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Reconstruirsobre as ruínas

A descoberta de uma doença gravenão é o fim — pelo contrário, pode ser o ponto

de partida para novos desafios na vida

Tatiana Piva

8 CONVIVÊNCIA // superação

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Somente quem um dia passou pela expe-riência de ouvir de um médico a notícia de que tem uma doença grave é que sabe

das sensações, dos questionamentos e das reações que tal revelação pode provocar. Para alguns é o fim da vida — não conseguem ver sentido nem encontrar forças para lutar contra o mal devastador. Outros, porém, recusam-se a ca-pitular e enfrentam o problema da maneira que muitos especialistas consideram a mais eficaz: dispondo-se a viver, alimentando a esperança da cura com o engajamento em toda atividade que o tratamento permite.

Foi essa, por exemplo, a escolha da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que no fim de abril do ano passado confirmou estar sendo submetida a um tratamento de quimioterapia contra um linfoma. Ela passou por uma série de exames de rotina nos quais foi constatada a existência de um gânglio de 2 centímetros em sua axila esquerda. Depois de extraído, a biópsia indicou tratar-se de um tumor maligno.

A reação da ministra e pré-candidata à pre-sidência da República foi de aparente tranquili-dade. “Queria dizer que estou certa de que será algo que vai ser superado, eu me sinto perfeita-mente bem”, afirmou, reiterando sua disposição de continuar exercendo normalmente as funções inerentes ao cargo. No segundo semestre, ela recebeu a informação médica oficial de que o tratamento funcionara e ela estava curada.

A atitude da ministra ao saber de sua doença não pode ser considerada regra nem exceção. Na verdade, não há como estabelecer um padrão em casos dessa natureza. O vice-presidente da República, José Alencar, por exemplo, jamais negou a seriedade de seu estado, mas manteve o discurso otimista ao longo de todo o tratamen-to contra o câncer, durante o qual perdeu um rim e parte considerável do estômago. Mesmo recentemente, quando a doença deu sinais de recrudescimento, Alencar passou a encarar a possibilidade da morte sem demonstrar qual-quer receio. “Minha vida está como sempre este-

ve, nas mãos de Deus”, repete em praticamente todas as entrevistas que concede.

Já para o cantor Neguinho da Beija-Flor a informação, além de trágica, foi devastadora. Ele estava em plena atividade profissional, com agenda lotada, shows marcados na Europa, um CD e um DVD recém-gravados e prestes a ser pai quando recebeu a última notícia que esperava. “Quando sentei em frente ao médico, ele disse a verdade nua e crua: ‘Você tem um câncer ma-ligno no intestino. Vamos ter de operar o mais rápido possível.’ Aquilo foi terrível. Pensei que havia chegado a minha hora de morrer”, conta o cantor.

Esse fantasma — o da morte — e a incerteza quanto aos resultados do tratamento são os que mais assombram as pessoas que precisam lidar com a perspectiva de uma doença grave ou terminal. A angústia, em muitos casos, desdobra-se em desespero diante de questionamentos fundamentais: “Por que isso tinha de acontecer justamente comigo?”; “Será que vale a pena o esforço?”; “Como vai ficar a minha família? Quem cuidará dos meus filhos?”

No entanto, essa sensação quase inevitável, se devidamente abordada, tem o potencial de iniciar um processo de crescimento pessoal que, em vários casos, também contribui para a cura ou, pelo menos, para o prolongamento da vida e a mitigação do sofrimento. É certo que a opção pela esperança, principalmente quando aliada com a fé, pode fazer toda a diferença.

A opção pela esperança,

principalmente quando aliada com

a fé, pode fazer toda a diferença.

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Negação e aceitaçãoA médica infectologista e especialista em dor

Elisa Miranda Aires, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, explica que, logo após receber uma notícia sobre a gravidade de sua doença, o paciente geralmente fica muito ansioso ou depri-mido, e isso pode interferir em vários aspectos do tratamento. Estudos da psicanálise apon-tam que a maioria desses pacientes passa por algumas fases. Primeiramente, por um período de negação da doença, ou seja, a pessoa não aceita o momento pelo qual está passando e se vale de um mecanismo de defesa que costuma ser temporário e recorrente no início do quadro.

Essa reação é necessária para que seja posteriormente substituída por uma aceitação parcial. “Nessa fase é comum que as pessoas busquem outras opiniões médicas de forma a confirmar o diagnóstico”, afirma Melina Veronês Fernandes, psicóloga formada pela Universidade Federal de São Carlos com especialização em

Psicologia Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e aluna do 2º ano do curso de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise de Campinas.

Em seguida, observa-se o surgimento de uma raiva que pode ser dirigida à equipe médi-ca e também à família. Segundo especialistas, é um período bastante difícil, principalmente para a equipe médica, pois o paciente nem sempre aceita o tratamento que lhe é proposto. A terceira fase seria um período de barganha, no qual o paciente faz uma tentativa de adiar o processo de adoecimento. Nesse momento é muito comum as pessoas fazerem promessas e pactos com Deus na esperança de se livrarem do sofrimento.

Um quarto estágio descrito por estudiosos é uma fase depressiva, na qual o paciente pode apresentar uma reação diante da perda da confiança e da coragem obtida anteriormente. Ele pode até manifestar uma depressão pre-

A fé que move a saúde

Desde os anos 1980, várias universidades e organizações se dedicam à realização de pesquisas sobre a influência da fé no processo de aceitação e mesmo de cura de doenças fatais. Muitos cientistas, mesmo céticos, concor-dam que a identificação do paciente com algum tipo de crença pode contribuir para acelerar os resultados do tratamento. Estudos publicados no Anal de Medicina Comportamental do ano 2000 apontaram que frequentadores regulares de algum tipo de serviço religioso vivem mais do que aqueles que nunca vão a culto algum. Isso porque, em geral, os fiéis e devotos mantêm hábitos mais saudáveis — evitam, por exemplo, o fumo e a bebida, o que reduz a possibilidade de desenvolver certos tipos de doença.

Além disso, uma pesquisa publicada em 2004 no São Paulo Medical Journal, da Associação Paulista de Medicina, concluiu que a prática da oração guarda relação com a melhora da saúde de pacientes com câncer. Com o objetivo de coletar, organizar e divulgar informações científicas sobre os efeitos biológicos da fé, o Hospital Israelita Albert Einstein criou o Núcleo de Estudos sobre Religiosidade e Espiritualidade em Saúde. Formado por médicos, enfermeiros e profissionais da saúde, tem por objetivo avaliar a influência direta da religiosidade na cura e no tratamento de doenças.

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paratória em função das perdas que a doença provocou e, em casos de doenças terminais, esses sentimentos podem estar relacionados à proximidade da morte. Um último estágio seria o da aceitação. Nessa fase observa-se que, muitas vezes, quem mais precisa de apoio e orientação é a família, pois ainda não aceitou a doença do ente querido e, em casos de doenças terminais, não consegue suportar a angústia da morte.

Assim como o indivíduo experimenta diversos sentimentos a partir da descoberta da doença e necessita enfrentar um processo de organização de seus princípios, os familiares também precisam passar por isso. A relação deles com o paciente, muitas vezes, pode adquirir um novo significado, oferecendo a oportunidade de pensar em lugares e papéis antes desenvolvidos no contexto familiar, podendo ser até substituídos. Por exemplo, o chefe de família que tem de deixar de trabalhar para

receber cuidados precisa ser observado pelos profissionais para que lhe seja oferecido suporte a fim de que esse paciente reflita e consiga também se adaptar ao novo momento.

Em muitos casos, percebe-se ser possí-vel aprender a lidar com a doença, adap-tando-se à nova realidade. Famílias são reestruturadas, rotinas voltam ao normal, projetos anteriormente traçados são resga-tados. Assim, a pessoa encontra uma identi-dade social que havia sido perdida. A forma como a doença é encarada pelo paciente e seu círculo social pode ser diferenciada e refletir de maneira positiva. “Há muitas passagens bíblicas que confortam pessoas nessa condição, como Lucas 1.37, que diz: ‘Para Deus nada é impossível’”, lembra o pastor Nilton Antunes. “Creio que Deus pode curar qualquer enfermidade.”

A forma como a doença é encarada pelo paciente e seu círculo socialpode ser diferenciada e refletir de maneira positiva.

negaçãoA pessoa não aceita o momento pelo qual está passando

aceitação parcialÉ comum que as pessoas busquem outras opiniões médicas

raivaÉ um período bastante difícil, pois o paciente nem sempre aceita o tratamento que lhe é proposto.

depressãoO paciente pode apresentar uma reação diante da perda da confiança e da coragem.

aceitaçãoNessa fase observa-se que, muitas vezes, quem mais precisa de apoio e orientação é a família.

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O dilema no cinema

O que a descoberta de uma doença grave pode ensinar sobre a vida? Para o cinema, muita coisa. Histórias (verídi-cas ou não) de pessoas que descobriram ser portadoras de doenças graves constituem um filão do qual os roteiristas e estúdios se valem com frequência. Assim como na vida real, as produções também exploram as diversas formas de encarar a situação. Lado a lado (1998, de Chris Columbus), sucesso do cinema com Julia Roberts, conta a história do casal Luke (Ed Harris) e Jackie (Susan Sarandon), que se separa. Ele quer se casar pela segunda vez, e a nova esposa, Isabel (Julia Roberts), enfrenta problemas de re-lacionamento com a ex-esposa dele, assim como com os dois enteados. No entanto, as duas serão obrigadas a buscar um novo tipo de relacionamento quando Jackie se descobre doente.

No filme Antes de partir (2007, de Rob Reiner), dois homens com câncer em fase terminal, interpretados por Jack Nicholson e Morgan Freeman, recebem um diagnóstico médico segundo o qual só terão mais seis meses de vida. Decidem viajar pelo mundo juntos para realizar os últimos desejos. Conhecem muitos lugares, discutem sobre religião, família, tristezas e alegrias da vida. Tornam-se muito amigos e transformam a vida um do outro.

Antes de partir: dois homens descobrem o sentido da vida quando lhes sobra pouco tempo

O fantasma da morte e a incerteza quanto aos resultados do tratamento são os que mais

assombram as pessoas que precisam lidar com a perspectiva de uma doença grave ou terminal.

Hora de refletirGeralmente o foco e as prioridades de uma

pessoa enferma mudam, e ela passa a refletir a respeito do que poderá acontecer como con-sequência de sua morte. O cantor Neguinho da Beija-Flor está fazendo reuniões com um grupo evangélico todas as quartas-feiras em sua casa. Com muitas orações, fé em Deus e força de vontade para viver, ele tem conseguido, aos poucos, que a rotina de shows volte ao normal. “Aquele que tem fé aprende a aceitar aquele momento e entende que Deus está no controle”,

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diz Moisés Alves dos Santos, capelão da equipe multidisciplinar de Cuidados Paliativos do Hos-pital Emilio Ribas.

Dilma Rousseff quase não alterou sua agenda entre a cirurgia e o anúncio da cura, e José Alencar também optou por continuar trabalhando, ainda que em ritmo menos inten-so. No entanto, em contraste direto com essa atitude, há inúmeras pessoas que se rendem e não conseguem se libertar do sentimento de revolta. Nesses momentos, é fundamental o apoio da família e dos amigos, além da própria vontade de viver, de não abrir mãos de seus so-nhos e não desistir da vida. “É preciso mostrar aos enfermos que vale a pena lutar, mesmo em situações difíceis, pois o diagnóstico médico muitas vezes pode ser surpreendido pela força da fé do paciente”, completa o padre Hewaldo Trevisan.

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GINAStrozzi

Sexóloga graduada em Pedagogia e Psicologia, mestre em Ciências da Religião

O poder dos filhossobre os pais

“Pai é pai e mãe é mãe; não são amiguinhos que, quando se encontram em grupo, comportam-se como se ninguém tivesse responsabilidade e culpa de nada.”

{Arelação entre pais e filhos se encontra marcadamente alterada por fatores que podem ser sintetizados em dois aspectos

essenciais: as “novas configurações familiares” e o “declínio da autoridade dos pais”. Há uma tendência a se vitimizar as crianças e diabolizar os pais. De certa forma, essa tendência se dá pelo abuso de poder dos pais sobre os filhos ou pelo excesso de permissividade, fruto da culpa que assombra pais ocupados com a dolorosa realidade de que não conseguiram cumprir com sua tarefa de cuidar dos filhos.

Diante do notável declínio da autoridade na família contemporânea, não sabemos se o poder é mais do pai ou da mãe. Se tivermos de responder à questão de onde se aloja o poder hoje, diríamos que está nas mãos dos filhos — filhos que manipulam pais com a consciência pesada por não poder dar-lhes a atenção e o afeto devidos. O que muito se constata são lares onde há filhos órfãos de pais vivos.

Assim, os filhos usurpam e negociam com os pais como se fossem iguais. Mas por que iguais, se os pais são tutores e devem respon-der pelas atitudes dos filhos? Como é possível filhos mandarem nos pais, ou tratarem os pais como coleguinhas? Pai é pai e mãe é mãe. Não são amiguinhos que, quando se encontram em grupo, comportam-se como se ninguém tivesse responsabilidade e culpa de nada. Pai e mãe precisam assumir seus papéis. Devem apontar os erros, dar oportunidades para que os filhos acertem, compartilhar vitórias e derrotas, de-terminar os horários em que se deve almoçar e jantar, partilhar as emoções e ensinar a administrá-las, elogiar e criticar na medida do amor e ensinar como conviver no dia-a-dia com ordem para o bem-estar de todos.

Em tempos de ilhas informatizadas nos sho-ppings, onde as crianças apontam os games como objetos de desejo e almejam personagens virtuais sem contato físico, motor e afetivo, te-mos de descobrir formas especiais de brincar, de rolar na grama, de ouvir histórias. Mamãe:

era uma vez, o quê? O objetivo, como bem nos ensinou Rubem Alves, é dar às crianças símbolos que lhes permitam falar sobre seus medos, suas angústias. É sempre mais fácil falar de si fazendo de conta que se está falando sobre flores, sapos, elefantes e patos. Há histórias que podem ser escutadas em CDs ou simplesmente lidas sozi-nhas. Mas há outras que devem ser contadas por alguém. É preciso que se ouça a voz de outro a dizer: “Estou aqui, meu filho!”

Crianças mimadas e criadas em mundos blindados da verdade se tornarão adultos arro-gantes, egocêntricos e não terão sucesso. E isso se dará porque não saberão suportar as críticas, as frustrações e desfalecerão em neuroses e com-portamentos antissociais nas primeiras negativas da vida. E é aqui que se percebe a diferença de um pai que é pai e de um filho que é filho. O filho cujo pai cumpre sua função será educado para a vida: saberá parar, ouvir, respeitar, acatará a autoridade, saberá conviver.

CONVIVÊNCIA artigo