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1 Soberania e administração do Novo Mundo: das leis Sovereignty and administration in the New World about the laws REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS NÚMERO 39 Luiz Antônio Bolcanato Custódio Centro Universitário Ritter dos Reis

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS NÚMERO 39

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Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

Sovereignty and administration in the New World – about the laws

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS

NÚMERO 39

Luiz Antônio Bolcanato Custódio Centro Universitário Ritter dos Reis

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, Porto Alegre, n. 39, p. 65-75, dez. 2018.

Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

Sovereignty and administration in the New World – about the laws

Luiz Antônio Bolcato Custódio*

REFERÊNCIA

CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Soberania e administração do Novo Mundo: das leis. Revista da Faculdade de

Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 39, p. 65-75, dez. 2018.

RESUMO ABSTRACT

O artigo aborda a evolução histórica da base legal

da Península Ibérica, desde o período romano até a

consolidação do Direito Indiano no século XVII, incluindo

as denominadas Leis das Índias (espanholas), assim como

as Ordenações Filipinas (portuguesas). O estudo buscou

identificar as origens, influências e os contextos sociais que

contribuíram para a definição de instruções, ordenações,

cédulas, cartas régias e leis que foram aplicadas na

América pelos reinos de Espanha e Portugal. Teve como

objetivo identificar as normativas e a base legal que deu

origem aos distintos padrões de ocupação e urbanização

das duas Coroas nos processos de conquista e colonização

empreendidos a partir dos descobrimentos.

This article covers the historic evolution of the legal

basis of the Iberic Peninsula, since Roman times to the

consolidation of Indian Rights in the 17th century,

including the so said Law of the Indies (Spanish) as well as

the Philippine Ordinations (Portuguese). This study

attempted to identify the origins, influences and the social

contexts that have contributed to the definition of

instructions, ordinations, bills, royal acts and laws that

have been applied in America by Spain and Portugal. This

investigation aimed to identify the norms and legal basis

that originated the different patterns of occupation and

urbanization of these two crowns along the conquest and

colonization processes that started during the Discoveries

Era.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS

História do Direito. Direito Indiano. Direito Urbano Ibero-

Americano.

History of Law. Indian Law. Ibero-American Urban Law

SUMÁRIO Introdução. Apresentação. Introdução. 1. Das leis. 1.1. Ordenamentos legais espanhóis. 1.2. Ordenamentos legais

portugueses. Epílogo. Conclusão. Referências.

* Professor titular na graduação, especialização e mestrado de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Ritter dos

Reis. Bacharel em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Planejamento Urbano e

Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor pela Universidade Pablo de Olavide.

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, Porto Alegre, n. 39, p. 65-75, dez. 2018.

Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

APRESENTAÇÃO

A pesquisa que deu origem a este artigo foi

efetuada no âmbito de estudo sobre

Ordenamentos urbanos e arquitetônicos no

sistema reducional Jesuítico Guarani do Paraguai.

Teve por objetivo aprofundar a origem e evolução

da base legal espanhola e portuguesa, a fim de

identificar as relações entre as normas gerais e as

realizações empreendidas na conquista e

ocupação da América no contexto das descobertas

que marcaram a Era Moderna. Da mesma forma

buscou entender, no campo específico, as

variáveis legais que influenciaram a política

urbanizadora das duas coroas e sua necessária

adaptação à realidade ambiental e humana

presentes no imenso continente americano.

INTRODUÇÃO

As navegações e as conquistas

empreendidas a partir do século XV pelos reinos

ibéricos - Portugal e Espanha - nações com

arraigados costumes medievais, contribuíram

decisivamente para a passagem da Europa à Idade

Moderna, ingressando no período posteriormente

denominado Renascimento. Renascimento

humano e cultural.

Ao longo do processo das descobertas se

apresentaram novas variáveis que determinaram a

necessidade de decisões peculiares para temas que

se constituíram em amplos desafios e que, em

alguns casos, provocaram longas discussões e

grandes polêmicas, envolvendo os dois

continentes.

Muitas das tradicionais disputas e

rivalidades entre as duas coroas passaram a

ocorrer num campo geográfico bem mais amplo,

transferindo-se ao cenário do Novo Mundo, local

que também foi palco de oportunidades para

aplicação de novos conceitos. Questões como

soberania e poder sobre os elementos

constitutivos do Estado - o território, a população

e o governo - para as quais ambas as coroas,

envolvidas com preocupações concorrentes,

como a luta pela reconquista da Península Ibérica

ocupada pelos mouros, por exemplo, não tinham

respostas previstas em sua estrutura organizativa

tradicional (Nunes, 2005, p. 1).

Enfrentar o novo e desconhecido mundo

gerou o início de processos amplos de

reestruturação tanto de Portugal quanto da

Espanha, e, como consequência, de grande parte

da Europa, ao longo do processo de expansão,

pela descoberta, paulatina, da extensão dos

territórios, da complexidade e de demandas

específicas, antes desconhecidas ou inexistentes.

Eram respostas necessárias à solução de questões

práticas, para as quais o tempo, a história e os

diferentes personagens envolvidos, com seu

conhecimento, capacidade ou visão, ajudaram a

construir, em diferentes paragens, desde as Índias

ocidentais - o Novo Mundo - até o outro lado, o

extremo oriente.

Sob a denominação genérica de Índias, os

espanhóis referiam-se basicamente ao Novo

Mundo, à América, enquanto os portugueses do

século XVI designavam, além da Península

Índica, todo o mundo oriental, desde o cabo da

Boa Esperança até o Japão, incluindo aí os

arquipélagos do Oceano Pacífico (Saraiva, 2005,

p. 155).

1 DAS LEIS

O processo gradual de descobrimentos das

coroas ibéricas e a sucessiva tomada de

consciência sobre sua extensão, riqueza e

importância impôs a necessidade de decisões

sobre novas variáveis nos campos do governo,

gestão e administração dessas possessões. O

enfrentamento paulatino das novas realidades

motivou a definição de um conjunto de

orientações políticas específicas para o âmbito

jurídico-administrativo, orientações destinadas a

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Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

atender as demandas peculiares das Índias, muitas

das quais não encontravam similaridade na

metrópole.

A origem e a trajetória das leis na península

ibérica estão vinculadas à sua própria história, ao

processo de sucessivas ocupações territoriais e às

conquistas por diferentes povos ou nações. Como

em todo o mundo ocidental, o direito de Portugal

e Espanha tem como referência o Direito

Romano, que, por sua parte, também foi fruto de

processo evolutivo próprio.

Um marco na história do Direito Romano é

o Código das Doze Tábuas, instituído nos anos

300, que, de acordo com a lenda, foi recolhido na

Grécia e aplicado em todo o mundo romano. Com

a expansão do império e a redefinição de suas

fronteiras, houve a necessidade de estabelecer

uma legislação única e uma língua comum para

poder governar.

No tempo de Adriano foi promulgado o

Edito Perpétuo e começaram a vigorar as leis ou

decisões do príncipe, independentes da aprovação

do Senado ou do povo, quando foi criada a figura

de cidadão romano aplicada a todos os habitantes

do império. Ao longo do tempo se sucederam

outros códigos e leis, que foram promulgadas para

atender às significativas mudanças políticas, de

hábitos ou interesses e necessidades temporais,

por determinação de diferentes imperadores.

Quando o império começou a ser

conquistado por povos considerados bárbaros, a

legislação vigente sofreu modificações, surgindo

o Código Gregoriano, aplicado a um império

governado por Césares e Augustos, uma

compilação de leis que foi ampliada pelo Código

Hermogeniano. Quando o cristianismo passa a

imperar sobre o paganismo e o império romano

foi dividido entre as capitais de Roma (Ocidente)

e Constantinopla (Oriente), ocorreram mudanças

substanciais nos costumes, que logo se refletiram

na legislação, sendo compiladas no Código

Teodosiano de 438.

Depois de um século com significativas

transformações políticas, surge em 529 o famoso

Corpus Juris Civilis − o Codex −, para o império

que subsistiu. Pouco depois são editadas as

Digesto ou Pandectas, que abrangem toda a

jurisprudência romana, com leis organizadas e

classificadas metodicamente. A obra das

Institutas foi um compêndio estruturado

basicamente para o estudo jurídico nas academias

romanas (ALMEIDA, 2004, VII – XXVIII).

Com as invasões bárbaras desde o princípio

do século V (409) e a queda do império romano,

os povos conquistadores passaram a estruturar

novos marcos legais aplicados às populações

vencidas. Na Lusitânia (Portugal), assim como

nas outras províncias da Espanha que foram

dominadas e não voltaram ao poder romano,

nunca o Código Theodosiano nem o Corpus Júris

tiveram força de Lei (ALMEIDA, 2004, VII –

XXII).

Na Itália, os Ostrogodos lançaram o Édito

de Teodorico nos anos 500. Na Gália Narbonesa

(França) e na Hispania (Península Ibérica), os

Visigodos publicaram a Lex Romana, conhecida

como Breviariun Alaricianun, ou Aniani, em 506,

para dirigir Celtíberos, Cantábricos, Lusitanos,

Fenícios, Cartagineses e Romanos, população

que se reconhecia e se regia como romana sob os

novos domínios (ALMEIDA, 2004, VII – XIII).

Em 652, ainda vinculado ao domínio dos

Visigodos, foi organizado outro código, o Forum

Judicum (Foro Juzgo), que foi classificado como

Romano-Gótico, utilizado na Espanha cristã por

muitos séculos, desconsiderando a legislação

muçulmana, que nunca foi aceita pelos povos

submetidos. O Foro Juzgo também foi utilizado

nos territórios portugueses, dependentes do Reino

de Leão, e serviu de base para legislações ibéricas

posteriores, além do Direito Canônico, que se

justapunha à legislação civil em função da

peculiar organização dos Estados depois da

dissolução do império romano, quando se

encontravam unidos o poder civil e o eclesiástico

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Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

e as decisões dos conselhos provinciais eram

observadas como se fossem promulgadas pelos

dois poderes, o do clero e o do rei (ALMEIDA,

2004, VII – XIV).

Por volta de 1250, no reinado de Fernando

III1, o Santo, ocorreram reformas que levaram ao

Código das Sete Partidas, que foi publicado no

reinado de Afonso X 2 , o Sábio, seu filho, em

1260. O código das Sete Partidas foi promulgado

em Castela e também teve força de lei em

Portugal, adotando o Corpus Júris do direito

romano, sendo considerado como as Leis

Romanas Traduzidas ao Espanhol (ALMEIDA,

2004, VII – XVI).

1.1 Ordenamentos legais espanhóis

Na Espanha, como referências precursoras

das novas diretrizes político-administrativas que

foram sendo estabelecidas com os

descobrimentos da Era Moderna, também

estavam as Sete Partidas que integravam do Livro

das Leis do corpo normativo visigótico medieval.

Elas serviram de base para a formulação dos

instrumentos jurídicos no contexto da expansão

ultramar e durante todo o processo colonial.

Quando a América foi descoberta, a

Espanha ainda não contava com estruturas

administrativas adequadas para exercer sua

soberania, nem possuía postura clara sobre seu

novo estatuto político, o que pouco a pouco foi

sendo organizado com a elaboração de um direito

administrativo adaptado à nova situação

(FERNÁNDEZ HERRERO, 1992, p. 139).

Entre os instrumentos jurídicos utilizados

estavam leis, as reais cédulas, as reais provisões

e as ordenações, o que se denomina como a

Constituição do Direito Indiano. As reais cédulas

1 Fernando III, o Santo (1201 - 1252), Rei de Portugal (–),

Rei de Castela (1217 - 1252) e de Leão (1230- 1252). 2 Afonso X, o Sábio (1221-1284), Rei de Portugal (–). Rei

de Castela e Leão (1252-1284). 3 Juan Rodríguez de Fonseca (1451-1524), eclesiástico e

político espanhol, colaborador dos Reis Católicos e

eram ordens regulamentadas destinadas a resolver

questões de importância jurídica, estabelecer

padrões de gestão, criar instituições, nomear

cargos, outorgar direitos pessoais ou coletivos e

ordens para ações concretas. As provisões reais

eram disposições jurídico-administrativas que

estavam entre as leis e as ordenações ou cédulas

reais. Eram normas regulamentares com

hierarquia inferior à das leis.

As questões das Índias começam a

estruturar-se formalmente a partir de 1493, com a

nomeação de Juan Rodríguez de Fonseca 3 ,

inicialmente nomeado para se ocupar da

organização da segunda viagem de Colombo. Em

1503, ele influenciaria na criação da Casa de

Contratação e, mais tarde, presidiria a Secretaria

das Índias.

Com o imperador Carlos V 4 importantes

medidas foram tomadas em relação à revisão da

política e da estrutura administrativo-institucional

indiana, com a transformação da Secretaria das

Índias −o conselho dos que entendem das coisas

das Índias− no Real e Supremo Conselho das

Índias, fundado por volta de 1523 para controlar,

a partir da Península Ibérica, toda a administração

indiana. Para Carlos V, a Espanha era indivisível

e isso incluía as Índias. No reinado da Casa de

Habsburgo se desenvolviam as instituições e a

legislação das Índias com uma política

centralizadora típica do absolutismo centralizador

(FERNÁNDEZ HERRERO, 1992, p. 154).

As Leis de Burgos, feitas para serem

aplicadas inicialmente apenas na ilha La Española

(República Dominicana e Haiti), o primeiro

assentamento europeu no Novo Mundo, logo se

estenderam para as demais e se constituem no

primeiro código legislativo específico para o

ordenamento jurídico americano e o primeiro

primeiro organizador da política colonial castelhana nas

Índias. 4 Carlos I de Habsburgo (1500 –1558) Rei da Espanha

(1516-1556), Coroas de Castela e Aragão. Carlos V (1520

– 1558), Imperador do Sacro Império Romano Germânico.

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Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

código civil que dispõe sobre os índios

(FERNÁNDEZ HERRERO, 1992, p. 28).

Em 1542 se promulgam as Leis Novas

−Leis e Ordenações novamente feitas por sua

Majestade para a governança das Índias e o bom

tratamento e conservação dos índios, em

substituição às Leis de Burgos. As Leis Novas

foram aplicadas de forma diversa em distintos

lugares sendo inclusive suprimidas em alguns, por

pressão dos encomendeiros 5 . Destaca-se entre

seus artigos um que obriga o encomendeiro à

criação de povoados de índios, com suas igrejas,

para onde deveriam ser transferidas suas antigas

moradas, que deveriam ser destruídas

(FERNÁNDEZ HERRERO, 1992, pp. 210-211).

A aplicação do conjunto de leis, normas e

regras produzidas nesse período pela Espanha

recebeu a denominação genérica de política

indiana. Sua consolidação começou a ser feita em

1562, no reinado de Felipe II6, e alcançou o início

do período da União Ibérica (1580 – 1640),

quando toda a Península esteve sob o governo dos

Habsburgos.

Nesse período se reorganizou o Conselho

das Índias com a nomeação, em 1571, de Juan de

Ovando7, como visitador. Ele foi responsável por

coordenar a recopilação do conjunto de

documentos legais em vigor sobre a legislação e

administração indiana. Ovando trabalhou na

preparação do Livro de governo espiritual e

temporal das Índias e nas Novas Ordenações de

Descobrimento, Povoação e Pacificação das

Índias, documento que procurou reunir em um

único código legislativo toda a normativa

referente à América Espanhola, sendo editado em

1573 (AGI, Ind. Geral, Leg. 247, lib. 29, Fol. 63-

93). A obra está estruturada em três partes: os

5 A encomenda (encomienda, esp.) era um sistema

hereditário que implicava a vinculação de trabalhadores

nativos às terras, pertencentes ou concedidas aos espanhóis.

O monarca outorgava um direito em prol de um súdito,

denominado encomendeiro, que autorizava que este

recebesse tributos ou trabalhos que os índios deviam pagar

ao rei, em troca dos serviços de conversão e civilização. A

descobrimentos por mar e terra, as novas

povoações e as pacificações.

A partir dessas iniciativas ficou evidente a

mudança de mentalidade em relação ao período

de Carlos V, também no que se refere à

denominação da empresa espanhola na América

que passou de conquista à pacificação, quando se

pedia paz e caridade com os índios (MORALES

FOLGUERA, 2001, p. 31).

Em 1571, foram redigidas as Ordenações do

Conselho das Índias e foi nomeado Juan López de

Velasco, astrônomo e cronista real, para recopilar

todas as notícias sobre as Índias com a intenção

de assentá-las no chamado Livro das Descrições.

O livro foi produzido a partir de um conjunto de

questionários sobre a legislação e administração

indiana realizada entre 1569 e 1577, cuja

consolidação ficou conhecida como Ordenações

de Descrição. Em 1577 foi assinada a Real Cédula

Instrução e memória para a formação das

relações e descrições dos povoados das Índias,

que incluía um questionário sobre geografia,

história, sociedade, urbanismo, cultura e um

apêndice denominado instrução e memória, com

os procedimentos metodológicos (MORALES

FOLGUERA, 2001, p. 30).

No que se refere aos questionários, o que foi

desenvolvido em 1584 buscou adaptar as

perguntas à nova orientação eclesiástica aprovada

no Concílio de Trento, que proibia a tradução da

Bíblia e de outros livros sagrados às línguas

indígenas, por temor de interpretações errôneas.

Isso reforçava o definido por uma cédula anterior,

que proibia a realização de estudos sobre línguas,

cultos ou religiões pré-hispânicas que eram

realizadas por frades católicos de ordens

mendicantes. As informações coletadas pelos

civilização, nesse caso, sempre compreendida como

cristianização, como evangelização (GUEVARA

AMORTEGUI, 1998, p.1). 6 Felipe II (1527 - 1598), Rei da Espanha (1556 – 1598),

Felipe I, Rei de Portugal (1580 – 1598). 7 Juan de Ovando (1492 - 1575), presidente do Conselho das

Índias (1571-1575).

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, Porto Alegre, n. 39, p. 65-75, dez. 2018.

Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

questionários deram origem às famosas Redações

Geográficas das Índias, de importância básica

para a reconstrução da história, da geografia e das

condições econômicas do primeiro século

colonial, assim como para documentar a

adaptação da população indígena ao regime

espanhol (MORALES FOLGUERA, 2001, p. 30).

O Conselho das Índias, as Secretarias de

Estado e as estruturas institucionais ultramarinas

decretaram milhares de disposições legais,

homologadas pelo rei, para regulamentar a

administração da América e das Filipinas. Os atos

eram inscritos em diferentes livros de registro,

tanto para temas gerais quanto para os específicos,

com cópias para os implicados. A profusão de

dados destinados a áreas geográficas específicas

ou sobre distintos temas gerou naturalmente

inumeráveis questões de superposição legal ou de

aplicação diferenciada entre eles, criando a

necessidade de uma organização sistematizada

(MORALES FOLGUERA, 2001, p. 31).

Em 1563, foi publicada na Audiência do

México a obra do seu ouvidor Vasco de Puga, que

ficou conhecida como Cedulário de Puga. Reunia

o conjunto de disposições que afetavam o vice-

reino de Nova Espanha, editadas a partir de 1525.

Em 1596, foi editado, depois de quatorze

anos de intenso esforço, o trabalho de reunião da

legislação aplicada nas Índias, desenvolvido por

Diego de Encinas, funcionário do Conselho das

Índias. O resultado, o volumoso Cedulário

Indiano, com a recopilação de provisões, cédulas,

capitulações, ordenanças, instruções e cartas

recebidas ou expedidas pelo rei e suas

autoridades, por sua edição reduzida e por críticas

recebidas em sua organização, ficou restrito ao

âmbito do Conselho das Índias (SÁNCHEZ

BELA, 1972, p. 63), (ESPANHA OSEJO, 2005,

8 Juan de Solórzano y Pereira (1575 - 1655) (1587-1655)

Jurista espanhol, escritor de Direito Indiano, ouvidor da

Real Audiência de Lima (1616), fiscal do Real e Supremo

Conselho das Índias (1628). 9 Carlos II de Habsburgo (1661 - 1700), Rei da Espanha

(1665 – 1700).

p. 61).

Em 1647, foi lançada em Madri a

monumental obra de Juan de Solórzano Pereira8,

a Política Indiana que trata do Direito Indiano −

o Índiarum Iure. Em 1680, foi concluído o

trabalho de reunião e consolidação de toda a

normativa legal espanhola em vigor, promulgada

na América e Filipinas. O resultado foi a

publicação da Recopilação das leis dos reinos das

Índias, sancionadas por Carlos II9, uma obra de

quatro tomos em nove livros. O trabalho,

inicialmente encarregado a Diego de Zorrilla 10

(1603 e 1609), foi concluído por Antonio de Leão

Pinelo11 e Juan de Solórzano Pereira, abrangendo

aspectos referentes à vida e administração do

conjunto de possessões ultramarinas, as quais se

procuravam ordenar com unicidade.

Posteriormente, no século XVIII, já com a

Casa de Bourbon, se fez um novo esforço para

enfrentar o ordenamento jurídico americano, por

meio de uma reorganização administrativa que

procurava fazer cumprir a legislação existente nos

vice-reinos ultramarinos, o que era dificultado por

diversos motivos, como desconhecimento da

legislação, leis que não correspondiam às

realidades ou necessidades locais, isolamento em

relação à metrópole e pela demora na circulação e

tramitação de documentos.

O conjunto de ordenamentos legais

desenvolvidos para a administração e gestão dos

territórios das Índias Ocidentais, ao longo de sua

história, ficou amplamente reconhecido sob a

denominação genérica de Leis das Índias.

No âmbito dos ordenamentos urbanos, as

Leis das Índias ficaram conhecidas porque

contemplam capítulo sobre a povoação das

cidades, vilas e povoados, onde são especificadas

as qualidades das terras escolhidas para povoar, a

10 Diego de Zorrilla, licenciado, ouvidor da Audiência de

São Francisco de Quito. 11 Antonio de León Pinelo (1594-1660), jurista espanhol,

ouvidor da Casa de Contratação de Sevilha e cronista maior

das Índias.

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, Porto Alegre, n. 39, p. 65-75, dez. 2018.

Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

localização e a acessibilidade, assim como a

composição dos povoadores. Também detalham

as características dos sítios, da estrutura urbana e

da constituição de seus elementos: a forma e

dimensão da praça, considerada como elemento

central dos assentamentos, a estrutura e o traçado

das ruas, a localização da igreja e do cabildo, com

principal protagonismo no período colonial.

1.2 Ordenamentos legais portugueses

O código visigótico das Sete Partidas foi

traduzido para o português no reinado de D.

Diniz 12 e continuou sendo aplicado como

referencial jurídico em Portugal, até a publicação

da primeira compilação portuguesa. Com a

independência dos reinos de Castela e Leão, por

iniciativa de D. João I13, foi iniciada a compilação,

promulgada por D. Afonso V14 (1444-1447), sob

a denominação de Ordenações Afonsinas. A

compilação consistiu em reunir as normas do

Fuero Juzgo, conhecido por código visigótico ou

Lex Romana Visigothorum, acrescido de forais e

leis gerais, aplicáveis em todo o reino português

(FERREIRA, 1951, T1).

As Ordenações Afonsinas foram

consideradas um acontecimento notável na

legislação e na jurisprudência dos povos cristãos,

mas não foram publicadas em seu tempo, por

terem sido criadas antes da invenção da imprensa.

O Código Afonsino, como código completo

dispondo sobre quase todas as matérias da

administração de um Estado, foi o primeiro que se

publicou na Europa (ALMEIDA, 2004: XXI).

Com os descobrimentos, também Portugal

teve necessidade de adaptar seu quadro legal, em

vigor desde o período medieval, à nova realidade.

O surgimento da imprensa, a necessidade de

12 D. Diniz de Portugal (1261-1325), Rei de Portugal e

Algarve (1279-1325). 13 D. João I (1357-1433), Rei de Portugal (1385 – 1433). 14 Afonso V, o Africano (1432-1481), Rei de Portugal

(1438-1481). 15 D. Manuel I (1469-1521) Rei de Portugal (1495 – 1521).

atualizar as normas e de incluir as Leis

extravagantes − leis editadas posteriormente às

compilações − assim como a intenção de marcar

o novo período, foram motivos determinantes

para que D. Manuel I 15 , deslumbrado com os

descobrimentos na Índia e América, determinasse

uma nova compilação legal, que recebeu o nome

de Ordenações Manuelinas. Sua primeira edição,

em cinco livros, foi lançada em 1514, e a

sistematização definitiva, em 1521, sendo sua

utilização obrigatória pelos Conselhos. Foi o rei

D. Manuel, com sua organização legislativa,

quem deu senão os últimos, mas os mais decisivos

golpes no Feudalismo (ALMEIDA, 2004, XXII).

No reinado de D. Sebastião 16 , outra

codificação foi estruturada para consumar o

triunfo do Corpus Júris e do absolutismo real, O

Código Sebastiânico, que foi promulgado em

1569 e continha apenas as leis extravagantes que

foram publicadas depois do Código Manuelino

(ALMEIDA, 2004, XXII).

Com a morte do rei D. Sebastião, na

Batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos (1578), e

de seu sucessor, o infante D. Henrique17, a Coroa

portuguesa foi para um dos netos de D. Manuel,

Felipe II, da Espanha. Com a extinção da Dinastia

de Avis e a união dinástica dos reinos de Castela

com Aragão, começa o período do Império

Espano-Português, conhecido como União

Ibérica (1580-1640), com a dinastia dos

Habsburgo (SARAIVA, 2005, p. 170).

Para expressar e coordenar adequadamente

a situação e o novo direito vigente, foi necessário

efetuar a revisão da legislação existente, no

reinado de Filipe I 18 . Isso gerou a sanção das

Ordenações Filipinas em 1595, publicadas em

1603, revogando as normas vigentes no reinado

de Filipe II 19 . O Direito Civil português das

16 D. Sebastião I (1554 - 1578) Rei de Portugal (1557 –

1578). 17 D. Henrique, o Infante (1394 – 1460) Rei de Portugal. 18 Filipe I de Portugal, Felipe II da Espanha. 19 Filipe II de Portugal, Felipe III da Espanha.

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Soberania e administração do Novo Mundo: das leis

Ordenações Filipinas contém dois elementos: a

legislação nacional, fruto das ideias, opiniões e

costumes da população portuguesa em diferentes

épocas, e a Romana, considerada como direito

comum (ALMEIDA, 2004, VII).

As ordenações Filipinas mantiveram uma

estrutura semelhante às das anteriores, e, apesar

de alteradas, se constituíram base do moderno

direito português.

Com os descobrimentos, as leis gerais de

Portugal, que estavam vigentes, excetuadas

situações peculiares, foram aplicadas no Brasil

colonial. O direito colonial era aplicado por juízes

ordinários, membros das câmaras municipais sem

formação jurídica; por juízes de fora, os

magistrados brasileiros do período colonial, pelos

ouvidores de comarcas, e pelos tribunais de

relação, instalados em Salvador e no Rio de

Janeiro. Alguns autores mencionam a utilização

da legislação espanhola sobre os ordenamentos

urbanos americanos, como referência, por

portugueses, durante a União Ibérica (REIS

FILHO, 2001, p. 130).

EPÍLOGO

O estudo de temas referentes às terras, às

gentes, às leis, à organização administrativa e às

relações entre Igreja e Estado, anteriores e

posteriores aos descobrimentos, na Europa e

América, é fundamental para entender seus

reflexos no processo de conquista, colonização e

ocupação do território americano pelas coroas

espanhola e portuguesa, de maneira individual ou

conjuntamente. Da mesma forma, é

indispensáveis para compreender aspectos

específicos como a política urbanizadora e os

ordenamentos urbanos resultantes.

Na América, além das disposições legais se

somaram as propostas dos tratados de arquitetura

produzidos a partir do Renascimento. Elas são

mais evidentes nos regramentos espanhóis que

aplicaram, em suas cidades e povoados de índios,

padrões regulares de assentamentos da Era

Moderna, ao longo de seus territórios. Essas

normativas foram inseridas em normativas como

instruções, ordenações, cédulas, cartas régias e

leis que foram adotadas, tanto pelas

administrações civis quanto pelas ordens

religiosas que participaram do processo de

conquista e colonização.

No sistema reducional Jesuítico Guarani do

Paraguai eles foram adaptados pelos padres e

aplicados como normas próprias, gerando

variantes peculiares estruturas, que desde então

adquiriram grande notabilidade.

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Recebido em: 11/05/2017

Aceito em: 18/10/2017

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