6

Revista Releitura

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Revista, releitura

Citation preview

Page 1: Revista Releitura
Page 2: Revista Releitura

Com roteiros consistentes, qualidade técnica e cada vez menos apelos ao erotismo,

produções brasileiras conquistam bilheterias cada vez maiores

cenárioMudança de

Autor Maurício Zágari

54 AUDIÊNCIA // cinema

Page 3: Revista Releitura

Apergunta era o Santo Graal — ou o dilema dos biscoitos Tostines — do cinema: a arte imita a vida ou a vida imita a arte? Holo-

fotes sobre o tempo verbal: era. Uma análise do cinema brasileiro dos últimos cinquenta anos traz uma resposta de contornos bem definidos: no Brasil, a arte imita a vida. E só. Fato é que a nossa produção cinematográfica segue um ca-minho diferente da hollywoodiana. Na terra do to be, a sétima arte há tempos trabalha numa via de mão dupla: se, por um lado, a linguagem ab-sorve as tendências do momento histórico, com a inocência de audreys despontando em anos dourados, por outro o conteúdo parte como um cruzado de direita, com rocky balboas em azul e vermelho nocauteando soviéticos comunas em anos de Guerra Fria. Ou seja: a forma é absorvida num movimento de fora para dentro, enquanto o conteúdo transborda de dentro para fora. Na terra do tupi, todavia, esse movimento toma apenas uma direção, tanto na forma quanto no conteúdo: de fora para dentro.

Fato é que o cinema nacional tem peso zero na formação de culturas, modismos, tendências, gostos, penteados. Esse bastão ficou com as novelas globais. Nosso cinema apenas reflete os tempos, não ilumina a sociedade com brilho próprio. “Isso se deve ao pouco acesso que as pessoas têm aos filmes brasileiros. Poucos são os filmes que conseguem chegar a um número expressivo de público, suficiente para causar algum real impacto na sociedade”, ratifica Mar-co Antonio Barbosa, crítico de cinema do Jornal do Brasil. Enquanto lá fora Humphrey Bogart põe um cigarro na boca e milhões de pessoas passam a destruir seus pulmões numa símile suicida, aqui o cinema nunca chegou a arreba-nhar seguidores.

Os fatos comprovam: na época da Vera Cruz, imitamos descaradamente o cinema norte-americano, reflexo da vontade cada vez maior de nossa gente também ter Sam como tio. O Cinema Novo imitou franceses e italianos da geração da revolta, com um Glauber idolatrado pela intelligentsia, mas incompreensível e chato

cinema 55

para as massas. Veio a ditadura e nos foi per-mitido apenas o lixo das pornochanchadas da Boca do Lixo, paradoxalmente fruto da censura: quando não se quer deixar pensar, opta-se por estimular os hormônios (uma fórmula eterna, é só ver os comerciais de cerveja: pense menos nos problemas, pense mais em sexo, consuma mais, viva o capitalismo e... viva o capitalismo!)

Com a abertura e a anistia, o cinema de ver-dade voltou de forma lenta, segura e gradual a tentar se reerguer. Ainda cambaleante, recebeu uma nova rasteira do mundo exterior com uma vingativa canetada collorida que devolveu as câmeras ao limbo dos depósitos empoeirados. Mas no horizonte brilhou o sol, e quando o real tornou-se real, as leis de incentivo incentivaram bolsos a se abrir, e esse movimento — novamen-te de fora para dentro — deu à luz a chamada “Retomada” do cinema nacional. E nos últimos quinze anos temos assistido ao que já foi feito de melhor por aqui. Tanto que, no primeiro semestre de 2009, a venda de ingressos para filmes nacionais foi 167% maior do que no ano anterior. Barbosa confirma: “Estamos num mo-mento muito interessante. Em 2009 devemos ter, em termos de bilheteria, o melhor ano desde a Retomada.”

Sotaque caipiraSim, os novos tempos fizeram bem ao nosso

cinema. Que não influenciou em nada os novos tempos. As manchetes dos jornais ditaram os argumentos de muitos dos melhores filmes dos últimos anos, como Tropa de elite e Cidade de Deus, e alguns não tão bons assim, como Carandiru. A alienação social pós-ditadura e o descrédito da esfera política junto à sociedade estimularam a realização de comédias bobinhas e alienadas, como Deus é brasileiro, A partilha, A mulher invisível e Se eu fosse você (e na carona deste sucesso comercial, sua sequência, que já tinha vendido mais de 6 milhões de ingressos até julho).

O mote aqui é seguir o hedonismo que pre-valece no século 21, desligar-se da vida dura

Page 4: Revista Releitura

e encharcar o cérebro com endorfinas, rindo, rindo, rindo... “O cinema nacional já percebeu a vertente da comédia romântica e das biogra-fias. Imagino que vai se solidificar uma fatia do mercado”, diagnostica Alexandre Plosk, roteirista de filmes como Bellini e a esfinge. “A principal característica do cinema brasileiro atual é a busca por mercado. Está virando um jogo de gente grande.”

Além disso, o movimento comercial de conquista dos grandes centros urbanos pela

cultura interiorana levou as classes A e B — agora adeptas das outrora proscritas

músicas do tipo forró e sertaneja — a afluir aos cinemas para ver filmes com sotaque caipira. Proliferaram Eu tu eles, Dois filhos de Francisco, Central do Brasil, O auto da Com-padecida, Lisbela e o prisioneiro, entre outros. Emblematicamen-te, filmes rodados por cineastas abastados do Sudeste, com atores globais imitando sotaque capiau.

As leis de incentivo e a calmaria financeira da época da Retomada

resgataram para o cinema quem esta-

va no exílio em produtoras de comerciais e em minisséries globais. A qualidade dos roteiros melhorou; cineastas adestrados por Sundance ou outros pólos internacionais aplicaram aqui o que aprenderam lá fora. Vimos nossos longas-metragens ganharem indicações e prêmios em grandes festivais. “Vejo um cinema cada vez mais voltado para o seu público e que descobriu que, quanto mais você fala sobre o seu país, mais você fala para o mundo”, afirma Paulo Fontenelle, diretor de Mauro Shampoo e Loki, e um típico representante da nova geração de cineastas brasileiros.

ModernidadeA estabilidade da economia nacional foi

o fator-chave para o sucesso e a viabilização da Retomada. Com o real, gastos de produção ficaram mais controlados, os cineastas puderam utilizar equipamentos tecnicamente considera-dos state of the art e a informática ficou mais acessível. Com tudo isso, a qualidade de som e imagem dos filmes tornou-se compatível com um público cada vez mais exigente. “Eu vejo um cinema que alcançou um apuro técnico compa-rável a qualquer cinema feito no exterior. Além disso, buscou-se histórias voltadas para a nossa

Fonte: Filme B

Os dez maiores públicos do cinema brasileiro detodos os tempos (em número de espectadores).

Dona Flor e seus dois maridos (1976): 10.735.305

O ébrio (1946): 8.000.000

Casinha pequenina (1963): 8.000.000

Jeca Tatu (1960): 8.000.000

A dama do lotação (1978): 6.508.182

Se eu fosse você 2 (2009): 6.000.000

O trapalhão nas minas do rei Salomão (1977): 5.736.775

Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977): 5.401.325

Dois filhos de Francisco (2006): 5.317.949

Os saltimbancos trapalhões (1981): 5.218.574

As leis de incentivo e a calmaria financeira

da época da Retomada resgataram para o cinema quem estava no exílio em produtoras de comerciais e em minisséries globais. A qualidade dos roteiros melhorou; cineastas [...]

aplicaram aqui o que aprenderam lá fora.

56 cinema

Page 5: Revista Releitura

realidade, com as quais o público passou a se identificar. Isso foi trazendo de volta as pessoas às salas e incentivando, assim, novas produções, novas parcerias e um aumento de mercado de trabalho”, diz Fontenelle.

Curioso é que todo esse avanço de qualidade técnica e de conteúdo do cinema nacional se deu de forma independente de antigas estratégias usadas para encher salas de exibição, como o uso de erotismo ou de roteiros apelativos. Pelo contrário, as novas histórias abordam questões sociais importantes e se preocupam em entreter toda a família, sem apelações. Isso é prova de amadurecimento entre os cineastas, que perce-beram que é uma história bem contada, e não meia dúzia de corpos nus, que fazem o sucesso de uma produção.

Ao mesmo tempo, a hibernação da inflação permitiu ao público investir mais de seu orça-mento mensal na compra de ingressos. As filas aumentaram e as produtoras e distribuidoras

passaram a lucrar com a produção nacional. Além disso, a indústria do home video deu um enorme impulso financeiro ao negócio, levando filmes a faturar mais nas locadoras que nas bilheterias.

Vale destacar que todos esses fatores de-cisivos para o atual momento de florescimento cinematográfico no Brasil são fruto de uma conjuntura socioeconômica favorável, que transformou nosso cinema de fora para dentro. De novo: de fora para dentro.

A vida imita a arte? Depende. Se estamos falando de cinema norte-americano, a resposta é “sim”. Mas, se nos referimos ao cinema nacio-nal, a resposta é: “Jamais.” Nosso cinema nunca teve voz, sempre foi um reflexo dos tempos, um espectador passivo da sociedade, um camaleão que adquire as cores do meio que o cerca. Se isso é positivo? Pense no que Hollywood fez com o planeta e o que as novelas globais fazem com o Brasil e você vai encontrar a resposta.

cinema 57

Período

Década de 1960

Década de 1970

Década de 1980

Décadas de 1990 e 2000

CaraCterístiCasda éPoCa

Politização

Ditadura, crise política e censura

Reabertura, anistia, redemocratização

Plano Real, estabilidade econômica

MoviMentos PrinCiPais

Cinema Novo

Pornochanchada

Não houve

Retomada

CaraCterístiCasdos filMes Intelectualizados econtestadores

Filmes de consumo fácil, com temáticas simples e de caráter sexual, muitas vezes de mau gosto

Relação mais direta entre pro-dutores culturais e o Estado, resultando em corporativismo, gestão ineficiente dos recursos e, sobretudo, em maus filmes, com raras exceções Diversidade de temas e enfoques; menos apelo à sensualidade; o filme passa ser um produto rentável; políticas de incentivo e empresas patrocinadoras

filMeseMbleMátiCos

O pagador de promessasDeus e o diabo na terra do solTerra em transe

A dama do lotaçãoO bem-dotado — O homem de ItuA superfêmeaAmor, estranho amor

Feliz ano velhoAnjos da noiteCidade ocultaPixote

Carlota JoaquinaO quatrilhoCentral do BrasilCidade de DeusDois filhos de FranciscoTropa de elite

Principais fases do cinema nacional

Page 6: Revista Releitura

Poderíamos abrir este espaço com uma re-flexão sobre algum artista interessante, a análise de uma escola ou algo assim.

Antes de tudo isso, porém, gostaria de convidar você a refletir sobre uma pergunta: para que a arte? Antes de respondê-la, faça a si mesmo outra pergunta: “Quantas exposições visitei ultimamente?”

Se pensássemos em uma resposta rápida para a primeira pergunta, poderia causar estra-nhamento dizer apenas que a arte não serve para nada. Essa resposta imediata, no entanto, pode ser o motivo de as pessoas não frequenta-rem os museus como outros espaços. Afinal, ir ao shopping, ao mercado ou a reuniões sociais tem sempre um objetivo claro: passear, comer, ver um filme, fazer compras ou apenas encontrar amigos. Mas o que levaria alguém a um lugar apenas para contemplar imagens?

Nos livros de história da arte vemos que ela começou praticamente com o ser humano. Há

uma necessidade de expressão desde o início dos registros nas cavernas, desde a simples marca da mão suja de pigmento até os próprios desenhos e registros de nosso dia-a-dia. Mas o homem pré-histórico não o fazia por puro acaso. Vemos a intenção do traço, e seria tolo acreditar que a ideia fosse apenas ritualizar as caçadas e crenças. Há nos registros das cavernas a impres-são do que é mais humano: a vida e a morte. Assim, é por necessidade de registrar o que é do humano que se desenha — e isso desde o início, quando, com um pedaço de carvão queimado, o homem pré-histórico desenhou nas paredes das cavernas.

Nessa perspectiva, a arte é a expressão do humano. Cada artista registra, em seu tempo e à sua maneira, imagens em que esse humano pode aparecer, pode ser contemplado. Quando paramos diante de um objeto de arte, para ler um livro ou ouvir uma música, estamos dedican-do um tempo à reflexão quanto à condição do humano. No entanto, vivemos em um tempo em que a expressão “time is money” é dominante; não há espaço para momentos de reflexão nos quais, contrariamente a essa ideia, ganha-se ao perder tempo.

Neste ponto, voltamos à segunda pergunta: a quantas exposições você foi ultimamente? Responder a essa questão afirmativamente é uma dificuldade porque, se o tempo de parar para olhar um quadro é um tempo de fazer nada, como justificar essa “perda de tempo”? Afinal, segundo o capitalismo, é preciso ser produtivo, ter objetivos claros e, sobretudo, otimizar o seu tempo. Mas o que o sistema não conta é que o que se perde dentro dele é o que na arte pode ser resgatado: o humano.

Assim, nesse espaço da revista Releitu-ra, vamos falar da arte, das exposições que estão acontecendo e sua importância para o crescimento de cada um. Pense que, às vezes, é preciso perder para ganhar.

GLAUCIANAGEMPsicanalista e artista plástica

AUDIÊNCIA

Para que a arte?Segundo o capitalismo, é preciso

ser produtivo, ter objetivos claros e, sobretudo, otimizar o seu tempo. Mas o que o sistema não conta é que o que se perde dentro dele é o que na arte pode

ser resgatado: o humano.

arti

go