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Caderno de textos Jo ã o pessoa, 2013 Foto: thercles silva

Reinventar ser de esquerda

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Caderno de textos para o seminário "Reinventar ser de esquerda: Movimento Estudantil e Universidade no século XXI".

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Caderno de textos

João pessoa, 2013

Foto: thercles silva

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Um convite à reflexão e à luta!A educação pública tem sido alvo de diversos ataques e precarizações ao longo das últimasdécadas. O projeto neoliberal gerido no final do século XX se alastra, com apoio efinanciamento dos governos, sobre os setores sociais, incluindo educação, saúde, previdênciae assistência social, reduzindo o espaço público e transferindo direitos sociais para a lógica demercado.

O processo de mercantilização iniciou-se mais intensamente a partir da década de 80, com aascensão do neoliberalismo. Na década de 90, consolidou-se ao assumir os contornos de umareforma universitária, operacionalizada pelo Governo Federal liderado pelo PSDB, com cortesprofundos de investimentos e tentativa de privatização.

Atualmente, o Governo Federal, sob a direção do Partido dos Trabalhadores (PT), temempreendido uma lógica de expansão sem o correlato investimento necessário aodesenvolvimento de uma educação humana, crítica e emancipatória. O aumento da relaçãodiscente/docente, ocasionado por programas como o REUNI, precarizou as relações detrabalho no meio acadêmico. A indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão tem seinviabilizado cada vez mais. As instituições de ensino superior (IES) tem se tornado centros deensino voltado à capacitação de mão-de-obra para o mercado de serviços, de maneira a inseriro Brasil nas cartilhas elaboradas pelo Banco Mundial sobre educação nos países da periferiado capitalismo.

O problema não está na expansão ou na entrada de mais estudantes na universidade, mas simna forma como a expansão tem sido feita e aos interesses a que tem servido.

No mesmo sentido, programas como ProUni e FIES têm retirado dinheiro do setor público etransferido ao setor privado da educação, que já representa mais de 85% do ensino superiorem nosso país. Esse processo, no entanto, não se dá sem resistência: no ano de 2012,vivenciamos uma das maiores greves da educação na história do Brasil, com participação ativade todos os setores da universidade: professores/as, estudantes e servidores/as. Nas ruas, ajuventude exige 10% do PIB para a educação pública enquanto bandeira que se contrapõe aoprojeto de expansão sem investimento e mercantilização de direitos.

Nossa tarefa dentro da universidade pública é produzir conhecimento crítico e comprometidocom um projeto de transformação radical da civilização capitalista. Mais do que isso,precisamos lutar para que sejam derrubados os muros que nos cercam das periferias urbanase colocar à disposição das demandas populares a estrutura da universidade pública. Aliadosaos diversos movimentos sociais, populares e sindicais, acreditamos na disputa dos rumos dauniversidade pública como parte da disputa por outro mundo possível.

Queremos construir uma alternativa para o movimento estudantil na UFPB dialogando sobre osdesafios da esquerda, da juventude e do movimento estudantil no século XXI. Construir ummovimento estudantil classista, anticapitalista e libertário é tarefa que se coloca à juventudecombativa!

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Nosso país esteve à frente das lutas políticas e sociais na década de 1980, conseguindoretardar a implantação do neoliberalismo no Brasil fazendo com que a chamada “décadaperdida” fosse, para os movimentos sociais e políticos populares, o seu exato inverso.

Nesses anos, floresceu um forte sindicalismo de oposição. As greves caminharam em sentidoinverso às tendências regressivas presentes no mundo ocidental. Nasceram incontáveismovimentos sociais. Ampliou-se a oposição à ditadura militar. Desenhou-se uma AssembleiaNacional Constituinte e vivenciamos, em 1989, um processo eleitoral que dividiu o Brasil emdois projetos distintos.A década seguinte foi avassaladora: neoliberalismo, reestruturação produtiva, financeirização,desregulamentação, privatização e desmonte. Quando ocorreu a vitória política de 2002, com aeleição de Lula, o cenário era profundamente diverso dos anos 1980. Como a história é cheiade surpresas, caminhos e descaminhos, a eleição de 2012 acabou por se converter na vitóriada derrota.Oscilando entre muita continuidade com o governo de FHC e pouca mudança, mas nenhumacom substância, o primeiro mandato de Lula terminou de modo desolador, o que o obrigou afazer mudanças de rota, sempre com muita moderação e nenhuma confrontação. BolsaFamília e altíssimos lucros bancários; aumento do salário mínimo e enriquecimento crescenteno topo; nada de reforma agrária e muito incentivo ao agronegócio.O nosso homem duplicado renasceu das cinzas em seu segundo mandato. Terminou ogoverno em alta: ao mesmo tempo em que fez seu sucessor, desorganizou a quase totalidadedo movimento opositor. Era difícil opor-se ao ex-líder metalúrgico, cuja densidade forasolidamente construída nos anos 1970 e 80.Quem se lembra de sua situação em 2005, atolado no mensalão, e dele se recorda no fim doseu mandato, em 2010, sabia que estava à frente de uma variante de político dos maissalientes. Se Dilma, sua criatura política –uma espécie de gestora de ferro– soube vencer aseleições, pudemos aqui, neste mesmo espaço, lembrar que algo maior lhe faltava: a densidadesocial, que sobrava em Lula.Com paciência, espírito crítico e muita persistência, os movimentos populares haveriam desuperar esse difícil ciclo. Acabariam por perceber que, para além do crescimento econômico,do mito falacioso da “nova classe média”, há uma realidade profundamente crítica em todas asesferas da vida cotidiana dos assalariados. Na saúde pública vilipendiada, no ensino públicodepauperado, na vida absurda das cidades, entulhadas de automóveis pelos incentivosantiecológicos do governo do PT. Na violência que não para de crescer e nos transportespúblicos relativamente mais caros (e precários) do mundo.Na Copa “branqueada” sem negros e pobres nos estádios que enriquecem construtoras e que,no caso do Engenhão, está desmoronando; nos assalariados que se endividam no consumo eveem seus salários se evaporar; no fosso colossal existente entre as representações políticastradicionais e o clamor das ruas. Na brutalidade da violência da Polícia Militar de Alckmin eHaddad. Isso ajuda a compreender por que o movimento pelo passe livre encontra tantaacolhida na população. Estamos só começando.RICARDO ANTUNES, 60, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual deCampinas (Unicamp) e autor de “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, Vol. II” e “OsSentidos do Trabalho”

Mauro Iasi*

O mundo se move sob nossos pés, as velhas formas se rompem, surgem novas e ascontradições que se acumulavam explodem buscando o caminho necessário, encontrando suaforma de expressão.

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A explosão social que abalou o país brotou do terreno escondido das contradições. Lá paraonde se costuma exilar as contradições incômodas: a miséria, a dissidência, a alteridade, afeiúra, a violência. Germinaram no terreno do invisível, escondido e escamoteado pela neblinaideológica e o marketing cosmético que epidermicamente encobre a carne pobre da ordemcapitalista com grossas camadas de justificativa hipócrita, de cinismo laudatório de umasociabilidade moribunda.

As autoridades, os especialistas, sociólogos, politicólogos e jornalistas estão perdidos dandorazão à dissertativa atribuída à Marx segundo a qual “a história só surpreende quem de histórianada entende”. Declamam seu espanto querendo acreditar na extrema novidade, pois só istoexplicaria sua brutal ignorância. No terreno da história nada é absolutamente novo.

Se há algo que é muito conhecido para quem não se limita ao presentismo, oufoucaultianamente à aléa singular do acontecimento, é a insurreição, a explosão de massas.Caso tenham preconceitos contra nossa tradição marxista e se recusem a ler as brilhantesanálises de Lênin em Os ensinamentos da insurreição de Moscou, ou de Trotski em A arte dainsurreição, pode se remeter aos estudos de Freud em A psicologia de massas e análise doego, ou a magistral análise de Sartre em A critica da razão dialética.

As massas explodem em uma dinâmica que altera profundamente o comportamento dosindivíduos isolados que pacificamente se dirigiam diariamente ao matadouro do capital, emordem, pacificamente, saindo de suas casas humildes, pegando ônibus superlotados eprecários, sendo humilhados pela polícia, vivendo de seus pequenos salários, vendo a orgiaostensiva do consumo e tendo que “subviver” com o que não tem.

Os jovens do Movimento Passe Livre (MPL) estão de parabéns por uma luta que não vem deagora (lembremos Goiânia e Florianópolis) e por conseguir dar consistência a esta luta e aoconfronto que os levou a dobrar a prepotência dos que afirmavam de início que a tarifa nãoseria rebaixada. As manifestações contra o aumento da passagem, no entanto, são apenas odesencadeador de algo muito maior. O movimento funcionou como um catalisador de umprofundo descontentamento que estava soterrado pela propagando oficial.

Analisemos, então, as determinações mais profundas que se apresentam nesta explosão social.

Em primeiro lugar as manifestações expressam um descontentamento que germinava e queera alimentado pela ação que queria negá-lo, isto é, pela arrogância de um discurso oficial queinsistia em afirmar que tudo ia bem: a economia estava bem, não porque garantia a produção ereprodução da vida, mas por que permitia a reprodução do capital com taxas de lucrosaceitáveis, o Brasil escapara do pior da crise internacional a golpes de pesados subsídios àsempresas monopolistas, a inflação estava “entorno do centro da meta”, o Brasil recebiaeventos esportivos e se transformava em um canteiro de obras, os trabalhadores apassivadose suas entidades amortecidas pelo transformismo e pela democracia de cooptação se rendiamao consumo via endividamento, a governo se regozijava com índices de aceitação quepareciam sólidos.

Acontece aqui um velho e conhecido fenômeno. A vida real não combina com o discursoideológico. A inflação entorno da meta explodia na hora das compras, de pagar o aluguel, depagar as contas, de pegar um ônibus. As delicias do consumo voltavam na forma de dívidasimpagáveis. O acesso ao ensino vira o pesadelo da falta de condições de permanência. Oemprego desejado se transforma em doença ocupacional. O orgulho de receber eventosesportivos internacionais se apresenta na farra do boi de gastos enquanto a educação, a saúde,a moradia, os transportes ficam às moscas.

O estopim foi o aumento das passagens e aqui se apresenta um elemento altamenteesclarecedor. Nas primeiras experiências de governos municipais do PT o enfrentamento da

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questão do transporte se deu através da municipalização deste serviço. Em São Paulo chegou-se a falar e tarifa zero no governo de Erundina. Em uma segunda geração de governos petistas,todas as empresas municipais foram devolvidas aos empresários que exploravam o setor (eexplorar é um termo preciso). Coincidentemente os empresários do transporte se tornaram umadas principais fontes de financiamento das campanhas deste partido.

Entendendo que a explosão é perfeitamente compreensível como forma de manifestação deum profundo descontentamento, sabemos que é mais que isso. Representa, também, oesgotamento de uma forma que tem sido muito eficaz de domínio e controle político.Cultivamos um fetiche pela forma democrática como se ela em si mesmo fosse a solução enfimencontrada pela humanidade para superar um dilema histórico da ordem burguesa que aacompanha desde o nascimento e que não tem solução dentro da sociedade capitalista: oabismo entre sociedade e Estado.

A sociedade se representa através de políticos eleitos que formam as esferas decisórias,legislativas ou executivas, por meio do voto que transfere o poder para um conjunto depessoas que supostamente expressam as diferentes posições e interesses existentes nasociedade. Abstrai-se, desta forma, o quanto os reais interesses políticos e econômicos emjogo deformam esta suposta límpida representação resultando na consagração do poder dasclasses dominantes, confirmando a dura descrição e Montesquieu segundo a qual “a Repúblicaé uma presa; e sua força não passa do poder de alguns cidadãos e da licença de todos”, ou naainda mais incisiva afirmação de Marx (e depois Lênin): a democracia é o direito dosexplorados escolher a cada quatro anos quem os representará e esmagará no governo.

Desta maneira é compreensível o espanto daqueles que acreditavam que estava tudo bem emuma sociedade marcada pelas contradições da forma capitalista e de sua expressão política,ignorando as profundas e conhecidas contradições que tal ordem gera inevitavelmente.

Uma contradição, no entanto, encontra sempre uma forma particular para se expressar. Aforma como se expressaram as contradições descritas também é perfeitamente compreensível.

O último período político foi marcado por uma profunda despolitização dos movimentos sociaise dos movimentos reivindicativos da classe trabalhadora. Em dez anos de governo ostrabalhadores não foram uma vez sequer chamados a participar ativa e independentemente dacorrelação de forças políticas em defesa de seus interesses e no terreno que lhe é próprio: asruas, as praças, a cidade. Optou-se por uma governabilidade sustentada por alianças decúpula nos limites da ordem política existente e do presidencialismo de coalizão, mantendoseus métodos, isto é, oferta de cargos, liberação de verbas e facilidades. Não é de seestranhar que em dez anos não se tenha implementado uma reforma política.

Em nenhum momento no qual uma demanda das massas trabalhadoras (reforma agrária,previdência, direitos trabalhistas, garantia de serviços públicos, etc.) que se chocava com aresistência dos setores conservadores foi resolvida chamando os trabalhadores a se manifestare inverter a correlação de forças desfavorável às mudanças. Pelo contrário, via de regra, assoluções conservadoras foram propostas pelo governo que se pretendia popular e se pedia àsmassas que se calassem e dessem, como prova de sua infinita paciência, mais um voto deconfiança em suas lideranças que deles se alienavam.

Quando os trabalhadores se chocavam com a orientação governista, como na última greve dosprofessores e dos funcionários públicos federais, são tratados com arrogância e prepotência.

Por isso, não nos espanta que a explosão social se dê da forma como se deu e traga oselementos contraditórios que expressa: despolitizada e sem direção, ainda que com alvosprecisamente definidos: os governos e aquilo que representa a ordem estabelecida.

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A despolitização se expressa de varias formas, mas duas delas se apresentam com maisevidentes: a violência e antipartidarismo. Comecemos pela violência.

Quanto à forma violenta que tanto espanta os ardorosos defensores da ordem temos queconstatar que ela não é homogênea. Há pelo menos três vertentes da violência. Uma delas,difusa e desorganizada, é aquela que expressa a raiva e o ódio contra uma ordem que oprime,não por acaso esta se dirige contra as expressões desta ordem, seja os prédios públicos queabrigam as instituições da ordem política burguesa (sedes de governo, parlamentos, prédios dojudiciário, etc.), mas também os monopólios da imprensa, da televisão, assim como os templosdo consumo ostensivo. Esta manifestação é compreensível e até, em certa medida, justificada.Marx e Engels, ao analisar a situação alemã de 1850 (Mensagem do Comitê Central à Liga dosComunistas) dizem a respeito:

Os operários não só não devem opor-se aos chamados excessos, aos atos de vingançapopular contra indivíduos odiados ou contra edifícios públicos que o povo só possa relembrarcom ódio, não somente devem admitir tais atos , mas assumir sua direção.

Deixemos aos patéticos novos defensores da “ordem e da tranqüilidade” a defesa do fetichedo patrimônio público, uma vez que é esta “ordem” é que tem garantido às classes dominantese seus aliados de plantão a “tranqüilidade” para saquear e depredar o verdadeiro patrimôniopúblico.

Há uma segunda vertente da violência. Jovens das periferias, dos bairros pobres, das áreaspara onde se expulsou os restos incômodos desta ordem de acumulação e concentração deriqueza, que são cotidianamente agredidos e violentados, estigmatizados, explorados eaviltados, que agora, aproveitando-se do mar revolto das manifestações expressam seulegítimo ódio contra esta sociedade hipócrita e de sua ordem de cemitérios. Sua forma violentaem saques e depredações assustam, é verdade, mas a consciência cínica de nossa épocapassou a assumir como normal as chacinas, a violência policial. Pseudointelectuais chegarama justificar como normal que a policia entre nas favelas e invada casas sem mandato, prenda,torture e mate em nome da “ordem”; ou seja, a violência só é aceitável contra pobres, contrabandidos, contra marginais, mas é inadmissível contra lixeiras, pontos de ônibus, bancos evitrines.

Há uma terceira violência e esta não é espontânea e emocional como as duas primeiras: aextrema direita. Ela, lá dos esgotos para onde foi jogada pela história recente, se sentiatambém ofendida e agredida, evidente que não pela ordem burguesa e capitalista que sempredefendeu, mas pelo irrespirável ar democrático que acertava as contas com nosso passadotenebroso, como a denúncia contra o golpe de 1964 e seus sujeitos, com as comissões daverdade, mas sobretudo o mal estar desta extrema direta com um regime político que permite aorganização dos trabalhadores e sua expressão, mesmo nos precários limites de umademocracia representativa de cooptação. Assim como os movimentos sociais e de classe sedespolitizam, a direita também. Para a extrema direita não interessa que a atual forma políticapermita aos monopólios seus gigantescos lucros e à burguesia sua pornográfica concentraçãode riquezas. A burguesia que já se serviu da truculência para garantir as condições deacumulação de capital, hoje se serve da ordem e tranquilidade democrática para os mesmosfins e neste contexto não há função clara para seus antigos cães de guarda.

Estes não suportam nos ver andando com nossas camisetas que lembram nossos mártires,nossas bandeiras que recolhem o sangue de todos que lutaram, nossas firmes convicções quenos mantêm nas lutas diárias ao lado dos trabalhadores em defesa da vida, mas com o olharcerteiro no futuro necessário e urgente que supere a ordem do capital por uma alternativasocialista. Por isso nos atacam, usam das manifestações para acertar suas contas com a

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esquerda, de forma organizada, intencional e, certamente, com apoio formal ou informal dasaparatos de repressão.

A ação da extrema direita encontra respaldo na despolitização das massas, principalmente naexpressão gritante do antipartidarismo. No entanto, neste caso temos que ter cautela aoanalisar os fatos. O comportamento contra os partidos é compreensível, ainda que nãojustificado. Compreensível por dois motivos: as massas, graças a triste experiência petista,estão cansadas de partidos que usam as demandas populares para eleger seus vereadores,deputados e presidentes que depois voltam as costas para estas demandas para fazer seusjogos e alianças para manter em seus cargos; também, acertadamente, não podem aceitar quecertos partidos pulem na frente de manifestações e movimentos para tentar dirigi-los sem alegitimidade de ter construído organicamente as lutas.

Tal atitude, portanto, compreensível, é injustificável pelo fato que ao mirar os partidos deesquerda erra pelo fato que foram os militantes dos partidos de esquerda e dos movimentossociais que mantiveram no pior momento da correlação de força desfavorável as lutas entornodas demandas populares, por moradia, na luta pela terra, contra a reforma da previdência,contra as privatizações, em defesa da educação e da saúde públicas, contra os gastos com oseventos esportivos, contra as remoções. E o fizeram em um contexto em que as massasestavam submetidas a um profundo apassivamento e no qual o transformismo do PT empartido da ordem isolava a esquerda e a estigmatizava. Neste sentido os partidos de esquerdacomo o PCB, o PSTU, o PSOL e outras organizações de esquerda, assim como osmovimentos sociais e sindicatos, não precisam pedir licença a ninguém para participar de lutase manifestações sociais, conquistaram legitimamente este direito na luta, com sua coerência ecompromisso.

Para onde vão as manifestações? Alguns ingenuamente, ou de forma interesseira, acreditamque a mera existência da ação independente de massas configura em si mesma um fatorpositivo de transformação. Infelizmente, a história também nos traz elementos para questionaresta tese, alguns exemplos da história muito recente. Quando da derrocada do leste europeuadvinda do desmonte da URSS, muitos saudaram como a possibilidade de uma revoluçãopolítica que retomasse o rumo interrompido das experiências socialistas, mas o que vimos foi arestauração capitalista. Agora saúdam a chamada “primavera árabe”, mas o que temos visto, ea Líbia e o Egito são exemplos paradigmáticos, é o aproveitamento dos monopólios na partilhado botim de países estratégicos isolando mais uma vez os setores populares.

O sentido e futuro das manifestações estão em disputa e temo em dizer que a esquerdaestá perdendo esta disputa para um sentido perigosamente de direita e conservador.Recentemente afirmei que a experiência política do último período, ao contrário do que algunsesperavam, havia produzido um desmonte na consciência de classe e se expressava em umavirada conservadora no senso comum. Este processo ficou evidente nas manifestação, paraalém da intenção de seus originais promotores. O produto multifacetado das contradiçõesmescla nas manifestações elementos de bom senso e senso comum, criticas difusas àsmanifestações mais evidentes da sociabilidade burguesa em que estamos inseridos ao lado dereafirmações de valores próprios desta mesma ordem, o que seria natural se entendermos oprocesso de despolitização descrito.

Quando os adeptos do espontaneismo alardeiam a virtude de uma manifestação sem direção eque hostiliza partidos se esquecem é que se você não tem uma estratégia, não se preocupe,você faz parte da estratégia de alguém. Além da evidente eficiência dos monopólios dacomunicação, o “partido da pena” nos termos de Marx, em pautar o movimento selecionandoas bandeiras que interessa à ordem (luta contra a corrupção, nacionalismo, diminuição deimpostos, etc.), outros elementos muito perigosos se apresentam.

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Um cartaz na manifestação no Rio dizia: se o povo precisar as Forças Armadas estão prontaspara ajudar. Significativamente os militantes antipartido não destruíram esta faixa, talvezporque não sabem que existe além do partido da pena o “partido da espada”. Em nota dosclubes militares da marinha, exército e aeronáutica, os militares depois de afirmar que asmanifestações expressam majoritariamente a indignação com o descaso das autoridades comas aspirações da sociedade e que diante da dos vícios e omissões que se repetem chegou ahora de se “manifestar clamorosamente” e não aceitar “ser conduzido, resignadamente, comogrupo ingênuo” dando “um basta à impostura e à impunidade”. A nota dos militares terminacom uma clara provocação e cita Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

A direita só germina e cresce no vazio deixado pela esquerda. A ilusão de um desenvolvimentocapitalista capaz de resolver as demandas populares e garantir lucros aos capitalistas,sustentado por um governo de coalizão com a burguesia desarma os trabalhadores e a direitaocupa o terreno. Há um evidente cheiro de golpe no ar. A embaixadora dos EUA que estava naNicarágua na época dos contras, na Bolívia quando da tentativa de dividir o pais, no Paraguaiquando do golpe contra Lugo, chegou ao Brasil.

Ao prefaciar o livro sobre de Leandro Konder sobre o fascismo republicado em 2009, diziaalertando para a atualidade do risco desta alternativa contra aqueles que achavam que estefenômeno estaria condenado ao passado:

Capital monopolista em crise, imperialismo, ofensiva anticomunista, criminalização dosmovimentos sociais, decadência cultural, hegemonia da política pequeno-burguesa emdetrimento da política revolucionária do proletariado, irracionalismo, neo-positivismo, misticismo,chauvinismos nacionalistas acompanhados ou não de racismo... Não se enganem. Só possoalertar, como certa feita o fez Marx: “esta fábula trata de ti”.

A explosão de massas deu o recado: olha só meu coração, ele é um pote até aqui de mágoa,qualquer desatenção, faça não... pode ser a gota d’água.

*Mauro Iasi é membro do Comitê Central do PCB, professor adjunto da Escola de ServiçoSocial da UFRJ, presidente da ADUFRJ e pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos ePesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o nãoser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, àsquartas.

EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NOCAPITALISMO DEPENDENTE

Roberto Leher (UFRJ)*

Nações situadas na classe de renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitara desenvolver a capacidade para acessar e assimilar novos conhecimentos(p.38, grifos nossos). World Bank: La Educación Superior en los países endesarrollo: peligros y promesas, 2000)

Embora seja um propósito mais antigo, é a partir de 1994 quando o Banco Mundialpublicou o seu já célebre documento “lições derivadas da “experiência”1, que as políticas para a

1 . WORLDBANK. Higher Education: the Lessons of Experience (1994).

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educação superior de muitos países latino-americanos, em conformidade com as suas fraçõesburguesas dominantes, passaram a perseguir o objetivo de desconstituir o chamado modeloeuropeu de universidade. Conforme o Banco Mundial, a indissociabilidade entre ensino epesquisa e a gratuidade das instituições públicas, os traços mais distintivos deste modelo,seriam anacrônicas com a realidade latino-americana.

As estatísticas sobre a natureza das instituições de ensino superior latino-americanasorganizadas pela UNESCO e os levantamentos do INEP, no caso brasileiro, confirmam que, defato, o modelo universitário deixou de ser reivindicado pelos governos locais. Os indicadoresconfirmam que nas duas últimas décadas ocorreu uma forte diversificação de instituições2 deensino superior na região, sobretudo no setor privado. Proliferaram todos tipos de instituições:tecnológicas, isoladas, centros universitários e até mesmo as universidades privadas, emvirtude da flexibilização dos critérios para o credenciamento como universidade, sãoatualmente, via-de-regra, unidades de ensino quase que completamente desvinculadas dapesquisa, nada tendo de emulação humboldtiana3. A natureza jurídica dessas instituições eorganizações também se alterou, predominando, largamente, instituições com fins lucrativos denatureza empresarial frente às ditas sem fins lucrativos4.

A despeito das profundas mudanças nas instituições universitárias públicas, tambémalteradas pela mercantilização e pela hipertrofia das atividades de serviços, a grande maioriadestas instituições seguiu ofertando cursos de graduação plenos, inclusive ampliando o tempode formação em diversas carreiras.no bojo de longas reformas curriculares A indissociabilidadeensino, pesquisa e extensão, embora nem sempre sistemática, se mantém como uma práticaestabelecida nas públicas, por meio de programas como o Programa Especial de Treinamento(CAPES/SESU-MEC), o Programa de iniciação científica (PIBIC/ CNPq), monitorias e mesmopor atividades docentes em que a pesquisa desenvolvida nos programas de pós-graduaçãorepercute nas salas de aula da graduação.

As resistências das universidades públicas aos projetos que pretendem imprimir umcaráter aligeirado e massificado sem qualidade têm gerado críticas sistemáticas por parte dossucessivos governos brasileiros. Todas as políticas de Collor de Mello a Lula da Silva, inclusive,são enfáticas a esse respeito. A acusação mais comum é que as universidades públicas sãoburocráticas, conservadoras, elitistas e vivem protegidas por uma redoma de vidro que impedeque se tornem instituições “integradas” com a sociedade, como se pudesse existir instituiçãosocial fora da sociedade!

Mas essa resistência – expressa em atos acadêmicos em prol da concepçãouniversitária e por mobilizações e greves – pode estar sendo quebrada pelas sucessivasmedidas adotadas pelo governo Lula da Silva que, diferente de Cardoso, tem obtido apoio maisativo por parte das administrações universitárias. Em geral, todos os projetos governamentaisque pretendiam “harmonizar” os cursos de graduação das públicas com os das privadas, tendoo padrão destas últimas como referência, foram compreendidos como heterônomos e nãocontaram com o apoio ativo das administrações.

2 O exame das reformas do Estado e da desregulamentação do setor privado evidenciam quemuitas universidades seriam melhor definidas como organizações de negócio e não instituições sociais.Marilena Chauí ofereceu uma importante contribuição ao debate em A universidade operacional (Folhade S.Paulo, Caderno Mais, em 9 de maio de 1999)..3 . Relativo ao modelo apregoado por Humboldt na universidade de Berlim (1809), referenciadona indissociabilidade entre ensino e pesquisa, gratuita e mantida pelo Estado. A instituição nos termos deHumboldt, deveria ser autônoma, possuindo prerrogativa do autogoverno e da autonormação.4 . Ver: Roberto Leher “A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’”,Universidade e Sociedade, n. 39, DF: ANDES-SN, 2007.

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A partir do mandato de Lula da Silva a realidade é outra. Projetos que outrora foramapresentados pelo MEC e recusados pelas universidades voltaram à baila, mas agoraassumidos como se de autoria das próprias universidades, retirando o MEC do foco do conflito.Assim, diferente dos períodos anteriores em que os embates eram externos à universidade, oque facilitava a unidade da comunidade acadêmica, atualmente, o cerne dos conflitos se voltapara dentro das instituições, ampliando o grau de liberdade do governo para levar adiante asua agenda.

Outro aspecto novo a ser considerado é que setores mais empenhados no “capitalismoacadêmico”5 têm assumido um posicionamento mais ativo, protagônico, nesse processo, justopor vislumbrarem a possibilidade de mais e melhores negócios em uma universidademassificada e aligeirada, em especial por meio de cursos a distância. A este setor se somamdocentes que apóiam a contra-reforma como uma tarefa política, por se sentiremcomprometidos partidária ou ideologicamente com o governo de Lula da Silva, posicionamentopresente em militantes petistas e de outros partidos da base governista (PC do B, PDT, PMDB,PP, PR, PSB), de distintas forças presentes na CUT e na direção majoritária da UNE.

Em que consiste essa reestruturação das universidades federais como instituições queofertam cursos aligeirados? Quais as medidas que pretendem implementar esse modelo? Oque é novo em relação às iniciativas que buscavam implementar cursos de curta duração?

Duas medidas recentes – estreitamente interligadas – têm o objetivo de modificar aforma de graduação, tornando-a mais breve, para que as universidades federais possamampliar, sem recursos adicionais, a oferta de vagas: o projeto “universidade nova” e oprograma de reestruturação das universidades federais (REUNI).

Inicialmente, o artigo analisa a Universidade Nova, por ser um projeto mais detalhado eexplícito em relação ao propósito de aligeirar a formação universitária. A seguir, o artigo discuteo REUNI, a materialização do projeto universidade nova, estabelecendo, ao final, nexos com opadrão de acumulação em curso no país.

Universidade Nova

O projeto Universidade Nova, apresentado originalmente em um seminário promovidopela UFBa6, pretende promover uma “nova arquitetura curricular” nas universidades,promovendo um ciclo básico, curto, de natureza não profissional, que garantiria aos concluintes

5 . SLAUGHTER, S.; LESLIE, L.L. Academic capitalism: politics, policies and the entrepeneurialuniversity. Baltimore, USA/London, England: The Johns Hopkins University Press (1999).

6 . Em sua atual versão, o projeto Universidade Nova foi divulgado no I Seminário Nacional daUniversidade Nova, realizado em Salvador entre 1º e 2 de dezembro de 2006, sob o patrocínio daSESu/MEC e da ANDIFES. O evento tratou dos temas: estrutura curricular do BachareladoInterdisciplinar (BI), dos Cursos profissionalizantes e da Pós Graduação, modalidades de processoseletivo para o BI e para os Cursos Profissionais, antecedentes históricos da Universidade Nova, modelosde arquitetura acadêmica utilizados no mundo, impacto do projeto Universidade Nova na estruturaadministrativa da universidade pública brasileira, dentre outros tópicos. Grupos de trabalho discutiram esintetizaram as propostas do documento final. O II Seminário Nacional da Universidade Nova realizou-sena Universidade de Brasília – UnB, no Auditório Dois Candangos, no período de 29 a 31 de março de2007, tendo como tema “Anísio Teixeira e a universidade do século XXI”.

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um diploma de estudos gerais. A formação profissional seria exclusivamente para os maisaptos a prosseguir em sua formação.

O documento “Universidade Nova: Reestruturação da Arquitetura Curricular na UFBa”doravante denominado Universidade Nova-UFBa, parte da mesma premissa dos documentosdo BM e dos teóricos da Escola de Chicago, como Gary Becker, um Nobel neoliberal quepertence a ala direita desta Escola, que afirmam o fracasso do projeto de construção deuniversidades públicas e gratuitas no Brasil. Nos termos de Becker, manter o modelo europeu(humboldtiano) no Brasil é uma irracionalidade, pois as suas universidades tão somenteredescobrem o conhecimento e, ademais, significam subsídios às pessoas erradas (à dita elite).

A partir da construção dessa imagem negativa, os governos neoliberais, a Escola deChicago e o BM propugnam que, em virtude de seu descolamento com a sua época, auniversidade pública precisa ser completamente reestruturada: novo aqui significa a rejeiçãocompleta do que foi construído no período do pós-Segunda Guerra, no contexto das políticasnacional-desenvolvimentistas em que se forjou, contraditoriamente, um pensamento crítico àideologia da modernização e do desenvolvimento, crítica esta que supunha que o paísdesenvolvesse suas universidades para fortalecer a luta contra a heteronomia cultural, cujoexpoente máximo foi Florestan Fernandes.

O precioso patrimônio asperamente construído em um intervalo de tempo incrivelmenteexíguo, o Brasil foi o último país da América Latina a ter instituições propriamente universitárias,passa ser considerado um estorvo a ser reformulado inteiramente para atender àsnecessidades de um mercado capitalista dependente que já não estaria demandando formaçãoacadêmico-profissional sólida e longa. Sobressaem as fórmulas bancomundialistas, osesquemas da área de negócios de educação superior estabelecidos pelo processo de Bolonhae da OCDE/ Unesco, almejando a criação de um espaço europeu de negócios educacionaiscom “competitividade internacional”, o AGCS/OMC e, sobretudo, o modelo aligeirado para osmais pobres nos EUA, os Community Colleges.

Em termos práticos, o projeto UNIVERSIDADE NOVA diagnostica que o problemacentral das instituições universitárias brasileiras é o “velho recorte disciplinar” que a tornou umainstituição esclerosada, moribunda, inserida em um sistema classificado de "ultrapassado","condenado" e "arruinado" incapaz de dialogar com as necessidades do tempo presente. Apartir dessa consideração, os seus autores concluem que a alternativa mais sensata é adotar omodelo bancomundialista, pincelando aspectos do acordo de Bolonha e carregando nas tintasdo modelo dos Community Colleges.

Uma universidade a ser descartada?

A premissa fundamental do projeto Universidade Nova é que o atual modelo universitário énefasto, gerando uma instituição anacrônica e inviável, especialmente por não ter semelhançacom as universidades reformadas pelas políticas neoliberais nos países centrais. É preciso,preliminarmente, examinar esse pressuposto fundamental para seguir examinando os demaisfundamentos da proposta.

Os autores do referido projeto partem do que julgam ser uma análise histórica daconstituição da universidade brasileira para, a partir do histórico, apresentar um diagnóstico eas supostas alternativas (já contidas na narrativa histórica que é escrita para corroborá-la, umaevidente teleologia). O documento qualifica as universidades federais como híbridas, reunindoo pior do modelo estadunidense e da universidade européia do século XIX. É desconcertante

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que o documento não considere que, apesar das políticas governamentais, as instituiçõespossuem uma dinâmica própria engendrada pelas contradições do real. A rigor, nenhumauniversidade federal se encaixa no diagnóstico da Universidade Nova. Existiram resistências,lutas, greves (qualificadas no documento como inúteis) que impediram que as determinaçõesoficiais fossem implementadas de modo mecânico e absoluto. Ao deixarem de examinar asinstituições em suas particularidades, os autores ignoram que existe uma história nãogovernamental que expressa as lutas, tensões e contradições que pulsam em toda instituiçãouniversitária.

A análise histórica contida no documento confunde contradição com incoerência. O fato deexistir tensões na universidade provocadas por perspectivas distintas de universidade, longe deser algo negativo é, ao contrário, alvissareiro, pois indica que em um determinado contextoexistiram forças criticas ao projeto hegemônico. Para os autores do referido projeto, aexistência de forças emancipatórias que reivindicam a dimensão libertária da modernidade é“o” obstáculo a ser removido, pois estas forças criam resistências e arestas à universidadeoperacional que defendem.

Embora as primeiras instituições propriamente universitárias tivessem sido criadas porfrações dominantes com propósitos conservadores – no caso da USP, a afirmação daburguesia paulista frente ao novo bloco de poder que se afirmava sob a liderança de GetúlioVargas – a vitalidade da universidade produziu contradições muito mais profundas do quesupunham os seus criadores. O mesmo efeito aconteceu no período da modernizaçãoconservadora do governo empresarial-militar. O fortalecimento da pesquisa e da pós-graduação assumiu contornos muitas vezes distintos do que preconizava o modelo desejadopela ditadura.

Por isso, na segunda metade do século XX, o período em que a maior parte dasuniversidades foi constituída, a função social da universidade não pôde deixar de sercontraditória, produzindo majoritariamente conhecimento funcional ao modelo capitalistadependente, mas, embora de forma minoritária, elaborando, também, conhecimento novo,crítico, de alta qualidade que tem contribuído para tornar pensável a formação social brasileira,a agricultura camponesa, a saúde pública, as formas alternativas de energia, os conhecimentoshistóricos das lutas sociais dos trabalhadores brasileiros etc.

Os autores do projeto em discussão concluem que a universidade existente tem de sersuperada a partir de um histórico que, pelo exposto, é sui generis: desqualifica por completo aperspectiva emancipatória que, embora minoritária, parece ser a causa de todos os males.Significativamente, os autores nada falam dos setores mais capitalizados engajados namercantilização e no empreendedorismo que configuram o capitalismo acadêmico periférico.

Se a universidade que pode dar certo é a universidade operacional (a serviço de ummercado apresentado como virtuoso), como os autores da proposta explicam que o país seguepatinando no número de patentes7 e que a presença internacional da ciência brasileira8 tem se

7 . O Brasil perde espaço em inovação tecnológica. Em seu levantamento anual, a OrganizaçãoMundial de Propriedade Intelectual (OMPI) aponta que, entre 2004 e 2005, o número de patentes pedidasno País caiu 13,8%, enquanto em praticamente todo o mundo aumentou. A queda foi a maior entre os 20principais escritórios de patentes no mundo.Hoje, um quarto de toda a tecnologia disponível no planeta jáestá nas mãos de apenas três países asiáticos: China, Japão e Coréia do Sul. Jamil Chade, Brasil perdeespaço em inovação tecnológica Estadão, 10 de Agosto de 07. Durante a década de 90 verificou-se umcrescimento da ordem de 70% nos pedidos de patentes junto ao Instituto Nacional de PropriedadeIntelectual (INPI). Os pedidos passaram de 14.186 em 1990 para 24.572 em 2001. A participação dosresidentes nos pedidos de depósito, que pode ser tomada como um indicativo da importância do esforçonacional de inovação, caiu durante toda a década, chegando a atingir, em 1998, a metade do nível de1991. Antônio Márcio Buainain e Sérgio M. Paulino de Carvalho

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dado, sobretudo, na pesquisa básica? O que esses indicadores nos mostram é que, a despeitodas políticas que tentam subordinar a universidade ao utilitarismo e ao pragmatismo, a suavitalidade reside justamente nos domínios em que o fazer acadêmico é mais condizente com afunção social de produzir e socializar conhecimento científico e tecnológico do que com afunção de ser lócus da pesquisa e desenvolvimento (a chamada inovação tecnológica).

Esses indicadores sobre patentes e produção do conhecimento na universidade nãosurpreendem os que estudam a base material do país: nações que estão inseridas naeconomia-mundo de modo capitalista dependente (como o Brasil) não possuem um parqueprodutivo que requer inovação tecnológica significativa, e não serão as universidades quepoderão preencher essa lacuna aberta pelas empresas que atuam apenas em parte da cadeiaprodutiva ou se valem de tecnologias já consolidadas.

Os autores não explicam igualmente a expansão da pós-graduação brasileira,estruturada a partir dos quase heróicos mestrados (que chegam a ser ridicularizados nodocumento) há apenas três décadas – uma experiência extremamente bem sucedida, poisainda hoje é o primeiro momento em que grande parte dos novos professores e pesquisadoresfaz um trabalho científico completo – tenha alcançado a dimensão do Sistema Nacional dePós-graduação (em 2003):

Nº de Programas e Nº de Cursos 1.819 / 2.861

Doutorado 1020 cursos

Mestrado Acadêmico 1.726 cursos

Mestrado Profissional 115 cursos

Alunos titulados 35.724

Fonte: CAPES/PNPG (2005-2010)

Mais do que o crescimento das citações internacionais, um indicador em vários sentidosfrágil e controvertido, como explicar que uma universidade tida como anacrônica, isolacionista,quase única no mundo por seu ecletismo, tem permitido um diálogo tão intenso com os gruposde pesquisa estrangeiros de prestigiosas instituições e a realização de doutorados sanduíchese dos pós-doutoramentos exitosos? Se o sistema fosse tão anacrônico e descolado do queexiste nos países centrais, como esses diálogos aconteceriam de modo tão intenso?

http://www.inovacao.unicamp.br/anteriores/colunistas/colunistas-amarcio.html. Nesteinício do século 21, definitivamente, não fomos brilhantes. O USPTO (sigla em inglês do escritório depatentes norte-americano) concedeu-nos, no triênio 2001-2003, 336 patentes, número que caiu para 304no triênio subseqüente. Ou seja, tivemos uma perda de 10%. Roberto Nicolsky e André Korottchenko.Publicado no Jornal de Brasília, 15/05/2007.

8 . Em 30 anos, o número de trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros aumentouexponencialmente de 0,3% para quase 2% de todo o conhecimento científico mundial. Entre as 15universidades com maior produção científica no momento, 11 cresceram mais de 200% em relação a dezanos atrás (1996-2006), segundo os dados mais recentes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoalde Nível Superior (Capes) (O Estado de S. Paulo, 1/08/2007).

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O documento tampouco explica como a ciência brasileira foi capaz de produzirconhecimento com amplo reconhecimento internacional, como o uso de soluções hipertônicasno tratamento de choque hemorrágico, uma descoberta que ampliou em cerca de 10% asobrevida de acidentados com múltiplos fermentos aos serviços de urgência dos hospitais, ou aparticipação brasileira no Genoma, ou ainda a produção de vacinas contra a hepatite B noButantan, ou os estudos sobre a fixação de nitrogênio por bactérias associadas com raízes deplantas que permitiram aumentar a produtividade do plantio de feijão em cinco vezes naUFRRJ, ou os estudos sobre as conseqüências do uso de mercúrio no garimpo, pela UFPa, ouos estudos sobre informática desenvolvidos na UFPE ou a prospecção de petróleo em águasprofundas pela UFRJ que hoje garante a quase autonomia de combustível fóssil no Brasil9.

A base da infra-estrutura nacional, estradas, portos, pontes, hidrelétricas, petróleo, oconhecimento geográfico, o levantamento da biodiversidade, a produção de sementesadaptadas ao solo e ao clima do país, tudo isso dificilmente teria sido edificado sem osprofissionais formados pelas universidades públicas. A avaliação social reiterada no cotidianode que os melhores professores, enfermeiros, sociólogos, bioquímicos, médicos, agrônomossão provenientes dessas instituições supostamente fracassadas também não é mencionadapelos detratores da universidade pública.

Ao mencionar o elitismo das públicas, os autores ocultam que atualmente as públicassequer alcançam 20% das vagas disponíveis na educação superior e que a renda familiar dosestudantes das Públicas que estão entre os 20% mais pobres é de cerca de R$ 750,00 e que75% dos estudantes possuem renda familiar de até R$ 2700,00. Isso seria a elite daUniversidade Nova, da Escola de Chicago e do BM? Desconhecem os autores o estudo doIBGE que constata que, apesar de tão reduzida, ainda assim, em todas as situações, auniversidade pública é mais democrática do que as privadas: em todos as carreiras a rendamédia dos estudantes das públicas é menor do que a renda média das privadas?10

Considerando a devastação provocada pela tese de que cada país deve ter umauniversidade compatível com as expectativas que o imperialismo tem sobre a sua inserção naeconomia-mundo – cujo exemplo africano certamente é o mais dramático – que país seria oBrasil sem a sua “arcaica, velhaca, obtusa” universidade pública?

O que realmente querem dizer os elaboradores do projeto Universidade Nova quandodizem que tudo o que foi acumulado historicamente com base em trabalhos tão árduos epenosos é anacrônico e irrelevante? É como se vinte anos de debates sobre a formação de“professores como intelectuais e produtores de conhecimento” fosse apenas motivo decomentários jocosos, lastreados em pressupostos frágeis de Edgar Morin, um autor que secelebrizou por ter sido um operador de políticas neoliberais em seu país, como na reforma daeducação tecnológica que, a exemplo da Universidade Nova, aligeirava a formação dos jovens,promovendo um levante da juventude francesa contra o seu modelo, situação finamentecriticada por Pierre Bourdieu e que, recentemente, tentou vender o pacote de sua ONG, oInstituto ORUS em associação com o BM, para “reformar e criar uma universidade nova”, ditado Século XXI, no Brasil.

Disciplina e interculturalidade

9 . A presença da universidade pública. USP, Gabinete do Reitor, 2000.10 . Sobre acesso, ver indicadores muito bem elaborados em José Marcelino Rezende Pinto,Educação e Sociedade, vol. 25, n.88, p.727-754, Especial, Outubro 2004.

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A discussão prioritária sobre a interculturalidade, o método de construção do objeto, aforma de fazer perguntas e definir os problemas, o problema da unidade do ser e do saber, aunidade das ciências, das técnicas, das artes e das humanidades, em suma, a reflexão apropósito das questões epistemológicas e epistêmicas, ao ser desenvolvida pelos autores daUniversidade Nova é dissolvida na fórmula simplista da interdisciplinaridade epidérmica.

Os seus autores criticam o recorte disciplinar das faculdades, mas sustentam ainterdisciplinaridade. Como é possível estabelecer relação entre várias disciplinas em que sedivide o saber-fazer humano se a proposta em discussão desqualifica a existência da disciplinae das faculdades? Tudo indica que os autores desconsideram que a expressão disciplina estárelacionada ao “propósito de rigor, exatidão que se identificam com a posse de ´um saber´ ou o´domínio de uma arte ou técnica´ e também com divisões do trabalho intelectual em campos,áreas ou aspectos de um fenômeno. Ao mesmo tempo, (...) disciplina e faculdade evocam osproblemas do poder estabelecido e alternativo.”11 A leitura dos documentos da UniversidadeNova indica, antes, que o sentido assumido na crítica às disciplinas é o oposto desta expressão:indisciplina, isto é, ausência de rigor e exatidão, relativismo epistemológico, nos termos do pós-modernismo midiático.

A interdisciplinaridade somente pode buscar novas formas de rigor e profundidade seestabelecer real diálogo com problemas bem elaborados e demarcados, pois é a busca do rigordisciplinar que exige combinações e interseções de duas ou mais disciplinas, superando adivisão do trabalho anterior, conferindo novos sentidos para a totalidade12. O abandono do rigorreacende o empirismo vulgar e a celebração do senso comum como saber científico. Asideologias dominantes, com isso, jamais poderão ser questionadas, assegurando a ordemestabelecida como uma ordem natural. É a capitulação ao fim da história.

Baseado no modelo pretendido no Bacharelado Interdisciplinar, a vida acadêmica doestudante será equivalente a do consumidor em um shopping center: os estudantespercorrerão as diversas temáticas como se estivessem diante de vitrines, mas, tal como nessestemplos de consumo, nem todos poderão freqüentar as mesmas “lojas” (percursos escolares),posto que, como discutido adiante, alguns domínios estarão reservados aos “vocacionados”. Amassa terá de se contentar em adquirir alguma quinquilharia (O Bacharelado Interdisciplinar)em alguma loja de departamento.

Com base nessa noção rala que não enfrenta o debate epistêmico (que saber está sendoproduzido? Como esse saber está sendo elaborado?) os piores projetos em curso, como atransposição das águas do Rio São Francisco ou a hidrelétrica do Rio Madeira podem serconcebidos como exemplos bem sucedidos desse enfoque interdisciplinar epidérmico. Secompreendemos a interdisciplinaridade como justaposição de saberes, é indubitável que essesprojetos são interdisciplinares, reunindo saberes da engenharia, da física, da metereologia, dahidrologia, da ecologia etc. Mas nem por isso anunciam perspectivas emancipatórias, críticas àcolonialidade do saber, referenciadas em estudos desenvolvidos em perspectivas históricas.Essa interdisciplinaridade epidérmica já é uma realidade em quase todos os cursos, o que nãoaltera o peso da razão instrumental que segue guiando os mesmos.

Mas a questão de fundo do projeto Universidade Nova não é o debate epistemológico eepistêmico, mesmo porque estas preocupações inexistem no projeto Universidade Nova. A maldenominada “arquitetura curricular” da Universidade Nova é, sobretudo, uma “reestruturação”gerencial para aumentar a produtividade da universidade, em termos da administração racionaldo trabalho taylorista. Nesse sentido, o Decreto 6069/07 do MEC (REUNI) é mais honesto:

11 . Pablo G. Casanova, interdisciplina e complexidade. In: Casanova, P. G. As novas ciências e ashumanidades. SP: Boitempo, 2006, p.13.12 . Idem, p.13.

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trata-se mesmo de uma reestruturação da universidade. Assim como as empresas viveramreestruturações baseadas na qualidade total, na reengenharia etc, agora é a vez dasuniversidades se ajustarem aos preceitos da economia capitalista dependente.

A questão central do projeto da Universidade Nova, que não pode ser objeto de confusão,é a graduação minimalista com a concessão de diploma, objetivando ampliar o número deestudantes sem contrapartida de recursos e promover um novo e perverso gargalo que tornaráa profissionalização um privilégio de poucos “vocacionados”.

As inspirações do modelo

Após as críticas à universidade à bolonhesa, as referências a Bolonha13 acabaramocultadas, em favor de um educador respeitado: Anísio Teixeira, autor de um projeto deeducação nacional-desenvolvimentista, que, ao criar a UnB, desenvolveu fundamentosradicalmente distintos dos presentes na Universidade Nova. Embora o projeto da UnB14

previsse um ciclo básico em grandes áreas, seguido de um bacharelado de três anos,perfazendo uma graduação de cinco anos, este projeto foi pensado com os estudantescursando o ciclo básico em horário integral, em pequenos grupos, acompanhados pari passupor docentes. A meta, em dez anos, era que o número de estudantes por professor fosse de6:1! A Universidade Nova prevê no ciclo básico (O Bacharelado Interdisciplinar) 80:1 a 40:1. OREUNI 18:1! Obviamente, não há como comparar os termos da UnB com os da UniversidadeNova.

A leitura do texto do Documento Universidade Nova: UFBa e do referido artigo do reitorda UFBa não deixam dúvidas de que as referências mais importantes são mesmo as deBolonha e dos Community Colleges. E isso fica claro não apenas pela adoção do modelo dociclo básico (o Bacharelado Interdisciplinar) de curta duração, mas de todo o léxico dos textos,estruturado a partir de expressões muito bancomundialistas e muito bolonhesas, a “novavulgata planetária”15 como: “ciclos”, “mobilidade”, ‘qualidade”, “competitividade”, “flexibilidade”,“empreendedorismo”, “inevitabilidade da transnacionalização”, “globalização”, “sociedade dainformação”, “competências genéricas”, “polivalência”, “adaptação ao mercado” etc. Nos termosde Bourdieu e Wacquant (2001), essa vulgata opera a ideologia neoliberal que difunde as‘disposições de pensamento´ necessárias para a nova ordem: o capitalismo de livre mercadoinexorável e irreversível.

13 . O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superiorque, na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa éa expectativa da OCDE-UNESCO que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educaçãosuperior por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em trêsanos, representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam dever difundido em toda a Europa. (Roberto Leher “Fast delivery diploma: a feição atual da contra-reformada educação superior Notas sobre a Universidade Nova”, publicado originalmente no sitio da Carta Maior,espaço de controvérsias)

14 . Plano Orientador da Universidade de Brasília. Ed. UnB, 1962.15 . Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetaryvulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Accessin july, 2003 .

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Em todo texto está suposto que o mercado é um agente. Quando não é o mercado, osatores que induzem as transformações são não-humanos, inanimados (as novas tecnologias)ou nominalizados (a transformação, a mudança). O ator mais proeminente é o “novo mundoglobalizado”. Não há protagonismo humano. A partir desses pressupostos o documento daUniversidade Nova conclui que a universidade brasileira está em descompasso com esses“agentes transformadores”. Daí a obsessão com a forma distinta de organização da educaçãosuperior brasileira em relação aos países centrais e ao mercado global, um sujeito que requerque a universidade faça os ajustes em conformidade às suas necessidades.

De fato, a localização das IFES fora do padrão de Bolonha ou dos community collegesé provavelmente um dos pontos mais reiterados do documento da Universidade Nova-UFBA,estruturando a crítica à universidade atual e propugnando o ajuste aos referidos modelos sob orisco de “isolamento”, como se não estar com o mesmo formato mercantilizado e“mercadocêntrico” fosse impedir o diálogo da universidade brasileira com os demais centros deprodução de conhecimento: “se (...) não aproveitarmos a chance de criar um novo sistemauniversitário articulado ao que é dominante no mundo o Brasil vai ficar isolado” (citação comajuste de redação) (Universidade Nova-UFBa, p.13).

A solução miraculosa para esse descompasso é, como visto, a revisão curricular, semqualquer indicação de alteração nas políticas macroeconômicas do imperialismo que somentemantém empregos precários e de péssima qualidade, sem qualquer menção ao encolhimentoda oferta pública, ao congelamento das verbas para a educação federal, ao robusto sistema desubsídios públicos para as instituições privadas-mercantis (PROUNI) e ao problema dapropriedade intelectual que opõe as nações centrais e periféricas. É observável ainda a adesãoà ideologia de que as pessoas trabalham em áreas distintas de sua formação ou estãodesempregadas em função do anacronismo do currículo presente em sua escolarização, umaafirmação que causaria orgulho em Schultz e Becker, dois dos mais importantes ideólogos docapital humano da universidade de Chicago que, em sua época, teriam ficado encantados comseus discípulos brasileiros.

Graduação minimalista para um mercado de trabalho flexível e desregulamentado

Em linhas gerais, a Universidade Nova preconiza a seguinte estrutura: após o invertebradoBacharelado Interdisciplinar (BI) de 2 a 3 anos (p.18), o estudante ganharia um diploma que ohabilitaria a seguir os seus estudos, se aprovado em seleção, conforme o seu perfil“vocacional”:

Aluno(a)s vocacionados para a docência poderão prestar seleção para licenciaturasespecíficas com mais 1 a 2 anos de formação profissional, o que habilita o aluno(a) alecionar nos níveis básicos de educação;Aluno(a)s vocacionados para carreiras específicas poderão prestar seleção paracursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia etc.),com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do BI;

Aluno(a)s com excepcional talento e desempenho, se aprovados em processosseletivos específicos, poderão ingressar em programas de pós-graduação, como omestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico, podendo prosseguir para o

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Doutorado, caso pretenda tornar-se professor ou pesquisador16 (grifos e destaquesmeus).

Está evidente que essa diferenciação tem como fundamento o padrão de acumulação pordespossessão17 que pressupõe níveis de “competência” distintas no mercado de trabalho.

A lógica da Universidade Nova é mesma da de Bolonha. Espera-se aqui uma instituição deensino superior capaz de servir a demandas de mercado, operando a hierarquia baseada emsupostas competências gerais e específicas, lastreando conhecimentos subjetivos que vãoseparar “os mais talentosos” que terão uma formação mais sólida, da maioria que terá apenasuma formação panorâmica de uma grande área.

No México, por exemplo, o instituto de estudos estatísticos desse país menciona queapenas 10% dos postos de trabalho exigirão formação universitária completa. No Brasil nãotemos indicadores prospectivos abrangentes, mas, muito provavelmente, não serão muitodistintos dos mexicanos.

Essa cisão não é vista como problemática, ao contrário, é celebrada como um ajuste daeducação superior ao mercado mundializado: “Um mundo do trabalho marcado peladesregulamentação, flexibilidade e imprevisibilidade não demanda apenas especialistas, mastambém profissionais qualificados e versáteis, com competência para atuar em diferentesáreas” (Razões para a reestruturação. In: Universidade Nova: uma nova arquitetura para umnovo tempo, UFBA Revista, n.4, 2007). A lógica não poderia ser mais instrumental: como ofuturo do trabalho será precário para a grande maioria é preciso “ajustar” as universidadespúblicas criadas em um contexto de Estado de bem-estar social para o áspero mundo dotrabalho flexível e desregulamentado, por isso os ciclos. Claro que o “velho” modelouniversitário orientado para o trabalho regulado não cabe mais aqui.

Este mesmo padrão de acumulação requer a diferenciação das instituições de ensinosuperior mundiais. No caso brasileiro, uma conseqüência do projeto será a conformação dasuniversidades federais em “escolões”, em detrimento da pesquisa acadêmica, tendo em vistaque para cumprir o contrato de gestão, discutido adiante, o grosso do corpo docente terá de seempenhar em atender enormes turmas no primeiro ciclo, institucionalizando, ainda mais, oafastamento do modelo humboldtiano de universidade como instituição de ensino e pesquisa,capaz de garantir uma formação ampla, bildung, aos estudantes.

O modelo preconizado pelo processo de Bolonha não é distinto da formulaçãobancomundialista e está sendo difundida não apenas na Europa, objetivando o espaço denegócios europeus de educação superior, mas está promovendo o redesenho da educaçãosuperior em muitos outros países capitalistas dependentes. A mesma estrutura pode serencontrada na Guatemala, está em discussão na Argentina e encontra-se em implementaçãona Romênia e em Portugal. Na Romênia, o ajuste ao processo de Bolonha tem comoargumentação central a recusa a especialização excessiva e precoce, buscando uma formaçãomais geral e ajustada ao mercado de trabalho, assumido, tal como na Universidade Nova,como precário e flexível18.

16 . http://www.universidadenova.ufba.br/arquivo/Projeto_Universidade_Nova.doc17 . Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetaryvulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Accessin july, 2003 .

18 . Fairclough, N. (2006) Language and Globalization, London: Routledge.

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Não casualmente, em Portugal a Comissão de educação do Parlamento encarregadade examinar o processo de Bolonha sugeriu a sua não implementação, pois essa dinâmica iriaaprofundar a condição periférica do país no continente europeu. As principais universidadesportuguesas não aderiram justo porque compreendem o modelo como prejudicial à autonomiacientífico-cultural do país.

As lutas dos estudantes franceses contra o processo de Bolonha expuseram todo oarcaísmo do modelo, pois cerca de 90% dos estudantes não podem alcançar os níveis maiselevados do sistema. Também os estudantes gregos estão em luta contra o modelo bolonhês.Nenhuma dessas resistências é mencionada pelo Documento que se alia aos governos social-liberais na defesa da diferenciação social.

Universidade Nova e o MEC

A pretensão de originalidade do projeto é descabida, pois não apenas em âmbitointernacional projetos semelhantes estão sendo implementados em diversas partes do mundo,como, em âmbito local, vem sendo diligentemente encaminhado pelo MEC desde Cardoso. Naproposta do Grupo de Trabalho Interministerial (2003), a idéia era expandir as vagas públicaspor Educação a Distância, uma idéia que faz parte do núcleo sólido da política do governo deLula da Silva e que compunha o cerne da Minuta de Decreto de implementação daUniversidade Nova apresentada pelo MEC em março de 2007. O crescimento das matrículasnessa modalidade é inédito e vertiginoso, passando de 28 cursos de graduação em 2003,sendo 70% públicos, equivalendo ao ingresso anual de 21 mil estudantes, para 189 cursos em2005, 40% deles públicos, correspondendo ao ingresso neste ano de 172 mil estudantes!

Outra idéia força foi a criação de uma graduação em moldes pós-secundários, àsemelhança da reforma conservadora do Pacto de Bolonha. A expansão da educaçãotecnológica, dos centros universitários (2002:70, 2005:120) e das instituições com finslucrativos (2003: 1600, 2005:1850) comprovam que a expansão aligeirada, uma realidade nasprivadas, já vinha sendo incentivada pelos governos.

A idéia de um sistema organizado para ofertar ensino massificado e desvinculado dapesquisa, presente no Projeto GERES19, qualificado como positivo pelo Documento daUniversidade Nova20, é sumamente significativa. Distintamente do afirmado no referidodocumento, o ANDES-SN combateu intensamente o GERES por compreender que o mesmoinstitucionalizaria um sistema dual nas IFES: alguns poucos “centros de excelência” e muitos“escolões”, perpetuando, assim, as desigualdades sociais e regionais. Também importante é aavaliação do documento (p.12) de que o PL 7200/06 é um avanço, indicando o escopo em queo projeto Universidade Nova está situado.

No âmbito do MEC, os fundamentos do Projeto Universidade Nova estão no Projeto deLei Orgânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em três anos (Art. 7) e odesmembramento da graduação em dois ciclos, o primeiro deles de “formação geral” (Art. 21).Entretanto, as críticas impediram a concretização desse intento, agora retomado pelo MEC,com apoio de parte da ANDIFES, com a Universidade Nova. A primeira menção explícita pode

19 . Em novembro de 1985 foi criado o Grupo Executivo para a Reformulação da EducaçãoSuperior (Geres). Composto por cinco membros, o Grupo elaborou uma proposta de lei, na qualpretendeu reformular as instituições federais de ensino superior.20 . Universidade Nova - UFBa, p.11.

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ser encontrada na Minuta de Decreto Presidencial Plano Universidade Nova de Reestruturaçãoe Expansão das Universidades Federais Brasileiras (versão de março de 07). A incorporaçãodo princípio da graduação minimalista pelo MEC é muito importante, pois indica que, enquantopolítica governamental, o MEC propugna que também as públicas devem se harmonizar com atendência geral de adequação da educação superior ao mercado capitalista dependente,equiparando públicas e privadas a partir do metro do mercado.

Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)

Recentemente, com o chamado PAC da Educação, o governo lançou um conjunto demedidas denominadas de Plano de Desenvolvimento da Educação. No caso da educaçãosuperior federal editou o Decreto 6.096/2007 (24/04/07) que “Institui o Programa deReestruturação e Expansão das Universidades Federais” (REUNI) que opera a implementaçãoda universidade nova (incisos II, III e IV do art. 2o do decreto 6.096/2007). O inciso II garantecondições para a mobilidade e a “harmonização” dos ciclos básicos, criando um vasto mercadopara as privadas que disputarão a absorção dos excedentes do ciclo básico. O Inciso IIIpermite o desenho curricular previsto na Universidade Nova e o IV a diversificação dasmodalidades de graduação. O Decreto também fixa metas de desempenho a seremalcançadas, em moldes do contrato de gestão de Bresser Pereira: os recursos financeirosserão reservados a cada IFES na medida da elaboração e apresentação dos respectivosplanos de reestruturação (Art. 3o):

a) 90% de formados em relação aos ingressantes (Art. 1o, §1o), um índice que não tem paralelonas comparações internacionais e que somente seria possível com a implementação tambémna educação superior da aprovação automática e uma agressiva política de assistênciaestudantil e

b) a meta de relação professor/ estudante que deverá passar dos atuais 12 estudantes pordocente para 18 alunos por docente em um prazo de cinco anos. Vale notar que a ANDIFESqueria empurrar o cumprimento dessas metas para 10 anos, mas o decreto não acatou o seupleito. É importante registrar que os números do MEC estão fundamentados em comparaçõesinternacionais descabidas (pois não considera que em muitas universidades estrangeiras osdocentes podem contar com apoio de doutorandos e assistentes que não compõem o quadropermanente da instituição), ignora a expansão da pós-graduação e a especificidade de áreas.

Toda a lógica de implementação do REUNI está baseada no conceito de contrato degestão, tal como formulado por Bresser e Cardoso. Os recursos somente serão liberados emfunção da atendimento de determinadas metas, na melhor tradição bancomundialista,referenciada no léxico próprio do neoliberalismo, já citado.

Nem os recursos previstos na primeira Minuta de Decreto para instituir a UniversidadeNova, nem o REUNI agregam montantes significativos de recursos ao orçamento geral dasIFES. A previsão da primeira versão era de R$ 3,7 bilhões até 2012 (R$ 625 milhões/ ano),sendo 52 universidades federais, teríamos 12 milhões por ano/ universidade. A versão atual foimais pragmática, indicando a possibilidade de um montante que não poderá ultrapassar oequivalente a 20% das despesas de custeio e de pessoal (excluindo os aposentados epensionistas), montante este que será distribuído ao longo de cinco anos (Art 3, parágrafo 1o).

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Admitindo que todas apresentem planos de adesão ao REUNI, que o MEC trabalhe com o tetode 20% e, ainda, que os 20% serão distribuídos todos os anos, ao longo do período de contrato,grosso modo, o montante seria de aproximadamente R$ 1,12 bi ano, cerca de R$ 21milhões/ano por instituição que, com esses recursos, terá de arcar com a expansão da infra-estrutura e com as despesas adicionais de pessoal (Art.3, inciso III).

O atendimento do Plano de cada IFES é condicionado à capacidade orçamentária eoperacional do MEC (Art.3, §3o), o que pode confirmar um montante inferior a 20%, assim, ahipótese de que as universidades contratem docentes e invistam em infra-estrutura e nãorecebam os magros recursos adicionais não pode ser descartada. A rigor, com o decreto6069/07, o MEC não fica obrigado a se responsabilizar com a garantia dos recursos adicionaisacordados. Considerando o PAC e o virtual congelamento das despesas correntes da União,essa possibilidade não é pequena. Outro detalhe: a decisão sobre a pertinência ou não docontrato de gestão elaborado pela IFES compete exclusivamente ao MEC.

Está claro que os parcos investimentos serão direcionados para a função de escolão.As licenciaturas pós BI estarão reservadas a possivelmente um terço ou menos do número deestudantes do BI, abrindo um imenso mercado nas privadas que terão um novo ‘nicho´ demercado: como a grande maioria dos que concluírem o BI não poderá se licenciar de modopleno nas públicas, o setor empresarial buscará “captar” parte desses “clientes”.

Esse processo levará a uma renhida disputa dos estudantes por conceitos. Cadacolega passará a ser visto como um inimigo em potencial, pois, o estreito funil para aslicenciaturas plenas selecionará os estudantes de maior coeficiente de rendimento (ou outroprocesso de avaliação similar). As lutas estudantis poderão ser duramente atacadas com aquebra da solidariedade e do companheirismo entre os estudantes, cada um concorrente dooutro na luta pela formação plena.

Mas a difusão da cizânia não estará restrita aos estudantes em competição pelaformação profissional. Como os recursos para a contratação de professores serão liberados emfunção de “professores-equivalentes”: uma unidade corresponde a um professor doutor comdedicação exclusiva ou a três docentes de 20h e considerando a pressão para dobrar onúmero de estudantes, é previsível que no futuro próximo se expanda uma nova categoria deprofessores: os docentes que atuam no escolão. Estes, certamente, terão o caminho para apesquisa interditado, conformando duas categorias de professores: os docentes quedesenvolvem todas as atividades universitárias e os que devem restringir a sua atividade asaulas do Bacharelado Interdisciplinar ou do ciclo básico.

Método de implementação

Novamente, a falsificação do consenso. O MEC não promoveu qualquer debate com acomunidade acadêmica, não escutando os docentes organizados no Andes-SN e tampouco osestudantes autônomos frente ao governo. O debate do MEC com os reitores foi terceirizado porum reitor que serviu de porta-voz dos anseios do governo. A proposição de que a adesão dasuniversidades ao projeto é livre por parte das universidades também contribui para escamoteara ausência de debates. De fato, estranguladas pelo contingenciamento de recursos e pelovirtual congelamento de recursos, mesmo os muito parcos recursos disponibilizados, em tese,pelo MEC são uma forma de constrangimento ou chantagem econômica, pois os recursosadicionais para a infra-estrutura e a possibilidade de realizar concursos a partir de umadefinição da própria instituição, um anseio das IFES, somente serão possíveis para as

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universidades que se ajustarem ao projeto da Universidade Nova-MEC. Essa é a “democracia”dos contratos de gestão.

Se o consenso é falsificado no andar de cima, não surpreende que o mesmo processoesteja acontecendo nas IFES21 que, para cumprirem o apertado calendário do MEC (do esboçoao projeto final em aproximadamente dois meses), estão ignorando o processo democráticoque seguramente evidenciaria, a todos os que estão comprometidos com a causa dauniversidade pública, que a reestruturação é uma reengenharia produtivista que desconstituiráo modelo universitário conquistado na Constituição Federal de 1988.

Universidade Nova e a contra reforma

O projeto Universidade Nova/ REUNI é um ajuste na tática governamental. A política dealigeiramento e de criação de um mercado educacional mais robusto é a mesma, mas a formacontém novidades. O Decreto 6.096/2007 a primeira vista permite um amplo grau de liberdadepara instituições, afirmando que as universidades são livres para aderir ou não ao projeto (massem aderir não receberão os magros recursos). Em todo processo foi muito difundida a idéia deque a proposta nasceu da livre elaboração das universidades federais, em especial da UFBa eUnB, inspiradas em Anísio Teixeira, situação que não se situação, como visto anteriormente.

O retrospecto das iniciativas de criação de uma graduação mais aligeirada para ospobres é suficientemente longo para comprovar que o mesmo é parte de um padrão deacumulação muito próprio do imperialismo de hoje, em que os países periféricos esemiperiféricos não ocuparão um lugar relevante na produção de conhecimento e emprocessos produtivos em que o conhecimento se constitui em vantagem comparativaimportante.

Seria um grave erro situar esse projeto como uma peça secundária no processo decontra-reforma em curso, assim como seria um grave equívoco localizá-lo como uma iniciativade reitores. Assim, as frentes de luta serão mais complexas, tendo de conjugar a luta no âmbitointerno as universidades e nas lutas anti-sistêmicas mais amplas.

21 . Roberto Leher, “Metamorfoses na deliberação do Consuni impõem o Reuni como fatoconsumado na UFRJ”, Jornal da Adufrj, 22 de maio de 2007.