras negras no rosto. — Por que estamos parando? – perguntou um dos homens ao líder. — Não temos tanta pressa – respondeu o líder. – Podemos ficar um bom tempo aqui que ainda chegaremos ao pôr-do-sol. Nossos cavalos precisam descansar um pouco, além de se alimentarem e beberem um pouco de água fresca.

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Todos os homens obedeceram e desceram de seus cavalos, soltando os animais para que pastassem a vontade. Um dos homens, cujo nome era Artasil, aproximou-se do líder e perguntou sorrindo: — Quanto acha que vale? Quanto acha que conseguiremos pegar em troca do cristal? O líder olhou para Artasil e respondeu de modo amigável: — Você me conhece como ninguém, Artasil. Sabe que não dou a mí-nima para o valor do cristal, assim como todas as outras coisas que roubamos. Estou aqui apenas pela aventura, é disso que gosto. Artasil sorriu e encarou o homem ao seu lado, então disse: — É por isso que você é nosso líder, Kanoles.

♦ Após deixar o aposento onde Elkens se recuperava, Mifitrin ficou an-dando pelo vilarejo. Não era muito grande, isso era verdade, mas não deixava de ter certa beleza. Mifitrin imaginou Rismã como um vilare-jo pobre, mas essa não era a realidade. As pessoas eram cultas, tinham um amplo conhecimento sobre medicina, arquitetura, artes, história de Gardwen; mas como Mifitrin já imaginava, pouco sabiam sobre os Elementos da Vida e seus protetores. Desde que os protetores foram forçados a viver dentro de seus próprios Domínios, sua história foi de-saparecendo aos poucos. Em grandes cidades são considerados lendas; em vilarejos como Rismã, poucos são os que já ouviram algum comen-tário sobre eles. As casas de Rismã tinham, em sua maioria, dois andares, raramente três. Todas as casas dispostas em torno do pátio central. É neste pátio que fica a grande fogueira que os habitantes acendem todas as noites, e foi graças a essa fogueira que Mifitrin conseguiu encontrar o vilare-

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jo no meio da noite. Se não fosse pela fogueira acesa, Mifitrin e Meithel continuariam descendo o rio carregando o corpo de Elkens, pois o vilarejo não ficava exatamente as margens do rio. No pátio cen-tral há também uma grande mesa de madeira, onde Mifitrin deduziu caber todos os habitantes do vilarejo; obviamente comiam todos jun-tos, algo que Mifitrin achou semelhante com o seu próprio costume dentro dos Domínios do Tempo. Não comiam todos os protetores jun-tos, eram muitos, mas dividiam-se em grupos, uns pequenos, outros grandes. Mifitrin costumava comer com seu tutor, o General Manjou-rus, e todos os Guerreiros e Aprendizes que faziam parte do seu bata-lhão. Quando passava pela fogueira, alguns homens chegavam trazendo le-nha para alimentar o fogo durante mais uma noite. Mifitrin olhou pa-ra o céu ao longe, imaginando se realmente seria possível acender a fo-gueira hoje: nuvens carregadas estavam encobrindo o céu no horizon-te, e o vento as trazia em sua direção. — Você é Mifitrin, não é? Mifitrin se virou e encarou o homem que falava com ela. — Sim, sou eu – ela respondeu. – Quem é você? — Sou Tûm, líder do vilarejo Rismã. Mifitrin pensou se deveria reverenciá-lo ou não, afinal de contas era um mero humano, mas logo ela precisaria conversar com Tûm sobre o cristal, por isso decidiu que deveria mostrar respeito e fez uma discre-ta reverência. — Não precisa se curvar – disse Tûm amigavelmente. – Para você eu não passo de um mero humano, como sei muito bem, e para mim você não passa de uma estranha com poderes estranhos. Não devemos res-peito um ao outro. Mifitrin encarou Tûm por um momento, mas então respondeu:

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— Para mim o senhor realmente não passa de um mero humano, mas é um humano que me acolheu junto ao seu povo e tomou providencias para salvar um de meus amigos que estava praticamente morto quan-do chegou aqui – Mifitrin fez uma pausa enquanto Tûm continuava lhe encarando, mas então continuou: – Não conseguiu meu respeito por ser um líder, mas sim por suas atitudes. Tûm e Mifitrin se encararam por algum tempo. De um lado a Guerrei-ra do Tempo, alta, forte, confiante, vestindo sua armadura anil, ar-mada com um arco e algumas flechas, ambos pendurados em suas cos-tas, embora Tûm soubesse que sua arma principal era o colar pendura-do ao pescoço. Do outro lado o líder de Rismã, também forte, sem ne-nhuma arma aparente, mas em cujo rosto se destaca a responsabilida-de por todos daquele lugar. Mas também há pesar na expressão de Tûm, um receio ainda sem motivo aparente, uma preocupação que transcende qualquer outra que possa ter sentido em vida. Aquela ex-pressão era reveladora e ao mesmo tempo misteriosa; ali era possível ver que Tûm também sabia mais do que qualquer um julgava, assim como deixava claro que o peso de sua responsabilidade era demais para ele. — Eu os acolhi em meu vilarejo, mas normalmente não faço isso sem antes saber quem são ou o que querem. Eu os acolhi porque conheci as vestes de um de seus companheiros e também porque ele estava muito ferido. Mifitrin olhou curiosa para Tûm, então resolveu perguntar: — Se reconheceu as vestes de Elkens quer dizer que você conhece al-gum protetor da Alma – não era uma pergunta. — Sim – Tûm confirmou – parece que é assim mesmo que ele se cha-mava: protetor. Não os conheço bem, apenas um deles. Seu nome era Kalimuns, você o conhece – também não era uma pergunta.

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— O Mestre da Alma Nai-Kalimuns – Mifitrin exclamou, surpresa. – Sim, eu o conheço. Ele é meu amigo e é o tutor de Elkens, o rapaz que está ferido. — Fico feliz em ver que são amigos de um velho amigo – disse Tûm ainda com uma expressão séria e preocupada. Até agora, Mifitrin não vira um sorriso em seu rosto, nem nada que chegasse perto disso. Era como se, hoje em especial, não houvesse alegria alguma para aquele homem, como se a chegada de Mifitrin e os outros lhe significasse algo maior. – Podem ficar o quanto desejarem em meu vilarejo, mas antes preciso saber o que vieram fazer aqui. Mifitrin pensou no que iria responder, mas então reparou em algo es-tranho na pergunta de Tûm. Nem Mifitrin nem Meithel jamais disse-ram para alguém do vilarejo que realmente estavam tentando chegar ali. Todos pensaram que eles apenas vieram até ali porque Elkens es-tava ferido e vieram pedir ajuda, mas Tûm não parecia pensar daquela maneira. Tûm sabia que os três realmente estavam tentando chegar ao vilarejo quando caíram da cachoeira. — Como sabe que estávamos vindo para cá? – Mifitrin perguntou. – Estava esperando alguém? Tûm encarou Mifitrin seriamente por algum tempo, mas então res-pondeu: — Sim, eu estou esperando alguém. Estou esperando alguém há mui-tos, pois sempre soube que alguém viria buscar o que estou guardando. Mas para saber se você é a pessoa que eu estava esperando, preciso sa-ber o que veio buscar. Mifitrin sorriu. Mais uma vez ela estava participando de algo plane-jado por Morton e Kalimuns. Tûm já estava esperando que alguém vi-esse pegar o cristal, então quer dizer que isso já estava planejado des-

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de antes de Morton morrer, o que, ela já começava a descobrir, não era algo tão incomum. — Sim – disse Mifitrin seriamente. – Sou eu quem você estava espe-rando. Eu e meus amigos viemos buscar o cristal. Tûm não gostou da notícia. Ficou preocupado quando Mifitrin con-firmou o que veio fazer, então se virou e se afastou dela enquanto sus-surrava: — Mas ainda é muito cedo para ela ir… — Ela? – perguntou Mifitrin curiosa, não entendendo a quem Tûm se referia. – Quem? Mas Tûm não voltou a encará-la. Continuou andando até desaparecer de vista. Laserin entrou no quarto de Elkens trazendo um jarro de vidro. Ela estava muito cansada, pois passou a noite toda ao lado de Elkens en-quanto ele estava inconsciente, mas não se queixava. Gosta de ajudar as pessoas e essa é a única coisa em que Laserin se acha boa. Não sabe lutar e também não sabe fazer os serviços que as outras mulheres do vilarejo fazem, não sabe cozinhar, nem costurar, por isso ela passava muito tempo com os curandeiros. Havia aprendido muitas coisas sobre ferimentos e medicamentos e sempre usa isso como pode para ajudar outras pessoas. Laserin não tem pais, nunca soube deles, por isso foi criada por Tûm, a quem tem um grande respeito e alguém que ela trata como um pai. Laserin ficou ao lado de Elkens e perguntou: — Consegue se sentar? O Sacerdote da Alma não respondeu, mas fez esforço para conseguir se mover. Sentiu muita dor ao fazer isso, mas Laserin o ajudou.

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— Trouxe água para você – disse ela indicando o jarro de vidro e entregando-lhe um copo. – Você precisa beber um pouco. Elkens não disse nada, mas duvidou que precisasse beber água depois de toda água que tomou no rio. Ele pegou o copo e bebeu um longo go-le. Mas na verdade não era água, era algo amargo. Muito amargo. Elkens amarrou a cara e fez força para não cuspir todo o líquido. As-sim que engoliu o primeiro gole, a garota disse com sua voz meiga e gentil: — Será melhor se você tomar tudo que lhe dei – ela olhou para o copo de vidro na mão do Sacerdote. – Os curandeiros colocaram um pó de ervas secas na água, e talvez isso ajude você a melhorar mais rápido. Elkens tomou toda a água do copo, então Laserin encheu-o mais uma vez. Elkens olhou para a jovem e viu o cansaço em seu rosto, embora um sorriso tentasse ocultá-lo. E pela primeira vez sentiu afeição pela garota e sorriu para ela. Apesar de todas as suas preocupações, a com-panhia de Laserin lhe agradava, e ele ainda sorria quando disse: — Obrigado por cuidar de mim, Laserin. Dizendo isso ele tomou todo o conteúdo do copo de um único gole. O sorriso de Laserin aumentou ainda mais, e desta vez conseguiu real-mente ocultar o cansaço que ela sentia. Mifitrin ainda estava no pátio do vilarejo Rismã, onde alguns homens terminavam de armar a fogueira que seria acesa em breve. Ela estava sentada numa pedra, olhando para o horizonte onde Tunmá já se pu-nha. Logo que começou a escurecer viu dois vultos caminhando em di-reção ao pequeno quarto de Elkens, e viu quando alguém saiu do quarto indo de encontro a eles. Quem havia saído do quarto era Lase-rin e os dois vultos provavelmente eram curandeiros. Eles estavam

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conversando entre si. Aproveitando que a fogueira ainda não estava acesa, Mifitrin se aproximou do grupo sem ser percebida. — … deve ter alguma coisa que não tentaram ainda – era a voz de Laserin. A garota beirava ao pranto. – Sei que Baldor vai encontrar erva-prata na clareira. Estive lá várias vezes com ele e sempre tinha ervas lá… — Laserin – disse outra voz. Era de um homem que beirava a tercei-ra idade. – Baldor não deve ter encontrado erva-prata na clareira, elas não duram mais que uma semana. Já faz três horas que ele está procurando… — Ele vai encontrar. Eu sei que ele vai. Esperem só mais um pouco, por favor. — Mesmo que ele encontre Laserin, não vai adiantar – desta vez era a voz de uma senhora, muito compreensiva, mas também muito realis-ta. – Já tentamos de tudo com aquele rapaz, mas o veneno parece ser letal. Se não o sedarmos agora, ele não suportará as dores… — Mas se o sedarem agora ele não vai acordar mais, vocês sabem dis-so. Vamos esperar mais uma hora, eu fico com ele. Ninguém disse mais nada. Passou um minuto antes dos curandeiros se afastarem, permitindo que Laserin voltasse para o quarto e ficasse junto de Elkens. Nenhum deles havia percebido que Mifitrin estava escondida atrás de uma mureta de pedra. Seu temor por Elkens aumentou ainda mais. Se ele sobrevivesse esta noite, ela iria esperar até que ele se recuperasse. Sabia que Meithel não seria a favor. Sabia que Meithel iria preferir pegar o cristal e partir, deixando Elkens aos cuidados dos curandeiros de Rismã, mas Mifitrin não o abandonaria. Sabia que Morton deveria ter um plano para cada um deles e Elkens devia ser parte essencial.

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A fogueira seria acesa a qualquer momento. Dois homens termina-vam de arrumar as lenhas que se desprenderam, fazendo os últimos preparativos. Mifitrin viu Tûm surgir no pátio e seguir pelo mesmo caminho que os curandeiros fizeram, chegando ao quarto onde Elkens repousava. Laserin saiu para encontrá-lo e cochichou algo em seu ou-vido. A garota voltou a entrar no quarto e Tûm seguiu em direção à Mifitrin, que desta vez não tentou se esconder. — Seu amigo está com problemas. — É… eu sei – ela assentiu. Tûm sentou-se ao lado dela e juntos observaram quando um homem se aproximava da fogueira com uma tocha acesa nas mãos. — Os curandeiros não puderam fazer nada contra o veneno – disse Tûm após algum tempo – e talvez seu amigo não resista. Mifitrin concordou com a cabeça, mas não conseguiu dizer nada. Enquanto os dois estavam sentados na pedra ouviram um som que não vinha de muito longe. Era um som de sino batendo. Era a primei-ra vez que Mifitrin ouvia aquele som, mas não teve dúvidas de que era uma espécie de alerta. Tûm levantou-se assustado e viu quando um homem veio correndo em sua direção. — Senhor Tûm – disse ele rapidamente, se atrapalhando com as pala-vras. Estava arfando, o que indicava que havia corrido muito rápido. – Há um grupo de uns vinte homens montados a cavalo. Estávamos de vigia e não deixamos eles entrarem no vilarejo, então fomos ataca-dos. — Onde eles estão? – perguntou Tûm preocupado. — Estão vindo para cá – respondeu o vigia. – Dizem que vieram pa-ra buscar algo. Tûm olhou confuso para Mifitrin, mas não soube o que dizer. Ele sempre esperou que alguém viesse buscar o cristal, mas agora havia

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dois grupos atrás do cristal e Tûm sabia que um deles devia ser um impostor. Mas Mifitrin e os outros tinham um ponto a seu favor, pois chegaram em paz e sem atacar ninguém, além de serem amigos de Ka-limuns, que também era amigo de Tûm. Com o sinal de alerta, muitos homens foram aparecendo no pátio do vilarejo, todos armados com espadas. Quando Mifitrin deu por si, a fogueira ardia à sua frente, iluminando o pátio de Rismã. Em pouco tempo todos os homens do vilarejo estavam ali e todos esperavam que Tûm dissesse alguma coisa. Havia pelo menos cinqüenta homens ali e pelo que o vigia disse, o grupo que estava vindo era de uns vinte ho-mens. O vilarejo estava em grande vantagem, mas Mifitrin ainda não conhecia as habilidades de luta de nenhum dos dois lados, então era cedo para julgar se corriam perigo. Ela tocou discretamente seu colar e passou a chamar mentalmente por Meithel. Meithel, disse, Kanoles e seus homens chegaram ao vilarejo para pegar o cristal… Estou indo ajudá-los… Não! Por enquanto está tudo sobre controle e estamos em maior nú-mero que Kanoles. Não volte enquanto não encontrar o colar de El-kens. Mas, Mifitrin… Estou procurando há horas e nem sinal do colar. Depois que tivermos derrotado Kanoles eu volto para cá e continuo procurando… Não, disse Mifitrin decidida. Se Elkens se salvar ele irá precisar do colar. Meithel não disse mais nada, então Mifitrin voltou sua atenção para as ordens que Tûm passava para seus homens. Ele ordenou que os mais jovens levassem as mulheres, os idosos e as crianças para o abrigo

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na selva, que possivelmente era um local onde poderiam se esconder e ficar em segurança. Um dos jovens fez sinal para que Mifitrin o acompanhasse, mas ela o ignorou e seguiu até Tûm. O líder do vilarejo se virou para e a enca-rou, mas antes que pudesse dizer algo ela disse: — Sou uma Guerreira e não vou me esconder. Eu vou lutar com vo-cês, mas quero sua permissão. — Não permitimos que mulheres lutem ao nosso lado, mas você é uma exceção Mifitrin – disse Tûm seriamente. – É uma mulher valorosa e de coragem. Não precisa pedir a minha permissão para lutar, eu é que peço a sua ajuda. Mifitrin sorriu e Tûm lhe estendeu a mão, a qual ela apertou. Mas ele não sorriu. Assim que um soltou a mão do outro, Mifitrin pegou seu arco ao mesmo tempo em que Tûm sacava uma espada que até então Mifitrin não tinha visto. Elkens estava sozinho no aposento. Ele ouviu o som de um sino ba-tendo, como um sinal de alerta, e logo depois começou a ouvir muitas vozes agitadas e preocupadas, mas não conseguia entender nada. Poucos minutos depois começou a ouvir gritos de mulheres e crianças, e os gritos iam se afastando. — HEI! – gritou Elkens. Sua garganta doeu muito ao fazer isso, mas ele estava preocupado com a agitação lá fora. Precisava saber o que estava acontecendo. – Alguém, por favor… HEI! Mifitrin! Meithel… Mas ninguém veio. As mulheres e crianças estavam saindo do vilarejo e os homens estavam se reunindo em algum lugar não muito longe, mas não podiam ouvir Elkens em meio a tanto barulho e gritos. Logo percebeu uma agitação do lado de fora de seu aposento. Eram dois jo-

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vens discutindo, um rapaz e uma moça. Elkens reconheceu a voz de Laserin e prestou atenção no que discutiam. — Me solte, Baldor. Não preciso que me proteja… Não vou com vo-cês, me solte. — Recebi ordens de Tûm para tirar todas as mulheres, crianças e ido-sos do vilarejo, então você vem comigo – dizia o outro jovem. Pela voz, parecia não ser muito mais velho que a garota. Talvez um ano no máximo. — Me solte – Laserin insistia. – Tem um homem ferido aí dentro e eu estou encarregada de protegê-lo. — Eu te ajudo a carregá-lo até o abrigo – disse o jovem, mas Laserin o interrompeu: — Ele está muito fraco e deve ficar imobilizado. Eu vou ficar com ele… — Não vou deixar você ficar aqui – insistiu o jovem chamado Bal-dor. — Não! Me solte, Baldor. Me solte – gritava Laserin, e então El-kens ouviu o som de um chute o jovem chamado Baldor gritou de dor. A seguir, Elkens ouviu um som que lembrava o de um breve beijo no rosto, então o jovem saiu correndo sem dizer mais nada. Um segundo depois Laserin entrou correndo no aposento e Elkens ficou contente em vê-la. — O que está acontecendo lá fora? — Alguns homens estão invadindo o vilarejo. Mas não precisa se pre-ocupar, eu irei protegê-lo. Elkens sorriu ao ouvir isso, algo que não fazia há algum tempo, e La-serin contentou-se ao vê-lo sorrindo. Não era a primeira vez, mas El-kens havia piorado muito desde que sorrira pela última vez. Era bom ver que ele ainda não sucumbira ao veneno.

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— Não se preocupe comigo – ele disse. – Vá com os outros e me dei-xe aqui. Laserin balançou negativamente a cabeça, jogando seus cabelos com-pridos de um lado para o outro. — Não vou deixá-lo enquanto não estiver recuperado… Antes que Laserin terminasse de falar, a cortina do aposento se abriu e ela olhou assustada para trás, mas ficou mais tranqüila ao ver quer era Mifitrin quem estava entrando. — Vá com os outros, Laserin – disse Mifitrin. – É perigoso você fi-car aqui. Eu cuidarei do Elkens. — Vi quando a senhora disse para Tûm que também iria lutar – La-serin encarava Mifitrin, que era bem mais alta que ela. – Eu não sei lutar, a única coisa que sei fazer é cuidar das pessoas. A senhora deve ir ajudar Tûm e os outros e eu ficarei cuidando do Elkens. — Pode ser perigoso… Laserin tirou a mão de dentro das vestes e mostrou um pequeno pu-nhal. Mifitrin teve certeza de que Laserin não seria capaz de usá-lo para ferir alguém, mesmo que estivesse em perigo. Mas a jovem pare-cia acreditar no contrário, por isso não disse nada. — Não sei lutar, mas posso me defender. Prometo que não vou deixar ninguém machucar o Elkens. Mifitrin ia argumentar, tentar convencê-la a mudar de idéia e procu-rar um lugar mais seguro, mas antes de fazer isso olhou para Laserin e viu a si própria quando era jovem, então mudou de idéia e concordou em deixá-la ali. Mifitrin deu às costas para os dois e seguiu para a saída do aposento, mas antes de sair Elkens a chamou de volta: — Mifitrin! É o Kanoles, não é?

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Ela ainda não havia visto nenhum dos invasores, mas não tinha dú-vidas: — É. — Então não se deixe enganar, Mifitrin. Kanoles pode parecer mal, mas sei que ele é uma boa pessoa. Não se deixe enganar pelas circuns-tâncias… Elkens engasgou-se enquanto falava e cuspiu um pouco de sangue. Mifitrin olhou para Elkens tentando ocultar sua preocupação com um sorriso forçado; sabia que ele não estava resistindo ao veneno. — Pode deixar Elkens. Vai ficar tudo bem… – e saiu do aposento com um nó na garganta, não acreditando em suas próprias palavras. Não vai ficar tudo bem…

♦ Tûm e seus homens estavam em formação, esperando pelos homens que chegariam a qualquer momento. Mifitrin chegou e ficou ao seu lado, pegando uma flecha de madeira e preparando-a em seu arco. A foguei-ra atrás deles iluminava o pátio do vilarejo, que seria o campo de ba-talha, mas a frente deles continuava numa completa escuridão; nin-guém conseguia ver se havia alguém vindo. Vários minutos de tensão se passaram e ninguém dizia nada; ao lado de Tûm, Mifitrin segurou a flecha entre os dedos da mão direita e pu-xou-a para trás. Tûm olhou de Mifitrin para a escuridão à frente, mas ao constatar que não havia nada lá voltou a olhar para Mifitrin. Ela continuava a puxar a flecha lentamente e a esticar o arco. Após cinco segundos soltou a flecha; ela voou zunindo e desapareceu na escuri-dão.

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Vários homens olharam curiosos para Mifitrin, inclusive Tûm, pois ninguém via ou ouvia nada, mas ela permaneceu imóvel, apenas olhando fixamente para frente. Poucos segundo depois eles ouviram barulhos de passos e um homem saiu da escuridão. O homem usava somente vestes negras que o ocultavam na escuridão e havia três lis-tras da mesma cor em cada lateral de seu rosto. Ele andou lentamente na direção de Tûm e seus homens, parando quando teve certeza que estava visível sob a luz da fogueira. Assim que parou levantou a mão esquerda; nela estava a flecha de Mifitrin. — Alguém aqui precisa melhorar a pontaria – Kanoles disse ironica-mente olhando para Mifitrin, pois ela era a única ali que segurava um arco. — Não atirei para matar – ela falou impondo toda sua determinação em sua voz. – Atirei apenas para avisar que eu sabia onde você esta-va. O homem atirou a flecha de volta para ela e disse: — Talvez precise dela. Mifitrin nem se moveu para pegar a flecha que havia caído no chão, sequer olhou para ela. Encarava o homem de vestes negras sem piscar ou desviar os olhos. — Tenho muitas flechas aqui, mas precisarei apenas de uma para te matar caso dê mais um passo. O homem de vestes negras deu uma grande gargalhada, mas não deu nem um passo. Após parar de rir, o homem disse: — Tenho certeza que sim, mas isso não será necessário. Não quero lu-tar. Quem é o líder de vocês? — Sou eu! – disse Tûm dando um passo à frente e enfrentando o ho-mem de vestes negras com os olhos. – Meu nome é Tûm e sou o líder

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deste vilarejo. Aconselho que você dê meia volta e se retire imedia-tamente. Novamente o homem de vestes negras riu. — Você e seu povo são patéticos. Passamos pela sua guarda sem difi-culdades e nenhum de meus homens foi ferido. Mas para a sua sorte não queremos lutar… — Sabemos o que vocês querem, Kanoles – Mifitrin falou, interrom-pendo-o. Kanoles olhou surpreso para ela, ao que Mifitrin sorriu e continuou: ‒ Isso mesmo. Sabemos o que vocês querem e também sei seu nome. Kanoles, caçador de recompensas. Kanoles recuperou-se da surpresa e sorriu novamente. — Bom, então isso facilita um pouco as coisas. Entreguem-me o cris-tal! Tûm não disse nada. Como iria saber quem realmente ele estava espe-rando para vir buscar o cristal? Sempre soube que alguém viria bus-car-lo e sabia que devia entregá-lo, mas após tantos anos surgiram duas pessoas querendo o cristal. Não havia dúvidas de que Tûm con-fiasse mais em Mifitrin, mas isso não queria dizer que era para ela que ele deveria entregar seu tesouro. Como ele não disse nada foi Mifitrin quem respondeu ao pedido de Kanoles: — Você não levará o cristal! — Assim você dificulta a situação – Kanoles desembainhou uma lon-ga espada negra. A espada de Kanoles era incomum; ela refletiu a luz da fogueira com um brilho frio – AGORA! Assim que Kanoles gritou, vários homens saíram da escuridão e corre-ram para atacar Tûm e seu povo, todos usando espadas. Tûm também deu um grito e seus homens correram para o contra-ataque. Ao contrá-rio deles, Mifitrin ficou parada. Ela chegou a pegar uma flecha de madeira em sua aljava, mas logo se lembrou do que Elkens disse:

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“…não se deixe enganar, Mifitrin. Kanoles pode parecer mal, mas sei que ele é uma boa pessoa…”, então ela jogou a flecha de madeira no chão. Ela não precisava ferir ninguém, quanto menos matar. Con-centrando-se em seu colar, uma flecha de luz sólida, anil, conjurou-se entre seus dedos. Ela colocou a flecha no arco e puxou para trás. Nesse instante ouviu o som de espadas se chocando. A batalha já ha-via começado. Mifitrin puxou a flecha de luz anil ainda mais e esco-lheu seu alvo. Como protetora do Tempo, Mifitrin tem um sexto sen-tido: a previsão. Como Guerreira, ela é capaz de ver a conseqüência de um ataque mesmo antes de fazê-lo, e assim sabia que não erraria seu alvo. Ela segurou a flecha de luz anil entre os dois dedos que ainda manti-nham o arco esticado, mirou num espaço vazio e soltou a flecha. En-quanto a flecha voava zunindo sem nenhum alvo aparente, um dos homens de Kanoles deu um passo para o lado enquanto enfrentava um dos homens de Tûm e a flecha atingiu-o em cheio. Mas a flecha que Mifitrin utilizou era uma flecha especial, era uma flecha do Tempo. Seu alvo não foi morto nem ferido, sequer sentiu dor. Apenas ficou imóvel, congelado no tempo. O homem de Tûm estranhou quando seu adversário ficou imóvel, mas não pensou duas vezes para atacá-lo. Mas antes de poder matar o ad-versário, Mifitrin surgiu na sua frente em um piscar de olhos: — Não precisa matá-lo – ela disse. – Ele já foi derrotado. Dizendo isso Mifitrin conjurou uma nova flecha de luz anil e esco-lheu um novo alvo usando o sentido da previsão. Em segundos o ho-mem estava paralisado, assim como aconteceu com o primeiro. Tûm e Kanoles se enfrentavam no meio da batalha. Tûm lutava bem com espada, mas sabia que Kanoles estava apenas brincando com ele.

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Kanoles era muito melhor e Tûm começa a ter dificuldades para se defender dos ataques do caçador de recompensas. — Me diga Kanoles – Tûm pediu em meio a batalha. – Por que quer o cristal? — É um cristal valioso pelo o que ouvi – ele transpassava calma, mesmo estando no meio de um combate. Tinha plena confiança em su-as habilidades e na de seus companheiros. Tûm esquivou-se de um ataque dele e preparou um golpe certeiro, mas Kanoles foi mais rápido e se defendeu. — Se veio atrás do cristal apenas pelo valor que ele tem, sei que você não é a pessoa certa para levá-lo. Independente desta batalha eu sabia que o cristal deveria ser levado em breve, mas confesso que até agora estava em dúvida se o cristal deveria ser entregue para você ou para Mifitrin. Mas você acaba de me esclarecer esta dúvida. Os homens de Tûm e de Kanoles continuavam se enfrentando. Apesar de estarem em um número muito maior, os homens de Rismã perderiam se não fosse por Mifitrin. A Guerreira parou de imobilizar os homens de Kanoles e começou a prestar atenção na batalha, uma análise que todo Guerreiro que se preze faz no meio de um combate. Uma análise estratégica a fim de planejar o próximo movimento, mas foi então que reparou em algo crucial: os homens de Kanoles não haviam ferido ne-nhum dos homens de Tûm. Alguns estavam desarmados, outros desa-cordados, mas não por golpes de espada; sequer havia sangue naquela batalha. Mifitrin olhou para um lado em tempo de ver um dos homens de Kanoles enfrentando um adversário. Primeiro o desarmou com mo-vimentos rápidos de sua espada, depois o desequilibrou e o atingiu com um golpe do cabo da sua arma na jugular esquerda do homem. No segundo seguinte ele caía inconsciente no chão, apenas desacordado, não ferido, nem morto. Apenas desacordado.

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Eles não querem matar ninguém, pensou Mifitrin. Estão apenas ga-nhando tempo… Ela desviou seus olhos da batalha e olhou para o resto do vilarejo, que continuava na escuridão. Após alguns segundos ela viu dois homens de vestes negras entrando e saindo rapidamente das casas do vilarejo, então entendeu o que estava acontecendo. A batalha era apenas uma distração, pois secretamente Kanoles enviara outros homens para pro-curar o cristal. Mas isso apenas confirmava o que Elkens disse: Kano-les era uma boa pessoa. Se ele quisesse poderia matar a todos na cida-de, pois seus homens realmente lutavam bem melhor que os homens do vilarejo, mas ainda assim ele optou por não ferir ninguém e fugir com o cristal quando o tivessem encontrado. Mifitrin pensou por alguns instantes no que devia ser feito, então de-cidiu que estava na hora de terminar com aquela batalha inútil. Ela tocou seu colar e iniciou uma manipulação do tempo. O vento parou de soprar de repente até mesmo a fogueira imobilizou-se. Mifitrin ha-via congelado o tempo com seus poderes de protetora e os únicos que se moviam eram Kanoles, Tûm e ela. Todos os outros homens estavam imobilizados e a batalha temporariamente interrompida. Tûm assustou-se quando isso aconteceu, e Kanoles aproveitou a opor-tunidade para derrubá-lo no chão e imobilizá-lo colocando sua espada negra em seu pescoço. — Agora me diga onde está o cristal! — Deixe-o em paz, Kanoles. Kanoles olhou para quem havia gritado aquilo e viu Mifitrin em pé, do outro lado do pátio. Ela aparentava estar calma, o que indicava significava que ela sabia o que havia acontecido com todos os homens (ou mesmo que ela própria havia feito aquilo).

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— Traga-me o cristal e deixo ele viver – Kanoles encarava Mifitrin nos olhos, ainda segurando sua espada no pescoço de Tûm. Aquela era uma ameaça tão real, uma ameaça que convenceria qualquer um a fa-zer o que ele queria, pois realmente era convincente de que iria fazer aquilo. Mas Mifitrin já havia decifrado Kanoles e sabia que não pas-sava de uma ameaça que jamais seria cumprida. Kanoles viu Mifitrin levar levemente a mão até um colar de safira em seu peito e assustou-se ao vê-lo. O colar da mulher lembrava o colar de um jovem chamado Elkens que Kanoles conheceu há uns três dias. Apesar de a cor e a forma do colar serem diferentes, Kanoles suspeitou que eles tivessem algo em comum, pois ambos eram capazes de utilizar magia. Quando Mifitrin tocou seu colar Kanoles assustou-se, pois ela desapareceu. Não estava mais do outro lado do pátio, agora estava atrás dele, segurando em seu pescoço com força e imobilizando-o. — Solte a espada – Mifitrin sussurrou em seus ouvidos. Kanoles ten-tou se livrar da Guerreira do Tempo, mas ao perceber que não seria possível, soltou sua espada negra no chão e Tûm se levantou. — Acabe com ele de uma vez por todas, Mifitrin – disse Tûm com re-pugnância na voz. — Não! – exclamou a Guerreira. – Esta batalha é inútil. Olhe a sua volta Kanoles. Seus homens lutam melhor que os homens de Tûm, mas ainda assim nenhum deles foi morto. Eles seguem as suas ordens, en-tão é você que não quer mortes. Você é um aventureiro, não é Kano-les? Tem respeito pela vida e é uma pessoa boa pelo o que ouvi dizer. Mifitrin soltou Kanoles e os dois ficaram de frente um para o outro. Ele a encarou com uma certa curiosidade em saber o que ela era ou quem é que disse coisas boas a seu respeito. Ele deu um grande suspiro e admitiu:

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— Eu sou assim e essa é a forma de vida que escolhi. Não dou valor para riquezas, diferente de meus homens, e é por eles que estou aqui. Viemos para pegar esse cristal e vamos fazer isso. Mas você está certa, eles seguem as minhas ordens; ninguém será ferido. — Mas se quiser o cristal terá de me matar – disse Mifitrin – pois eu também vim aqui para levá-lo. Para você, levar esse cristal pode sim-bolizar mais uma aventura pela qual passou, mas para mim é algo muito mais importante que isso. Não quero o cristal por seu valor e sim por seu poder. Para você pode ser difícil entender, mas talvez mui-tas vidas dependam deste cristal. Então se você realmente tem respei-to pela vida, irá ordenar que seus homens parem e irão embora daqui. Kanoles não disse nada, apenas deu as costas para Mifitrin e obser-vou seus homens imobilizados durante a batalha. As palavras de Mi-fitrin haviam provocado alguma coisa nele, mas ele não sabia o que fazer. — Vou fazer tudo voltar ao normal – disse Mifitrin olhando para os dois líderes diante dela – mas quero que vocês dois ordenem que seus homens parem de lutar. Mifitrin tocou seu colar e tudo passou a correr normalmente. O vento voltou a soprar e o fogo voltou a arder na fogueira. Os homens conti-nuaram lutando como se nada tivesse acontecido e nem repararam que Tûm e Kanoles haviam parado de lutar. Eram incapazes de perceber que a luta havia sido interrompido por alguns minutos. Mifitrin olhava de um para o outro, aguardando que um dos dois to-masse a iniciativa e encerrasse a batalha. Mas enquanto olhava para os dois, Mifitrin sentiu uma profunda dor no coração e soltou um ge-mido. Suas pernas bambearam e ela caiu de joelhos. Mifitrin lembrou-se imediatamente daquela dor, pois já havia sentido a mesma dor quinze anos atrás, exatamente no mesmo dia em que Morton morreu.

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Ela sabia o que provocava aquela dor. Seu maior medo estava de volta.

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Laserin estava sentada num canto da cama ao lado de Elkens. Segu-rava o punhal e olhava fixamente para a porta caso alguém entrasse. De repente assustou-se, pois Elkens soltou um grito de dor e começou a se revirar na cama. — Elkens! – Laserin exclamou tentando segurá-lo. – Senhor Elkens. Por favor, me diga o que está acontecendo. Mas ele parecia estar sentindo muita dor e sequer ouvia Laserin. A jovem temeu que finalmente o veneno estivesse matando-o e começou a chorar, entrando em desespero. — Não senhor Elkens… agüenta firme… Nesse instante alguém atravessou a cortina do quarto e Laserin pre-parou o punhal para atacar. — Espere! – disse quem entrava no aposento. – Sou eu. Era Meithel quem estava entrando e Laserin ficou feliz em vê-lo. — Me ajude, senhor Meithel – ela pediu deixando o punhal de lado. – O senhor Elkens está piorando… — Não se preocupe – Meithel disse. – Não é o veneno ou os ferimen-tos que estão causando dor a ele. Eu também estou sentindo a mesma coisa… Laserin olhou para o rosto de Meithel e realmente viu uma expressão de dor, mas ainda assim não entendeu o que estava acontecendo. El-kens ainda se debatia na cama. — Quando ele melhorar entregue isso para ele – Meithel colocou um colar de rubi nas mãos de Laserin. A garota pegou o colar que estivera perdido no rio e o colocou na cama ao lado de Elkens. – Continue cui-dando dele. Eu vou ajudar Mifitrin e os outros agora, eles estão en-frentando Kanoles…

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Meithel saiu do aposento, deixando Elkens e Laserin sozinhos mais uma vez. Aos poucos Elkens foi se acalmando, mas ainda parecia sen-tir dor. Meithel chegou ao pátio do vilarejo e andou no meio da batalha pro-curando por Mifitrin. Logo a encontrou e ela estava no centro da ba-talha, mas estranhou ao vê-la junto com Tûm e um homem que supos-tamente era Kanoles. — O que aconteceu, Mifitrin? – Tûm perguntou encarando a Guer-reira do Tempo que estava com o rosto pálido. Meithel percebeu que ela estava sentindo a mesma dor que ele e Elkens, mas viu que ela es-tava muito preocupada. Diferente dele, ela parecia saber o que causa-va aquela dor. — Mifitrin – Meithel a chamou quando chegou até ela. – Já encon-trei o colar de Elkens, mas o que está acontecendo? O que é essa dor? — São eles, Meithel! – sua voz estava tremendo. – Está tudo perdi-do. São os kenrauers… Meithel olhou confuso para Mifitrin. Kanoles e Tûm apenas olhavam para os dois protetores, pois também não entendiam o que estava acontecendo. O restante dos homens continuavam a lutar a volta de-les. Um forte relâmpago iluminou a noite e logo se ouviu o som es-trondoso de um trovão. Em pouco tempo uma fina garoa passou a cair, mas foi ficando cada vez mais forte. — Quem são os kenrauers, Mifitrin? – Meithel resolveu perguntar. — São os responsáveis pela morte de Morton. São demônios sem alma – as mãos de Mifitrin tremiam tanto quanto sua voz. – Me lembro que senti essa dor naquele dia quando eles chegaram. É a mesma dor que sentimos agora. Significa que eles estão se aproximando. Está tu-do perdido…

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— PAREM DE LUTAR! – Kanoles gritou de repente. – Temos um inimigo em comum agora e eles estão chegando. Todos os homens pararam de lutar. Somente agora eles perceberam que Tûm e Kanoles estavam lado a lado e que não estavam mais lutando. Nenhum deles entendia o que estava acontecendo, mas todos sentiam que algo ruim estava acontecendo. Eles não eram protetores, eram apenas humanos, e por isso não sentiam a mesma dor que Elkens, Mi-fitrin e Meithel sentiam quando os kenrauers se aproximavam, mas ainda assim eram capazes de sentir um desconforto e um aperto no co-ração. Pouco tempo depois, quando obviamente os demônios estavam mais pertos, todos no vilarejo eram capazes de sentir uma angústia tão profunda que quase era comparada a dor dos protetores. — Agora vamos nos unir e enfrentar um novo inimigo – era a vez de Tûm gritar. – Não sabemos quem é, mas eles estão chegando… — Vocês não sabem o que estão dizendo – Mifitrin soltou seu arco no chão, inconsciente do que fazia. – Não é possível enfrentar um kenrauer, ninguém pode detê-los. Já estamos todos mortos… — Levante-se Guerreira! – Kanoles gritou para ela de modo severo. – E pegue seu arco. Não irá desistir sem lutar. Não sei quem são esses kenrauers, mas iremos lutar ao seu lado.

♦ Elkens havia conseguido dominar sua dor e estava mais calmo agora. Laserin o ajudou a ficar sentado, mas sua respiração estava cada vez mais fraca. — Laserin… – Elkens sussurrou, pois não tinha fôlego para falar mais alto. Sua respiração estava muito fraca e estava falhando, mas isso não era por causa dos kenrauers e sim por causa do veneno. Ele

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ainda não sabia quem eram os kenrauers, nem que eles eram os res-ponsáveis por sua dor. Ninguém ali era capaz de imaginar a dor que Elkens sentiu quando os kenrauers se aproximaram do vilarejo, nem mesmo Mifitrin e Meithel. Ele é um protetor da Alma e é mais vulne-rável à ausência de alma. É por isso que os kenrauers o afetam tanto, mais que os outros, assim como Kalimuns também foi mais afetado que os outros na batalha há quinze anos. A ausência de alma nos ken-rauers os atinge mais profundamente que qualquer um – Laserin… pegue minha bolsa… A garota levantou-se e pegou a bolsa de couro de Elkens que estava no chão. Ela tentava não chorar na frente de Elkens, mas sabia que ele estava morrendo e não conseguia segurar. — Eu estou morrendo… – ele continuou num sussurro. – Sinto que não vou agüentar muito tempo… tem um pequeno frasco de rubi na minha bolsa, pegue-o para mim… eu queria guardar isso para mais tarde, talvez Mifitrin ou Meithel precisassem disso… mas vou morrer logo se eu não… Não fiz nada de útil desde que saímos, mas está na hora de eu ajudar… Laserin encontrou o pequeno frasco de rubi dentro da bolsa. Ele esta-va cheio com um líquido transparente, parecia ser água. A pedido de Elkens, Laserin abriu o frasco e ajudou-o a tomar todo o seu conteú-do. A água mais pura de Gardwen, que brota na fonte do Santuário Rubi, presente de Kalimuns, desceu pela garganta de Elkens… Mifitrin estava em pé, segurando seu grande arco. A chuva caía sobre eles e a fogueira estava quase apagada. Ela ainda tinha lembranças do quão terríveis eram os kenrauers. Eram indomáveis e quanto mais furiosos ficavam, mais terríveis eram. Havia algo estranho nos ken-rauers, pois somente a presença deles conseguia acabar com a magia.

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Mifitrin lembrava-se de como os poderes de Morton e dos outros eram pouco a pouco minados quando enfrentaram os kenrauers, até que se extinguiam completamente. Mifitrin sabia que não tinham a mínima esperança de vencer, mas não iria morrer sem lutar. Enquanto segurava seu arco, conjurou uma fle-cha do Tempo e preparou-a. Sabia que não ia derrotar os kenrauers apenas congelando-os no tempo, mas pretendia imobilizar a todos. Não tinha idéia do que iria fazer para combatê-los, então apenas iria atacar até que suas energias se extinguissem ou até que fosse morta. Ela puxou a flecha de luz anil e apontou-a para a escuridão. Não po-dia ver nem ouvir nada, mas sabia que os kenrauers vinham daquela direção. Era de lá que vinha a dor que Elkens, Meithel e ela sentiam, assim como todos os outros agora. Ao sentir que os kenrauers estavam perto preparou-se para soltar a flecha. Com o sexto sentido, a previ-são, teve a visão de sua flecha errando o alvo, então nem atirou. — Eles chegaram! – Mifitrin sussurrou e os cinqüenta ou sessenta homens prepararam suas espadas. Tûm e Kanoles estavam do lado di-reito de Mifitrin e também levantaram as espadas, e Meithel, que es-tava do outro lado, tocou seu colar de diamante e concentrou-se nele. E então eles chegaram. Do meio da escuridão veio um rugido de amea-ça e surgiram seis criaturas da cor da noite. Os demônios sem alma eram formados por algo que se assemelhava a uma névoa negra, mas ainda assim eram sólidos. Não tinham rostos, apenas uma fenda no lugar que deveria haver uma boca. Os seis demônios pararam lado a lado e encararam seus adversários, mas não demonstraram qualquer sinal de medo (isso se eles fossem capaz de sentir qualquer coisa, o que Mifitrin duvidava). Após alguns segundos os seis kenrauers soltaram um novo grito de ameaça, então avançaram. Mifitrin esperou até o momento certo, en-

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tão soltou a flecha e ela voou pelo ar noturno, atingindo um dos kenrauers na testa e imobilizando-o imediatamente no meio de um salto. Os kenrauers atacaram os homens, que revidaram inutilmente com su-as espadas. Tûm foi jogado de costas imediatamente e um dos kenrau-ers pulou sobre ele para estrangulá-lo. Kanoles atacou o kenrauers com sua espada negra e salvou Tûm, mas o kenrauer nada sofreu e in-vestiu contra o caçador de recompensas. Mifitrin conjurou uma nova flecha do Tempo e com a ajuda do sexto sentido aguardou o momento certo de atacar, o que demorou a aconte-cer. Meithel conjurou uma espada de luz branca com seu colar, e com ela enfrentou os kenrauers. Mifitrin ficou por mais de um minuto se-gurando seu arco, apenas aguardando o momento certo para atacar, mas sem que esperasse, o kenrauer que estava imobilizado livrou-se do feitiço e pulou sobre ela. Sentiu os dedos compridos e gélidos de um kenrauer apertar seu pescoço; parecia estar revivendo o que aconteceu quinze anos atrás, quando estivera caída no chão do Templo das esfe-ras. Tentou chutar o demônio para poder se levantar, mas não conse-guiu. Meithel fincou sua espada branca nas costas do kenrauer e ele saiu de cima de Mifitrin guinchando de dor, mas logo se perdeu no meio da batalha e voltou a atacar outros homens. Artasil, o braço direito de Kanoles, estava enfrentado os kenrauers friamente, atacando sem dó nem piedade. Antes da batalha Kanoles disse que deveriam esquecer suas regras e atacar para matar, e era isso o que Artasil estava fazendo. Mas por mais que tentasse, parecia im-possível derrotar aqueles demônios. Defendeu-se de um ataque surpre-sa de um dos kenrauers, mas viu quando o demônio atacou de traição um de seus companheiros. O companheiro de Artasil caiu no chão com o pescoço quebrado. Completamente apavorado, viu quando a alma de

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seu companheiro abandonou o corpo. A alma dele, como todas as ou-tras, tinha o formato de um pássaro formado de luz. Ela bateu suas asas e voou para os Domínios da Alma. Um dos companheiros de Ar-tasil estava morto. Com raiva, ele perseguiu o demônio assassino, mas antes que pudesse atingi-lo, viu mais três almas voando, uma de cada cor. Tanto os homens de Kanoles quanto os de Tûm estavam morrendo, mas os kenrauers sequer estavam feridos. Mifitrin suspeitava que eles realmente não fossem capazes de sentir nada, nem mesmo a dor. Por mais que gritassem quando eram atingidos, eles voltavam a atacar sem medo. Mifitrin ainda segurava seu arco, mas através do sentido da previsão sabia que não atingiria nenhum kenrauer, então jogou seu arco longe e concentrou-se em um novo feitiço. Dois kenrauers correram contra ela, e Mifitrin utilizou o turbilhão de esferas; dezenas de esferas anis sur-giram, atacando ferozmente os kenrauers. Eles guincharam de dor quando as esferas explodiam contra eles, mas logo estavam atacando novamente e fazendo novas vítimas, sem nenhum sinal de cansaço ou dor. Ela viu três homens serem assassinados em menos de quinze se-gundos, mas quando olhou para o céu para ver as almas voando, mais sete ou oito almas surgiram. Estava sendo uma verdadeira carnificina e aos poucos os corpos iam se acumulando no chão. Tûm ainda estava ao lado de Mifitrin, enfrentando inutilmente os kenrauers com sua espada. Por duas vezes precisou ser salvo dos ken-rauers por seus homens, mas todos que salvaram Tûm tiveram de pa-gar com a vida. Ele olhou para Mifitrin e parecia querer dizer alguma coisa, mas outro kenrauer surgiu e separou os dois. Apenas alguns se-gundos se passaram e ela ouviu a voz de Tûm, sem saber exatamente de onde vinha:

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— LASERIN! – chamou ele aos gritos. Sua voz ecoou pelo vilarejo enquanto chamava a jovem. – LASERIN! Mifitrin correu até Tûm e segurou com força em seu braço. — O que está fazendo? – ela perguntou. – Ela será morta se vier até aqui. — Ela é a nossa única chance, Mifitrin. Acredito que só ela possa nos salvar – ele parecia realmente transtornado, perturbado ao ver tantos companheiros caírem mortos diante dele – LASERIN! Logo a garota apareceu, mas ficou afastada da batalha. Ela olhou as-sustada para a confusão e a quantidade de corpos que se acumulavam no chão. — Laserin, você deve saber que isso tudo não é coincidência, não é? – Tûm lhe falou. – Você deve saber o que eles vieram buscar. — O cristal? – Laserin perguntou. — Isso mesmo – Tûm confirmou. – Vá buscá-lo. Só você pode fazer isso. Mifitrin viu Laserin sair correndo e desaparecer no meio da escuridão, mas outra alma passou voando por ela e chamou a sua atenção de vol-ta para a batalha. Apesar de serem apenas seis, era impossível vencer os kenrauers, pois ninguém conhecia uma maneira de derrotá-los. Um deles veio correndo na direção de Mifitrin. Ela tocou seu colar e concentrou-se para lan-çar esferas anis, mas as esferas não apareceram. Os poderes de Mifi-trin se extinguiram e ela não pôde fazer nada para se livrar do demô-nio. Ela tentou fugir, pois estava sem nenhuma arma, mas o kenrauer pulou sobre ela e a derrubou no chão. Mais uma vez sentiu os dedos gélidos do demônio procurando seu pescoço. Debateu-se na tentativa de se livrar do seu possível assassino, mas ele era muito forte. Estava tudo perdido…

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Foi então que viu um clarão e várias esferas rubras vieram na sua direção. O demônio foi atingido e fugiu, guinchando de dor. Ainda no chão, Mifitrin viu quando alguém se aproximou dela e a ajudou a se levantar: — Elkens? – ela perguntou confusa, não sabendo se era sensato sor-rir. – O que faz aqui? Elkens estava ali diante dela, forte e saudável como fora no dia ante-rior antes de chegarem ao rio. Seus ferimentos haviam se curados qua-se como por milagre. — Somos um grupo, não somos? – ele abriu um sorriso para ela. – Vim ajudar. — Mas e os seus ferimentos? E o veneno? — Eu já estaria morto se não fosse por um presente do meu tutor – Elkens mostrou um frasco de rubi vazio. – Kalimuns me deu este frasco cheio de água do Santuário Rubi, a água mais pura do mundo. Foi graças a ela que me curei… Enquanto conversavam, mais um kenrauer avançou contra eles e El-kens tocou seu colar para lançar novas esferas rubras, mas elas tam-bém não vieram, assim como ocorreu com a Guerreira. Mifitrin segu-rou Elkens pelo braço e puxou-o, um segundo antes de ser pego pelo kenrauer. — O que está acontecendo? – ele perguntou olhando para seu colar. — São eles – Mifitrin respondeu indicando os kenrauers com um ace-no de cabeça. – De alguma forma eles conseguem acabar com a magia que há por perto. A minha magia já acabou… — Mas o que são eles? — Demônios sem alma! – respondeu a Guerreira enquanto ainda pu-xava Elkens pelo braço.

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O kenrauer voltou contra eles e Elkens mandou Mifitrin se afastar da batalha, enquanto ele usava o que restava de sua magia. Enquanto Elkens enfrentava o demônio, duas almas passaram voando por ele. Os homens não estavam agüentando mais e um a um estavam sendo assassinados. De repente uma luz atraiu a atenção de todos. Não era a luz de um relâmpago, era algo mais forte e duradouro. Era como se a noite se transformasse em dia momentaneamente. Elkens olhou para a fonte de luz, mas não entendeu o que estava acontecendo. Laserin estava se aproximando deles, e segurava um grande cristal com as duas mãos er-guidas sobre a cabeça, e era o cristal que estava emitindo todo aquele brilho. Ao ver o cristal, os seis kenrauers avançaram contra a garota, pois era aquilo que eles vieram buscar no vilarejo Rismã. Mas assim que se aproximaram, o cristal passou a brilhar ainda mais e surpreendente-mente os kenrauers pararam. Por algum motivo eles não podiam se aproximar da luz do cristal, parecia que se feriam com isso. Vários guinchos de dor foram ouvidos e então a luz do cristal intensificou-se ainda mais, cegando a todos momentaneamente. Mifitrin sentiu um fiapo de esperança ao ver os kenrauers recuarem, e o fiapo de esperan-ça cresceu infinitamente quando os viu fugindo. Os guinchos de fúria que soltavam enquanto fugiam ainda eram terríveis, mas a dor que Mifitrin e os outros sentiam em seus peitos passou a diminuir confor-me eles se afastavam do vilarejo. Quando a luz do cristal apagou não havia mais nenhum kenrauer ali. Laserin estava caída no chão, in-consciente, com o cristal ao seu lado.

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