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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM FILOSOFIA NEILSON DA SILVA MOREIRA NIETZSCHE A Psicologia da Consciência em A Gaia Ciência São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM FILOSOFIA

NEILSON DA SILVA MOREIRA

NIETZSCHE

A Psicologia da Consciência em A Gaia Ciência

São Paulo

2015

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM FILOSOFIA

NEILSON DA SILVA MOREIRA

NIETZSCHE

A Psicologia da Consciência em A Gaia Ciência

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

Strictu Sensu em Filosofia da Universidade São Judas

Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do título de

mestre em filosofia, por Neilson da Silva Moreira, sob

orientação da profa. Dra. Cristina de Souza Agostini

São Paulo

2015

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Moreira, Neilson da Silva M838n Nietzsche : a psicologia da consciência em A gaia ciência / Neilson da

Silva Moreira. - São Paulo, 2015.

173 f. ; 30 cm.

Orientadora: Cristina de Souza Agostini. Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São

Paulo, 2015. 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Consciência. 3.

Psicologia. I. Agostini, Cristina de Souza. II. Universidade São Judas

Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD 22 – 171.6

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da

Universidade São Judas Tadeu

Bibliotecária: Daiane Silva de Oliveira - CRB 8/8702

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NEILSON DA SILVA MOREIRA

NIETZSCHE

A Psicologia da consciência em A Gaia Ciência

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

Strictu Sensu em Filosofia da Universidade São Judas

Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do título de

mestre em filosofia, por Neilson da Silva Moreira, sob

orientação da profa. Dra. Cristina de Souza Agostini

Aprovado em: / /

BANCA EXAMINADORA

Prof. (a) Dr. (a) Cristina de Souza Agostini – orientador (a)

USJT Assinatura: __________________________

Prof. (a) Dr. (a) Tomás Mendonça da Silva Prado (membro)

USJT Assinatura: __________________________

Prof. Dr. (a) Fernando Costa Mattos (membro)

UFABC Assinatura: __________________________

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM FILOSOFIA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM FILOSOFIA

AGOSTO DE 2015

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Ao meu pai,

In memorian,

Antônio Moreira

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AGRADEÇO

À minha orientadora, profa. Cristina de Souza Agostini, pelas importantes sugestões,

receptividade e, sobretudo, pela precisão em suas indicações e leituras.

Agradeço-lhe pela paciência, seriedade e dedicação desprendidas para com a pesquisa,

sem os quais esse trabalho não seria possível.

Principalmente, agradeço-lhe pelo acolhimento, gentileza e disposição singulares

demonstrados em torno de todo o processo de orientação.

Ao prof. Gilberto Tedeia (UNB), pela confiança ao me aceitar como orientando no

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu

(USJT).

Ao prof. Paulo Henrique Fernandes Silveira (USP), por orientar e acompanhar os

passos iniciais dessa pesquisa.

Ao prof. Floriano Jonas César, sempre à disposição para solucionar os problemas de

ordem institucional e acadêmica e, principalmente, pelas instruções metodológicas conferidas

junto à disciplina de Seminários de Pesquisa.

Ao prof. Hélio Sales Gentil, pela gentileza e pelas orientações dadas junto à disciplina

de Seminários de Pesquisa.

Ao prof. Paulo Jonas Lima Piva, por me incentivar à pesquisa e sempre contextualizar

com as obras de Nietzsche os seus levantamentos sobre Ceticismo e Filosofia Política.

Particularmente, pela presença na banca de qualificação, pelo apoio e pelas valiosas

sugestões dadas em direção à conclusão deste trabalho.

Ao prof. Tomás Mendonça da Silva Prado, por acompanhar o desenvolvimento de

nossa pesquisa junto à Nietzsche, este que lhe traz grande interesse.

Em especial, pela presença em nosso exame de qualificação e pelas imprescindíveis

impressões e sugestões dadas em direção à conclusão deste trabalho.

Ao prof. Fernando Costa Mattos (UFABC), por aceitar desde o princípio e não medir

esforços em participar da arguição desse trabalho.

Ao prof. Oswaldo Giacóia Jr., por me aceitar como aluno especial em dois semestres

consecutivos na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e por seu grande incentivo

acerca de meu início no estudo das obras de Nietzsche.

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Ao André Renato de Oliveira, pela companhia às idas e vindas à Unicamp e pelas

tardes de discussões sobre as filosofias e psicologias de Nietzsche e Freud.

Aos colegas turma, André, Olavo e Rafael, pelas contribuições, reflexões, sugestões e

críticas no andamento da pesquisa.

Ao prof. Alberto F. Gentil, pela dedicação à introdução e ensino do idioma alemão.

Sobretudo, pela generosidade, atenção e seriedade ao incentivar e acompanhar o nosso

trato inicial e um tanto precário com a Deutsch Sprache.

Aos colegas e alunos da Escola Estadual Regente Feijó (Itu-SP) e da Escola Estadual

Monsenhor Heládio Correia Laurini (Cabreúva-SP), pela imensa paciência, dedicação e

companheirismo, sem os quais esse trabalho não seria possível.

À minha família, por compreender e suportar as incontáveis horas de isolamento e

afastamento necessárias à construção dessa pesquisa e pelo apoio irrestrito, em todos os

momentos, sem o qual nada me seria possível.

Em especial, à minha mãe, Zilda de Meneses Silva, sem a qual nada me seria possível.

À minha namorada, Isabel Cristina de Siqueira, por me acompanhar e incentivar

durante toda a trajetória da pesquisa.

Sobretudo, pelas noites de espera, o companheirismo em momentos de angústia, as

noites mal dormidas em longas viagens e pela generosidade, carinho e atenção.

À Universidade São Judas Tadeu (USJT) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa parcial, sem a qual essa pesquisa não seria

possível.

Por fim, a todos os que direta ou indiretamente contribuíram para a construção deste

trabalho.

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Outros pássaros voarão adiante! Esta nossa ideia e crença porfia em voar com eles

para o alto e para longe, sobe diretamente acima de nossa cabeça e de sua

impotência, às alturas de onde olha na distância e vê bandos de pássaros bem mais

poderosos do que somos, que ambicionarão as lonjuras que ambicionávamos, onde

tudo é ainda mar, mar e mar! – E para onde queremos ir, então? Queremos transpor

o mar? Para onde nos arrasta essa poderosa avidez, que para nós vale mais que

qualquer desejo? Por que justamente nessa direção, para ali onde até hoje todos os

sóis da humanidade se puseram, desapareceram? Dirão as pessoas, algum dia, que

também nós, rumando para o Ocidente, esperávamos alcançar as índias – mas que

nosso destino era naufragar no infinito? Ou então, meus irmãos? Ou? (Friedrich

Nietzsche, Aurora, § 575)

Tradução de Paulo Cézar de Souza [“Andere Vögel werden weiter fliegen! Diese unsere Einsicht und

Gläubigkeit fliegt mit ihnen um die Wette hinaus und hinauf, sie steigt geradewegs über unserm Haupte und über

seiner Ohnmacht in die Höhe und sieht von dort aus in die Ferne, sieht die Schaaren viel mächtigerer Vögel, als

wir sind, voraus, die dahin streben werden, wohin wir strebten, und wo Alles noch Meer, Meer, Meer ist! — Und

wohin wollen wir denn? Wollen wir denn über das Meer? Wohin reisst uns dieses mächtige Gelüste, das uns

mehr gilt als irgend eine Lust? Warum doch gerade in dieser Richtung, dorthin, wo bisher alle Sonnen der

Menschheit untergegangen sind? Wird man vielleicht uns einstmals nachsägen, dass auch wir, nach Westen

steuernd, ein Indien zu erreichen hofften, — dass aber unser Loos war, an der Unendlichkeit zu scheitern? Oder,

meine Brüder? Oder? —”] (KSA, Baden 3, p. 331).

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RESUMO

Essa dissertação investigará o significado do conceito de consciência em Nietzsche a

partir de alguns escritos publicados em A Gaia Ciência. Para isso, esse trabalho irá ater-se aos

seguintes pontos: psicologia da consciência, consciência como organismo, relação entre

consciência e genialidade e consciência como grande saúde. Para Nietzsche, a psicologia da

consciência reside em uma busca profunda em torno das relações entre saúde e doença

presentes em um organismo quando se originam pensamentos, sentimentos e afetos. Assim

sendo, por meio do experimento, o filósofo indaga se nas hipóteses da origem da consciência,

é possível encontrar as bases de saúde ou doença, sendo que pensamentos e valores oriundos

de impulsos de vontade de poder são diagnosticados como indícios de saúde, enquanto

impulsos de conservação são diagnosticados como sinais de doença. Segundo o filósofo, a

consciência é o último e mais recente órgão em desenvolvimento do sistema orgânico e por

conter menor força diante de todos os outros elementos e órgãos no organismo coloca em

risco a existência da espécie, uma vez que tende a se utilizar de forças consonantes com o

instinto de conservação.

Como genialidade da espécie, o homem se utilizou da consciência pelo imperativo da

comunicação, de modo que para suprir a necessidade comunicativa, a espécie humana criou a

consciência através de signos oriundos da linguagem resultando no instinto gregário com o

qual o homem se igualou socialmente por meio de conceitos igualitários. Por fim, como

indício de grande saúde, o psicólogo Nietzsche avalia a própria ação diante dos valores e

ideais e conclui que, como um andarilho percorre os mais fortes valores em busca de suas

bases com o fim de confrontar os impulsos de conservação e de abundância, pois, deste modo,

conquista um aumento de forças a atinge a grande saúde.

Nesse sentido, defenderei que para Nietzsche a consciência se constitui no organismo

pela busca de vontade de poder. Por via de forças fisiológicas, diante de órgãos internos e

organismos externos, o órgão da consciência tende a dispor suas forças perante um instinto

conservacionista na anulação e estagnação de poder, enquanto o que lhe confere o aumento de

forças é justamente o contrário, ou seja, a disposição de suas forças em prol da expansão de

poder. Deste modo, Nietzsche sustenta que é preciso dar vazão às forças de vontade diante

dos valores e normas morais como meio de superação da cultura e da conservação da espécie.

O filósofo também afirma que a consciência é o instrumento de comunicação humana e sua

filosofia consiste no diagnóstico da grande saúde.

Palavras-Chave: Nietzsche – psicologia – consciência – organismo – genialidade.

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ABSTRACT

This dissertation will investigate the meaning of Nietzsche consciousness from some

published writings in “A Gaia Ciência”. For that, this thesis will stick to the following points:

consciousness psychology, consciousness as an organism, relation between consciousness and

geniality and consciousness as great health. For Nietzsche, consciousness psychology resides

in a deep search around the relations between health and illness that are present in an

organism when they originate thoughts, feelings and affections. Therefore, through an

experiment, the philosopher inquires if in the hypothesis of consciousness, origin is possible

to find the bases of health and illness, and that thoughts and values come from power

impulses that are diagnosed as health signs, while conservation impulses are diagnosed as

illness signs. Accordingly to the philosopher, consciousness is the last and most recent organ

in development on the organic system and for being the one with less power it can put in risk

the specie existence, once that it tends to use the consonant power with conservation instinct.

As a geniality of the specie, the man used the consciousness by the imperative of

communication, in a manner to supply the communicative necessity, the human species

created the consciousness through signs originated from the language resulting in the

gregarious instinct with man socialized equally by equalitarian concepts. Lastly, as an

evidence of great health, the psychologist Nietzsche evaluates his own actions towards the

values and ideals and concludes that, as a stroller that goes through the strongest values

searching his bases in order to confront the impulses of conservation and abundance, so, this

way, conquest an increase of forces to reach great health.

In this sense, I will defend that to Nietzsche consciousness is constituted by the

organism to search the will of power. Through physiological forces, in the face of internal

organs and external organisms, the consciousness organ tends to have its forces before a

conservation instinct in voiding and stagnation of power, while giving it the increase of forces

is just the opposite, in other words, the disposition of their forces for the expansion of power.

Thus, Nietzsche argues that we need to give vent to the will of forces on the values and moral

norms as a means of overcoming the culture and conservation of the species. The philosopher

also states that consciousness is the human communication instrument and its philosophy is

the diagnosis of great health.

Key Words: Nietzsche – psychology – consciousness – organism – geniality.

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SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS ............................................................................................................. 12

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 12

CAPÍTULO I - O DIAGNÓSTICO DA GRANDE SAÚDE ................................................................ 25

CAPÍTULO II - O DESENVOLVIMENTO DO ORGÂNICO ............................................................ 54

CAPÍTULO III – A GENIALIDADE DA ESPÉCIE ........................................................................... 95

CAPÍTULO IV – A CONSCIÊNCIA COMO GRANDE SAÚDE .................................................... 134

CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 163

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 169

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LISTA DE ABREVIATURAS

Para esse trabalho será feito uso prioritário de duas traduções: a tradução de Rubens

Rodrigues Torres Filho, para a seleção de Gérard Lebrun, no volume Nietzsche: Obras

incompletas, da Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1999), cuja referência

trará a sigla TD: RRTF (Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho).

E a Coleção das Obras de Nietzsche (São Paulo: Companhia das Letras, 1987-2011),

coordenada por Paulo César de Souza, cuja referência trará a sigla TD: PCS (Tradução de

Paulo César de Souza).

Para o uso da Segunda Consideração Intempestiva, contamos com a tradução de Noéli

Correia de Melo Sobrinho: Escritos sobre História (Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005) e

a referência trará a sigla: TD: NCMS (Tradução de Néli Correia de Melo Sobrinho).

Quando por necessidade realizarmos tradução, a passagem trará o seguinte registro:

TD: NSM (Tradução de Neilson da Silva Moreira).

Para facilitar a leitura, a abreviatura das obras de Nietzsche virá em alemão e em

português, e será a seguinte:

Siglas dos textos editados por Nietzsche

HL/Co.ext II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und

Nachteheil der Historie für das Laben (Segunda Consideração Intempestiva: sobre a utilidade

e os inconvenientes da História para a vida).

MAI/HHI – Menscchliches Allzumenschliches (vol. I) (Humano, demasiado humano

(vol. I).

MAII/HHII, MS Menscchliches Allzumenschliches (vol. II) – Humano, demasiado

Humano (vol. 2): Miscelânea de Opiniões e Sentenças e Setas.

MAII, WS/HHII, AS – Menscchliches Allzumenschliches (vol. II) (Humano,

demasiado Humano (vol. 2)): O Andarilho e sua Sombra.

M/A – Morgenröte (Aurora).

FW/GC – Die fröliche Wissenchaft (A gaia ciência).

Za/ZA – Also sprach Zaratustra (Assim falou Zaratustra).

JGB/BM – Jenseits Von Gut und Böse (Além do bem e do mal).

GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Para a Genealogia da Moral).

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Siglas dos textos preparados por Nietzsche para a publicação

EH/EH – Ecce Homo: Wie man wird, was man ist (Ecce Homo: como tornar-se o que

se é).

DD/DD – Dionysos-Dithyrambem (Ditirambos de Dionísio).

Siglas dos textos inéditos e inacabados

GDM/DM – Das Griechische Muisikdrama (O drama musical grego).

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INTRODUÇÃO

Esse trabalho visa analisar o que é a psicologia da consciência em A Gaia Ciência1 de

Nietzsche, tal qual como o filósofo prussiano2, como psicólogo, apresenta em FW/GC a

relação entre a consciência e o organismo, a consciência e a genialidade da espécie e, por

fim, a consciência como grande saúde.

Tomamos como ponto de partida o 2º parágrafo do Prólogo de FW/GC (1886), no

qual examinaremos a apresentação de Nietzsche como psicólogo, pois como psicólogo o

filósofo analisa como experimento as próprias condições de saúde e doença diante de sua

produção filosófica.

Na sequência, nosso exame se dará junto à associação feita por Nietzsche entre

consciência e organismo, com base no parágrafo de n.º 11º, da primeira parte de FW/GC

(1882), uma vez que nessa seção o autor cita a origem da consciência como último e mais

recente elemento em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11).

No terceiro capítulo, nosso exame partirá do parágrafo de nº. 354 de FW/GC (1886),

com o objetivo de compreender como Nietzsche entende ser a consciência uma genialidade da

espécie.

No quarto e último capítulo, examinaremos a partir do parágrafo de nº. 382 (1886), na

quinta parte de FW/GC, como Nietzsche compreende a consciência como motivo de grande

saúde.

Eis o objetivo de nosso trabalho: ler Nietzsche como psicólogo, analisando o

significado da consciência em FW/GC pela via do organismo, entendido por nós como um

complexo sistema de forças em disputa por expansão de poder e em constante transformação.

1 Desde agora, adotaremos a convenção internacional para as citações das obras de Nietzsche e para A Gaia

Ciência será utilizada a sigla FW/GC. 2 Para esse trabalho faremos referência a Nietzsche como filósofo prussiano, uma vez que chegou a pedir licença

de seu cargo como professor na universidade da Basiléia para se alistar como enfermeiro voluntário na guerra

franco-prussiana (1870-1871), pois se sentia ligado integralmente à Prússia, embora tivesse de renunciar

posteriormente à cidadania prussiana para ficar com a cidadania alemã (MOREY, 2005). Porém, segundo

Scarlett Marton (2006), no ano de 1870, Nietzsche aumenta a hostilidade para com a Alemanha e assumimos

aqui este sentido de interesse do filósofo, o trataremos por prussiano, pois uma vez assumiu declaradamente a

cidadania prussiana diante de um período de transição política da região. Para Young, (2014), a guerra franco-

prussiana foi declarada pelo parlamento francês, sob regência de Napoleão III, sobrinho de Napoloão Bonaparte,

porém, arquitetada por Bismark, com o interesse de unir os estados do Sul da Alemanha aos Estados da

confederação da Alemanha do Norte, sendo que ao final da guerra, no ano de 1871, constituíram o segundo

Reich.

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Com essa finalidade, analisaremos, especificamente, como Nietzsche apresenta em

FW/GC: a) A Psicologia da Consciência (1886-1882), b) O Desenvolvimento do Orgânico, c)

A Consciência como Genialidade da Espécie, e, d) A Consciência como Grande Saúde.

Na conclusão, discutiremos os resultados e esperamos finalizar com a afirmação de

que para Nietzsche a consciência possui relação direta com o organismo sintetizado no corpo

como um complexo conjunto de impulsos e forças e que o ato de se tornar consciente ocorre

por meio da linguagem, pela assimilação e criação de cultura, sendo que a consciência de si,

quando diante das grandes questões da humanidade, representa, para Nietzsche, uma grande

saúde.

Porém, uma pesquisa com ponto de partida em FW/GC deve assumir de início uma

clara posição metodológica, principalmente porque essa obra em especial traz consigo

peculiaridades de ordem temática e cronológica.

Sendo assim, iniciaremos o primeiro capítulo com o estudo da consciência no prólogo

de FW/GC, escrito e publicado junto a FW/GC no ano de 1886.

No segundo capítulo, estudaremos a relação da consciência com o organismo a partir

de seções escritas e publicadas no ano de 1882.

No terceiro capítulo, estudaremos a relação da consciência com a genialidade da

espécie a partir de seções escritas e publicadas no ano de 1886.

Já no quarto capítulo, concluiremos a análise da consciência a partir da penúltima

seção de FW/GC, escrita e incluída junto à quinta parte do livro no ano de 1886.

Sobre as dificuldades de ordem temática e cronológica nos estudos da obra de

Nietzsche, Scarlett Marton nos diz o seguinte:

Não são todos os comentadores que distinguem diferentes períodos na obra do

filósofo. Dentre os que se manifestam contra a divisão em períodos, há quem

sustente que esse procedimento leva em conta muito mais os dados biográficos do

autor que seus escritos e quem defenda que se veja os textos de Nietzsche como

um todo, pois ele mesmo não os encarou como frutos de etapas evolutivas.

Contudo, é possível distinguir no conjunto de seus escritos os redigidos entre 1870

e 1876, 1876 e 1882, e 1882 e 1888 (MARTON, 2006, p. 41)

Embora nem todos os comentadores dividam a obra de Nietzsche em períodos, é

possível apontar no conjunto de obras do jovem Nietzsche, o primeiro período (1870-1876),

certa influência do filósofo Arthur Schopenhauer e do músico Richard Wagner, tal qual se faz

possível catalogar o período junto ao tema do romantismo.

No segundo período (1876-1882), é possível destacar no conjunto das obras a

influência da ciência da época e o tema do positivismo.

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Junto às últimas obras, no terceiro período (1882-1888), é possível notar o pensamento

de Nietzsche mais refinado e livre de grandes influências, assim como são facilmente

identificáveis os temas da vontade de poder3 e da transvaloração dos valores.

Segundo o tradutor brasileiro e coordenador das traduções para a Coleção das Obras

de Nietzsche pela Companhia das Letras4, Paulo César de Souza (2001), FW/GC surgiu no

ano de 1882, com o intuito de complementar Aurora5, livro publicado por Nietzsche em 1881,

sendo que a intenção de Nietzsche quando escreveu FW/GC era que estes textos constituíssem

o segundo volume de M/A (SOUZA, 2001).

Porém, apenas as três primeiras partes de FW/GC foram escritas neste período e

quando Nietzsche escrevia a quarta parte, em maio de 1882, informou ao seu editor que lhe

enviaria outro projeto, com o título de “Com muitos epigramas e versos!” (SOUZA, 2001).

Livro este que, em junho de 1882, chegou de Nietzsche para seu editor como o manuscrito de

FW/GC, cuja primeira edição, segundo Souza (2001), saiu publicada em agosto do ano de

1882.

Entretanto, segundo Marton (2006), no ano de 1886, Nietzsche escreveu os prefácios

para Humano Demasiado Humano I e Humano Demasiado Humano II6, além dos prefácios

de M/A e FWGC, juntamente com a quinta parte de FW/GC.

Neste sentido, Oswaldo Giacóia Jr. considera em nota que:

Seria imprescindível excluir o livro V de A Gaia ciência, escrito em 1886 e

acrescido na segunda edição, ocorrida naquele mesmo ano. Tanto cronológica

quanto tematicamente, esse livro V de A Gaia Ciência pertence ao terceiro período

da filosofia de Nietzsche (GIACÓIA JR., 2000, p. 49)

3 Seguiremos aqui orientação distante da opção de tradução adotada por Rubens Rodrigues Torres Filho para a

Coleção “Os pensadores”, pois essa tradução opta por “vontade de potência” e iremos entender “Der Wille zur

macht” por “A Vontade de poder”. A mesma escolha, entretanto, foi adotada por Scarlett Marton (1997) em seu

prefácio à tradução realizada por Oswaldo Giacóia Jr. para A doutrina da vontade de poder em Nietzsche (In:

São Paulo: Annablume, 1997, p. 10, nota 2), com o principal objetivo de evitar confusão com o conceito de

potência já presente em Aristóteles. Essa é a mesma razão escolhida por Antônio Edmilson Paschoal, (In:

Nietzsche e a auto-superação da moral, Ijuí, 2009, p. 39, nota 1). Já Oswaldo Giacóia Jr. traduz “Der Wille zur

Macht” por vontade de poder em sua tradução de Müller-Lauter (1997) com o fim de evitar a distinção

metafísica entre ato e potência, o que novamente nos leva a entender evitar uma possível confusão com o

conceito já presente em Aristóteles. Não obstante, a referência sobre Nietzsche trazida aqui com a finalidade de

elucidar este trabalho se utiliza ora por “vontade de poder” e ora por “vontade de potência” e manteremos a

grafia original com entendimento especificado acima, mas nosso trato com a expressão será “vontade de poder”. 4 Cf. Referências: São Paulo: Companhia das Letras (1987-2011).

5 Doravante M/A.

6 Doravante MAI/HHI e MAI/HHII.

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Pode-se notar que para Oswaldo Giacóia Jr. (2000), a quinta parte de FW/GC deve ser

considerada distante das quatro primeiras partes, uma vez que foi escrita em 1886 e carrega

marcas temáticas de escritos deste período, como Além do bem e do mal7 (SOUZA, 2001).

Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2000), entre a escrita das três primeiras partes de

FW/GC e a escrita do prefácio e a quinta parte, Nietzsche escreveu e publicou as quatro partes

de Za/ZA (1883-1885).

Já a quinta parte de FW/GC, segundo Souza (2001), foi escrita no período posterior a

Za/ZA, quando da escrita de JGB/BM, com o qual partilha o tom e a intensidade.

Logo, no que se refere à FW/GC, Paulo Cesar de Souza (2001) sugere que:

No conjunto da obra de Nietzsche, portanto, este livro [A Gaia Ciência] tem uma

posição ímpar: faz parte do que convencionalmente é chamado “período positivista”,

inaugurado com Humano, demasiado humano (1878), e ao mesmo tempo traz

intuições e questões que caracterizam a derradeira postura do autor, o seu

“perspectivismo”. É também o de maior variedade formal: nele se acham versos

humorísticos, aforismos, textos argumentativos, diálogos, parábolas, alegorias e

poemas em prosa (SOUZA, 2001, p. 305-306)

Podemos ver que Paulo Cesar de Souza (2001) se atenta para o estilo linguístico

utilizado por Nietzsche em FW/GC, pois nos lembra da multiplicidade estilística que vai dos

versos de humor aos poemas com estilo de prosa.

Agora, seguindo Souza (2001), é fundamental compreendermos a posição ímpar

ocupada por FW/GC no conjunto das obras de Nietzsche, pois seus textos contêm

características temáticas dos escritos do ano de 1878, como MAI/HHI e MAI/HHII,

considerados por alguns como período positivista.

Ainda de ordem temática, diz Souza (2001), em FW/GC é possível notar o

perspectivismo como principal característica da filosofia nietzschiana8 e, não obstante, em

FW/GC Nietzsche anuncia três das principais marcas de sua filosofia: a morte de Deus

(FW/GC, § 108), o eterno retorno (FW/GC, § 341) e o grande personagem Zaratustra

(FW/GC, § 342).

7 Doravante JGB/BM.

8 Neste ponto, vale ressaltar a última nota de esclarecimento presente na Dissertação de Moreira I (2009, p. IX),

em que aponta optar por “nietzscheano” quando da grafia do adjetivo relacionado a Nietzsche, ante

“nietzschiano”, uma vez que a permanência do “e” antes do sufixo “ano” mantém a sonoridade e, embora não

seja recomendada, não faz da grafia incorreta segundo a norma gramatical brasileira. Nós, ao contrário,

adotaremos para esse trabalho o adjetivo nietzschiano e não simplesmente pela guisa da norma, mas por

constatarmos entre os estudiosos brasileiros da obra do filósofo maior incidência do adjetivo “nietzschiano” e

optamos, neste caso, por seguir a tradição.

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Portanto, estamos diante de uma obra com características muito particulares para

Nietzsche, pois, segundo Souza (2001), além dos fatores acima, a produção de suas três

primeiras partes encontra o filósofo em um momento de plena saúde.

Nesta obra, o filósofo anuncia três de suas principais marcas filosóficas e, não

obstante, para FW/GC o autor teve o cuidado de escrever um prefácio dando conta de sua

intenção ao apresentar o seu estado de saúde, assim como a sua intenção quando escreveu

essa obra (SOUZA, 2001).

Para Giorgio Colli:

Na realidade, este livro [A Gaia Ciência] é “central” na vida de Nietzsche, não só no

sentido exterior de ocupar uma posição mediana dentro de sua produção literária,

mas também no significado mais subtil de inserir-se nos seus escritos como um

momento mágico de equilíbrio, como a sua única experiência de “saúde” total, onde

todos os extremos estão presentes, mas ligados delicadamente, mantidos sob

controlo, esvaziados de qualquer fanatismo. E Nietzsche sabia muito bem que para

ele o fanatismo – ou com maior precisão, o impulso irresistível para descomedir-se

em atitudes pessoais, usando pensamentos astrais como armas sanguinosas – era um

sinal de doença (COLLI, 2000, p. 82)

Giorgio Colli (2000) considera FW/GC obra central da filosofia de Nietzsche, não

apenas no sentido cronológico, pois cronologicamente FW/GC se situa entre os primeiros e os

últimos escritos publicados ou autorizados à publicação, ou seja, entre o primeiro e o último

período de produção do filósofo, períodos que, segundo Scarlett Marton (2006), iniciam-se

com O drama musical grego9 (1870) e se encerram com Ditirambos de Dioniso

10 (1887).

Para Colli (2000), além da questão cronológica, a escrita de FW/GC representa um

momento único em respeito à saúde total e se faz também crucial no que diz respeito à

produção intelectual do filósofo, uma vez que os principais temas de sua filosofia se

encontram representados em FW/GC, embora essa aparição seja apresentada nessa obra de

forma bem comedida.

Como pode ser visto, existem problemas do eixo cronológico em FW/GC não

distantes de questões temáticas, uma vez que as três primeiras partes deste livro foram

produzidas no ano de 1882, em sequência e originalmente como complemento a M/A

(SOUZA, 2001).

O prefácio e a quinta parte foram escritos em meandros de 1886, após a escrita e a

publicação das quatro partes de Za/ZA (GIACÓIA JR, 2000), sendo que a quinta parte de

FW/GC foi escrita no período da produção de JGB/BM (SOUZA, 2001).

9 Doravante GDM/DMG

10 Doravante DD/DD.

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Diante desse contexto, cabe-nos esclarecer que essa pesquisa tem objeto na psicologia

da consciência em FW/GC e parte do prólogo (1886) e do parágrafo de nº. 11 da primeira

parte de FW/GC (1882), pois neles encontramos junto à expressão de Nietzsche como

psicólogo uma significativa contribuição do filósofo para iniciarmos nosso exame sobre a

extensão do significado da psicologia da consciência e da consciência em FW/GC.

Já a análise do parágrafo de nº. 354 (1886) se coloca imprescindível, pois nele

Nietzsche trata da formação da consciência em relação à linguagem e à cultura.

Do mesmo modo, entendemos como imprescindível o exame do parágrafo de nº. 382

de FW/GC, pois nele Nietzsche trata da consciência em relação à saúde.

Assim sendo, aceitamos que o propósito de Nietzsche no ano de 1886 quando da

redação e inclusão do prefácio à segunda edição de FW/GC era dar conta de apresentar o

conteúdo desse livro e se apresentar como psicólogo na análise do conhecimento.

Pois, diz Nietzsche:

Todo este livro não é senão divertimento após demorada privação e impotência, o

júbilo da força que retorna, da renascida fé no amanhã e no depois de amanhã, do

repentino sentimento e pressentimento de um futuro, de aventuras próximas, de

mares novamente abertos, de metas novamente admitidas, novamente acreditadas.

(...) “Incipit tragoedia” [A tragédia começa] – diz o final deste livro perigosamente

inofensivo: tenham cautela! Alguma coisa sobremaneira ruim e maldosa se anuncia:

incipit parodia, não há dúvida... (FW/GC, Prólogo, § 1) 11

Podemos ver junto ao primeiro parágrafo do prólogo (1886) que a intenção de

Nietzsche, ao escrevê-lo, era apresentar FW/GC ao mesmo tempo em que se apresenta como

filósofo e psicólogo diante de seus escritos.

Para Nietzsche, segundo Souza (2001), o livro FW/GC representa um momento de

alegria por recuperar a saúde após um período conturbado, pois quando escreveu M/A se

encontrava doente e com problemas de saúde.

Por isso, “após demorada privação e impotência” (FW/GC, Prólogo, § 1), sugere-se

que FW/GC representa um divertimento, indicado por Nietzsche com o próprio nome: Gaia12

(SOUZA, 2001).

Para Paulo César de Souza (2001), “Esse título tem primeiramente um sentido pessoal,

neste que ele próprio [Nietzsche] considerou o mais pessoal de seus livros: é o canto da

11

Cf. TD: PCS. 12

Neste ponto, procuramos dizer que aceitamos para este trabalho que Nietzsche procurou enfatizar junto ao

título o fato de conter no conteúdo de FW/GC uma ciência alegre e feliz.

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convalescença de alguém que sofreu muito e agora sente que lhe volta o vigor” (SOUZA,

2001, p. 334).

Portanto, uma vez que Nietzsche liga o prefácio de FW/GC diretamente à obra,

sentimo-nos livres para elaborar no corpo desse trabalho o exame do prólogo, escrito em

1886, junto a aforismos da primeira parte de FW/GC, escritos em 1882, pois o prólogo (1886)

deverá nos trazer a ideia de Nietzsche como um psicólogo preocupado com a questão da

consciência e o exame de aforismos presentes nas primeiras partes do livro (1882) deverá

auxiliar a análise do significado da consciência, assim como o exame de aforismos da quinta

parte, escrita no ano de 1886, deverão elucidar o significado e a abrangência designados pelo

significado da consciência em FW/GC.

Até aqui nosso interesse consistiu em esclarecer algumas posições, assim como nossa

opção em aproximar no corpo desse trabalho escritos produzidos nos anos de 1882 e 1886,

onde encontramos o trato de Nietzsche junto ao tema da consciência.

Cabe agora iluminar a opção de não tomarmos como objeto neste trabalho de seções

de Za/ZA, assim como melhor justificar a escolha de termos como objeto parte da produção

filosófica escrita no ano de 1886 e anexada à quinta parte de FW/ GC.

Entendemos que o tema da consciência perpassa os escritos nietzschianos e se faz

presente nas primeiras partes de FW/GC, aparece nas três primeiras partes de Za/ZA, e

retorna à FW/GC em sua última parte escrita e anexada no ano de 1886.

Não obstante, para Giorgio Colli:

Será assim inexato dizer, como frequentemente se disse, que A Gaia Ciência fecha

um período, enquanto Assim Falava Zaratustra abriria outro. As duas obras são, na

verdade, complementares e bastante próximas nos seus conteúdos, até para lá das

instituições de fundo. Muitos temas zaratustrianos encontram-se disseminados já em

A Gaia Ciência, se bem que aqui não chamem a atenção (COLLI, 2000, p. 79-80)

Para Colli (2000), o fato de FW/GC e Za/ZA terem sido escritos em momentos

distintos não os distancia porque os mesmos temas encontrados em um livro estão presentes

no outro.

Entretanto, se tematicamente FW/GC e Za/ZA podem ser considerados próximos

(COLLI, 2000), sabemos que cronologicamente se torna ainda mais latente essa proximidade

(GIACÒIA JR, 2000), pois Za/ZA se encontra entre a escrita das quatro primeiras e a quinta

parte de FW/GC (GIACÒIA JR, 2000).

Sendo assim, esse trabalho deverá tratar especialmente da obra publicada, pois

entendemos que Nietzsche as privilegia ante os fragmentos póstumos escritos no período de

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produção de FW/GC, uma vez que trabalhamos com a edição definitiva de FW/GC e

aceitamos que qualquer alteração à obra deve ter sido feita quando da escrita dos prefácios e

da publicação da segunda edição no ano de 1886.

Ainda sobre a proximidade entre FW/GC e Za/ZA, dizem Adriany Mendonça e

Alexandre Mendonça o seguinte:

Por tudo isso, poderíamos afirmar que A gaia ciência antecipa não somente o

prólogo de Assim falou Zaratustra. Talvez a questão pudesse ser melhor colocada se

entendêssemos que Assim falou Zaratustra, a começar pelo prólogo, leva adiante, a

um patamar superior, ou às últimas consequências, as principais conquistas do

exercício de pensamento iniciado com Aurora e radicalizado em A gaia ciência.

Seguindo essa perspectiva, uma longa preparação, que se acelera e se precipita

pouco a pouco, intensificando a eficácia dos meios exercitados, teria precedido a

enigmática primeira aparição do personagem Zaratustra, o início da tragédia

nietzschiana (MENDONÇA; MENDONÇA, 2011, p. 434)

Segundo Mendonça e Mendonça (2011), o conteúdo de FW/GC se faz presente no

prólogo e perpassa todo o conteúdo temático de Za/ZA.

Neste sentido, os autores indicam que Za/ZA não somente sucede FW/GC no conjunto

da obra nietzschiana, mas também evolui e eleva às últimas consequências o pensamento

filosófico iniciado em meados de 1881 com M/A e radicalizado em 1882 com FW/GC.

Assim, a primeira aparição de Zaratustra em FW/GC deve indicar a preocupação do

filósofo em expressar o sentido que o pensamento deverá seguir em busca da concepção

trágica da existência expressa mais adiante pela voz do personagem Zaratustra

(MENDONÇA; MENDONÇA, 2011).

Como o foco de nosso estudo está no tema da consciência e na psicologia da

consciência em FW/GC, deveremos nos direcionar primordialmente para FW/GC, pois

entendemos que um trabalho como esse exige critérios de tal forma que para adotarmos o

rigor necessário com o trato da pesquisa, fica impossível aproximar FW/GC e Za/ZA, uma

vez que as duas obras exigem grande dedicação e empenho em seu estudo, embora as duas

obras sejam próximas cronológica e tematicamente.

Portanto, ainda que FW/GC e Za/ZA sejam obras cronológica e tematicamente

próximas, devemos nos ater aos escritos publicados em FW/GC nos anos de 1886, 1882 e

1886, respectivamente, pois objetivamos nos aprofundar na análise do significado da

psicologia da consciência, assim como na análise de possíveis sentidos referidos para o signo

da consciência em FW/GC.

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Deste modo, no primeiro capítulo investigaremos o significado da psicologia da

consciência em FW/GC; no segundo capítulo, nosso exame focará na concepção dada por

Nietzsche para a consciência como órgão em desenvolvimento do orgânico; no terceiro

capítulo, investigaremos a consciência como genialidade da espécie como meio possível para

o desenvolvimento da linguagem e da cultura; já no quarto e último capítulo investigaremos a

expressão de Nietzsche de sua grande saúde a partir da consciência de si como grande saúde.

Uma vez tendo Nietzsche se expressado de várias formas e etilos linguísticos e

principalmente pelo fato de não admitir construir para si um sistema filosófico fechado,

embora houvesse um projeto abandonado13

, outra questão metodológica determinante de

nossa elucidação diz respeito à escolha dos textos como objeto de estudo entre os escritos

publicados e autorizados à publicação, as cartas, os fragmentos póstumos e uma possível

orientação hierárquica cabível entre todos os textos.

Pois, para Scarlett Marton:

Esta é, por certo, uma questão metodológica; é inevitável que os estudiosos tenham

de se haver com ela. Alguns julgam de maior valor os livros editados pelo filósofo;

outros atribuem peso maior aos fragmentos póstumos. Há ainda quem hierarquize os

textos segundo a importância que acreditam ter cada um deles, encarando este ou

aquele como “a obra capital”. E há quem entenda que se deva levar em conta apenas

os póstumos que se mostram de acordo com a obra publicada. Contudo, esta não é

apenas uma questão metodológica. Perguntar sobre a relação que se deve estabelecer

com os escritos de Nietzsche tem outras implicações. Importa, antes de mais nada,

deixar clara a disposição de não considerar a obra do autor de Zaratustra mero

escrito ideológico; implica sobretudo tornar patente a intenção de tomá-la enquanto

texto filosófico. Esta atitude vem contrapor-se a outras que, sem dúvida, não se

pautam por motivos teóricos nem se norteiam por razões de método (MARTON,

2009a, p. 215-216)

Nota-se que para Scarlet Marton (2009a), uma questão fundamental nos estudos da

obra de Nietzsche diz respeito à escolha dos textos a serem examinados, primeiro porque o

autor se utiliza de diversos estilos (SOUZA, 2001); depois, por ter sido lido de diversas

maneiras no decorrer de um pouco mais de século (1870-2015) (MARTON, 2009a).

Para Marton (2009a), outra questão basilar diz respeito ao critério utilizado na escolha

dos textos a serem examinados, já que alguns comentadores optam por hierarquizar a obra e

com isso elegem um texto como obra fundamental.

13

Os tradutores de FW/VP para o Brasil, Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias Moraes

explicam que chegou a haver um projeto de FW/VP, com o qual Nietzsche consagraria sua filosofia e permeou

os fragmentos de Nietzsche em meandros de 1886 a 1887, porém os próprios tradutores afirmam ter restado nos

fragmentos póstumos nietzschianos apenas o plano da obra, sendo que a organização do livro e a ordenação dos

aforismos quando da publicação de FW/VP no ano de 1901 foram efetivados por Elizabeth Förster-Nietzsche e

Peter Gast (FOGEL, 2001).

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Ainda existem aqueles que examinam os fragmentos póstumos junto aos textos

escritos e publicados no período de sua construção e os que veem na obra publicada e

preparada para a publicação o pensamento substancial de Nietzsche (MARTON, 2009a).

Para este trabalho, elegemos FW/GC como principal referência, mas não como obra

de maior valor, apenas por conter o tema da consciência em diversas passagens e ser onde se

encontra uma definição mais precisa acerca do significado da consciência para o autor, na

primeira e na quinta parte do livro.

Deste modo, contrariaremos a José Nicolao Julião (2012) em relação à Za/ZA, uma

vez que não trataremos Za/ZA como obra capital do pensamento nietzschiano, mas sim, temos

esta como a obra na qual Nietzsche aprofunda a crítica à consciência iniciada em FW/GC

(COLLI, 2000) e por isso aqui o foco do estudo da consciência não se dará em Za/ZA, mas,

sim, em FWGC.

Destarte, também não devemos considerar A Vontade de Poder14

como obra capital do

pensamento nietzschiano, muito menos olhar para essa obra como pertencente ao capital de

pensamento do filósofo prussiano e entendemos já ter sido consagrado pela crítica

nietzschiana que WM/VP é um escrito apócrifo de responsabilidade de Elizabeth Föster-

Nietzsche e Peter Gast15

(MARTON, 2006).

Sobre este aspecto, Ernani Chaves (2008) esclarece que no conjunto das obras de

Nietzsche, o livro WM/VP não existe, ou seja, consiste em uma reunião de fragmentos

póstumo que foram catalogados em seus referidos lugares a partir da edição crítica realizada

por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1980), com a qual se orientam os sérios estudos

nietzschianos desde então.

Deste modo, não devemos considerar os póstumos, uma vez que as seções encontradas

em FW/GC deverão expressar de modo satisfatório o pensamento do filósofo acerca do

significado da consciência.

No entanto, é elementar esclarecer essas questões, uma vez que a obra nietzschiana foi

por muitas vezes tomada com o pretexto para justiçar aspectos ideológicos (MARTON,

2009a) e devemos afirmar que nossa posição deverá levar em conta apenas o caráter filosófico

e a crítica ao conceito de consciência na obra do autor.

Outra questão metodológica que devemos esclarecer diz respeito à revisão

bibliográfica elaborada para a pesquisa, pois iniciamos a investigação da psicologia da

14

Doravante WM/VP. 15

Pequeno anfitrião, Johann Heinrich Köselitz ficou assim conhecido, pois com esse pseudônimo era tratado por

Nietzsche desde os tempos em que o filósofo prussiano frequentou a Universidade da Basiléia (YOUNG, 2014).

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consciência em Nietzsche a partir da obra de Assoun (2008) e algumas partes da obra de

Corman (1982). Entretanto, constatou-se que o arcabouço de estudos brasileiros acerca da

obra de Nietzsche, assim como as traduções, constitui-se de forma tão grande e fecunda que a

interlocução desse trabalho acabou por se travar com autores e excelentes traduções

brasileiras, de modo que supomos, assim, enriquecer nosso trabalho, uma vez que

imaginamos contribuir para o debate da obra de Nietzsche.

Nesse sentido, nossa tese inicial é a de que para Nietzsche a psicologia se mostra a

partir de experimentos próprios em relação às condições fisiológicas entre saúde e doença

com as quais o filósofo se detém como ponto de partida para construir uma crítica à

organização do corpo, da cultura, da moral e da sociedade.

Quando trata do conceito de consciência em FW/GC, o filósofo a entende

primeiramente como um órgão em desenvolvimento no conjunto de órgãos do organismo,

vendo o corpo como um complexo de forças organizado pelo conjunto de todos os órgãos

(FW/GC, I, § 11).

Desta forma, para Nietzsche, a consciência teria inicialmente um caráter orgânico, ou

seja, um caráter de organização, pois seguindo a tese de que forças agem no organismo, o

filósofo aceita que o órgão mais simples ou as células mais precárias enviam comandos para

os órgãos mais complexos como a consciência e com tal intensidade as recebem, uma vez que

os órgãos mais complexos, como a consciência, enviam comandos para os órgãos ou as

células mais simples do organismo (FW/GC, I, § 11).

Deste modo, para compreender a construção do significado de consciência em FW/GC

será preciso primeiro examinar a relação entre a consciência e o organismo como um sistema

ou um conjunto orgânico (FW/GC, I, § 11).

Para o feito, devemos estudar a relação entre as forças de vontade de poder nas

relações entre os homens e a criação e expansão da cultura como elementos orgânicos

(FW/GC, I, § 13), assim como as forças de expansão e manutenção da espécie (FW/GC, I, §

4), pois tanto a vontade de poder presente nas relações e disputa de forças entre os indivíduos

de uma cultura (FW/GC, I, § 13), quanto forças presentes nas disputas de poder pelos

indivíduos como partes de uma cultura organizada (FW/GC, I, § 4), deverão servir de

subsídios para elucidarmos a extensão do significado da consciência como elemento do

orgânico, tal como Nietzsche apresenta no parágrafo de nº. 11 de FW/GC.

Desde já, cabe-nos esclarecer que o sentido de vontade de poder utilizado neste

trabalho adotará a definição elaborada por Wolfgang Müller-Lauter que diz que: “A vontade

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de poder é a multiplicidade de forças em combate umas com as outras. Também da força, no

sentido de Nietzsche, só podemos falar em unidade no sentido de organização” (MÜLLER-

LAUTER, 1997, p. 74).

Portanto, sempre quando nos referirmos à vontade de poder no decorrer desse

trabalho, estaremos nos referindo ao sentido de uma “multiplicidade de forças” (MÜLLER-

LAUTER, 1997, p. 74) em constante disputa umas com as outras dentro de um sistema

organizado, uma organização, seja o corpo como um organismo composto por um conjunto de

órgãos, células e impulsos internos ou externos, ou mesmo a cultura organizada por um

conjunto de forças em disputa por mais poder, de modo que caso haja referência distinta dessa

para a vontade de poder dentro do corpo do trabalho, traremos consigo a devida referência.

Não obstante, entendemos que a consciência se configura para o autor de Zaratustra

como que uma espécie de genialidade da espécie humana, pois teria surgido para suprir a

necessidade da espécie de se comunicar, de modo que da relação direta entre indivíduos foi

possível surgir a consciência através de signos igualitários comunicados por meio da

linguagem, sendo que os indivíduos quando igualaram os significados iguais de objetos

linguísticos por meio de signos, acabaram também por igualar suas forças e se igualar

socialmente (FW/GC, V, § 354).

Por fim, aceitamos que para Nietzsche, de modo geral, a consciência seria como um

estado de si entre a doença e a saúde, sendo que toda sua psicologia e sua filosofia estariam

dispostas a fim de indicar um caminho para elevar o humano à grande saúde (FW/GC, V, §

382).

Conforme nossa tese acerca da consciência em FW/GC de Nietzsche, Niemeyer

corrobora com seu entendimento lexical acerca do termo “consciência” utilizado por

Nietzsche ao dizer o seguinte:

O princípio de Nietzsche segundo o qual o mundo se nos tornou “novamente

infinito, na medida mesma em que não podemos rechaçar a possibilidade de que ele

ENCERRE EM SI PRÓPRIO INFINDÁVEIS INTERPRETAÇÕES” (...), acha-se

sistematicamente ligado ao seu conceito de consciência. Enquanto tal, o consciente é

já o resultado de certas interpretações, à diferença do INCONSCIENTE, ao qual

ainda falta uma interpretação conscientizadora, o pensamento segue uma grande e

inconsciente razão do CORPO (...), sendo condicionado pela inevitável

precondição de que somos totalmente dependentes da linguagem – seja lá o que

tencionamos falar e, com isso, expor para os outros (NIEMEYER, 2014, p.109-110)

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Segundo Niemeyer, em termos nietzschianos a consciência se constitui pela

determinação de uma razão fundamental localizada no corpo – inconscientemente instintiva –,

com a qual o homem se utiliza para criar sentido e reconhecer os sentidos do mundo através

da linguagem (NIEMEYER, 2014).

Sendo assim, a consciência para Nietzsche poderia ser aceita como elemento orgânico

em desenvolvimento e por isso passível de infinitas perspectivas e como experimento se

constituindo pela via da organização interna e corpórea tal qual por via externa, seguindo a

apreensão da cultura através da linguagem.

Uma vez tendo delimitado o conteúdo temático e a metodologia desse trabalho, assim

como esclarecido a tese provisória deste exame, devemos agora direcionar nosso estudo para

as obras de Nietzsche.

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CAPÍTULO I - O DIAGNÓSTICO DA GRANDE SAÚDE

O que diz sua consciência? – “Torne-se aquilo que você é” (FW/GC § 270) 16

Esse capítulo busca compreender o significado da psicologia da consciência em

Nietzsche a partir do segundo parágrafo do prólogo de FW/GC. Para o feito, partiremos da

questão formulada pelo autor na segunda seção do prólogo de FW/GC (1886): “que nos

importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2) e buscaremos

encontrar o sentido deste questionamento com o exame de como o autor se colocou como

psicólogo, sobretudo, a partir da análise da consciência. Desse modo, para a construção de

nossa dissertação, colocamos as seguintes perguntas: O que é, para o Sr. Nietzsche, a

psicologia da consciência? Como, para o psicólogo Nietzsche, a consciência se relaciona

com o desenvolvimento do orgânico? Qual relação existe entre a origem da consciência e a

genialidade da espécie? E, por fim, como o filósofo relaciona a consciência de si com o êxito

de sua grande saúde? Seguiremos essas perguntas, pois vislumbramos que o esclarecimento

delas deverá nos conduzir para a compreensão da questão principal da pesquisa, com raiz na

psicologia da consciência em Nietzsche, que é como Nietzsche expõe e faz uso da psicologia

da consciência a partir de FW/GC. Assim, procuramos melhor compreender a seguinte

questão: Em FW/GC Nietzsche apresenta a consciência em relação direta com o organismo

como órgão em desenvolvimento do orgânico e, assim sendo, tornar-se consciente ocorre por

meio da linguagem, junto à assimilação e à criação da cultura?

A hipótese por nós aventada é a de que, para Nietzsche, forças ativas de vontade são

faculdades orgânicas e atuam no sistema orgânico levando o homem à formação da

consciência e a essa faculdade da consciência, ou seja, às forças orgânicas, o filósofo atribui

propriedades de combate pelo exercício de poder, de modo que as forças atuam internamente

no organismo, do elemento mais simples aos órgãos mais complexos e ainda entre o indivíduo

e o meio através da cultura, sendo que a formação da consciência ocorre por via do embate de

forças, sejam elas internas ou externas ao corpo. Portanto, toda consciência é passageira e

transitória, pois ao mudarem os estados de forças mudam também os estados de consciência.

Assim, para Nietzsche não deve haver vontade consciente, pois toda consciência resulta de

estados de consciência resultantes de forças internas e externas com ação no organismo. Logo,

16

Cf. TD: PCS.

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a consciência seria como que uma relação do corpo do individus com o mundo exterior, sendo

que a consciência de si e dos outros apenas seria possível por via da linguagem em relação

direta do indivíduo com a cultura.

A fim de responder as perguntas dessa dissertação, uma obra de fundamental

importância será FW/GC, pois encontramos no segundo parágrafo do prólogo (1886) a

expressão de Nietzsche como psicólogo, no aforismo de nº 11, uma primeira definição mais

precisa encontrada na obra publicada acerca do significado da consciência, onde o autor a

associa com o desenvolvimento do organismo e, junto ao parágrafo de nº 354, uma ideia de

Nietzsche para a consciência como genialidade da espécie. Embora existam outras expressões

da consciência presentes em obras anteriores em que a consciência apareça associada a

alguma outra questão, como em seções de MAI/HHI, MA/HHII e M/A, onde o filósofo se

utiliza da expressão “consciência”, mas para tratar da moral, é mesmo no parágrafo de nº 11,

em FW/GC, em que o autor inicialmente se pronuncia publicamente de modo enfático acerca

da origem e do significado da consciência (FW/GC, I, § 11).

Colocamos, então, a primeira pergunta: O que é, para o psicólogo Sr. Nietzsche, a

psicologia da consciência? E para responder a questão, focaremos no exame do segundo

parágrafo do prólogo de FW/GC, no qual indagamos se nessa seção Nietzsche nos expõe o

que é e qual é a importância da psicologia da consciência através da relação entre doença e

saúde e a fraqueza e as forças do corpo (FW/GC, Prólogo, § 2).

Diz Nietzsche:

Mas DEIXEMOS o Sr. Nietzsche: que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra

vez com saúde? ... Um psicólogo conhece poucas questões tão atraentes quanto a da

relação entre saúde e filosofia, e para o caso, em que ele próprio fica doente, ele traz

toda a sua curiosidade científica consigo para sua doença (FW/GC, Prólogo, § 2) 17

Para Nietzsche, a psicologia consiste no exame da profunda relação entre saúde e

doença e quanto mais um filósofo se detiver em examinar essas questões, mais ele se torna um

psicólogo. Tal qual, como psicólogo ao examinar as questões entre saúde e doença, ainda

mais precisa será a sua filosofia. Essa dualidade está muito presente no pensamento

nietzschiano, pois o autor entende as relações entre saúde e doença como questões entre

filosofia e psicologia (FW/GC, Prólogo, § 2).

Por isso a questão: “que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?”

(FW/GC, Prólogo, § 2). E a resposta deve ser negativa, pois em nada nos importa o fato do Sr.

17

Todas as citações de Nietzsche para a segunda seção do prólogo de FW/ seguirão TD: RRTF.

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Nietzsche estar doente ou ter recuperado ainda mais uma vez a saúde. Assim, se o Sr.

Nietzsche está ou não doente, com ou sem saúde, nada nos importa, pois a vida do Sr.

Nietzsche com suas condições de saúde não são e nunca foram do interesse de ninguém, a não

ser do próprio Sr. Nietzsche, uma vez que as condições de vida do Sr. Nietzsche nada

representam ou significam à pesquisa conquanto não seja o conteúdo de sua obra ou de sua

filosofia.

Entretanto, recoloco a questão: “que nos importa que o Sr. Nietzsche [filósofo] está

outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2). E a indicação à resposta tende a ser outra, pois

importa muito à pesquisa sobre a obra filosófica nietzschiana o fato do filósofo Sr. Nietzsche

ter ficado doente ou ter recuperado ainda mais uma vez a saúde. De tal modo, o caso do

filósofo Sr. Nietzsche estar ou não doente, com ou sem saúde, muito nos importa, pois as

condições de vida do filósofo Sr. Nietzsche são do interesse dos estudiosos de sua filosofia,

uma vez que essas condições podem indicar referências e até mesmo mudanças em seu

pensamento filosófico.

Diante de nosso interesse em examinar nesse capítulo como Nietzsche apresenta a

psicologia da consciência a partir da segunda seção do prólogo de FW/GC, devemos recolocar

ainda mais uma vez a questão. Pois a questão foco de nosso real interesse aqui deve nos ser

coloca do seguinte modo: “que nos importa que o Sr. Nietzsche [psicólogo] está outra vez

com saúde?” E agora a resposta se faz extremamente positiva, já que muito nos importa o fato

do psicólogo Sr. Nietzsche estar doente ou ter recuperado a saúde, uma vez que essa pesquisa

busca responder questões presentes na obra filosófica de Nietzsche a partir de indagações

apresentadas pelo autor como obra de um exímio psicólogo (FW/GC, Prólogo, § 2). Deste

modo, o fato do psicólogo Sr. Nietzsche ter recuperado a saúde é de nosso total interesse, pois

o objetivo aqui é compreender o que é a psicologia da consciência para Nietzsche a partir do

exame do segundo parágrafo do prólogo, propositalmente incluído pelo autor no ano de

188618

ao prefácio de FW/GC, a fim de apresentar a obra e suas condições de saúde no

período de sua escrita. Importa-nos ainda mais o fato de ser tão atraente ao psicólogo

Nietzsche a relação entre saúde e filosofia, pois toda a sua curiosidade científica, filosófica e

psicológica, desloca-se principalmente para a relação entre saúde e doença como filosofia. Por

isso, importa-nos se o psicólogo Sr. Nietzsche está doente ou recuperou a saúde, uma vez que

18

Como vimos, segundo Marton (2001), Nietzsche escreveu o prefácio de FW/GC no ano de 1886, junto aos

prefácios de MAI/HHI, MAI/HHII e M/A. Supomos, então, que o intuito do filósofo é apresentar o conteúdo de

FW/GC e esclarecer as condições de saúde com que se encontrava no momento da escrita de FW/GC.

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sua curiosidade científica se projeta para as próprias condições de saúde e doença (FW/GC,

Prólogo, § 2).

Segundo o filósofo, o próprio fato de vivenciar momentos intercalados entre saúde e

doença se transforma em um grande mote para a experimentação filosófica e, acima de tudo,

psicológica, uma vez que para o autor a grande curiosidade científica se constitui no início de

toda a investigação filosófica e a raiz dessa investigação está nas questões fisiológicas com

respeito à saúde e à doença como psicologia (FW/GC, Prólogo, § 2).

Neste sentido, diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Ora, um psicólogo, assim como entende o Sr. Nietzsche, é um wissenchaftlischer

Mensch19

, cuja vocação consiste em produzir, extrair, criar saberes, até mesmo – e

principalmente – de seus próprios estados, saudáveis ou doentios. Sua curiosidade

científica o impele, como um caçador, a percorrer o inteiro âmbito da alma humana,

suas planícies, culminâncias e abismos, mesmo as dobras mais obscuras, rastreando

o vasto campo de experiências que constitui a história da “alma”, sempre em busca

daquilo que Nietzsche denomina “a grande saúde” (GIACÓIA JR, 2013, p. 178)

Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2013), a vocação de Nietzsche como psicólogo se aloca

diretamente no experimento pessoal das relações entre doença e saúde e esse exame fornece

as bases para a formulação de um profundo pensamento acerca do conhecimento, da

consciência e do saber humano.

Neste sentido, a psicologia nietzschiana consiste em elaborar experimentos em relação

à saúde e a doença, de modo que da correlação entre ambas o filósofo aponta para a crítica da

humanidade como curiosidade científica, estratégia filosófica ou questão psicológica. É

dentro do imenso campo do saber humano que Nietzsche ampara a sua filosofia como exímio

psicólogo, uma vez que na história da alma humana o filósofo encontra experiências sadias ou

doentias como ponto de partida para buscar o que chama de “a grande saúde” (GIACÓIA JR,

2013). E isso se faz ver na imediata sequência dada pelo filósofo na apresentação em seu

prólogo (FW/GC, Prólogo, § 2).

Diz Nietzsche:

Ou seja, pressuposto que se é uma pessoa, tem-se também, necessariamente, a

filosofia de sua pessoa: no entanto, há uma diferença relevante. Em um são suas

lacunas que filosofam, em outro suas riquezas e forças. O primeiro necessita de sua

filosofia, seja como amparo, tranquilizante, medicamento, redenção, elevação,

alheamento de si; neste último, ela é apenas um belo luxo, no melhor dos casos a

volúpia de uma gratidão triunfante, que acaba tendo ainda de se inscrever em

maiúsculas cósmicas no céu dos conceitos (FW/GC, Prólogo, § 2)

19

Cf. TD: NSM, a expressão deve ser entendida como “profundo conhecedor do saber humano”.

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Para o filósofo, o fato de se reconhecer como humano, atribui-lhe uma sabedoria

intrínseca acerca do humano. Deste modo, uma vez aceita a condição humana, Nietzsche

impõe para si o dever de se colocar diante de seu tempo e sua história. Sobretudo, impõe-se o

dever de inquirir os fundamentos acerca da história do pensamento ocidental, na procura de

desvelar se na origem do conhecimento encontram-se condições saudáveis ou doentias a

propiciarem os valores na origem da consciência. Pois, quando Nietzsche se afirma como uma

pessoa, necessariamente carrega para si o dever de possuir em sua sabedoria a sabedoria de

uma pessoa. Agora, uma pessoa, tal qual assume ser o Sr. Nietzsche, apenas existe e deve se

colocar em correlação com os indivíduos de seu tempo e com a história de seu tempo,

principalmente a partir do pensamento como fio condutor da história formadora de seu tempo

e da sabedoria de seu tempo (FW/GC, Prólogo, § 2).

Portanto, para Nietzsche, configura-se categoricamente como um dever diante do

pensamento, da história de seu tempo, da cultura e da filosofia a busca por pensamentos

doentios e da “grande saúde” na origem do pensamento como conhecimento. É como um

dever fundamental se colocar como filósofo e psicólogo das relações entre saúde e doença

como fios condutores do pensamento e da história de seu tempo em busca da “grande saúde”

na origem do pensamento como conhecimento, antes mesmo de se configurar como uma

escolha (FW/GC, Prólogo, § 2).

Pois, entre todos os seres humanos, dois são os grupos de indivíduos identificados por

Nietzsche: o primeiro é o grupo dos que precisam e encontram no vazio o autoconhecimento e

por isso necessitam de uma “filosofia” extrínseca para dar sentido ao mundo e à própria

existência. O segundo, ao qual Nietzsche considera pertencer, o qual, sob nosso entendimento

pertence, é o grupo dos que se utilizam de todas as forças para combater aqueles e por isso

põem a crivo os indivíduos de seu tempo e a história de seu tempo. Sobretudo, os autores de

filosofias tidas como essenciais para o pensamento fio-condutor do pensamento, da

consciência e da história de seu tempo (FW/GC, Prólogo, § 2).

Para os primeiros, a filosofia se apresenta como eficaz “entorpecente” (FW/GC,

Prólogo, § 2) e fugaz objeto de “alienação” (FW/GC, Prólogo, § 2). O Sr. Nietzsche,

entretanto, filósofo e psicólogo propriamente inserido entre os segundos, considera a filosofia,

ou seja, a sabedoria profunda para tudo o quanto for humano, o quanto for saber sobre o

humano, uma busca pelo âmago de todos os saberes e seus fundamentos, assim como as

condições para a instituição dos saberes como valores fundamentais para a vida dos

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indivíduos no tempo e na história, acima de tudo considerando a história da filosofia e do

pensamento ocidental.

Nesse ponto, como em outras passagens, valer-nos-emos de Oswaldo Giacóia Jr. para

melhor elucidar o entendimento do ponto específico do filósofo Sr. Nietzsche sobre a sua

atuação como psicólogo.

Pois, diz Oswaldo Giacóia Jr.:

(...) importa propriamente ao psicólogo nato interpretar o inteiro âmbito dos

pensamentos, sentimentos, desejos, crenças, ações e estados de uma pessoa – mas

também de um povo, de uma cultura – como sintoma e transfiguração de impulsos e

afetos gerados a partir de energias fisiopsicológicas que, por sua vez, estão sujeitas a

um jogo permanente de elevação ou desfalecimento de sua potência, de tonificação e

enfraquecimento. Para tal psicólogo, nada do que diz respeito ao domínio dos

processos mentais, tanto aqueles de natureza cognitiva quanto afetiva, evolutiva,

está imune à influência da alternância entre estados de saúde e doença, responsáveis

pelo incremento ou debilitação das energias somáticas e psíquicas; nem sequer a

atmosfera espiritual dos pensamentos lógicos e matemáticos. Sendo assim, também

os pensamentos que constituem uma filosofia partilham dessa condição de sintoma,

e traduzirão justamente a filosofia dos estados de uma pessoa (GIACÓIA JR, 2013,

p. 178)

Para Oswaldo Giacóia Jr. (2013), o que importa para Nietzsche como psicólogo é

interpretar as ações e estados de uma pessoa, considerando a inteira esfera do pensamento,

sendo que os desejos, crenças e sentimentos são interpretados pelo filósofo prussiano como

sintomas de estados efetivos de uma pessoa e seu pensamento (FW/GC, Prólogo, § 2). Neste

sentido, não somente os indivíduos são interpretados pela psicologia nietzschiana como

sintomas e estados de afeto, mas também a cultura e os povos, uma vez que a análise

nietzschiana se dá em relação à transformação de impulsos e afetos como energias

fisiopsicológicas incondicionalmente sujeitas à elevação e depressão de poder diante da

correlação indivíduo-cultura (GIACÓIA JR, 2013). Sendo assim, prossegue Oswaldo Giacóia

Jr., nada mais adequado senão que a própria filosofia nietzschiana traduza seus estados

somáticos e psíquicos como filosofia de sua pessoa. Por conseguinte, para a pergunta

colocada por Nietzsche no início da segunda seção do prólogo de FW/GC: “que nos importa

que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2), podemos afirmar que

em muito importa, pois, segundo Oswaldo Giacóia Jr., a filosofia de Nietzsche como pessoa

deve traduzir os estados somáticos e psíquicos de sua pessoa. Nesse sentido, sendo a filosofia

nietzschiana uma psicologia, nada há de mais adequado do que o filósofo, enquanto

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psicólogo, atentar-se para os próprios estados, saudáveis ou doentios, com que compõe a sua

filosofia (FW/GC, Prólogo, § 2).

Neste ponto, pode-se transparecer como extrema vocação filosófica o fato de

Nietzsche se perguntar acerca da importância do fato de si próprio, ou seja, o fato do Sr.

Nietzsche, filósofo e psicólogo, estar ou não outra vez com saúde (FW/GC, Prólogo, § 2),

uma vez que para o filósofo, segundo Oswaldo Giacóia Jr., saúde e doença resultam de

estados volitivos e afetivos como forças de vontade de poder no indivíduo em correlação com

as forças formadoras dos povos e das culturas que por ele foram analisadas.

Mas, assim como existe a filosofia sadia de uma pessoa, existe ainda e mais

habitualmente, segundo o filósofo prussiano, a filosofia composta por estados de indigência,

porquanto sejam filosofias construídas por pensadores em estados doentios (FW/GC, Prólogo,

§ 2).

E aqui devemos voltar para a sequência da segunda seção do prólogo de FW/GC, na

qual o filósofo prussiano apresenta o caso habitual em que pensadores enfermos demonstram

pensamentos doentes em função das limitações que o estado fisiológico os infringem

(FW/GC, Prólogo, § 2).

Prossegue o Sr. Nietzsche:

No outro caso, porém, o mais habitual, quando são os estados de indigência que

fazem filosofia, como em todos os pensadores doentes - e talvez preponderem os

pensadores doentes na história da filosofia: - o que será do pensamento mesmo, que

é posto sob a pressão da doença? Esta é a pergunta que importa aos psicólogos: e

aqui é possível a experimentação (FW/GC, Prólogo, § 2)

Por um lado, Nietzsche se reconhece como ser humano a partir de sua condição

humana e com isso enfrenta as questões mais profundas em busca por compreender o que está

na origem dos saberes e valores humanos, por outro, identifica uma grande fraqueza em quem

necessita de sabedorias extrínsecas para compreender e dotar o mundo de sentido, assim como

para dar sentido à própria existência (FW/GC, Prólogo, § 2).

Quanto aos “estados de indigência” (FW/GC, Prólogo, § 2), o filósofo os identifica nas

filosofias extrínsecas dos indivíduos, mas também nos autores da história da filosofia, uma

vez que estes autores não se permitem a experimentação (FW/GC, Prólogo, § 2).

Para Nietzsche, a “doença” (FW/GC, Prólogo, § 2), ou seja, uma superficialidade

diante das grandes e profundas questões humanas, ou ainda os “estados de indigência”

(FW/GC, Prólogo, § 2), fundamentam os grandes autores da história da filosofia. Além do

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mais, Nietzsche diagnostica fraqueza nos indivíduos que seguem os grandes nomes da história

da filosofia, confirmando, com isso, os seus estados de “indigência” (FW/GC, Prólogo, § 2).

Neste sentido, Nietzsche aceita que o pensamento mesmo não passa de um estímulo

resultante da força total dos vários outros estímulos presentes no organismo (FW/GC,

Prólogo, § 2). Assim sendo, pergunta- se “o que será do pensamento mesmo, que é posto sob

a pressão da doença?” (FW/GC, Prólogo, § 2). E como resposta sugere como grande saída

para uma grande saúde a experimentação. Portanto, aqui a experimentação aparece como uma

volição da consciência de instante para instante, onde cada indivíduo, a partir de seus

incontáveis estímulos, transforma-se organicamente e com isso transforma sua consciência,

pois em cada instante cada pessoa transforma a experiência e com isso transforma também a

consciência (FW/GC, Prólogo, § 2).

Isto dito, vemos que em Nietzsche não há possibilidade de nenhum pensamento ou

consciência estático e duradouro. O que existe é um estado de estímulos fisiopsicológicos de

onde se faz possível extrair a experimentação na formação de uma consciência como sintoma

(FW/GC, Prólogo, § 2). Logo, tanto o pensamento de filósofos “doentes” (FW/GC, Prólogo, §

2) quanto o de “indigentes” (FW/GC, Prólogo, § 2) seguidores destas filosofias não podem ser

considerados por Nietzsche como um “pensamento” (FW/GC, Prólogo, § 2) pleno. Ratificam-

se como uma superficialidade fraca em relação à busca sólida e profunda acerca dos saberes

que fundamentam a existência de todos os saberes dos humanos (FW/GC, Prólogo, § 2).

Neste ponto, Nietzsche exalta a profunda busca pela compreensão dos estados de

estímulos na origem dos valores e na origem do conhecimento transformados em pensamento

pelos autores na história da filosofia e por seus seguidores.

Este é o lugar capital da psicologia da consciência como diagnóstico da grande saúde.

Pela via do experimento, principalmente por meio da interpretação de sintomas (FW/GC,

Prólogo, § 2), Nietzsche faz de sua filosofia uma incessante busca pelo diagnóstico de

elementos de saúde e/ou doença na origem dos valores, assim como radicaliza esse

experimento quando examina e diagnostica os grandes pensadores da história da filosofia e os

valores presentes na formação da cultura e de seu tempo.

Voltemos a Nietzsche, pois logo na sequência do segundo parágrafo do prólogo o

autor nos aponta sob a metáfora de um viajante que a atuação de um filósofo enquanto

psicólogo deve se ater entre estados do organismo como quem dorme e acorda e vai de um

local para o outro, sem a necessidade da fixação em um local comum tal qual a inexistência

da fixação de um estado pela via de um conceito (FW/GC, Prólogo, § 2).

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Diz Nietzsche:

Não diferente do que faz um viajante, que se propõe a acordar em uma hora

determinada e, em seguida, se abandona tranqüilamente ao sono: assim nós

filósofos, suposto que ficamos doentes, nos entregamos de corpo e alma à doença -

como que fechamos os olhos a nós. E como aquele sabe que há algo que não dorme,

algo que conta as horas e o acordará, sabemos nós também que o instante decisivo

nos encontrará acordados - que então algo salta, e apanha o espírito em flagrante,

quero dizer, na fraqueza ou regressão ou resignação ou endurecimento ou

ensombrecimento ou como se chamem todos esses estados doentios do espírito, que

em dias sadios têm contra si o orgulho do espírito (pois continua valendo a velha

rima: "O espírito orgulhoso, o pavão, o cavalo, são os três animais mais orgulhosos

sobre a terra " -) (FW/GC, Prólogo, § 2)

Como podemos ver, a psicologia da consciência como experimentação ocorre de modo

“Não diferente do que faz um viajante” (FW/GC, Prólogo, § 2). Pois bem, nesse caso, o

viajante é o psicólogo Sr. Nietzsche, andarilho e filósofo20

. Ele atravessa o vale dos estados

saudáveis e/ou doentio e a viagem incide ainda sobre a história da filosofia e a cultura de seu

tempo. Sob a metáfora do viajante, Nietzsche nos lembra que a grande questão filosófica ou

mesmo psicológica a que deve se ater está amparada no profundo exame das condições de

saúde e doença do corpo quando se originam o pensamento e a filosofia (FW/GC, Prólogo, §

2).

Aqui se insere uma nova dimensão à colocação inicial dessa seção em busca do

significado da psicologia da consciência em Nietzsche: “que nos importa que o Sr. Nietzsche

está outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2). Ao se perguntar acerca da importância de

estar ou não com saúde, Nietzsche não apenas indica as relações entre saúde e doença como

questão crucial de sua filosofia, como também põe a crivo o seu próprio experimento de

pensamento e filosofia.

Nesse sentido, não seria o conteúdo de MA a expressão da doença e FW/GC a

expressão da saúde de Nietzsche? Supomos, provisoriamente, que não. Aqui o filósofo

cumpre com a formalidade do prólogo e nos anuncia haver uma crucial diferença entre o

conteúdo de MA e FW/ GC (FW/GC, Prólogo, § 2), embora este conteúdo represente, sim,

segundo entendemos, a expressão das condições de saúde do organismo do filósofo quando o

20

Não são poucas as passagens onde Nietzsche se refere ao andarilho ou se coloca como um andarilho filósofo.

Em MA/HHII, o filósofo publicou uma seção intitulada “O andarilho e sua sombra” (MA/HHII), cuja

apresentação se dá por meio de um diálogo entre o andarilho e a sombra. O parágrafo final de MA/HHI se

intitula “O andarilho” (MA/HHI, § 638), onde Nietzsche afirma que a liberdade da razão, quando alcançada,

transforma os homens em andarilhos sobra a Terra (MA/HHI, § 638). Entendemos que a metáfora do viajante foi

escolhida por Nietzsche, pois ele próprio se mostra aqui como aquele que encontrou a liberdade da razão e sua

nova tarefa será como a de um andarilho ao atravessar por entre os vales e caminhos da razão e da moral

ocidental (MA/HHI, § 638).

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compôs, sendo que FG/GC se faz composto pelo momento em que o filósofo se encontra

“outra vez com saúde” (FW/GC, Prólogo, § 2).

Portanto, a nova dimensão da pergunta “que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra

vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2) sugere uma nova dimensão para a nossa resposta,

uma vez que, deste modo, prossegue Nietzsche: “nós filósofos, suposto que ficamos doentes,

nos entregamos de corpo e alma à doença - como que fechamos os olhos a nós” (FW/GC,

Prólogo, § 2).

Para Nietzsche, essa é para nós a expressão principal, nem mesmo a sua filosofia deve

escapar de uma profunda apreciação psicológica, já que o seu próprio pensamento ocorre

segundo as próprias condições favoráveis ou desfavoráveis para a saúde e a doença como

sintomas fisiopsicológicos de sua própria experiência de pensamento. Devemos nos ater ao

fato de que o “instante decisivo” (FW/GC, Prólogo, § 2) em que surge a filosofia, encontra o

andarilho filósofo acordado e a função deste em relação aos demais é determinante, uma vez

que ele não deixa passar os momentos de apreciação filosófica tal qual o viajante desperto

para a próxima jornada de sua travessia. Ao contrário, sem se importar com o estado de saúde

em que se encontra, seja “fraqueza ou regressão ou resignação ou endurecimento ou

ensombrecimento ou como se chamem todos esses estados doentios do espírito” (FW/GC,

Prólogo, § 2), os filósofos, no sentido atribuído por Nietzsche, sempre se detiveram

inadvertidamente ao labor filosófico. Assim, Nietzsche identifica naqueles que fazem filosofia

por indulgência o orgulho como elemento primordial do empreendimento filosófico, uma vez

que estas filosofias não se aprofundam no questionamento das relações entre saúde e doença

no momento em que são compostas.

Neste ponto, mostramos porque o filósofo procura se afastar de seus pares e ainda

indicamos o fundamento de quando o filósofo coloca em questão a sua própria filosofia, pois

Nietzsche como “psicólogo conhece poucas questões tão atraentes quanto a da relação entre

saúde e filosofia” (FW/GC, Prólogo, § 2). Como um viajante, o Sr. Nietzsche, psicólogo da

consciência, examina a fundo a relação entre filosofia, saúde e doença a partir de seus

próprios estados de saúde, em busca da identificação de elementos primordiais como base

para a construção da filosofia, sempre em busca de estados de indulgência e da grande saúde.

Eis a solidez da psicologia da consciência como diagnóstico da grande saúde ofertada

na segunda seção do prólogo de FW/GC, pois com ela Nietzsche anuncia o profundo exame

das condições de saúde e/ou doença como exame dos sintomas fisiopsicológicos na

composição da consciência, do pensamento e de seu próprio pensamento filosófico. Além

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disso, anuncia que o fato de examinar a importância do Sr. Nietzsche, filósofo e psicólogo, ter

recuperado outra vez a saúde, coloca-o em direção à “grande saúde” (FW/GC, Prólogo, § 2).

Pois, implícito no autoexame acerca das condições de saúde e doença quando da composição

de sua própria filosofia está contida a necessidade do exame da origem dos valores

formadores da consciência de indivíduos, da filosofia e da cultura (FW/GC, Prólogo, § 2).

Prosseguindo o nosso exame do Sr. Nietzsche, como complemento à apreciação de sua

apresentação como psicólogo no segundo parágrafo do prólogo de FW/GC, na terceira seção,

podemos ver como é importante para o filósofo indicar o exame de sua própria filosofia sob o

ponto de vista de ter recuperado novamente a saúde (FW/GC, Prólogo, § 3).

Diz Nietzsche:

Advinha-se que eu não gostaria de me despedir com ingratidão daquele tempo de

grave enfermidade, cujo ganho ainda hoje não se esgotou para mim: assim como

estou bastante consciente do que eu tenho em geral, com minha saúde mutável, de

vantagem sobre todos os espíritos de quatro costados. Um filósofo que passou por

muitas saúdes, e que sempre passa de novo por elas, também atravessou outras

tantas filosofias: nem pode ele fazer de outro modo, senão transpor cada vez seu

estado para a forma e distância mais espirituais – essa arte de transfiguração é

justamente filosofia (FW/GC, Prólogo, § 3)

Essa passagem nos fortalece na busca pela compreensão acerca do que é a psicologia

da consciência para Nietzsche, pois, para a questão, o filósofo aponta ser de extrema valia

para o psicólogo intérprete de sintomas o exame da relação entre saúde e doença,

principalmente na composição de sua própria composição filosófica (FW/GC, Prólogo, § 3).

Uma vez que não se despede com ingratidão de um tempo em que esteve enfermo, antes da

composição de FG/GC, aceitamos que, muito pelo contrário, a esse período se faz grato

porque com ele pôde superar estados de experiência que o levaram a recuperar a saúde para

com ela agora guiar o profundo exame da consciência em direção aos saberes presentes em

sua formação na busca de elementos de doença ou uma grande saúde (FW/GC, Prólogo, § 2).

Entretanto, este deve ser um conhecimento embasado na auto-experimentação, fincado na

análise de sintomas na composição de seu próprio pensamento para então ser projetado ao

exame de outros saberes e outras filosofias (FW/GC, Prólogo, § 3).

Portanto, Nietzsche sugere ser essa a sua vantagem “sobre todos os espíritos de quatro

costados” 21

(FW/GC, Prólogo, § 3), uma vez ter clara a compreensão de serem a consciência

21

Para a expressão “os espíritos de quatro costados” (FW/GC, Prólogo, § 3), entendemos que Nietzsche se refere

aos “grandes espíritos”, ou seja, aos espíritos com costas largas ou platônicos. Porém, entendemos que os

grandes espíritos com o qual Nietzsche equipara sua filosofia não se limitam a Platão ou à Grécia, mas também

são franceses, italianos, alemães, etc. Por isso, trataremos a expressão com o sentido de serem os espíritos de

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ou o pensamento expressões de sintomas da experiência corpórea regidos sob as condições

orgânicas de saúde ou doença.

Deste modo, um corpo sadio deverá compor pensamentos saudáveis e quando o

pensamento é composto pelo outro caso, um corpo não sadio ou enfermo, o mais habitual é

que a composição de pensamentos seja dada por “estados de indigência” (FW/GC, Prólogo, §

2), comum aos pensadores doentes e aos “indigentes” (FW/GC, Prólogo, § 2) discípulos

dessas filosofias. Logo, o diferencial da psicologia da consciência nietzschiana em busca da

grande saúde é justamente o fato de o filósofo se reconhecer diante de outros filósofos e de

espíritos de “quatro costados” (FW/GC, Prólogo, § 3) como alguém que examina as

proporções de saúde e doença na base da formulação de seu próprio pensamento e de todos os

pensamentos basais dos povos, da cultura e do seu tempo (FW/GC, Prólogo, § 2).

A base para a psicologia da consciência de Nietzsche como diagnóstico da grande

saúde consiste em atravessar como um viajante ou um andarilho filósofo por “muitas saúdes”

(FW/GC, Prólogo, § 3), de modo que os vários estados entre doença e saúde que atravessam o

filósofo o conferem a possibilidade de realizar um exame acurado acerca de seu próprio

pensamento e da construção de sua filosofia (FW/GC, Prólogo, § 3) para com isso supor

ladear outros pensadores da história da filosofia e os fundamentos originais dos saberes

presentes na formação do conhecimento e da cultura de seu tempo (FW/GC, Prólogo, § 2).

Voltemos agora à segunda seção do prólogo de FW/GC, onde Nietzsche se apresenta

como psicólogo da consciência, pois dando prosseguimento à apresentação, deveremos ver

como Nietzsche procura demonstrar como o autoquestionamento e a auto-experimentação

fomentam a psicologia da consciência pela relação entre saúde e doença como uma profunda

busca pela grande saúde (FW/GC, Prólogo, § 2).

Diz Nietzsche:

Aprende-se, com essa espécie de autoquestionamento, de auto-experimentação, a

olhar com um olho mais refinado para tudo o que em geral foi filosofado até agora;

adivinham-se melhor que antes os involuntários descaminhos, ruas laterais, lugares

de repouso, lugares de sol do pensamento, a que os pensadores que sofrem,

grandes filósofos e entendemos que estes pertencem à classe dos homens advindos das quatro partes do mundo e

dedicados aos grandes problemas da humanidade. Entretanto TD: PCS traz a passagem da seguinte maneira: “__

Vê-se que eu não gostaria de despedir-me ingratamente daquele tempo de severa enfermidade, cujo benefício

ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou plenamente cônscio das vantagens que a minha instável

saúde me dá, em relação a todos os robustos do espírito. Um filósofo que percorreu muitas saúdes e sempre se

torna a percorrer passou igualmente por outras tantas filosofias: ele não pode senão transpor seu estado, a cada

vez, para a mais espiritual forma de distância –– precisamente esta arte da transfiguração é filosofia” (FW/GC, §

3). A tradução para essa seção seguirá TD: RRTF e a seguiremos por ser referência tradicionalmente aceita para

as obras de Nietzsche, mas, também, por entendermos que a expressão “cônscio” (consciencioso) adotada por

Paulo César de Souza não representa o sentido esperado para a passagem.

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precisamente como sofredores, são conduzidos e seduzidos, sabe-se doravante para

onde, inconscientemente, o corpo doente, com suas necessidades, impele, empurra,

atrai o espírito - em direção ao sol, quietude, brandura, paciência, medicamento,

refrigério em qualquer sentido. Toda a filosofia que coloca a paz mais alto do que a

guerra, toda ética com uma concepção negativa do conceito de felicidade, toda

metafísica e física que conhecem um termo final, um estado terminal de qualquer

espécie, todo preponderante desejo estético ou religioso por um à-parte, um além,

um fora, um acima, permitem que se pergunte se não foi a doença aquilo que

inspirou o filósofo (FW/GC, Prólogo, § 2)

Aqui fica ainda mais claro como para Nietzsche o autoquestionamento e a auto-

experimentação são forças motrizes de sua filosofia e novamente se exalta necessária a

compreensão do significado da questão colocada por Nietzsche no inicio de nossa seção: “que

nos importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2). Para o

psicólogo Nietzsche, o autoquestionamento e a auto-experimentação são as forças primeiras

dos pensamentos e filosofias cujos enredos almejam expressar as riquezas e forças

propulsoras desses pensamentos e filosofias. Assim, para Nietzsche, as filosofias com fundo

conceitual e não enraizadas na experimentação e na suspeita carregam como marca

inconsciente a fragilidade do corpo dos autores na relação entre saúde e doença em que

predomina a doença como expressão filosófica. Pois, a busca de conforto para as fragilidades

do corpo doente os remetem à procura de certo conforto conceitual e de certa segurança,

compostos através de um pensamento diacrônico com a realidade, os corpos e a cultura. Ao

contrário do andarilho filósofo, o qual julga ser Nietzsche, disposto a atravessar os vértices da

doença e da saúde com a exata compreensão de que seu pensamento resulta inteiramente dos

estados volitivos de seu corpo, os filósofos entregues aos estados de doença e saúde dos quais

são compostos são todos conduzidos, juntamente com suas filosofias, para o maravilhoso

mundo dos conceitos: eficazes medicamentos para os sintomas de fraqueza exalados por suas

saúdes e condições fisiológicas. Por isso, assemelham-se àqueles que sofrem das mesmas

fraquezas e assim encontram conforto em seguir essas filosofias. Todos eles, filósofos e

seguidores, no lugar de enfrentar os desafios e fragilidades impostos pela condição

fisiológica, optam por construir e seguir lugares comuns transvertidos em verdades como se

seguissem “involuntários descaminhos, ruas laterais, lugares de repouso, lugares de sol do

pensamento” (FW/GC, Prólogo, § 2) 22

. Deste modo, segundo Nietzsche, o saber produzido

22

É curioso notar, mas Paulo D’Iorio ao tratar de uma estadia de Nietzsche durante um carnaval em Nápoles

relata uma anotação nietzschiana intitulada “Cortejo fúnebre no carnaval”, em que o filósofo se impressiona com

um cortejo fúnebre acontecendo em uma rua lateral ao carnaval (D’IORIO, 2014, p.80). É curioso, pois do

mesmo modo que em uma anotação o filósofo aponta para um culto fúnebre em meio à celebração da vida

durante o carnaval, nessa passagem de FW/GC o filósofo expressa por meio de “ruas laterais” (FW/GC, Prólogo,

§ 2) o lugar onde os filósofos buscam edificar suas verdades no lugar de enfrentar as condições fisiológicas

inerentes à vida.

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pela filosofia até então vislumbra e procura encontrar lugar seguro na elaboração de conceitos

tais como “quietude, brandura, paciência, medicamento, refrigério em qualquer sentido”

(FW/GC, Prólogo, § 2). Ora, segundo o filósofo prussiano, isso ocorre porque os conceitos

configuram sintomas dos corpos doentes de seus autores. Uma vez que uma realidade forjada

em um mundo conceitual se faz muito mais segura do que o enfrentamento da realidade a

partir de todas as fragilidades carentes de serem enfrentadas e superadas pelos corpos

construtores e pelos seguidores dessas filosofias. Em resumo, para Nietzsche, ao contrário, é

preciso enfrentar as condições de doença e saúde do mesmo modo em que se enfrenta uma

guerra.

Consequentemente, o pensamento elaborado pelo filósofo terá que exalar o sintoma de

uma grande saúde, na medida em que será o resultado de grande superação e trará consigo

uma concepção positiva para a ética e para a felicidade, dado que terá alicerce na física

corpórea e não no conforto possibilitado pela ilusão metafísica. Nesse sentido, aos

pensamentos e valores de conforto, descritos pelo filósofo, incluem-se o desejo incondicional

pelos valores de fundo estético-religioso ou metafísico que buscam por “um à-parte, um além,

um fora, um acima” (FW/GC, Prólogo, § 2). Essa é uma grande expressão do psicólogo

Nietzsche, pois ele parte da própria condição fisiológica ou corpórea para chegar aos sintomas

das condições de origem de seus pensamentos e valores e com isso instrumentaliza as bases

de seu empreendimento psicológico, que é ladear os grandes autores e se colocar como

alguém que intervém com perguntas sobre as forças e valores com as quais esses autores

constroem o fundamento de suas filosofias e de seus pensamentos.

Neste ponto, devemos retornar à sequência do segundo parágrafo do prólogo de

FW/GC, onde poderemos ver como Nietzsche em sua análise da consciência afirma existir

uma relação intrínseca entre as várias necessidades fisiológicas do corpo e o pensamento dos

filósofos tradicionais e suas filosofias (FW/GC, Prólogo, § 2).

Para Nietzsche:

O inconsciente travestimento de necessidades fisiológicas sob os mantos do

objetivo, do ideal, do puramente-espiritual, chega até o aterrorizante - e com

bastante frequência eu me perguntei se, calculando por alto, a filosofia até agora não

foi em geral somente uma interpretação do corpo e um mal-entendido sobre o corpo.

Por trás dos mais altos juízos de valor, pelos quais até agora a história do

pensamento foi guiada, estão escondidos mal-entendidos sobre a índole corporal,

seja de indivíduos, seja de classes, ou de raças inteiras (FW/GC, Prólogo, § 2)

Nessa passagem podemos ver como importa para Nietzsche apresentar na segunda

seção do prólogo de FW/GC as suas próprias condições de saúde, ou seja, o estado de suas

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“necessidades fisiológicas” (FW/GC, Prólogo, § 2) diante da composição de seu texto

apresentado no presente livro como pensamento. Pois, tomando a si próprio como exemplo, o

filósofo procura nos revestir de sua profunda sabedoria filosófica, que, sob nosso entender,

consiste em se aprofundar em indagações sobre possibilidades de existência fisiopsicológicas

e se solidifica como uma psicologia da consciência em busca da grande saúde. Neste sentido,

o filósofo se permite ir além das aparências transvestidas pelo manto conceitual “puramente-

espiritual” (FW/GC, Prólogo, § 2) dos filósofos e suas filosofias para afirmar que os seus

ideais, quando revertidos em conceitos, traduzem, no fundo, a aterrorizante realidade de um

corpo doentio. Neste sentido, Nietzsche aponta para o que deve ser o objeto primeiro e a

finalidade de sua filosofia como um profundo exame sobre as condições do corpo na origem

do conhecimento e das filosofias como fios condutores de indivíduos, povos, raças e culturas,

objeto e finalidade, estes tomados por nós como a psicologia da consciência como diagnóstico

da grande saúde.

Para o filósofo, as filosofias, quando desprezam as condições fisiológicas do corpo no

momento de sua construção, não passam de um equívoco interpretativo radicado na

necessidade de conforto presente nas condições e nos estados fisiológicos do organismo dos

indivíduos construtores dessas filosofias, ou seja, no corpo. Nietzsche interroga se não seria o

primeiro a fazer filosofia por meio da experimentação e da análise de sintomas, uma vez que

admite, “calculando por alto” (FW/GC, Prólogo, § 2), que a filosofia precedente não passou

de uma interpretação equivocada acerca de sintomas corpóreos e de um grande “mal-

entendido sobre o corpo” (FW/GC, Prólogo, § 2). Assim, o filósofo vislumbra, “por trás dos

mais altos juízos de valor” (FW/GC, Prólogo, § 2), tão somente as condições de doença e

saúde com as quais estes juízos foram elaborados. Não obstante, os juízos de valor fios

condutores das filosofias erigidas, pelo menos até o instante da construção de FW, e seus

seguidores, fazem-se abrigados e guiados pela índole fisiológica dos pensadores em busca de

valores estáticos e absolutos investidos pela trama dos conceitos em vista de amenizar as

conturbações fisiológicas pela qual atravessam todos os corpos, incluindo-se os de tais

pensadores. Uma vez que os grandes pensadores da história da filosofia se fizeram render ao

emaranhado conceitual e desprezaram a condição fisiológica de seus corpos quando da

construção de seus pensamentos, Nietzsche observa que este fato passou despercebido entre

indivíduos, classes e raças inteiras, de modo que todos os grandes fundamentos da cultura se

embasam em grandes equívocos de juízo com loco na má interpretação das condições

fisiológicas de seus construtores, estas radicadas nos corpos necessitados de “quietude,

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brandura, paciência, medicamento, refrigério em qualquer sentido” (FW/GC, Prólogo, § 2).

Assim sendo, como psicólogo da consciência, Nietzsche indica como objetivo principal de

FW/GC observar pela via dos corpos se o que predomina na origem do conhecimento são as

enfermidades ou a grande saúde.

Novamente, deveremos recorrer a Oswaldo Giacóia Jr. (2013), uma vez que para ele o

psicólogo Nietzsche quando toma como objeto a história da filosofia coloca em suspeita a

origem das forças criadoras em busca de uma profunda patologia ou de uma grande saúde.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Caso tome por objeto de seu minucioso escrutínio a história da filosofia, o psicólogo

não poderá evitar a suspeita e a curiosidade de saber se nela predominaram os

pensamentos que expressam a indigência ou a abundancia, a patologia ou a saúde

transbordante. E, na hipótese de o resultado do exame tornar plausível a suspeita de

que na história da filosofia predominam os pensamentos e os pensadores enfermos,

então aquela curiosidade cientifica pode mesmo se aprofundar e assumir a forma de

uma questão mais incisiva (GIACÓIA JR, 2013, p. 179)

Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2013), quando toma como objeto de sua minuciosa

apuração a história da filosofia, como um psicólogo Nietzsche não evita a suspeita para com

os pensamentos que exprimem a indigência, a abundância ou a doença. Caso um pensamento

da história da filosofia expresse a indigência, o filósofo prussiano a reconhece através de

sintomas com origem na penúria, necessidade ou pobreza, como fonte e origem dos valores.

Entretanto, com isso se coloca em condição de denunciar, como um dever de sua própria

condição humana e diante da humanidade, as motivações da penúria na origem do

pensamento como conhecimento (GIACÓIA JR, 2013). Do mesmo modo, Nietzsche

identifica a abundância em elementos excedentes presentes nos argumentos rudimentares das

filosofias, cujos sintomas não transparecem no patamar das escolas. Porém, é preciso o modo

com que o filósofo os identifica pela sobrepujança do conteúdo do pensamento com relação à

época, à história e à cultura do tempo em que surge e se faz exposto pelo filósofo através do

pensamento (FW/GC, Prólogo, § 2).

Não obstante, quando um pensamento adota sintomas apreciados por Nietzsche como

oriundos de doença, ou seja, como reflexo sintomático de forças não dispostas à exaltação de

poder, o filósofo prussiano busca compreender se na origem da formação dos valores

oriundos por via destes pensamentos estão contidas forças capazes de ultrapassar os limites

morais de sua época ou se simplesmente exprimem valores destinados a conservar os valores

até então dominantes e em conformidade com os padrões exigidos pela época em que foram

compostos (FW/GC, Prólogo, § 2).

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Entretanto, uma vez que o filósofo prussiano identifica como fonte dos valores

presentes na fonte dos pensamentos dos grandes filósofos uma “saúde transbordante”

(GIACÓIA JR, 2013, p. 179), coloca-se como que ladeado com as condições de origem do

pensamento e com isso indaga se o que se vê transbordante (GIACÓIA JR, 2013) deve ser

creditado como resultado real de uma saúde que se expande, qual seja, uma “grande saúde”

(FW/GC, Prólogo, § 2). Logo, pressupondo confirmar a suspeita de que nos pensadores da

história da filosofia e em seus pensamentos prevaleça a doença e não uma grande saúde,

Nietzsche, como um psicólogo, escava com profundidade as entranhas do emaranhado lógico-

conceitual do pensamento e dos autores em busca dos rumores da fraqueza ou da doença

(GIACÓIA JR, 2013).

Deste modo, a ciência que aqui se conforma como sorridente e “gaia”, ou uma

psicologia da consciência, consiste no exame profundo e incisivo dos valores e das condições

de origem dos valores, a partir da possibilidade de acontecimentos históricos da cultura

clássica, da história da filosofia, da cultura moderna, e de todo o pensamento fio-condutor da

história e da cultura (FW/GC, Prólogo, § 2).

Novamente recorremos à terceira seção do prólogo de FW/GC para auxiliar nosso

exame, pois ela deverá nos mostrar como o filósofo prussiano tem no corpo o objeto primeiro

da análise da consciência e não admite a separação de corpo, alma e espírito, por quem, como

ele, dispõe-se a fazer filosofia (FW/GC, Prólogo, § 3).

Diz Nietzsche:

Nós filósofos não temos a liberdade de separar entre alma e corpo, como o povo

separa, e menos ainda temos a liberdade de separar entre alma e espírito. Não somos

rãs pensantes, nem aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com vísceras

congeladas - temos constantemente de parir nossos pensamentos de nossa dor e

maternalmente transmitir-lhes tudo o que temos em nós de sangue, coração, fogo,

prazer, paixão, tormento, consciência, destino, fatalidade. Viver - assim se chama

para nós, transmudar constantemente tudo o que nós somos em luz e chama; e

também tudo o que nos atinge; não podemos fazer de outro modo (FW/GC, Prólogo,

§ 3) 23

Neste ponto, podemos ver como a operação como psicólogo da consciência leva

Nietzsche a afirmar que os filósofos não possuem liberdade para efetuar a separação entre

corpo e alma e menor ainda é a liberdade para pensar a dualidade entre corpo, alma e espírito

(FW/GC, Prólogo, § 3). Ao contrário, para o psicólogo Nietzsche a filosofia deve refletir os

lugares da alma e do espírito junto à fisiologia tendo como base as funções e os limites

23

Todas as citações de Nietzsche para a terceira seção do prólogo de FW/ seguirão TD: RRTF.

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radicados no corpo. Assim, o corpo é o lugar de onde os filósofos devem partir para construir

uma filosofia capaz de contribuir com riquezas e forças para a elaboração e evolução do

pensamento, se é que seja possível um pensamento mesmo, a história de seu tempo e a cultura

(FW/GC, Prólogo, § 2). Deste modo, para Nietzsche, fazer filosofia significa dar à luz aos

pensamentos a partir de estados e condições diagnosticadas entre as condições de doença e

saúde do corpo, uma vez que dos estados fisiológicos do corpo do filósofo surgem forças em

direção à construção de seu pensamento e como os estados fisiológicos mudam

constantemente, carregam consigo a mudança das condições e possibilidades básicas do

próprio ato de pensar (FW/GC, Prólogo, § 3).

Deste modo, a psicologia da consciência como diagnóstico da grande saúde, tem por

meta inquirir o que há de saúde e doença da origem da formação dos valores, do pensamento

de filósofos, da história e da cultura, já que se faz possível questionar se as condições

orgânicas no ponto inicial de um valor são constituídas por estados de saúde ou de indigência,

pela audácia ou temor, valentia ou covardia, excesso e abundância ou escassez e fraqueza, etc.

(FW/GC, Prólogo, § 2).

Aqui reside a importância de Nietzsche apresentar já no início do prólogo de FW/GC o

fato de haver recuperado outra vez a saúde (FW/GC, Prólogo, § 2) quando da construção

deste texto, pois, para o filósofo, o pensamento deve transmitir tudo o que há no corpo de

“sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino, fatalidade” (FW/GC,

Prólogo, § 3). Portanto, essa é a contribuição de Nietzsche como psicólogo quando comparada

aos grandes pensadores da história da filosofia, pois o filósofo prussiano identifica nas obras e

pensamentos de antecessores uma preocupação demasiada com a racionalidade e a precisão

conceitual quando indica que a grande preocupação deve partir da análise dos próprios

estados fisiológicos, saudáveis ou doentios para, então, sugerir estados de consciência como

pensamento, e este é o ponto mais elevado possível de se aproximar da verdade. Ou seja, para

o psicólogo Nietzsche, uma psicologia ou filosofia que busca a grande saúde significa: “Viver

- assim se chama para nós, transmudar constantemente tudo o que nós somos em luz e chama”

(FW/GC, Prólogo, § 3).

Deste modo, Nietzsche agora aponta para a sua filosofia como uma psicologia da

consciência em busca da grande saúde, pois lembra que a origem de sua filosofia se constitui

em sua própria vivência, com tudo o que há de luz e chama, de doença e saúde e de mudanças

incessantes, para, através delas, posicionar-se diante da história, da filosofia e da cultura em

busca de tudo o que há de doença e saúde (FW/GC, Prólogo, § 3).

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Voltemos ao exame do segundo parágrafo do prólogo de FW/ GC, pois o

entendimento dessa passagem deverá elucidar o lugar do corpo na análise da consciência do

psicólogo Nietzsche em busca da grande saúde (FW/GC, Prólogo, § 2).

Diz Nietzsche:

Todos aqueles ousados disparates da metafísica, em particular suas respostas à

pergunta pelo valor da existência, podem-se considerá-los sempre, em primeiro

lugar, como sintomas de determinados corpos; e se essa espécie de afirmação do

mundo ou negação do mundo, em bloco e a granel, cientificamente medidas, não são

habitadas por um grão de significação, dão no entanto ao historiador e ao psicólogo

pistas tanto mais valiosas, como sintomas, como foi dito, do corpo, de seu acerto ou

desacerto, de sua plenitude, potencialidade, autodomínio na história, ou então de

suas obstruções, cansaços, empobrecimentos, de seu pressentimento do fim, de sua

vontade de fim (FW/GC, Prólogo, § 2)

Pode-se ver como Nietzsche se detém na análise dos corpos e tem o pensamento dos

autores da filosofia como sintomas de movimentos transitórios de estados fisiológicos de

doença e saúde enraizados nos limites do corpo (FW/GC, Prólogo, § 2). Por isso, para

Nietzsche, os autores da filosofia não criaram senão “ousados disparates da metafísica”

(FW/GC, Prólogo, § 2), principalmente quando o exercício de pensamento se destina à busca

de respostas pelo valor da existência. Uma vez que os filósofos da história se utilizam da

metafísica para investigar o valor da existência, afastam-se do loco e fundamento da

existência, que é o corpo. Com isso, segundo Nietzsche, constroem a rigor um emaranhado de

edificações sintomáticas de suas próprias existências fisiológicas sob os signos da metafísica,

porém, desprezam o fator fundamental de que seus pensamentos são sintomáticos e devem ser

diagnosticados pelas manifestações originadas em seus corpos.

Eis o método utilizado pelo psicólogo Nietzsche para diagnosticar a pequena e a

grande saúde na filosofia, na história e na cultura, o filósofo examina se o valor emanado traz

contido a afirmação ou a negação do mundo. Tomando como objeto indivíduos ou valores

isolados ou mesmo um conjunto de indivíduos ou um conjunto de valores, o filósofo indaga

se a origem de sua construção ressalta forças afirmativas ou negativas da existência no mundo

(FW/GC, Prólogo, § 2). Deste modo, procura identificar, medir e avaliar valiosas pistas para

encontrar os sintomas da produção dos valores ao medir o estado de significação original do

valor aos estados plausíveis com que presume encontrar no limite do corpo. Portanto, o

psicólogo da consciência deve agir como um historiador e procurar subsídios através da

indagação e suspeita acerca de condições do corpo quando da criação de valores, de modo que

acerto e desacerto, plenitude, potência, autodomínio, obstruções, cansaço, empobrecimento,

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pressentimento de fim e vontade de fim são meros sintomas para o diagnóstico de uma

consciência doentia ou sadia. Ou seja, de um corpo saudável ou doentio como provedor de

tais sintomas por via de pensamentos, valores e verdades.

Neste ponto, devemos novamente recorrer à terceira seção do prólogo de FW/GC, pois

ela deverá elucidar a importância da doença e da dor como substratos da origem das forças no

corpo ou no organismo.

Diz Nietzsche:

E quanto à doença: não estamos quase tentados a perguntar se ela, em geral, nos é

dispensável? Somente a grande dor é o último libertador do espírito, como a mestra

que ensina a grande suspeita, que de cada U faz um X, um bem genuíno X, isto é, a

penúltima letra antes da última ... Somente a grande dor, aquela longa, lenta dor, que

leva tempo, em que nós somos queimados como sobre madeira verde, obriga a nós,

filósofos, a descermos à nossa última profundeza e a tirarmos de nós toda confiança,

tudo o que há de bondoso, adulador, brando, mediano, e em que talvez tivéssemos

posto nossa humanidade. Duvido que uma tal dor "melhore " - mas sei que ela nos

aprofunda (FW/GC, Prólogo, § 3)

Para Nietzsche, embora haja a tentação em indagar se a doença em geral se faz

dispensável, a grande questão a ser colocada, no entanto, é contrária, ou seja, a questão a que

o psicólogo deve se ater é até que ponto os homens poderiam resistir sem o convívio com a

doença. Utilizando-se da alegoria do alfabeto, o filósofo nos mostra que a dor é a grande

libertadora do espírito, pois sob sua influência se aprende a suspeitar e a projetar a suspeita

para além das aparências, uma vez que após a penúltima letra, surge, em sequência, a última.

Ou seja, diante da suspeita, o que o filósofo encontra deve ser aceito como aparência e ponto

de partida para novas suspeitas com indagações ainda mais profundas e essa percepção

somente é possível quando se reconhece e indaga a dor e sua origem, pois ela deverá sempre

indicar os sintomas de sua origem mais profunda no corpo, fazendo com que o “espírito”

(FW/GC, Prólogo, § 3) se liberte dos sintomas e evolua em direção às causas e origens da

doença que está afetando o corpo. Neste sentido, “a grande dor, aquela longa, lenta dor, que

leva tempo” (FW/GC, Prólogo, § 3), tende a ser a mais propícia a elevar o filósofo e lhe trazer

mais forças, já que a grande duração exercita um longo edifício de forças para a travessia e

superação. Entretanto, este ir além e superar das forças não se fincam e permanecem

destinados ao combate da doença, pois com a passagem do estado de doença para o estado de

saúde (FW/GC, Prólogo, § 3) as forças adquiridas devem ser deslocadas para outros

enfrentamentos ainda mais importantes do que a categoria do indivíduo e Nietzsche a dirige à

psicologia da consciência (FW/GC, Prólogo, § 2). Pois, como filósofo e, sobretudo, como

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psicólogo da consciência, percebe ser de sua responsabilidade descer até a última das

profundezas em busca do confronto com o que para os homens se traduz em “confiança”,

“bondade”, “adulação”, “brandura”, “mediação” (FW/GC, Prólogo, § 3).

Neste empreendimento, a dor não melhora ou piora o ser humano, tão menos os

filósofos ou o psicólogo da consciência o qual aceita e se intitula ser o filósofo Nietzsche.

Porém, o que aprofunda (FW/GC, Prólogo, § 3) e o torna mais grave (FW/GC, Prólogo, § 2)

em relação aos outros filósofos, já que convive longamente e aprende com a dor, é o fato de

indagar até a última profundeza com o mais alto grau possível de força e com isso se

fortalecer igualmente pelo maior grau possível de forças para, com elas, mergulhar nas mais

profundas questões da humanidade (FW/GC, Prólogo, § 3).

Devemos ainda recorrer à sequência da terceira seção do prólogo de FW/GC, a fim de

elucidar como a psicologia da consciência nietzschiana toma a vida como problema, pois,

segundo o filósofo, a humanidade perdeu a força da confiança no viver e deve novamente se

aprofundar no exame da consciência, mesmo quando para isso for necessário enfrentar a

doença ou a dor.

Diz Nietzsche:

Seja que nós aprendamos a lhe contrapor nosso orgulho, nosso escárnio, nossa força

de vontade, e façamos como o findo que, por mais duramente torturado, fica quite

com seu torturador pela maldade de sua língua; seja que nos refugiemos da dor

naquele nada oriental - chamam-no nirvana -, no estúpido, rígido, surdo abandonar-

se, esquecer-se, extinguir-se: sai-se desses longos, perigosos exercícios de domínio

sobre si como um outro homem, com alguns pontos de interrogação a mais, antes de

tudo com a vontade de, a partir de então, perguntar mais, mais a fundo, com mais

rigor, com mais dureza, com mais maldade, com mais quietude do que até então se

havia perguntado. A confiança do viver se foi: a vida mesma se tornou em problema

(FW/GC, Prólogo, § 3)

Podemos ver que o filósofo se permite inquirir acerca de várias hipóteses para chegar à

conclusão de que as explicações e justificações da existência com que sempre os homens

puderam contar já não dão conta de satisfazer com rigor as justificativas para os grandes

dilemas e problemas colocados pela vida.

Para Nietzsche, faz-se possível contrapor o escárnio diante do orgulho com que a

humanidade criou e sustentou seus valores e essa possibilidade deve transformar a origem dos

valores, sobretudo, em problemas psicológicos. Deste modo, sugere ser preciso fazer uso das

forças de vontade ao contrapor o escárnio diante do orgulho, tal qual “o findo que, por mais

duramente torturado, fica quite com seu torturador pela maldade de sua língua” (FW/GC,

Prólogo, § 3).

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Se voltarmos novamente à questão com que iniciamos essa seção, “que nos importa

que o Sr. Nietzsche está outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2), devemos entender

que muito importa para o psicólogo Nietzsche, pois quando a doença se sobrepõe à saúde o

filósofo se coloca em combate com o uso de suas forças, a fim de superar os estados doentios

com estados saudáveis (FW/GC, Prólogo, § 3).

Tal qual quem é torturado e no fim “fica quite com seu torturador” (FW/GC, Prólogo,

§ 3), Nietzsche entende que o uso das forças no combate à doença fomenta o crescimento das

forças ao mesmo nível ou ainda com maior intensidade do que as dores trazidas pela doença.

Com isso, crescem as forças do filósofo para o grande combate a que se propõe (FW/GC,

Prólogo, § 3), qual seja, tal como um psicólogo, indagar se na origem dos valores, dos

pensamentos e filosofias se destacam sintomas de forças ativas ou reativas, sadias ou doentias,

de superação ou de conformação, (FW/GC, Prólogo, § 2), de orgulho ou de escárnio, etc.

(FW/GC, Prólogo, § 3).

Em outras palavras, sob a metáfora da tortura, Nietzsche indica que o torturado fica

quite com o torturador, pois entende que o corpo deve ser quite com a doença, uma vez que

esta orienta o desenvolvimento de forças e não a aniquilação, de modo que o corpo uma vez

doente, ao superá-la, fortalece-se e ganha ainda mais forças do que possuía na imediata

situação anterior à doença (FW/GC, Prólogo, § 3).

Prosseguindo, o filósofo reitera o nosso entendimento ao afirmar que o refúgio da dor,

seja ela corpórea ou não, suprime do homem a possibilidade de crescimento e fortalecimento

de suas forças (FW/GC, Prólogo, § 3) e que, portanto, é dever dos homens enfrentar a dor e

superá-la para com o enfrentamento elevar as forças (FW/GC, Prólogo, § 3). Assim,

Nietzsche indica que não será por meio do “nirvana” (FW/GC, Prólogo, § 3) oriental, ou

ainda do “estúpido, rígido, surdo abandonar-se, esquecer-se, extinguir-se” (FW/GC, Prólogo,

§ 3) que o homem vai enfrentar ou mesmo superar as grandes questões e sofrimentos da vida.

Ao contrário, o enfrentamento dos momentos de doença e dor é que faz com que o humano se

fortaleça, pois “sai-se desses longos, perigosos exercícios de domínio sobre si como um outro

homem” (FW/GC, Prólogo, § 3).

Aqui devemos notar a perspicácia de Nietzsche em utilizar da imagem do torturador

como metáfora nessa passagem, pois tal como quem se faz dominado por alguém que o

tortura, quando enfermo ou doente o homem se encontra sob o domínio de um estado que lhe

aflige ou “tortura” (FW/GC, Prólogo, § 3). Para o filósofo, ao combater esses estados o

homem se transforma de tal modo que pode até parecer outro homem.

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Portanto, para a pergunta “que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com

saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2), entendemos que muito importa, pois Nietzsche se anuncia

como outro Nietzsche, ou seja, cumprindo a função do prólogo, o filósofo indica que o

conteúdo e os questionamentos do conjunto de aforismos de FW/GC trazem outro enredo se

comparado às obras anteriores, de modo que o Nietzsche autor de FW/GC se sente fortalecido

por ter recuperado outra vez a saúde (FW/GC, Prólogo, § 2) e passará a indagar e combater

com mais forças seus dilemas, pois se vê mais forte com a nova saúde (FW/GC, Prólogo, § 3),

“com alguns pontos de interrogação a mais” (FW/GC, Prólogo, § 3). Assim, para o homem

que adoece e enfrenta as condições salutares de sua doença em busca de uma nova saúde, tal

como entende ter feito Nietzsche, ao recuperar a saúde recobra a vontade de “perguntar mais,

mais a fundo, com mais rigor, com mais dureza, com mais maldade, com mais quietude do

que até então se havia perguntado” (FW/GC, Prólogo, § 3).

Aqui reside a pretensão de Nietzsche com a psicologia da consciência bastante

presente na obra FW/GC em transformar a confiança do viver em um problema ao “perguntar

mais, mais a fundo, com mais rigor, com mais dureza, com mais maldade, com mais quietude

do que até então se havia perguntado” (FW/GC, Prólogo, § 3). Para Nietzsche, tomar a vida

como problema (FW/GC, Prólogo, § 3) significa indagar, como um psicólogo, os

fundamentos que alicerçam as filosofias, os povos e a cultura (FW/GC, Prólogo, § 2). Ao

adquirir uma possível resposta, o filósofo, como psicólogo da consciência, aprofunda ainda

mais sua pergunta, “com mais rigor” (FW/GC, Prólogo, § 3), “mais maldade” (FW/GC,

Prólogo, § 3) e maior inquietude do que em sua pergunta inicial (FW/GC, Prólogo, § 3). Deste

modo, para esta empreitada o filósofo sugere serem necessárias todas as forças adquiridas

pelo momento de ter recuperado outra vez a saúde (FW/GC, Prólogo, § 2).

Voltemos a Oswaldo Giacóia Jr. (2013), pois a continuidade de sua interpretação nos

dá a exata medida com que Nietzsche diagnostica, como filósofo e psicólogo, os estados

presentes quando da formação da consciência por meio da transfiguração dos estados

fisiopsicológicos em autores da filosofia os quais construíram seus pensamentos como fios-

condutores de valores âncoras da história da filosofia, da sociedade e da cultura.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

A tal diagnóstico chega o Sr. Nietzsche porque, como psicólogo e filósofo, sabe que

há tantas filosofias num pensador quantos são, nos momentos decisivos de sua vida,

os estados de ascensão e declínio que nele se alternam; ou melhor, sabe que um

verdadeiro filósofo, como aquele cuja alma padece de dores de parto, sob a pressão

dos mais dilacerantes estados antagônicos, tem necessariamente que percorrer o

sendeiro de muitas filosofias, pois estas não são senão as modulações filosóficas

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desse sofrimento (...) pois isso, justamente, é a filosofia, - “arte da transfiguração”

(GIACÓIA JR, 2013, p. 185-186)

Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2013), o filósofo e psicólogo Nietzsche tem exata

noção de que o pensamento decorre de estados de saúde e por isso diagnostica através de

sintomas os estados de saúde e doença que alteram a própria filosofia e por isso indaga os

pontos de flexão entre “ascensão e declínio” (GIACÓIA JR, 2013, p. 185-186) na vida e na

obra de autores da história da filosofia. Deste modo, os momentos cruciais da vida de um

filósofo acabam por influenciar seu pensamento como filosofia, de tal face que são tantas as

filosofias quanto são os estados capitais e decisivos vividos pelos autores da filosofia.

Neste ponto, devemos retomar outra vez a pergunta: “que nos importa que o Sr.

Nietzsche está outra vez com saúde?” (FW/GC, Prólogo, § 2) e novamente tomar essa

indagação e seu significado um objeto de importância única para o prólogo de FW/GC e para

a construção dessa pesquisa, uma vez que, segundo Oswaldo Giacóia Jr, a filosofia

nietzschiana comporta tantos estados quanto são possíveis os estados saudáveis ou doentios

enfrentados pelo filósofo prussiano quando da construção do pensamento como filosofia.

Portanto, ao tomar como objeto as próprias condições de saúde, Nietzsche apresenta a própria

a filosofia como resultado de suas condições de doença e saúde e indica aplicar esse exame

diante dos autores da história da filosofia.

De outro modo, segundo Oswaldo Giacóia Jr., Nietzsche se reconhece como

verdadeiro filósofo e distingue o filósofo dos outros tipos humanos, uma vez que este é aquele

“cuja alma padece de dores de parto” (GIACÓIA JR, 2013, p. 186). Ou seja, para Nietzsche, o

filósofo é aquele cuja apreciação de si mesmo e do pensamento fio-condutor da história e da

cultura de seu tempo (FW/GC, Prólogo, § 2) prescinde de uma gestação segundo a qual a

construção do pensamento na alma culmina nas dores de um parto. Isso significa que

acertadamente Nietzsche identifica no próprio pensamento e no pensamento de outros

filósofos sintomas de condições fisiopsicológicas e de situações possivelmente presentes

quando surgem os pensamentos como gestações de forças de exceção ou escassez, de saúde

ou de doença, as quais culminam na expressão de um pensamento como filosofia (GIACÓIA

JR, 2013).

Assim sendo, para Nietzsche, tanto a filosofia como a psicologia da consciência

devem ser tomadas como uma arte de distinguir sintomas diante de transfigurações pessoais

pelas quais ultrapassam o corpo e o autor na gestação de um pensamento e os apresentar

primeiramente diante de estados possíveis quando da construção do próprio ato do pensar.

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Assim diz Oswaldo Giacóia Jr. (2013): “pois isso, justamente, é a filosofia, - ‘arte da

transfiguração’” (GIACÓIA JR, 2013, p. 186).

Portanto, para Nietzsche, fazer filosofia significa se atentar primeiramente aos estados

pelos quais enfrentam o corpo do autor durante o período de construção de um pensamento

como filosofia (FW/GC, Prólogo, § 2). Destarte, sua própria filosofia deve passar pelo exame

das condições de existência com que se originaram os pensamentos, de modo que o sintoma

de ter recuperado outra vez a saúde deve nos advertir para um pensamento ou um momento de

sua filosofia em que se utiliza de renovadas forças de ascese e expansão direcionadas ao

enfrentamento de grandes questões com as quais se orientam a filosofia, a sociedade, a cultura

e a história de seu. Ou seja, a precisa indicação de ter retomado outra vez a saúde deve ser

percebida como uma nova saúde ou um novo fôlego para uma nova ciência, capaz de inquirir

com todas as forças, renovadas e adquiridas, os instantes de parto pelos quais os grandes

índices da filosofia e da cultura construíram um valor e o apresentaram como pensamento

(FW/GC, Prólogo, § 2).

Entretanto, essa nova saúde culmina em uma nova ciência, que agora é gaia, pois faz

da filosofia, como psicologia da consciência, uma busca por sintomas do corpo, da sociedade

e da cultura, no período de gestação do pensamento fio-condutor da sociedade, da filosofia e

da cultura (FW/GC, Prólogo, § 2), de modo que a “arte da transfiguração” (GIACÓIA JR,

2013, p. 186) alcança o patamar de uma medicina de sintomas (FW/GC, Prólogo, § 3) quando

Nietzsche toma por objeto de sua interpretação a sociedade e a cultura, o período de gestação

do pensamento fio-condutor da sociedade, da filosofia e da cultura (GIACÓIA JR, 2013).

E quando o filósofo prussiano toma por objeto os próprios estados de saúde quando da

gestação de sua filosofia, a gaia ciência o permite, como um viajante, experimentar e

ultrapassar os limites impostos pela expressão de conceitos, propondo-se a se entregar de

corpo e alma de lugar a lugar, de sintoma a sintoma e pensamento a pensamento, de modo a

se transfigurar e a transfigurar por inteiro o resultado de seus próprios pensamentos (FW/GC,

Prólogo, § 2).

Neste ponto convém novamente recorrer a uma passagem de EH/EH, pois junto ao

quinto parágrafo da seção intitulada “Por que sou tão esperto” (EH/EH, Por que sou tão

esperto, § 5), poderemos evidenciar como o cuidado do corpo e sua interpretação se faz

capital para Nietzsche e sua filosofia.

Diz Nietzsche:

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Vão-me perguntar por que, propriamente, contei todas essas coisas pequenas e, ao

juízo tradicional, indiferentes: com isso prejudico a mim mesmo, ainda mais se estou

destinado a grandes tarefas. Resposta: essas pequenas coisas - alimentação, lugar,

clima, recreação, a inteira casuística do amor-próprio - são, para além de todos os

conceitos, mais importantes do que tudo a que se deu importância até agora. Aqui

precisamente é preciso começar a reaprender. Aquilo que até agora a humanidade

ponderou seriamente nem sequer são realidades, são meras imaginações ou, dito

mais rigorosamente, mentiras provenientes dos piores instintos de naturezas doentes,

perniciosas no sentido mais profundo (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5)

Neste ponto de EH/EH, Nietzsche se detém na elucidação de como fatos simples da

rotina contribuíram para torná-lo mais esperto, pois, segundo o filósofo, algo grandioso de sua

vida que o distingue das outras pessoas é o fato de se ater às “coisas pequenas” (EH/EH, Por

que sou tão esperto, § 5) de sua vida como uma grande tarefa. Deste modo, as “pequenas

coisas” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5) se tornam de grande valor, pois são elas as que

propiciam as condições de saúde do corpo e diante das condições favoráveis da existência

fisiológica é que o filósofo Nietzsche se põe diante de sua grande tarefa (EH/EH, Por que sou

tão esperto, § 5), inquirir como psicólogo se, na origem dos valores e pensamentos,

transparecem sintomas de força ou fraqueza, abundância ou escassez ou doença ou saúde

(FW/GC, Prólogo, § 2).

Assim, antes de tudo, é preciso que o filósofo se atenha às próprias condições acerca

da “alimentação, lugar, clima, recreação” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5). Porém, não

apenas o filósofo Nietzsche deve se ater a essas condições, mas essa é uma condição basilar

para quem se destina às grandes tarefas, uma vez que o primeiro lugar onde foca o psicólogo

Nietzsche para construir sua filosofia é em sua própria condição de doença e saúde (FW/GC,

Prólogo, § 2). Portanto, o que há de mais importante para o psicólogo Nietzsche são as

condições físicas e fisiológicas de existência (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5), pois elas

são determinantes na construção do pensamento, da filosofia, de um povo ou até mesmo de

toda a cultura. E para o caso do psicólogo que se coloca como tarefa avaliar os mais preciosos

valores da cultura de seu tempo (FW/GC, Prólogo, § 2), o trabalho de cuidar das próprias

condições de existência se faz como uma “casuística do amor-próprio” (EH/EH, Por que sou

tão esperto, § 5), já que essa é a condição fundamental para poder expressar em sua filosofia a

força e a saúde e não a fraqueza e a doença como os principais sintomas de seu pensamento

(FW/GC, Prólogo, § 2).

Eis o motivo pelo qual Nietzsche se considera “tão esperto” (EH/EH, Por que sou tão

esperto, § 5), pois se detém primeiramente nas condições fisiopsicológicas quando da

construção de sua filosofia e pensamento. Por isso considera que o combate a travar como

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“grande tarefa” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5) se torna mais simples, porém, eficaz,

uma vez que não se faz necessário dispensar do interesse para enfrentar as necessidades do

próprio corpo (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5). Neste sentido, pode colocar-se diante

dos grandes pensadores da história e das condições propícias para as origens dos valores e

inquirir se o que transparece como pensamento ou sintoma descende de doença ou saúde

(FW/GC, Prólogo, § 2). Ao constatar sua provável esperteza diante da humanidade, o filósofo

e psicólogo Nietzsche aponta para a ilusão conceitual com que até então se ponderou (EH/EH,

Por que sou tão esperto, § 5), pois com o rigor desprendido diante dos valores e conceitos,

afirma o filósofo, os valores e pensamentos como sintomas até então se mostraram como

“meras imaginações” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5), “mentiras provenientes dos

piores instintos de natureza doentes” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5) ou falsificações

“perniciosas nos piores sentidos” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5).

Aqui podemos ver como novamente o filósofo nos lembra da importância do cuidado

de si e do corpo quando da construção de uma filosofia, pensamento ou valores capazes de

enfrentar como “grande tarefa” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5) as inquietações mais

profundas da humanidade (FW/GC, Prólogo, § 2). Pois, segundo o filósofo, se há algo que o

diferencia verdadeiramente dos homens de “quatro costados” (FW/GC, Prólogo, § 2) é o fato

de não perder tempo com ilusões conceituais (FW/GC, Prólogo, § 2). Ao contrário, como

“casuística do amor próprio” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5) orienta as próprias

condições fisiológicas (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5) e como um psicólogo da

consciência enfrenta o que há de mais sólido na história em busca dos sintomas de doença e

saúde (FW/GC, Prólogo, § 2).

Para finalizar nosso exame da segunda seção do prólogo de FW/GC, podemos ver que

Nietzsche supõe, como um médico filósofo (FW/GC, Prólogo, § 2), que a partir de sua

experiência deverão surgir outros nomes que levarão adiante seu empreendimento de ladear

os mais nobres valores com a suspeita sobre os motivos que os originam, uma vez que a raiz

destes motivos pode conter tanto os impulsos ocasionados por saúde quanto os impulsos

causados por doença.

Diz Nietzsche:

Ainda estou à espera de que um médico filosófico, no sentido excepcional da

palavra - um médico que tenha o problema da saúde geral do povo, tempo, raça,

humanidade, para cuidar -, terá uma vez o ânimo de levar minha suspeita ao ápice e

aventurar a proposição: em todo filosofar até agora nunca se tratou de "verdade ",

mas de algo outro, digamos saúde, futuro, crescimento, potência, vida ... (FW/GC,

Prólogo, § 2)

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Para encerrar o nosso exame sobre a psicologia da consciência como diagnóstico da

grande saúde, pode-se ver como é para Nietzsche o estado de espera por um médico que seja

também um filósofo. Ou seja, sob nosso entender, Nietzsche indica a si próprio como médico

da cultura quando aponta para um psicólogo que como médico diagnostique por meio da

experimentação e da suspeita os diversos sintomas de estados saudáveis ou doentios na

origem da formação dos valores e das filosofias. Não obstante, para exercer a psicologia da

consciência como diagnóstico da grande saúde, este psicólogo deverá ter como problema a

“saúde geral do povo, tempo, raça, humanidade” (FW/GC, Prólogo, § 2), tal qual o

empreendimento anunciado por Nietzsche nessa segunda seção do prólogo como eixo

temático de GW/GC.

No fundo, para além das alegorias, quando tomada a seção aqui examinada pela

formalidade do prólogo, pode-se sugerir que o filósofo se anuncia como psicólogo junto ao

exame da consciência em busca de diagnosticar como um psicólogo ou médico da cultura as

pequenas e a grande saúde. Neste contexto, Nietzsche aponta como diagnóstico para as

pequenas saúdes os “estados de indulgência que fazem filosofia” (FW/GC, Prólogo, § 2) e

propõe como grande saúde o exercício de uma filosofia a partir das riquezas e forças de uma

pessoa. Ou seja, propõe o experimento como elemento primordial para examinar os sintomas

de doença ou saúde na concepção dos valores formadores da consciência de uma pessoa, de

um povo, uma raça e da humanidade.

Deste modo, Nietzsche anuncia como finalidade de FW/GC elevar ao ápice da

suspeita a sua proposição de que a filosofia radicada nos conceitos construídos pelas lacunas

da humanidade sejam sintomas de pequena saúde, ou seja, a pequena saúde está para a

filosofia “como amparo, tranquilizante, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si”

(FW/GC, Prólogo, § 2), sendo que para o psicólogo Nietzsche é preciso suspeitar

radicalmente de todos esses conceitos a fim de se chegar a uma grande saúde, como sintoma

próprio da verdade, do futuro, do crescimento, da vida... (FW/GC, Prólogo, § 2).

Assim sendo, Nietzsche apresenta em FW/GC a sua psicologia da consciência, como

diagnóstico da grande saúde, como uma proposta radical da transvaloração dos valores por

meio do experimento da suspeita em relação aos conceitos de uma filosofia até então

composta por lacunas presentes na opinião de pessoas que até então fizeram filosofia e os

seguidores dessas filosofias.

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Por fim, para a proposta de transvaloração dos valores por meio do experimento como

suspeita, o filósofo se utiliza da própria experiência de momentos entre doença e saúde, onde

projeta a suspeita para as ocasiões das quais supõe terem surgido os pensamentos e as

filosofias na consciência dos filósofos, do povo, da humanidade ou, simplesmente, da cultura

de seu tempo.

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CAPÍTULO II - O DESENVOLVIMENTO DO ORGÂNICO

Observa o rebanho que passa diante dos teus olhos: ele não sabe o que significa nem

o ontem nem o hoje; ele pula, pasta, repousa, digere, pula novamente, e assim da

manhã à noite, dia após dia, estritamente ligado a seu prazer e à sua dor, ao impulso

do instante, não conhecendo por esta razão nem a melancolia nem a tristeza. Este é

um espetáculo duro para o homem, este mesmo homem, que vê o animal do alto de

sua humanidade, mas que inveja por outro lado a felicidade dele – pois este homem

só deseja isto: viver como animal, sem tristeza e sem sofrimento; mas ele o deseja

em vão, pois não pode desejar isto como faz o animal. Talvez um dia o homem vá

perguntar ao animal: ‘Por que tu não falas da tua felicidade, por que ficas aí a me

olhar?’ Se o animal quisesse responder, lhe diria o seguinte: ‘É que eu me esqueço

logo o que queria dizer’ – mas ele também esqueceria esta resposta, e ficaria mudo –

e o homem fica admirado com isso (HL/Co.ext II)24

Esse capítulo visa examinar a consciência sob a via do mundo orgânico, uma vez que

Nietzsche a apresenta em FW/GC como último e mais recente órgão em desenvolvimento do

organismo (FW/GC, I, § 11). Para o feito, temos a seguinte pergunta como a principal questão

do capítulo: Como, para Nietzsche, a consciência se relaciona com o desenvolvimento do

orgânico? E encontramos no aforismo de nº. 11, da primeira parte de FW/GC, datada de

1882, intitulado de “A consciência” 25

(FW/GC, I, § 11), a primeira afirmação a nos guiar na

busca de compreendermos o significado do conceito de consciência como elemento orgânico

no conjunto do organismo em FW/GC.

Vamos a Nietzsche, pois no início do décimo primeiro aforismo de FW/GC, o filósofo

afirma:

A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por

conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado

consciente vem inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir

antes do que seria necessário (FW/GC, § 11) 26

Seguindo essa primeira afirmação, o entendimento inicial que podemos ter acerca do

que é a consciência para Nietzsche e publicado já no ano de 1882 é que em sua concepção a

24

Cf. TD: NCMS. 25

Para esse trabalho, entenderemos o conceito de consciência como ato de estar consciente. Ou seja, o termo

consciência estará entendido por nós como reconhecimento e pertencimento de realidade objetiva, interna e

externamente ao organismo, ao corpo. No entanto, caso surjam novos entendimentos para o significado do termo

“consciência”, trataremos do registro em justificativa feita em nota. 26

Para essa seção, seguiremos TD: PCS. Entretanto, a expressão “último e derradeiro” pode ser observada como

“última e mais recente”, ou “ultimo e mais tardio”. Diante disso, a expressão “último e derradeiro” será aqui

aceita com o de “último e mais recente”) órgão em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11).

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consciência é tida como algo orgânico e em constante desenvolvimento. A consciência, como

“último e derradeiro desenvolvimento do orgânico” (FW/GC, I, § 11), diz Nietzsche, é

organismo vivo e inacabado. Ou seja, em Nietzsche, a interpretação inicial a ser feita quando

tratamos de seu entendimento acerca do significado da consciência é que segundo sua

concepção não há diferenciação clara e tangível entre a consciência como sentimentos,

pensamento ou razão e mundo orgânico em constante desenvolvimento.

Para Nietzsche, o desenvolvimento da consciência é, sobretudo, o mais recente

desenvolvimento orgânico, não acabado, delimitado, e ainda não forte, não duradouro ou

resistente. Neste sentido, a consciência deverá ser entendida por nós como um estado

momentâneo, isto é, estado de um conjunto de forças externas e internas atuando sobre e no

organismo pelas vias da moral, da história, da cultura e, internamente, pelos órgãos do

sentido, pelos órgãos do conjunto orgânico. Sendo assim, do caráter ilimitado e inacabado da

consciência é que o filósofo prussiano lhe atribui perigo ao ser humano de tal modo que o

pode levar ao estado de fraqueza antes mesmo de ser necessário (FW/GC, I, § 11).

Neste ponto, Marcelo Giglio Barbosa (2000) deverá nos auxiliar, pois enxerga na

condição de incompletude da consciência seu valor diante de órgãos do sistema orgânico em

contraposição à relação dos seres vivos com o mundo exterior.

Diz Marcelo Giglio Barbosa:

Em linhas gerais, o pensador faz a consideração de que os seres vivos, em seus

confrontos com o ambiente, tiveram de se munir de órgãos capazes de lhes assegurar

a sobrevivência; a consciência seria um desses órgãos. (...) Das ações e reações do

organismo em relação com o mundo exterior teria surgido a consciência (...)

(BARBOSA, 2000, p. 40)

Podemos ver que Barbosa (2000), quando examina genericamente a questão da

consciência em Nietzsche, aponta para ela como um atributo inerente a todos os seres vivos.

Deste modo, indica que quando Nietzsche expõe a consciência como propriedade de todos os

seres vivos, o faz sob o aspecto do confronto do organismo com o meio ambiente. Quanto a

isso, o filósofo prussiano tem como meta, segundo Barbosa (2000), indagar sobre as

condições de sobrevivência e as necessidades advindas da relação dos indivíduos com o meio

ambiente. No entanto, essa relação dos indivíduos com o meio ocorre tanto no confronto entre

os órgãos do organismo e o sistema orgânico, quanto na relação dos indivíduos com o meio

ambiente externo. Neste sentido, os confrontos presentes na origem da consciência se

encontram tanto dentro quanto fora dos organismos, assim como na relação de um indivíduo e

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sua espécie e também na relação entre uma e todas as outras espécies presentes e concorrentes

em um mesmo meio ambiente.

Assim sendo, segundo Barbosa, Nietzsche entende que os seres vivos tiveram de se

nutrir de um órgão da consciência capaz de lhes assegurar a vida diante dos constantes

conflitos oriundos tanto do ambiente interno, entre os órgãos do sistema orgânico, quanto do

ambiente externo, entre o indivíduo e a espécie e entre a espécie do indivíduo e todas as

outras espécies.

Deste modo, dentre todos os órgãos do sistema orgânico, Barbosa aponta que a

consciência tem o sentido de ser para Nietzsche o principal órgão responsável pela regulação

e manutenção da vida diante de todos os confrontos existentes no meio ambiente interno e

externo ao organismo dos indivíduos, espécies e comunidades orgânicas ou organizadas.

Para Barbosa, a consciência teria surgido como ação e reação dos organismos,

primeiramente, a partir da relação com o mundo exterior. Porém, os conflitos vislumbrados na

relação dos organismos com o mundo exterior sofrem antes os confrontos internos, entre os

órgãos do sistema orgânico, de modo que a consciência teria surgido, como aceita o

comentador, da relação do organismo com o mundo externo.

Entretanto, provavelmente por tratar nessa passagem da questão da consciência em

linhas genéricas, Barbosa (2000) não alcançou a profundidade exigida por Nietzsche como

psicólogo em sua interpretação sobre a origem da consciência, como órgão regulador e

mantenedor da vida (BARBOSA, 2000). Uma vez que antes mesmo de haver o confronto do

indivíduo com o meio ambiente o organismo se constitui em meio aos embates de todos os

órgãos e de todo o conjunto do sistema orgânico para, assim, constituir os organismos de

todos os indivíduos em todas as espécies (FW/GC, I, § 11).

Deste modo, mesmo diante da limitação de sua interpretação neste período, Barbosa

(2000) aponta para uma questão que deverá inicialmente nos guiar no exame da questão da

consciência em Nietzsche, que é a relação do indivíduo com o meio externo pela qual a

consciência se origina a partir de ações e reações no organismo, tanto dos indivíduos agentes

quanto dos indivíduos reagentes (FW/GC, I, § 11).

Nesse sentido, para examinar como Nietzsche apresenta a questão da consciência em

FW/GC a partir do parágrafo 11, devemos examinar ainda o parágrafo de nº. 13, pois,

seguindo a indicação preliminar de Barbosa (2000) de que a consciência em Nietzsche tem

origem na relação do organismo com o meio externo, poderemos ver, no parágrafo 13, a

expressão nietzschiana da relação com o exterior pela via do sentimento de poder (FW/GC, I,

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§ 13). Assim, para esclarecer como Nietzsche considerou a formação da consciência na

relação dos seres vivos em confronto com o ambiente (BARBOSA, 2000) em FW/GC,

devemos agora examinar o parágrafo nº. 13, já que nele o filósofo prussiano apresenta essa

relação por via do confronto pelo sentimento de mais poder (FW/GC, I, § 13).

Vejamos, pois, assim diz Nietzsche:

PARA A doutrina do sentimento de potência. - Com o fazer bem e o fazer mal

exercemos nossa potência sobre outros - mais não queremos com isso! Com o fazer

mal, sobre aqueles a quem ainda temos de fazer sentir nossa potência; pois a dor é

um meio muito mais suscetível para isso do que o prazer: - a dor sempre pergunta

pela causa, enquanto o prazer é propenso a ficar junto de si próprio e não olhar para

trás (FW/GC, I, § 13) 27

Neste ponto, podemos ver como é, para Nietzsche, a relação do organismo com o meio

ambiente, a partir do que o filósofo chama de um sentimento de poder28

(FW/GC, I, § 13).

Pois, como o próprio título sugere29

, o sentimento de poder ultrapassa a condição de ser um

pensamento e se aloca como uma espécie de princípio a guiar os organismos na direção de

algo inerente à própria existência da vida. Sendo assim, colocamo-nos a compreender o bem e

o mal como predicados de sujeitos orgânicos em expansão ou declínio nos confrontos em

defesa e pela expansão da vida.

Logo na sequência, o filósofo expressa que na relação entre os indivíduos e o meio se

exercem o bem e o mal. Pois, assim entendemos, para a expansão de uma força se faz

necessária a inibição de outra, de modo que fazer bem ou mal significa expandir ou inibir as

forças umas sobre as outras. Ou seja, para os organismos que expandem as forças existem

aqueles para quem as forças são inibidas, de modo que o bem para os que se expandem é um

mal para os organismos que se inibem.

Neste caso, segundo Nietzsche, o sentimento de poder seria o predicado de todas as

existências, uma vez que o filósofo aqui aceita como condição fundamental de todas as

existências orgânicas apenas isso: exercer o bem e o mal a outros, não mais ou menos que isso

(FW/GC, I, § 13).

27

Para essa seção seguiremos TD: RRTF. 28

Embora a questão do poder perpasse grande parte da obra nietzschiana e o parágrafo nº. 19 de JGB/ABM

possa ajudar a esclarecer a relação do organismo com a vontade de poder, optamos, neste aspecto, em nos ater à

FW/GC. Por isso, buscaremos compreender a relação da consciência com o organismo a partir da expressão

sobre a vontade de poder no parágrafo 13 de FW/GC. 29

O título do parágrafo, Para a doutrina do sentimento de poder (FW/GC, I, § 13), será entendido com o sentido

de sentimento ou sensação de poder.

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No entanto, antes de fazer o bem, o filósofo entende que a primeira condição orgânica

é a de fazer o mal, uma vez que a primeira espécie de luta dos organismos é pela expansão das

forças sobre outros organismos. Neste caso, fazer o mal é a condição fundamental, pois o que

o organismo espera é exercer poder e expandir suas forças, até mesmo se desse processo

surjam na relação de confronto as categorias de dor e prazer. Embora, neste caso, o exercício

do mal através da expansão de forças vem a infringir dor aos organismos que se inibem.

Mais uma vez, podemos ver como para Nietzsche o mal e a dor são muito mais

importantes de serem observados do que o bem e o prazer diante do sentimento de poder, uma

vez que a expansão de poder quando infringe a dor sempre se pergunta pela origem dessa dor

enquanto o prazer se radica em si próprio e não olha para trás em busca das fontes e origem

dessa condição.

Assim sendo, aqueles organismos que desfrutam da expansão e do prazer acabam por

se deixar mais vulneráveis às ações contrárias enquanto os organismos investidos pela dor

acabam por se tornar mais propícios a buscar sua origem, enfrentar essa dor e a se expandir,

em busca de uma expansão de poder capaz de reverter sua dor em prazer.

Deste modo, fazer o mal carrega consigo importância muito maior do que fazer o bem,

pois com o bem os organismos são propensos a se satisfazerem em si próprios e com o mal se

propõem a buscar pela causa com o fim de enfrentá-la e superá-la em busca do próprio prazer

e com isso tendem a um aumento de forças.

Entretanto, devemos notar que a relação de disputa entre organismos por mais poder

não é um confronto onde se busca o aniquilamento do outro, pois a eliminação do outro

resulta na anulação da disputa e é por meio das disputas que se exercem e se expandem as

forças resultando no aumento de poder no organismo. Segundo apontamos, de um lado,

Nietzsche indica que fazer o mal acaba por elevar as forças tanto de um quanto de outro

organismo, pois àqueles que fazem o mal as forças se fazem expandir e àqueles que sofrem o

mal tendem a encontrar sua origem para com isso também expandir suas forças.

Porém, segundo Nietzsche, as forças se põem em expansão até mesmo quando os

organismos se prestam ao fazer o bem, pois fazer o bem significa deixar ao dispor os

organismos com menor poder. Por isso, quanto mais se exerce o bem aos organismos de

menor poder, mais aumenta o poder daquele que o dispõe, pois mais entregue se faz o

organismo receptor desse poder como um bem. Contudo, enquanto o organismo que cede

poder pelo uso das forças tem no organismo receptor certa tolerância sob seu poder, ao

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organismo receptor em sua luta por mais poder não tem por necessidade retribuir ao poder que

lhe foi outorgado por outro organismo com dispensa de poder.

Deste modo, a disputa por poder no organismo se apresenta como um desfecho

contínuo das relações orgânicas onde ora um organismo conquista poder e ora cede, de modo

que a troca de poder dentro das relações orgânicas se faz absolutamente constante.

Por isso, tanto fazer o mal quanto fazer o bem se configuram no exercício de poder de

um organismo com maior poder sobre um organismo com menor poder. Por um lado, os

organismos quando exercem poder fazem o mal, pois limitam a expansão dos organismos

com menor poder. Por outro, ao fazerem o bem, cedem poder aos organismos com menor

poder e os põe à disposição, pois pela troca de poder os organismos cedentes se expandem

sobre os outros enquanto os que recebem e fazem uso dessas forças também podem se

expandir, de modo que o fazer o bem e o mal se faz como um mecanismo onde os organismos

se expandem segundo mecanismos de força e poder de uns sobre os outros, onde os

organismos que cedem possuem forças excedentes e os que recebem as forças se expandem

(FW/GC, I, § 13).

Para complementar nosso entendimento acerca do sentimento de poder como vontade,

Scarlett Marton (2009b) deverá nos assessorar, uma vez que expõe a vontade como

característica inerente ao sujeito, sendo que, segundo sua interpretação, todas as ações dos

organismos resultam unicamente como efeitos de vontades.

Diz Scarlett Marton:

Ao ser humano não seria facultado exercer a vontade; ela não apresentaria caráter

intencional algum. Ao contrário do que se poderia supor, o sujeito não é o executor

da ação, mas sim seu ‘efeito’. A vontade de potência exerce-se nos numerosos seres

vivos microscópicos que formam o organismo, na medida em que cada um quer

prevalecer na relação com os demais. Ganhando adeptos e esbarrando em opositores,

deparando solicitações que lhe são conformes e outras antagônicas, conjugando-se

com os elementos de disposição concordante e vencendo os que lhe opõem

resistências, ela predomina, enfim, graças ao concerto de uma pluralidade de

elementos” (MARTON, 2009 b, p. 171)

Segundo Marton (2009b), não se faz facultativo o exercício da vontade, uma vez que a

ela não se atribui nenhuma intencionalidade ou caráter. Deste modo, o sujeito pensado por

Nietzsche resulta como efeito de ações de vontade e não o contrário, onde as vontades

resultariam como condições do sujeito. Para a autora, em Nietzsche, o organismo se faz

composto por microscópicos seres vivos (MARTON, 2009b) em constante disputa, uma luta

em que a ação de uns tende a prevalecer sobre os outros e aceitamos que desse constante

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confronto decorrem a expansão e a inibição de poder (FW/GC, I, § 13). Sendo assim,

constitui-se nessa disputa a complexidade do sistema orgânico (MARTON, 2009b), onde

fazer o bem e o mal não passa de um pleno exercício de poder fulgurando dos organismos

mais simples do sistema orgânico, os organismos microscópicos, aos órgãos mais complexos

do sistema e por todo o conjunto orgânico redimido, no caso dos indivíduos, no corpo

(FW/GC, I, § 13).

Neste sentido, vale notar que a condição de querer ressaltada pela autora remete

claramente à permanente disputa entre todos os componentes do organismo, sendo que o

“querer” de cada um influencia positiva ou negativamente sobre o querer dos outros

componentes do sistema orgânico (MARTON, 2009b).

Deste modo, entre opositores e adeptos, o sistema orgânico perpassa situações em que

as condições se fazem favoráveis ou contrárias. Portanto, é pela luta de interesses da cada ser

orgânico microscópico presente no organismo onde a vontade poder prevalece (MARTON,

2009b) e o uso da vontade de uns é o desuso da vontade de outros, ou seja, o bem para alguns

acaba sendo um mal para outros (FW/GC, I, § 13). Entretanto, é pela existência da pluralidade

de elementos que a vontade de poder sempre predomina no organismo, pois, com a

pluralidade de elementos ocorre uma multiplicidade de interesses em constante confronto, de

modo que o organismo vive em constante mudança (MARTON, 2009b).

Podemos observar que neste ponto Scarlett Marton (2009b) analisa a consciência em

Nietzsche por meio de “pensamentos, sentimentos e impulsos” (Marton, 2009b, p. 173). Com

isso, observa pela via da fisiopsicologia nietzschiana não haver diferença entre processos

físicos e processos de consciência, o que faz com que não haja sentido a ideia de consciência

baseada no conceito de espírito, segundo Marton, ou, seguindo o texto de Nietzsche, o

conceito de indivíduo (FW/GC, I, § 11).

Levando adiante essa consideração, Marton (2009b), esclarece que a vontade de poder

já se faz presente nos numerosos organismos microscópicos, como as células, e exerce, por

meio do querer, aplicação de força em relação a outras forças contrárias e distintas, numa

complexa e constante disputa entre os órgãos de todo o sistema orgânico, uma luta por mais

poder.

Deste modo, a explicação dada por Marton (2009b), demonstra não haver para a

consciência opção de escolha tomada com plena liberdade pelos indivíduos, uma vez que a

vontade de poder em ação no organismo não traz consigo caráter intencional de poder, de

modo que toda escolha consciente se faz por escolha direcionada pelo poder advindo do

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sistema orgânico em constante disputa. Ao contrário, a consciência é resultado das regulações

do conjunto de vontades no organismo como vontade de poder e o sujeito consciente é o

resultado imediato de todas as ações de vontade existentes no sistema orgânico. Sendo assim,

podemos afirmar que também para a autora a consciência em Nietzsche é apresentada como

um estado do organismo e esta visão deve esclarecer que Nietzsche supõe a consciência como

efeito das vontades de querer exercendo as forças de vontade sobre a consciência (MARTON,

2009b) e aceitamos que é isso o que quer dizer Nietzsche quando afirma que “Do estado

consciente vem inúmeros erros” (FW/GC, I, § 11).

Neste ponto, como em outras passagens, Wilson Antonio Frezzatti Jr. deverá nos

auxiliar na elucidação e entendimento da interpretação nietzschiana do ponto específico do

organismo segundo sua relação com a cultura, de modo que para complementar a passagem

acima, onde Scarlett Marton (2009b) esclarece a interpretação do filósofo prussiano acerca do

exercício da vontade, Frezzatti Jr. (2005) nos ampara com a explicação de como Nietzsche

tem na noção da fisiologia como impulso um conjunto de forças conferindo a unidade

orgânica tanto do corpo como da cultura.

Diz Wilson Antonio Frezzatti Jr.

No entanto, Nietzsche utiliza o termo fisiológico também em outro sentido:

processos fisiológicos enquanto luta de quanta de potência (impulsos ou forças) por

crescimento. Entender esse sentimento é importante para compreendermos a relação

entre biologia e cultura na filosofia nietzschiana. Esse sentido de fisiologia não pode

ser substituído como sinônimo pelo termo “biologia”, pois ele passa a considerar

não apenas corpos vivos, mas também o âmbito inorgânico das produções humanas,

tais como Estado, religião, arte, filosofia, ciência, etc. em outras palavras, a

“fisiologia”, nesse sentido, extrapola o âmbito biológico: mas ainda se refere a uma

“unidade”, ou seja, a um conjunto de forças ou impulsos. O corpo ou a unidade

orgânica nada mais é, para Nietzsche, do que um conjunto de impulsos

(FREZZATTI JR, 2005, p. 58)

Segundo Frezzatti Jr. (2005), o entendimento da relação entre cultura e biologia é

fundamental para a compreensão da filosofia nietzschiana, uma vez que este juízo traz

consigo certa noção de como estão para o filósofo prussiano a fisiologia, o corpo, a vontade e

a cultura.

Sendo assim, a expressão “fisiologia”, ou “fisiológico”, pode conter o sentido

biológico, mas ainda carregar outros sentidos, como o sentido de luta por mais poder.

Quanto ao sentido biológico, lembra-nos Marton (2009b), a fisiologia remete aos

processos orgânicos presentes no sistema orgânico desde os organismos microscópicos mais

simples até os órgãos mais complexos do sistema, como o órgão da consciência.

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Já Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), indica que tanto a expressão fisiologia quanto

o termo fisiológico podem ser interpretados como um processo de disputa originado nos

impulsos ou forças em que se objetiva o crescimento de quanta, ou seja, objetiva-se o

crescimento de poder.

Sendo assim, quando Nietzsche se refere ao “sentimento de poder” (FW/GC, I, § 13)

logo no título da citação acima (FW/GC, I, § 13), e, na sequência, o integra ao fazer do bem e

do mal, entendemos que sua intenção é apresentá-lo no sentido de luta por mais poder e não

como processo biológico restrito ao organismo do corpo.

Portanto, embora a consciência seja como o “último desenvolvimento do orgânico”

(FW/GC, I, § 11), por sua vez, ela comporta um sentido ainda mais amplo, pois o orgânico em

Nietzsche possui significação exterior aos limites do corpo, embora carregue o sentido do

corpo enquanto organismo biológico.

O sentido mais amplo da fisiologia nietzschiana, diz Wilson Antonio Frezzatti Jr.

(2005), não se restringe aos limites biológicos de um corpo vivo, mas considera todos os

âmbitos de produção dos homens.

Assim sendo, tanto a fisiologia em Nietzsche quanto o sentimento de poder, podem ser

alocados e encontrados nos domínios do Estado, da religião, da arte, da filosofia, da ciência,

etc. (FREZZATTI JR., 2005). Logo, a consciência por seu estado consciente pode fazer com

que o humano sucumba antes do necessário (FW/GC, I, § 11), uma vez que não existe um

estado fixo de consciência, tal qual não existe um estado inerte de organismo ou mesmo de

sistema orgânico, pois o sentimento de poder e as constantes disputas que perpassam o

organismo vivo também podem ser vistas presentes em todas as esferas inorgânicas de

produções humanas através de um conjunto de impulsos ou forças (FREZZATTI JR., 2005).

Neste sentido, diz Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), “O corpo ou a unidade

orgânica nada mais é, para Nietzsche, do que um conjunto de impulsos” (FREZZATTI JR,

2005, p. 58). Ou seja, quando Nietzsche se refere à consciência como desenvolvimento do

orgânico (FW/GC, I, § 11) ou quando se refere ao sentimento de poder como o fazer o bel ou

o mal (FW/GC, I, § 13), profundamente, refere-se à constante disputa de organismos por mais

poder dentro de um sistema de disputa de forças, onde a expansão de poder por alguns resulta

na inibição de poder de outros e não há lugar para a estagnação ou fixação de poder (FW/GC,

I, § 13).

Logo, a consciência como último desenvolvimento do orgânico coloca em risco a vida

do ser humano e a manutenção da espécie (FW/GC, I, § 11), pois, diante do incessante embate

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de forças, sendo o último órgão a se desenvolver, enfrenta contra si a maior resistência no

embate com forças provenientes de outros órgãos já fixados. Ou seja, tanto no sentido

biológico quanto o inorgânico cultural, enfrenta maior resistência de organismos bem mais

antigos, duradouros e com mais poder. Deste modo, há maior resistência para a expansão das

forças (FW/GC, I, § 13), o que faz com que a consciência tenda a se refugiar em elementos

fixos e duradouros, mesmo sendo estes resultantes de juízos equivocados e fantasiosos

(FW/GC, I, § 11).

Agora, voltando ao aforismo de nº. 11 de FW/GC, podemos ver como Nietzsche

apresenta o instinto como um dos mais fortes reguladores da consciência, embora o termo

utilizado para a passagem nos remeta parcialmente ao signo do juízo.

Assim, diz Nietzsche:

“Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse como

conjunto regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e por seu

fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua

consciência; ou melhor: sem aquele, há muito ela teria desaparecido! (FW/GC, § 11)

Nesse ponto, torna-se possível observar como Nietzsche tem no vínculo entre instinto

e consciência uma força reguladora capaz de resguardar a humanidade do desaparecimento

diante dos equívocos de juízo oriundo das fantasias, da fé e da superficialidade dos juízos de

consciência.

Nesta passagem, Nietzsche alerta para a constituição da consciência como mais um

elemento orgânico em desenvolvimento, sob o aspecto das transformações somente possíveis

por meio de forças instintivas como forças regulatórias, pois aceita as forças instintivas como

transitórias e interpreta a consciência como elemento orgânico em transição, transformação e

desenvolvimento.

Destarte, ao contrário do que comumente se infere, para Nietzsche, o que confere à

humanidade a possibilidade de conservação da espécie é justamente a capacidade do instinto

vincular-se ao sentimento de poder como um conjunto regulador (FW/GC, I, § 11) e com isso

conseguir transgredir, evoluir e avançar rumo ao novo, o ousado e inexperimentado, por meio

da expansão de paixões que por algum motivo se inflamam (FW/GC, I, § 13).

Não fosse o vínculo dos instintos e a consciência, como último órgão em

desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), portanto, com menor poder diante de outros

organismos quanto à expansão de poder (FW/GC, I, § 13), tenderia à inadvertida procura pela

fixação e aniquilamento de forças levando, deste modo, ao fim do organismo ou do sistema

orgânico (FW/GC, I, § 11). Ou seja, a consciência disporia do uso de forças para neutralizar a

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relação de disputa por poder desde os organismos mais simples aos órgãos mais complexos do

organismo (FW/GC, I, § 11), assim como do organismo com a espécie e da espécie com todas

as outras espécies (FW/GC, I, § 13).

Não obstante, uma vez que a consciência é órgão de menor poder, ou mesmo o último

a se desenvolver diante do mundo orgânico, essa, face aos instintos, poderia recorrer deste

modo a uma superficialidade radicada por juízos equivocados a crenças estáticas e imutáveis,

levando o conjunto do orgânico à crise e esgotamento total (FW/GC, I, § 11).

Portanto, Nietzsche tem na consciência um órgão vinculado ao instinto como meio

conservador da espécie, pois como um conjunto regulador em meio a paixões do sentimento

de poder como transgressão, evolução e avanço rumo ao novo e inesperado e a fantasias,

juízos equivocados e crenças, desejosos pelo órgão da consciência, permite a manutenção e

avanço da espécie (FW/GC, I, § 11).

Neste ponto, devemos recorrer novamente a Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), pois

logo após a passagem citada acima, o autor apresenta a noção de corpo como questão central

na filosofia de Nietzsche, uma vez que aceita o gênio da espécie como aquele que se

transforma e eleva a cultura ao se utilizar do sentimento de poder, transformando e elevando,

deste modo, a espécie (FW/GC, I, § 11).

Diz Wilson Antonio Frezzatti Jr.

Aqui, a noção de corpo passa a ter um papel fundamental para entendermos a

cultura, principalmente porque o gênio ou o grande homem é aquele capaz de criar

uma cultura elevada: como potencializar os impulsos do homem para que neste surja

o gênio passa a ser uma questão axial da última filosofia de Nietzsche

(FREZZATTI, JR, 2005, p. 59)

Embora a questão do gênio da espécie evolua marcadamente para uma posição central

no último período da produção filosófica nietzschiana (1882-1888), podemos notar já em sua

produção intermediária (1876-1882) o seu surgimento, principalmente quando Nietzsche

avalia o desenvolvimento da consciência como órgão em desenvolvimento do corpo (FW/GC,

I, § 11) e projeta essa análise do orgânico para a organização da cultura como um corpo em

constante transformação e desenvolvimento (FW/GC, I, § 13).

Conforme Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), podemos ver que para entendermos o

lugar da cultura no pensamento de Nietzsche, a noção de corpo assume caráter fundamental,

pois, de certo modo, essa é vista pelo filósofo prussiano como um organismo em constante

desenvolvimento, sendo que o exercício de vontade de poder (FW/GC, I, § 13) pelo gênio da

espécie tende a transformar, desenvolver e elevar a cultura (FREZZATT JR, 2005).

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Do mesmo modo, para a compreensão da consciência como último órgão em

desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), faz-se necessária a compreensão da cultura

como organismo (FW/GC, I, § 13), uma vez que para Nietzsche, assim como indica Barbosa

(2000), tanto a consciência como elemento orgânico quanto a sociedade e as espécies

funcionam como organismo em constante confronto por mais poder (FW/GC, I, § 13), de

modo que para entendermos o desenvolvimento da consciência como elemento do corpo,

precisamos também compreender a evolução da cultura como organismo fomentada pelos

homens de espírito forte, o gênio da espécie (FW/GC, I, § 11), os homens de espírito mau

(FW/GC, I, § 13).

Por conseguinte, o grande homem, o gênio da espécie, o homem de espírito forte

(FW/GC, I, § 4), é aquele capaz de elevar a cultura, uma vez que este é aquele capaz de

potencializar os impulsos pelo mecanismo da vontade de poder e transgredir rumo ao novo e

indeterminado, criando novos valores para uma nova cultura.

Ou seja, Nietzsche espera do grande homem, o gênio ou o homem de espírito forte

(FW/GC, I, § 4), a capacidade de exercer a vontade por meio de paixões adormecidas

(FW/GC, I, § 11), de modo que deste exercício se espera o fornecimento de um conjunto

regulador para uma nova organização, uma vez que este exercício tende a rumar junto ao

novo e ao inesperado (FW/GC, I, § 13).

Deste modo, devemos sublinhar nosso exame da consciência junto ao

desenvolvimento do orgânico, tendo claro que o entendimento da formação da consciência

somente se faz possível diante da compreensão do desenvolvimento da cultura como elemento

orgânico (FREZZATTI JR, 2005), pois os processos de desenvolvimento de um e de outro

são balizados pelo exercício da vontade de poder por alguns mecanismos de expansão de

instintos, paixões ou impulsos, onde ora organismos se expandem e com isso inibem os

órgãos concorrentes (FW/GC, I, § 13), ora estes mesmos organismos se inibem pela força da

expansão dos órgãos concorrentes (FW/GC, I, § 13).

Devemos recorrer agora ao parágrafo de nº. 04 de FW/GC, pois nele identificamos

como Nietzsche tem no avanço da espécie o vínculo entre o uso expansivo das forças pela via

das paixões como uma espécie de maldade e a necessidade de conservação da norma pelos

organismos que não possuem resistência suficiente para expandir suas forças e gerar, com

isso, a necessidade de um novo organismo com uma nova estrutura orgânica ou mesmo

inorgânica para a espécie.

Diz Nietzsche:

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Aquilo que conserva a espécie. –– Até agora foram os espíritos mais fortes e maus

que fizeram a humanidade avançar mais longe: eles sempre inflamaram as paixões

que adormeciam – toda sociedade em ordem faz adormecerem as paixões –, eles

sempre despertaram o senso da comparação, da contradição, do gosto pelo novo,

ousado, inexperimentado, eles obrigaram os homens a contrapor opiniões a opiniões,

modelos a modelos (FW/GC, § 4)

Neste ponto, podemos ver como para Nietzsche a humanidade não se faz conservar

por uma espécie de capacidade ou por necessidade de permanência. Ao contrário, a

humanidade sempre se fez avançar ao superar as condições de existência, sendo que esse

processo de transformação e superação ocorre por conta de forças lançadas por meio de

espíritos fortes diante de todos os outros indivíduos, entendidos por nós como os homens de

espírito fraco (FW/GC, § 4).

Deste modo, a maldade se coloca em completa relação com o uso das forças, uma vez

que o exercer das forças significa transgredir a normalidade e a transgressão implica em um

deslocamento de forças em que a expansão efetuada pelos fortes leva ao recuo das forças dos

fracos. Neste sentido, há maldade no uso das forças pelos fortes, pois a expansão de suas

forças leva ao recuo das forças pelos fracos, sem com isso considerar as consequências para

estes oriundas da transgressão da normalidade e avanço das condições de existência. Pois, ao

avançar rumo ao longe, não se pode prever ou diagnosticar os rumos e a direção da espécie,

ainda mais por ser um avanço realizado por forças de alguns espíritos fortes sobre todos os

outros humanos de espírito fraco.

No entanto, os espíritos maus levam a espécie adiante pela força infringida por paixões

até então adormecidas. Deste modo, essas paixões por ora dormentes, quando irrompem,

emanam de forças capazes de romper com a ordem vigente e terminam por transformar a

norma em exceção, pois emana de um estado excepcional uma nova concepção para a

espécie. Com isso, despertam e originam para a espécie o que nunca antes pôde ser provado

ou experimentado. Ou seja, apresentam um patamar estranho à singularidade normalizadora

da espécie, concedendo a manutenção dessa e não o seu fim ou definhamento. Pois, a

manutenção da espécie sob o digno do incólume erige paixões estanques e tende a induzir a

espécie ao declínio e ao fim (FW/GC, § 4).

Assim, decorre que os fortes se utilizam dos instintos (FW/GC, § 11) para, no

exercício de poder (FW/GC, § 13), produzir avanços na sociedade orgânica e com isso

conservar a espécie diante de todas as outras espécies (FW/GC, § 4).

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Deste modo, acabam por despertar a comparação, a contradição e o novo, levando os

homens a contrapor modelos de estrutura do organismo cultural, tais quais as opiniões, os

valores e os modelos orgânicos (FW/GC, § 4).

Voltemos a Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), pois com ele poderemos compreender

o lugar dos impulsos na fisiologia nietzschiana, ou seja, como o filósofo prussiano entende o

corpo, o organismo e a cultura a partir da expressão dos instintos (FW/GC, § 11).

Diz Wilson Antonio Frezzatti Jr.:

A disposição dos impulsos em um organismo indica sua condição fisiológica: se os

impulsos estiverem hierarquizados, ou seja, organizados segundo um impulso ou

conjunto de impulsos dominantes, o corpo é sadio; se estiverem desagregados,

decadente ou doente. Culturas, fisiologias, morais e pensamentos são expressões

desses impulsos. A vida, para o filósofo alemão, é uma luta constante entre impulsos

para aumento de potência; nessa luta, para crescer, um impulso deve dominar os

outros. Crescimento de potência e exercício de dominação são condições para a

auto-superação, ou seja, para um processo dinâmico e contínuo de incremento de

força ou impulso (FREZZATTI JR, 2005, p. 59)

Aqui podemos ver como Frezzatti Jr (2005) tem na condição fisiológica dos

organismos uma hierarquia disposta pela posição dos impulsos. Segundo o autor, a disposição

do impulso diante de uma hierarquia no sistema orgânico indica os diferentes estados do

corpo, podendo passar de sadio a decadente ou doente. Ou seja, segundo Frezzatti Jr.,

Nietzsche classifica o estado do organismo conforme a disposição hierárquica dos instintos

como estados sadio ou doente.

Deste modo, tanto o corpo biológico quanto as culturas, as fisiologias, as morais e os

pensamentos são avaliados por Nietzsche segundo a disposição em um sistema orgânico

diante da saúde ou da doença (FREZZATTI, JR, 2005).

Deste modo, quando os impulsos são tomados pelo sentimento de poder (FW/GC, I, §

13), por espíritos fortes (FW/GC, I, § 14), ou mesmo pelo gênio (FW/GC, I, § 11) e com isso

promovem mudança e avanço no estado em que se encontra determinada cultura (FW/GC, I, §

13), Nietzsche indica haver uma grande saúde por traz dessa ação. Ao contrário, quando os

impulsos são tomados por sentimento de conservação, por espíritos fracos (FW/GC, I, § 14),

ou mesmo por uma maioria comum (FW/GC, I, § 11) e com isso impedem a mudança e o

avanço no estado em que se encontra determinada cultura orgânica (FW/GC, I, § 13),

Nietzsche classifica existir neste meio a doença ou a decadência.

Portanto, para Nietzsche, segundo Frezzatti Jr. (2005), a condição do organismo deve

ser avaliada segundo a classificação e hierarquização dos impulsos, sendo que aqueles

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hierarquizados conforme um conjunto de impulsos dominantes deve ser considerado sadio,

enquanto os organismos hierarquizados segundo impulsos dominados devem ser considerados

doentes ou decadentes.

Sendo assim, Frezzatti Jr. entende que a vida deve ser avaliada em toda sua

complexidade pela via dos impulsos dominantes e dominados, uma vez que a vida constitui-se

por uma luta constante entre os impulsos em busca por mais poder.

Deste modo, a consciência como “último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e,

por conseguinte, o que nele há de mais inacabado e menos forte” (FW/GC, I, § 11), coloca o

ser humano ao risco de sucumbir antes do necessário, pois como elemento mais tardio é

também o que possui menores forças para dominar com seus impulsos os outros elementos do

organismo. Assim, o órgão da consciência é aquele que enfrenta maior resistência diante de

todos os órgãos do sistema orgânico, uma vez que os impulsos por domínio são em número

maior, por ser também maior o número dos órgãos, o que faz com que os impulsos do órgão

da consciência sejam consequentemente os menos fortes (FW/GC, I, § 11).

Como vimos, Frezzatti Jr. (2005) entende que em Nietzsche a vida e todos os

organismos devem ser avaliados conforme uma disposição hierárquica de impulsos numa

constante disputa por mais poder entre os que dominam e os que são dominados. Entretanto,

para que nessa luta um impulso domine, outros devem ser dominados (FREZZATTI, JR,

2005), de modo que a consciência como último órgão em desenvolvimento no organismo

tende a ser constantemente dominada, uma vez que demanda menor resistência diante dos

outros órgãos com maiores impulsos em maior quantidade (FW/GC, I, § 11).

Por conseguinte, Frezzatti Jr. entende que para Nietzsche a auto-superação ocorre por

um processo dinâmico e contínuo, onde forças e impulsos no exercício de dominação

alcançam aumento de poder. Deste modo, para que a consciência se auto-supere na condição

ocupada junto ao organismo, faz-se necessário o acumulo de forças diante de todas as outras

forças hierarquizadas no conjunto do sistema orgânico.

Do mesmo modo, para que uma cultura se auto-supere e não caia doente ou decadente

dentro desse processo dinâmico e ininterrupto de dominação e declínio de impulsos e forças, é

preciso acumular forças e descarregá-las diante de todas as outras forças hierarquizadas no

conjunto do sistema orgânico.

Neste ponto, devemos retornar a Nietzsche, uma vez que a sequência do parágrafo 04

de FW/GC nos dará exata noção de como o filósofo apresenta a disputa por mais poder e a

superação como meios para a conservação da espécie (FW/GC, I, § 11).

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Diz Nietzsche:

Na maioria das vezes com as armas, derrubando marcas de fronteiras, violando

piedades: mas também com novas religiões e morais! A mesma “maldade” que torna

famigerado um conquistador se acha em cada pregador e mestre do novo – ainda que

se expresse com maior finura, não ponha logo os músculos em movimento, e por

isso não o torne famigerado! Mas o novo é, em todas as circunstâncias, o mau,

aquilo que deseja conquistar, lançar por terra as antigas marcas de fronteira e as

velhas piedades; e somente o antigo é bom! Os homens bons de cada época são os

que cavam fundo nos velhos pensamentos e fazem dar frutos, os lavradores do

espírito. Mas todo terreno se esgota enfim, e o arado do mal precisa sempre retornar.

(FW/GC, § 4)

Aqui podemos evidenciar como Nietzsche tem na disputa pelo poder o elemento de

conservação da espécie (FW/GC, I, § 4), assim como projetar para a organização da cultura a

ideia de como o fazer do mau (FW/GC, I, § 13) é um meio de conservação, mesmo porque

essa projeção se enraíza na explicação nietzschiana da conservação da espécie e traz como

pressuposto o mestre do novo (FW/GC, I, § 4).

Podemos ver que pela metáfora da luta em uma disputa por território Nietzsche

apresenta, por meio da transgressão de fronteiras, as marcas da violação da moral como

norma reguladora da cultura. Deste modo, por via das armas, ou seja, por meio de aparelhos

ofensivos e infratores, o filósofo aceita que o gênio da espécie (FW/GC, I, § 11), ou aquele de

espírito forte (FW/GC, I, § 4), transgrida em direção ao novo, ou rumo a uma nova cultura

(FW/GC, I, § 13), pelo pleno exercício da vontade de poder. Entretanto, a transgressão

articulada dessa maneira poderá ainda gerar novas religiões ou morais (FW/GC, I, § 4). Sendo

assim, tanto a moral e a religião existentes em uma organização cultural estagnada, quanto os

novos valores oriundos da superação de valores por meio da vontade de poder (FW/GC, I, §

13), podem gerar novas religiões e morais reorganizadas como normas a guiar e a gerir uma

nova cultura (FW/GC, I, § 4). Portanto, quando se trata do organismo da cultura, a maldade

presente nos atos de vontade de poder embora transgrida o território da moral e da religião

existentes (FW/GC, I, § 13), podem acabar produzindo e gerando novas morais e religiões

como modelos de gestão de uma nova cultura (FW/GC, I, § 4).

Deste modo, em cada mestre do novo (FW/GC, I, § 4) se encontra um resquício de

maldade, pois essa se encontra na busca pela manutenção do mesmo como sinônimo de

fraqueza tanto quanto na luta pela obtenção do novo como desígnio de força. Portanto, a

“’maldade’” (FW/GC, I, § 4), presente em cada “mestre do novo” (FW/GC, I, § 4), tende a

elevar afamado cada conquistador de novos valores e morais, uma vez que o exercício do

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poder ocorre para estes (FW/GC, I, § 13) como elemento transformador da cultura e

instrumento de conservação da espécie (FW/GC, I, § 4).

No entanto, mesmo que o conquistador e mestre do novo não seja abrupto na

orientação e criação de novos caminhos e possibilidades (FW/GC, I, § 4), ainda assim recairá

sobre ele o desígnio da maldade, pois do mesmo modo deslocará a sociedade e a espécie para

o desconhecido e ainda não experimentado (FW/GC, I, § 13).

Neste sentido, Nietzsche expõe o novo como mau em todas as circunstâncias (FW/GC,

§ 4), uma vez que aceita a ruptura com os vínculos de conservação como marca para tudo o

que se lança como novo. Deste modo, enquanto a consciência ou até mesmo a espécie tem no

vínculo entre o que é antigo e a manutenção dos valores hierárquicos a condição do que é

bom, o gênio da espécie (FW/GC, § 4), ou aquele de espírito forte (FW/GC, § 13), quando

irrompe o novo por meio de paixões adormecidas traz para a espécie um abalo e um rearranjo

nas relações de poder, uma vez que a espécie, a sociedade e a cultura são enraizadas na

preservação de antigos valores morais como uma antiga hierarquia de poder (FW/GC, § 4).

Assim sendo, o que conserva a espécie (FW/GC, § 4) são, ao contrário, os homens

bons, ou seja, os homens de espírito forte (FW/GC, § 13), que, em cada época, escavam a

fundo os valores morais em busca das hipóteses prováveis subscritas quando da formação dos

velhos valores como pensamentos (FW/GC, § 4).

Aqui podemos ver como Nietzsche entende haver inversão de valores, uma vez que

aceita como bons os indivíduos que subvertem, transgredem e ultrapassam as normas e

valores hierárquicos vigentes, enquanto a sociedade, a espécie e a cultura os têm como maus

(FW/GC, § 4).

Deste modo, tendo como um processo cíclico da cultura e da espécie, onde, sob a

metáfora dos lavradores, os homens fortes de espírito se encarregam de escavar a fundo os

velhos pensamentos e normas (FW/GC, I, § 4), Nietzsche aceita que por meio da vontade de

poder alguns indivíduos (FW/GC, I, § 13) trazem à tona paixões adormecidas e com isso

irrompem o novo como meio de conservação da espécie, de modo que este novo, ou essa nova

cultura, acabam tornando-se novamente uma norma (FW/GC, I, § 4), sendo preciso surgirem

sucessivamente novas forças formadoras de novos valores para novas culturas.

Neste ponto, temos mais uma vez uma noção de como a consciência como último

órgão em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, § 11) pode colocar em risco um animal, um

ser humano, a cultura e a espécie, pois, por ser o órgão mais recente no sistema e também o

que enfrenta maior resistência de forças orgânicas, tende a buscar por meio de valores

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equivocados pela supressão dos instintos e pela manutenção de valores hierárquicos por meio

de crenças superficiais (FW/GC, § 4) quando, ao contrário, o que mantém e impulsiona a

evolução da espécie é justamente a superação dos valores e normas por meio da vontade de

poder oriunda de homens de espírito forte quando irrompem das paixões adormecidas

(FW/GC, § 13), sendo que o que até agora a sociedade considerou como indivíduos maus

(FW/GC, § 4) são justamente aqueles que ultrapassam os valores de sua época e irrompem

consigo uma nova cultura, ou seja, são justamente os indivíduos bons.

Devemos agora retomar o exame do parágrafo 04 de FW/GC, desta vez em sua parte

final, onde vemos como Nietzsche pensa como equívoco a moral que induz a manutenção e

conservação com juízos do que é bom e a mudança e transformação como aquilo que é mal

(FW/GC, § 4), de modo que a superficialidade deste tipo de moral acaba por deixar em risco o

ser humano (FW/GC, § 11), a cultura (FW/GC, § 13) e a espécie (FW/GC, § 11).

Diz Nietzsche:

–– Existe agora uma teoria da moral profundamente equivocada, que é bastante

festejada na Inglaterra: de acordo com ela, os juízos “bem” e “mal” são um

apanhado das experiências relativas ao que é “apropriado ao fim” ou “não

apropriado ao fim”, segundo ela, o que chamamos de bom é aquilo que conserva a

espécie, o que chamamos de mau, aquilo que a prejudica. Na verdade, os maus

impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis

quanto os bons – apenas é diferente a sua função (FW/GC, § 4)30

Podemos ver que Nietzsche se utiliza de ironia ao citar uma moral intensamente

equivocada e festejada na Inglaterra, em que o utilitarismo dos juízos justifica os valores

“bem” e “mal” 31

(FW/GC, § 4). Sendo assim, indica que segundo essa moral pragmática o

30

Tradução alterada, pois, segundo nossa gramática, a oposição ocorre entre "bem” e “mal” e “bom” e “mau”,

“bom” e “ruim”. Nessa passagem, portanto, aceitamos que a expressão “bom” e “mal” (TD: PCS) pode ser

entendida como “bem” e “mal”, pois procuramos certa coesão com o texto. 31

Neste ponto, deve ser esclarecedor lembrar que no parágrafo de nº. 04 do prólogo de GM/GM, Nietzsche

afirma ter sido pela ocasião de um livro publicado por Paul Rée no ano de 1877 que lhe surgiram os primeiros

impulsos para a divulgação de hipóteses acerca do procedimento moral (GM/GM, Prólogo, § 4), sendo que

anuncia ainda neste mesmo parágrafo algumas seções onde se faz possível notar essa influência em MAI/HHI,

MAII/HHII, Humano, demasiado humano II, O Andarilho e sua sombra (doravante MAII/HHII, AS) e em M/A.

Já no parágrafo de nº. 07 do prólogo, em GM/GM, Nietzsche afirma ser “a gaia ciência” (GM/GM, Prólogo, §

7), com o destaque elaborado pelo autor, uma marca da jovialidade diante de um sério e longo percurso pela

escavação dos subterrâneos da moral (GM/GM, Prólogo, § 7), com o qual afirma seu desejo em olhar de modo

agudo e imparcial em direção à efetiva e destacada “história da moral”, distanciando-a da moral inglesa

antevista pelo livro de Paul Rée. Deste modo, iremos recorrer a Bertrand Binoche (2014), pois, segundo o autor,

Nietzsche entende que a crítica da moral deve ser também uma crítica histórica e seu procedimento experimental

em contrapor um contrário de outro contrário o levou a se aproximar, por intermédio de Paul Rée, à moral

inglesa, e até mesmo ao pensamento de Darwin (BINOCHE, 2014). Entretanto, por diversos motivos, Antonio

Frezzatti Jr. (2014) sustenta que Nietzsche rejeita as teses darwinistas e uma das principais razões reside no fato

do naturalista inglês entender que a disputa natural por via da luta entre forças tem por finalidade a manutenção

das espécies, enquanto Nietzsche defende ser objetivo da luta por meio das disputas de forças a superação das

condições de existência como fonte da manutenção das espécies (FREZZATTI, JR., 2014). Por nossa vez,

seguiremos Frezzatti Jr. (2014) e entendemos que Nietzsche se utiliza de fina ironia na passagem acima como

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desígnio “bom” se faz destinado a tudo aquilo que é “apropriado ao fim” (FW/GC, § 4),

enquanto o termo “mau” é designado a tudo aquilo “não apropriado ao fim”.

Deste modo, devemos lembrar que o filósofo prussiano entende que a conservação da

espécie, ao contrário, ocorre por meio dos espíritos maus e fortes (FW/GC, § 4) no uso da

vontade de poder (FW/GC, § 13). Com o uso das forças da vontade de poder, os homens maus

(FW/GC, § 04), os de espírito forte (FW/GC, § 13), ou o gênio da espécie (FW/GC, § 11),

acabam por elevar a cultura por meio da expansão de paixões adormecidas e alavancam a

espécie diante de todas as outras espécies (FW/GC, § 13). Deste processo, entretanto, resulta a

conservação diante de todas as outras espécies, pois a estagnação das forças de uma espécie,

uma sociedade organizada ou até mesmo uma cultura orgânica (FW/GC, § 4) são tidas pelo

filósofo prussiano como o princípio da decadência e do fim, do mesmo modo com que a

consciência como último órgão em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, § 11) põe em risco

a existência da espécie, uma vez que sua tendência é pela procura por uma estagnação

igualitária do uso das forças, sendo capaz até mesmo de se entregar a juízos equivocados,

fantasias de olhos abertos, à crença e superficialidade (FW/GC, § 11) diante da natureza,

impulsos (FW/GC, § 04) e valores humanos (FW/GC, § 13).

Como vimos, para Nietzsche, os impulsos maus são tão ou mais apropriados para a

manutenção da espécie quanto os impulsos entendidos por alguns moralistas como bons

(FW/GC, § 04). Vale ressaltar, utilizamo-nos da expressão “moralistas” (FW/GC, § 04) tal

qual foi cunhada pelo autor, pois, enquanto alguns elementos dos sistemas orgânicos tendem a

vislumbrar o “bem” (FW/GC, § 04) presente no impulso de conservação (FW/GC, § 13) e o

“mal” junto aos impulsos de transformação e superação (FW/GC, § 04), Nietzsche entende

que a finalidade de conservação e preservação da espécie se encontra tanto no “mal” (FW/GC,

§ 04) quanto no “bem” (FW/GC, § 04), ou seja, tanto na conservação de um estado orgânico

(FW/GC, § 13) quanto na superação deste estado, dependendo, deste modo, das forças dos

organismos envolvidos na disputa dentro do sistema, sendo que para os fracos de força de

vontade de poder todas as alterações são más, enquanto para os fortes as alterações do

organismo são boas, uma vez que resultam da expansão de suas forças e trazem como

consequência o aumento de poder.

crítica aos moralistas ingleses, pois aceitamos ser objeto de sua preocupação expor como a disputa de forças, por

meio da superação de umas sobre as outras, é condição natural para a manutenção das espécies (FW/GC, § 4).

Deste modo, aceitamos que a crítica à moral festejada na Inglaterra (FW/GC, § 04) diz respeito à crítica de uma

crítica dos valores não disposta a se aprofundar, a partir da experimentação, no exame das questões fundamentais

da existência, com base na fisiologia do orgânico, tal qual se propõe em FW/GC o psicólogo Nietzsche (FW/GC,

Prólogo, § 2).

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Portanto, tanto os impulsos maus quanto os bons fortalecem os sistemas orgânicos,

sociais e culturais como meio de expansão e conservação da espécie (FW/GC, § 13). Deste

modo, a consciência como último órgão em desenvolvimento do organismo (FW/GC, § 11),

assim como os valores morais quando tratam da transformação e expansão do orgânico por

via das forças (FW/GC, § 13) como sendo algo mal (FW/GC, § 04), trazem risco à

conservação da espécie (FW/GC, § 11), pois para a manutenção se faz necessária a expansão

de forças por meio de paixões despertas (FW/GC, § 04) e da transformação (FW/GC, § 13).

Neste ponto, devemos voltar a Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), pois podemos

observar que segundo seu entendimento, Nietzsche conjectura a hipótese de que se faz

necessária a rejeição utilitária, ou até mesmo pragmática, da interpretação dos impulsos por

algumas morais e isso deve corroborar com o juízo empreendido pela análise elaborada por

nós até agora.

Diz Antonio Frezzatti Jr.:

O que o filósofo alemão tem como pressuposto é rejeitar o princípio de “estar bem

apenas por existir”: a moral que serve para consolidar uma cultura deve ser, a seu

tempo, abandonada. Cada ciclo inicia-se com a imposição de uma perspectiva e

termina com sua superação, ou seja, com a imposição de uma nova perspectiva, que

é o início do ciclo seguinte. A conservação de uma perspectiva impede o surgimento

de um novo ciclo, significando estagnação (FREZZATTI JR, 2005, p. 61)

Podemos ver que para Frezzatti Jr. (2005), Nietzsche tem como princípio a rejeição de

todos os pressupostos morais que reduzam ao bem-estar a grande e única razão da existência.

Deste modo, indicamos que o filósofo prussiano rejeita a ideia de que o conforto e a plenitude

são os lares dos grandes anseios da humanidade, da espécie ou da cultura, pois, ao contrário,

entendemos que Nietzsche tem no embate de forças e na luta por mais poder esse elemento

crucial da espécie e da cultura, de modo que aceitar como princípio o bem-estar por existir

deve significar rejeitar as propriedades mais singulares da própria existência. Portanto, uma

vez que, segundo o pensamento nietzschiano, o princípio de estar bem como predicado último

da existência deve ser rejeitado, Frezzatti Jr aponta que uma cultura precisa se valer de

valores morais e os abandonar para se materializar diante de todas as outras culturas. Ou seja,

sustenta existir, a partir do pensamento nietzschiano, a necessidade de um processo cíclico em

que valores e normas são utilizados como instrumentos condutores da cultura até certo estágio

quando se fazem necessários de entrarem em cena outros e novos valores e normas, com o fim

de dar conta de regular e elevar uma nova cultura.

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Assim sendo, a cultura se faz renovada por ciclos, em que emergem novos valores dos

valores vigentes e junto com estes uma nova organização da cultura. Deste modo, um ciclo se

inicia quando impõe uma nova possibilidade para a espécie cultural organizada e deve durar

até o limite em que um novo ciclo se inicie com outra e nova perspectiva para o organismo

cultural.

Entretanto, quando as forças em ação em um organismo cultural atuam em prol da

conservação de um estado da cultura, como no exemplo do princípio de estar bem apenas pela

existência, estas acabam por dificultar a evolução da espécie e da cultura, uma vez que obstam

a expansão de forças e impedem o surgimento do novo.

Portanto, neste ponto Frezzatti Jr. (2005) defende que para Nietzsche é preciso rejeitar

o princípio de conservação do estar bem por existir como fundamento da existência, uma vez

que entende que uma moral deve existir de modo cíclico apenas no tempo limite até o

surgimento de uma nova moral como base para uma nova cultura.

Aqui, entendemos que o pensamento de Nietzsche de que não se deve atribuir os

valores “bem” e “mal” (FW/GC, § 04) ao que é e ao que não é apropriado a um determinado

fim, diz respeito ainda a este aspecto da organização da cultura como organismo

(FREZZATTI, JR, 2005), uma vez que o bem estar por existir pode ser encerrado como um

“bem” por diversas morais, enquanto tudo o que não for propício à manutenção deste aspecto

pode ser considerado um “mal”. No entanto, aceitamos como em Frezzatti Jr. (2005) que para

Nietzsche a cultura enquanto organismo não deve fazer dos valores “bem” e “mal” aquilo que

se faz útil para a conservação de um estado moral e precisa dar vazão a forças de expansão e

transformação da cultura (FREZZATTI, JR, 2005), de modo que a evolução do estado do

organismo cultural deve levar à evolução propiciando a manutenção da espécie (FW/GC, §

04).

Devemos agora retornar ao exame do parágrafo de nº. 11 de FW/GC, pois sua

sequência deverá ampliar nosso entendimento da consciência como último elemento em

desenvolvimento do orgânico, assim como melhorar e subsidiar nosso conhecimento acerca

de como a consciência pode se constituir como um perigo para o organismo.

Diz Nietzsche:

Antes que uma função esteja desenvolvida e madura, constitui um perigo para o

organismo: é bom que durante esse tempo ela seja tiranizada! Assim a consciência é

tiranizada – em boa parte pelo orgulho que se tem dela! Pensam que nela está o

âmago do ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, primordial! Tomam a

consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas

intermitências! Veem-na como ‘unidade do organismo’! (FW/GC, § 11)

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Com essa passagem, podemos notar que para Nietzsche uma função se constitui como

um perigo para o organismo antes de se desenvolver e maturar plenamente e por isso o

filósofo sustenta que a consciência deve ser tiranizada.

Deste modo, entendemos a sustentação elaborada por Nietzsche de que a consciência

como último elemento em desenvolvimento no organismo deve ser tiranizada na relação com

os outros órgãos do organismo, uma vez que é tida por ele como em desenvolvimento e

imatura diante do desenvolvimento do complexo do sistema orgânico.

Assim sendo, em vista do próprio orgulho que se tem da consciência, Nietzsche afirma

que ela deve ser tiranizada, pois segundo a visão do filósofo como elemento mais frágil do

organismo não se faz possível atribuir à consciência um papel ou uma função reguladora

diante de todos os outros órgãos.

Portanto, Nietzsche observa no instinto e nos impulsos maior força de vontade de

poder diante do órgão da consciência e contra ele e por isso atribui como necessidade o

exercício de toda uma tirania contra a consciência.

Neste ponto, faz-se clara a crítica de Nietzsche para com a intenção de normas e

instintos de conservação diante de seu entendimento acerca da consciência como órgão em

desenvolvimento do orgânico, já que a tentativa de inferir à consciência um meio regulatório

das forças resulta na estagnação de suas forças e impede seu crescimento.

Embora, quando se sucede o contrário, em que a consciência se faz tiranizada por

outras forças do sistema orgânico, a consciência acabe por se fortalecer, pois a luta dentro do

sistema se faz como uma luta por mais poder.

Logo, não se deve tomar a consciência como uma grandeza ou uma mera unidade do

organismo, pois esse pensamento é equivocado e impede a exata compreensão da dimensão

da consciência, tal qual seu crescimento diante de todos os órgãos do sistema orgânico e sua

real grandeza (FW/GC, § 11), pois, a consciência, de fato, é o resultado imediato de um

intenso combate de forças dentro do organismo que vai dos organismos microscópicos mais

simples aos órgãos mais complexos e destes para aqueles (MARTON, 2009b), de modo que a

projeção deste processo para o mundo exterior influencia a consciência do mesmo modo que

o mundo exterior altera as forças presentes neste processo (FW/GC, § 11).

Chegamos a um ponto em que devemos recorrer novamente a Wilson Antonio

Frezzatti Jr. (2005), pois o autor nos auxilia a esclarecer o aspecto do organismo na obra de

Nietzsche, principalmente diante da relação entre organismo enquanto biologia e como

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cultura, diante do uso das forças por vontade de poder. Sendo assim, deverá indicar que para

Nietzsche tanto o organismo vivo quanto a cultura enquanto organismo são apenas aspectos

de uma luta de forças por vontade de poder, onde o exercício de domínio de um organismo

sobre outro é apenas um aspecto de um processo de luta permanente por vontade de poder.

Diz Wilson Antonio Frezzatti Jr.:

Os impulsos não são nem biológicos, nem culturais: a cultura e o organismo vivo

são apenas aspectos da luta entre as forças. O domínio que um organismo exerce

sobre o outro (ou que uma célula exerce sobrea outra, uma molécula, um tecido, ou

um órgão, ou o que pudermos propor constituir um organismo) é o mesmo processo

que ocorre quando uma educação ou uma seleção age sobre um organismo: luta de

impulsos por mais potência (FREZZATTI JR, 2005, p. 64)

Podemos ver que para Frezzatti Jr. (2005), os impulsos presentes no sistema orgânico

não possuem caráter unitário na relação entre biologia e cultura, de modo que não são

possuem equivalência biológica ou cultural como unidade atômica.

Deste modo, tanto a cultura quanto o organismo biológico são interpretados por

Nietzsche como aspectos de um conjunto de forças em disputa por vontade de poder, de modo

que essa luta tende à evolução e aumento de poder e não a anulação e aniquilamento do outro.

Assim sendo, se num instante um elemento do sistema orgânico está no domínio por

possuir maior poder, no próximo pode ser dominado, uma vez que sofre constantemente ação

de todos os outros órgãos do sistema orgânico e disto decorre que tanto a cultura pode

influenciar o aspecto biológico quanto o atributo biológico interferir de forma decisiva na

transformação e evolução da cultura.

Segundo Frezzatti Jr., tanto uma célula pode exercer domínio sobre outra, quanto um

organismo dominar outro, ou mesmo uma molécula, um tecido, um órgão, ou, como

pudermos supor, os elementos na constituição de um organismo, podem exercer controle

sobre o sistema orgânico, como o conjunto de forças do organismo pode controlar uma

molécula, um tecido, um órgão, uma célula, etc. Deste modo, por meio de impulsos o

complexo sistema orgânico se constitui como apenas uma feição de uma constante disputa de

forças ininterruptas dentro do organismo.

Destarte, esse processo promovido pelos órgãos do sistema orgânico a partir de uma

luta constante por mais poder é visto por Nietzsche quando interpreta a formação da

consciência como último e mais recente órgão em desenvolvimento no organismo (FW/GC, §

11) como na luta pela conservação da espécie entre os indivíduos da mesma espécie e também

entre uma e outra espécie (FW/GC, § 13), pois nesta via o filósofo interpreta a constituição do

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mundo como um processo de disputa por expansão de poder, em que os impulsos pela

expansão e inibição de poder são os meios com que sistemas orgânicos superam a condição de

existência (FW/GC, § 13), enquanto os impulsos por conservação colocam em risco a espécie

(FW/GC, § 04), pois tendem a levar ao aniquilamento dos órgãos do sistema e a consciência,

como último órgão em desenvolvimento, traz consigo risco para o sistema, uma vez que tende

a se utilizar de forças de conservação ante as forças de expansão porque carece de forças

diante da disputa com todos os outros órgãos (FW/GC, § 11).

Portanto, a luta por impulsos presente no organismo biológico está presente também

na educação e na cultura (FREZZATTI JR, 2005) e tanto a educação quanto a cultura estão

em disputa constante alterando-se e superando-se, assim como agindo em atuação nos

organismos biológicos, pois a assimilação da educação e da cultura ocorre por meio de

impulsos provenientes do órgão da consciência, com ação na direção de todos os outros

órgãos do sistema orgânico (FW/GC, § 11).

Neste ponto, devemos retomar o exame do parágrafo de nº. 13 de FW/GC, pois a

análise de sua sequência deverá esclarecer como o sentimento de poder por meio do bem ou

do mal não altera o valor das ações, uma vez que todas as ações aqui têm como pressuposto a

expansão de impulsos por ampliação de poder.

Diz Nietzsche:

Se, ao fazer bem ou mal, fazemos sacrifícios, isso não altera o valor último de

nossas ações, mesmo se pomos nisso nossa vida, como o mártir por sua Igreja - é um

sacrifício feito ao nosso desejo de potência ou para fins de conservação de nosso

sentimento de potência (FW/GC, I, § 13).

Aqui podemos ver que para Nietzsche (FW/GC, § 13) o bem e o mal não podem e não

devem ser considerados por uma expressão de valor regulatória do conjunto das ações, uma

vez que tanto um quanto o outro resultam da composição de impulsos advindos de um

complexo sistema orgânico por mais poder.

Deste modo, se um sacrifício é feito, ou seja, se se deixa por algum motivo de exercer

o poder com o fim de se redimir diante de outras forças de poder, o filósofo entende que isso

ocorre como uma espécie de estratégia em que a negação do uso das forças as acumula,

enquanto o organismo oponente passa a desprender menor força nesta disputa.

Portanto, nenhum “sacrifício” (FW/GC, § 13) altera o valor das ações, pois as ações

resultam de impulsos e não são em si nem boas nem más. Logo, não se deve atribuir a essas

ações os valores do bem ou do mal (FW/GC, § 13).

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Com a finalidade de materializar esse elemento de sua teoria do sentimento de poder,

Nietzsche lança mão do exemplo de um mártir em sacrifício pela “Igreja” (FW/GC, § 13),

com destaque dado pelo filósofo para o termo igreja, sendo que, segundo o filósofo, um

sacrifício efetuado por um mártir de igreja não indica nada além de um conjunto de impulsos

de vontade de poder em ação na tentativa de alcançar mais poder ou mesmo com a intenção

de conservar o sentimento de poder (FW/GC, § 13).

Deste modo, até mesmo uma ação tomada por um mártir de igreja em que sacrifica

impulsos de vontade de poder deve ser entendida como ação decorrente de vontade de poder

com a finalidade de conservação ou mesmo aumento de poder, de modo que a esse tipo de

ação não se deve atribuir as noções do bem ou do mal.

Enquanto o mártir religioso pode até considerar a sua ação como boa, Nietzsche

entende que uma ação deste tipo não deve ser considerada nem boa nem má, ao contrário,

deve ser entendida como uma ação por sentimento de poder em busca de mais poder.

(FW/GC, § 13).

Assim sendo, para Nietzsche, as ações por vontade de poder de um organismo não são

boas ou más, pois caracterizam elementos básicos de toda estrutura organizada, em que tanto

o desejo pela conservação de poder quanto o de expansão tem como finalidade a superação de

valores e a conservação da espécie diante da disputa com outras espécies (FW/GC, § 4), de

modo que a anulação do uso de forças de vontade de poder é vista pelo filósofo como meio de

acúmulo de forças diante de outras forças de vontade de poder (FW/GC, § 13).

Portanto, tanto os sacrifícios quanto os esforços e tanto o bem quanto o mal quando

resultam de ações do organismo (FW/GC, § 13), não carregam consigo valores morais, pois o

valor último e fundamental da ação está contido no próprio ato de agir, sendo que os impulsos

motores da ação são os desejos pelo aumento ou pela manutenção do poder.

Neste ponto, podemos voltar a Wilson Antonio Frezzatti Jr. (2005), pois identificamos

na expressão do autor a ideia de como as hierarquias se formam no organismo por meio do

vir-a-ser, de modo que aos impulsos por mais poder se pode ainda atribuir uma condição

seletiva.

Diz Wilson Antonio Frezzatti Jr.:

O vir-a-ser nada mais é do que o enfraquecimento de forças ou impulsos por mais

potência – formam-se (bilden) hierarquias que são organismos ou instituições: a

dominação que uma hierarquia exerce sobre a outra ou um impulso sobre o outro

pode ser entendida como um processo educativo ou seletivo (FREZZATTI JR, 2005,

p. 59)

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Podemos ver que para Frezzatti Jr. (2005), são os impulsos e forças os controladores

do organismo e da cultura, de forma que seu aumento ou enfraquecimento determinam o vir-

a-ser tanto de um quanto de outro.

Deste modo, a transformação e a superação significam o enfraquecimento ou o

fortalecimento de forças atuando dentro do sistema orgânico, uma vez que a expansão ou a

diminuição de forças trazem como consequência ao sistema uma mudança ou transformação.

Assim sendo, desenvolvem-se hierarquias dentro do sistema conforme se apresenta a

disposição de forças, onde as forças de maior poder dominam e as de menor poder são

dominadas.

Entretanto, a dominação exercida entre os impulsos ou hierarquias podem se

consolidar como um processo seletivo e educativo, onde se aprende a conformação diante de

outras forças.

Deste modo, as forças com menor poder dentro do sistema orgânico podem terminar

por demandar sempre menor força, pois derivam de um processo excludente diante de outras

forças com maior poder no organismo.

Portanto, segundo Frezzatti Jr., Nietzsche entende que dentro do processo de

fortalecimento e enfraquecimento de forças diante de impulsos acaba produzindo uma

hierarquia dentro do sistema orgânico onde os órgãos do sistema acabam por consolidar seu

lugar e a intensidade das forças por meio de um processo de seleção, exclusão ou educação, se

nos referirmos ao organismo como organização da cultura.

Devemos agora retornar ao exame do parágrafo de nº. 13 de FW/GC, pois

encontramos na sequência como Nietzsche expõe o sentimento de vontade de poder a partir

da relação com o sentimento de posse sobre a verdade e com isso indica que o estado em que

se faz o mal, ou seja, em que se exerce o poder sobre outros, é sinônimo de abundância de

poder, enquanto o fazer o bem ou mesmo sofrer de forças de vontade de poder representa um

sintoma de ausência, fraqueza ou escassez de poder.

Diz Nietzsche:

Quem sente: "estou na posse da verdade", quantos bens não deixa escapar, para

salvar esse sentimento! O que não lança ao mar, para conservar-se no "alto" - isto é,

acima dos outros, que carecem da "verdade"! Com certeza o estado em que fazemos

mal raramente é tão agradável, tão limpidamente agradável, quanto aquele em que

fazemos bem - é um signo de que ainda nos falta potência ou denuncia o despeito

por essa pobreza, traz consigo novos perigos e inseguranças para nossa atual posse

de potência e cerca de nuvens nosso horizonte, pela perspectiva de vingança,

escárnio, castigo, insucesso (FW/GC, I, § 13).

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Neste ponto, podemos ver que para Nietzsche, o sentimento de posse sobre a verdade

impede o desfrute de outros sentimentos (FW/GC, § 13). Aqui indicamos que isso ocorre

porque uma conformação diante de tal sentimento limita a consciência e o organismo diante

de outros impulsos como forças de vontade presentes em diversos outros tipos de sentimentos

(FW/GC, § 4).

Deste modo, quando um organismo encontra na verdade (FW/GC, § 13), ou seja, na

estagnação e conformação de impulsos (FW/GC, § 11) de vontade de poder (FW/GC, § 13)

por se conformar com um ideal alcançado, termina por dispor de forças apenas para a

manutenção deste estado, onde tudo o que não se assemelhar a este estado passa a ser

combatido com a finalidade de conservação de um estado de poder.

Não obstante, segundo o filósofo prussiano, a derradeira verdade, ao contrário, decorre

do convívio com impulsos de todos os tipos, não apenas os conformados em um supracitado

ideal de verdade (FW/GC, § 13), uma vez que o conjunto regulatório da existência é orgânico

e como organismo conforma a disputa por poder entre todos os órgãos do sistema (FW/GC, §

11), desde os organismos mais simples até os órgãos mais complexos como o órgão da

consciência.

Neste sentido, utilizando-se da metáfora dos que se lançam ao mar, Nietzsche

confronta a posse da verdade com a metáfora daqueles que se conservam no “alto” (FW/GC,

§ 13) de suas verdades, onde o sentido de uma vida em posse da verdade diante de uma

existência radicada em impulsos por vontade de poder deve ser entendido como uma vida em

posse de falsos valores, uma vez que a verdade se encontra com aqueles capazes de se lançar

para uma existência fundada nos impulsos por vontade de poder.

Destarte, conclui que aqueles conformados no alto de suas verdades estão muito

distantes da verdade, uma vez que a verdade a ser radicalmente enfrentada se assenta em um

infinito de possibilidades decorrentes de encontros e desencontros, superação e declínio, tais

quais as forças presentes em cada molécula na completude de um oceano ou do mar.

No entanto, Nietzsche diagnostica uma espécie de fraqueza em organismos

conformados no alto de suas verdades como um bem maior e com isso denuncia nestes seres

certa pobreza de existência como signo de falta de poder.

Sendo assim, os indivíduos em posse da verdade como signo de fraqueza de vontade

de poder terminam por trazer novos perigos à própria existência, uma vez que a tentativa de

conservação de certos tipos de impulsos diante de todos os outros elementos de forças torna

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cada vez mais insegura essa existência, pois a quantidade e força dos impulsos neste

organismo tende a ser sempre a mesma.

Entretanto, na tentativa de se prevalecer no alto de suas verdades, estes organismos se

rendem a certo tipo de sentimento de vingança, já que são afrontados ininterruptamente por

forças provenientes de outros tipos de impulsos e sentimentos inseguros e não radicados no

sentimento de verdade.

Portanto, por via do sentimento de vingança os organismos fincados no alto de suas

verdades trazem para a existência novos perigos, pois buscam conservar o poder limitando os

impulsos de poder das ações e procuram, com isso, limitar a amplitude de poder de todas as

outras ações e quando essas outras ações desequilibram esses organismos sofrem o

desprendimento de grande quantidade de forças desprovidas pelo sentimento de vingança,

castigo e insucesso (FW/GC, § 13).

Neste ponto, devemos recorrer novamente a Barbosa (2000), pois o autor deverá

indicar como Nietzsche trata nos quatro primeiros livros de FW/GC a consciência com ênfase

à sua superficialidade diante de todos os outros órgãos e diante dos impulsos e instintos

(FW/GC, § 11), assim como diante do organismo da cultura (BARBOSA, 2000) e o quanto

seu surgimento recente pode induzir a espécie a erros substancias, a ponto arriscar a própria

existência (FW/GC, § 11).

Diz Barbosa:

(...) [nos] quatro primeiro livros de A gaia ciência (1881-1882), Nietzsche enfatizará

cada vez mais a superficialidade da consciência, o seu aparecimento tardio e o

quanto a consciência, na realidade, pode nos induzir a erros. Em contraposição,

valorizará os instintos como sendo mais poderosos que a consciência e irá atribuir a

eles um papel regulador decisivo para o organismo como um todo (BARBOSA,

2000, p. 41)

Neste ponto, podemos ver que para Barbosa (2000), nos quatro primeiros livros de

FW/GC, Nietzsche se dedica em apresentar a superficialidade da consciência em relação a

todos os outros órgãos do sistema orgânico, de modo que seu surgimento tardio (FW/GC, §

11) pode induzir a espécie a erros (BARBOSA, 2000).

Assim sendo, Nietzsche sucumbe em valorizar cada vez mais o instinto como função

reguladora da existência (BARBOSA, 2000), pois, sendo mais poderosos no organismo do

que a própria consciência, os instintos provenientes de forças de todos os outros órgãos

(FW/GC, § 11) terminam por regular o organismo como um todo (BARBOSA, 2000).

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Segundo Barboza, Nietzsche computará à superficialidade da consciência na relação

com o conjunto do organismo e por seu surgimento tardio quanto a este a radical

reponsabilidade de ter induzido a humanidade a erros (BARBOSA, 2000), quais sejam, o

erros presentes na tentativa de fixação e regulação dos impulsos e forças por meio de verdades

(FW/GC, I, § 13) e valores morais imutáveis (FW/GC, I, § 04).

Sob nosso entender, na tentativa de se fixar e se solidificar em relação a todo o

conjunto dos órgãos do organismo, a consciência levou o homem à procura de valores fixos e

sólidos como busca de um meio com o qual também pudesse se fixar como um órgão seguro

junto a todo o sistema orgânico (FW/GC, I, § 11).

Deste modo, fixando valores, o órgão da consciência procura limitar em quantidade

estática a quantidade de forças e impulsos oriunda de outros órgãos do sistema orgânico

(FW/GC, I, § 11), para, com isso, impor-se na relação com os outros órgãos do organismo.

Portanto, segundo Barbosa (2000), em FW/GC Nietzsche se encarrega de apresentar a

consciência como órgão em constante transformação (FW/GC, I, § 11) e com menor poder

diante dos impulsos provenientes de todos os órgãos do organismo (FW/GC, I, § 11), sendo

que na complexa luta por poder (FW/GC, I, § 13) no organismo as forças oriundas dos

impulsos e instintos adquirem função regulatória fundamental quando considerado o

organismo como um todo (BARBOSA, 2000).

Continuaremos a nos valer de Barbosa, pois segundo o autor, para o fato de termos a

consciência quase constituída por impulsos constantes, Nietzsche levanta preocupação e

aponta para a denúncia desse entendimento como uma grande ilusão, de modo defender a

consciência como subordinada ao instinto.

Portanto, Barbosa deve corroborar com nossa interpretação acerca da consciência

como último e mais recente órgão em desenvolvimento do orgânico, pois aceitamos que para

Nietzsche a consciência deixa em risco a conservação da espécie, uma vez que tende a se

regular por instintos de conservação, enquanto o que conserva a espécie são justamente os

instintos de superação expressos por meio da genialidade pelas forças de vontade de poder

(FW/GC, § 13).

Diz Barbosa:

Parece que Nietzsche quer nos chamar a atenção para o fato de que geralmente

tomamos a consciência por uma grandeza constante, e que habitualmente atribuímos

a essa grandeza “a unidade do organismo”. (...) É preciso, então, contra esse

“consciencialismo” denunciado como ilusório, reconhecer o papel subordinado da

consciência relativamente ao que é instinto. (BARBOSA, 2000, p. 41-42)

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Nessa passagem, podemos ver que para Barbosa (2000), Nietzsche nos chama a

atenção para não tomarmos a consciência como grandeza constante, pois comumente se

atribui à consciência a função de unidade no organismo.

Entendemos que, embora Barbosa não explicite, refere-se à consciência como último e

mais recente órgão em desenvolvimento do organismo (FW/GC, I, § 11), logo, o órgão mais

frágil e vulnerável em todo o sistema de impulsos e forças em ação da célula mais simples até

o órgão da consciência (FW/GC, I, § 13).

Deste modo, indicamos, Nietzsche nos chama a atenção, como entende Barbosa, não

apenas para que não se atribua à consciência uma grandeza como unidade diante do

organismo (BARBOSA, 2000), mais que isso, chama-nos atenção para a interpretação da

consciência como órgão diante de todos os outros órgãos do sistema orgânico e diante do

organismo da cultura, como aceita Frezzatti Jr. (2005).

Este é o ponto especifico de nossa abordagem no exame da consciência a partir do

parágrafo de nº. 11 de FW/GC, investigar a amplitude do significado da consciência diante de

todos os outros órgãos do sistema orgânico, pois, aceitamos que, para Nietzsche, o que

comumente vem sido chamado por consciência é um instante de forças de uma constante e

intensa disputa de forças no corpo através dos impulsos de vontade de poder, em que os

órgãos objetivam obter mais poder.

Não obstante, não apenas os órgãos agem sobre a consciência pela via da vontade de

poder (FW/GC, I, § 11), mas também a educação e a cultura (FW/GC, I, § 13), uma vez que o

filósofo as tem como organismos, ou seja, um conjunto de disputa de forças em luta por mais

poder (FW/GC, I, § 13), de modo que quando se voltam para a consciência pelos órgãos do

sentido (FW/GC, I, § 11) acabam por afetar e transformar a partir da consciência toda a

relação de forças e impulsos do corpo (FW/GC, I, § 11).

Prossegue Barbosa (2000), em dizer que é preciso reconhecer a função subordinada da

consciência na relação com o instinto, pois, contra o consciencialismo, atribuído junto ao

órgão da consciência, (BARBOSA, 2000) faz-se preciso que se reconheça e se estabeleça

precisamente o que é consciência e o que é instinto.

Sobre este aspecto, supomos que nossa abordagem procura prezar pela distinção entre

o que é consciência, aquilo que conserva e coloca em risco a consciência (FW/GC, I, § 11) e a

espécie (FW/GC, I, § 4), em relação com a vontade de poder (FW/GC, I, § 13), como

conjunto de impulsos reguladores, tanto do organismo biológico quanto da cultura.

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Portanto, como vimos no início deste capítulo, Barbosa (2000), embora trate a

consciência em Nietzsche de modo geral, lança claros índices de como se deve proceder para

obtenção da compreensão do significado da consciência a partir do parágrafo de nº. 11 de

FW/GC, de modo que até aqui procuramos nos aprofundar esse estudo, tendo em conta

impulsos de conservação, declínio e superação da espécie, do organismo e da cultura pela via

da luta oriunda de forças em constante disputa por vontade de poder.

Voltemos a Nietzsche, pois, ainda no parágrafo de nº. 13 de FW/GC, encontramos a

posição do filósofo quanto ao elemento da vontade de poder que leva os homens a impor seus

impulsos de vontade, diante da noção de prazer e desprazer, onde o temperamento entre um e

outro regula a excitação dos desejos por mais poder ou pela supressão dos desejos por mais

poder.

Diz Nietzsche:

Somente para os homens mais excitáveis e mais desejosos do sentimento de potência

pode ser mais aprazível imprimir ao que lhes resiste o selo da potência; para aqueles

a quem a visão do já submisso (que, como tal, é o objeto do bem-querer) é pesada e

enfadonha. O que importa é como se está habituado a temperar sua vida; é uma

questão de gosto, se se prefere ter o aumento de potência lento ou súbito, o seguro

ou o perigoso e temerário - procura-se este ou aquele tempero sempre segundo seu

temperamento (FW/GC, I, § 13).

Neste ponto, podemos ver que para Nietzsche são apenas os homens mais excitáveis

os que possuem maior prazer em imprimir seu poder diante de poderes que lhes são

resistentes (FW/GC, I, § 13). Entendemos que aqui o filósofo se refere aos homens de espírito

forte (FW/GC, I, § 4) que, no atributo de sua maldade, elevam e conservam a espécie

(FW/GC, I, § 4), enquanto os que lhe oferecem resistência (FW/GC, I, § 13) são os homens

cuja carência de forças inflama a necessidade de segurança por meio de valores estáticos pela

via da moral. Deste modo, ao imprimir seu poder os fortes de espírito desfrutam de seu prazer,

pois asseguram o poder se suas forças diante de outras forças contrárias às quais lhes impelem

resistência (FW/GC, I, § 13).

Entretanto, os homens resistentes à impressão de forças pelos homens tomados por

paixões despertadas pela vontade de poder, são aqueles para quem a luta constante por mais

poder já se faz pesada e enfadonha, de modo que lhes cabe configurar entre os que fantasiam

de olhos abertos em torno de um ideal estático, ante o deslocamento de forças rumo a uma

nova organização desconhecida.

Para Nietzsche, diante da constante, cíclica e incessante luta por mais vontade de

poder, o que mais importa é o modo com que se está habituado a temperar a vida, sendo que

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os organismos com maior poder procuram sempre uma vida diante de constantes confrontos,

enquanto os outros procuram anular a disputa por meio de conceitos e verdades absolutas com

as quais aniquilam a própria expansão de poder e intentam contra a expansão de todas as

outras forças de poder.

Deste modo, o filósofo prussiano entende que diante da doutrina da vontade de poder

existem os homens que optam pela segurança e se lançam em busca de um ponto seguro

(FW/GC, I, § 13), mesmo que este lugar seguro seja ilusório ou fantasioso (FW/GC, I, § 4),

enquanto os que optam por uma vida tomada por súbitos aumentos de vontades de poder se

lançam a uma vida tomada por intensas disputas por mais poder (FW/GC, I, § 13).

Portanto, neste ponto, Nietzsche nos lembra de que tanto o aumento de poder quanto a

diminuição de poder ocorre por meio de escolhas elaboradas por organismos mais apropriados

a um tipo de existência fundada na disputa e na luta, diante de organismos mais ajustados,

com lentidão e medo diante das lutas.

A partir deste ponto, faz-se elementar incluirmos nessa discussão a análise feita por

Günter Abel (2005) acerca da consciência em Nietzsche, em sua relação com a linguagem e a

natureza.

Pois, segundo Abel (2005), para a correta compreensão do sentido da consciência em

Nietzsche, é imprescindível o entendimento do significado da passagem do modelo orgânico

para o de organização, uma vez que, segundo o autor, Nietzsche tem na consciência o

resultado de uma estrutura de organização no organismo, sendo que o tornar-se consciente

emerge da correlação entre muitos órgãos de consciência presentes no sistema orgânico.

Diz Abel:

“A passagem do modelo do orgânico para o modelo de organização é de significação

fundamental para o entendimento do orgânico, assim como do consciente, em

Nietzsche. Pode-se ver ali o desfecho da filosofia nietzschiana da vida. O

organismo, isto é, o orgânico, é concebido por Nietzsche como uma estrutura de

organização, da qual resulta a consciência, o tornar-se consciente e todos os outros

estados e processos mentais, até chegar ao pensamento consciente (incluindo os

aspectos de unidade, da duração e da estabilidade, tão importantes para a

consciência e seu eu), como propriedades e consequências emergentes da co-relação

múltipla e altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem a

organização e garantem sua funcionalidade (ABEL, 2005, p. 223)

Como podemos ver, para Günter Abel (2005), é imprescindível para a compreensão do

orgânico em Nietzsche a apreensão das bases de transição do modelo de organização para o

modelo de organismo.

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Deste modo, indica que neste ponto reside a última concepção da interpretação da vida

pela filosofia de Nietzsche, de modo que se em FW/GC se faz possível ou até mesmo

imperioso observar a concepção nietzschiana de organismo, em relação à vontade de poder,

quando tratamos a consciência (FW/GC, I, § 11).

Neste ponto, portanto, entendemos que este é um índice de que o restante da filosofia

nietzschiana decorre de sua interpretação da vida por meio da vontade de poder em ação nos

organismos (FW/GC, I, § 11), tanto o corpo orgânico quanto o organismo da cultura

(FREZZATTI, JR, 2005).

Para Abel (2005), o orgânico é tido por Nietzsche composto de uma organização

estrutural de que resulta a consciência (ABEL, 2005) como último e mais recente órgão em

desenvolvimento no organismo (FW/GC, I, § 11).

Neste sentido, todos os processos envolvidos no ato de consciência, ou seja, no ato de

se ter consciência de algo, tais quais os processos e estados mentais (FREZZATTI, JR, 2005),

ocorrem, segundo o filósofo prussiano, como resultado de uma disputa por poder entre todos

os órgãos do sistema orgânico (FW/GC, I, § 11).

Assim sendo, um pensamento consciente, ou mesmo todos os pensamentos

conscientes (ABEL, 2005), devem ser entendidos como consciência de um momento presente

da consciência, sendo que esta deve ser vista como um órgão dinâmico em disputa com todos

os outros órgãos do organismo (FW/GC, I, § 11).

De tal modo, o que se tem por estabilidade, duração, ou aspectos atômicos redimidos

em conceitos de unidade (ABEL, 2005), são tidos por Nietzsche como consciência de um

estado presente em transição e não duradouro (FW/GC, I, § 11).

Segundo Abel, de uma múltipla e elevada relação orgânica insurgem como

consequências e propriedades do organismo os processos mentais e tudo aquilo que é

propriedade da consciência, uma vez que essa relação traz consigo os impulsos provenientes

dos órgãos do organismo inteiro e com isso abona seu funcionamento tal qual a função

exercida pela consciência (ABEL, 2005).

Portanto, para Abel (2005), Nietzsche se utiliza do conceito de organismo como

relação de forças entre todos os órgãos do sistema orgânico para analisar e compreender o

órgão da consciência e atribui esse pensamento em sua reflexão sobre a vida.

Deste modo, entendemos que esse processo ocorre desde FW/GC, como vemos na

discussão deste capítulo e, como indica Abel, aceitamos que esse será o fundamento de

Nietzsche quando interpreta a vida daqui até o final de sua obra filosófica.

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Voltemos ao exame do parágrafo de nº. 13 de FW/GC, uma vez que na continuação da

explicação nietzschiana acerca do sentimento de vontade de poder, podemos ver que dentre os

iguais, o combate e a luta na disputa pela elevação de poder adquire um sentido de igualdade,

sendo eu se fosse cabível valorar, para esse enfrentamento receberia a designação por

honroso, enquanto para aqueles com menor poder dentro do organismo a disputa por mais

poder se caracteriza como uma grande dureza.

Diz Nietzsche:

Uma presa fácil, para naturezas orgulhosas, é algo desprezível, elas só se sentem

bem à visão de homens inquebrantados, que lhes poderiam ser hostis e, do mesmo

modo, à visão de todos os bens de difícil acesso; para com aquele que sofre são

frequentemente duras, pois este não é digno de seu esforço e de seu orgulho - mas se

mostram tanto mais atenciosas para com os iguais, com os quais um combate e luta

seriam, em todo caso, honrosos, se alguma vez se encontrasse uma ocasião para isso

(FW/GC, I, § 13).

Podemos ver que para Nietzsche (FW/GC, I, § 13) aqueles que optam por negar o

enfrentamento na disputa por vontade de poder acabam por sucumbir como uma preza fácil

diante dos organismos mais resistentes, pois terminam se conformando e apenas se sentem

bem quando diante de homens com maior força de vontade de poder.

Deste modo, mesmo diante da hostilidade investida por homens de natureza orgulhosa,

os homens já submissos apenas sentem-se bem quando diante quando se veem sujeitos nessa

relação de poder.

Do mesmo modo, diante dos bens com difícil acesso, existem aqueles de natureza

orgulhosa que lutam por suas conquistas, enquanto os outros se conformam incapazes de

obter acesso, pois cedem diante das dificuldades, uma vez que lhes faltam orgulho e rigidez

para o exercício das forças por vontade de poder.

Assim sendo, Nietzsche entende que alguns homens sofrem com frequência diante de

outros homens, uma vez que já se sentem conformados com uma posição hierárquica diante

de uma escala de forças de vontade de poder, sendo que a vida lhes é intensamente dura, pois

não se sentem dignos de esforço para enfrentar uma luta com homens de natureza mais

orgulhosa na disputa por mais poder.

Igualmente, mostram-se atenciosos com os iguais, de modo que na hipótese de haver

combate ou disputa entre estes essa luta lhes seriam de certo modo honrosa, uma vez que o

fundamento de forças dessa disputa encerraria como que uma categoria mediada por forças

equivalentes e orgulho igual.

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Portanto, neste ponto Nietzsche afirma que diante da disputa por vontade de poder, os

homens mais excitáveis e desejáveis por mais poder adquirem natureza cada vez mais

orgulhosa, enquanto os homens menos excitáveis e com isso menos desejosos pela disputa por

mais poder se tornam cada vez mais maleáveis diante da rigidez enfrentada tanto diante de

outros homens quanto quando diante de todos os bens de difícil acesso.

Neste ponto, aceitamos que tal qual ocorre com os indivíduos na luta por poder

(FW/GC, I, § 13), acontece com os órgãos de um sistema orgânico (FW/GC, I, § 11), em que

os órgãos com menor poder dentro do sistema terminam por sucumbir a uma posição

hierárquica inferior à de outros órgãos, de modo que a consciência como último órgão em

desenvolvimento do sistema orgânico (FW/GC, I, § 11) sempre será conformada diante dos

outros órgãos mais antigos e com maior poder no sistema.

Voltemos a Günter Abel (2005), pois identificamos ainda em seu texto a explicação de

como a trama de todos os componentes orgânicos atuam junto ao processo de formação da

consciência, de modo que até mesmo o pensamento e a consciência de si se fazem

implicadores dentro do aparato do processo orgânico no organismo.

Diz Abel:

É todo o entrelaçamento de uma organização, a combinação de todos os seus

componentes, sobretudo, nesse caso, do cérebro humano o qual (pensando no

modelo do continuum e da emergência) permite surgir a ‘espiritualidade’ viva

‘inteligente’ implícita no orgânico, inclusive como consciência explícita, assim

como o pensamento que se torna consciente de si mesmo e o eu da consciência”

(ABEL, 2005, p. 223)

Podemos ver que para Abel (2005), a consciência como último e mais recente órgão

em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), constitui-se pela trama de uma

organização (ABEL, 2005), onde entendemos que todos os organismos do sistema orgânico

atuam por intermédio de forças e impulsos de vontade de poder em constante luta por mais

poder (FW/GC, I, § 13), até formar a consciência como inteligência viva no corpo (ABEL,

2005).

Deste modo, tanto o pensamento continuado e sequenciado (ABEL, 2005), quanto os

súbitos, possuem origem comum no emaranhado dos componentes orgânicos, sendo que a

inteligência como consciência explícita ocorre pelo cérebro humano como elemento vivo

decorrente dos impulsos de todos os órgãos do corpo como estrutura organizada.

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Assim sendo, tanto o pensamento que se torna consciente, como o que tem

consciência, ou seja, o eu consciente, ocorrem por meio do ajuste dos impulsos e forças de

todos os órgãos do sistema orgânico.

Portanto, Abel (2005), aceita que em Nietzsche o processo de se ter consciência ocorre

no cérebro como órgão da consciência, sendo que tanto o pensamento súbito quanto o que se

pensa de forma mediada e encadeada, assim como o eu consciente, como realidade objetiva

da vida, decorrem da organização de um emaranhado do sistema orgânico (ABEL, 2005), de

onde indicamos que esse processo deriva do embate de forças (FW/GC, I, § 13) desde os

órgãos mais simples até o cérebro como órgão da consciência (FW/GC, I, § 11), assim como

de forças e impulsos emitidos do cérebro para todo o organismo.

Devemos agora retomar o parágrafo de nº. 13 em sua última parte, no qual Nietzsche

encerra a explicação de sua doutrina do sentimento de poder (FW/GC, I, § 13), da qual nos

utilizamos como instrumento para examinar o desenvolvimento da consciência como último e

mais recente órgão em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), onde vemos que, para

o filósofo, o sentimento de compaixão é levado a efeito por aqueles que, sob a finalidade do

bem-estar (FW/GC, I, § 13), não se sujeitam à perspectiva de grandes conquistas, ou mesmo

aqueles com menor poder (FW/GC, I, § 13), que se conformam com o estado de conservação

(FW/GC, I, § 11) e fazem deste estado um princípio regulador da existência (FW/GC, I, § 4).

Diz Nietzsche:

Sob o efeito do bem-estar dessa perspectiva, os homens da casta cavalheiresca

habituaram-se, entre si, a uma seleta cortesia. – Compaixão é o sentimento mais

agradável para aqueles que são pouco orgulhosos e não têm nenhuma perspectiva de

grandes conquistas: para eles a presa fácil - e assim é todo aquele que sofre - é algo

que delícia. Celebra-se a compaixão como a virtude das mulheres de vida alegre

(FW/GC, I, § 13).

Neste ponto, devemos ter mais claro que, para Nietzsche, os homens fortes e

abundantes de vontade de poder formalizam entre si uma classe nobre formada por homens

duros e determinados a enfrentar todas as disputas encontradas diante da existência, sendo

que, entre si, habituam-se a uma espécie de distinta cortesia, pois, uma vez que encontram

entre si equivalência de impulsos e forças confortam-se entre si no exercício da disputa diante

de todos os outros órgãos ou organismos.

Do mesmo modo, os homens com escassez de vontade de poder, constituem entre si

uma classe dominada, formada por homens determinados a abrandar as disputas diante da

existência, em que deparam com a equivalência entre si através de semelhante disposição de

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impulsos e forças, diante da disputa por poder com todos os outros órgãos ou organismos

(FW/GC, I, § 13).

Assim sendo, aceitamos que o mesmo processo ocorre na relação de disputa de poder

proeminente do organismo (FW/GC, I, § 11), em que órgãos com maior poder conformam-se

entre si diante de todos os outros órgãos (FW/GC, I, § 11), onde a consciência, como último e

mais recente órgão do sistema orgânico se conforma (FW/GC, I, § 13) com outros órgãos de

menor poder diante de todos os outros órgãos do sistema, sendo que essa busca pelo conforto

gera a necessidade de concepções estanques, tal qual a busca por verdades absolutas (FW/GC,

I, § 4).

Não obstante, Nietzsche prossegue ao afirmar que diante dos homens fortes de

espírito, os quais formam entre si uma espécie de camada, os homens com menores forças de

vontade de poder diante da existência formam, entre si, uma espécie de outra classe (FW/GC,

I, § 13).

Porém, a classe formada por homens com menores forças em uma organização,

utilizam-se como fundamento o sentimento de compaixão, de modo que por esse sentimento

se conformam com as condições de vida e se fragilizam diante das disputas presentes em suas

condições de existência.

Assim sendo, dentre todos os homens que sofrem, existe um sentimento de prazer com

que se deliciam, reduzido no sentimento de compaixão, sendo que com isso fazem uso do

sentimento de clemência como um ideal de suas vidas, diante dos embates de forças por mais

poder provenientes da existência.

Deste modo, e aqui Nietzsche lança mão de sua fina ironia, tal qual mulheres de vida

alegre, tidas por nós como aquelas que têm na compaixão os maiores valores e as grandes

virtudes, o filósofo prussiano enfatiza que os homens fracos fazem do sentimento de

compaixão grande motivo de orgulho, pois, com isso, como um elemento de conforto,

desprezam as grandes conquistas provenientes das disputas por expansão de poder.

Portanto, as disputas por expansão de poder (FW/GC, I, § 13) acabam por formar dois

tipos distintos de homens divididos em duas espécies de classes, sendo que aqueles com

maiores forças se confortam e sentem prazer com a expansão de poder, enquanto os homens

com menor poder, encontram remissão e conforto no sentimento de compaixão.

Da mesma forma, supomos, ocorre com o órgão da consciência diante de todos os

outros órgãos (FW/GC, I, § 11), pois, como último e mais recente órgão em desenvolvimento

no conjunto orgânico (FW/GC, I, § 11), logo, com menor poder diante de outros órgãos, o

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órgão da consciência encontra conforto diante de órgãos menos resistentes e com menor poder

no sistema (FW/GC, I, § 13), de modo que o que mantém e regula esses órgãos não é, mesmo

porque não deveria ser, o sentimento de compaixão, mas, sim, a condição de subserviência

(FW/GC, I, § 13), ou seja, sob nosso entender, o órgão da consciência (FW/GC, I, § 11)

sempre se faz submisso aos impulsos de vontade de poder (FW/GC, I, § 13) proveniente dos

outros órgãos do sistema orgânico.

Deste modo, vamos agora ao exame da última parte do parágrafo de nº. 11, em que

Nietzsche lança a noção da consciência como último e mais recente elemento em

desenvolvimento do orgânico, onde deveremos ver que, para o filósofo, acabou por se tornar

uma grande vantagem para a consciência diante do organismo o fato de até então ter-se tido

uma má-compreensão de seu significado, uma vez que esse equívoco possibilita seu

fortalecimento diante de todos os outros órgãos do sistema orgânico, pois permite o acúmulo

de forças, uma vez que os outros órgãos não necessitam desprender de muitas forças para

exercerem seus domínios.

Diz Nietzsche:

– Essa ridícula superstição e má-compreensão da consciência tem por corolário a

grande vantagem de que assim foi impedido o seu desenvolvimento muito rápido.

Por acreditarem já ter a consciência, os homens não se empenharam em adquiri-la –

e ainda hoje não é diferente!

A tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo é inteiramente nova, apenas

começa a despontar para o olho humano, dificilmente perceptível – uma tarefa vista

apenas por aqueles que entenderam que até hoje foram incorporados somente os

nossos erros, e que toda a nossa consciência diz respeito a erros!” (FW/GC, I, § 11)

Neste ponto, torna-se possível observar como Nietzsche tem no vínculo entre instinto

e consciência uma força reguladora capaz de resguardar a humanidade do desaparecimento

diante dos equívocos de juízo oriundos das fantasias, da fé e da superficialidade dos juízos de

consciência.

Nessa passagem, Nietzsche alerta para a constituição da consciência como mais um

elemento orgânico em desenvolvimento, sob o aspecto das transformações somente possíveis

por meio de forças instintivas como regulatórias, pois aceita essas forças como transitórias e

interpreta a consciência como elemento orgânico em constante transição, mudança de estado e

transformação.

Mas, se, por um lado, são as forças instintivas as responsáveis pela evolução do

organismo, por outro, elas ainda são responsáveis por representar para o organismo um grande

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perigo, uma vez não existe um controle ou domínio sobre o lado para o qual as forças irão se

direcionar, seja para a expansão ou para a supressão de poder, seja para a superação ou para a

fixação de valores.

Em outros termos, Nietzsche entende o organismo regulado pelas forças do instinto

como forças em transformação resultando na consciência como elemento orgânico em

desenvolvimento, transformação e mudança (FW/GC, I, § 11).

Ainda nessa passagem é possível observar que, para Nietzsche, a tarefa de se tomar a

consciência como algo fixo deve ser considerada um equívoco advindo da “superstição”

(FW/GC, I, § 11) e “má-compreensão” (FW/GC, I, § 11) humanas (FW/GC, I, § 11), embora

esse equívoco haja trazido como vantagem para a própria humanidade certa demora no

desenvolvimento da consciência. Ou seja, pela demora no desenvolvimento da compreensão

da consciência, houve atraso em seu desenvolvimento, e, segundo Nietzsche, isso deve ser

considerado bom porque possibilita distinguir a consciência analisada sob a via das vontades

diante de todos os equívocos até então já colocados acerca do que é a própria consciência.

Logo, a má-compreensão do significado da consciência permite a distinção e

comparação entre o que são instinto e o que é moral, quando tratamos da consciência, pois,

essa sempre foi equivocadamente colocada mediante a afirmação de valores fixos, diante de

um organismo em constante transição, transformação e mudança.

Portanto, a tarefa da filosofia de Nietzsche será a de interpretar o mundo sob a

perspectiva da vontade de poder e essa tarefa parte da interpretação da consciência como

desenvolvimento do orgânico, ou nela se inclui (FW/GC, I, § 11).

Sobre as forças internas em ação no organismo, sobre a consciência, aceitas por nós

como impulsos, pulsões de vontade, ou vontade de poder, devemos recorrer a novas

passagens da obra de Wilson Antonio Frezzatti Júnior (2006), pois o autor demonstra que

para Nietzsche não existe um aspecto determinado de impulsos representando uma superação

contínua ou uma configuração determinada atuando sobre o organismo.

Para Wilson Antonio Frezzatti Fr. (2014), as forças, os impulsos, com ação no

organismo, sobre a consciência, admitem uma infinidade de formas ou configurações em luta

constante por mais poder, em constante superação, onde aceitamos que faça com que a

consciência seja no corpo “o que nele é mais inacabado e menos forte” (FW/GC, I, § 11). Ou

seja, o que mais se modifica no corpo (FREZZATTI, JR, 2014), pois, o organismo, como

consciência, a todo o momento se transforma em decorrência das transformações orgânicas

(FW/GC, I, § 11).

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Entretanto, antes de demonstrar não existir em Nietzsche um aspecto fixo para os

impulsos e forças no organismo (FREZZATTI, JR, 2006), Wilson Antonio Frezzatti Jr.

(2014) aponta para as forças como luta de partes orgânicas plurais, formadoras da

consciência, como múltiplos estados de consciência em um organismo múltiplo, com apenas

uma e instantânea consciência.

Diz Antonio Frezzatti Jr.:

A luta entre partes, para o filósofo alemão, não forma apenas o corpo, mas

também seu pensamento e sua consciência, pois cada uma das partes possui

seu próprio pensamento e sua própria consciência; dessa forma, o sujeito

apenas existe como pluralidade, o que leva Nietzsche a questionar os próprios

conceitos de “indivíduo”, “sujeito” e “consciência”. Não são “almas”, nem

“forças vitais” que possibilitam a existência dos organismos, mas a luta entre

seus minúsculos constituintes: a luta é inerente à vida (FREZZATTI JR.,

2014, p. 78)

Podemos ver que para Antônio Frezzatti Jr. (2014), o filósofo prussiano tem na luta

entre partes o estímulo das forças que compõem o corpo, o pensamento e a consciência.

No entanto, como cada uma das partes luta com a outra e por isso possuem e exercem

suas forças, cada parte do organismo possui seu próprio pensamento e sua própria

consciência.

Deste modo, a luta entre partes é um combate entre forças orgânicas em que cada uma

das partes do corpo possui seu interesse em relação às outras partes na estrutura do

organismo, culminando com o pensamento e a consciência presentes em cada uma das partes

do conjunto do organismo.

Neste sentido, Nietzsche questiona, pela via da vontade de poder, os conceitos de

sujeito, consciência e indivíduo, de modo que a unidade do sujeito, da consciência ou do

indivíduo se desfaz com a interpretação da vida como impulso por vontade de poder.

Assim, a consciência não é e não deve ser alçada à simples condição de mais um órgão

junto a todos os outros órgãos do organismo (FREZZATTI JR, 2014), pois, se a princípio a

consciência é o último e mais recente órgão em desenvolvimento no organismo (FW/GC, I, §

11), uma análise mais aprofundada revela que além de ser apenas mais um órgão, a

consciência é um órgão em disputa permanente com todos os outros órgãos por mais poder

(FW/GC, I, § 11), de modo que se torna impreciso pensar na existência de um sujeito, ou um

indivíduo, enquanto unidade (FREZZATTI JR, 2014).

Portanto, Frezzatti Jr. (2014), conclui ao dizer que, para Nietzsche, a vida se faz

revestida pela luta, em que minúsculos organismos constituintes disputam poder com todos os

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outros organismos e órgãos do sistema orgânico, sendo que disso decorre que o filósofo

prussiano não pense na vida por via de almas ou forças vitais, mas, sim, como luta por

vontade de poder.

Aqui, devemos retomar Marcelo Giglio Barbosa (2000), pois a continuação de sua

explanação acerca da consciência em Nietzsche o autor infere que por ser recente, a

consciência deve representar um perigo para o organismo.

Diz Marcelo Giglio Barbosa:

É preciso considerar que por ser recente, relativamente ao conjunto da evolução

do sistema orgânico, a aparição da consciência pode significar um perigo para o

mesmo” (Barbosa, A questão da Consciência em Nietzsche, 2000, p. 41)

Podemos ver que para Barbosa (2000), por ser o órgão mais recente no organismo, a

consciência significa um perigo para o mesmo, pois, diante do incessante embate de forças, a

consciência, sendo o último órgão a se desenvolver, teria contra si a maior resistência no

embate com as forças instintivas provenientes de outros órgãos já fixados, ou seja, com maior

resistência e maior poder (FW/GC, I, § 11).

Tendo Nietzsche apresentado a consciência como superfície em relação ao conjunto do

organismo, então aproveita para nos lembrar de que sua filosofia deve se lançar, e se lança,

para “A tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo” (FW/GC, I, § 11) como grande

tarefa, e que, “apenas começa a despontar para o olho humano” (FW/GC, I, § 11). Esta tarefa

ele irá, em outras passagens, assertivamente chamar de psicologia, ou fisiopsicologia.

Nesse capítulo, procuramos aprofundar o exame da psicologia da consciência em

FW/GC de Nietzsche, com foco na análise do significado da consciência como último e mais

recente órgão em desenvolvimento do organismo, sendo que vislumbramos que Nietzsche

afirma ser a consciência formada por uma disputa presente desde os organismos mais simples

aos órgãos mais completos do sistema orgânico, tal quais as disputas existentes entre o corpo

e organismos não biológicos como a cultura.

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CAPÍTULO III – A GENIALIDADE DA ESPÉCIE

Se treinarmos nossa consciência, ela beija enquanto nos morde (JGB/BM, § 98) 32

Para a construção desse capítulo, colocamos a seguinte questão: Como em FW/GC

Nietzsche associa a relação entre consciência, genialidade da espécie e linguagem? E

buscaremos essa resposta, pois o esclarecimento dessa pergunta deverá nos conduzir para um

dos últimos significados dados por Nietzsche para a consciência em FW/GC, a partir de um

texto escrito e publicado junto a esse livro no ano de 1886.

Se, no primeiro momento, quando da publicação de FW/GC no ano de 1882, a

consciência foi entendida por Nietzsche como “último e derradeiro desenvolvimento do

orgânico” (FW/GC, I, § 11), posteriormente, quando acrescenta a este livro a quinta parte

(FW/GC), no ano de 1886, Nietzsche já associa a consciência aos aspectos do fenomenalismo

e da linguagem e deveremos agora examinar este sentido da consciência em FW/GC.

Vejamos, pois, no quinto livro de FW/GC, junto ao parágrafo intitulado “Do gênio da

espécie” (FW/GC, § 354), diz Nietzsche:

“Do ‘gênio da espécie’. - O problema da consciência (ou, mais precisamente, do

tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida

poderíamos passar sem ela: e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam

neste começo de entendimento (necessitaram de dois séculos, portanto, para alcançar

a premonitória suspeita de Leibniz). Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer,

recordar; poderíamos igualmente "agir" em todo sentido da palavra; e, não obstante,

nada disso precisaria nos "entrar na consciência" (como se diz figuradamente). A

vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal

como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse

espelhamento - também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais

ofensivo que isto soe para um filósofo mais velho (FW/GC, V, § 354)33

A primeira apreciação a ser feita por nós nesse capítulo deverá ter foco na escolha feita

por Nietzsche para o título do presente aforismo (FW/GC, V, § 354), pois aceitamos não ter

sido um ocaso o fato de o filósofo prussiano escolher este título para tratar da consciência sob

o ponto de vista da genialidade da espécie.

Como vimos anteriormente, quando analisa a consciência, Nietzsche deduz que ela é

formada por inúmeros impulsos ou forças advindos de seres microscópicos, como as células,

sendo que o curso dos impulsos como forças de vontade de poder perpassa todos os órgãos do 32

CF. TD: PCS. 33

A tradução de toda essa seção seguirá TD: PCS.

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organismo, até chegar ao órgão da consciência, último e mais recente órgão a se desenvolver

no complexo sistema orgânico (FW/GC, I, § 11).

Deste modo, quando o filósofo analisa a cultura do ponto de vista da disputa de forças

por vontade de poder, afirma que são os homens de espírito forte que elevam a cultura e

fomentam a manutenção da espécie (FW/GC, I, § 4), de modo que quando fazem valer das

forças de vontade de poder (FW/GC, I, § 13), transformam radicalmente os valores e o modo

de vida da sociedade, por isso, do ponto de vista da moral enraizada em valores fixados em

conceitos, são considerados homens maus, uma vez que se entende a transformação e

evolução da cultura uma maldade.

Entretanto, quando o psicólogo Nietzsche elabora a distinção entre as bases dos

motivos de a consciência colocar em risco a espécie (FW/GC, I, § 11) e os fundamentos e

motivos da conservação da espécie (FW/GC, I, § 4), lança mão de uma ideia de gênio diante

de indivíduos e normas comuns e gerais.

Desta forma, aponta que tudo aquilo que é comum e preza pela permanência do uso de

forças é sinônimo de fraqueza e tende a levar a humanidade à ruína, enquanto a transformação

e elevação da cultura operada pelos gênios da espécie elevam a cultura e fomentam a

manutenção da espécie (FW/GC, I, § 4).

Assim sendo, devemos notar que o título desse aforismo é justamente o índice de que a

partir desse ponto, Nietzsche deverá lançar as bases de seu pensamento sobre a consciência

como genialidade da espécie (FW/GC, I, § 4), ou, dito de outro modo, neste ponto, Nietzsche

deverá conduzir o experimento do pensamento sobre como a consciência como último e mais

recente desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11) subsidiará os meios pelos quais a

humanidade pôde se manter, desenvolver-se e evoluir através dos tempos (FW/GC, I, § 354).

Dito de outro modo, Nietzsche deverá conduzir o experimento do pensamento sobre

como a consciência, como último e mais recente órgão em desenvolvimento do orgânico

(FW/GC, I, § 11), subsidiará os meios pelos quais a humanidade pôde se manter, desenvolver-

se e evoluir através dos tempos (FW/GC, I, § 354), pois, uma vez que a espécie desenvolveu

esse órgão (FW/GC, I, § 11), com ele pôde suprir uma ou mais necessidades do organismo

(FW/GC, I, § 354).

Portanto, entendemos que o fato do título nos chamar a atenção justamente para “a

genialidade da espécie” (FW/GC, I, § 354), demonstra a avidez com que Nietzsche indica

para este aforismo a busca pela compreensão das possíveis necessidades da espécie quando do

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surgimento da consciência, como subsídio de uma ou mais necessidades surgidas no decorrer

das gerações ancestrais da espécie humana.

Do mesmo modo, entendemos que aqui o filósofo irá confrontar a genialidade da

espécie (FW/GC, I, § 354), como exceção a regras, diante da necessidade de valores e normas

requeridos pela consciência como último órgão em desenvolvimento (FW/GC, I, § 11), assim

como por aqueles que não possuem forças suficientes para o exercício da vontade de poder

(FW/GC, I, § 13), e procuram, pela fixação de conceitos (FW/GC, I, § 4), anular a constante

disputa por mais poder (FW/GC, I, § 13).

Neste ponto, recorremos a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois sua interpretação acerca

do título do presente aforismo deve subsidiar o nosso prévio entendimento do texto.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Esse é um dos principais sentidos do terminus nietzscheano ‘rebanho’, moral do

‘rebanho’, perspectiva do ‘rebanho’, que tem a função de ressaltar o ponto de vista e

o modo dominante da valoração do senso comum, o igualitário e uniformizante;

pois, em um rebanho, desconsideram-se as características singulares; cada indivíduo

vale e é contado unicamente como exemplar da espécie, nunca pelo que é

intrinsecamente, antes por aquilo que nele é specimen. Daí por que o aforismo cuja

interpretação empreendemos se intitula O Gênio da Espécie. (GIACÓIA JR, 2006,

p. 41-42)

Podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr (2006), Nietzsche empreende o título do

aforismo de nº. 354 como “O gênio da espécie” (GIACÓIA JR, 2006, p. 42) exatamente a fim

de distinguir o excepcional e a excepcionalidade do que se tem por padrões normais, como

moralidade, de modo que indicamos serem os parâmetros basilares da construção nietzschiana

de uma psicologia da consciência a ser tratado neste aforismo o confronto entre a genialidade

e a normalidade diante da espécie (FW/GC, V, § 354).

Sendo assim, primeiro Oswaldo Giacóia Jr aponta para alguns termos muitos presentes

no texto nietzschiano, em que figuram a ideia de normalidade.

Ora, tanto o termo “rebanho” quanto a expressão “moral de rebanho”, destacadas,

expressam o modo pelo qual Nietzsche referencia o domínio do senso comum, igualitário e

constante diante da genialidade da espécie humana.

Não obstante, Oswaldo Giacóia Jr (2006) nota que este sentido indicado acima é uma

das principais definições nietzschianas em relação aos termos “rebanho” e “moral de

rebanho” (GIACÒIA, JR, 2006, p. 41), uma vez que supomos que Nietzsche avalia a espécie

tanto do ponto de vista da constituição biológica e orgânica dos impulsos, quanto do ponto de

vista dos impulsos por transformações e evoluções da cultura (FW/GC, I, § 13), da sociedade

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e da espécie (FW/GC, I, § 4), sendo que aos indivíduos comuns e aos valores morais comuns

o filósofo confere o nome de “rebanho” e “moral de rebanho” (GIACÒIA, JR, 2006, p. 41).

Do mesmo modo, Oswaldo Giacóia Jr, expressa que Nietzsche tem, junto aos valores

morais e à moral de rebanho, o agravo de não considerar as particularidades dos indivíduos,

pois essa noção se desfaz tal qual como cada indivíduo perde sua particularidade em meio a

um rebanho.

Assim, a intenção de Nietzsche ao intitular o aforismo traduzido por “O Gênio da

Espécie” (GIACÒIA, JR, 2006), é oferecer, a partir do que é particular em cada indivíduo

(FW/GC, I, § 354), o contraponto em relação aos valores e às normas, tidas claramente como

morais de rebanho.

Segundo Oswaldo Giacóia Jr., a genialidade proferida por Nietzsche, a qual deverá se

dedicar no parágrafo de nº. 354 de FW/GC, diz respeito às individualidades e particularidades

(FW/GC, V, § 354) diante de normas e condutas coletivas adotadas pela espécie, de modo que

o caráter do gênio se encontra na singularidade dos indivíduos enquanto os valores e normas

morais carregam o signo do rebanho e, por isso, suspeitamos, podem colocar em risco a

existência da espécie (FW/GC, I, § 4).

Uma vez que efetivamos o devido apreço referente ao título escolhido por Nietzsche

para o aforismo de nº. 354 de FW/GC, devemos, então, proceder nossa apreciação de seu

texto, pois pretendemos com esse capítulo responder à questão da relação entre consciência e

linguagem e suspeitamos que Nietzsche trate exatamente deste caráter no decorrer do

parágrafo.

Quando olhamos para o texto de Nietzsche, podemos notar que, segundo o filósofo

prussiano, a consciência surge para a humanidade como um problema apenas na medida em

que se faz possível começar o entendimento sobre como seríamos se tivéssemos de viver sem

ela.

Deste modo, Nietzsche afirma que o tornar-se consciente aparece como um problema

na medida em que se opera o entendimento do alcance da vida humana sem que se fosse

possível existir por uma via consciente.

Entretanto, para Nietzsche, o início do entendimento do problema da consciência

surge apenas com estudos mais profundos sobre os animais, como os realizados pela

fisiologia, de modo que foi preciso cerca de duzentos anos até que por meio da ciência

fisiológica se alcançasse algo já anunciado no pensamento de Leibniz (FW/GC, V, § 354).

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Neste ponto, sugerimos que, para Nietzsche, o início do questionamento acerca do

problema da consciência, ou seja, quando a consciência é colocada em questão, alcança uma

suspeição primeiramente levantada por Leibniz (FW/GC, V, § 354), pois aceitamos que,

segundo Abrão (1999), Leibniz tem na “mônada” características de forças de ato e

representação distribuídas de maneira hierarquizada até chegarem à percepção como ato de

consciência.

Assim sendo, aceitamos que aqui Nietzsche expressa que a consciência, ou o ato de se

tornar consciente, apenas começa a ser tratado seriamente através da abordagem do

desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), como um conjunto hierárquico em disputa de

forças e impulsos por vontade de poder (FW/GC, I, § 13), de modo que supomos ser esta a

exata contribuição nietzschiana ao tratar da consciência como genialidade da espécie no

parágrafo nº. 354 de FW/GC, qual seja, levar a sério o exame da consciência como um

problema, ou a resolução de um problema, diante das forças e impulsos presentes junto ao

desenvolvimento da espécie humana em meio à produção e evolução da cultura.

Segundo Nietzsche, seria possível aos homens viver sem estar consciente (FW/GC, V,

§ 354), pois, assim entendemos que, segundo o pensamento do filósofo, todas as funções

orgânicas que chegam à consciência se originam em outras fontes do organismo (FW/GC, V,

§ 11), de modo que nos seria possível todas as ações efetuadas pelo corpo (FW/GC, V, §

354), como querer, sentir, pensar, recordar, enfim, agir, sem que para isso fosse efetivamente

necessário um órgão da consciência (FW/GC, I, § 11), ou, sem que fosse necessário o

ingresso destes atos na consciência (FW/GC, V, § 354), uma vez que todos os atos se

originam em impulsos orgânicos e perpassam todos os órgãos do corpo até chegar à

consciência (FW/GC, I, § 11).

Destarte, a consciência não está sendo vista aqui como um órgão regulador ou

controlador do organismo, mas, sim, como um órgão ou uma função orgânica, desenvolvidos

para suprir uma necessidade do organismo, seja em função de elementos e impulsos internos

ou em função de poderes e forças orgânicas externas ao corpo (FW/GC, V, § 354).

Para Nietzsche, a vida inteira seria admissível sem que em algum momento fosse

necessária a reflexão sobre si própria (FW/GC, V, § 354), uma vez que todas as ações no

decorrer da vida possuem alicerce nos próprios atos orgânicos (FW/GC, I, § 11).

Deste modo, segundo Nietzsche, também o pensamento, o querer e o sentir (FW/GC,

V, § 354) são constituídos através de impulsos do sistema orgânico (FW/GC, I, § 11), de

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forma que igualmente não carecem refletir sobre si próprios (FW/GC, V, § 354), pois são

naturais extensões da existência (FW/GC, I, § 11).

Podemos ver que aqui Nietzsche novamente lança o recurso da ironia (FW/GC, V, §

354), pois afirma que a consciência não precisa se olhar no espelho e aceitamos que essa fala

implica o sentido de autorreflexão, de modo que o que o filósofo prussiano sugere é que a

consciência não sofre da necessidade de se autorregular a si mesma. Do mesmo modo,

Nietzsche aponta que este tipo de pensamento poderia até soar ofensivo para um velho

filósofo e entendemos que, embora não seja feita nenhuma referência, a crítica nietzschiana se

refere à filosofia aos filósofos radicados em conceitos, ou seja, Nietzsche indica que o trato da

consciência por via de impulsos e forças (FW/GC, I, § 11) poderia soar ofensivo diante do

pensamento que a trata através de conceitos ou de um ideal (FW/GC, V, § 354).

Portanto, logo no início do parágrafo de nº. 354 de FW/GC, onde supomos que

Nietzsche trate da consciência através de sua relação com o organismo, pode-se ver que,

segundo o filósofo, a consciência não prescinde de funcionamento como órgão regulador ou

controlador do conjunto do sistema orgânico e que a vida toda seria possível ao organismo

sem a necessidade de uma autorreflexão por meio de um órgão da consciência, uma vez que

as ações, sentimentos, etc., não têm origem ou finalidade diante do órgão da consciência

(FW/GC, V, § 354), mas, sim, originam-se nos impulsos de expansão perante os órgãos do

organismo (FW/GC, I, § 11).

Neste ponto, surge-nos nova pergunta, pois, uma vez que a consciência não é

necessária ao corpo como órgão regulador e controlador da existência, indagamos, então, para

que Nietzsche entende ser necessário no conjunto do sistema orgânico um órgão da

consciência? Entretanto, procuraremos responder a questão diante da sequência de nossa

apreciação do parágrafo de nº. 354 de FW/GC, pois suscitamos a hipótese de que mais adiante

Nietzsche deverá esclarecer quais foram os fatores que fizeram necessário o surgimento do

órgão da consciência junto ao conjunto de órgãos do sistema orgânico (FW/GC, I, § 11).

Neste ponto, como em outras passagens do capítulo, devemos nos valer de Oswaldo

Giacóia Jr. (2006), para auxiliar o exame do ponto específico da profunda análise psicológica

efetuada por Nietzsche sobre a consciência como genialidade da espécie (FW/GC, V, § 354),

uma vez que o filósofo prussiano a tem através da psicologia como ciência elementar no

intuito de destituí-la de resquícios morais e encontramos na obra de Oswaldo Giacóia parte da

discussão efetivada por Nietzsche a partir do parágrafo de nº. 354 de FW/GC (GIACÓIA, JR,

2006).

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Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

De acordo com o texto, só podemos apreciar adequadamente o significado de “ter

consciência” na exata medida em que percebemos em que extensão podemos

prescindir dela. E não existe melhor forma de se inteirar dessa prescindibilidade da

consciência do que através da fisiologia e da zoologia. De quase todos os processos

fisiológicos fundamentais da vida vegetativa, e mesmo sensitiva, está ausente a

qualidade psíquica da consciência (GIACÓIA JR, 2006, p. 31)

Aqui podemos ver que, para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), o texto nietzschiano indica

apenas ser possível uma apreciação adequada do problema da consciência segundo o grau de

percepção de que se faz aceitável uma vida inteira sem a necessidade de se ter consciência.

Deste modo, aponta que segundo Nietzsche, o que significa ter consciência apenas

pode ser pensado de forma adequada (FW/GC, V, § 354) se a consciência for tomada segundo

a concepção de que a existência inteira não precisa dela (GIACÒIA JR, 2006).

Assim, segundo Oswaldo Giacóia Jr., é preciso ter claro que a consciência está sendo

tratada por Nietzsche a partir de seu caráter supérfluo (FW/GC, V, § 354), ou seja, o filósofo

prussiano neste ponto inicia a apresentação da consciência como órgão até então

desnecessário para as funções do organismo (GIACÒIA JR, 2006), tomado por Nietzsche

como um complexo sistema orgânico (FW/GC, I, § 11), então organizado por via de forças e

impulsos.

Prossegue Oswaldo Giacóia Jr., ao dizer que, segundo o pensamento de Nietzsche,

residem na zoologia e na fisiologia as melhores formas de se certificar acerca do caráter

prescindível da consciência, uma vez que, assim supomos, a raiz do estudo da vida do ponto

de vista biológico foi encontrada por Nietzsche como fonte nestas duas ciências

(FREZZATTI JR, 2014).

Do mesmo modo, Oswaldo Giacóia Jr (2006) sugere que dos processos fisiológicos

básicos da vida, Nietzsche extrai a ideia de que a fisiologia e a zoologia são as bases para

problematizar a consciência, uma vez que percebe não ser necessário um atributo psíquico

para a consciência em todos os processos cânones de uma vida biológica vegetativa.

Portanto, até aqui podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), o texto de

Nietzsche indica ser apenas possível pensar a consciência a partir da zoologia e da fisiologia,

pois o filósofo prussiano encontra a partir dessas ciências o exame da vida em seu caráter

vegetativo e projeta esse exame para a análise da consciência, em que parte do princípio de

que a vida, em todos os sentidos, poderia ocorrer por si própria (FW/GC, V, § 354), sem a

necessidade de um órgão da consciência (GIACÒIA JR, 2006).

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Devemos, neste ponto, voltar a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois a sequência imediata

da citação acima nos dará a medida com que Nietzsche entendia junto ao princípio leibniziano

da mônada, recuperado pela fisiologia e pela zoologia (FW/GC, V, § 354), o grande princípio

seu exame sobre a necessidade de origem orgânica da consciência.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Eis uma observação incidental, profundamente irônica, na medida em que Leibniz

discernia na mônada, não apenas a perceptio (percepção), mas também o apetitus,

ou seja, o impulso como característica; portanro, essa imensa riqueza contida na

questão do vital, do potencialmente orgânico – o duplo vetor, representacional e

impulso, presente, de maneira inconsciente, mesmo nas formações mais embotadas

do mundo orgânico – era já uma premonição leibniziana que a fisiologia e a

zoologia levaram séculos para recuperar (GIACÓIA JR, 2006, p. 31-32)

Podemos ver que, para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), a profunda ironia utilizada por

Nietzsche quando trata na citação acima da conciliação entre as descobertas da fisiologia e o

pensamento de Leibniz (FW/GC, V, § 354), diz respeito ao discernimento leibniziano entre o

apetite e a percepção.

Igualmente, segundo Oswaldo Giacóia Jr, Nietzsche se utiliza de sua ironia

provocadora para incidentalmente demonstrar que cerca de duzentos anos antes, já no

pensamento de Leibniz (FW/GC, V, § 354), estava presente a ideia da mônada como força

motriz da qual tanto o impulso quanto a percepção se caracterizam como forças vitais da vida

orgânica (GIACÒIA JR, 2006).

Neste sentido, a referência nietzschiana a Leibniz diz respeito à questão dos impulsos

como forças motoras presentes na mônada (GIACÒIA JR, 2006), tanto como apetite quanto

como percepção (GIACÒIA JR, 2006), de modo que a ironia utilizada por Nietzsche, assim

supomos, retrata a ausência de profundidade no trato da consciência por parte dos filósofos

mais velhos (FW/GC, V, § 354), ou seja, dos filósofos existentes no período que vai entre

Leibniz e Nietzsche, tal como demonstra a incapacidade da fisiologia de olhar com atenção

para a filosofia.

Deste modo, suspeitamos que Nietzsche incida na ironia neste ponto (FW/GC, V, §

354) justamente por aceitar que, como psicólogo, será o primeiro filósofo a tecer a análise da

consciência se utilizando tanto de seus saberes filosóficos quanto da noção dos impulsos

presentes na fisiologia.

No entanto, ao prosseguir em seu texto Oswaldo Giacóia Jr. (2006) afirma que, para

Nietzsche, já estava contida na visão de Leibniz a ideia de que a potencial vitalidade do

organismo seria composta por uma dupla condução, sendo que tanto os impulsos quanto a

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representação estariam presentes mesmo que de forma inconsciente também nas formações

mais antigas dos elementos existentes no mundo orgânico.

Assim sendo, segundo Oswaldo Giacóia Jr, Nietzsche se utiliza de ironia ao tratar de

Leibniz com o fim de explorar uma questão mais profunda, que é a questão dos impulsos

tanto quanto a percepção estarem presentes na origem da consciência enquanto órgão,

elemento ou função do sistema orgânico.

Portanto, entendemos que quando Nietzsche afirma ter sido necessário duzentos anos

para a fisiologia se encontrar com a premonição de Leibniz (FW/GC, V, § 354), indica que a

consciência, como último e mais recente elemento em desenvolvimento do orgânico (FW/GC,

I, § 11), deve ser enfrentada pela via de impulsos (FW/GC, V, § 354), de onde decorre nossa

suposição de que no parágrafo de nº. 354 de FW/GC o filósofo prussiano se dedique a tratar

da consciência, pela via da fisiologia, segundo a hipótese de que forças orgânicas supriram

uma ou mais necessidades do organismo, com o desenvolvimento do órgão da consciência,

como genialidade da espécie.

Neste ponto, cabe-nos esclarecer uma opção metodológica, pois até aqui nossa posição

preza pelo estudo de aforismos de Nietzsche em FW/GC, onde procuramos confrontar o

significado de suas expressões junto a outras passagens elucidativas de FW/GC, exceto

quando se faz bastante esclarecedor utilizarmos outros textos, como no primeiro capítulo, para

tratar da psicologia da consciência como meio para o diagnóstico da grande saúde (FW/GC,

Prólogo, § 2), fez-se esclarecedora, tal qual necessária, a aproximação do prólogo de FW/GC

(FW/GC, Prólogo, § 2) com um parágrafo de EH/EH (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 5).

Deste modo, sempre procuramos tomar na íntegra os parágrafos confrontados, pois

aceitamos ser essa uma exigência dada pelo do filósofo diante de seu texto aforismático e

fragmentado.

Porém, neste ponto, devemos incluir no trabalho o aforismo de nº. 15 de JGB/BM,

pois nele identificamos uma significativa expressão de Nietzsche acerca da prática da

fisiologia e o entendimento dessa expressão nos será crucial para esclarecer como em FW/GC

o filósofo trata da consciência pela via da fisiologia (FW/GC, V, § 354), tal qual como faz do

exame fisiológico o alicerce para pensar a consciência como elemento do orgânico.

Portanto, vamos a Nietzsche, pois no parágrafo de nº. 15 de JGB/BM devemos ver

que, para o filósofo, a princípio, a prática da fisiologia aqui indicada tem em mente que os

órgãos do sentido não são causas das sensações, mas seus efeitos.

Diz Nietzsche:

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Para praticar a fisiologia com boa consciência, é preciso ter presente que os órgãos

dos sentidos não são fenômenos no sentido da filosofia idealista: como tais eles não

poderiam ser causas! Logo, o sensualismo ao menos como hipótese reguladora, se

não como princípio heurístico. – Como? E outros dizem até que o mundo exterior

seria obra de nossos órgãos!

Podemos ver que, para Nietzsche, os órgãos do sentido não devem ser tomados

segundo ideais, pois, segundo a boa prática da fisiologia, é preciso entender que os órgãos do

sentido não são causas, mas efeitos dos sentidos no organismo (JGB/BM, Do preconceito dos

filósofos, § 15), de modo que aqui se supõe, assim é o trato dado por Nietzsche junto ao

desenvolvimento do órgão e funções da consciência (FW/GC, V, § 354).

Deste modo, quando se está disposto à realização de uma prática da fisiologia com a

boa consciência, é preciso ter claro o limite da interpretação segundo os ideais postos até

então pela filosofia, de que os órgãos da consciência são fenômenos do sentido (JGB/BM, Do

preconceito dos filósofos, § 15), sendo que, para Nietzsche, ao contrário, os órgãos da

consciência são entendidos como efeitos de impulsos e forças de vontade de poder (FW/GC,

I, § 11), presentes em todos os órgãos do sistema orgânico, do mais simples ao mais

complexo.

Sendo assim, de forma irônica, Nietzsche prossegue ao dizer que o sensualismo deve

ser elevado, senão como princípio descoberto, como presunção reguladora da consciência

(JGB/BM, Do preconceito dos filósofos, § 15).

Neste ponto, supomos a ironia nietzschiana, pois, se até então a consciência ou o órgão

da consciência foram vistos pela filosofia como responsáveis por controlar os sentidos do

organismo, com a correta prática da fisiologia deve ser atribuído, aos sentidos, ao contrário,

os reflexos reguladores dos sentidos e da consciência, mas Nietzsche, neste caso, não se

contém, e, por consequência, lança-se radicalmente diante da hipótese do sensualismo

(JGB/BM, Do preconceito dos filósofos, § 15).

Portanto, no fato do uso da expressão sensualismo, ante o termo sentido, indicamos

que Nietzsche se vale de ironia, pois a expressão com significado de “sentido” já transmitiria

a mensagem (JGB/BM, Do preconceito dos filósofos, § 15).

Prosseguindo, entendemos que aqui Nietzsche inicia a afirmação de que a fisiologia

quando bem praticada subsidia o exame da consciência por meio de forças e impulsos

(FW/GC, I, § 11), através da análise das sensações como hipótese controladora (JGB/BM, Do

preconceito dos filósofos, § 15) dos sentimentos no corpo, sendo que até mesmo o mundo

exterior deve ser interpretado por meio dos órgãos do sentido, e não o contrário, quando se

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atribuía à consciência e aos órgãos do sentido certo modelo ideal, redimido em uma unidade

por meio da filosofia idealista.

Neste ponto devemos, por certo, voltar à exata sequência do parágrafo de nº. 15 de

JGB/BM, pois seu exame nos dará a exata medida com que Nietzsche entendia a boa prática

da fisiologia diante da análise da consciência (FW/GC, V, § 354) e essa passagem deverá

melhor elucidar como o filósofo prussiano examina a consciência como genialidade da

espécie por meio da fisiologia (FW/GC, V, § 354).

Diz Nietzsche:

Mas então seria o nosso corpo, parte desse mundo exterior, obra dos nossos órgãos!

Mas então seriam os nossos órgãos mesmo obra de nossos órgãos! Esta é, a meu ver,

uma radical reductio ad absurdum [redução ao absurdo]: supondo que o conceito de

causa sui [causa de si mesmo] seja algo radicalmente absurdo. Em consequência, o

mundo exterior não é obra de nossos órgãos – ? (JGB/BM, Do preconceito dos

filósofos, § 15)

Neste ponto, vemos que, para Nietzsche, mais do que fundamentar o exame da

consciência como genialidade da espécie (FW/GC, V, § 354), por meio da interpretação dos

impulsos presentes nos órgãos de sentido (JGB/BM, Do preconceito dos filósofos, § 15), a

fisiologia permite o exame da consciência a partir da realidade imediata e interna do corpo,

enquanto multiplicidade de órgãos, tal qual possibilita o exame da realidade externa, ou seja,

do mundo externo ao corpo.

Deste modo, Nietzsche se questiona se o próprio corpo não seria propriedade do

mundo exterior, uma vez que a percepção dos acontecimentos pelos órgãos dos sentidos é

adjacente aos múltiplos órgãos presentes no próprio corpo.

Sendo assim, radicalmente, Nietzsche suscita a hipótese de nossos órgãos serem obra

de nossos próprios órgãos, pois, nosso corpo, assim como o órgão da consciência, é obra de

impulsos e forças existentes nos corpos. Não obstante, Nietzsche direciona sua radicalidade

hipotética, invertendo o sentido da proposição, de modo que se questiona se o contrário não

pode ser verdadeiro, ou seja, questiona-se se o mundo exterior não é um resultado e obra

interna dos órgãos.

Esse procedimento, diz Nietzsche, é uma radical redução ao absurdo, pois, para o

filósofo, é preciso questionar o alcance da proposição da qual supõe a existência de causa em

si para os órgãos, o mundo interior ou mesmo o mundo exterior ao corpo.

Deste modo, a fisiologia quando praticada com boa consciência permite que Nietzsche

inquira, sobretudo, acerca da necessidade de existência de uma causa em si, para os órgãos, o

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mundo interior, o mundo exterior, enfim, para toda a existência (JGB/BM, Do preconceito

dos filósofos, § 15).

A esse respeito, quando Nietzsche direciona essa prática fisiológica para os órgãos do

corpo, percebe que não existe uma causa em si para os organismos do corpo, do mesmo modo

que não existe essa causa para o mundo exterior ao corpo.

Logo, assim supomos, Nietzsche infere que não há, assim como não deve haver, causa

em si, pois, tanto para o organismo quanto para o mundo exterior (JGB/BM, Do preconceito

dos filósofos, § 15), uma vez que os órgãos do organismo, assim como o mundo externo, são

compostos por um conjunto de impulsos de forças em constante disputa por mais poder

(FW/GC, V, § 354).

Portanto, a fisiologia, quando praticada com boa consciência, é um meio com o qual

Nietzsche se utiliza para indagar, a partir da hipótese da necessidade de uma causa em si, qual

o alcance da força do argumento que diz que algo seja aquilo mesmo, sem que possa ser outra

coisa.

Entretanto, quando projetamos o método fisiológico nietzschiano (JGB/BM, Do

preconceito dos filósofos, § 15) diante de sua ideia de consciência, como último e mais

recente órgão em desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), em constante disputa com

os outros órgãos do organismo por mais poder, podemos perceber que a fisiologia (JGB/BM,

Do preconceito dos filósofos, § 15), conforme aqui apresentada, derruba todas as sustentações

das hipóteses com as quais se supõe a necessidade de existência de uma coisa em si, tanto

quando Nietzsche indaga sobre mundo interior, quando indaga sobre o mundo exterior ao

organismo (JGB/BM, Do preconceito dos filósofos, § 15).

Assim sendo, quando Nietzsche afirma que a consciência só passa a ser mais bem

compreendida na medida em que a fisiologia e a zoologia (FW/GC, V, § 354) subsidiam seu

entendimento (FW/GC, V, § 354), entendemos que o filósofo não limita seu exame na

questão das forças e impulsos presentes nos diversos tipos organismo (FW/GC, I, § 11), tanto

internos quanto externos ao corpo, mas que, com a prática da fisiologia, radicaliza seu

questionamento perguntando sobre a necessidade e finalidade de existência de uma causa em

si, seja para elementos internos ou externos ao corpo (JGB/BM, Do preconceito dos filósofos,

§ 15).

Neste sentido, Nietzsche entende que a consciência, tal quais as forças internas e

externas ao corpo e ao órgão da consciência, constituem-se de um conjunto de forças e

impulsos em constante disputa por poder (FW/GC, I, § 11), de modo que acaba sendo

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refutada a existência de uma causa em si e, deste modo, a fisiologia possibilita a melhor

compreensão da consciência (FW/GC, V, § 354).

Uma vez tendo nos subsidiado do parágrafo de nº. 15 de JGB/BM para melhor

compreender como Nietzsche aceita a prática da fisiologia como fundamento para examinar o

surgimento da consciência como genialidade da espécie (FW/GC, V, § 354), deve-se retomar

o estudo do parágrafo de nº. 354 de FW/GC, pois em sua sequência devemos notar que

Nietzsche tem a consciência como superficialidade diante do complexo sistema orgânico,

porém, de fundamental necessidade para o funcionamento tanto do corpo enquanto estrutura

orgânica, como da cultura, enquanto organismo.

Diz Nietzsche:

Para que então consciência, quando no essencial é supérflua? Bem, se querem dar

ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante,

parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à

capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de

comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas não, entenda-se, que

precisamente o indivíduo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar

compreensíveis suas necessidades, também seja aquele que em suas necessidades

mais tivesse de recorrer aos outros (FW/GC, 354)

Aqui, vislumbramos que Nietzsche faz uso da fisiologia quando elabora a pergunta:

“Para que então consciência, quando no essencial é supérflua?” (FW/GC, V, § 354). E

supomos que, como fisiólogo, deverá indicar ao menos um caminho hipotético para sua

resposta, de modo que o percurso dessa resposta provavelmente se projete para possíveis

condições ancestrais da existência, diante de precariedades geradas por forças e impulsos de

estruturas organizadas. Sendo assim, Nietzsche dá início à sua conjectura hipotética nos

incitando a dar ouvidos à sua resposta, porém, anuncia a possibilidade de conter em seus

termos algum tipo de extravagância, uma vez que indica que tanto o uso faz forças quanto o

uso de sutilezas, relaciona-se diretamente à capacidade de comunicação das pessoas.

Neste ponto, supomos que Nietzsche, como psicólogo que se utiliza do método

fisiológico para checar os limites da consciência (FW/GC, Prólogo, § 2), faz uso da auto-

experimentação, pois, ao referir-se a si próprio (FW/GC, V, § 354), aponta os rumos com os

quais pretende inferir a resposta à questão colocada, sendo que estes rumos nos direcionam

para as indagações elaboradas aqui pelo próprio filósofo.

Deste modo, utilizando-se do próprio exemplo, Nietzsche antecipa os indícios com os

quais nos dará a resposta à questão sobre a necessidade da consciência, uma vez que ela é

supérflua, pois o fato do leitor querer ou não dar ouvidos à resposta nietzschiana não altera em

nada os rumos que se seguirá para a solução que Nietzsche dará ao problema.

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Portanto, com o leitor interessado ou não, Nietzsche encaminha a resposta através da

hipótese de que a consciência, mesmo supérflua, existe para suprir a necessidade de

comunicação.

Como pode ser visto, não há nada de extravagante nas conjecturas indicadas na

passagem acima citada, muito pelo contrário. Neste ponto, Nietzsche se utiliza da própria

experiência para provocar o leitor a se inteirar da hipótese de que o ato comunicativo é o meio

pelo qual a consciência se faz necessária, do contrário, não haveria a experiência da

comunicação entre Nietzsche e o leitor, tal qual, segundo a hipótese nietzschiana, não haveria

comunicação entre pessoa e pessoa.

Entretanto, Nietzsche prossegue seu exame fisiológico da consciência ao dizer que, ao

contrário do que se poderia supor, a consciência não se origina com a capacidade de

comunicação de um animal ou um ser humano, uma vez que antes dessa capacidade o filósofo

diagnostica a necessidade. Igualmente, induz o leitor ao questionamento acerca da

necessidade de prosseguir a leitura em busca de sua resposta, pois, caso não fosse necessário

ao leitor, não haveria comunicação com a resposta dada por Nietzsche, muito menos a

consciência da resposta suscitada pelo filósofo.

Portanto, para Nietzsche, mesmo que os indivíduos sejam ávidos em se comunicar, é

justamente pela necessidade de comunicação que se desenvolve essa habilidade, pois, antes

do processo comunicativo, o ser humano enfrentou a necessidade de que uma pessoa tivesse

recursos para recorrer com a outra pessoa.

Assim sendo, para Nietzsche existe diante dos animais e dos seres humanos a

necessidade de se recorrer um ao outro, de modo que essa necessidade se fez suprida pela

comunicação, que, por sua vez, tornou-se possível somente após o surgimento da consciência,

o que faz com que a consciência, embora submissa aos outros órgãos do sistema, não seja

extremamente supérflua, mas, sim, necessária para o exercício do processo de comunicação.

Neste ponto, com essa passagem, supomos responder a pergunta surgida logo no início

desse capítulo, onde investigávamos como Nietzsche trata a consciência através de sua

relação com o conjunto orgânico, de modo que suspeitamos que, segundo o filósofo, a

consciência não funciona como um órgão controlador do organismo e que, além do mais, todo

o conjunto orgânico poderia existir sem a necessidade de que houvesse um órgão da

consciência, dado que as ações orgânicas, sentimentos, etc., não têm finalidade ou origem no

órgão da consciência. Portanto, suscitamos a questão: para que, então, Nietzsche entende ser

necessário no conjunto do sistema orgânico um órgão da consciência? E agora, tal qual

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suscitamos a hipótese de que mais adiante Nietzsche iria nos esclarecer sobre quais foram os

fatores que fizeram necessário o surgimento de um órgão para a consciência no conjunto do

sistema no orgânico, questionamos se com a presente passagem nos colocamos diante da

solução da pergunta, pois, como supomos, para Nietzsche, a consciência existe para suprir sua

função diante da necessidade dos indivíduos do exercício da comunicação (FW/GC, V, §

354).

Voltemos a Oswaldo Giacóia Jr., pois ele deverá auxiliar nosso entendimento de que

quando Nietzsche supõe que nossas ações poderiam existir sem para isso ser necessário o

recurso da consciência, assume o caráter instintivo dos atos pela via da vontade de poder.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Poderíamos cumprir todas as nossas funções psíquicas superiores, tais como: querer,

pensar, sentir, recordar, agir, sem necessidade do recurso à função da consciência. A

própria expressão entrasse na consciência é uma expressão destacada por Nietzsche

e que indica, com muita clareza, o caráter antropomórfico das nossas expressões

usuais. Entrar na consciência supõe pensar a consciência como algo especial

(GIACÓIA JR, 2006, p. 32)

Podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), Nietzsche entende que todas as

funções superiores poderiam ser cumpridas no organismo, sem que houvesse a necessidade de

um órgão da consciência.

Deste modo, Oswaldo Giacóia Jr. afirma que para Nietzsche seria possível as ações de

pensar, querer, agir e recordar, sem que fossem necessários a função ou o recurso da

consciência.

Do mesmo modo, destaca que Nietzsche ressalta a expressão que diz respeito ao ato de

entrar na consciência, indicando que, neste ponto, o filósofo prussiano aponta com grande

nitidez a atitude antropomórfica presente nas fórmulas cotidianas dos seres humanos, uma vez

que, assim supomos, nesta fala está contida a projeção de ações físicas corpóreas diante de

atos de pensamento.

Prossegue Oswaldo Giacóia Jr. ao dizer que a própria expressão destacada como ato

de se entrar na consciência já avalia a consciência por meio de características exclusivas,

quando, assim entendemos, para Nietzsche, a consciência diante de todos os outros órgãos do

organismo, é desnecessária (FW/GC, V, § 354).

Portanto, Oswaldo Giacóia Jr. (2006) colabora com nossa compreensão acerca da

superficialidade da consciência diante dos outros órgãos presentes no sistema orgânico

(FW/GC, V, § 354), pois, assim como nós, entende que, para Nietzsche, primeiramente, todas

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as funções do organismo poderiam ser supridas sem que houvesse a necessidade de um órgão

ou mesmo da função da consciência.

Neste ponto, devemos voltar ao parágrafo de nº. 354 de FW/GC, pois, na sequência,

Nietzsche elucida porque a consciência se fez necessária, através da hipótese da necessidade

da consciência, sendo que para isso faz uso de suposição de ordem genealógica, ou seja,

vislumbra a partir de suposições hipotéticas diante de camadas históricas, a necessidade do

surgimento da consciência.

Diz Nietzsche:

Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a

necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a

compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa

virtude e arte da comunicação, como uma fortuna que gradualmente foi juntada e

espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (- os chamados artistas são esses

herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que

sempre vêm no final de uma longa cadeia, "frutos tardios", na melhor acepção do

termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores) (FW/GC, V, § 354)

Podemos ver que, para Nietzsche, a consciência surgiu para suprir a necessidade de

comunicação da espécie humana, embora seja de certo modo supérflua diante de todos os

outros órgãos do organismo, quando considerado somente seu caráter orgânico.

Deste modo, Nietzsche aponta para a suspeita de que no decorrer de gerações, no que

diz respeito às castas e povos, enfim, em todos os locais onde, por algum tipo de necessidade

ou miséria, os homens necessitaram do contato uns com os outros, sentiram-se obrigados a se

comunicar, uma vez que a carência por qualquer tipo de contato traz consigo a necessidade de

comunicação.

Assim sendo, a necessidade de comunicação implica no desenvolvimento de um meio

pelo qual se faz possível que os seres humanos consigam se comunicar, mesmo diante do

transcorrer de gerações e diante de povos e castas, pois, por meio do órgão da consciência, a

capacidade de comunicação permite o estabelecimento da compreensão entre os homens de

modo preciso e rápido.

Prossegue Nietzsche, ao dizer que, no entanto, existe um abuso no que se trata do

entendimento do procedimento da comunicação, uma vez que aceita que a comunicação se

desenvolveu gradativamente no tempo, por intermédio das necessidades de se comunicar

presentes nos povos e castas, assim como em suas sucessivas gerações.

Do mesmo modo, Nietzsche entende que ocorre um abuso no procedimento da

comunicação, pois afirma que os artistas se consideram como que os herdeiros naturais da

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comunicação como fortuna gradativamente acumulada e que, por isso, desperdiçam-na em

grande escala.

Neste ponto, nota-se novamente a fina ironia nietzschiana, pois, assim se supõe, o que

o filósofo quer nos dizer é que a comunicação deve ser respeitada diante de seu processo de

evolução, uma vez que fora necessário que inúmeras carências fossem supridas para que se

tornasse possível o surgimento e o desenvolvimento da comunicação.

Deste modo, quando os artistas, tais quais oradores, escritores, pregadores, etc., se

utilizam desmedidamente do gesto de se comunicar, o fazem sem ter em mente as possíveis

causas e consequências de seus atos, diante de necessidades anteriores ou mesmo posteriores,

radicadas no processo de comunicação.

Portanto, neste ponto Nietzsche defende claramente que diante do decorrer das

gerações, quando surgiu em castas e povos a necessidade de contato entre as pessoas, passou-

se a se desenvolver a comunicação, de modo que é preciso que se reconheça diante de quais

necessidades teriam se desenvolvido cada ato comunicativo para, se possível, projetar quais

seriam as necessidades futuras, uma vez que o ato de comunicação não deve ser tido de forma

desproporcional com suas necessidades, tal como é visto por Nietzsche na forma esbanjadora

por algumas categorias da sociedade, como poetas, escritores, artistas, oradores, etc.

Novamente, devemos recorrer a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), uma vez que a imediata

sequência de sua citação logo acima nos dará a noção de como Nietzsche entende que todas as

funções orgânicas poderiam existir sem que houvesse a necessidade da consciência.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Não somente nossas funções vitais elementares poderiam continuar a desempenhar o

seu papel sem a consciência – com o que concordariam todos os fisiólogos – senão

que, mais ainda, nossas funções psíquicas “superiores”, como pensamentos,

sentimento, vontade, afetividade, podem ter seu curso independentemente da

consciência (GIACÓIA JR, 2006, p. 32-33)

Podemos ver que, segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2006), Nietzsche entende que o

organismo poderia existir sem que houvesse o órgão ou mesmo a função da consciência, de

modo que não apenas o organismo seria viável, como todas as funções vitais ocorreriam no

organismo, mesmo sem a existência de um órgão da consciência.

Deste modo, Oswaldo Giacóia Jr indica que, segundo Nietzsche, todos os fisiólogos

deveriam concordar com a proposição de que a vida seria possível sem um órgão da

consciência (GIACÒIA JR, 2006), uma vez que, como vimos, a fisiologia é a base com que

Nietzsche examina a consciência diante de todos os outros órgãos do organismo (FW/GC, I, §

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11), tendo em vista as forças de impulsos correntes de todos os organismos em relação à

consciência (FW/GC, V, § 354), tendo em vista a superficialidade das forças da consciência

diante de todos os outros órgãos (FW/GC, I, § 11), mais ainda, perante as funções orgânicas

elementares (FW/GC, V, § 354).

Entretanto, prossegue Oswaldo Giacóia Jr. (2006) ao dizer que, mais que isso, para

Nietzsche, todas as funções superiores realizadas pela psique, tal qual o ato de sentir, o ato de

ter vontade, o ato de ter afeto e o ato de pensar, são desnecessários para o funcionamento do

complexo sistema orgânico.

Portanto, neste ponto, Oswaldo Giacóia Jr. nos auxilia a elucidar a condição com que

Nietzsche aceita a superficialidade da consciência diante de todos os outros órgãos do

organismo, sendo que todas as funções orgânicas ocorreriam no sistema caso não houvesse o

órgão da consciência (FW/GC, V, § 354).

Continuaremos com Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois, com ele poderemos ver ainda

que o fato de Nietzsche ter a consciência através de sua condição supérflua diante da

vitalidade do organismo (FW/GC, V, § 354) implica em que sua função e força sejam aferidas

conforme o grau, capacidade ou necessidade de comunicação.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Isso significa que a força e o grau de refinamento da consciência se determinam em

proporção com a força e o refinamento da faculdade de comunicação. Isso suscita,

de imediato, uma questão central: aquela que inscreve a consciência como função da

capacidade de comunicação animal. Por sua vez, o poder de comunicação

determina-se em função da necessidade de comunicação (GIACÓIA JR, 2006, p. 33)

Podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), o domínio da comunicação é

determinado de acordo com o nível de refinamento da consciência, uma vez que, como se

supõe, quanto mais refinadas forem as forças da consciência diante de outros órgãos, maior

domínio terá na disputa de forças para impor as suas forças diante de outros órgãos, pela via

da capacidade de comunicação das necessidades.

Igualmente, no que se refere à cultura, supõe-se, tal qual afirma Oswaldo Giacóia Jr.

(2006), que, de acordo com o nível de refinamento da consciência, maior será sua capacidade

de comunicação, pois o refinamento é aqui entendido por nós como instrumentos adquiridos

para a comunicação. Logo, quanto mais instrumentos tiver a consciência para se comunicar

(FW/GC, V, § 354), maior ao até mesmo melhor será a sua capacidade de comunicação

(GIACÓIA JR, 2006).

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Entretanto, segundo Oswaldo Giacóia Jr., o fato da consciência se determinar

conforme o nível de refino de seus instrumentos de comunicação deve nos levar a uma

questão principal, que se registra na consciência como função animal da sua capacidade de

comunicação, uma vez que, assim sugerimos, Nietzsche entende a consciência a partir da

condição fisiológica suposta para o homem a partir de sua condição animal (FW/GC, V, §

354). Mais que isso, entendemos que são pelas necessidades de comunicação do animal que

Nietzsche supõe a aparição da consciência como instrumento de comunicação.

Deste modo, entendemos que quanto melhor situado estiver o animal diante de castas e

gerações (FW/GC, V, § 354), melhores instrumentos terá para exercer a capacidade de

comunicação, de modo que Oswaldo Giacóia Jr. (2006) afirma que devemos ter neste ponto a

questão da função animal da comunicação como questão básica, uma vez que o poder de

comunicação é determinado pela necessidade de comunicação (FW/GC, V, § 354).

Voltemos a Nietzsche, pois na sequência do parágrafo de nº. 354 de FW/GW, o

filósofo enfatiza a suposição de que sua hipótese fisiológica sobre a consciência esteja correta;

deste modo, compara-a com predadores para reafirmar a necessidade da consciência pelo

imperativo da comunicação.

Diz Nietzsche:

Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a

consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação -

de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a

que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em

proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de

ligação entre as pessoas, - apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser

solitário e predatório não necessitaria dela (FW/GC, V, § 354)

Neste ponto, devemos notar que Nietzsche, embora suscite que a consciência haja

surgido a fim de satisfazer a necessidade de comunicação, logo em sequência coloca em

suspeição sua prerrogativa hipotética, uma vez que se limita a supor que sua observação neste

sentido venha ser correta. Deste modo, leva adiante a suposição de que a observação de que a

consciência haja surgido para suprir a necessidade de comunicação seja correta, de modo a

pressupor hipóteses fisiológicas desse acontecimento.

Diz Nietzsche que a consciência desde sempre foi necessária para satisfazer a relação

entre as pessoas, de modo que a primeira necessidade para a função da consciência ocorre na

relação de uma para com outra pessoa, de modo que, assim como no domínio do exercício de

forças por vontade de poder (FW/GC, I, § 13), a consciência surge para suprir a necessidade

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de comunicação (FW/GC, V, § 354) entre indivíduos com forças de comando e indivíduos de

forças subservientes.

Assim sendo, para Nietzsche, o que está na hipótese da necessidade da origem da

consciência são as relações entre indivíduos, em que diante da necessidade de comandos e

obediências decorre a necessidade da comunicação, da qual implica a necessidade de um

órgão, assim como da função da consciência.

Portanto, supomos que para Nietzsche, quanto mais útil for a consciência diante da

necessidade de comunicação entre indivíduos controladores e indivíduos controlados, ou seja,

diante da relação entre comando e obediência, mais, ou melhor, desenvolve-se a capacidade

de comunicação, assim como mais se ampliam os recursos da comunicação e mais se utiliza

do órgão da consciência.

Nietzsche prossegue ao dizer que diante de sua conjectura hipotética, a consciência, de

fato, significa uma rede de ligações entre pessoas e pessoas, de modo que se desenvolveu

diante da necessidade de comunicação da relação entre ordem e obediência, oriunda das

relações entre pessoas com o poder para controlar e outras pessoas com o poder de obedecer.

Deste modo, Nietzsche marcadamente recorre à fisiologia para inferir, diante da cadeia

predatória, a necessidade da comunicação em conjunto com o desenvolvimento da

consciência, pois, segundo o filósofo, os animais predatórios são solitários, não precisam de

comunicação e muito menos do órgão, ou ainda da função da consciência.

Neste sentido, entendemos que Nietzsche aqui faz uso da fisiologia para avaliar a

condição supérflua da consciência, pois mesmo um animal predador e solitário mantém suas

condições fisiológicas vitais, sem nenhuma necessidade de comunicação, muito menos do

órgão e da função da consciência. Logo, supomos que dessa conjectura comparativa entre as

relações humanas por disputa de poder e os predadores isolados, os quais mantém suas

condições de vida sem a necessidade de comunicação e da consciência, Nietzsche tende a

julgar que sua hipótese seja correta e que a consciência, uma vez supérflua diante das

condições vitais, surge como função necessária para suprir também a necessidade de

comunicação entre as pessoas (FW/GC, V, § 354) em meio a relações de forças decorrentes

das disputas por vontade de poder (FW/GC, I, § 13).

Neste ponto, devemos recorrer novamente a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois o autor

deverá confirmar as nossas suposições, uma vez que aponta para o fato de que a união entre a

necessidade e a capacidade de comunicação deve ser medida, não por meios de singularidades

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individuais, mas por meio de castas e gerações, ou seja, conforme as organizações culturais da

espécie.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

A necessidade de comunicação, ligada à capacidade para tanto, não pode ser

dimensionada em escala individual ou particular; do ponto de vista de sua origem,

essa necessidade de comunicação deve ser avaliada em termos de toda uma raça, ou

toda a espécie. De tal maneira que gerações sucessivas e raças inteiras acabaram por

desenvolver, a partir de sua necessidade de comunicação, um imenso cabedal de

capacidade comunicativa (GIACÓIA JR, 2006, p. 34)

Aqui podemos notar que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), embora a origem da

consciência através da necessidade de comunicação tenha se dado na relação de pessoa a

pessoa (FW/GC, V, § 354), ou seja, nas relações de poder entre os indivíduos, não devemos

medir a necessidade e a capacidade de comunicação apenas pelas relações entre os indivíduos

(GIACÓIA JR, 2006).

Deste modo, Oswaldo Giacóia Jr. indica que a necessidade de comunicação presente

na origem da consciência (FW/GC, V, § 354) deve ser tomada mediante a sua função exercida

diante de toda uma casta (GIACÓIA JR, 2006), ou mesmo diante da espécie.

Neste ponto, supõe-se que Oswaldo Giacóia Jr. (2006) alerta para a identificação do

caráter universal da proposição nietzschiana de que a consciência teria origem em necessidade

de comunicação nas relações entre os indivíduos (FW/GC, V, § 354), pois, embora Nietzsche

se expresse diante de uma suposição singular, onde uma pessoa precisa se comunicar com

outra pessoa, a conclusão nietzschiana adquire um sentido universal (GIACÓIA JR, 2006), de

modo que se faz preciso induzir os resultados das hipóteses de Nietzsche para a origem da

consciência para todas as castas, gerações e, por fim, para toda a espécie.

Neste sentido, quando Nietzsche afirma que a consciência surge da necessidade de

comunicação de um indivíduo com outro indivíduo (FW/GC, V, § 354), diante de uma

relação de poder, devemos inferir, sob os termos nietzschianos, que a consciência como

genialidade da espécie surge quando o ser humano, segundo as relações de poder (FW/GC, V,

§ 354) e diante da necessidade de se comunicar, desenvolveu a capacidade de comunicação

como marco prodígio da espécie humana (GIACÓIA JR, 2006).

Prossegue Oswaldo Giacóia Jr (2006) ao dizer que de tal modo sucessivas gerações e

castas inteiras terminaram desenvolvendo através das gerações e segundo suas necessidades

de comunicação, um imenso aparato de suas capacidades comunicativas.

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Assim sendo, entendemos que, para Nietzsche, o desenvolvimento da consciência

segundo a necessidade de comunicação ocorre segundo necessidades comunicativas oriundas

de castas e que no decorrer de gerações são desenvolvidos instrumentos de comunicação com

os quais são subsidiadas novas necessidades de comunicação (FW/GC, V, § 354).

Voltemos a Nietzsche, pois na sequência do parágrafo de nº. 354 de FW/GC o filósofo

deverá fundamentar melhor suas hipóteses para a origem da consciência através da

necessidade de comunicação de pessoa a pessoa, de modo que nos parece formular também a

origem da ideia da consciência como órgão regulador e função controladora.

Diz Nietzsche:

O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos

chegaram à consciência - ao menos parte deles -, é consequência de uma terrível

obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo

o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber

exprimir seu apuro e fazer-se compreensível - e para isto tudo ele necessitava antes

de "consciência", isto é, "saber" o que lhe faltava, "saber" como se sentia, "saber" o

que pensava (FW/GC, V, § 354)

Neste ponto, podemos ver como Nietzsche se atenta para o fato de como os atos

chegam à consciência, pois, utilizando-se da fisiologia, o filósofo procura encontrar dentre a

organização de um sistema de forças de poder o princípio pelo qual os atos de pensamento,

sentimento, ação e movimento, chegam à consciência. Deste modo, para Nietzsche, o ser

humano desde tempos longínquos convive com uma obrigação, desta vez uma obrigação

terrível, da qual prescinde a necessidade de comunicação, e, consequentemente, a necessidade

do desenvolvimento da consciência, pois, por meio dessa obrigação e diante do

desenvolvimento da comunicação e da consciência é que se faz possível executar nessa

função as ações, os pensamentos e os sentimentos, até mesmo todos os movimentos do corpo.

Do mesmo modo, Nietzsche entende que a terrível obrigação a qual incute no ser humano a

necessidade de comunicação através das funções da consciência é a de obter socorro, supõe-se

que diante da natureza e das outras espécies, por meio de seus iguais.

Assim sendo, entendemos que para Nietzsche, diante da ameaça sentida pelo animal

humano na relação com outros humanos, com a natureza e com outras espécies, surge,

imperativamente, para a espécie humana, a necessidade de comunicação, uma vez que, diante

do sentimento de ameaças, foi preciso que um indivíduo se reconhecesse diante de outro

indivíduo, de modo que a comunicação possibilita a partilha igualitária diante de iguais

sentimentos, o que fez com que o animal humano pudesse se reconhecer diante de seus iguais.

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Deste modo, diz Nietzsche, diante da necessidade de expressão do medo, do mesmo

modo que se fez necessária a compreensão de tais angustiosas expressões, foi que a espécie

humana necessitou, assim sugere-se, tanto da função quanto do órgão da consciência, uma vez

que para Nietzsche é por meio da consciência que se fez possível para a espécie “’saber’ o que

lhe faltava, ‘saber’ como se sentia, ‘saber" o que se pensava’ (FW/GC, V, § 354).

Portanto, Nietzsche nos aponta mais um fator necessário para a consciência, pois em

vista de saber o que se passava diante dos medos e perigos enfrentados pela espécie, foi

necessário que o ser humano se comunicasse, sendo que o desenvolvimento da comunicação

acabou por igualar os indivíduos da espécie, uma vez que a comunicação induz ao

reconhecimento do outro como igual diante de medos, anseios e necessidades iguais, quando

igualmente enfrentam os apuros decorrentes da existência na natureza.

Neste ponto, devemos recorrer a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois em sua interlocução

com o parágrafo de nº. 354 de FW/GC apresenta a leitura da origem da consciência como

necessidade (GIACÓIA JR, 2006), de modo que essa leitura deve contribuir com nosso

estudo, uma vez que estamos justamente em vias de refletir como Nietzsche entende a origem

da consciência por meio das necessidades, principalmente através da necessidade de

comunicação (FW/GC, V, § 354).

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Por que é preciso que se constitua e desenvolva a faculdade da consciência? É

preciso porque é indispensável; para que o homem possa se comunicar, faz-se

necessário, antes de tudo, que ele possa refletir, inteirar-se daquilo que pretende

comunicar. Nesse sentido, a consciência representa justamente a superfície onde

seus estados interiores se projetam ou refletem; de modo que, a partir daí, sabe-se,

ou pensa-se saber, aquilo que se quer, sente, teme, deseja, pensa, isto é, aquilo que

se pode comunicar desses estados. É preciso, portanto, que o homem tenha diante de

si um espelho onde possa se refletir algo, um objeto, a ser comunicado, um conteúdo

objetivado dos seus estados vividos (GIACÓIA JR, 2006, p. 37)

Aqui podemos ver que segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2006), diante da pergunta acerca

da necessidade de um órgão ou até mesmo da função da consciência, Nietzsche conclui que,

embora supérflua diante dos órgãos vitais do sistema orgânico (FW/GC, V, § 354), é preciso

existir a consciência por ser indispensável (GIACÓIA JR, 2006) à espécie, pois, assim como

foi demonstrado, sem a consciência a espécie não teria superado os medos e perigos da

existência (FW/GC, V, § 354).

Deste modo, prossegue Oswaldo Giacóia Jr., ao dizer que a consciência foi precisa,

pois, para haver comunicação é antes necessário que se tenha ciência do que se pretende

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comunicar, de tal forma que para se inteirar do objeto de comunicação, faz-se necessário que

se reflita sobre ele. Portanto, sugerimos que, segundo Nietzsche, essa função seja suprida com

o exercício da reflexão pelo órgão da consciência (FW/GC, V, § 354).

Entretanto, mesmo sendo a consciência necessária perante a relação da espécie com o

mundo externo (FW/GC, V, § 354), Oswaldo Giacóia Jr. (2006) nos alerta para o caráter

superficial da consciência diante de todos os outros órgãos do organismo, de modo que todos

os estados interiores do organismo se fazem refletidos na consciência, devido à

superficialidade entranhada no cerne de sua existência.

Assim sendo, Oswaldo Giacóia Jr. (2006) entende que tudo o que se sabe, ou então o

que se pensa saber, resulta do estado de superficialidade da consciência, onde estados

interiores do organismo são projetados, sendo que, do mesmo modo, ocorre também com o

que se pensa e com o que se deseja.

Não obstante, Oswaldo Giacóia Jr. aceita que diante da necessidade da espécie de

objetivar os seus estados vividos, em que os objetos materiais, como outros indivíduos

(FW/GC, V, § 354), ou imateriais, como o sentimento de medo, possam ser refletidos e

comunicados, foi preciso, para a espécie humana, o desenvolvimento da consciência

(GIACÓIA JR, 2006).

Ora, até aqui estamos vendo que, para Nietzsche, a consciência ocorre a partir do

desenvolvimento da comunicação pela necessidade de transmissão e recepção objetivas de

signos diante dos medos efetivos da espécie humana (FW/GC, V, § 354).

Contudo, em nenhum momento Nietzsche cita até agora o meio pelo qual a

comunicação se faz possível através da consciência e supomos que a passagem seguinte do

aforismo de nº. 354 de FW/GC deve nos subsidiar com respostas, a fim de suprir a

inquietação que agora nos cerca, a saber, questiona-se por meio de que instrumento Nietzsche

sustenta o processo de desenvolvimento da consciência em conjunto e diante da necessidade

do desenvolvimento do processo de comunicação.

Neste ponto, voltemos a Nietzsche, uma vez que a sequência do parágrafo de nº. 354

de FW/GC deve nos indicar como ele atribui a origem da consciência como genialidade da

espécie, a fim de suprir a necessidade de comunicação, o surgimento e a função da linguagem

de forma que imaginamos que a linguagem junto a seus mecanismos deve esclarecer nossa

inquietação acerca de quais instrumentos a consciência se utiliza para prover o processo de

comunicação.

Diz Nietzsche:

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Em suma o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não

da razão, mas apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado.

Acrescente-se que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro,

mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos

sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu

na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de

signos. O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais

consciente de si;. Apenas como animal, social o homem aprendeu a tomar

consciência de si - ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais (FW/GC, V, § 354)

Aqui podemos notar que para Nietzsche o desenvolvimento da comunicação, assim

como o desenvolvimento da consciência, está a par com o desenvolvimento da linguagem,

uma vez que, assim entende-se, foi por meio do instrumento da linguagem que a espécie

humana pôde sabiamente se valer do processo de comunicação, utilizando-se do órgão e da

função da consciência.

Deste modo, diz Nietzsche, o “tomar-consciência-de-si da razão” (FW/GC, V, § 354) é

subjacente ao processo do desenvolvimento da consciência e se faz par a par com o

surgimento da linguagem, pois, para Nietzsche o significado do termo razão se dilui diante do

processo de origem da consciência, uma vez que o filósofo prussiano tem na consciência uma

rede de estímulos oriundos do organismo até chegarem à consciência, de modo que não

haveria lugar na consciência para um conjunto sistêmico de organização lógica ou estática,

muito menos exata, pois, assim como os estímulos se alteram a todo instante, assim também

se modifica o estado de consciência, ou seja, o estado em que se toma consciência de si da

razão.

Entretanto, Nietzsche aceita que é preciso entender que no desenvolvimento da

consciência, segundo a necessidade de comunicação da espécie humana, não apenas a

linguagem serviu de instrumento para a transmissão de gestos, anseios e significados

objetivos materiais ou imateriais, mas, do mesmo modo, o toque, o olhar e o gesto.

Assim sendo, a capacidade da espécie humana de se comunicar através do órgão e da

função da consciência, pela via da linguagem, aumentou, na medida em que cresceu a

necessidade de transmitir informações significativas por meio de signos de uma à outra

pessoa.

Portanto, para Nietzsche, ao mesmo tempo em que o homem desenvolve a capacidade

de comunicação através de signos referentes à linguagem, aumenta sua capacidade de se

tornar consciente de si, uma vez que a condição de animal social lhe traz a necessidade de

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comunicação e, com isso, provoca-o diante da necessidade de criar signos referentes aos

objetos dos quais se comunica, sejam eles objetos físicos ou sentimentos.

Voltemos a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois com ele deveremos afirmar que a

necessidade de comunicação se revela como ponto de origem presente na função da

consciência como meio de socialização através da linguagem, de modo que por meio da

linguagem foi possível ao homem elaborar seu processo de comunicação, socializando-se e

cumprindo o exercício de suas forças de vontade de poder (FW/GC, V, § 354).

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Esta se desvela como o originário ponto de confluência entre consciência, linguagem

e sociabilidade, sob o vetor da comunicação, a determinar o desenvolvimento

ulterior, em regime de recíproca influência, da linguagem e da capacidade de tornar-

se consciente. De acordo com isso, as nossas vivências conscientes são somente

aquelas que ocorrem, isto é, cuja configuração se dá em palavras, ou seja, em

expressões linguísticas (GIACÓIA JR, 2006, p. 38) Os estados anímicos de que

somos conscientes são aquelas representações, sentimentos, volições, pensamentos,

movimentos, etc., que podem ser acolhidos no espaço da linguagem, isto é, no

veículo da comunicação. E, por outro lado, somente aquilo que pode ser dito – o

comunicável, o que é suscetível de se tornar comum –, aquilo que pode ser

linguisticamente articulado, ascende à consciência (GIACÓIA JR, 2006, p. 38)

Podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), em Nietzsche, a comunicação se

revela como ponto de intersecção entre o desenvolvimento da socialização e o

desenvolvimento da linguagem, uma vez que à medida do processo de comunicação,

determina-se imediatamente o desenvolvimento da sociedade, sendo que, de forma mútua, o

desenvolvimento da sociedade e da linguagem estimula a criação da comunicação, assim

como, por meio desta, estimula-se o desenvolvimento da consciência.

Assim sendo, Oswaldo Giacóia Jr. observa que a determinação da consciência ocorre

segundo princípios da comunicação por intermédio da linguagem, em que as expressões

linguísticas fundamentam as vivências conscientes dos indivíduos, sendo que apenas o que se

torna consciente é o que se pode expressar por intermédio da linguagem pela via de

expressões linguísticas.

Prossegue Oswaldo Giacóia Jr. ao dizer que os estados de alma do ser humano

possuem consciência, uma vez que são os sentimentos, representações, movimentos, volições,

etc., passíveis de serem recolhidos dentro do ambiente da linguagem, de modo que para o

funcionamento deste processo se faz necessária a linguagem como condutora do processo

comunicativo.

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Entretanto, tudo aquilo que é passível de ser comunicado por intermédio da

linguagem, e que, portanto, ascende à consciência, torna-se comum entre os indivíduos

comunicantes (GIACÓIA JR, 2006), de modo que supomos ser a partir de objetos comuns de

consciência que os indivíduos se reconhecem igualitários (FW/GC, V, § 354), pois adquirem

consciência de certa forma igualitária (GIACÓIA JR, 2006).

Assim, Oswaldo Giacóia Jr., dá suporte para nossa compreensão de que, para

Nietzsche, sentindo-se ameaçado diante da natureza, de outros humanos e de outras espécies,

a espécie humana se nutriu da comunicação como recurso para partilhar igualmente

sentimentos iguais, de modo que, a partir do instante em que foram igualados os sentimentos,

igualaram-se também os indivíduos em sociedade, embora não se tenha igualado a disposição

de forças dos sujeitos na sociedade.

Neste ponto, devemos retornar ao parágrafo de nº. 354 de FW/GC, pois em sua

sequência deveremos ver que para Nietzsche o pensamento da espécie humana, em sua

vitalidade, ocorre incessantemente, embora não seja ininterrupto o ato de se ter consciência de

algo.

Diz Nietzsche:

Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa

continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte

menor; a mais superficial, a pior, digamos: - pois apenas esse pensar consciente

ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a

origem da própria consciência (FW/GC, V, § 354)

Aqui podemos notar que para Nietzsche, como toda criatura viva, a espécie humana,

guiada por impulsos orgânicos, ininterruptamente efetua o ato de pensar, embora não tenha

alcance imediato desse processo de pensamento, uma vez que o pensamento que se torna

consciente é apenas aquele referido pelos objetos oriundos dos signos por intermédio da

linguagem.

Em outras palavras, Nietzsche afirma que a espécie humana tem acesso restrito ao

pensamento, uma vez que, por exemplo, a palavra “dor” é capaz de expressar os diversos

estímulos provenientes de impulsos orgânicos referenciados pelo signo “dor” na consciência,

do mesmo modo que é impossível expressar sob o signo dessa palavra a intensidade desse

sentimento. Porém, a expressão da palavra possibilita, por meio da linguagem, a comunicação

de um estado de sentimento, de modo que, superficialmente, essa expressão adquira espaço

com lugar compreendido dentro da consciência.

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Deste modo, os signos presentes na linguagem facultam o processo de comunicação,

de modo que o que se revela superficialmente à consciência são os simbolismos representados

pelos signos expressos segundo o intermédio dos significados das palavras (FW/GC, V, §

354).

Devemos voltar a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), pois, dando prosseguimento ao exame

do parágrafo de nº. 354 de FW/GC, o autor aponta para como a linguagem opera com os

signos junto ao processo de comunicação diante do ato de se tornar consciente.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

Como signo de comunicação das representações conscientes, a linguagem opera

como os conceitos, ou seja, ela produz o idêntico, o abstrato, as significações

comuns, obtidas por igualação do desigual, pela supressão da diferença individual.

Nesse sentido, ela não pode expressar o que é singular e autenticamente único, já

que seu elemento próprio é o abstrato, aquilo que é abstraído de um e de outro, o elo

que os liga, o corte médio entre eles, aquilo que, por ser comum a ambos, não é

mais, estritamente, nem um, nem outro (GIACÓIA JR, 2006, p. 39)

Aqui podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), a linguagem em Nietzsche se

refere aos signos utilizados no processo de comunicação consciente, uma vez que é por meio

de signos que as representações se fazem possível na consciência. Desta forma, a linguagem

possibilita a abstração de objetos materiais ou imateriais, como um animal predador ou o

sentimento de medo (FW/GC, V, § 354), uma vez que o identifica e lhe atribui um signo com

significado específico, de modo que termina por igualar o igual ao desigual pela supressão da

diferença entre os indivíduos (GIACÒIA JR, 2006).

Por sua vez, o signo “medo”, é uma expressão criada através da linguagem com a

finalidade de representar abstratamente um sentimento comum que, ao ser projetado e, de tal

modo, assimilado, torna comuns os indivíduos do processo comunicativo diante deste signo,

com o mesmo significado e diante de um sentimento que se faz semelhante, assemelhando,

assim, os indivíduos diante da comunicação (FW/GC, V, § 354).

Deste modo, diante de tais predadores, indivíduos da espécie humana, ao se sentirem

ameaçados, atribuíram signos para representar os animais dessas outras espécies, de modo que

a expressão e recepção desses signos, perante o processo comunicativo, produziu uma

consciência comum entre os indivíduos da espécie humana, igualando-os com um saber

proveniente da linguagem desenvolvida e surgida de perigos enfrentados diante de outras

espécies da natureza.

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Ao nos voltarmos novamente para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), vemos que para o

autor, a linguagem, entretanto, não é capaz de expressar o que é singularmente autêntico e

único, de modo que sua propriedade se reduz no abstrato, uma vez que subtrai de um objeto

real um signo referente a um significado, seja este um objeto físico ou um sentimento, de

modo que a ligação entre o objeto a que se refere e seu significado referente no signo já não

traduz nenhuma realidade objetiva para a consciência.

Portanto, vemos que, para Nietzsche, a linguagem se refere a signos, sendo que estes

signos, embora admitidos pela consciência diante do processo comunicativo, não representam

o objeto de seu significado, de forma que no decorrer do processo de formação da

consciência, tanto o objeto perde a referência por seu signo quanto o signo acaba perdendo a

referência do objeto.

Voltemos a Nietzsche, pois devemos ver na sequência do parágrafo de nº. 354 de

FW/GC que, para o filósofo, a consciência, ao contrário, não deve ser entendida segundo os

limites do indivíduo humano, mas, deve ser entendida, segundo critérios que o identifique

diante da espécie, ou seja, segundo valores e signos comunicativos de caráter coletivo.

Diz Nietzsche:

Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da

existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é a natureza

comunitária e gregária; que, em consequência, apenas em ligação com a utilidade

comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto, cada um de

nós, com toda a vontade que tenha de entender a si próprio de maneira mais

individual possível, de "conhecer a si mesmo", sempre traz à consciência justamente

o que não possui de individual, o que nele é "médio" - que nosso pensamento

mesmo é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência - pelo

"gênio da espécie" que nela domina - e traduzido de volta para a perspectiva

gregária (FW/GC, V, § 354)

Aqui, podemos notar que, a partir deste ponto, Nietzsche sugere a hipótese de que a

consciência possui natureza gregária34

, de modo que a natureza da origem da consciência

possui caráter comunitário, ou seja, a partir da necessidade de comunicação entre indivíduos,

34

Neste ponto, seguiremos orientação dada por Oliveira (2009), e entendemos que, como psicólogo, Nietzsche,

ao diagnosticar a cultura segundo bases em saúde ou doença atribui ao termo gregário o sentido de vida

conforme valores morais comuns. Não obstante, Noéli Correia Sobrinho (2013) afirma que o “instinto gregário”

(SOBRINHO, 2013, p. 50) representa para Nietzsche tirania e neutralização dos instintos de vontade de poder,

responsáveis pela conservação diante da adaptação da espécie humana à vida coletiva. Deste modo, para

Sobrinho (2013), Nietzsche atribui o termo gregário quando trata do “instinto gregário” segundo a ideia de que

este significa a anulação de forças por vontade de poder, sendo que disto entendemos que Nietzsche atribui o

termo gregário para a vida em sociedade segundo valores e sentimentos comuns, de tal forma que a vida gregária

tem para nós o mesmo sentido de vida comunitária (FW/GC, V, § 354).

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por meio da linguagem, o filósofo entende que a espécie humana foi capaz de criar e

desenvolver um modelo de vida comum, radicado em valores comuns.

Deste modo, tanto comunidade quanto a gregaridade estão para Nietzsche como

existência radicada em valores comunitários, em detrimento da existência enraizada em

valores individuais, sendo que a consciência somente teria se desenvolvido, sutilmente, diante

da ligação com a utilidade perante a vida comunitária.

Assim sendo, cada indivíduo acaba por considerar por si próprio o que é mediado pela

cultura comunitária a qual pertence, de modo que se faz impossível conhecer a si mesmo, pois

o que se conhece é o que há de comum diante de si mesmo em cada indivíduo.

Portanto, a necessidade de comunicação, mediada pela utilização da linguagem,

formula signos valorativos mediados pelos sentimentos comuns junto ao desenvolvimento da

consciência, sendo que, a consciência, como genialidade da espécie, traduz, por meio da

natureza gregária, a perspectiva da cultura como forma de consciência em cada indivíduo

(FW/GC, V, § 354).

Voltemos a Oswaldo Giacóia Jr. (2006), uma vez que com ele veremos que tanto a

consciência como a sociedade e a linguagem têm na origem um ponto em comum, deste

modo, entenderemos melhor que nem a sociedade, nem a consciência ou a linguagem são

consideradas por Nietzsche segundo um dado real, pois pela via da linguagem adquirem e

carregam caráter artificial por intermédio dos signos oriundos da linguagem.

Diz Oswaldo Giacóia Jr.:

A linguagem, a consciência e a sociedade têm uma origem comum. Sendo assim, há

que se admitir que nem a consciência, nem a linguagem, nem a sociedade são um

dado, um fato natural, não sujeito à transformação ao vir-a-ser, à história. Nesse

domínio, não há, pois, que seja dado de uma vez por todas, mas o mesmo devir que

está presente na linguagem, está presente também na sociedade e na consciência

(GIACÓIA JR, 2006, p. 40)

Podemos ver que para Oswaldo Giacóia Jr. (2006), em Nietzsche tanto a sociedade

quanto a linguagem e a consciência têm origens comuns, de modo que por este motivo o autor

sugere que não se deve admiti-las como um dado natural ou mesmo como um acontecimento

da natureza.

Assim sendo, tanto a sociedade e a linguagem, assim como a consciência, estão

sujeitas à transformação em decorrência da história (GIACÓIA JR, 2006), pois, assim supõe-

se, uma vez que se transforma a história, transforma-se a sociedade e a linguagem, tal qual se

transforma a consciência (FW/GC, V, § 354).

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Deste modo, Oswaldo Giacóia Jr. entende que no domínio da consciência não existe

nenhum dado que possa ser tido como eterno ou imutável, mas, muito pelo contrário, a

sociedade, a linguagem e a consciência são eterno devir, ou seja, um constante vir-a-ser e uma

constante transformação.

Portanto, segundo Oswaldo Giacóia Jr., Nietzsche entende que a consciência, oriunda

da linguagem (FW/GC, V, § 354), transforma-se do mesmo modo com que se transformam a

sociedade, a linguagem e a cultura (GIACÓIA JR, 2006), pois uma vez que as três têm origem

comum, carregam também essas características, de certo modo, comum.

Neste ponto, devemos recorrer a Scarlett Marton (2009b), pois a autora auxilia a

elucidar a relação da consciência com a linguagem, de forma que apresenta a consciência e a

linguagem fortemente ligadas, sendo que para a autora as duas encontram repouso no terreno

comum da gregaridade.

Diz Marton:

Por outro lado, consciência e linguagem estariam intimamente ligadas; elas se

fundariam no solo comum da gregaridade. O que o homem pensa a respeito de si

mesmo e do mundo já estaria impregnado pela linguagem. E nem poderia ser de

outro modo, uma vez que, na perspectiva nietzschiana, são as palavras que

possibilitam o tomar-consciência-de-si do pensamento. O indivíduo mais fraco,

acreditando-se o mais ameaçado, é compelido a pedir ajuda aos semelhantes a fim

de conservar a própria vida. Para tornar inteligível seu pedido, necessita tanto da

linguagem quanto da consciência (MARTON, 2009b, p. 179)

Neste ponto, podemos ver que Scarlett Marton (2009b) reforça nosso entendimento

acerca do significado da consciência no parágrafo de nº. 354 de FW/GC, pois aceita que para

Nietzsche a consciência se solidifica com linguagem, sendo que a gregaridade é o terreno

tanto da linguagem quanto da consciência (MARTON, 2009b).

Deste modo, a autora radicaliza o pensamento nietzschiano, pois indica que, para

Nietzsche, a linguagem penetra em tudo o que a espécie é capaz de pensar, inclusive quando

um indivíduo se volta para pensar a si mesmo, uma vez que o meio pelo qual se exerce o

pensamento é o meio da linguagem (MARTON, 2009b) e entendemos que a linguagem

carrega consigo o senso comum enraizado na cultura e representa os signos da vida gregária

(FW/GC, V, § 354).

Prossegue Marton (2009b), ao dizer que segundo o entendimento o pensamento é

formulado através de palavras, sendo que essas impossibilitam que um indivíduo pense a si

mesmo, de forma que a autora sugere que esse processo não pode ser de outro modo.

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Assim sendo, para Scarlett Marton, sentindo-se ameaçados, os indivíduos mais fracos

colocaram-se a pedir socorro a outros indivíduos com os quais se assemelhavam, com a

finalidade de conservação da própria vida. Entretanto, para que fosse compreensível este

pedido precisaram desenvolver tanto a linguagem como a consciência.

Portanto, segundo a autora, Nietzsche entende que os indivíduos diante de ameaças

precisaram se comunicar com outros indivíduos, de modo que essa comunicação ocorre pela

via da linguagem e para a linguagem poder ser compreendida é que foi preciso o

desenvolvimento de um órgão da consciência.

Neste ponto, entendemos que Marton (2009b) confirma nosso estudo da passagem

acima do parágrafo de nº. 354 de FW/ GC, pois, assim como a autora, aceitamos que segundo

Nietzsche a consciência foi necessária para a comunicação e essa comunicação se deu por

meio de signos, sendo que ao se comunicarem através de signos comuns, os indivíduos se

puseram diante de uma consciência comum, passando, desta forma, a desfrutar e conviver em

uma sociedade gregária.

Voltemos a Nietzsche, pois a sequência do parágrafo de nº. 354 de FW/GC nos dará a

medida de como o filósofo expressa a maneira como a consciência, adquirida junto ao

processo comunicativo e diante da natureza gregária, culmina em verdadeiro perspectivismo.

Diz Nietzsche:

Todas as nossas ações, no fundo, são pessoais de maneira incomparável, únicas,

ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas, tão logo as traduzimos para a

consciência, não parecem mais sê-lo... Este é o verdadeiro fenomenalismo e

perspectivismo, como eu o entendo: a natureza da consciência animal ocasiona que o

mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só um mundo generalizado,

vulgarizado - que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo,

relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente

está relacionada uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e

generalização (FW/GC, V, § 354)

Aqui podemos notar que segundo o entendimento de Nietzsche todas as ações da

espécie, indubitavelmente, carregam as singularidades de cada indivíduo que as toma, ou seja,

em cada ação individual estão contidas as particularidades de cada indivíduo, pois, tomando-

se como fio condutor a afirmação nietzschiana de que a consciência se regula por forças de

vontade de poder no organismo, cada ação tomada por um indivíduo representa, de modo

único, o exato instante em que um conjunto de forças e impulsos age no organismo.

Entretanto, embora as ações indiquem as singularidades de cada indivíduo, uma vez

traduzida para a consciência, já não mais parece sê-lo, diz Nietzsche, pois, neste aspecto, a

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consciência se revela por meio da linguagem através de signos, de modo que o que se tem

revelado para a consciência são os signos linguísticos oriundos do processo comunicativo, os

quais já não trazem consigo o instante do impulso que o gerou culturalmente, muito menos no

instante em que se tem a consciência um indivíduo.

Deste modo, para Nietzsche, o mundo do qual se faz possível tomar consciência, é um

mundo vulgarizado pela generalização decorrente da tradução de estados de impulsos no

organismo a signos comunicados através da linguagem, pela consciência, de modo que esse

processo o filósofo prussiano afirma como sendo o fenomenalismo e o perspectivismo, pois

assim aceitamos, Nietzsche atribui o juízo de que tudo o que ocorre no organismo, até mesmo

o ato de se tomar consciência de algo, acontece como fenômeno, sendo que, o que pode ser

percebido são as perspectivas de um instante fenomenológico dos quais os sentimentos e

impulsos fazem parte e nunca se fazem permanentes na consciência, tal qual ocorre com os

signos.

Portanto, embora a consciência tenha suprido a necessidade de comunicação oriunda

da espécie, ao fazê-lo, generalizou os impulsos orgânicos através de signos e os massificou

por meio da linguagem, de modo que a partir daí o tornar-se consciente representa a

superficialização, falsificação, corrupção e generalização em relação aos indivíduos, pois

traduz ao comum os instantes de impulsos de alguns indivíduos.

Deste modo, uma vez que a consciência torna comum o sentimento de um indivíduo

em meio ao processo comunicativo, infere aos signos a marca do rebanho35

, pois fixa um

valor a determinado signo, de modo que este valor é transmitido e tomado de modo comum

por todos os indivíduos, transformando, assim, todos os indivíduos, por mais singularidades

que tenham, em uma espécie de rebanho, onde os signos carregados pela marca de valores

comuns acabam por formar e modular a consciência.

Logo, para Nietzsche, tomar a consciência como fenomenalismo ou perspectivismo,

significa entendê-la a partir de sua superficialidade (FW/GC, V, § 354) diante dos instintos do

organismo, de modo que o que é possível entrar na consciência são apenas os signos oriundos

da necessidade do processo comunicativo, os quais falsificam o instante originário, pois, para

chegar à consciência a ponto de se tornarem conscientes, sofrem generalização pela

comunidade gregária e transformam a cultura em uma cultura de rebanho.

35

Sabemos que a expressão “rebanho” é recorrente na obra de Nietzsche e a teremos seguindo Niemeyer (2014),

para quem Nietzsche se utiliza da expressão “rebanho” a fim de diferenciar atributos e valores decorrentes de

indivíduos independentes diante de atributos e valores decorrentes da multidão, das massas, sendo que, para

Nietzsche, o rebanho é composto por indivíduos comuns e medíocres distribuídos em uma massa orientada pelo

conforto (NIEMEYER, 2014).

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Neste ponto, devemos recorrer a Müller-Lauter (2009), pois com ele deveremos

melhor compreender que para Nietzsche o perspectivismo se faz necessário como qualidade

essencial da vida, de modo que pela oposição de forças de vontade de poder, o filósofo

prussiano entende que a consciência é uma condição da vida segundo diferentes perspectivas.

Diz Müller-Lauter:

“O perspectivismo é necessário: ele é a ‘condição fundamental de toda vida’. Assim,

a vida se constrói através da oposição das vontades de potência que se afirmam de

diferentes perspectivas. O mundo não tem nenhum sentido para si ou atrás de si; ele

tem ‘incontáveis sentidos’. Caso se excluam as perspectivas e, com isso, a

relatividade, não resta mais nenhum mundo. Não há nada além do ‘concerto’ dos

centros de força que constroem de modo distinto” (MÜLLER-LAUTER, Nietzsche:

sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. São Paulo: Ed.

Unifesp, 2009, p. 171-172)

Aqui podemos notar que para Müller-Lauter (2009) o perspectivismo em Nietzsche é a

principal qualidade da vida, pois, assim entende-se, para Nietzsche não há nada mais básico à

vida do que as forças provenientes dos impulsos em ação no organismo (FW/GC, V, § 354),

de modo que quando se toma consciência de algo, toma-se a consciência de uma perspectiva

sobre este algo, uma vez que este apenas pode ser considerado como forma de aspecto, diante

de uma complexa interação de forças em disputa no organismo.

Prossegue Müller-Lauter (2009) ao dizer que para Nietzsche as oposições de forças de

vontade de poder compõem a vida, onde sugere-se que tal qual um elemento da vida, a

consciência é composta pelo instante em que diversas forças de vontade de poder se afirmam

no organismo (FW/GC, V, § 354), de modo que por ser constante e transitória a disputa das

forças por vontade de poder (MÜLLER-LAUTER, 2014), também são transitórias as forças

quando imprimem qualquer signo como objeto material ou imaterial na consciência (FW/GC,

V, § 354), de tal forma que a consciência termina por se modificar constantemente, diante da

transição dos estados de forças que nela se imprimem.

Assim sendo, para Nietzsche, em todos os instantes, altera-se a relação do conjunto de

forças em ação no organismo, de modo que ao se imprimirem na consciência (FW/GC, V, §

354), como órgão do conjunto orgânico (FW/GC, I, § 11), o conjunto de forças em ação no

organismo se encerra em transformar o tempo todo o estado de consciência (FW/GC, V, §

354), uma vez que a consciência é o órgão mais superficial em relação ao conjunto de todos

os outros órgãos do organismo.

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Logo, como a consciência flui através do conjunto de forças em ação no organismo e

se faz outra e nova a cada instante, os aspectos impressos na consciência também são outros e

novos a cada instante (FW/GC, V, § 354), de modo que, para Nietzsche, segundo Müller-

Lauter (2006), a vida é composta segundo estados e perspectivas (FW/GC, V, § 354)

impressos na consciência (MÜLLER-LAUTER, 2009).

Deste modo, afirma Müller-Lauter (2009) que o mundo não possui sentido algum

contido em si mesmo, ou ainda atrás de si mesmo, pois o que existe, segundo a distribuição

incontável de forças, são incalculáveis sentidos.

Portanto, Müller-Lauter sustenta que para Nietzsche, uma vez que se exclua do mundo

o seu caráter perspectivista, como supomos, tendência a ser efetivada com a redução da

consciência a signos, exclui-se do mundo o que resta de mundo, ou seja, segundo o autor,

encerra-se o mundo, junto da naturalidade do mundo, quando se exclui dele os intermináveis

momentos de força assimilados por meio de infindáveis perspectivas.

Logo, segundo o autor, em Nietzsche não existe a possibilidade de compreensão do

caráter da consciência, ou mesmo do mundo em seu estado de natureza, caso não se lhes

atribuam o perspectivismo como fundamento básico da existência, pois somente como centro

de forças faz-se possível a existência, tanto da consciência quanto do mundo.

Neste ponto, Müller-Lauter (2009) nos auxilia a compreender como Nietzsche tem o

fenomenalismo e o perspectivismo como atribuições vitais da existência (FW/GC, V, § 354),

uma vez que nos explica que pela via da vontade de poder (MÜLLER-LAUTER, 2009) tanto

a consciência quanto a existência do mundo só podem ser consideradas do ponto de vista do

perspectivismo, pois o mundo é composto por perspectivas de forças, do mesmo modo que a

disputa incessante de forças em ação no organismo compõe o instante da consciência

(MÜLLER-LAUTER, 2009).

Devemos agora recorrer à última passagem do estudo neste capítulo acerca da

consciência como genialidade da espécie no parágrafo de nº. 354 de FW/GC, em que

Nietzsche, como psicólogo, coloca-se em vias de ultrapassar a superficialidade da

consciência, e, sob o ponto de vista da disputa de forças por vontade de poder, apresenta-nos a

consciência como necessidade da espécie, sendo que diante da genialidade da consciência foi

possível a comunicação por meio dos signos fundamentais da linguagem.

Neste ponto, porém, Nietzsche deverá finalizar sua profunda explicação acerca da

consciência como genialidade da espécie, onde devemos ver que para o filósofo é impossível

se chegar ou até mesmo se ater a uma verdade, entende-se por verdade um conceito de valor

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imutável atribuído a um e a todos os signos linguísticos, uma vez que, como aspectos

perspectivos, os signos alteram seu valor do mesmo modo em que a todo tempo se altera a

consciência.

Diz Nietzsche:

Afinal, a consciência crescente é um perigo; e quem vive entre os mais conscientes

europeus sabe até que é uma doença. Não é, como se nota, a oposição entre sujeito e

objeto que aqui me interessa: essa distinção deixo para os teóricos do conhecimento

que se enredaram nas malhas da gramática (a metafísica do povo). E menos ainda é

a oposição entre fenômeno e "coisa em si": pois estamos longe de "conhecer" o

suficiente para poder assim separar. Não temos nenhum órgão para o conhecer; para

a "verdade": nós "sabemos" (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto

pode ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se

chama "utilidade' é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez,

precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos." (FW/GC, V, § 354) 36

Aqui podemos notar que a consciência, diante de todos os outros órgãos do organismo

(FW/GC, I, § 11), representa um perigo crescente (FW/GC, V, § 354), pois, seguindo a

oposição entre a consciência como forças de vontade de poder e a consciência como

orientação formulada por objetos de conceito, Nietzsche afirma que a necessidade de uma

vida regrada por conceitos já está em suspeição até mesmo entre os europeus mais

conscientes, ou seja, mesmo entre os que mais se utilizam da consciência para regular a vida,

a necessidade de conceitos está em suspeita de perigo ou doença.

Deste modo, utilizando-se novamente do recurso da ironia, Nietzsche afirma que não

se interessa pela aversão existente entre sujeito e objeto do sujeito, de modo que essa análise

deve se fazer presente na teoria do conhecimento oriunda da metafísica do povo, a gramática.

Entendemos que aqui Nietzsche se utiliza de ironia, pois aceitamos que sua intenção é

afirmar que se interessa pelas relações de vontade de poder, presentes diante da necessidade e

origem da consciência, como genialidade da espécie, mas não na distinção entre objetos

materiais ou imateriais da consciência e os significados das representações de seus conceitos,

de modo que para dizer estes termos recorre ao recurso da gramática como metafísica do

povo.

Assim sendo, aceitamos que nessa passagem Nietzsche nos lembra de que no

parágrafo de nº. 354 de FW/GC se detém na expressão da consciência como genialidade da

espécie, sendo que os conceitos, quando revertidos em signos, sinalizam a comunidade

gregária.

36

O termo “grege” está entendido por nós com o significado de “rebanho”.

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Entretanto, a comunidade gregária, segundo Nietzsche, imprime suas forças em

direção à expressão e manutenção de significados imutáveis para signos móveis, diante do

perspectivismo, de modo que este não é objeto nem mesmo objetivo ideal da filosofia

nietzschiana, nem mesmo de sua psicologia da consciência.

Portanto, prossegue Nietzsche ao dizer que menor ainda é seu interesse em opor junto

ao parágrafo de nº. 354 de FW/GC o que ocorre entre o que é o fenômeno e o que é coisa em

si, uma vez que aceita de antemão que o que se percebe e se faz possível perceber pela

consciência são apenas as perspectivas que se imprimem na consciência, mas logo se

transformam.

Para Nietzsche, não é possível afirmar a existência de um órgão do conhecimento com

o qual seja admissível alcançar a verdade, uma vez que o órgão da consciência vive em

disputa contínua, primeiramente, com as forças de todos os outros órgãos, depois, com as

forças da cultura que se lhes imprimem através dos mecanismos comunicativos da

organização da cultura.

Assim sendo, segundo o filósofo prussiano o que se supõe, o que se crê por ciente ou

mesmo o que se imagina saber, são precisamente as noções básicas necessárias para a

existência e o desenvolvimento da espécie humana, de modo que, neste ponto, não há lugar

onde seja cabível a existência da verdade, tomando-se por verdade um valor fixo e imutável,

presente em signos, através da linguagem, diante do processo comunicativo do qual fazem uso

tanto a sociedade, como a comunidade gregária e a cultura.

Portanto, para Nietzsche a genialidade da espécie consiste em desenvolver para si a

consciência, de modo que por meio do processo comunicativo instituiu como instrumento a

linguagem por meio de signos, sendo que, com o passar do tempo, ousou em atribuir a esses

signos um valor intransponível, utilizando-se, para isso, do critério de verdade.

Deste modo, segundo Nietzsche talvez seja possível que um dia a espécie humana

pereça, pois aceita que é preciso abandonar os critérios de verdade instituídos pela gramática,

a fim de reconstituir a genialidade da espécie, que condiz com a criação e percepção de

apenas suposições e hipóteses sobre a marca de signos e valores, sendo que se passe a agir de

tal modo, dará sequência à sua genialidade, devendo levar à manutenção e à evolução da

espécie.

Neste ponto, devemos recorrer a Cordeiro (2012), pois o autor examina a questão da

consciência em Nietzsche a partir da ideia de que os impulsos e forças presentes no corpo são

os grandes agentes da consciência, de modo que essa passagem deverá nos auxiliar a elucidar

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como o psicólogo Nietzsche suspeita, pela via do corpo (FW/GC, V, § 354), que nenhum dos

órgãos de nosso corpo é capaz de conseguir um conhecimento factual e absoluto sob o signo

do termo verdade.

Diz Cordeiro:

Por isso, quando Nietzsche considera tudo o que existe como sendo apenas

interpretação, ele não está se referindo de modo algum a qualquer espécie de

relativismo. Tudo o que existe é interpretação não no sentido de uma opinião

pessoal, subjetiva, que difere de pessoa a pessoa. A interpretação, o sentido que é

anteposto às coisas diz respeito ao aparecer de uma perspectiva real (CORDEIRO,

R. C. O corpo como grande razão: análise do fenômeno corpo no pensamento de

Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2012, p. 212)

Podemos ver que para Cordeiro (2012), Nietzsche não se refere ao relativismo quando

afirma que tudo o que existe é interpretação, pois entendemos que aqui o autor se refere ao

caráter fenomenalista e perspectivista do pensamento de Nietzsche (FW/GC, V, § 354), uma

vez que, para Nietzsche, as forças corpóreas, quando se transformam constantemente no

organismo, alteram também a interpretação consciente, de modo que para o filósofo prussiano

tudo o que se faz impresso na consciência é apenas a impressão de uma interpretação do

momento.

Assim sendo, para o autor, a interpretação, segundo o pensamento nietzschiano, não

deve ser colocada segundo o sentido das opiniões pessoais, subjetivas, segundo as infinitas

variações que pode haver entre as pessoas, mas, entende-se deste modo, segundo as forças e

impulsos em ação no organismo no momento presente em que se toma toda e qualquer

consciência (FW/GC, V, § 354).

Deste modo, segundo Cordeiro, Nietzsche se baseia na perspectiva do real, segundo

entendemos, até mesmo quando examina a consciência através dos fenômenos e

acontecimentos presentes no corpo (FW/GC, V, § 354), pois entendemos que Nietzsche tem

na consciência a interpretação do momento presente, sendo que a única forma de

conhecimento possível (FW/GC, V, § 354) segundo o filósofo prussiano é o conhecimento

perspectivista acerca de um momento e acontecimento real (CORDEIRO, 2012).

Portanto, Cordeiro (2012) nos auxilia, pois, segundo sua concepção, Nietzsche parte

dos acontecimentos reais, entende-se que, sobretudo, quando pensa em tudo o que é possível

de se imprimir na consciência, de forma que o autor afirma que Nietzsche considera tudo o

que é existente como resultado de interpretação, pois aceita que a interpretação decorre da

transformação do organismo e da consciência diante de todos os aspectos que lhes são reais.

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Nesse capítulo, portanto, pudemos ver que para Nietzsche a consciência como

genialidade da espécie surge da necessidade de comunicação entre diante de medos e anseios

reais perante outros indivíduos da espécie, tal qual diante dos predadores de outras espécies.

Deste modo, com o fim de se comunicar, foram criados os signos, que por sua vez

originaram a linguagem, sendo que, por meio desta, a espécie solidificou seu ideal de verdade,

seguido de valores comuns, dos quais Nietzsche entende que é preciso se libertar, para

prosseguir com a consciência como genialidade da espécie, assim como com a evolução da

sociedade e da cultura, de modo a garantir a preservação da espécie, uma vez que afirma ser

por meio da genialidade que ocorrem tanto a manutenção, quanto a preservação da espécie.

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CAPÍTULO IV – A CONSCIÊNCIA COMO GRANDE SAÚDE

(...) Mas por que você ouve a sua consciência? E até que ponto você tem o direito de

considerar um tal juízo verdadeiro e infalível? Para que essa crença já que não há

consciência? Você não sabe de uma consciência intelectual? De uma consciência por

traz de sua “consciência”? Seu julgamento “Isto está certo” tem uma pré-história nos

seus impulsos, inclinações, aversões, experiências e inexperiências (FW/GC, V, §

335) 37

Para esse capítulo, colocaremos a seguinte questão: Como o psicólogo Nietzsche, ao

final de FW/GC, expõe a consciência de si como razão elementar de sua grande saúde?, pois

tendo esclarecido isso, seremos conduzidos à conclusão da pesquisa, com nossa última

compreensão dos significados dados por Nietzsche para a consciência em FW/GC, a partir de

um texto escrito e publicado junto à obra no ano de 1886.

Portanto, esse capítulo objetiva examinar a consciência em Nietzsche a partir de sua

relação com a grande saúde, pois, com ele, suscitamos responder à pergunta do capítulo, a

partir do exame do parágrafo de nº. 382, último parágrafo antes do epílogo, incorporados à

obra no ano se 1886, com os quais o livro se encerra.

Se, no segundo parágrafo do prólogo, ponto de partida dessa pesquisa, Nietzsche

indica ser elementar em sua psicologia as condições relativas à doença e à saúde, quando da

construção de um pensamento, um valor moral ou até mesmo a própria filosofia, onde o

experimento é apresentado como ponto crucial (FW/GC, Prólogo, § 2), supõe-se que agora,

no encerramento da obra, Nietzsche se coloque como aquele que se enreda diante das

hipóteses da origem e formação da consciência, tanto do ponto de vista do elemento em

desenvolvimento do orgânico (FW/GC, I, § 11), quanto do ponto de vista das necessidades

advindas da correlação entre indivíduo, sociedade e cultura (FW/GC, V, § 354), de modo que

se afirme como aquele que, diante da consciência de si (FW/GC, V, § 382), adquire a grande

saúde, uma vez que em FW/GC sua busca substancial se constitui em reconstruir e abandonar

os valores que o experimento da gaia ciência demonstra ser necessário abandonar (FW/GC, V,

§ 382).

Deste modo, aqui voltamos o olhar para a parte final de FW/GC (1886), utilizando-se

também de EH/EH como recurso, em vista de elucidar como o psicólogo Nietzsche supõe

encontrar a grande saúde diante do próprio experimento com as profundas questões que se

coloca em FW/GC sobre a consciência (FW/GC, V, § 382).

37

Cf. TD: PCS.

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Entretanto, não desprenderemos grandes esforços pelo estudo do epílogo, pois

entendemos que com ele Nietzsche apenas enfatiza ter concluído a sua alegre ciência, com a

qual empreende uma nova música para uma nova dança (FW/GC, V, § 383), ou seja,

entendemos que Nietzsche se utiliza em FW/GC de um novo meio para um novo fim, em que

percebemos se utilizar da psicologia da consciência para pensar as questões da origem e

formação da consciência diante da espécie humana, resultando na renúncia dos conceitos

metafísicos até então próprios da filosofia (FW/GC, V, § 383).

Utilizando-se da metáfora de que aceita não serem todos os que estão preparados para

os ruídos roucos de sua garganta em meio às alturas e para o novo sopro de sua flauta mansa,

entendemos que Nietzsche afirma haver tamanha inovação em FW/GC, que provavelmente o

livro não será compreendido por muitos (FW/GC, V, § 383).

Portanto, aceitamos que a mensagem final dada por Nietzsche na conclusão de

FW/GC, ou seja, no epílogo (FW/GC, V, § 383), seja a de que embora tenha construído com

este livro uma ciência alegre e feliz, através da inovação dada pela psicologia da consciência

diante da metafísica filosófica e da moral, possivelmente seu conteúdo não será muito bem

compreendido.

Por isso, no lugar de tomarmos para exame neste capítulo o epílogo, último parágrafo

do livro (FW/GC, V, § 383), focaremos a abordagem do parágrafo imediatamente anterior

(FW/GC, V, § 382), onde sugerimos que Nietzsche faz o exame do alcance e profundidade do

empreendimento da psicologia da consciência com a qual constrói a “gaya scienza”,

analisando essa abrangência diante de si e diante da espécie humana (FW/GC, V, § 382).

Diz Nietzsche:

A grande saúde. -Nós, os novos, os sem-nome, os difíceis de entender, nós, os

nascidos cedo de um futuro ainda indemonstrado - nós precisamos, para um novo

fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais

forte, mais engenhosa, mais tenaz, mais temerária, mais alegre, do que todas as

saúdes que houve até agora (FW/GC, V, § 382) 38

Sobre a primeira citação da seção, inicialmente devemos notar que a escolha para o

título do parágrafo com o qual Nietzsche encerra a discussão sobre a importância e o alcance

da psicologia da consciência em FW/GC seja exatamente A grande saúde (FW/GC, V, § 382).

É importante notar, pois vimos nos capítulos anteriores que Nietzsche faz da fisiologia

instrumento de seu estudo da consciência, de modo que elabora a psicologia da consciência a

38

Para toda a seção seguiremos TD: RRTF.

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partir de hipóteses lançadas sobre os impulsos orgânicos, diante da origem e formação de tudo

o que se imprime na consciência. Desse modo, sugerimos que a escolha do título para esse

parágrafo representa justamente que Nietzsche afirma ser esse parágrafo o encerramento de

um momento de grande saúde (FW/GC, V, § 382), ou seja, o penúltimo parágrafo do livro

deve ser compreendido como o instante final com que Nietzsche se avalia com plenitude

diante da sociedade e da cultura, segundo a expressão de impulsos doentios ou impulsos

saudáveis com que construiu a psicologia da consciência em FW/GC..

Assim sendo, com a grande saúde, supomos que Nietzsche infere como signo do

encerramento de FW/GC o seu grande momento, qual seja o instante com o qual o filósofo se

afirma segundo os próprios valores, diante dos valores mais fortes que até então serviram de

alicerce para a história da humanidade (FW/GC, V, § 382).

Deste modo, uma vez dada a devida atenção à escolha feita por Nietzsche ao título do

aforismo, vamos ao texto, pois com ele identificamos que o filósofo prussiano afirma que

diante do reconhecimento de seu grande momento de saúde, existe uma lacuna entre o que sua

saúde demonstra e o que o presente histórico é capaz de supor e aceitar (FW/GC, V, § 382).

Para Nietzsche, as pessoas que compreendem a sua filosofia (FW/GC, V, § 382), terminam

por se igualar ao filósofo diante das pessoas e valores de seu tempo (FW/GC, V, § 382), de

modo que para esses o filósofo atribui propriedades ainda inominadas e de difícil

entendimento.

Sendo assim, para Nietzsche, a grande saúde está para os “novos”, “sem nome”,

“difíceis de entender” e “recém-nascidos” de um futuro “indemonstrado” (FW/GC, V, § 382),

pois, assim aceita o filósofo, é uma grande novidade para a época em que escreveu este livro

(1886), assim como alguém que entenda a necessidade e procure um meio para fundamentar a

vida nas próprias questões da existência, com base na fisiologia, e não em conceitos morais.

Portanto, Nietzsche sugere como necessária uma nova e grande saúde para ser vivida

por quem, como o filósofo, compreende o valor da existência nas próprias experiências da

vida. Com a proposição indicada acima, supomos que Nietzsche, na passagem citada, para

FW/GC como momento de sua grande saúde, de modo que, ao concluir este, livro afirma ser

ele um momento da grande saúde, tão forte, tenaz e saudável que a humanidade não entende,

não nomeia, ou até mesmo demonstra através da vivência (FW/GC, V, § 382).

Neste ponto, devemos recorrer a Bruno Wagner Santana (2012), pois vemos que o

autor quando investiga a grande saúde em Nietzsche, identifica o instante da grande saúde

como um momento de abundância de vontade de poder, de modo que deverá contribuir para

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nosso entendimento acerca do tamanho da abrangência do significado da grande saúde no

parágrafo de nº. 382 de FW/GC.

Diz Bruno Wagner Santana:

Se a vida porta consigo uma desarmonia insolúvel, isso não nos parece advir pelo

fato de lhe ser inerente uma falta, uma negatividade, mas, pelo contrário, advém do

fato da vida, segundo Nietzsche, ser excesso, vontade de potência. Logo, conquistar

a grande saúde implicaria uma “conquista” da transitoriedade, um “saber” do

movimento de ascensão e queda de todos os valores diante da vida; conquistar a

grande saúde implicaria assim também saber perdê-la (SANTANA, 2012, p. 135)

Vemos que para Santana (2012), Nietzsche entende haver na vida uma insolúvel

desarmonia decorrente do excesso ocasionado por vontade de poder, de modo que antes de se

configurar como ausência ou mesmo negatividade, o filósofo prussiano vislumbra na

desarmonia inerente à vida um sinal positivo.

Assim sendo, uma vez que o excesso de vida por vontade de poder resulta numa

harmonia impossível, Nietzsche associa a conquista da transitoriedade permanente com o

elemento de uma grande saúde (SANTANA, 2012).

Deste modo, para Santana (2012), conquistar a grande saúde para Nietzsche significa

se apossar de uma transitoriedade decorrente de um saber constantemente em movimento,

provido por ascensão e declínio. Supõe-se, então, que Nietzsche confronta as questões mais

caras para a espécie humana, sendo que este movimento implica em conquista e perda de

saúde como meio para a conquista da grande saúde (FW/GC, V, § 382).

Portanto, aceitamos que para Santana (2012), Nietzsche entende como a grande saúde

o fato de transitar entre movimentos de saúde e doença, de modo que o trânsito o leva a

enfrentar os valores da espécie humana conforme o seu entendimento acerca da vontade de

poder como fundamento constante da vida, uma vez que o filósofo prussiano defende a posse

de um novo meio para um novo fim (FW/GC, V, § 382), ou seja, aceita-se que para Nietzsche

é por meio da transição de forças de poder sobre a vida que se alcança a grande saúde

(FW/GC, V, § 382).

Voltemos a Nietzsche, pois na sequência do parágrafo de nº. 382 devemos observar

como o filósofo demonstra o fator transitório da vida como elemento da grande saúde

(FW/GC, V, § 382), pois confronta os valores transitórios diante de valores oriundos de

grandes ideais.

Diz Nietzsche:

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Aquele cuja alma tem sede de viver o âmbito inteiro dos valores e anseios que

prevaleceram até agora e de circunavegar todas as costas desse "mar mediterrâneo"

ideal, aquele que quer saber, pelas aventuras de sua experiência mais própria, o que

se passa na alma de um conquistador e explorador do ideal, assim como de um

artista, de um santo, de um legislador, de um sábio, de um erudito, de um devoto, de

um adivinho, de um apóstata no velho estilo: este precisa, para isso, primeiro que

tudo, de uma coisa, da grande saúde – de uma saúde tal, que não somente se tem,

mas que também constantemente se conquista ainda, e se tem de conquistar, porque

sempre se abre mão dela outra vez, e se tem de abrir mão!... (FW/GC, § 382)

Com essa passagem, pode-se ver que, para Nietzsche, a grande saúde é uma condição

daquele cuja alma pretende viver inteiramente o domínio dos valores, de modo que esses

sujeitos anseiam navegar por todas as costas de um mediterrâneo mar ideal (FW/GC, V, §

382).

Neste ponto, vemos que Nietzsche faz uso da expressão “’mar mediterrâneo’ ideal”

(FW/GC, V, § 382), com a qual, supomos, pretende indicar a maior expressão de ideais, ou

mesmo maior a quantidade em extensão de ideais, uma vez que sugerimos ser o mar

mediterrâneo o maior entre os mares ou ainda um dos grandes mares de maior extensão

territorial, do qual deduzimos a comparação nietzschiana entre o domínio do ideal com o

tamanho e a extensão do mar mediterrâneo, de forma que o mar mediterrâneo nessa passagem

se apresenta como sinônimo de mar ideal.

Portanto, diante dessa passagem, podemos ver que para Nietzsche (FW/GC, V, § 382),

a grande saúde é tanto uma pré-condição básica, mas também um resultado, para aqueles que

optam por meio da própria experiência provar das aventuras da alma como um conquistador e

explorador de ideais (FW/GC, V, § 382), de modo que aqui supomos a indicação de Nietzsche

de que para conquistar a grande saúde é preciso se aventurar na experiência de investigar

inteiramente os campos dos valores existentes, tal qual como psicólogo empreende a tarefa da

investigação dos valores (FW/GC, Prólogo, § 2).

Uma vez colocada a tarefa de se opor aos grandes valores ideais (FW/GC, V, § 382),

Nietzsche aceita que a grande saúde se impõe e se faz necessária ao sujeito, pois essa

empreitada supõe compreender a origem dos valores diante dos santos, legisladores, artistas,

eruditos, sábios, adivinhos, etc., donde deduzimos que Nietzsche entende que a conquista da

grande saúde ocorre diante do embate de forças que se coloca perante valores e

personalidades provedoras dos valores, principalmente em sua condição de psicólogo da

consciência.

Desse modo, entendemos que tal como um andarilho que reúne suas forças para

conquistar novos ares, de lugar em lugar, Nietzsche apresenta a grande saúde como a reunião

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de todas as forças para enfrentar os grandes ideais, tal qual como os grandes nomes

representantes desses ideais, de tal forma que, ao conquistar o domínio sobre a presença de

forças ocultas na origem de um valor, conquista-se uma nova saúde, de modo que ao

conquistar essa nova saúde, abandona-se a ela pelo enfrentamento de um novo valor, como

um ciclo sucessivo de conquistas de novas saúdes diante de novas superações de valores

(FW/GC, V, § 382).

Assim sendo, a grande saúde representa, para Nietzsche, uma grande conquista diante

de grandes valores, de modo que sugerimos ter sido com a finalidade de explicar o

empreendimento realizado em FW/GC que Nietzsche escolheu como título do parágrafo de

nº. 382 de FW/GC exatamente “A grande saúde” (FW/GC, V, § 382) e supomos que como

psicólogo da consciência, neste ponto do livro, Nietzsche explicita a sua particular conquista

da grande saúde com a escrita do livro.

Nesse ponto, devemos recorrer ao parágrafo de nº. 380 de FW/GC, em que fala um

andarilho (FW/GC, V, § 380), no qual devemos notar que para Nietzsche, a grande saúde

decorre de um novo fim para um novo meio (FW/GC, V, § 382), porém, poderemos observar

que tal qual um andarilho que vai de cidade em cidade, Nietzsche se vê percorrendo de valor a

valor e de ideal a ideal, de modo que o potencial de não se fixar sob o signo de valores o leva

à grande saúde (FW/GC, V, § 382).

Diz Nietzsche:

"O andarilho" fala. - Para uma vez ver com distância nossa moralidade européia,

para medi-la com outras moralidades, anteriores ou vindouras, é preciso fazer como

faz um andarilho que quer saber a altura das torres de uma cidade: para isso ele

deixa a cidade. "Pensamentos sobre preconceitos morais", caso não devam ser

preconceitos sobre preconceitos, pressupõem uma posição fora da moral, algum

além de bem e mal, ao qual é preciso subir, galgar, voar - e no caso dado, em todo

caso, um além de nosso bem e mal, uma liberdade diante de toda "Europa", esta

última entendida como uma soma de juízos de valor imperativos, que nos entraram

na carne e no sangue (FW/GC, § 380) 39

Podemos ver que Nietzsche afirma pela voz de um andarilho que assim como um

andarilho, quando almeja medir com distância a moralidade da Europa, é precisa abandonar

os valores, pois o andarilho abandona a cidade para saber a altura das torres (FW/GC, V, §

380).

Deste modo, entendemos que Nietzsche afirma que é como um andarilho que

abandona a moralidade (FW/GC, V, § 380), de forma que pela distância empreendida diante

39

Para essa seção seguiremos TD: RRTF.

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dos valores morais aceita perceber a sua real dimensão, segundo os impulsos de preservação

ou de excesso presentes em suas origens.

Assim sendo, pela fala do andarilho, Nietzsche esclarece que abandona a moralidade a

fim de investigá-la, pois uma vez distante consegue melhor enxergar o alcance e a

abrangência da moralidade em relação à fisiologia.

Prossegue Nietzsche ao dizer que se não forem preconceitos sobre preconceitos,

quando se pensa com a devida seriedade sobre a moral, deve-se pressupor uma posição de

fora da moral, ou seja, como o andarilho que abandona um local para melhor compreendê-lo,

é preciso supor uma posição de fora da moral quando se constrói pensamentos sobre a moral,

para, com isso, melhor compreendê-la (FW/GC, V, § 380).

Sendo assim, quando Nietzsche se entrega para viver o inteiro âmbito dos valores

morais (FW/GC, V, § 382), tal como apresenta como tarefa de sua psicologia em FW/GC,

supõe-se que o filósofo se entrega a enfrentar a vida e os valores vitais além do bem e do mal

(FW/GC, V, § 380), pois essa é a pré-condição anunciada pela voz do andarilho, ou seja, para

que o psicólogo Nietzsche avalie os valores morais, assim como as hipóteses dos impulsos

existentes quando da origem de todos os valores. Ora, é preciso se colocar além dos valores

morais, uma vez que somente abandonando os valores, faz-se possível avaliar corretamente a

distância e o alcance da abrangência de suas validades (FW/GC, V, § 380).

Uma vez que Nietzsche, tal qual um andarilho, alcança posição além do bem e do mal

diante dos valores morais, entende alcançar uma absoluta liberdade não restrita aos valores

morais, mas diante de toda a moralidade europeia, pois esta se faz entendida como a soma de

juízos imperativos entranhados no sangue e na carne (FW/GC, V, § 380).

Neste ponto, pela metáfora de uma moral que se entranha no sangue e na carne,

entende-se que Nietzsche apresenta a formação da consciência com base em valores oriundos

da cultura (FW/GC, V, § 354) e não a partir de impulsos e forças de vontade de poder, de

modo que aceitamos ser por este meio que o filósofo e psicólogo da consciência se veja além

do bem e do mal (FW/GC, V, § 380).

Portanto, vemos que para Nietzsche, assim como um andarilho que vai de lugar em

lugar e que quando quer avaliar corretamente a altura de um edifício ou o tamanho do

empreendimento de uma cidade, abandona a cidade, o filósofo prussiano, a fim de avaliar

corretamente a abrangência dos valores morais, colocou-se a vagar de valor em valor, até que

os abandonou e os viu à distância, com base no sentimento de vontade de poder (FW/GC, V,

§ 380), de tal modo que para a conquista da grande saúde o psicólogo Nietzsche se põe a

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vagar de saúde em saúde, ou seja, atravessa as condições de saúde conforme se lhe faz

possível, de forma que a travessia entre os instantes de saúde o fortalece e o leva à grande

saúde (FW/GC, V, § 382).

Neste ponto, devemos recorrer a Bruno Wagner Santana, pois, segundo o autor, a

grande saúde em Nietzsche representa abundância de forças em relação à vida (SANTANA,

2012) e entendemos que seu entendimento deverá contribuir com nossa compreensão do

pensamento de Nietzsche, uma vez aceitarmos que segundo Nietzsche, para alcançar a grande

saúde, é preciso justamente enfrentar as condições básicas de existência colocadas diante da

vida (FW/GC, V, § 382).

Diz Bruno Wagner Santana:

No entanto, perder a saúde nesse caso não seria o mesmo que deixar de ser

“saudável”, pois, no que diz respeito à grande saúde, a doença advém como

privilégio daquele que é forte o bastante para oferecer-se à vida, à aventura da vida,

daquele que por uma transbordante saúde é capaz de brincar com o perigo, e não

daquele que busca preservar-se da vida a qualquer custo (SANTANA, 2012, p. 135-

136)

Vemos que para Santana (2012), Nietzsche não considera perder a saúde segundo a

concepção de perda da condição saudável, pois a doença é considerada um privilégio daquele

que é suficientemente forte para enfrentar e vencer as condições desfavoráveis da vida, de

modo que para encontrar a grande saúde é preciso superar os instantes em que a vida se

apresenta doente.

Deste modo, Santana adverte que para Nietzsche aqueles que procuram se preservar

dos grandes perigos da vida apresentam sinais de fraqueza e que esta é diagnosticada pelo

filósofo prussiano como sinal de doença, pois para alcançar a grande saúde, ao contrário, é

preciso ter forças para enfrentar a vida.

Assim sendo, aqueles que a todo custo procuram se preservar dos perigos da vida,

diante de suas fraquezas, não alcançariam a grande saúde, uma vez que esta é condição dos

fortes, ou seja, daqueles que possuem força suficiente para combater todas as condições

desfavoráveis presentes nas condições de vida (FW/GC, V, § 382).

Neste ponto, aceitamos que Santana auxilia nossa compreensão do significado da

grande saúde a partir do parágrafo de nº. 382 de FW/GC, pois assim como o autor avalia ser a

grande saúde condição básica de quem combate os perigos da vida, sugerimos que Nietzsche

considera alcançar a grande saúde exatamente por se opor nessa obra aos grandes valores e

normas morais (FW/GC, V, § 382), ou seja, à moralidade europeia (FW/GC, V, § 380), de

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modo que como psicólogo da consciência faz uso da fisiologia como instrumento de sua

psicologia nesse enfrentamento (FW/GC, V, § 354).

Assim sendo, para Nietzsche, a grande saúde apresentada no parágrafo de nº. 382 de

FW/GC, consiste em demonstrar como exerceu em FW/GC o combate e a superação dos

valores morais, uma vez que diante do embate contra as maiores forças presentes junto aos

maiores valores, o filósofo prussiano admite extrair para a vida as maiores forças (FW/GC, V,

§ 382).

Neste ponto, devemos recorrer ao parágrafo de nº. 378 de FW/GC, pois com ele

devemos ver que, para Nietzsche, a grande saúde se alcança após o enfrentamento das grandes

questões, e, utilizando-se da metáfora de uma fonte cristalina, indica que os fortes de espírito

(FW/GC, V, § 378), ou seja, os que alcançam a grande saúde (FW/GC, V, § 380), são os

homens que primeiro enfrentam toda a sujeira e turvação da água para depois se tornarem

límpidos novamente (FW/GC, V, § 378).

Diz Nietzsche:

“E tornamo-nos novamente límpidos” – Nós, pródigos e ricos do espírito, que tais

como fontes abertas ficamos à beira da estrada e a ninguém impedimos que nos

retire água: infelizmente não sabemos nos defender ao desejar fazê-lo, não podemos

por nada evitar que nos turvem, nos tornem escuros – (FW/GC, V, § 378) 40

Essa passagem é bastante esclarecedora quando nosso objetivo é decifrar como

Nietzsche exprime a grande saúde ao final de FW/GC, uma vez que aqui o filósofo se utiliza

da metáfora da água para demonstrar que antes de se tornar limpo é preciso absorver os

perigos como à beira de uma estrada e com isso se tornar escuro e sujo (FW/GC, V, § 378).

Vemos que segundo essa metáfora, para Nietzsche, o fato de tornar-se novamente

límpido decorre antes de enfrentar e absorver com espírito rico e aberto aqueles que lhe

retiram água e que, ao assim fazer, lhe turvam e sujam, tal como os valores morais cotidianos

contaminam o seu pensamento (FW/GC, V, § 378).

Dessa metáfora, sugerimos que para Nietzsche, assim como um andarilho que se põe

de lugar em lugar, atravessando de cidade em cidade (FW/GC, V, § 380), a grande saúde

acontece para quem enfrenta os valores de moral em moral, de modo que o estilo com que o

filósofo se utiliza para esse confronto se faz semelhante ao exposto em sua suposição da fonte

aberta de água (FW/GC, V, § 378). Pois, tanto com o objetivo de provar da grande saúde

como para se tornar novamente límpido, o psicólogo Nietzsche age de forma aberta, de modo

40

Para essa seção seguiremos TD: PCS.

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que qualquer um pode extrair de seus textos o conteúdo de que tem sede, uma vez que, assim

como escreve seus livros, o filósofo os faz publicar.

Entretanto, embora Nietzsche se faça aberto para que se retire dos seus pensamentos

aquilo que for necessário (FW/GC, V, § 378), segundo o convívio com quem se aproxima e

diante do confronto com os valores e normas morais, o filósofo acaba por se contaminar, e por

isso é preciso confrontar novamente as pessoas, os sentimentos morais e afetos para

novamente tornar-se límpido (FW/GC, V, § 378). Ou seja, diante do enfrentamento com os

valores morais e segundo o que fica da proximidade com as pessoas, Nietzsche entende que é

preciso confrontar os valores com os quais se depara para se livrar deles e com isso se tornar

novamente limpo (FW/GC, V, § 378), ou seja, para com isso encontrar uma nova saúde

(FW/GC, V, § 382).

Neste ponto, devemos nos valer de Jelson Roberto de Oliveira, uma vez que o autor

nos auxilia a elucidar a metáfora de vida turva empreendida por Nietzsche na citação acima

(FW/GC, V, § 378), de modo que o autor oferece a sua leitura segundo a higiene diante da

existência de uma vida social (OLIVEIRA, 2013).

Diz Jelson Roberto de Oliveira:

A vida social nos turva, portanto. Torna a nossa água suja de tal forma que, sem os

processos de higiene, nos tornamos repelentes para novas relações. Como água

suja, nós mesmos passamos a ser um condutor de doenças de tal forma que, aos

poucos, somos rodeados por indigentes e moribundos (OLIVEIRA, 2013, p. 96)

Podemos ver que para Oliveira, o que turva o pensamento de Nietzsche são os valores

presentes na vida social, de modo que as novas relações seriam repelidas se não fosse possível

se livrar da densidade que se impõe por essas relações. Deste modo, é preciso se utilizar de

processos de higiene, a fim de se limpar e com isso livrar a saúde de toda sujeira e de

possíveis doenças.

Neste ponto, sugerimos que segundo Oliveira, para alcançar a grande saúde Nietzsche

entende que é preciso abdicar da vida social com a qual se depara com todo tipo de normas e

valores morais, senão contaminado por essas normas e valores ideais, de modo que quanto

mais próximo das normas e valores morais, mais o filósofo se sente contaminado por eles

(FW/GC, V, § 378). Assim sendo, para se tornar novamente limpo (FW/GC, V, § 378),

Nietzsche se depara com os valores morais, os confronta e os abandona, de modo que assim

se vê inteiramente novo e com a disposição de uma nova saúde (FW/GC, V, § 382).

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Entretanto, quanto maior e mais duro for o confronto realizado por Nietzsche

(FW/GC, V, § 382), maior e mais límpida será sua nova saúde (FW/GC, V, § 378), de forma

que a grande saúde (FW/GC, V, § 382) advém de seu grande confronto com os grandes

valores, uma vez que como psicólogo da consciência Nietzsche faz da fisiologia instrumento

de avaliação dos valores (FW/GC, V, § 354).

Neste ponto, devemos retomar o parágrafo de nº 382 de FW/GC, pois sua imediata

sequência deverá nos dar melhor condição de entender como Nietzsche aceita adquirir a

grande saúde após percorrer em FW/GC um imenso universo composto de valores morais,

normas e ideais (FW/GC, V, § 382).

Diz Nietzsche:

E agora, depois de por muito tempo estarmos a caminho dessa forma, nós,

argonautas do ideal, mais corajosos talvez do que prudentes, e muitas vezes

naufragados e danificados, mas, como foi dito, mais sadios do que gostariam de nos

permitir, perigosamente sadios, sempre sadios outra vez - quer-nos parecer que, em

recompensa por isso, temos diante de nós uma terra ainda inexplorada, cujos limites

ninguém mediu ainda, um além de todas as terras e rincões do ideal conhecidos até

agora, um mundo tão abundante em coisas belas, estranhas, problemáticas, terríveis

e divinas, que nossa curiosidade, assim como nossa sede de posse, ficam fora de si -

ai, que doravante nada mais nos pode saciar! Como poderíamos, depois de ver tais

paisagens, e com uma tal voracidade na consciência e na ciência, contentar-nos com

o homem do presente? (FW/GC, V § 382)

Podemos ver que, para Nietzsche, a condição para se encontrar sempre sadio outra

vez, ou seja, para sempre retomar novamente a condição de sua grande saúde, consiste em se

por no caminho e atravessar o mar dos valores ideais. Neste ponto, o filósofo indica que assim

como um grande navegador e explorador dos mares ideais da moral, ainda que com menor

prudência e maior coragem para encontrar uma nova saúde como nova finalidade para a

existência, ele confronta, a partir de suas condições saudáveis, os valores ideais, e com isso

conquista uma nova saúde, mesmo que para isso seja necessário naufragar ou se danificar em

meio à imensidão do mar (FW/GC, V § 382).

Assim sendo, entendemos que, para Nietzsche, mesmo que os valores e ideais com os

quais se confronta o afete, o filósofo prussiano se utiliza de todas as energias para com maior

coragem e menor prudência, enfrentar as suas bases, a fim de saber se ali estão presentes

impulsos de conservação ou de abundância, de modo que essa é a condição de sua grande

saúde (FW/GC, V § 382).

Deste modo, o filósofo prossegue ao dizer que as consequências de sua navegação

contra os mares do ideal consistem em avistar um lugar inexplorado e com limites

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desmedidos, onde são fartas as coisas terríveis, problemáticas, estranhas, divinas e belas

(FW/GC, V § 382).

Neste ponto, sugerimos que Nietzsche se utiliza dessa metáfora para dizer que, como

psicólogo da consciência, ao se lançar para além dos valores morais, encontra ainda novos

valores, de forma que esses valores podem trazer à espécie humana todos os tipos de

sentimentos, como o sentimento de terror, estranheza, sublimidade, beleza, etc. (FW/GC, V §

382).

Portanto, indicamos que Nietzsche encontra a grande saúde quando se depara com

novos valores, sendo que estes são apenas possíveis ser conquistados após a entrega do

filósofo prussiano à sua iniciativa psicológica, a qual consiste em investigar por meio da

fisiologia, a qualidade dos impulsos presentes na origem e formação dos valores (FW/GC, V

§ 382).

Logo, com a grande saúde, chega-se ao patamar em que nenhum dos valores existentes

é capaz de saciar, ou mesmo suprir com a finalidade da existência, uma vez que esta se faz

farta em si mesma e de tal modo orgulhosa que qualquer valor ideal apresentado deverá ser

novamente questionado, resultando na ausência absoluta de valores, pois após tamanha avidez

de consciência, Nietzsche afirma que a grande saúde não mais se satisfaz com o homem do

presente, uma vez que já não mais é possível viver sob os valores do presente (FW/GC, V §

382).

Neste ponto, recorremos novamente a Santana (2012), pois veremos que o autor

sugere que em Nietzsche a grande saúde se relaciona diretamente com a vontade de poder, de

modo que para o filósofo prussiano são as condições fisiológicas que orientam a grande e a

pequena saúde diante dos valores morais.

Diz Bruno Wagner Santana:

Nossa hipótese é a de que, relacionada à vontade de potência, referida portanto a um

nível imoral, fisiológico, a grande saúde decorre de um grande acontecimento ― a

ausência de valores absolutos ― o que por sua vez convoca o homem a viver num

mundo pleno de perigos, o perigo de um mundo que já não traz consigo nenhum

sentido em si e que se comporta por uma pujança de forças em luta, fartura de um

combate que não tem por aspiração nenhum estado durável (SANTANA, 2012, p.

136)

Podemos ver que Santana sustenta a hipótese de que em Nietzsche, quando se trata da

grande saúde, é preciso referir-se à vontade de poder e à fisiologia, pois o filósofo prussiano

considera a grande saúde a partir do caráter do acontecimento amoral, ou seja, a partir de

completa imoralidade é que Nietzsche sugere a grande saúde.

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Deste modo, segundo Santana, a grande saúde se relaciona com a ausência de valores

absolutos, de forma que, assim como o autor indicamos ser pela via da vontade de poder que

Nietzsche se utiliza da fisiologia para com a como psicólogo da consciência indagar sobre os

impulsos prováveis na origem dos valores e com isso confrontar o inteiro mar dos valores

ideais.

Entretanto, afirma Santana (2012), uma vez radicada na ausência total de valores, a

vida de quem tem a grande saúde traz consigo a experiência de um mundo inteiro de perigos,

pois a experiência vital deixa de conter um sentido e finalidades em si, de forma que

indicamos que para experimentar a grande saúde Nietzsche se utilizou em FW/GC da

psicologia da consciência a fim de percorrer inteiramente os valores a partir de suas

finalidades, de modo que o parágrafo de nº. 382 de FW/GC finaliza a obra com a expressão

nietzschiana de ausência total de valores com o título A grande saúde (FW/GC, V § 382).

Portanto, Santana nos auxilia, pois sustenta que Nietzsche alcança a grande saúde ao

atingir a interpretação do mundo com a plenitude do vigor advindo da vontade de poder,

disputa e fartura, de modo que, ao mesmo tempo, essa grande saúde implica em não mais

aspirar nenhum sentido durável para a vitalidade.

Logo, sugerimos que, uma vez que Nietzsche, como psicólogo, põe-se a caminho do

mar mediterrâneo ideal, coloca-se ainda a caminho de uma vida sem sentido, onde, munido do

conhecimento sobre a vontade de poder, assim como da fisiologia, percorre e ultrapassa os

sentidos e a finalidade da vida, de modo que ao concluir essa tarefa se vê concluindo FW/GC

como sinal de sua grande saúde.

Neste ponto, devemos nos valer de Robson Costa Cordeiro, pois vemos que para o

autor, Nietzsche entende o homem a partir de seu caráter fragmentado entre os momentos do

passado, presente e futuro, de forma que para alcançar a grande saúde, primeiro é preciso que

o homem tome consciência de si diante de sua existência perante os valores com os quais

convive em seu tempo e história.

Diz Robson Costa Cordeiro:

O homem vive fragmentado no tempo, dividido entre passado, presente e futuro.

Disperso no tempo ele se encontra porque a sua vontade não quer a si mesma, não

quer, sobretudo, querer, mas sim aspirar, desejar. Isto que é aspiração não é vontade,

pois lhe falta o poder de suportar, de aguentar, de manter-se firme no querer. A

vontade que quer a si mesma não aspira nada fora de si, não visa nenhum fim,

nenhuma meta. Por isso, o homem da vontade livre, autônoma, é aquele que quer vir

a ser o que ele é. O que ele é desde sempre, isto é, obrigatoriamente, é vontade

(CORDEIRO, R. C. O corpo como grande razão: análise do fenômeno corpo no

pensamento de Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2012, p. 169)

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Segundo Cordeiro, a divisão do tempo entre passado, presente e futuro, resume em

pedaços a vida do homem, de modo que ele se encontra disperso no tempo, segundo a vontade

que quer desejar e aspirar, porém, nunca almeja se realizar, pois não há vontade que queira

realizar-se em si mesma. Deste modo, a aspiração da vontade do homem fragmentado no

tempo, o faz desejar constantemente, mas nunca permite com que este homem seja

plenamente satisfeito.

Assim sendo, Cordeiro indica que a aspiração de vontade diante da fragmentação do

homem no tempo é apenas uma ambição do homem no tempo, sendo que para que a vontade

se efetive é preciso poder, ou seja, faz-se necessária a vontade de poder para que o homem se

afirme efetivamente diante da fragmentação que lhe é imposta pelo tempo.

Portanto, segundo Cordeiro (2012), a concepção de homem advinda do pensamento de

Nietzsche afirma o homem como um indivíduo composto de aspirações de vontade diante de

sua fragmentação, entre o momento passado, o presente e o futuro, sendo que a única

alternativa capaz de superar esse hiato ocorre por meio da afirmação da vida por meio da

vontade de poder.

Logo, indagamos se Nietzsche sugere ter exatamente efetivado em FW/GC o seu uso

da vontade de poder quando expõe a sua grande saúde, de forma que diante dos valores de seu

tempo, superou as aspirações de vontade, para, por meio do enfrentamento, afirmar sua

vontade de poder com o uso da fisiologia como psicólogo.

Prossegue Cordeiro, ao dizer que segundo o pensamento de Nietzsche, o objetivo do

homem, quando capaz se utilizar das forças de vontade de poder para se afirmar, é,

simplesmente, tornar-se o que ele é. Assim sendo, o homem, quando se utiliza da vontade de

poder com a finalidade de se tornar a si mesmo, não projeta nenhuma meta fora de si, ao

contrário, faz da utilização de suas forças o projeto de interjeição contra todas as metas

externas de si. Deste modo, Nietzsche se coloca no uso de suas forças de vontade de poder

para com ela interpelar a moralidade europeia com a finalidade de, com isso, encontrar a

grande saúde.

Portanto, Cordeiro conclui ao dizer que o homem age com autonomia quando livre no

exercício da vontade, de modo que obrigatoriamente a vontade quer desde sempre o exercício

de poder. Assim sendo, afirma-se que quando Nietzsche se impõe como psicólogo com

autonomia diante do “‘mar mediterrâneo’ ideal”, utiliza-se simples e obrigatoriamente da

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vontade de poder, pois o que quer fazer é exercer sua vontade, sendo que do exercício

irrestrito de sua vontade de poder, adquire a grande saúde.

Neste ponto, devemos recorrer a Wolfgang Müller-Lauter (2009), pois o autor deverá

nos auxiliar a elucidar como a vontade de poder interfere na conquista da grande saúde, uma

vez que sua análise ocorre segundo a transição entre diversos momentos de vontade de poder

e diversas verdades.

Diz Wolfgang Müller-Lauter:

“Assim, a vontade de potência é apenas enquanto algo mais peculiar. Ela concretiza

sua peculiaridade na luta contra outras vontades de potência peculiares. Verdade

enquanto harmonia na vontade de potência só poderia ser, em consequência disso,

vontade peculiar, ou seja, perspectivista. O ter-por-verdadeiro de sua própria

perspectiva é indispensável à vontade de potência (...). Esse ter-por-verdadeiro

impõe-se absolutamente. Faz parte dele a negação das verdades perspectivista das

vontades de potência que lhe contrapõem, verdades tidas por ele como erros. A

verdade própria de uma vontade de potência se confirma no predomínio sobre

outras: quanto mais potência, mais verdade” (MÜLLER-LAUTER, Nietzsche: sua

filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. São Paulo: Ed.

Unifesp, 2009, p. 183-184)

Podemos ver que para Müller-Lauter, a vontade de poder em Nietzsche, tal qual a

definição aceita e colocada por nós de antemão nesse trabalho, constitui-se tipicamente de

vontades concretas em disputa com outras vontades de poder, de forma que como força de

vontade se caracteriza como uma multiplicidade de forças combatendo umas com as outras.

Deste modo, o autor indica que para Nietzsche a orientação da verdade somente se faz

possível quando considerada por meio da vontade de poder como a perspectiva de um estado

de forças, sendo que nesse estudo indicamos que o próprio filósofo prussiano faz uso da

vontade de poder como um estado de forças para combater os valores morais.

Prossegue Müller-Lauter (2009) ao dizer que quando a realidade é medida pela

vontade de poder, não há outra maneira de se ter por verdade outra coisa que não seja a

própria perspectiva acerca das forças presentes no instante do qual se supõe um

acontecimento ou um fato.

Deste modo, Müller-Lauter sugere que o ter por verdade categoricamente se impõe

para quem tem diante de si a interpretação do mundo orientada por forças de vontade de

poder, assim sendo, compete a esse indivíduo ter como erro as verdades contrapostas, de

forma que a visão de mundo desse indivíduo ocorre justamente pela negação das verdades

contrapostas.

Deste modo, sugerimos que em FW/GC quando Nietzsche confronta os valores e

normas morais, o faz segundo a imposição que lhe é feita pela vontade de poder, de modo que

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na orientação de suas forças empreende o embate com diversas outras forças pela via da

fisiologia e da psicologia da consciência, como meio de compor ou mesmo derradeiramente

se aproximar das verdades, diante de inúmeras outras fontes de verdades, mormente alocadas

nos valores e normas morais, sendo que as verdades as quais se aproxima o filósofo prussiano

são as conclusões obtidas pela perspectiva de um profundo exame das vontades de poder

(FW/GC, V, § 382).

Assim sendo, Müller-Lauter conclui a passagem ao dizer que a verdade se conquista

no domínio de vontades de poder, umas sobre as outras, de forma que no uso da vontade de

poder para se aproximar das verdades, quanto mais se aproxima de perspectivas de verdade,

mais se confere o aumento de poder.

Logo, indicamos que em FW/GC, Nietzsche coloca em prática a psicologia da

consciência, com a qual faz uso de suas forças para enfrentar as verdades oriundas das normas

e valores morais, de modo que ao se aproximar cada vez mais de outros novos valores como

fonte de verdades, mais aumentou seu poder, uma vez que ao finalizar o livro acertadamente

se apresenta por meio da consciência de si como tendo alcançado a consciência como grande

saúde.

Voltemos a Nietzsche, pois a sequência do parágrafo de nº. 380 de FW/GC deverá

indicar a exata dimensão com que o filósofo prussiano apresenta as consequências de sua

empreitada, pois, sob a fala do andarilho, ou mesmo de alguém que faz como o andarilho e

percorre por entre os valores ideais, aponta para a extensão de sua empreitada, a partir do peso

ou leveza que esse tipo de vida condiciona.

Diz Nietzsche:

Querer partir precisamente nessa direção, ir nessa direção, é, talvez, um pequeno

disparate, um bizarro, irracional "tu tens de"- pois também nós, os conhecedores,

temos nossas idiossincrasias da "vontade não-livre"-; a questão é se se pode

efetivamente ir nessa direção. Isso dependeria de múltiplas condições; no principal,

a pergunta é, quão leves ou quão pesados nós somos, o problema de nosso "peso

específico" (FW/GC, V § 380)

Vemos, pela voz do andarilho, que Nietzsche coloca em questão o peso da

responsabilidade adquirida por uma vida que se mede pela vontade de poder, onde a raiz de

tudo o que se imprime na consciência é examinada segundo a mediação de forças em

constante confronto, de forma que o filósofo releva não conter nesse empreendimento a

possibilidade de escolha alguma, pois a vida mesma já se faz categórica.

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Para Nietzsche, portanto, quando ele e lança na direção da vida então tomada como

vontade de poder, embora pareça existir um acanhado disparate, bizarrice ou irracionalidade,

ao contrário, lança-se fortuitamente em direção à verdadeira razão, uma vez que esse tipo de

ação apenas pode ser tomada por alguém que seja forte o bastante para, diante do

enfrentamento, suprir e nutrir suas forças como meio para mais poder, de modo que se lançar

nessa direção ocorre segundo um princípio de dever.

Assim sendo, exercitar a livre vontade significa assumir para si o dever de se impor

perante o domínio dos valores, normas e verdades, para, com a dissipação das forças de

vontade de poder, realizar o enfrentamento.

Deste modo, assim como um andarilho necessita de grande energia para lançar-se fora

da cidade quando quer saber quais reais dimensões a compõe, sugerimos que Nietzsche infere

ser preciso indagar sobre o peso específico a ser suportado por quem, como andarilho, e

segundo o imperativo da vontade livre, lança-se contra os valores e normas, de modo que

diante de múltiplas possibilidades de forças de vontade de poder projeta o combate de valor a

valor, de moral a moral.

Portanto, aqui podemos ver que para Nietzsche, desfrutar da livre vontade significa

enfrentar os valores e normas morais, de modo que, como andarilho, prossegue de valor em

valor para ter com isso o peso da responsabilidade inferida segundo as múltiplas

possibilidades de forças com as quais se depara. Entretanto, supõe-se que seja exatamente

segundo essa relação que Nietzsche confere a si a aquisição de uma grande saúde, pois quanto

maiores os pesos suportados em seus combates, maiores são as forças resultantes desse

processo, de forma que quando conclui FW/GC e encerra as disputas, entrega-se à grande

saúde, ou seja, faz da consciência de si a consciência de uma saúde tão forte quanto foram a

aquisição e uso das forças diante dos combates e enfrentamentos no decorrer da construção do

livro.

Neste momento, devemos voltar a Bruno Wagner Santana (2102), pois com ele

veremos que em Nietzsche, a consequência da vida tomada segundo a vontade de poder não

comporta uma saúde que se considere uma saúde em si, porém, a essa vida compete a grande

saúde.

Diz Bruno Wagner Santana:

Por consequência, não poderia haver também nenhuma saúde em si, mas antes uma

grande saúde, aquela que é capaz de afirmar-se sem subterfúgios perante uma vida

que é transitoriedade permanente, deslocamento perpétuo de perspectivas e

construções de sentido que se dão não por uma falta, mas por um excesso de forças,

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o que logo torna todo vivente também mais exposto ao perigo iminente de

constantes novos combates, vitórias e ocasos (SANTANA, 2012, p. 136)

Podemos ver que segundo Santana, para Nietzsche seria impossível a existência de

uma saúde que fosse radicada em si mesma, ou seja, o filósofo prussiano tem como

prerrogativa a inexistência de uma saúde em si, de forma que a vida como sinônimo de

vontade de poder somente pode ser relacionada, supõe-se, a uma pequena ou à grande saúde.

Deste modo, Santana sugere que a grande saúde é um estado somente alcançado por

quem assume que a vida seja composta pela transição permanente, sendo que a afirmação

decisiva diante desse tipo de vida desloca a construção de sentido em direção a um perpétuo

perspectivismo, composto por excesso de forças, de onde emana a grande saúde.

Assim sendo, Nietzsche afirma a consciência de si como grande saúde, pois conclui

permanentemente transitar por entre os valores e normas morais, deslocando as forças por

meio de perspectivas de poder, sendo que quanto mais força se utiliza em seus confrontos,

mais força adquire, de modo que sua grande saúde resulta de abundância de forças em luta por

mais poder.

Prossegue Santana (2012) ao dizer que a constante disputa por mais poder que eleva à

grande saúde acaba por tornar todos os seres vivos mais expostos ao constante perigo de

outros e novos combates, de modo que diante da ameaça permanente de novos confrontos, as

forças estão sempre preparadas para novas vitórias ou novas derrotas.

Portanto, para Nietzsche, a grande saúde decorre da impossibilidade de existir uma

saúde em si, pois a grande saúde é a saúde pela qual a vida se afirma diante da transitoriedade

imposta pelas disputas de forças por poder, sendo que a grande saúde representa o excesso de

forças conquistadas por meio de vitórias e derrotas.

Logo, a grande saúde representa uma vida em abundância, uma vez que é por meio do

excesso de vida que se conquista a grande saúde, sendo que a saúde em si não existe, pois a

vida é abundancia de forças em constante transitoriedade.

Neste ponto, voltemos a Nietzsche, pois a próxima passagem do parágrafo de nº. 380

de FW/GC deve nos indicar, pela voz do andarilho, como Nietzsche faz uso da distância para

construir o seu conhecimento.

Diz Nietzsche:

É preciso ser muito leve para levar sua vontade de conhecimento até uma tal

distância e como que para além de seu tempo, para se criar olhos para a supervisão

de milênios e ainda por cima céu puro nesses olhos! É preciso ter-se desvencilhado

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de muito daquilo que, precisamente a nós, europeus de hoje, oprime, entrava,

mantém abaixados, torna pesados. (FW/GC, V, § 380)

Podemos ver que pela fala do andarilho, Nietzsche demonstra a necessidade de se

possuir leveza para enfrentar os grandes pesos oriundos da necessidade de levar adiante a

vontade de sabedoria, uma vez que, assim como para o andarilho, a distância a ser percorrida

é muito grande quando a busca pelo conhecimento se orienta pela origem e formação dos

valores, de modo que para essa tarefa se faz necessário percorrer o seu tempo, ir além de seu

tempo, e, mais, percorre-se na andança alguns milênios de anos.

Segundo a metáfora do andarilho, Nietzsche afirma que para alcançar a grande saúde é

preciso leveza, pois o confronto com os valores e normas morais com o qual constitui o seu

conhecimento ultrapassa o tempo histórico a que está inserido, de modo que o filósofo

prussiano procura por entre milênios as hipóteses da origem dos valores, sendo que essa tarefa

lhe exige o desprendimento de outros valores.

Assim sendo, para alcançar a grande saúde, Nietzsche indica, como condição

fundamental, abandonar tudo aquilo que o torna pesado, entrava e oprime, ou seja, supõe-se

que para Nietzsche, assim como para o andarilho, a grande saúde se alcança quando se é

capaz de abandonar todos os valores e normas que até então orientam a vida europeia.

Portanto, tal como andarilho, o psicólogo Nietzsche se livra dos pesos impostos pela

cultura de seu tempo, sendo que para percorrer os milênios de existência humana na procura

dos fundamentos da origem dos valores o filósofo antes precisa estar leve, de modo que

quanto maior for sua andança maior será a necessidade de possuir forças, assim como maior

também serão as suas novas saúdes, de modo que a grande saúde lhe será conferida após

percorrer o seu grande caminho.

Devemos agora recorrer novamente a Bruno Wagner Santana, pois com a próxima

passagem o autor esclarece a relação conferida por Nietzsche entre doença, fraqueza e a

grande saúde.

Diz Bruno Wagner Santana:

É partindo da saúde, das riquezas e superabundância de forças, que Nietzsche nos

convoca a pensar a grande saúde, e não a partir da doença e da fraqueza, haja vista

que para Nietzsche, em termos gerais, a doença já seria consequência e não causa de

um declínio (SANTANA, 2012, p. 136)

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Podemos ver que para Santana Nietzsche parte da abundância de forças quando pensa

a grande saúde, pois entende que é por meio do excesso de riquezas, tal qual pela

superabundância de forças que se adquire a grande saúde.

Deste modo, a grande saúde não se relaciona em momento algum com as questões de

doença e saúde, ao contrário, relaciona-se ao excesso e à escassez de forças, de forma que

supomos não ser possível pensar em relação à grande e a pequena saúde, uma vez que a

grande saúde é excesso de forças, enquanto a pequena saúde é ausência de forças.

Prossegue Santana (2012) ao dizer que para Nietzsche a doença seria consequência de

ausência de forças em um organismo com pequena saúde, de modo que não se faz possível

que a doença seja a causa da pequena saúde em um organismo, mas, ao contrário, a doença

representa o declínio de um organismo carente de forças.

Portanto, vemos que Nietzsche parte da grande saúde como riqueza e abundância de

forças para pensar as condições orgânicas entre saúde e doença, de modo que afirma ser

apenas possível pensar em grande e pequena saúde, mas não em saúde e doença, uma vez que

a doença é já resultado de um organismo com ausência de forças, ou seja, de um organismo

cujas forças estão em declínio.

Neste ponto, voltemos a Nietzsche, pois a passagem seguinte deve nos mostrar como o

filósofo prussiano evolui a apresentação de sua concepção de confronto de forças em direção

à grande saúde, pois segundo sua concepção, para alcançar a grande saúde é preciso suportar

tudo o que a convivência oferece para depois se livrar do que é excesso ou sujeira, de forma

que com a metáfora da fonte de água transbordante representa como se tornar novamente

limpo, onde entendemos que de uma fonte de saúde transbordante é preciso reconquistar a

grande saúde.

Diz Nietzsche:

(...) que o tempo em que vivemos nos lance o que tem de “mais temporal”, que os

seus imundos pássaros nos joguem seu excremento, os garotos, sua tralha, e os

exaustos andarilhos que junto a nós descansam, suas misérias pequenas e grandes.

Mas nós faremos como sempre fizemos: levamos o que nos lançam para nossa

profundidade – pois nós somos profundos, nós não esquecemos – e tornamo-nos

novamente límpidos... (FW/GC, V, § 378).

Podemos ver que seguindo a metáfora da fonte abundante e límpida, Nietzsche afirma

que para alcançar o estado de limpidez é necessário antes absorver e se livrar de todas as

intempéries, de modo que aceita que antes de se tornar limpo os pássaros lancem seu

excremento, os garotos sua tralha e os andarilhos suas misérias. Deste modo, supõe-se que

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para se tornar forte é preciso enfrentar e superar todos os pesos do mundo, sendo que para se

tornar limpo será antes preciso absorver e se livrar do fardo imposto pelos pássaros, pelos

garotos e pelos andarilhos.

Assim sendo, a conquista da grande saúde caracteriza a absorção e superação tanto de

pesos impostos à consciência através de garotos, pássaros e andarilhos, como também

representa a superação de todos os grandes pesos.

Portanto, quanto mais se lançam daquilo que turba a água límpida, seguindo a

metáfora, ou, como supomos quanto mais o psicólogo Nietzsche enfrenta problemas e normas

morais lançados diante dele, mais torna-se profundo, uma vez que o aumento de confrontos

resulta em aumento de forças, ou seja, quanto maior o peso, mais aumenta a capacidade de se

suportar o peso com o aumento de forças, até que seja possível superar esse peso ou, seguindo

a metáfora da água, torna-se tão profundo que se torna novamente limpo.

Neste ponto, devemos recorrer novamente a Jelson Roberto de Oliveira, pois com o

autor, veremos o tamanho da importância da solidão no empreendimento de Nietzsche em

busca da grande saúde, pois o autor deverá demonstrar que para Nietzsche a solidão ocorre

em favor da limpeza da consciência e um meio para a grande saúde.

Diz Jelson Roberto de Oliveira:

É preciso, portanto, que a educação favoreça essa virtude da solidão como uma

virtude de autolimpeza, uma capacidade estética de se tornar belo novamente, para

que outras pessoas possam se aproximar novamente de nós. Essa tarefa, entretanto,

não pode ser feita senão por cada indivíduo (OLIVEIRA, 2013, p. 96-97)

Vemos que para Oliveira (2012), segundo Nietzsche é preciso que a educação

patrocine a solidão como virtude, de forma que apenas por meio da solidão é que se faz

possível conquistar a limpeza, quando se trata da grande saúde.

Deste modo, assim como um andarilho que se desvencilha das pessoas comuns das

cidades, Nietzsche aceita que para efetivar sua tarefa necessita se livrar dos valores comuns

para, de valor em valor, limpar-se ao se desvencilhar de todos os valores.

Deste modo, tal qual uma fonte cristalina e abundante, Nietzsche se coloca a ofertar

sabedoria, sendo que de sua oferta acaba por se contaminar com a presença de outros valores,

os quais, por meio da solidão e com o uso de novas e renovadas forças se livra e, assim,

sucessivamente, até a conquista da grande saúde.

Prossegue Oliveira, ao dizer que segundo Nietzsche aqui se faz preciso uma

capacidade estética de novamente se fazer ser belo, pois, para que as pessoas se aproximem

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novamente, é preciso que encontrem a beleza, do mesmo modo que para se aproximarem da

fonte abundante de água, ou sabedoria, precisam encontrar essa fonte sempre e novamente

límpida.

Deste modo, sugerimos que para Oliveira, tal como Nietzsche entende que é preciso

que se faça novamente límpido para que as pessoas voltem a coletar água de sua fonte, ou

mesmo para que voltem a colher conhecimento de sua abundância de sabedoria, Nietzsche,

como um andarilho, necessita da solidão para exercitar uma espécie da autolimpeza, de modo

que quando se livra da contaminação oriunda do convívio com as pessoas comuns, torna-se

novamente forte, com novos valores e nova saúde.

Neste ponto, devemos recorrer ao 3º parágrafo do prólogo de EH/EH, pois ele deverá

esclarecer como Nietzsche sente ter adquirido tamanha saúde, de forma que admite ser poucos

os homens capazes de respirar o ar de suas altura, qual seja, o ar de seu conhecimento, de

modo que essa metáfora deve indicar que para o filósofo prussiano a conquista da grande

saúde representa a aquisição de um estado conseguido apenas por poucos, por quem se lança

em confronto por vontade de poder.

Diz Nietzsche:

- Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar da altitude, um ar forte.

É preciso ser feito para ele, senão o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está

perto, a solidão é descomunal - mas com que tranquilidade estão todas as coisas à

luz! com que liberdade se respira! quanto se sente abaixo de si! - filosofia, tal como

até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas - a procura

por tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo aquilo que até

agora foi exilado pela moral (EH/EH, prólogo, § 3)

Podemos ver que Nietzsche afirma ser necessário ser forte para respirar o altivo ar de

seus escritos, de modo que aquele que não está preparado para a frieza encontrada neles corre

grande perigo de cair resfriado.

Seguindo a metáfora utilizada, vemos que para Nietzsche seus escritos são a coisa

mais alta com que até então a humanidade se deparou, de modo que o filósofo prussiano

adverte para a necessidade de familiarização para que a leitura dos textos não traga riscos à

saúde de seu leitor, uma vez que para alcançar com o requerido vigor os escritos nietzschianos

é preciso uma grande saúde.

Prossegue o filósofo, ao dizer que seus escritos expõem todas as coisas de luz, embora

seja obra de excessiva solidão, tranquilidade e proximidade do gelo, sendo que neste ponto se

supõe que o filósofo compare a tarefa diante de seus escritos ao trabalho de um alpinista que,

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para usufruir da vista do topo de um cume, antes precisa de tranquilidade, habilidade e solidão

para galgá-lo, de forma que ao conquistar o seu pico sente a presença do frio e do gelo.

Assim sendo, entende-se dessa metáfora que, para Nietzsche, seus escritos foram

compostos acima dos mais altos valores e normas morais, de modo que para chegar ao topo

dos mais altos valores, o filósofo fez uso da solidão e confrontou tantas dificuldades quanto

enfrenta um alpinista na conquista de um cume, sendo que ao chegar ao alto de todos os

valores, o filósofo prussiano reconhece a frieza de seu trabalho, uma vez que a altura dos

escritos se aproxima dos processos físicos que elevam o gelo acima do cume, de modo que

após a sublimação de todos os valores, Nietzsche solidifica valores novos, sendo que assim

como o gelo se forma no alto dos cumes o filósofo aceita ao final de sua obra a formação de

novos e frios valores.

Deste modo, Nietzsche afirma que após essa trajetória pode respirar o ar gélido da

liberdade, uma vez que sente o quanto teve de superar para ter quase tudo, ou seja, nesse caso

todos os valores, abaixo de si, pois a filosofia, tal como o filósofo prussiano viveu e entendeu

se faz como a naturalidade da vida diante da frieza apenas conseguida quando no topo de altas

montanhas.

Portanto, nessa passagem, Nietzsche afirma fazer de sua vida uma busca pela

sabedoria, de modo que essa procura é composta pela frieza com que compõe seus escritos ao

superar os mais altos valores, sendo que com naturalidade o filósofo prussiano se utiliza de

suas forças para chegar cada vez mais alto e para cada vez mais ir longe no seu exame dos

valores morais, onde propomos que quanto mais longe o filósofo alcança, mais adquire saúde,

sendo que a grande saúde expressa ao final de FW/GC significa a expressão nietzschiana de

uma grande conquista.

Logo, Nietzsche conclui a passagem ao dizer que em seus escritos chega ao topo dos

valores morais, pois dedica sua vida à procura de tudo o que é problemático para a existência,

sendo que isso significa confrontar com os valores morais, tudo o que esses valores excluem,

de forma que o que se faz exilado pelos valores morais se constituem em instrumento para o

alcance da grande saúde.

Destarte, para Nietzsche seus escritos são compostos pelo ar das alturas, uma vez que

é por meio da superação dos valores que compõe seus escritos, sendo que pela metáfora de

quem escala os altos cumes, o filósofo prussiano afirma ter ultrapassado os mais altos valores,

de modo que assim como o ar das montanhas é bastante gelado e seu solo composto por gelo,

Nietzsche aceita que seus escritos levam perigo, pois foram compostos em um terreno repleto

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de gelo, sendo que para compreender, respirar o ar dos escritos de Nietzsche, tal como esse

precisou ao compor, é preciso uma grande saúde.

Devemos agora recorrer à última passagem do parágrafo de nº. 380 de FW/GC, onde

veremos que pela fala do andarilho Nietzsche conclui a exposição ao afirmar que para o

homem alcançar a grande saúde é necessário encontrar uma grande força e essa força se

adquire pela composição de valores além de seu tempo.

Diz Nietzsche:

O homem de um tal além, que quer discernir as mais altas medidas de valor de seu

tempo, precisa, para isso, primeiramente "superar" em si mesmo esse tempo- é a

prova de sua força- e, conseqüentemente, não só seu tempo, mas também a má

vontade e contradição que ele próprio teve até agora contra esse tempo, seu

sofrimento com esse tempo, sua extemporaneidade, seu romantismo ... (FW/GC, V,

§ 380)

Podemos ver que para Nietzsche, assim como um andarilho precisa superar os limites

geográficos para ter a exata medida das alturas de uma cidade, faz-se necessário superar,

primeiramente em si mesmo, os valores de seu tempo, para, depois, com a exata medida

encontrada nos valores diante deles mesmos, superar os limites alcançados por cada valor, ou

mesmo todos os valores.

Assim sendo, para que Nietzsche superasse os valores de seu tempo foi preciso

primeiro ultrapassar os limites dos valores diante de si mesmo, sendo que ao assim fazer

conquistou a medida exata de cada valor para então confrontá-los e assim o fez,

sucessivamente, até o limite da superação de todos os valores.

Deste modo, o sofrimento diante dos valores de seu tempo, o romantismo e a

extemporaneidade funcionam como forças motrizes com as quais Nietzsche se lança para a

superação dos valores, de modo que o alcance do além após a superação dos valores

demonstra também o tamanho de sua força.

Portanto, segundo essa passagem, pode-se ver que Nietzsche aceita que o limite de

suas forças se faz alçado diante do alcance de seu empreendimento em relação à superação de

valores, de modo que indicamos que quando afirma diante da consciência de seu feito ter

conquistado a grande saúde, indicamos que o filósofo prussiano o faz segundo a consciência

da superação de todos os valores, pois somente a grande superação dos valores é capaz de lhe

dar a exata medida de sua grande saúde.

Neste ponto, devemos novamente recorrer ao 3º parágrafo do prólogo de EH/EH, pois

a sequência dessa passagem deverá esclarecer como Nietzsche afirma ter descoberto por meio

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da psicologia a exata medida dos valores autênticos, de forma que por esse meio apresenta

que a vida quando medida por valores ideais não resulta de um erro, mas sim de covardia,

uma vez que é preciso ser forte para enfrentar a vida quando a mesma é desprovida de

sentido.

Diz Nietzsche:

De uma longa experiência que me foi dada por tal andança pelo proibido, aprendi a

considerar as causas pelas quais até agora se moralizou e idealizou, de modo muito

diferente do que seria desejável: a história escondida dos filósofos, a psicologia de

seus grandes nomes, veio à luz para mim. - Quanto de verdade suporta, quanto de

verdade ousa um espírito? isso se tornou para mim, cada vez mais, o autêntico

medidor de valor. Erro (- a crença no ideal -) não é cegueira, erro é covardia...

(EH/EH, prólogo, § 3)

Podemos ver que para Nietzsche, o aprendizado com o qual considerou as causas com

que até então se idealizou e moralizou a humanidade foi como o experimentado por um

andarilho, pois essa aprendizagem ocorre por meio da experiência diante da andança pelo

proibido, de modo que indicamos que essa experiência pelo proibido significa justamente o

experimento de opor aos valores morais os valores que as normas vigentes proíbem, sendo

que para essa jornada, Nietzsche confronta os valores do bem e do mal com valores além do

bem e do mal, uma vez que trabalha com valores que estão além dos valores morais, de forma

que segundo a análise nietzschiana o que resiste ao final são justamente os valores que se

fazem além do bem e do mal.

Assim sendo, Nietzsche afirma ter desvelado, supõe-se que por meio da fisiologia

como psicologia da consciência, o que se fez escondido por trás da história de toda a

psicologia até então, assim como dos grandes filósofos, pois sua ação diante da história dos

filósofos, assim como da psicologia dos grandes nomes da história da filosofia, foi uma ação

diferente do que até então se fez desejável.

Deste modo, Nietzsche questiona qual é a quantidade de verdade capaz de suportar um

espírito, pois assim afirma, essa questão tornou-se cada vez mais a autêntica medida dos

valores, pois, assim supomos, com essa pergunta o filósofo prussiano se posicionou diante dos

valores, da filosofia e da psicologia dos autores da história da filosofia, de forma que com

essa pergunta encerrou por diagnosticar inúmeras hipóteses suprimidas por trás da afirmação

dos valores.

Portanto, Nietzsche afirma que a crença em valores ideais, mais que um erro, significa

covardia, uma vez que representa uma passividade diante do enfrentamento exigido por todas

as normas morais e valores, sendo que, ao contrário, quanto mais os valores se fazem

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enfrentados, mais aumenta a resistência, mais aumentam as forças e maior será também a

saúde, de modo que o confronto com os grandes valores eleva à grande saúde.

Voltemos ao parágrafo nº. 382, pois a próxima passagem deverá demonstrar como

Nietzsche anuncia a doutrina da vontade de poder como possibilidade de um ideal que surge

após seu exame dos valores morais e dos grandes ideais.

Diz Nietzsche:

É pena: mas é inevitável que consideremos seus mais dignos alvos e esperanças

apenas com uma seriedade mal mantida, e talvez nem sequer os consideremos mais.

Um novo ideal corre à nossa frente, um ideal estranho, tentador, rico de perigos, ao

qual não gostaríamos de persuadir ninguém, porque a ninguém concederíamos tão

facilmente o direito a ele: o ideal de um espírito que joga ingenuamente, isto é, sem

querer e por transbordante plenitude e potencialidade, com tudo o que até agora se

chamou sagrado, bom, intocável, divino; para o qual o mais alto, em que o povo

encontra legitimamente sua medida de valor, já significaria perigo, declínio,

rebaixamento ou, no mínimo, descanso, cegueira, esquecimento temporário de si

(FW/GC, V, § 382)

Podemos ver que, nesse ponto, Nietzsche alude que se lamentará por considerar como

um erro a seriedade presente nos valores e normas morais, ou seja, por diagnosticar como

errôneos os mais dignos pontos fixos de esperança com que a humanidade até então se

firmou, uma vez que à frente vislumbra um novo ideal, não mais radicado em valores e

normas morais, mas sim, com raiz nas experiências da vida, esta tida segundo os princípios da

vontade de poder.

Deste modo, Nietzsche afirma que embora seja repleto de perigos, e que não são todos

os que facilmente outorgam seu direito a ele, há um novo ideal posto à frente, uma vez que

mesmo que a vida e todas as coisas da vida sejam compostas por vontade de poder, a

consciência que se tem da vida como vontade de poder se faz um sentimento ideal, pois tudo

o que pode ser percebido pela consciência, é apenas compreendido como ideal da existência

real.

Assim sendo, prossegue Nietzsche que esse novo ideal traz consigo a ingenuidade de

um espírito que ingenuamente joga a todo instante, sendo que esse jogo ocorre com tudo o

que até então se chamou sagrado, intocável, bom, divino, etc., de forma que isso tudo

acontece segundo a medida do poder que transborda com abundância de plenitude, ou seja,

nesse instante Nietzsche afirma como novo ideal a vontade de poder que transborda diante da

plenitude de sua abundância e confronta os valores e normas até então dados como sagrados,

intocáveis, divinos, bons, etc.

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Portanto, para Nietzsche, após a superação de todos os valores, surge ainda um novo

valor, com o qual a humanidade deverá cedo ou tarde se deparar, sendo que esse valor é

composto pela vida como vontade de poder, de modo que para os que são fortes o bastante, ou

seja, para aqueles de grande saúde, a vida como vontade de poder, assim como os confrontos

decorrentes desse tipo de vida, ocorrem naturalmente, uma vez que o excesso de poder

transborda suavemente e com plenitude diante de outras forças de poder, entretanto, para

aqueles de pequena saúde, a vida como vontade de poder representa perigo, rebaixamento,

declínio, cegueira, etc.

Logo, para Nietzsche, com a superação de todos os valores surge um novo valor,

entendido por nós como o valor da vida como vontade de poder, de forma que esse tipo de

vida exige pessoas com grande saúde, para que com o uso de suas forças, naturalmente,

exerçam uma vida radicada em confrontos, de modo que às pessoas de pequena saúde, ter na

vida a vontade de poder como valor ideal representa declínio e perigo, sendo que o filósofo

prussiano afirma que para esse tipo de vida, a maior parte da humanidade em seu tempo ainda

não está preparada, de forma que esse novo ideal traria consigo ainda a exigência de um novo

tempo.

Devemos agora recorrer à última passagem do terceiro parágrafo do prólogo de

EH/EH, onde Nietzsche demonstra que se eleva quanto mais impõe a dureza do mundo contra

si mesmo, de forma que ao se lançar diante dos mais fortes valores, lança-se em direção à

grande saúde.

Diz Nietzsche:

Cada conquista, cada passo avante no conhecimento decorre do ânimo, da dureza

contra si, do asseio para consigo... Não refuto os ideais, apenas calço luvas diante

deles ... Nitimur in vetitum: neste signo vencerá um dia minha filosofia, pois até

agora o que se proibiu sempre, por princípio, foi somente a verdade (EH/EH,

prólogo, § 3)

Podemos ver que para Nietzsche, tanto a dureza imposta contra si mesmo como a

decência com que se tem em si mesmo são as fontes com que se projeta para novas conquistas

em relação ao conhecimento.

Deste modo, o filósofo prussiano afirma não refutar os ideais, mas apenas calçar luvas

diante deles, de forma que aceitamos que aqui Nietzsche se refere ao modo com que trata a

moral e os valores ideais, pois realmente, Nietzsche, como filósofo e psicólogo, não refuta os

valores ideais, ao contrário, coloca-se diante desses confrontando as hipóteses de suas origens

sob as perspectivas da fisiologia e da vontade de poder, sendo que desses confrontos resultam

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a desvalorização dos valores, assim como a origem de novos valores, mas não a negação dos

valores morais e ideais, ou seja, o psicólogo Nietzsche demonstra a inconsistência da origem

dos valores, mas não os nega.

Assim sendo, Nietzsche afirma que sua filosofia deverá um dia ser vista como um

meio para se alcançar a verdade, uma vez que se lança em direção ao que até então foi

proibido, diz Nietzsche: “Nitimur in vetitum: neste signo vencerá um dia minha filosofia”

(EH/EH, prólogo, § 3) 41

, ou seja, o filósofo aceita que a sua filosofia deverá ser marcada

como um saber que se lançou perante as bases proibidas como meio para extrair sua

sabedoria, uma vez que essas bases proibidas não comportam nenhuma verdade.

Portanto, segundo essa passagem, aceitamos que Nietzsche se afirma como quem

busca a sabedoria em lugares até então proibidos, quais sejam, a fonte e origem dos valores,

de modo que diante do confronto instituído contra os valores o filósofo admite construir passo

a passo o seu conhecimento, pois de cada conquista decorre uma nova sabedoria.

Do mesmo modo, entendemos que ocorre com a grande saúde, pois para realizar cada

novo confronto o filósofo se utiliza de novas forças, de modo que ao passo em que vence as

disputas com os valores, além de construir novos conhecimentos, adquire outras e renovadas

forças, sendo que quanto mais conhecimento adquire, maior é a aquisição de novas forças, de

forma que ao finalizar em FW/GC o seu grande confronto, Nietzsche afirma ter adquirido

com isso a grande saúde.

Neste ponto, vamos à última passagem do parágrafo de nº. 382 de FW/GC, com que

Nietzsche finaliza a seção, onde devemos observar que para o filósofo a grande saúde faz com

que as finalidades humanas e sobre-humanas para a vida sejam uma paródia do que é a vida

real, conduzida pelas tensões de todas as forças em disputa por poder.

Diz Nietzsche:

(...) o ideal de um bem-estar e bem-querer humano-sobre-humano, que muitas vezes

parecerá inumano, quando, por exemplo, se põe ao lado de toda seriedade terrestre

até agora, ao lado de toda espécie de solenidade em gesto, palavra, tom, olhar, moral

e tarefa, como sua mais corporal, sua involuntária paródia - e com o qual somente, a

despeito de tudo isso, começa talvez a grande seriedade, com o qual é posto o

verdadeiro ponto de interrogação, o destino da alma muda de rumo, a tragédia

começa... (FW/GC, V, § 382) 42

41

Cf. TD: NSM, entendemos a expressão latina por “Lançamo-nos aos proibido”. 42

Embora a TD: RRTF finalize o parágrafo com a palavra “começa”, a TD: PCS opta pelo termo “comece”.

Neste ponto, aceitamos que o sentido mais adequado se dá pelo termo “comece”, pois entendemos que aqui

Nietzsche chama, pede ou clama pelo início da tragédia.

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Para finalizar, vemos que para Nietzsche, a conquista da grande saúde ocorre quando,

de forma decisiva, ultrapassam-se as barreiras impostas pelos ideais e normas morais, pois já

não é possível admitir uma vida pautada em valor ideal.

Deste modo, os ideais de bem querer e bem-estar que por longo tempo guiaram a vida

a humana, segundo as mais latentes características sobre-humanas, quando confrontadas com

a vitalidade impressa pela vida diagnosticada segundo os princípios da vontade de poder,

perdem completamente o valor.

Assim sendo, Nietzsche atenta para que se coloque de lado toda a seriedade com que a

humanidade até agora tratou de procurar seu bem-estar, de forma que todas as espécies de

solenidades são consideradas, pelo filósofo prussiano, como simples paródia, uma vez que a

vida mesma é composta de confrontos, medos, anseios, etc., oriundos das disputas por

vontade de poder.

Portanto, Nietzsche afirma que a grande seriedade começa quando se coloca de lado os

ideais com os quais a humanidade sempre enfrentou as questões mais profundas da existência

humana, uma vez que essa seriedade tem por fundamento valores e normas morais ideais, as

quais não dão conta de explicar a vida quando tomada segundo a doutrina da vontade de

poder.

Logo, Nietzsche conclui que é preciso colocar o verdadeiro ponto de interrogação,

com o qual o destino e a alma do mundo deverão mudar de direção, ou seja, o filósofo

prussiano afirma que a partir de agora será por meio da perspectiva trágica que será possível

interrogar com real seriedade as questões da vida humana, pois o conhecimento de um

instante de forças somente é possível como perspectiva.

Portanto, esse capítulo investigou como o psicólogo Nietzsche expõe a partir de alguns

parágrafos da parte final de FW/GC, a consciência de si como razão de sua grande saúde, de

forma que identificamos que o filósofo prussiano construiu esse livro com uso da fisiologia

como psicologia da consciência, uma vez que por meio da doutrina da vontade de poder

avaliou profundamente os valores morais, como expressão de uma grande saúde.

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CONCLUSÃO

Como resultado dessa pesquisa, afirmamos que o livro A gaia ciência (1882-1886) de

Friedrich Nietzsche não deve ser considerado um livro a mais diante da genuinidade impressa

pela vida e obra do filósofo, mas deve ser enfrentado segundo o manejo ímpar com que o

autor se dedica na obra à psicologia no exame da consciência, onde imprime como marca de

sua filosofia a instituição da psicologia como uma nova maneira de examinar a consciência

diante da história da filosofia e das questões mais caras até então confrontadas pela

humanidade.

Em A gaia ciência, Nietzsche enfrenta a existência humana em busca de uma

finalidade que não se traduza por meio de normas e valores morais e apresenta na teoria do

sentimento de poder o fundamento da vitalidade de tudo o que é organizado, desde o corpo

humano, passando pelo órgão da consciência até chegar à organização da cultura. Deste

modo, indaga sobre as bases da conservação da espécie humana e afirma ser por meio da

expansão de paixões represadas que a espécie se sustenta, uma vez que essa expansão decorre

de forças que emanam de indivíduos fortes e resulta na transformação e na evolução da

cultura, assim como dos mecanismos e do modo de viver em sociedade. Assim sendo, a

consciência como último órgão em desenvolvimento do organismo coloca em risco a

manutenção da espécie, pois, como órgão mais frágil no sistema orgânico, utiliza as suas

forças e impulsos em vista de anular as disputas por poder, tanto em relação aos impulsos

internos ao corpo quanto na relação dos indivíduos com a cultura, sendo que o que mantêm e

preserva a espécie humana são justamente a transformação e a evolução da cultura por meio

de forças dissipadas pelos indivíduos mais fortes.

Embora não tratados no corpo dessa pesquisa, uma vez que focamos a psicologia da

consciência em A gaia ciência, os temas da morte de deus e do eterno-retorno, assim como o

aparecimento do personagem Zaratustra no final do livro, elevam A gaia ciência a um

patamar não encontrado em nenhuma obra precedente do filósofo, pois se em Aurora

Nietzsche investe contra os preconceitos morais, em A gaia ciência o filósofo radicaliza o seu

exame da moral, de modo que como um psicólogo em busca do diagnóstico da grande saúde,

faz da vontade de poder um elemento básico da vitalidade e com ela examina as hipóteses

prováveis para as forças presentes na origem de tudo o que se imprime na consciência,

constitui o organismo e ascende à organização da cultura, sendo que quando são

diagnosticados os impulsos por abundância de poder, Nietzsche deduz os sinais de saúde e

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quando diagnostica os impulsos pela conservação de forças, classifica-os como sinais de

doença.

Sobre A gaia ciência, diz Nietzsche:

Aurora é um livro que diz Sim, profundo, porém claro e benévolo. O mesmo, e no

maior grau, vale para gaya scienza: em quase cada frase sua, profundidade e

petulância dão-se ternamente as mãos. Um verso que exprime a gratidão pelo mais

maravilhoso janeiro que vivi – todo o livro é uma dádiva – revela bem a partir de

que profundeza a ciência tornou-se gaia (EH/EH, A Gaia Ciência, § 1) 43

Nota-se que para Nietzsche A gaia ciência ocupa um lugar único em relação à sua

obra, pois sendo Aurora um livro afirmativo, livro esse no qual o filósofo se ocupa de

indagações sobre preconceitos morais e traz como subtítulo justamente as Reflexões sobre

preconceitos morais, o próximo livro, A gaia ciência, está para o filósofo como o livro em

que aprofunda com petulância as reflexões sobre os preconceitos morais, no entanto, de modo

bem singular, pois aqui se utiliza de uma psicologia profunda como instrumento de uma gaia

ciência, ou seja, faz da psicologia uma ciência alegre e feliz.

Se quando escreveu Aurora, em meados de 1881, Nietzsche se encontrava doente, no

tempo da escrita de A gaia ciência em meados de 1882, ao contrário, o filósofo vivia um

momento de plena saúde, de modo que experimentou o mais maravilhoso janeiro que jamais

viveu. Aqui devemos ressaltar ter sido fundamental o fato de Nietzsche ter recuperado a saúde

quando escreveu A gaia ciência, uma vez que o filósofo supõe terem sido necessárias grandes

saúdes para enfrentar a tarefa de se opor aos grandes valores e aos maiores preconceitos

morais. Assim sendo, por meio da experiência com as próprias condições de saúde, Nietzsche

inicia o exame da consciência como psicologia em A gaia ciência. Deste modo, logo no início

do livro procura os elementos que mantêm a espécie, enfrenta o que está por trás da origem da

consciência e apresenta os fundamentos de sua doutrina da vontade de poder.

Entretanto, sabe-se que embora A gaia ciência seja um livro escrito em meados de

1882, no ano de 1896 ganhou o acréscimo de um prefácio em que Nietzsche se apresenta

como psicólogo a partir de suas condições de saúde e, na quinta parte, o filósofo prossegue o

exame profundo sobre a consciência. Deste modo, A gaia ciência se inicia com Nietzsche

apresentando no prólogo a psicologia da consciência através do exame das próprias condições

de saúde, trata da consciência como último elemento em desenvolvimento do sistema

orgânico, trata da origem da consciência como genialidade da espécie e se encerra com a

43

Cf. TD: PCS.

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demonstração do filósofo sobre como alcançou a grande saúde com a consciência de si após

se lançar contra a moralidade.

Por tudo isso, essa pesquisa foi dividida em quatro capítulos, sendo que no primeiro

capítulo realizamos o exame da psicologia da consciência a partir do prólogo (1886), onde

procuramos responder à pergunta sobre o que é para o psicólogo Nietzsche a psicologia da

consciência.

No segundo capítulo, nosso exame consistiu em investigar a partir da primeira parte do

livro (1882) a abrangência do significado da consciência como elemento em desenvolvimento

do orgânico, sendo que para isso colocamos a pergunta sobre como para Nietzsche a

consciência se relaciona com o desenvolvimento do orgânico.

No terceiro capítulo, examinamos junto à quinta parte de A gaia ciência (1886), como

para Nietzsche a origem e formação da consciência consistem em genialidade da espécie e

colocamos a pergunta sobre como o filósofo associa a consciência como genialidade da

espécie, assim como qual é a função da consciência diante do desenvolvimento da linguagem.

No quarto e último capítulo, nosso exame consistiu em investigar a partir da quinta

parte do livro (1886), como Nietzsche liga a consciência com os fundamentos de sua saúde e

indagamos como o psicólogo Nietzsche expõe ao final de A gaia ciência a consciência de si

como razão fundamental de sua grande saúde.

No primeiro capítulo, O diagnóstico da grande saúde, concluímos que em A gaia

ciência, a psicologia da consciência está para Nietzsche como uma radicalização no

diagnóstico de doença e de saúde, de modo que o psicólogo Nietzsche se utiliza do

experimento para indagar se na origem da formação dos valores, sentimentos e afetos se

fazem presentes impulsos sadios ou doentios e a partir de seus diagnósticos propõe orientar

uma total transvaloração dos valores para a sociedade, seu tempo e cultura, pois afirma que os

verdadeiros valores são aqueles oriundos de pulsões de vontade com raiz nos instintos e

representam sinais de saúde, enquanto a sociedade, o seu tempo e a cultura se orientam por

valores com origem em vontades de verdades e essas vontades são diagnosticadas como sinais

de doença.

No segundo capítulo, O desenvolvimento do orgânico, concluímos que em A gaia

ciência Nietzsche apresenta a consciência como último elemento em desenvolvimento do

orgânico, de forma que aprofundamos nosso exame da psicologia da consciência e

observamos que para Nietzsche a consciência como órgão de um organismo vivo ocorre por

meio de disputas de forças internas, de modo que apenas é possível obtermos instantes de

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consciência, pois a todo o momento se alteram as relações de forças no corpo com as quais se

altera a consciência. Deste modo, tal quais as forças internas alteram constantemente a

consciência, forças externas se imprimem na consciência através de órgãos e mecanismos do

sentido, de forma que ao modificarem o estado de consciência interferem na disposição de

impulsos e forças em disputa no corpo. Assim sendo, como órgão em desenvolvimento em

um organismo vivo, a consciência representa um estado de percepção e representação da

realidade, sob o qual interferem os órgãos internos do corpo, do mesmo modo que há

interferência de organismos externos, como a sociedade e a cultura, fazendo com que a

consciência de estado se transforme o tempo todo.

No terceiro capítulo, A consciência como genialidade da espécie, concluímos que em

A gaia ciência a consciência como genialidade da espécie está para Nietzsche como um órgão

com o qual a espécie humana se utilizou como instrumento de comunicação, de forma que

para suprir com essa necessidade se desenvolveu a linguagem por meio de signos, sendo que

esses, quando adquirem o sentido de verdade ao abstrair o significado da realidade, acabam

por igualar os homens e colocam em risco o desenvolvimento da espécie porque a espécie se

desenvolve por meio da genialidade. Sendo assim, ao mesmo tempo em que a espécie

desenvolveu o órgão da consciência a partir da necessidade de comunicação, termina por

suprimir o que há em cada indivíduo de genialidade, pois quando iguala os impulsos

individuais por meio de conceitos idênticos iguala também os homens segundo o instinto de

gregaridade. Desta forma, Nietzsche sustenta que para a preservação da espécie é preciso

resgatar o gênio da espécie, pois por meio de impulsos de vontade esse é capaz de transformar

e evoluir a espécie humana, a sociedade e a cultura.

No quarto capítulo, A consciência como grande saúde, concluímos que em A gaia

ciência Nietzsche apresenta a consciência de si como grande saúde, pois, como andarilho, o

psicólogo Nietzsche vaga de valor em valor em busca da real dimensão dos valores. Deste

modo, utiliza-se das forças de vontade de poder para confrontar os valores, sendo que quanto

mais desprende suas forças, mais aumenta sua vitalidade, de forma que, ao concluir o livro,

com a superação de todos os valores, conquista a grande saúde.

Por fim, afirmamos que, para Nietzsche, a consciência é um órgão relacionado com os

impulsos vitais do organismo, de modo que por via da vontade de poder, impulsos orgânicos

oriundos de todos os órgãos do sistema orgânico alteram constantemente a consciência, de tal

modo que esta, a partir de estímulos externos oriundos da cultura, da moral, etc., afeta

ciclicamente a constituição da disposição de forças em ação nos outros órgãos do organismo,

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uma vez que também lhes envia impulsos, de forma que a incessante disputa de forças é tida

pelo filósofo prussiano como substancialidade vital de todos os organismos, o corpo animal,

os vegetais e até mesmo a organização da cultura.

Deste modo, essa pesquisa nos leva a crer que em A gaia ciência o psicólogo

Nietzsche expõe a experiência como subsídio de uma psicologia da consciência através da

qual indaga sobre as possibilidades para a origem da consciência e conclui que como órgão a

consciência deixa em risco o desenvolvimento da espécie, pois como órgão mais frágil no

organismo procura minimizar a disputa de impulsos com que é possível a vida orgânica, como

genialidade, também põe em risco o desenvolvimento da espécie, uma vez que por meio do

instrumento da linguagem iguala os indivíduos de forma que limita as ações dos indivíduos

mais fortes, os quais são capazes de transformar e elevar tanto a sociedade quanto a cultura e,

com isso, fomentar a preservação da espécie. Portanto, o psicólogo Nietzsche sugere que é

preciso confrontar os valores com base no sentimento de vontade de poder, de forma a buscar

na origem dos valores os indícios de saúde e doença para com isso proceder com a

desmistificação e a transvaloração de todos os valores, algo que radicalmente procura fazer

com A gaia ciência a fim de encontrar uma grande saúde.

Entretanto, com a conclusão dessa pesquisa, surgem-nos pelo menos duas novas

perguntas sobre o tratamento dado para a consciência na obra de Nietzsche, pois é impossível

não nos questionarmos acerca de qual desdobramento adquire a consciência em obras

posteriores à A gaia ciência, uma vez que em Assim falou Zaratustra conseguimos identificar

na seção Dos desprezadores do corpo o trato da consciência ligada à totalidade do corpo, na

seção Do imaculado conhecimento, o trato da consciência ligada ao conhecimento de tudo o

que é da natureza e na seção intitulada Das novas e velhas tábuas encontramos o trato da

consciência diante da supressão de valores, de modo que nos questionamos como o psicólogo

Nietzsche apresenta a consciência no livro que considerou a sua obra máxima, ou seja,

Nietzsche, em Assim falou Zaratustra apresenta a consciência como conhecimento puro da

Terra?

Já em Para a Genealogia da moral, identificamos junto à primeira dissertação,

intitulada “Bom e mau”, “bom e ruim”, a apresentação da origem da consciência

supostamente ligada a esses valores, de modo que indagamos se o psicólogo Nietzsche supõe

a consciência do que é bom como indício de grande saúde e a consciência do que é mau e

ruim como sinais de doença. Do mesmo modo, questionamos se Nietzsche prossegue o

profundo exame da psicologia da consciência na segunda dissertação, intitulada “‘Culpa’, ‘má

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consciência’ e coisas afins”, pois questionamos se nessa seção a culpa e a má consciência são

diagnosticadas pelo psicólogo Nietzsche como sinais de doença, de modo que a consciência

como memória teria origem no ressentimento, pois, assim, a consciência como memória seria

diagnosticada como sinal de doença, enquanto a consciência como esquecimento traria

consigo os indícios de sua origem em pulsões de vontade e seria, portanto, diagnosticada

como grande saúde. Assim sendo, indagamos: para o psicólogo Nietzsche, na Segunda

Dissertação de Para a genealogia da moral, a consciência como memória por ter sua origem

no ressentimento é diagnosticada como sinal de doença, enquanto a consciência como

esquecimento, com origem em pulsões de vontade necessariamente representa um sinal de

saúde?

Deste modo, finalizamos a pesquisa, pois com ela supomos ter respondido a questão

principal, que decorre de A gaia ciência: tornar-se consciente ocorre por meio da linguagem,

assimilação e criação de cultura? Não obstante, essa pergunta nos levou a outras quatro

perguntas com loco em A gaia ciência e agora a conclusão da pesquisa nos faz indagar sobre

como Nietzsche trata a consciência em Assim falou Zaratustra e em Para a genealogia da

moral, de forma que essas respostas constituirão objeto de outras pesquisas.

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