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Revista brasileira de poesia.
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André FerrAz CACo ISHAK ClAudIA SCHroederdAnIel SeIdl delFIn demétrIo PAnArottodIego grAndo everton BeHenCKFlorISvAldo mAttoS Homero gomeS JAder BArBoSAKÁtIA BorgeS lAurIndo SAntArrItA luCIAno lAnzIllottImArCelo SAndmAn mÁrCIo-André nydIA BonettIrAmon nuneS mello reInAldo rAmoS rICArdo Pozzo roBerto AndreonI roBerto BozzettI SAndro ornellAS tAgore SuASSunA WAldeCy PAulo PereIrA WIlmAr SIlvA
REVISTA DE POESIAANO 01 / # 04
REVISTA DE POESIA
Todos os direitos desta edição reservados a
os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como os autores dessa obra.
© 2014 PuBlICAdo orIgInAlmente em 2014 Com o tÍtulo NERVAL REVISTA DE POESIA Nº 4 ///
CoPyrIgHt dA SeleÇÃo © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS ///
todoS oS PoemAS deStA edIÇÃo SÃo CoPyrIgHt de SeuS reSPeCtIvoS AutoreS
© ANDRé FERRAz // CACO ISHAK // CLAUDIA SCHROEDER // DANIEL SEIDL // DIEgO gRANDO // DELFIN // DEméTRIO PANAROTTO // EVERTON BEHENCK //
FLORISVALDO mATTOS // LAURINDO SANTARRITA // HOmERO gOmES // JADER BARBOSA //KATIA BORgES // LUCIANO LANzILLOTTI // mARCELO SANDmAN // mARCIO-ANDRé //NyDIA BONETTI // RAmON NUNES mELLO // REINALDO RAmOS // RICARDO POzzO //
ROBERTO ANDREONI // ROBERTO BOzzETTI // SANDRO ORNELLAS //TAgORE SUASSUNA // WALDECy PAULO PEREIRA // WILmAR SILVA ///
NESTAEDIÇÃO:
10 AndréFerrAz
Me deram formas de intervir Nas minhas más tendências.
59 dIeGOGrAndO
Foi só chegar aqui já deu pra ver que as traças perdem o
apetite (tu também?) justo nas roupas que não servem mais.
82 JAderBArBOSA
Que vale consumir os nossos dias satisfazendo
as ambições vazias,e se encolher à noite
em mil receios?!
20 CACOISHAK
se acabou numa traição(autotraição, autoboicote)recomeça-se tudo outra vez
35 dAnIelSeIdl
Depois de foder a mulher amada
o homem é sempre menosdo que era.
92 KÁTIABOrGeS
Já nem ouço,se é o Destino que chama,
futuro oco numa bola de cristal.
25 ClAudIA SCHrOeder
Dá pra ver um filme ruime chorar feito um lobo
na lua cheia.
71 FlOrISvAldO MATTOS
Quando ele partiua primavera galopava
nos rosais.
53 deMéTrIOPAnArOTTO
do alto ocarcará observa
voa também
81 HOMerOGOMeS
Da janela, brotam pingos de pó,
Mas as pálpebras se fecham.
61 everTOn BeHenCK
Você sabe que dinheiroCarros, ternos, móveis
Não são garantias nenhumaDe humanidade
47 delFIn
O balanço vemE foi
A rapidez é o sinal dos tempos
97 lAurIndO SAnTArrITA
no lusófono parnaso oitocentista.
Todo poeta quer assim resista
NESTA
EDIÇÃO:114 MArCelO
SAndMAn
Sim, certeira,a bala de borracha,no olho da repórter.
130rAMOn nuneS MellO
levantevá até a janela
antes de mergulhar
144rOBerTO AndreOnI
só o corpo existe;com suas veias
enraizadas na cena.
174WAldeCy PAulO PereIrA
Nas próximas distâncias me encontrará longo de idéias,
sorvido de livros, orgânica biblioteca.
117 MÁrCIO-André
um homem fala diariamente ao cão
o cão compreende até onde o afeto permite
162SAndrO OrnellAS
Acordo e questiono o que resta de dignidade
matutina em mim
178WIlMArSIlvA
eu o ajno de luz com a sdee do mnudo
asdeeemmnihalínuga
133 reInAldO rAMOS
Às vezes uso a ideiapra dar rumo à palavra.
122nydIABOneTTI
trocar o fardo milenar das culpas
pelo pós-moderno fardo do vazio
143rICArdO POzzO
São ríspidos caminhos que nossos passos percorrem rumo
à desilusão necessária.
104luCIAnO lAnzIllOTTI
Nada a contar, a não ser o resto de fruta
dentro da xícara.
169TAGOre SuASSunA
Eu era uma ilha perdida no mundo
desfeita em areiasem sombra ou remorso
154rOBerTO BOzzeTTI
O que não se tatuoufoi corpo de nascimento.
ContAto [email protected] /// ISSuu.Com/revIStAFlAuBert /// FACeBooK.Com/revIStAFlAuBert
EXPEDIENTEedItor mARIEL REIS [[email protected]] ///
ConSelHo edItorIAl ANDRé TARTARINI [[email protected]] //JD LUCAS [[email protected]] ///
edItoreS regIonAIS rIo grAnde do Sul ALESSANDRO gARCIA [[email protected]] //
CeArÁ ANDERSON FONSECA [[email protected]] // rIo de JAneIro ANDRé TARTARINI, JD LUCAS //
PArAnÁ DANIEL OSIECKI [[email protected]] // BrASÍlIA mAURÍCIO DE ALmEIDA [[email protected]] //
SÃo PAulo DELFIN [[email protected]] ///
ProJeto grÁFICo ALESSANDRO gARCIAdIAgrAmAÇÃo STUDIO DELREy
os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.
AnO 01 / # 04
BrASIl2014
EDITORIAL
A revista flaubert desdobra-se em nerval. Ninguém poderá ter a palavra final sobre o fenômeno da poesia: embora a multiplicidade de
sua manifestação, enxergamos legitimidade em algumas representações. Em outras, percebemos um equívoco de perspectiva devido à reprodução de um modelo pertencente ao século passado, cujo êxito, diretamente ligado às circunstâncias históricas em que se desenvolveu, não poderá ser repetido, tornando-se a prática um jogo beletrista que provará mais a erudição de quem (re)produz uma sintaxe já experimentada. Aquele que a lê, sem o repertório para interpretá-la, julgando-a original, provará a sensação de incapacidade de ligação com o tal moderno que verá ali exposto, crerá de que sua percepção acerca do fenômeno é um logro quando a verdade é contrária. O pós-modernismo, o verdadeiro sururu, confundiu os parâmetros para apreciação de poético, eliminou balizas importantes; a carnavalização parece a democratização do espaço poético a ponto de confundi-lo com as linhas diretivas de mercado, promovendo a facilitação do gênero e sua conspurcação. Entretanto, a afirmação anterior, em determinados círculos, parecerá elitista em tempos de populismo e adaptação de clássicos para a compreensão da massa; em tempos em que a cultura acomoda-se como um produto para ser vendido, exposto nas prateleiras do mercado. A degradação cultural em nome do liberalismo é um crime perpetrado embaixo de nosso nariz e não esboçamos reação para detê-la.
A reação possível, caro leitor, é a nossa revista. A nossa revista e muitas outras que se opõem, com a publicação de vozes comprometidas na busca de uma identidade poética que não se espelha — copia — a ação passada, seus vícios, mais propriamente do que suas virtudes. A revista nerval propõe-se a descobri-los para um público maior, assim espero, porque seus continentes estabelecidos não entraram no radar das entidades oficiais que dizem o que é ou não é a cultura brasileira, a poesia brasileira ou a prosa do país. Cada um dos poetas aqui não ignora o aspecto político de sua representatividade dentro do campo de sua atuação;
espertos desenham estratégias para uma ocupação efetiva de um território aristocrático e feudal. Meu querido leitor, perdoe-me o cerebralismo embutido em minhas linhas. A cultura, como uma representatividade de poder, é uma das minhas preocupações; estabelecer uma divisão equânime desse espaço dirige minha visão, sabendo que saneá-lo, abri-lo, reorganizá-lo — redimensionando suas discussões — é escolher recair sobre si o epíteto de fariseu, cobrir-se de cristo e ser preterido por um barrabás.
nerval, o nosso herói, provou do cálice de fel. Eis a nossa reação, plural. Leitores, meus queridos leitores, adentrem as veredas. Diverti-los com malabarismos hermenêuticos, com o signo ígneo e com a imagem. O sangue do poeta são as imagens, li em algum lugar. Ei-las reunidas aqui caleidoscopicamente para alegrá-los das inúmeras possibilidades da poesia brasileira. Há uma poesia com bolor vendida como iguaria fina por inúmeros grupos, esta não nos interessa. E esta outra, que não quer se polarizar, debruçar-se em maniqueísmos. Prefiro uma poesia que não dependa de tecnologias exteriores para a validação de seu fazimento. Para terminar, uma provocação: um aluno, poeta moderno, ligado à tecnologia verbal, mostrou-me uma poesia de amor. As disposições dos signos e a ocupação gráfica da folha animavam-no. Pediu-me, ao final da aula, uma opinião. Disse a ele para se espelhar em Vinicius de Moraes, porque a gatinha não entenderia a intenção do poema. Cobriu-me de injúrias, alegou o alto grau da instituição de ensino em que estávamos e a compreensão privilegiada de todos os integrantes do corpo discente. Calei-me. Na semana seguinte, a menina procurou-me. Mostrou-me o poema altamente tecnológico, e disse: “Acho que ele quer sair comigo, professor”. “Eu também acho”, respondi. É uma anedota, não há dúvida, embora real, ocorrida em uma escola de ponta do Rio de Janeiro. Mas não é, em certo sentido, uma alegoria de certa “poesia” brasileira? Boa leitura.
mARIEL REIS // edItor
10
AmANhEcER
André FerrAz
Pássaros cantam na alvoradaE eu sanhaço contente
Observo você ainda cochilando.
Querendo beliscar mamão.E com o biquinho derramar
Água sobre seu colo.
Dona das minhas asas.Respira em mim seu hálito de beija-flor.
Para mim sanhaço, Ave de perpetuação do escândalo.
E do aviso de nova esperançaAo amanhecer.
11
SANTO
André FerrAz
Para qual finalidade o cristianismoMe repele o corpo,
Se foi dele que fui gerado.Eu também andei sobre as águasDentro do ventre de minha mãe.
E porque não haveria santidadeQuando beijo a água que brota
Da vulva de minha mulher,Se ela me sacia a sede e aplaca a fome.
O rosário que oro de frente ao cuCom os dedos,
São tão santos quanto o anjoQue através do espírito santo
Fecundou Maria.
Glória, Glória MariaMinha mãe, amando-se
Com meu pai.
Eu provo por todo o seu corpoO cheiro forte do amido
Nos seus lábios.
12
NEgOcIAÇÃO
André FerrAz
A boneca rodeia ao fazer o preço.Mas, eu quero mesmo conversa.Quero um pau que me dê paz,
Conversa; e dormir no colo dela.Aguentar o silêncio do quarto
E da voz que vêm dela,Enquanto meto.
Queria que ela fosse o amigo, Que nunca faltasse nas noites tristes.
O quadro em branco da minha viagemAo paraíso dos levianos,E meninos de bordel.
13
TRANScREvENDO umA ENTIDADE
André FerrAz
Oriundo da responsabilidade de quem escreve,[ de quem se assume.
A leitura passa a ser de quem entende,[ e de quem duvida.
14
PELA bOcA DA ImAcuLADA
André FerrAz
Pela sua boca recebe o óleoQue brota bendito: o segredo da vida,
Dele são gerados todos os frutosDa criação e dos filhos de Adão.Ela engole e sente-se purificada.
15
cIgARRO
André FerrAz
Matizes de branco em vermelhoNa tosse seca.
Onde os pulmões põem sangueNa relação em que se maltrata
E se sente prazerQuando se encontraNos lábios a frase:
- Me ame ou me deixe em paz.
16
cOzINhA
André FerrAz
Os odores do alho em suas mãos:-Minha bruxa de cachos...Torceram a minha menteAbrindo receitas de como
Conviver sem azedar.
17
cAmA NO EScuRO
André FerrAz
Eu beijo o mamilo às cegas,E tropeço entre suas pernas.
“Morena, no escuro.”
“É, breu!”
É dente no birro,É pau fora da caçapa,
E um gostinho de quemVeste as mãos de veludo
Quando toca a pele trêmula.
18
mATEmáTIcA DO AbANDONO
André FerrAz
Eu já sei que tua transcendência,Não corresponde a minha transgressão.
E que o meu ódio queimaBuscando entender sua paz.
Me deram formas de intervir Nas minhas más tendências.
E insisti por corresponderNa causa da minha famigeração.
Queime por dentro orgulho idiota.
Apresente-se ao Juiz.
Nas sentenças menos bravas
O quadro de impressão que deixeiÀ Deus não permitia piedade.
Mas teu amor mesmo quieto,
Me degenera a ponto de tambémAmar-te em silêncio.
No entanto a credibilidade não sustenta
A imperfeição que minha mente ainda detém.
Por isso nos teus lábios mudosEu aprendo a conquistar viver
Sem culpa.
19
ROXANE
André FerrAz
Ela molhando as plantas,E não me dirigindo a palavra.
Me fez enxergar o sol Por entre a varanda.
Acalentando meu rosto com raiosUltravioletas naquela tarde.
Amortecendo o vento quente de primavera,Que a gente sufoca no dia a dia,
Preocupado com as compras, as dívidasQue eu não dou muita importância.
Buscando o violão, os versos certos.Os livros resenhados, as notas boas
Na escola de música.Mesmo com trinta e três anos
E menos de um salário mínimo do meu pai.
Uma vida sadia na nataçãoCarboidratos que você
Não come pra, não engordar.
E tentar não comandar a vida de ninguém.Só apreciar o sol e seu bumbum empinadinho
Enquanto desliza a água nas plantasDa frente da casa de seus pais
Na maior delicadeza e amor que me emprestara.
André FerrAz é poeta, músico e compositor. Vive no Rio de Janeiro. Publicou dois livros de poemas: Boxe de Poemas e Meridianos.
20
DEmASIADOSuEñO
CACo ISHAK
“lo sientopero es poetano es un rockstar”
dice entretangos lloradosarriba de la escalera
tampoco pinto techosde amarillo o rayuela
un tonto, turistaen nuestro sueño latinoamericano de papas fritasfermentado a 5,2%
y el orto rogandopor más un cigarillono fumado u olvidadocon la rosa en tu vaso
heil heil, carnívoropero soy forastero
no me encantan más lastelenoveleras anarquistasni una ventana del messenger
yo soy poetano soy un rockstar
no me encantan más lastours mundiales de camaen cama y pulsos sangrando
yo soy poetano sé bailar
acá fixo territorioarriba de la escaleraque construí para escapar
de mi sueño latinoamericano to be a rockstar
21
cumPLIcIDADE Em vERSOS SOLTOS
CACo ISHAK
prometi não escrever uma linhapalavra que fosse sobre a gente
que este seja apenas o primeiroposto que passa o que não acaba
então, que dure
até um novo poema embrulhado
se acabou numa traição(autotraição, autoboicote)recomeça-se tudo outra vez
agora, sim, eu seinada mais é necessário
(das expectativas que tive até hoje prefiro a de quem já não se enganae bota a ansiedade pra dormir)
a dor de memorandos e etiquetas eesgrimas e contas pagas e teu coraçãonuma forquilha que eu julgava nossa
essa dor não vale a tranquilidade de uma página virada atrás da outra e a seguinte não vale cada ponto final dum parágrafo
sou o que já não quer mais representar o anti-herói na orelha de best-seller que sejamuito menos duma série na tevê
então, que dure
e durma e acorde semsonhos ou pontas de facas senãoentre o dormir e o acordar
simplesmente carregando o abandono cotidiano nas costas
no colo
então, que dure
como um poema em versos soltos na cumplicidade de sempre reescritos
22
SPOTLESS
CACo ISHAK
o segundo passo é sempre o mais custoso é sempre um susto que arrasta o primeiro
às vezes, nos joga pra trás às vezes, nos leva ao terceiro
e mesmo quando já não sobram solas e até os calos ficaram pelo caminho
às vezes, é sempre um susto sempre o custo de a cada segundo
ressincronizar
pra que um descompasso não bifurque as pegadas que deixamos faz pouco
junto às lembranças que o rastro das nossas caldas
tratou de apagar
23
NOw
CACo ISHAK
lambo privadas como quem lambe o amordegusto rezando a areia dos gatos
gargarejo a água suja dos papéis que assumimos
a camisa que visto é unissexas calças, os sapatos, tudo unissex
até as cuecas ela usa e, portanto, unissex
virginia woolf e eu uivávamos juntosera eu quem escrevia a revolução com pagu
quem embarcou no trem com donatella
respeitem meu século vinte
não estou atrás de uma costelanem a frente, por cima ou abaixotodo enroscado num rabo de saia
a guerra está vencidae agora é catequizar
a parte chata da brincadeira
opção a)minha mulher só quer andar na rua
com seu shortinho apertado e suas coxas grossas que eu adoro e todos podem
adorar desde que num silêncio ritualístico
opção b)minha mulher só quer sair com as amigas
e não ser estuprada pela vadia que está sendoao pintar as papas da língua de vermelho e humilhar com seu contra-falo intelectual
opção c)minha mulher não é minha
que a guerra cesse, portanto, também na camaque a cama passe, portanto, também a jogral
mas, querida, abre o champagne‘cause boys also wanna have fun
24
mANuAL DE SObREvIvêNcIA DOS
DESAfOgADOS
CACo ISHAK
o passo é sempre em falsonem por isso pretende-se menos seguro
~
aprendi a amar na redeoscilo vícios de conexão
~
o que eu digo não importa tanto assim
let me sneeze
e assoar o narizna barra da calçada
~
não se doam maiscomo se doíam antes
~
se encaixaquebra cabeça
CACo ISHAK é jornalista e tradutor literário. Nasceu em 1981, em Goiânia, embora tenha sido criado em Belém. Teve textos publicados em sites e revistas literárias como Modo de Usar & Co., Poesia Sempre, Paralelos, Cronópios, Musa Rara, Ornitorrinco, Machado, Rosa, entre outros; e nos projetos Blooks: Letras na Rede, Ruído e Literatura, Orquestra Literária e Na Tábua. Pela 7Letras, publicou Dos versos fandangos ou a má reputação de um estulto em polvorosa (2006) e Não precisa dizer eu também (2013), cujos poemas estão sendo traduzidos para o inglês e o alemão. Ainda em 2014, lançará seu primeiro romance, Eu, Cowboy. www.ciaocretini.org
25
POESIA INSTANTâNEA
ClAudIA SCHroeder
Quando uma palavra inspiraeu espirro um montão de outras
para fazer companhia.
26
vERDADE
ClAudIA SCHroeder
Vou ter que resolver esta históriado sexo.
Que o sexo é frágilou é feio
ou é automáticoou não é.
Que o sexo só é bonitoquando sacanagens não são ditas
e que tem que ser com penetraçãopara ser consumado
(os telessexos são mais sexuaisdo que muitos casais).
27
ELA
ClAudIA SCHroeder
A tristeza tem lá os seus benefícios:me faz não sorrir em vão
não deixa eu gargalhar altoe ninguém vem te pedir ajuda.Você pode pedir receitas azuis
para calmantes proibidospelas farmácias hipócritas.
Dá pra lembrar dos amores quebradospra alimentar os sentidos já negros
dá pra deitar na penumbrafechar a portapassar a chave
não atender o telefoneo interfone
o chamado para jantar à mesa.Dá pra ver um filme ruim
e chorar feito um lobona lua cheia.
Dá pra ficar feiadá pra ficar suja
e sem escovar os dentespor eternidades.
Dá pra emagrecereconomizar na pizza
e se endividar no vinho.
É.A tristeza tem lá
os seus.
28
fILhO
ClAudIA SCHroeder
Nunca fui nadanem ninguém.Era seca e oca
não sabianão criava
não alimentavanão sentia.
Tinha pedras no peitouma rispidez no jeitouma alma sem graça.
Não tinha conhecimentode que dentro
me havia um espaço intactoe virgem
reservado em teu nome.Antes
antes, nada.Depois de você
um tudo que metransborda.
29
PEquENAmORTE
ClAudIA SCHroeder
Quando morro um poucofalho
me escureço na íntegrae o mundo se desintegra inteiro
e rápido.A alma negra
envolta em pensamentos ruinsquestiona o tempo
o ventoeu mesma.
Perdoe a falha.Depois eu volto.
30
SORRy
ClAudIA SCHroeder
Não decido sentirnão decido.
Sentir é contra a minha vontadede não.
Não decido teus sentiresnem os meus.
O cheiro vem e eu sintoa fome chega e eu percebo
o amor morre e eu pressinto.O gosto amargo na boca
vem mesmo depois do doce.A dor no peito pós-quebra-de-prato
é dura e invencível.O frio na alma
atordoa o fato de seguirmos vivosinsistindoem sentir.
Não decido não sentirnão decido.
31
chAPéu
ClAudIA SCHroeder
Meu poema sobreviveno céu
de estrelas própriasnos meus fios brancos
de vivênciastantas
se esconde pelas mechasque o vento mal alcança
que o sol não consegue queimare que o sereno molha
quando anoitece o meu pesar.
Meu poema se escondeonde vive
o meu pensar.
32
A mINhA IDADEX
A SuA
ClAudIA SCHroeder
Queria poder segurar os anosnão deixá-los somar à idade
para ter uma coluna forte e eretamúsculos mais rijosnos dois braços finos
ossos das pernassem a ameaçada osteoporose
a memória mais plenao olhar sem astigmatismos
que me tiram o focoos passos bem rápidos
as mãos mais ágeise macias.
Tudo para que vocêmeu filho
tivesse mais de mimtodos os dias.
33
A POESIAquE mE vEm
ClAudIA SCHroeder
Não nego mais a poesiaque me vem.
Ela é insistente, sempre está me batendo às portas:se cerro a da frente, ela bate nos fundos
se ignoro os fundos, ela fica à espreita nas janelasaguardando
que eu abra uma fresta para o meu gato sair.E entra.
Então não nego mais a poesiaque vem.
Ela traz versos ruins e eu apenas deposito no papele os guardo no fundo de um armário
feito presente dado pela tia-avóque nunca sabe os nossos gostos
e prazeres.
A poesia que me vemnão fica sabendo se foi lida
publicadalapidada
ou amassada.Nem tem ideia se ficou amarelecida
e corroída às traças num papel qualquerou se perdeu-se num lixo eletrônico
de um computador velho.
A poesia quando me vempassa a ser minha e não mais dela
e se sai da gaveta ou da telajá é do outro
e se para nas livrariaspode passar a ser de uma multidão,
é fato.
Então não nego mais a poesiaque me vem.
Abdico da preguiça de anotar tanto versoque me parece ruim
e me aliviotiro o peso da culpa de pensar:
não anotei a poesia ruim que me veio.E se ela fosse boa?
34
AuSêNcIA
ClAudIA SCHroeder
Eu chego a ficar curvaantes da idade.
Chego a ficar tristeantes da morte.
Chego a ficar mortaantes da oração.
E entãonão chego
mais.
ClAudIA SCHroeder é publicitária e poetisa. Nasceu em Santo Ângelo, em 1973. Aos 14 anos, publicou seu primeiro livro de poemas e pequenos contos, e aos 17 anos, lançou o livro Elevador Panorâmico. Foi classificada no Prêmio Off Flip de Literatura. Em 2010, lançou o livro Leia-me Toda que ficou em terceiro lugar no Prêmio Biblioteca Nacional 2011. Um de seus poemas fez parte de uma antologia de poesia de língua portuguesa com o tema da gastronomia (A Poesia é para Comer), junto a nomes como Hilda Hilst, Ferreira Gullar e Chico Buarque. Também é diretora de criação e revela que ainda vai publicar livros infantis para o seu filho ler.
35
SONETO DE APRESENTAÇÃO
dAnIel SeIdl
Quem quer que eu seja que não seie o que quer que eu tenha sido
e o que eu ainda não sereie aonde quer que eu tenha ido
e como quer que eu tenha vindoeu algum dia lembrarei
quando tiver já esquecidoque nunca sou quem saberei.
Quem quer que eu seja eu nunca rioe normalmente estou caladonos retratos que são meus.
Eu sou a fumaça do navio.Eu sou um anjo mutilado.Eu sou a lágrima de Deus.
36
AuTORRETRATO
dAnIel SeIdl
O meu rosto não tem definição.Às vezes sou fumaça de cano de descarga
outras vezes sou dissimulação.Meu rosto é neutro, oco e sem função.
Sou pigarrobarro
sou fumaça de cigarroeu sou a garrafa espatifada contra o chão.
37
TáXI
dAnIel SeIdl
Bate um taxímetro em meu peitoque aumenta
a todo instanteo custo do meu itinerário.
Entre o ponto de partidae o de chegada
empobreçoimóvel
passageiro.
38
humORES
dAnIel SeIdl
Há dias em que sou o homem-festa.Há dias em que sou o homem-cemitério.
Há diasainda
em que sou o homem-festa-no-cemitérioa mão imóvel com a gilete
a meio caminhoentre o pulso
e a barba.
39
EgO
dAnIel SeIdl
Metade do tempo não somos ninguém
ou melhorsomos o que nos convém ser.
A outra metadenão somos também
ou melhorsomos quando ninguém nos vê ser.
40
AmOR-PRóPRIO
dAnIel SeIdl
Ardilosamenteme seduzo
e sem nenhuma resistênciaeu faço amor comigo.
Depois acendo um cigarroe onipotente
sozinhoclichê
pergunto se foi bom pra mim.
41
A gATA
dAnIel SeIdl
A gataarrasta-se lânguida
pelos cantos da casadeitando-se de barriga para cima
e rolando de um lado para o outro.A gata ronrona de leveesfregando o pescoço
lentamentenas quinas dos móveis.
A gata atravessa o jardimsem pressarebolando
fêmea.
Olhando a gatapenso se o seu pequeno útero felino
seria capazde gerar um filho meu.
42
gêNERO
dAnIel SeIdl
Depois de foder a mulher amadaao homem não resta muito:
uma sombra na paredeuma poeira no chão
uma vertigem.Depois de foder a mulher amada
o homem é sempre menosdo que era.
A mulherdepois de fodida pelo homem que a ama
engenha idiomasfabrica ventanias
reinventa o calendário.Depois de fodida pelo homem que a ama
a mulher é sempre um instanteà frente
e um tantoalém.
O que Deus sussurraà mulher depois de fodida pelo homem que a ama
homem nenhumnunca
vai saber.
43
EPIfANIA
dAnIel SeIdl
Que de súbitoum trovão de sol
um sonho, uma ressacauma bala perdidaacerte em cheio
minha vidae me traga
— se não uma resposta —ao menos a esperança de haver uma saída.
44
bANguE
dAnIel SeIdl
O vento da madrugadaexplode em meus ouvidos
feito um grito
feito a urgência que me arde quando deitofeito o susto de saber-me deste jeitofeito o pânico de meu álibi desfeito.
A luz da manhãexplode em meu rosto
feito um tiro.
45
bONANÇA
dAnIel SeIdl
Minha boca é um cemitério de navios.Meus olhos capitulam em tempestades.
Não há descobrimento que mude a geografia do meu rosto.
Com uma âncora no bolsoe um arpão atravessado no peito
naufrago.
46
NÃO mORTO,mAS DORmINDO
dAnIel SeIdl
Eu não guardo agenda com endereços de amigose ninguém sabe o meu nome para fazer-me de inimigo
mas serei achado mesmo assim.Não sou remetente nem destinatário
e nunca fui recenseadoe minha carteira de identidade está vencida há muito
tempomas eles hão de me encontrar.Não tenho a imagem registrada
no circuito interno de câmeras de bancosnem em fotografias de viagensnem nos arquivos da políciamas mesmo assim eles virão.
E do lado de dentro de uma porta trancadasem campainha ou maçaneta
é assim que me verão:não morto
mas dormindoum punhado de centavos num bolso
e uma caneta sem tinta no outroa televisão ligada
o fio do telefone arrancado.E é assim que eles me enterrarão:
imóvel e em silêncionão morto
mas dormindo.E quando abrir os olhos
eu não reclamarei.
dAnIel SeIdl é jornalista na teoria, produtor editorial na prática e escreve poemas desde 1993, mesmo ano em que descobriu Tom Waits, a quem continua ouvindo obsessivamente. Seu livro preferido é Memórias de um gigolô, de Marcos Rey, e ele acha o cineasta François Truffaut o maior poeta de todos os tempos.
47
O hOmEmAO NADA
delFIn
No mundo das mentirasO duro não é ser honesto
Mas, sim, dissimularE fingir que a própria dorNão é mais que passageiraComo se qualquer cataflan
Pudesse fazer ela sumir.
Algum som muito altoEstouraria os tímpanos
Mas talvez somente assimÉ que se possa vencerAs palavras que usam
E manipulam de tal formaQue, no limite, é o desprezo.
Cada volta dos ponteirosÉ um número a se somarNa conta dos meus dias
A esperar a sua voltaQue só vai acontecer
Quando eu não esperarE quando eu for necessário.
48
PESADELO
delFIn
A morte tem várias facesE age de várias formas
A morte é pacienteE nunca se conformaA morte nunca desiste
E parece um ser humanoA morte tem face alva
E um pensamento insanoA morte é desafiadoraE nos convida a jogarA morte é muito bela
E assim vem nos matar
Desse modo,A morte veio me verSaindo de seu covil
Eu estava sem esperançaE ela tinha seu ardil
A morte se fez de vidaE me deu sua mão friaA morte me fez alegre
E então me deu o senãoAtingindo o que eu acreditoSem que eu duvidasse dela
A morte, assim, me tornou escravo preso em sua cela.
49
EvERLASTINg
delFIn
Uma das escadas circularesToma o velho pelas mãos
O que seria?O velho desceE o chão cede
Espaço para seus pésO velho suspira aliviado
E a velha mira vesgaUm pote de beijos
Guardados com as compotasTempera o armário
O velho olha a velhaComo ela ficou tão feia?
O balanço vemE foi
A rapidez é o sinal dos temposA velha voa
Mas não existe estiloO chão aberto luta
Contra o céu fechadoA resposta é direta
De direitaMas o velho beija o lustreE, se há alguma moral,
É a de que o trem vence a nau.
50
AS ESPERANÇAS
delFIn
Catala, catalaE a dança continua
Catala, catalaE a doença se espalha
Vola, volaE estes estúpidos vermes
Afrouxam as gravatasSentando no meio-fio
Os famas corremE não param para olhar
Catala, catalaOlhando para a frente, sempre
Mas de longeComo distinguir
Os famas e os cronópiosdisfarçados?
Olhando tudo,As esperanças se preparam
Para amar os cronópiosE casar com um rico
(cronópio nunca cronópio)
51
DE gRÃOEm gRÃO
delFIn
Eu conheço vinte irmãosTodos gêmeos entre si
De destino triste ou incerto.E vão todos morrer um dia,
Afogados ou queimados.
Mas ninguém vai chorar por eles.Ao contrário, vão culpá-los
Pelos males da humanidade.
Mas que culpa eles têm?Vivem cegos e lacrados
Em seu mundinho isoladoE, como diz a Bíblia,
As pragas só se espalhamSe romperem os lacres.
Quando a vida os liberta,O que se há de fazer?
Uns se divertem com eles,Outros se aconselhamE a maioria nem liga.
Mas, sempre que eles morrem,Deixam suas marcas.
Um dia os assassinos serão mortosPois não importa quantos morram
Sempre surgem outros vinteProntos a lhes vingar.
52
fImDO muNDO
DO fIm
delFIn
Aqui é o fim do mundoAqui é o fim da esperança
Todos acreditaramEnquanto só eu sabia
Que os padres fugiriamE os guardas correriam
E que todos veriam o céuE a terra
E o fim do mundo
E no final não há guerrasNem paz
E no final não há menosNem mais
Mas com ela à minha frenteCorrendo arrependida
O que meus braços dirão?
delFIn tem volumes e mais volumes de poesias e letras de música. Um dia ele teve parceiros e, juntos, compuseram mais de cem canções. A maioria nunca verá a luz do dia, pois não há mais amizade envolvida. Ainda assim, a poesia vive dentro dele. Apenas decidiu manifestá-las na vida e não mais nas palavras. Um dia tudo isso verá a luz do dia. Antes que chegue o fim do mundo do fim. www.studiodelrey.com.br
53
POEmAPAgÃO
demétrIo PAnArotto
Ipoema coitocasto coitado
castigadofoi só aí que
percebeu que algo escorria
nas suas suadaspernas carregar a cruz menstruado
imprimia outro tipo de relação com o corpo com a cruz com o
espaçomaria enxugou as
lágrimas josé enxugou os
poemas
54
IIpoema coitocasto carpe
carpidoas carpideiras ainda choram
trevas trava línguas e os poetas seguem carpindo
boceta na Getúlio o poema não é sujo o poema não é sujo o poema não é sujo a
ladainha do rosário serepete se repete se
repete e as bandeirinhas tremulam nas
mãos cheias de rugas rusgas rezas
IIIpoema carma
carmim carmémcarmina
corpo cuspidonão há refrão
pestaneja pregarefrão é penitência e o
dardo atravessa a folha rasga
rocha racha e dafne corre paranão ser coitada
refresco poesia no cunilíngue dosoutros é gozogasta gosta e
regozijacoito cuspe cupido
55
IVpoema ciranda
cama coma comido
cantigas antescrivadas cravadas
ocre duas vezes ocreárvore seca
sertão chuva e tudo floresce e os pássaros cantam
cortejam se acasalamorfeu e exu ali ali
ali bem depoisde onde tu enxerga
ali
Vpoema corvocurva curral
curvadokamiquase
carcaça de um animal currado carcomido
cortiço cortiçavinho tinto secono ser tão seca a gruta umedece e
do alto ocarcará observa
voa tambémplana se diverte
observa tudosim observa
56
VIpoema cabaça corpo cafuné
cafundóatrás da moita
monta e corcoveiabicho carpado
salto carpinteiro quer bater palmas e
não conseguecoordenação negada
trama rima e chora no finalsoluça soluça
soluça quer pedir música soluça
VIIpoema cava
ciúmes cumesconversas
quer um broto de alfafa brotoeja
brota bruta pelechafurda na lamalema limo nadagurgumilho a
sinopse entrega o filme fausto
gravata eterno e ele deixa o
set sinestésicosilvícola sertão silvo
57
VIIIpoema cravo
cravado cruzescredos
de tudo encardidomendigo mandingalenga lenga lengade novo não temsopa sapo sopapo
mas tem mexilhõesrasgados no vinhobranco seco ignoto
ignoro champagne as taças fazem timtim e tim tim
faz hergéhergé
IXpoema cabruncocaatinga cafuso
cabideirodependurado que
nem charquecarne de sol de
ponta cabeça e osumo supra suga segue a correr pelaspelos suas
pernas biscoito fino umbigo
pescoço boca e alíngua longe o
sente sumo vísceras viscoso
58
Xpoema cabeçalhocabeceira cabeça
cabeludoblack power
aquilo que se escondemostra aquilo que se
deixa ver escondevejo vivo o mesmo dia
duas vezes sem medar conta que já é hoje ou amanhã
puxa vidapuxo
puxa vidapuxo de novo e
ela não vemfaz tempo que
não vem
XIpoema cova.
demétrIo PAnArotto é músico, poeta e professor universitário (UFSC). Autor de Mas e isso, um acontecimento (2008) e 15´39” (2010, Editora da Casa); Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (2009, Lumme); Crônica para um defunto, dengo-dengo cartoneiro (2013); mais uns discos, uns filmes e dois filhos, Lorenzo e Antônia.
59
cORTEJO
dIego grAndo
Os nossos tios estão morrendo, meu irmão,num paquepaque de peças de dominó
indo e caindoe isso faz sentido, sinto muito.
Foi só chegar aqui já deu pra verque as traças perdem o apetite (tu também?)
justo nas roupas que não servem mais.E o que dizer então das nossas faces
duplas facesque parecem incompatíveis com as lembranças dos outros?
São dez da manhã, domingo de missa e de agostode lábios com vincos e olhos de lado.Será maior nossa coragem algum dia
que o constrangimentoou acabaremos apenas ovelhas perdidas
cada vez menos perdidas?
Em questão de minutos veremos sorrisose o repetido capítulo dos abraços:
só assim pra todos se encontrarem, dirãoalguns e repetirão nos próximos dias
e sem mágoas, que ao menos teve isso de bom.
60
dIego grAndo (Porto Alegre, 1981) é autor de Sétima do singular (2012) e Desencantado carrossel (2008), ambos publicados pela Não Editora.
E como não haverá mais por queficar nem brigar pelo banco da frenterumaremos para o carro em silêncio
fiéis ao nosso jeitode fazer parte.
É preciso validar o tíquetedescobriremos
por dois e cinquenta(até quatro horas)
e esse fatonão sei se nos deprime
ou diverteou só nos põe a falar do frio que faz
do sonodo gosto ruim do café
da máquina de fazer café ruimdos que bebem com gosto o café da máquina
e de como continuam feiose iguais aqueles caminhos
(nisso teremos toda a cautelade não enumerar responsáveis)
os caminhos sem viço e acostamentoque percorríamos na infância.
A poeira se dissipa(evasivas, balas de goma)
na ressaca do passadoe já estamos no aeroporto
(aqui saem por sete e cinquenta os trinta primeiros minutos).
Quem dirige, quem viajaquem distorce e quem imitaquem nos tira esse abandono
de mais uma despedida?E se não temos respostas
não perguntemosinventemos apenas
a penade um novo penúltimo abraço.
Fico, e de onde fico, seie tu
e sabem a chave e os documentosque tento acomodar nos bolsos
também sabe o tíquete a ser pagono guichê do saguão do terminal um
que se sabe a piso de cera e sabeque naquela cena do aceno
no portão de embarquecontinuaremos os dois pensando
nos tios que nos restam.
61
um POEmA DE ESPERANÇA SEcA
everton BeHenCK
Você já sabeQue irá morrerTalvez em breve
E que seráPraticamente inevitávelUm tanto de dorPrática e física
E tubos nas narinas
Você já sabeQue atrás dos olhosEstá e sempre esteveIrremediavelmente
Só
Você já sabeQue o amor nasceE morre
Pelos mais diversosMotivos
E que geralmenteAs pessoas oferecemO que não possuem
Enquanto exigemO que você não tem
E que até perceberem issoSerão felizes
Você já sabeQue o amorÉ uma intenção
E sabe que issoÉ muito bonito
62
Você sabe que a féFoi feitaPara que você não acrediteCegamente
Nisso tudo que sabe
A natureza criou a féPara garantir que você façaA sua parteAté que chegueCedo ou tarde
Com maisOu menos alegriaAos tubos nas narinas
Você sabeQue algo te move sempre em frente
E é exatamente o mesmoQue move um cãoUma vaca ou uma ave
Mas agradeçaPorque eles não sabem
Já vocêBem
Você sabe
Você sabe que dinheiroCarros, ternos, móveisNão são garantias nenhumaDe humanidade
E se você não sabeDescubra antes que seja tarde
Você já sabeQue não voltaráNinguém que lhe salve
O parto é sempre um atoDe abandono implícito
Viemos a esse mundoCom um propósito bem definido
E nunca voltaremos
Aproveite sua estadaDa melhor forma possível
E não se cobre tanto
Todo mundo sabe o quantoÉ difícil
63
O AmOR NÃO NOS DEvE NADA
everton BeHenCK
O amor não irá nos salvarO amor é forteMas ainda não é força
O amor não supera nadaO amor
Só mostra que existe o outro lado
Para que você salte sozinho
O amor não é o ponto de partidaNem o ponto de chegada
O amor é o caminho
E sobre eleSó anda quem não teme perder de vistaO amor não é um lugar para pedir abrigo
O amor chove do lado de dentro
O amor não é suficientePara que as pernas se movam
Ele é o motivoNão é o motor
O amor é só um acenoQuem corre somos nós
Quem precisa ser forteÉ a carne não o amor
Quem precisa vencer as barreirasSão as mãos no exercício do carinho
São as palavras na dicção da delicadezaO amor não justifica nada
64
O amor é só um ventoMesmo sendo capaz de mover e revirar
O amor não vai soprarEm vão por muito tempo
O amor é muito sutil e muito ingenuo
Quem precisa gritar somos nósPara multiplicar a voz
Nós precisamos dizer através do amorO amor não falará uma palavra
Ele não fará nosso trabalho
Árduo
O amor virá morar conoscoMas somos nós
Com as mãos vaziasQue devemos construir a casa.
O amor não precisa de nós
O amor não nos deve fidelidadeNão nos deve respeito
O amor não nos deve nada
O amor pode ir emboraQuando bem entende
E o amor não prende o amor nos dentesSomos nós
Com nossa pouca imensidãoQue temos de crescer
Nós que só rezamos ao espelhoÉ que devemos ter fé e doação
O amor não é o santoNem a oração.Nem o milagre
O amor só aponta o dedo e pergunta da porta:E agora?
65
Minhas ilusões de amorEssas que hoje se espalham
Na invenção da memória
Essas que estãoPerdidas pela cidade
Na gaveta de alguémEm um papel de presente
Em uma rolha de vinho
Minhas pequenas ilusõesDe amor
E que hojeMe fazem tanta falta
Essas pequenas pedrasDe matéria sutil
Minhas ilusões
Que vem em ecosQue vem escondidas em músicasQue escuto sem querer
Na rua
Minhas ilusõesDesqualificadas pelo clichê
Ao chamar assim
Ilusões
Mas eram minhasE eu as amava
E era tão bom o que faziam comigo
Minhas pequenasIlusões de amor
Espero que um diaSejam encontradas
Por outro poetaAinda garoto
E espero que issoTraga alívio
E quem sabeEle rescreva
Todos os meus poemas
66
O SANATóRIO DA ESPERANÇA
everton BeHenCK
DoutorProcure cura
Para a mulher deitadaEm sua cama
Que muito ela chamaE ninguém responde
E a dor se escondeEm seu travesseiro
Mande remédioDoutor
Que a meninaMesmo desprezada
Luta consigoPara tirar alívioDos olhos aflitos
Ela não sabe doutorQue está doente
E o que senteÉ o sintomaDa sua enfermidade
Seu pensamentoA morde doutor
E ela não podeLutar contra isso
Sem perder litros e litrosDe seu brilho
E ela já brilhou muitoDoutor
Venha acudirQue ela se refugiaNa raiva vazia
E são muitos os perigosNo lugar desconhecido
Onde estaQue a prende
Lhe arranca os dentesE os cílios
Não é bonito de ver doutor
67
Então venhaO mais brevemente
Porque elaJá está perdendo as forças
De tanto lutar com essa outra
De tantos braçosE bocas que falam
E ouvido que inventamE respiram
Não imaginoQue tipo de medicamento
Pode arrancar alguém
De dentro
Sem que esseNão se despedace
Em mil partesFúteis como a tarde
Preciso saber doutor
Se ela sobreviveriaA anestesia
Por favor
Mande remédioPorque é muito sérioQue uma mulher tão linda
Fique fraca e cinza
E que não se perceba maisAquela
Que espera dentro delaComo um pássaro azul
Ela organiza as coisasTentando organizar a si mesma
Mas é como um castelo de areiaVem sempre a onda
Quantas vezes é possívelComeçar tudo do início
Existe remédio para isso?
Quanto sacrifícioTransformar a dor em ofício
Mande quem sabeTratamento
Unguento para seu tormentoMande um remédio
Preciso curá-la
Porque a amoE já não posso mais amá-la
68
Por favorDoutor
Pesquise
Se a medicinaJá entende
Como se faz nascer genteDe gente adulta
Não há luta mais dura
A vida é uma carnificinaE vai devorar a menina
E morrerá nelaEssa mulher
Que nunca nasceu
Quantas vezesEla correu aos olhos
Para ver lá fora
Encontrar quem passaApaixonar um homem
Quantas vezesEla desapareceu
Os olhos e a respiraçãoRespirando escuridão
O rostoDesfigurado
Quanto estrago
Quem já viuAlgo capaz de causar issoA uma pessoa
Não ser capazDe suportar o amor
Não ser capazDe suportar a paz
Onde mais posso encontrarAlivio para ela
69
Traga remédio doutor
Que morrer de amorHá muito não se usa
E enlouquecer é simples
Não é possível viver assimPor tempo indefinido
Não é possível
Se perder pelas coresDe algo invisível
Me perguntoO que acontece com seus olhos
Buracos negrosAbsurdamente sólidos
Sugando tudo com sua gravidadeOlhos negros de verdade
DoutorNão fuja da sua responsabilidade
Mande remédiosUrgentemente
Para um vultoQue arde em febre
Para mantê-la leve
Para que ela desperteSuavemente
E acorde o amor na gente
Mande remédioQue ela merece
Saúde
E se remédio lhe sobrarDoutor
Mande remédio para mim
Everton Behenck
Homenagem ao poetinha e o seu Desespero da Piedade
70
AOS PROTETORES DOS ANImAIS
everton BeHenCK
Vocês não tem penaDesse bicho
Sozinho
Perdido no abismoDa autoconsciência
Atado à presença da morte
Vocês não se comovemCom esse animal
Que sabe somente o suficientePara entender
Que não entende
Como pode um cãoDespertar mais compaixão
Se é o homemQuem mais precisa de amor
Vocês não se compadecemDessa espécie
Que simplesmenteNão consegue
Vocês não percebemQue é preciso
Dedicar todo o carinho
Para tirar o homemDe dentro do bicho
everton BeHenCK nasceu em 1979 em Porto Alegre. É poeta, redator, vocalista e compositor da Casamadre. Duvida da vida mas acredita cegamente na poesia. Em 2010 publicou o livro Os Dentes da Delicadeza pela Não Editora. www.apesardoceu.wordpress.com
71
ALERTA
FlorISvAldo mAttoS
A nenhuma partelevará o caminho.
Não ouves o canto das nuvensnem a pedra tombada a teus pés.
Defines-te em teu enigma.Em busca de outro limite
vagueias na penumbradas inconclusas auroras.
72
A cAbRA
FlorISvAldo mAttoS
Talvez um lírio. Máquina de alvurasonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me torturaguardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditóriosobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos -
teu peito residência da ternuraonde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.
73
cLARO
FlorISvAldo mAttoS
Pelas tardes de fogo homenspedras movem com capacetes
de sombra mergulhadosem ruas de verão e sal.
Nada me diz que as coisasse passam como me dizem
alémda parede de vidro que nos divide
aquémdas algemas de sono que nos unem.
Sou como posso fiela meu projeto mesmo
que de pronto não o achemmeus olhos – anônimosminhas mãos – rachadasmeus lábios – rebeldes
nos espaços burocráticosnas relações de amizade
nos desertos duros da fome.
Liberdade é meu sere tempo. É meu nome.
razão – o meu sobrenome.
74
gALOPEAmARELO
FlorISvAldo mAttoS
Quando ele voltoua moça do portão estava casada
o prefeito era uma cruz e uma placaas aves mudaram de itinerário
como os ônibuso irmão mais moço tomava ópio
para esquecer.
Quando ele voltouo empregado da esquina respondera
a um processoonde perdeu a esperança e os dedos
o pai fuzilara um estudantea mãe fugira com um mascate.
Quando ele partiua primavera galopava nos rosais
os campos de begônia floresciamo gado esturrava nos currais
a terra desafiada vicejava comouma égua na véspera do galope.
Quando ele partiuo alimento dos olhos era verdura
de paisagem além da cercaas goiabas enchiam os cestos
as mulheres voltavam com os meninosos velhos falavam de assombraçãoa lua espreitava o pátio e o quintal.
Quando ele voltouo ministro citava o arquitetocom a pretensão de restauraro tempo à revelia dos relógioso muro substituía o horizonte
autoridades sonolentas distribuíamo passaporte dos homens para o sanatório.
Quando ele voltouas leis se haviam tornado ainda mais fósseis
as oligarquias muito mais poderosasos poderosos mais astutos
o ministro lembrava “a pá sob os escombros”o menino relia as manchetes da guerra
os preconceitos rimavam com a economia.
Quando ele voltouhavia uma encruzilhada e um alto-falante
a moça do portão estava casadao irmão caçula era um soldado velho.
Quando ele partiua primavera galopava nos rosais.
Quando ele voltouO céu era só um galope amarelo.
75
bANhADASDE LágRImAS ESTÃO
AS PEDRAS
FlorISvAldo mAttoS
Ver a força do dia romper, vibrandoEntre um crepúsculo e o outro crepúsculo,Ver surgir da terra um ranger de músculo;
Nada tenho a dizer, estou chorando.
O dia amanhece, quando amanheço,Estático, no espaço da varanda.
Preso a formas e cores, não esqueçoA mão universal que isso comanda.
Afasto da mente a mediocridadeQue navega de um pólo a outro do dia.Cá me defronto com outra realidade,Não tenho hora para a melancolia.
Natureza é tudo, me diz Cézanne.Cá estou para ver, o resto se dane!
“Nós somos um caos irisado.”Paul Cézanne
76
ESTRELASúbITA
FlorISvAldo mAttoS
Nunca te vi dizer-me que me queres.Eu queria te ver tocando flauta,Sem a sabedoria das mulheres,
Na varanda distraída, como incauta.
Na de lusos pensei história antiga,Ao pressentirem ninfas entre arbustos.
Se o vento manda que o perfume as siga,A vibração começa pelos bustos.
Vens de um país de renovadas auras.Como ninfa te portas, se proponho
Mover os muros que entre nós instauras.
Do vento ouço o ruflar de suave escolta.Marinheiro que agora sai de um sonho,Cogito que eras tu que estás de volta.
77
TARDE NA váRzEA cOm chuvA
FlorISvAldo mAttoS
A chuva há de passar. De quando em quando,Um alarido vem pelo ar, fugidio.
Na tarde bruxuleante, além do rio,Teles e Caboclinho estão jogando.
Não posso ver; a chuva me atrapalha.Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.
Avanço a rua. Minha tia ralha(Nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”
Raiva. Bato três vezes na madeira.Será que vai chover a tarde inteira?Digam lá como estão os litigantes.
É agosto, sim, e chove sem parar.Dentro, o menino quer comemorar
Logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.
78
mEmóRIA DE bOI ESfOLADO
FlorISvAldo mAttoS
Soltei o livro. Olhei pela janela,espesso azul e nuvens, e lembrei:
faz setenta anos que morreu Soutinede uma úlcera rompida nas entranhas,
como as do boi esfolado da pintura,um retrato convulso de sua arte.
De novo olho a paisagem; ainda o céude cores baças, sons da rua larga,
prédios e casas, em frente à varanda,sem pasto ou campo, só distantes verdes,
que suplicam o olhar de voz opaca.E eu aqui a pensar em ChaïmSoutinepintando, dia e noite a dentro, pensos
quartos de boi comprados nos açougues.
79
TEmPO bELO
FlorISvAldo mAttoS
Logo, fecho o caixão e fecho o tempodas almas arbitrárias que vivi.
Amante e amado fui e conhecia dor que é de meu tempo passatempo.
Rebenta, alma insensata, o teu passadoe vai por outras dores comezinhas;
segue por tua senda, a que caminhas,rio em que tua margem é o outro lado.
Estás ausente em ti para o meu gesto,simples estado neutro de passar,
de olhar, sentir e perceber funesto
o súbito negar da primavera,mais que breve e raro, cumprimentar
o prazer de passar que a vida era.
80
EvEREST
FlorISvAldo mAttoS
A mulher de gelo suspeitaQue sou um dragão na noite,
Aquele que na cavernaDesconhece o ferro e o bronze.
A mulher de gelo desfazA cabeleira solar.
Voltada para a janela, Ao vidro faz confidências.
A mulher de gelo passeiaO delgado corpo de ausência,Não sabe que a branca nucaMira um revólver de sonhos.
A mulher de gelo confiaEm coisas que sejam mudas.Mas, sendo mulher, não podeMorrer à míngua de excesso.
FlorISvAldo mAttoS é poeta, jornalista e professor aposentado da UFBA. Nasceu em Uruçuca (BA) e reside em Salvador (BA). Exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe de A Tarde, de Salvador, e de chefe da sucursal do Jornal do Brasil, na Bahia. Obras publicadas: Reverdor (1965), Fábula Civil (1975), A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996), Mares Anoitecidos (2000), Galope Amarelo e Outros Poemas (2001), Poesia Reunida e Inéditos (2011) e Sonetos elementais – Uma antologia (2012).
81
Pó NASPáLPEbRAS
Homero gomeS
Luz na janela pingando pontos de pó nas pálpebras,pingando pontos de luz,
enquanto sentado espera o peso do corpo sumir.
O vaso de papoulas ao lado,o cheiro de mofo que sobe dos pés
e a alegria de ainda possuir cigarros.
Se distrai olhando as voltas da fumaça,olha o ar com olhos embaçados de tempo.
Não procura resolver enigmas.Dos seus problemas não espera iluminação.
Fuma o último fumoe espera o ar transparecer.
Da janela, brotam pingos de pó,Mas as pálpebras se fecham.
Enrolado, o pescoço enruga com a pressão.A corda estica e o peso consuma o fim e some.
O tempo cessa.
O pó descansa.
Este poema foi musicado por Bárbara Eugênia para o Reversos, em 2012.
Homero gomeS reside em Curitiba, é escritor. Publicou em 2013 o livro Solidão de Caronte (poemas), pela editora Patuá. Em 2014, publicou o livro de contos Sísifo Desatento, finalista do Prêmio Sesc de Literatura de 2007, pela editora Terracota.
82
LuX INTENEbRIS
JAder BArBoSA
Quando a sublime luz do claro diapartindo se despede vagarosa,
no calmo entardecer que prenunciao repousar da força numinosa.
A mente fraca teme e se angustia,pois crê que a noite densa e rigorosa
tenha findado a chama que luziana vastidão eterna, esplendorosa.
Contudo a mente forte, o ser desperto,que do temor da noite está liberto,
se nega ao insensato padecer.
Pois sabe que naquela imensidão,da noite a mais intensa escuridão
precede o glorioso alvorecer...
83
RETORNO
JAder BArBoSA
Um jovem peregrino caminhavapor entre estradas ermas e sombrias,do firmamento as luzes contemplava
na solidão daquelas noites frias.
Sozinho os pensamentos elevavabuscando reviver antigos dias,
quando a visão humana desvelavada nona esfera as altas harmonias.
E quando, enfim, chegou o grão momentode receber o vigoroso alento,
que os mestres do saber tanto buscaram,
o jovem peregrino retrocede,e à mente universal, sorrindo, pede:
“- Deixai-me ir buscar os que ficaram...”
84
hOmOSSAPIENS
JAder BArBoSA
Tal qual um marinheiro naufragado,quando a brutal tormenta o barco vira,
sozinho na amplidão do mar iradofitando um horizonte negro, expira.
Tal qual um andarilho degredado,que pela selva inóspita se atira,
e quando a noite cai, chorando o fado,por seu perdido lar em vão suspira.
Assim padece o Ser enquanto hibernana triste escuridão da vil caverna,
que a mente lhe criou, padece mudo...
E o homem que não busca libertá-losofrendo segue a dor do grande abalo,
que lhe privou do Ser... de si... de tudo...
85
PONDERAÇõES
JAder BArBoSA
Que vale ter na vida fama e glória,gozar do vulgo aprovação constante,
se o que nos move em nossa trejetóriafor um desejo egóico e degradante?!
Que vale ter escrito a nossa histórianas páginas de um mundo intolerante,
se tanto quanto a vida é transitóriase mostra o ser no proceder errante?!
Que vale consumir os nossos dias satisfazendo as ambições vazias,
e se encolher à noite em mil receios?!
Não há valor algum em tal medida,e o ser humano desperdiça a vidaperdido na ilusão dos seus anseios.
86
quEm DERA
JAder BArBoSA
Quem dera qual Camões ter a grandeza,o brilho excelso de um versar sublime,
para assentar da vida a sutileza,nos tons sutiz que a própria vida exprime.
Quem dera qual Bocage ver acesaa chama da paixão, que ardor imprime,
para cantar dos homens com clarezaas frustrações que só o amor redime.
Quem dera qual Antero - o mestre amado -tivesse o meu pensar tão elevado,
p’ra interrogar os céus e o Ser divino.
Mas sendo a minha lira fraca e rude,de lhe externar os sons penso, ámiude,que seja um gesto vão... um desatino...
87
... SONETO!
JAder BArBoSA
Ó cárcere bendito à vós me rendo,e à vós adentro o culto consagrado!Dos grandes Bardos o labor revendodistinguo o vosso lume imaculado.
Enxergo a néscia turba mal dizendoteu singular rigor qual duro fado,
porém quão mais te aviltam mais entendocomo és sublime... Ó cárcere adorado!
Em vós, doce prisão de poucos versos,cujo esplendor supera os mais diversosdos concebidos pelo engenho humano,
em vós confesso estar minh’ alma presa,nos teus sutiz grilhões contemplo acesa
a chama do versar mais soberano.
88
“OS fINS NuNcA JuSTIfIcAm OS
mEIOS”
JAder BArBoSA
Não justifica a força soberanado pensamento, quando concentrado,
ser dispersada em busca leviana,mesmo que nos agrade o resultado.
Não justifica agir de forma insanatentando se alcançar um bem visado,mesmo que favoreça a raça hamana
os frutos desse agir inadequado.
Não justifica a Luz que nos inspira,se o buscador à nobres fins aspira,
seu brilho ter manchado em devaneios.
Se os fins são revestidos de nobreza,os meios devem ter igual grandeza.
Não justificam Nunca os fins os meios!
(Gary L. Stewart)
89
REfLETINDO SObRE OS POSTuLADOS DE um hOmEm NAScIDO NA áuSTRIA Em 1856
JAder BArBoSA
O ser humano, em suma, é tão somente,assim dizem os “grandes postulados”,
um todo desejos malogrados,de repressões de um cego inconsciente.
A vida é um clamor, quase indecente,forjado em mil complexos. Letrados
afirmam pelos textos embasadosdo “grandioso mestre onisciente”.
E o homem segue triste a tosca vidacom suas frustrações de parricida,
no desejar da vulva genitora.
Mas eu nada sabendo ‘inda acreditoque o ser humano é mais: é o infinito
que abarca em si o que o pensar ignora.
90
íSIS
JAder BArBoSA
Do templo oculto a luz mantenho acesa.A luz da antiga chama que perdurailuminando a senda íngreme e dura,
que leva ao entender da natureza.
Da vida eu guardo a força e a beleza,conheço a lei do fado e da ventura,desfaço a negra sombra que perduraem limitar do Ser toda a grandeza.
E enquanto o pleno despertar esperodo ser humano, ao buscador sincero
concedo as chaves dos portais do céu.
Porém meu fogo eterno ao vil consome,e assim nenhum mortal sabe meu nome,mortal nenhum ergueu meu grosso véu...
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REfLEXO
JAder BArBoSA
“ - Escuta buscador a voz que bradano fundo de teu ser, cresce e se agita,transcenda essa ilusão que te limita
do pensamento a força, e a caminhada.
- Aceita o sacrifício da jornadapara encontrar a luz, que é infinita.
Não temas o porvir, triste alma aflita,a busca há de ser recompensada.”
Assim falou-me a voz de um ser oculto,que revelou-se como um tênue vulto,
no negro espelho visto em noite escura!
Quem era? - meu pensar se questiona -Quem sabe um mestre? Um D’us? Outra Persona?
Quiça meu próprio ser que a luz procura.
JAder BArBoSA nasceu em 1982. Aos oito leu Alma minha gentil que te partiste... de Camões, cuja beleza o impressionou profundamente. Dos doze em diante passou a compor versos, até cruzar com Bocage, aos dezessete, e Antero de Quental, aos dezenove. Estuda métrica, rítmica, escreve sonetos. Aos 24 se inicia nos estudos de misticismo, no que a sua produção adquire certos aspectos. Aos 30 conhece a psicologia profunda de C.G. Jung. Jader Barbosa é autor de Luzes de Outono e Prometeu, ambos a sair.
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mITOLOgIA
KÁtIA BorgeS
Tarde aprendi que não era,nunca fui, poeta.
Meus escritonão atendem aos cânones.
Meus poemasnão se enquadram nas regras.
Bom mesmo é dar a almapor lavada,
assim como Ana Cesar.O resto é adolescência tardiae críticas à falta de rigores
com a métrica.Em São Salvador da Bahia,
valem mais os gregos e troianospara enfeitar, ou enfear, a poesia.Na simplicidade da linguagem
da minha gente,onde Homeros e Ilíadas são piadas, encontro guarida.
Passo a noite repousando a cabeçano colo de Mãe Menininha.
Esta sim, lendária e mítica, minha Helena de Tróia.
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SAmbA
KÁtIA BorgeS
Meu tio mais querido, negro e sabido,tocava violão como ninguém.
E sua morte vive em cada canção que escuto.Não há como ficar indiferente, por exemplo, a este samba.
Sobe mais de mil e oitocentas colinasEm meu coração
E desce na primeira cançãoem inglês
que ouvi no rádio de meu avô.Nos domingos, a rua ficava repleta de sons, o futebol
promovia uma festa de gritos de alegria e xingamentos.E o samba, o samba, sincopava as emoções.
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AbSINTO
KÁtIA BorgeS
Sábado de junhoe aqui, onde me escondo,
a tristeza roça sonhose escombros.
Já nem ouço,se é o Destino que chama,
futuro oco numa bola de cristal.
Abro meus olhos,e o que vejo é quase parte
do que sinto:a noite tristonha
desenha-se como um deserto,onde meninos enjoados
de broa e absintovagam despertos
e prestes ao suicídio.
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muLhER
KÁtIA BorgeS
Há uma mulher chamada nomecujo rosto desconheço.
Sempre que chego, dizem: “oh, elasaiu daqui agora mesmo.
Ah, essa jovem senhorasabe a autora, tece com finos dedos
fios de ouro envelhecido, seus cabelos,manto amarelo. E o universo inteiro cede
a um encantamento que ninguém conseguenominar.
Há uma mulher chamada espelho.
“No teu cabelo negro, brilham estrelas.”Elizabeth Bishop
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um bOm DIAPARA mORRER
KÁtIA BorgeS
Um dia bom para morreré sempre hoje. A alvorada nos engana,
hoje é o dia.
Ir ao bar com alguns amigos,sorrir de qualquer coisa,
recitar, solene, uma poesia.
Nada nos leva até a aurorapela mão. Vamos seguindo,
sós, como vimos, sóis nos dirão.
KÁtIA BorgeS, 46, é jornalista, professora e editora da revista semanal Muito, do jornal A Tarde. Publicou os livros de poesia De volta à caixa de abelhas (2002), Uma Balada para Janis (2010) e Ticket Zen (2011). Na prosa, o livro de contos Escorpião Amarelo (2012). Integrou as coletâneas Sete Cantares de Amigos, Concerto Lírico para 15 vozes, Roteiro da Poesia Brasileira - Anos 2000 e Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia, edição bilíngue.
“Volto pálido para casa...”Drummond
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EvEREST
lAurIndo SAntArrItA
Do negro cisne o ternotriste canto dança
em alvo-gelado cumecomo alto elevado lume
no lusófono parnaso oitocentista.Todo poeta quer assim resista
o seu estro ( sem um negrumeobnublando-o, ou tal qual vagalume
de brilho intermitente); lançá-lo, então, além do verme e
da traça.
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hOmILIA
lAurIndo SAntArrItA
dizes o fiat luxe pela palavra própria
és criado(da palavra)
não que não possasenforma(r) e ar
te livremente
teu próprio estro empregar
(se) da águaveio a vi
da no veio
com soltem sal
só suorna po-ética
pia do verso
outrossimnão
podes negar(a vagem)
tua linguagem(linhagem?)
99
NOvAPASáRgADA
lAurIndo SAntArrItA
Vou-me embora pra Paquetá,pois lá, posso andar de bicicleta,
correr na grama do parque por toda a vida,brincar, um tanto exibida, no barco de pedalar.
Vou-me embora pra Paquetá!É que lá não tem ziquizira,eu curava a minha alergia
com cem mil banhos de mar!
O sol brilhará para sempre,não fica de tarde, nem de noite!
Parar para estudar, nem no açoitee, em casa, a ducha é bem quente.
No almoço, só teria batata frita,ovo, farofa, guaraná e pizza;pra brincar, minha ideia fixa,meus irmãos sem hora restrita
a toda hora, em todo lugar...lá seria meu refúgio perfeito,
não teria dever, só direito,vou-me embora pra Paquetá!
Para Tamara Laurindo
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A TRISTEzADE EuRíDIcE
lAurIndo SAntArrItA
Faltou-me, então a lira destemidapara ao inferno em trevas
juntar-me, eu, pobre poeta menor,à minha Eurídice.
Eurídice sim, ela é a mesma, desde Orfeu, desde sempredesde o sempiterno tempo do mito, incontável,
mas o estro, eu sei, meu estroé menor.
Menor, apropriado ao tempo,(não aquele de Sêneca, ouro fúlgido)
meu tempo de pequenezas desavergonhadase hecatombes shopincenterianas para o nada.
O nada, este Deus cruel camuseanoarregaçando a linha das fronteiras
entre os homens.
Traçando as Tordesilhas do ignoto,do ignoto não, do recusado,
do outro perigoso que não queroem minha mesa (ou lembrança).
Falta-me, então, a lira destemidapara ao inferno em trevas
juntar-me eu, pobre poeta menor,à minha Eurídice.
Não falta nada, que o inferno é o medo,Nietzsche já o sabia, alegremente,
e sabendo disso, dançava lépido sobre pianos.O medo é muito grande.
Eurídice, eu e você ficaremos sozinhos,sozinhos demais, sozinhamente.
Para Flavia Gomes
101
A gORDAmARgOT
lAurIndo SAntArrItA
Nas breves alças da noiteeu galgo
e, célebre, evolo, temerárioem sua nua alma.
Seus olhos clamam porcometimentos terríveis
sobre a seda encardida deste lençol.
Entrego-meabsorto, compassivo,
como um santo.
102
gPS
lAurIndo SAntArrItA
No coletivo, o motorista consulta, pio, inequívoco, a caixinha que, quieta queda,
sobre a direção; e
que ela, então,desvele, quem sabe, um caminho que leve, revele-se,
bem reto ao coração.
103
mARIELRESSuRETO
lAurIndo SAntArrItA
Eu sou Madalena.Eu vi Mariel ressurreto em seu corpo glorioso
com sua filhamanipulando livros e reclamando dos preços
de romances medíocresno odor sepulcral da Livraria Cultura
no Passeio.
Primeiro a divisar sua glória,fui contestado por Anderson,
seu amigo Tomé.Nem o palpar das chagas o convenceram, Supertomé,
incrédulo.
Viveu Mariel, então,mas precisamos impedir sua ascensão
seu Mar da Galileia.Sem Mariel,
aguardando sua volta,profeta ácido dos arrabaldes de Jerusalém,
banido dos fariseus e escribas,indispensável a sua rebelião,
sua eterna repulsa aos vendilhões homiziados no templo.Senão, quando retornará Mariel?
Ou seria, então,um Pentecostes maldito
quando todos, cheios também de vinho docesoltaríamos, de nosso lábios serrados,
virulenta,sua língua de fogo?
lAurIndo SAntArrItA é carioca da Ilha, professor da rede pública, autor de Dinâmicas Paragens, no prelo.
104
luCIAno lAnzIllottI
Preencho ficha no banco.Desejam saber sobre a saúde,
as dívidas,os sonhos.
O homem de terno digita sem parar.A roupa com vinco parece ter sido comprada ontem.
Sei que por detrás da aparente calmahá alguém que curte música, praia, cinema
e desejaria não estar ali.
Assino tudo e volto para casa.A saúde,a vida
e os sonhos devassados.Mas a poesia
íntegra e a plenos pulmões.
105
luCIAno lAnzIllottI
Esse silêncioque se aproxima de mim,nessa quinta feira de maio
em redemoinho.Não o conheço
e tento examiná-lo,como se disso dependesse
a existência.
Sei que certas vezesele recai sobre mim.
Procuro respostas,tenho perguntas?
E talvezbrote daí esse silêncio
cercado de arames farpadose espinhos:
por onde tento seguir,algo de mim permanece preso.
Um braço uma perna.Embora a manhã se dê ao ensolarado,
tenha título, casa e conta bancária.Esse silêncio surge como sinal de alerta
de que nada está pronto:é preciso cavar ainda.
106
luCIAno lAnzIllottI
Nada a contar, a não ser o resto de fruta dentro da xícara.
O inverno começa com calor,mosquitos,
barba por fazer.
A cidade se movimentacomo sequer existisse:
são pessoas, cães e bicicletas em passo acelerado de silêncio.
Fico para trás,por um tipo de aproximação
só possível na distância.
Há egos,imortais,
banqueirose caixeiros viajantes:
todos vão rumo ao mesmo fim,mas quem dá por isso?
107
luCIAno lAnzIllottI
Ledo engano achar que me importo com tua conta corrente
com teu carro do anoou aquela viagem por lugares distantes.
Quero um milhão de vezes maisdo que tudo isso.
Quero infindáveis galáxias,marés
eventos.
108
ELEgIASubuRbANA
luCIAno lAnzIllottI
Caminhocom os pulmões repletos de monóxido de carbono.
Carros importados tomam conta da paisagem:japoneses, chineses, americanos.
Cercas elétricas, câmeras, barricadas.Há algum lugar
onde ler e ser feliz por aqui?
109
luCIAno lAnzIllottI
Desapego livros.Carrego históriasinteiras na retina.
Máquina sem molasou chips,
recordo aquele diaaquele texto,aquela rima,
tal qual o conto de Borges.Reverbera
a lembrança do jamais conhecido,a experiência do impossível
e do não-vividoque permanece em mim
como um órgãoque teima em não aparecer
naquela tomografia computadorizada.
110
luCIAno lAnzIllottI
Acordei mudo.E o mundo
verborragicamente barulhento.
Então,envergueia cabeça,
como os girassóis no inverno.Até que algum sol
possa derreter a neve,que não é do tempo,
é da vida.
111
luCIAno lAnzIllottI
Alívio, fim de amor:Dois saquinhos de chá na mesinha da cozinha,
tudo acabou.
112
luCIAno lAnzIllottI
Os sonhos antigos se fecharam em um ciclo,
onde sequer se lembram de mim.País do nunca mais,
do volto logo,do até breve,
do quem sabe um dia.Mas, frase feita,
tudo passa.Inclusive a borboleta amarela
que insiste em pousar nesse girassol de plástico.
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LIÇõES DAcONTRAcORRENTE
luCIAno lAnzIllottI
Caminho ao ladode pessoas com fome,
sem casa ou título.
Lutampelo pão de cada dia,
pelo remédio caro da farmácia,por um lugar no chão.
Nada sabem sobre ti, Walt Whitman. Nem de tuas armas e escravos, Arthur Rimbaud.
E atravessam a rua como se houvessealgum tesouroali na esquina.
luCIAno lAnzIllottI é professor da rede pública, mestre e doutor em Letras pela UFRJ com pesquisas sobre as poéticas de Manuel Bandeira e Ruy Espinheira Filho.
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JOgOSDE AzAR
mArCelo SAndmAn
“What a wonderful world!”(de Bob Thiele & George David Weiss,
na voz de Louis Armstrong, é claro)
1.MOLOTOV
Arremessou o artefatocontra o ônibus
lotado.
Juntou-se, em seguida, aos demais.
“Façam suas apostas”.
2.LUz,
CÂMERA... AçãO!
(depois é confiarno editor)
Sim, certeira,a bala de borracha,no olho da repórter.
Certeira,no olho da repórter,
a bala de borracha, sim.
No olho, sim, certeira,da repórter, a bala
de borracha.
De borracha, sim,certeira, no olho, a bala,
da repórter.
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3.ESCRAVOS
DE JÓUni, duni, tê,
salamê minguê,
três mindingo colorê,o escolhido foi...?
4.NO PONTO
ERRADOQuem são os pais
dessa menina?
(Cadê os paisdessa menina?)
É isso essa menina?
Cadê?
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mArCelo SAndmAn nasceu em Curitiba, em 1963. É professor de literatura portuguesa na UFPR, compositor e poeta. Publicou os livros de poesia Lírico Renitente (2000), Criptógrafo Amador (2006), Na Franja dos Dias (2012) e A Fio (2014). Lançou os CDs Cantos da Palavra (1998), em parceria com Benito Rodriguez e interpretações de Silvia Contursi; No Silêncio da Canção (2014), junto com o grupo ziriGdansk, com quem vem colaborando nos últimos anos; e Conselho do Bom (2014), em parceria com Cláudio Menandro e Benito Rodriguez.
5.PEGA, MATA
E COME (o primeiro
alexandrino a gente nunca
esquece)Um jeito
cheio de trejeitosao caminhar.
Um certo requebro,quem sabe ostensivo,
ou se instintivo,
quem sabe o quê?
Um modo de dizera que se veio
ou não se veio, enfim.
Foi-o-bas-tan-te-pras-qua-ren-tae-três-fa-ca-das.
6.DIRETO AO ASSUNTO
Aqui é sempre conversa franca.
Aqui ninguém enrola:é curto e grosso.
Aqui a gente joga gasolina
e taca fogo.
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TODA mATéRIA é LEvE quANDO DITA
LEvEmENTE
mÁrCIo-André
poderia ter nascido em cada cidade do mundo com uma roupa diferente em uma casa diferentee poderia ter tido os mesmos amigos com outros nomese falar tudo outra vez em diferentes línguaspara chegar àquele mesmo instante vindo de distintas trajetórias: há tantosinfinitos dentro do infinitoe tantos nomes para a infinita possibilidade de ser quem se éque o infinito não se reduz a semântica de infinito: num café de cada cidade o mesmo grupo de genterepetindo-se em outras caras cumprindo os mesmos gestos diante das mesmas piadas:por mais distantes ou alheios os lugares permanecem lá à esperado jeito que sempre foram na nervura luminosa da noitesuportando em si a mecânica de se vivê-los
sair de casa sem o idioma e voltar ao mundo pelo caminho mais curtosair da cidade e sair do nome à espera que da ausência de antônimos surja uma qualquer semântica de afetos selvagenstoda fronteira é mais verbal que física:no perímetro da língua todo um contorno de corpoe os pensamentos só existem enquanto pensados na erosão do limite da expectativa do som pelo mínimo dialeto das máquinas:serão as máquinas nossa única herança as únicas que nos rangerão versos de amor até o fimcom sua devoção aos mantras tentarão compor obra maior que a vida sem entender que a única tarefa razoável do poeta é noticiar o fim do mundo
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esquecer a própria língua e assimilar todas as outraspara encontrar no mal falar destas a pronúncia exata daquela para chegar ao idioma máximo somatório de todo o intraduzívelno confronto das discrepâncias uma palavra que é a mesma em tantas línguas inventa aquela que não está em nenhuma:foi preciso seguir o português de trás para frente no caminho inverso até sua origemme apaixonar mais por fonemas que por gente descobrir que a língua está mais nos palavrões que nas gramáticas:e agora da raiz de toda deslembrança buscar pela fala sem origem de um idioma sem origem para viver fora de qualquer lugar como as vezes a vida parece vivida fora de nós:porque a história de nossa língua é a história dos nossos amores e entre eles e o esquecimento das palavras praticamos o sotaque dos banguelas
um homem fala diariamente ao cãoo cão compreende até onde o afeto permite –o homem se humaniza com o que há de humano no não compreender dos cães como se preexistisse animal no fim do animalou fosse canto de outro canto no anti-dizer do latidoainda perto de onde estamos quando somos o outro no oráculo dos afetos:as cidades não estão somente no espaço estão no tempo e nós no tempo delas aprendendo sobre o mal:no limite do pátio o cão mija num limoeiro douradofazendo celeste o seu entender de onde começa o cão de onde acaba o homem
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como a transparência na água o esquecimento carne do que não se vê fazendo cintilar o que oculta –o que foi esquecido volta para fora do tempo:mas é difícil esquecer quando há tanto por lembrar compras no guanabara jantares no habbib’s seu biquíni azul contra o azul do azulejo da piscina a bicicleta abandonada na mudança do antigo apartamento:temos em nós um templo onde habita toda ausênciae amamos as pequenas paixões para amansar essa paixão enorme para voltarmos a viver na casa que deixamos:hoje eu sei o que você sempre soube que tudo pode ser justificado e engrandecido sem méritos que nascer é colocar o nada ao avesso que o amor dura mais que os amantese ainda assim eu poderia hoje ter dito fomos o princípio e o fim de uma vida dentro da vida imensa:fomos sobretudo um lugar estranho no mundo integrais no poema incompletos na totalidade dos dias
mulheres de cabelo curto diante da multidão malévolas como o destino pelo que sua essência têm de nebuloso em nossa existência:mentimos o amor para que se torne real ao retirar da ficção o que há de verdade:mulheres de cabelo curto permeiam o pensamento como as moscas sarram nas vacaso jeito de fazer o ar parar a volta delas de equilibrar o queixo sobre a linha do horizonteafagando a faca de meia face dessa lua inox com a arquitetura dos próprios filamentosem que a complexidade da nuca tem igual simetria a singularidade do ocaso:essa mania abominável de serem únicas ao extraírem do múltiplo a singularidade que faz um ser tão único que somente este pode ser este:não é possível aplacar a paixão por mulheres de cabelo curto ao existirem fora do pensamento e como erva e como mulheres e com o cabelo curto
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filha não sei quem é seu pai:naquela noite era um estrangeiro e os estrangeiros não têm nome viajam do esquecimento para dentro e sóquando tento recordá-lo vejo estes seus olhose em seus olhos vejo todos que por um dia amei todos aqueles rapazes em seu cabelo e coração:filha naquela noite partimos sem nos despedir ali não sei onde sobre o pacífico entre hemisférios onde você foi feita filha e eu ilha da filha:todas as ruas já têm nomeé preciso mudar de país para percorrê-las a primeira vezeu percorri você muitas vezes minha filha até encontrá-lavocê é o fruto mais sincero do meu amor por você poesia de partidas na simetria dos acidentes
ao estar aqui não desejo estar noutro lugar a isso chamam felicidade:num sebo em budapeste aprendi que fumar é o mais extraordinário dos atos humanos até o ministério da saúde adverte:a alma-flor do fumante pelos dedos fumar e ser felize invejo cada fumante e livreiro que reconhece no vagabundo o anjo que busca em si mesmo:mas apesar de toda poesia contida no tabaco seguimos firmes sem elanascemos para dominar o mundo com delicadeza mas fomos educados a matar qualquer inseto que nos suba pelo braço:nenhuma piedade para os que partiram só de ida estar vivo é a forma mais banal de estar no mundo e corremos por ele como topônimos de nós mesmos:tantas vezes dormindo na beira dos rios em casas de desconhecidos que o mundo ficou simpleshá algo de galáxia e estrela nas teias de aranha nas capitais formadas de dentro para fora até a extremidade de cada habitanteas cidades que nos contém contidas no mapa de todos os subúrbios
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biblioteca – prisão de livros por tornar o próprio livro presídiomuseu – prisão de coisas por nos aprisionar fora delas:que livros e coisas estejam ao ar livre que sejam roubados destruídos queimados– nada que não possa ser queimado vale durar: a revolução não existe as coisas já são revoltas em si mesmasbasta acioná-las em sua revolta tanger o coração-coisa ali onde repousa no próprio azeite:não a revolução dos acadêmicos com facebook seus likes revoltados acomodados no pensamento dos que pensaram antes:é preciso intervir em toda forma de tempo é preciso outra taxonomia para o destino dos homens não submetida ao medo dos homensno que a vida cumpre dos búzios cumpramos da fúria:é preciso sim esse aparato da ira para afastar-se perante uma ida que será antes um retornobuscar em novas frases a explicação do óbvio:o livro é somente uma coisa que guarda a chance de ser aberto
mÁrCIo-André é escritor, performer, artista visual e sonoro, nascido no Rio de Janeiro em 1978. Seus poemas foram traduzidos para mais de dez idiomas, aparecendo em publicações como Neue Rundschau (Alemanha), Rattapallax (EUA), Action Poétique (França), Poesia Sempre (Brasil), Tuli & Savu (Finlandia), Avocado (Reino Unido), Ambrozia (Hungria) e Téchne (Itália). Sua poesia também inspirou o curta-metragem The Gospel According to the sea e uma peça coral de Jean-Pierre Caron. Escreveu sobre poesia em veículos como O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de Minas e El País. Atualmente vive na Espanha.
mudar de país já não faz diferençaos feriados são os mesmos com datas distintasos sotaques são os mesmos para outros ouvidos a burocracia é a mesma com outros nomes para os papéis:se pudéssemos morrer somente uma parte – essa que é infeliz –seria sim possível partir de um lugar a outro como se fosse mera questão de deslocamento espacialmas é preciso levar todos os deuses dentro de si ante o trânsito das horas:o que demarca as etapas da vida são as mudanças do numero de telefone e delas herdamos apenas as infinitas possibilidades de uma chamada por engano:nenhum lugar cabe totalmente em nós com suas pedras e suas pontes com seu ar cheio de cor a volta das borboletasao viver na convergência das línguas conhecemos a dinâmica entre os acentos:mudar de país já não faz diferença as vidas ali são as mesmas em outras pessoas
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nydIA BonettI
1procuro no escuro – a palavra nova
tateio espaçosrisco rasgo
não posso vê-latento tintas outras – tons
texturasna minha pele escrita
caneta tinteiromata borrão borrachapapel de arroz tão fino
requer cuidado
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2era manhã bem cedo e se julgava pássaro
quando caiu a tarde se viu pedra
(e sua cota era apenas um dia)
vida de pedra deveria ter vivido
não viveusonhando asas
pássaros — teriam pousado e feito ninho
3escarpas
onde crescem begônias
intocáveis plenas
inacessíveis
(meus olhos vagos
as recriam)
no vaso sobre a mesa
cultivo
begônias inventadas
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4teu rosto no retrato / os olhos fundos
perdidoscomo quem busca vida
distantescomo quem sabe o tempo
verdes em sépia na fotografiagrafada face / sagrada grafia
lábios cerrados como quem pressenteo grande silêncio
5no território imperfeito em que habitamos
a pele é fronteiraafetos são águas que fluem / em fios
ou caudalosos riosausências / profundezas abissais
memórias são trilhas / que a mata densa e invasiva da vida cotidiana
encobre lentamente
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6o poeta mergulha
no inferno do seu mundo real e silencia
quando voltar ao paraíso inventado
(em cápsulas)o poema retorna
com suas verdades sempre tão relativas
(precárias)a durar o tempo do espanto
dos olhos
7o tempo insiste
em arrastar móveis pesadoshá sempre um piano
que não passa na portanotas suspensascordas frágeis
que sempre ruem antes que o piano toque a rua
em áspero ruído
126
8quando a noite me olha, na sua hora mais escura
e o silêncio me encara com seus olhos de pedra
e murro paraliso
pela vidraça chuva negra de ferpas e granizo
estilhaços de vidro e vento
tentam furar meus olhos aquários vazios
onde o último peixemorreu de sede e medo
do gato imaginário - olhos de fogo e faca - feraque jamais existiu
9e o homem se curva - parece ser sina
trocar o fardo milenar das culpaspelo pós-moderno fardo do vazio
há que se ter um peso a ser carregado
a leveza parece não ser humananão se sustenta. enquanto barro:-pesa
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10fogo apagou!
gritava o pássaro da minha infânciapressagiando as cinzas que viriam
11se a tua fome for feito a minha
de palavras e (in)quietudesfaz como eu
entãobebe os silêncios
em goles profundos e o verso:- rumina lentamente
128
12permeio entre mundos - e sub
deixo pedaços de mim por todo cantotrago pedaços de outros tantos
do mundo das formigas trago a terra na costasdo mundo das estrelas
o brilho nos olhosdo submundo o medo, a nóia, a faca
no meu pequeno mundo cabe um universo
onde em cacos me perco e me refaço
13plenos de nada
meus espartanos olhos esperam(aspiro o pó de Atenas)caminho pelas vinhas
dragas que me formaramlacônicos pântanos
arco / flecha e em minhas mãos — maçãs
129
14a poesia fez de mim uma ilha
onde pássaros pousamqueimam os pés
— e partem
15que o sangue escoe
quente viscoso fosco no humano fosso (indecifráveis cantos)
que fragmente a bomba e firaolhos e bocas
e que se rasguem bandeiras — inúteistecidos fronteiras
tudo parece arder — então por quepoetas só ousam tocar
nos visgos dos corpos do fogo das suas próprias peles
(devassa inocência) e dormem — imersos em seus silêncios
nydIA BonettI foi publicada em 2012 pela Coleção Poesia Viva do CCSP, na antologia Desvio para o vermelho (Treze poetas brasileiros contemporâneos) e, pelo Projeto Instante Estante, de incentivo à leitura, Minimus Cantus (Castelinho Edições). Lançou seu livro Sumi-ê (2014, Patuá). Tem poemas publicados nas revistas zunái, Cronópios, Musa Rara, Eutomia, Germina, Mallarmargens e outras. Faz parte da coletânea Qasaêd Ila Falastin (Poemas para a Palestina), pelo selo zunai, e da antologia digital Vinagre.
130
ANTES DE mERguLhAR
rAmon nuneS mello
Iolharo mar
e não pensartudo o que sei
fazer
131
IIisso quando
você não aparecerodopiando rodopiando
apareceentre as espumas
III estranha eternidadedaquilo que amamos
em ondasrepetimos gestos
de nossos antepassadossem saber
onde começa onde terminaa verdade o desejo
132
IVouço o balanço
longe daquienquanto você rabisca uma ilha
coloridanum amassado pedaço
de papel
Vlevante
vá até a janelaantes de mergulhar
mirea felicidade dos pássaros acima das pedras
nus
Rio de Janeiro, abril/maio de 2014.
rAmon nuneS mello (14/02/1984), natural de Araruama (RJ), é poeta, escritor, jornalista e ativista dos Direitos Humanos. É autor dos livros Vinis mofados (Língua Geral, 2009) e Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2011), contemplado pelo Edital de Autores Fluminenses 2010/2011.
133
mAREIO
reInAldo rAmoS
Onda de pedra e pesovalor sem marca de preço
massa de mar e tempomove o intento e o medonasce por onde não pensoage por onde me esqueço.
134
NOITE DAcRIAÇÃO
reInAldo rAmoS
Há uma triste garoahá um réquiem de muitos silêncios
há uma homenagem solenepara uma revoada de melros mortos
Há alguns suicídios por tédiohá a gênese de novos tumores
há escolha para síndicos de prédiospara uma revoada de melros mortos
Há uma dança macabrahá um cortejo fúnebre
há amigos de muitas solidõespara uma revoada de melros mortos
Há um chorar condoídohá rumores apocalípticos
há adágios para o nascer do diapara uma revoada de melros mortos
Há glaciares se derretendohá muitos olhares incréduloshá destinos se precipitando
para uma revoada de melros mortos
Há uma bandeira à meio-mastrohá transatlânticos ancorados no porto
há rancores multiplicados entre nuvenspara uma revoada de melros mortos
Há canções para o morrer da noitehá tremores de mais asas débeishá impenetráveis cegueiras vivas
para uma revoada de melros mortos.
135
ENgENhO
reInAldo rAmoS
A engenharia é grandeperto da poesia
que não serve pra nadaperto da vida
que não tem sentidoa engenharia
que é desabrigo.
136
POESIA + vIDA
reInAldo rAmoS
Eu quis percorrer uma linha retaentre René Descartes e Waly Salomão
mas a linha saiu tortalinha sem viagem certa
de única mão
Entre a estação de Tóquio, a lua, o amor perfeito e outroslugares que eu não conhecia
restou a Penha, a rua, a eterna procura e a estação de Olaria
daqui, eu me via
A linha que quis percorrer em viagem de idaconstrita feito aneurisma na aorta
caminho que eu já sabia
Escrita sem voltalinha poída.
137
NuvEm
reInAldo rAmoS
Massa d´água que flutuae imprime com sombra
seu rastro na rua.
138
EIDOS
reInAldo rAmoS
Às vezes sacrifico a rimapra rimar a ideia.
Às vezes sacrifico a ideiapra rimar a palavra.
Às vezes uso a palavrapra arrimar a ideia.
Às vezes uso a ideiapra dar rumo à palavra.
Às vezes amarro palavras às ideiase ideias a coisas
(mas é muito às vezes).
Mas aí vem o ventoe desarruma tudo.
139
chuvA
reInAldo rAmoS
Pingo d’água da chuva friamolhando fino fio preto pendurado
se reflete luzfica fácil brilho feito fagulha
e embola na imagemdo barulho
da vista.
140
O vENTO
reInAldo rAmoS
O vento trouxe e espalhou as nuvens...estacionaram alguns dias, alguns quilômetros acima de
mimforam meu teto e me emprestaram seus documentos.
passei então a me chamar nuvens e a tocar o corpo caloso do céu
e suas trincas.
141
OuvISTEA mOÇA?
reInAldo rAmoS
Meu caro Jorge,sabes bem
que quem trabalha é que tem razãomas hoje talvez sintas umas brisas adventícias
de cepa egípciae possas andar sem camisa
rabiscar uns poemas cantadospra repartir sem remorso e sem ânsia
arriscar uns penteados bonitose cantar o mesmo mantra diuturno
feito faz, assim assaz bem-feitamente,o bem-te-vi
E por nisso falar,ouviste a moça louçã
da província marítimae cabeça vã?
Sabias da sintaxe dos sabiásdos otorrinose dos taxistas
que sabiamente nos ouveme têm na moela o alpiste-palavra
debulhado pelas moendasdos cata-ventos de moto-contínuo
e um bom bocado de orações insensatasque o sol nos derreteu da moleira?
Se debalde desexplicamoscom as papas da língua
espalhando letras em bons lençóis de rendaem tropéis de lustrosos alaúdes
e com eles e elas serigrafamos poemas benfazejosnestes brejais santos
e neste céu defronte a águaeu cá te deixaria, a granel
uns poemas dedicadosrústicos e delicados
feito ambrosia e rapadura
Olimpo e o Cariritalhados num alfarrábio de granito, à graveto
na entrada da casa do tempo.
Para Jorge Tufic
142
hETERONOmIAS
reInAldo rAmoS
Ninguém sabe meu tanto não sabidoe é porque dele só sei eu mesmo
que dele tanto bem zelo
Para que ninguém o veja e eu me protejado que de mim os outros demais puderem pensar
Que lhes dê de saber somenteo tanto que minto
quando sou verdadeiroe que no uso desta atribuição
não me falte nunca a necessária altivezque dá fiança aos meus perjúrios
Que lhes seja sempre propíciasó a mesma verdade-metade
que também me convém
E que por fim,da crença fiel a que me depositam seus titulares
eu recolha seus os justos jurose faça da usura e do blefe
meus mais distintos e carosrecursos de autopreservação.
reInAldo rAmoS, carioca de 1978, é da classe média suburbana, tem inteligência mediana e é, seguramente alguém bem pior que você.
143
ALvéOLOS DEPETIT PAvê II
rICArdo Pozzo
São ríspidoscaminhos
quenossos passos
percorremrumo à
desilusãonecessária.
Mas,o fardo
luminosoda consciênciaem conhecer
a tênue diferençaque há entre
cada umdos sereshumanos,
leva-me àcompreensão
de quenossa
igualdadeseja tão
significativaquanto a
variabilidadeda espécie.
rICArdo Pozzo nasceu em 1971 em Buenos Aires. Mora em Curitiba desde 1975. É o curador do projeto Vox Urbe, do WNK Bar e editor assistente do Jornal RelevO.
144
mETAfíSIcA DA PRESENÇA NAS
fLORES
roBerto AndreonI
há presença na ausência das flores;nos botões das flores, também.presença outrossim na ausência
dos mesmos ditos botões.presença, seja na ausência
do florescer, ou no fluir do florir.árida presença nas pétalas secas.
apenas a primitiva presença onde jaz a estiagem de findas flores.
presença nos ciclos soterrados. na impermanência das flores,
o substrato, a presença metafísica.
145
fILOSOfIAAquáTIcA
roBerto AndreonI
zeus troveja sobre os homens.
deságua. Tales de Mileto mira o céu, contra os pingos da chuva;
não vê o deus por trás das nuvens.
só água. a tempestade trasborda
as margens do rio. Heráclito é tragado
pela correnteza. até esbarrar na barragem
construída por Platão. o rio não flui,
o mundo se divide. de um lado a pele molhada,
do outro a pele das peles. Santo Agostinho,
no alto da barragem, denuncia o mal nos homens que livremente banham-se
no rio sensível. Spinoza afoga Santo Agostinho.
Afoga Deus, os homens.Submerge tudo.Benze a água.
o ato libera o riosob o aval divino.
o mundo se reconcilia.a substância aquáticatransborda ao infinito.
o desejo de Schopenhauer atrai uma torrente arrastando todos.
Schopenhauer busca no ruído do rio
uma música pra aliviar a dor
de ser por ele tragado;pra ver algo além
da representação do rio. Nietzsche ri da rabugice do velho Schopenhauer.
mergulha no rio, nada de costas
enquanto solta esguichos de água pela boca.
o rio vira um oceano de redemoinhos interconectados.
Nietzsche da uma bomba. a água espirra em Freud
que se sente culpado. [a mãe o proibira de se molhar]
Deleuze zomba Freud: “Spinoza, Nietzsche,
vejam isso, Freud
teme o nado,e põe a culpa
na mamãezinha”.
146
SAmuDAyA:DA NATuREzA AO
SOfRImENTO
roBerto AndreonI
sentado na beira do rio. isso bastaria.
mas a vara pensa poder
algo real fisgar.
no aço do anzol a luz do solreflete na retina;
sentado na beira do rio.isso bastaria.
mas há aquela expectativasobre
os peixes cartesianos.
o olhar fixo na outra margem,
na imagem rijada árvore.
sentado na beira do rio.isso bastaria.
mas lá no alto háum corpo que o rio traz em sua fluidez.
uma emoção cristaliza-se. some o rio, rui a árvore.
sentando na beira do rio.isso bastaria.
mas o teso corpo aproxima-se, pestilento e sólido.
só o corpo existe;com suas veias enraizadas na cena.
sentando na beira do rio.isso bastaria.
o corpo se distancia, perde-se no horizonte.
as coisas à existência retornam.
na linha uma fisgada alerta.
a imagem do corpo enrosca-se em aço,
no anzol.
sentado na beira do rio.isso bastaria.
147
hOmOTAXATóRIOS
roBerto AndreonI
por favor, não diga quem sou.se eu estiver de bom humor,
pode dizer quem acha que és,mas não mais me diga quem sou.
ando exausto de tanto ser;já fui filho dos deuses gregos
que deixaram meu céu negro,com raios, trovões e tempestades.
já tive nas minhas entranhas,o fogo que a tudo transforma
e, sempre a mim muito estranhas,outras tantas perenes formas.também fui filho do pecado
e até hoje sofro este fado;fervoroso orei ao meu deus pai,
mas não sei se hoje estou perdoado.outros tempos muitas rasuras;de bom selvagem, máquina,fui tábua rasa e razão pura;vários homos e até macaco.depois vinguei como desejo;síntese de ocultos poderes.
o adeus àquele pai estranhodeixou-me neste mar de seres.poderia até estar certo, Sartre,mas não me diga que sou livre,caso contrário me contradigo,
e esse poema – já preocupado –perderia todo seu sentido.
148
TOquEmíSTIcO
roBerto AndreonI
profundos os homens do sagrado toque;aqueles que discretamente arrumam os quadros tortos em retas paredes. são seres essencialmente sensíveisà dinâmica dançante dos opostos:
tanto à fria escuridão na ânsia por sol,quanto à queda de Lúcifer ao inferno.
parte, deles, uma teleologia do encaixe;o fim sexual é apenas um exemplo.
a vontade de solucionar é metafísica,pois habita o inconsciente destes homens
um indomável aracnídeo ontológicoa compor em teias a sinfonia divina
que harmoniza todos os elos simbólicose dá o tom holístico ao universo.
149
POEmA EXISTENcIALISTA
roBerto AndreonI
a rua da minha casapassa a existir.
na calçada a flor prensada pelo passo apressado.
entristeço por ela;somos tudo que existe
no irromper do momento.um gato se aproxima,
cheira a flor.o gato floresce em mim,
como o saldo da cena pensada.o gato e a flor são eu.
os pensamentos, o ser, o signo,sou o sim da consciência.a existência divaga-me,
eu divago com ela.fecho a porta!
a rua inteira entra comigo, sem pedir licença.
150
vícIOcIbERNéTIcO
roBerto AndreonI
A tela, parto de plástico,rompe um processo catártico.
Ela, meu espelho e desejo,meu holograma e meu ensejo.
Nela sou um filho de mim.Do real concreto um login.
Nela sou além da carne e osso,mas muito menos que posso.
Um espírito apreendido;na rede, apenas vestígio.
A verdade é deletéria nesta inércia da matéria.
Aquém: um zumbi que é pútrido.Ali: uma foto, um músculo.
Há paixões, gritos no vácuo.É a vida num pote parco.
151
PASSARINhO ANARquISTA
roBerto AndreonI
passarinho anarquistaà moral dá seus piolhos.
voa por voar, sua conquista.canta o canto libertário.
corta o céu [o bico afiado]das vãs desigualdades.
sua acrobacia, um peteleconas amarras da gravidade.dá de asas frente à ameaçados fios da rede elétrica.
parado, ou mesmo voando,caga livremente:
seja neste operárioou naquele empresário.passarinho anarquista,
à moral dá seus piolhos.
152
SERES
roBerto AndreonI
é preciso crescer, estremecer as barreiras.
ondas entre ondas;mergulho, salto, enfrento.é preciso espatifar a cara;
quebrar-se em mil pedaços;recompor-se,
reconfigurar-se.uma rasteira, um susto.
reajo sagazmentecomo um samurai
certeironum contragolpe.
é preciso ter espelhose olhos de águia.
ser mestre zen, yoga;respirar o universo,
ser fluido, ser o fluxo.fazer da correnteza impulso.
ter pulso firme.equilibrar-se
sobre o fio da liberdade.é preciso deslizar
sobre a superfície áspera;purificar o ar denso;
acender estrela por estrela,centelhas na escuridão;
penetrar no âmago das coisas;ser pedra, flor, rio.
e mesmo dormindo,é preciso agilidade;
ser raio que rompe sonho,monstro e medo.
153
umbANDA
roBerto AndreonI
a vida é uma bússola que não cessa de girar.
não há norte, não há sul,ou porto para aportar.
sigo a essência do girar;no horizonte tudo passa,
passa Oxossi e passa mata,vejo Iemanjá e vejo mar.
a mistura vira branco;do cerne a luz de Olorum
imergindo todo Santono rio sublime de Oxum.
neste interior lampejamcaboclos e preto-velhos,
que profunda paz despejamo preparo para o prélio.
o caminho não é o outro;não é o destino da flecha;
é o centro que reluz o ouro,do fogo divino a mecha.
roBerto AndreonI nasceu em 1984, em Araraquara (SP). Graduou-se em História pela UNESP. Atualmente cursa mestrado na área de Teoria da História e se dedica a pesquisar a produção historiográfica sobre a escravidão no Brasil. Conciliando seu trabalho de pesquisador com a prática literária, o autor também se dedica à poesia. Em 2013 teve sua poesia Compasso da Incerteza publicada na antologia editada pelo 13º Concurso de poesias da UFSJ.
154
A vOLuPTuOSA
roBerto BozettI
me desabotoava de alto abaixo e em cada
beijo entre- me dizia: só curiosidade
(mais o desejo que (ela não dizia (entre
/meteu a mão as beijo)sim/ retilínea e ín
greme infrene foi até o fim
entre colando língua olho
glande-cortando
sedosaesguiamedes
155
bAR mONDEgO(um exercício de cubismo lupicínico)
roBerto BozettI
falas baixo– sim? –
assimte vigio
quase acasoencostada no ombro
passasnum braço
(que nem um pedaçotudo acesopara mimteu caso
o mar inteirodiviso
do basculantedo banheiro
noturnocartão-postal
do Rio de Janeirofelinas pupilas
mijandobebendomilhares)não ouço
quem ouveé outrosucede
que o outroé sucedâneo.
“mas o homem espia o homem, inexoravelmente”(Cyro dos Anjos)
156
SuSPEITA
roBerto BozettI
- aqueles dois,eles são gays?
- um só. o outro éambos.
157
ObvERSÃO
roBerto BozettI
farsas existem.
um pelo-sinalum beijo nos ombros
um gemidotudo pode ser
ou não ser
pegar a muquegozar a entrebeijar a dentepode ser nãoou tudo ser
como converter.
158
mERITOcRAcIA à bRASILEIRA(no quartel de abrantes)
roBerto BozettI
de fato ele éo melhor para
posto que o outrotambém
concordo. ainda quea contra-
gosto acon-tece que a gente não pode
só se saíremas novas normas
saírem que eu digo é:se vierempor escrito
como é pouco provávelvai tudo continuar
como antespor aqui
ao passoque
lá em cima eles tambémnão vão ter por que me
- crau!
lógicoque tem umlá em cima
ou você acha que sou euque dou as cartas
aqui
manda quemobedece
159
DIADORIm
roBerto BozettI
Tivesse de fato sidoe se teria sabido.
São artes de inventivoengenho de fabulador.
Fronteira do fabuladose atravessa manhã cedo.
Chega a noite continuoficto assim assim nu.
Quando lavarem meu corpoesquecerão o encardido.
Alguns dir-se-ão:ponte, extravio, ter sido
ponto de amarraçãosem volta, pouso, sentido.
O Letes me embalsamapor quem não sabe do Letes
mas sabe como se lavacomo se cuida e se esquece.
O que não se tatuoufoi corpo de nascimento.
Diadorim, à margem vamosparceiros de invencionice.
Você atravessa o rioeu o esquecimento.
160
guARATIbA
roBerto BozettI
Lapas e mangues e trilhas, mais
um fino artifício para não dizer:
nada; nada,cidade e res-
tinga, penínsulae o mais do que
se viu se viuno rosto e não era nada que mangue
algum urdisseque lapa alguma
ocultasse, que trilhasconduzissem
a passo ou sabor– não ver o rostopor ser o rosto,
melhor, por estardentro dele, alimas querendo
(por poucos minutos)estar morto.
161
ILhA bAIXINhA
roBerto BozettI
Uma ilha estrábica e suas reentrânciasgolfos, angras, scylas, caribdes
me suga abismo sulco o mar mexidoo saco de ânsias onde estive quase
por sorver-me lembro-me: chegavam noites e passavam
dias sem amanhontem sumiamem travesseiros passavam golfinhos
cabelos onças famélicas e um desfilemondo monde mundo o que rodei o que
vou rodar para perdê-la de mimilha e suas promessas a que não eu soube
chegar por mar e da qual despeço-mede longe em sobrevôo ela lá ilha
baixinha lá embaixo a que não habitei
roBerto BozettI (03/03/1956) tem dois livros de poemas publicados, ambos pela Oficina Raquel (Rio): sua produção dos anos 1980/90 saiu em A tal chama o tal fogo (2008); no ano seguinte publicou Firma irreconhecível. Além do blog individual que também se chama Firma irreconhecível (robertobozzetti.blogspot.com.br), é mallarmago, isto é, autor fixo da revista de arte e poesia contemporânea Mallarmargens (www.mallarmargens.com). Professor de Teoria da Literatura na UFRuralRJ, em Seropédica.
162
RImbAuDESTAvA cERTO
SAndro ornellAS
não se é sério aos 17 anos e se mora defronte ao mar
com suas sereias seviciantes; não se é sério nem eterno
no carnaval, junto a lolitas e odaliscas; não se é sério nunca quando se descobre
que meninas adoram poemas românticos;
no entanto me apaixonei aos 25 anos por uma femme fatale
e sigo sonhando com casa crianças e emprego estável.
163
SERPENTáRIO
SAndro ornellAS
a serpente dos meus dedosbeija o rosto que mantenhono sem fundo dos espelhosonde a luta é meu desejo
a serpente dos meus dedoscria mundos sem inícioscurvas sobre precipícios
duro pacto do difícil
a serpente dos meus dedosno vislumbre de uma auroraque anuncia a incerta horasobre si mesma se enrola
a serpente dos meus dedosinaugura junto à vidagritos danças alegriaslancinantes dores frias
a serpente dos meus dedostraz a força dos venenos
que com a noite correm lentose com o dia tornam denso
o meu corpo em combustão
164
PóS-EScRITO
SAndro ornellAS
nenhuma lição a tirar desta viagemnenhuma impressão que caiba em livro
nenhuma anotação competente sobre minhas gavetasnenhuma meditação sobre o cultivo de jardins
apenas esse esgotamento, esse cansaçoessa redundância de álcool e éter na varanda
onde troco a fumaça do cigarro pela vigília dos altos prédios
apenas essa repetição narcótica de tudodefinitivamente de agora em diante
comprometida com a incerteza do que experimento
165
(cLANDESTINO)
SAndro ornellAS
atravesso e trago a barbana face por fazer:
metade na ausente precariedade de pêlosmetade na presente visibilidade de pêlosela é meu horóscopo meu ouro meu ori
meu faromeu anjo
meu tesouro repito meu destino assim
em mim sem fim forço fronteiras
não me detenhonão confio nem sou confiável
de mim desconfio de mim me desvio cruzar fronteiras é meu ofício
minha dupla vida únicaminha única dupla morte
e toda vida toda morte todo ofícioé trabalho do corpo
indeciso à difícil superfície da pele
com a qual recuso ao dia e à noitequalquer proteção do convívio
com os bons os maus ecom a tempestade
166
(TRAvESSIAS)
SAndro ornellAS
arrasto o que rasga essa históriaatravesso estradas
que se estendem à minha frente atravesso olhos
alheios para os ladosatravesso portas
que se trancam a cadeados atravesso o campo
de guerra dos doentesatravesso o avesso
de cada um desses versose canto os restos
recolhidos da ressacacanto os risos
e acolho o que passa por cima e por baixo
lugar sem assento círculo sem centro sensação de dívida que divide a vida
e dilacera adultera violenta a quimera
que em meu peito moraeu que nunca fui inteiro
eu filho de imprevisto destempero eu dádiva do ponto cego
eu banido destino zero de afeto
entre contrários opostos simétricos que apostam e se metem em contrato incompleto
puro ato desejo reto resposta do futuro
meu discurso sem uso (in)certo passo da dança
teatro de encontros entrecortados no arquivo que sou sinto vivo
167
TEORIAROmâNTIcA
SAndro ornellAS
Uma canção me alcança na ruaUma premonição sempre afiança
a força gravitacional do corpo Uma premonição a afetos e gentesE me deparo com o risco de crime
o risco do mote que nada diz o risco que nada fala ao labirinto de sonho e violência desse país
Escrever poesia não traz salvação ela é só antessala do que existe
apesar de a thing of beauty que em algumas insiste
ela é só um rumor de sombras ou a vida lançando suas bombas
ela não professa nenhuma fé atriz de si mesma é parte da ralé
atriz de si mesma lança-se em heráldico baléMas toda poesia é forno crematório
por isso amigo repitoé falida a verdade dessa dádivaAcordo e questiono o que resta de dignidade matutina em mim
a vida se acostuma à terra em festae imita o voo dos insetos pelo jardim
como sem-tetos abrindo asasMas nós é que moramos em casas
sem cheiro do que fora se passaNo canto mais sórdido das grades
despejamos resíduos que nos ardeme esperamos que deus ou a vida orgânica
elimine essa exasperação pânica Só o que existe (talvez não seja ruim)
rasteja aí a começar por mimque risco essas folhas brancas de carmim
Mas merda! sempre penso num pequeno cantono fim do mundo só um pequeno canto
no fim de tudo e não me perguntocomo estão as coisas todas
se desfeitas feias rotas como estão as coisas aqui
nos confins desse país(aos dezessete de outubro de dois mil e onze)
como se costuma ver o mundo daqui
168
SAndro ornellAS nasceu em Brasília (DF) em 1971 e publicou os seguintes livros de poemas: Simulações (1998), Trabalhos do corpo (2007) e Formas de cair (2011, assinado Sandro So). Atualmente mora em Salvador, prepara um novo livro para o próximo ano e é professor de literatura na Universidade Federal da Bahia.
com tanto risco e pouco viço Mas merda! a sua vida poeta
e não há quem não repita parece uma fuga de casa
para viver na palafitaOuvi dizer que são tempos de mudança
em que a vida dança na mesa como barco à derivano oceano insano da própria cabeça
Ouvi dizer que são tempos de guerrilha como o ar que se respira
que o importante é ser ilha pedaço de terra cercado de guerra por todos os lados
Mas essa vida anestesia como a fomeela é pesadelo que perdura
nos fundos dos bolsos insonesÉ migalha sem fatura a poesia poeta?
Falo da pequena vida com seus acidentes vida que passa
vida em que passa um casal sem parentesvida que sai no vento e se perdevida que sai no vento e percebe
um crepitar de espinhos ao relentoe isso fere o meu desespero
pois a vida é sempre muito rente e não tenho maisa ânsia de outrora de plantar qualquer semente
Mas que se exploda! minha sanha é mover-me contra mim mesmopreparar minha própria carne para o braseiro
deixar ir meus dedos juntos com os anéis
com que edulcoro estes papéis olhos presos no abismo sob meus pés
(essa dor aguda fere quem vive muito junto) Mas há sim ainda o colo de uma mulher
me envolvem o sorriso de seda os pelos de linho a saia de cambraia
E ergo brindes à alegria!e me toco porque evoco a poesiae luto por seu luxo de maravilha
Me toma essa imensidão me abraçam esses braços vãos me alça a violência da paixão
onde pasto meu poema e onde visto vastidãoEntão acostumado ao crime largo o martelo
na pedra e no ferro desse chão largo o martelo que me torna este cegolargo o martelo ao seu próprio inferno
e me alimento dos amantes eternosTodo martelo é fim dos dias quentes
todo martelo grita alto e frenético e desfaz destrói humanidades
com o brilho de falso brilhantesMulheres encostam os filhos às pernas
e abrem o espírito amorável pés pisam na sarça que dança
e me fazem animal de confiançaSó assim espero vir me destruir
o verão com sua violência de amor
169
tAgore SuASSunA
I Deus vive em mono
os homens, em histérico.
IINo abismo da agonia
poesia era masoquismo
170
IIISanto Drummond
IVDemora o sol
pra dar um mergulhomesmo com o mar aberto e molhado
chamando com ventoe nuvem despida.
171
VPode ser
da vida virarum ruído distanteda velha quebrar
seu primeiro brilhantediamante seu corpo
já não pode ser
VIUma bolsa de dentese nenhuma gengivauma grande ogivavai gerar doentesque de pacientesmerecem saliva
da boca explosivadas altas patentes
172
VIIDe braço cruzado fitava o tédioolhar recheado de sobrancelha
e aquele garoto, que tipo de defeito?– Médio!
VIIIEu era uma ilha
perdida no mundodesfeita em areia
sem sombra ou remorsolevava na costa
um mar de segredocorria sem medo
do fim do crepúsculoera tão minúsculo
via o céu tão próximo
173
IXAmor não rima com alegriaAmor não rima com beleza
Amor nem sequer tem certezaAmor, amor é caso de sinaAmor é posto de gasolina
Amor é China, Rússia e calorAmor, só rima com minha dor
Amor é pura tarde londrina
Amor não rima com harmoniaAmor não rima com destrezaAmor nem sequer tem levezaAmor, amor é caso de fibra
Amor não se converte em libraAmor é Piccadilly no calor
Amor só rima com minha dorAmor é pura tarde londrina
XMorris morreu
arte e ofíciodedo e orifíciocoito plugado
tAgore SuASSunA é músico e compositor. Vive em Recife mas recentemente iniciou uma turnê pelo sudeste com sua banda Tagore. Seus autores favoritos são livros de Krishnamurti e Herman Hesse.
174
ITINERáRIO mANuScRITO
WAldeCy PAulo PereIrA
Um jeito mudo de dizer adeusaquele mar que grita atrás dos olhos não sou eu
vaga alma vazia de tantos quantos pereceu.
Nas próximas distâncias me encontrará longo de idéias,sorvido de livros, orgânica biblioteca.
Fachos de luz desconstruirão nossas sombras invertebradas.No final de um raro arco – íris geminado encontraremos nossos tesouros; bulas e manuais. Dias largos logo virão.
Diálogos se construirão. Menos pólvora, mais poesia.Num futuro do presente simples,
andaremos descalços sobre a terra que eu gramarei. [ Gramoterapia.
175
DEPOISDA guERRA
depois da guerra o que nasce não é níveo é plúmbeo.Ferro retorcido e drama.
Disforme chama aquece corações frios.
Algumas almas sem par permanecem doentestrincam – se dentes.
No solo regado a lágrimas nada brota.Guimbas de cigarro adubam o mesmo solo.
WAldeCy PAulo PereIrA
176
SuRREALNON SENSE
Um plural de chão me tira do ar. Viajo non stop de mar em mar sem parar. Poucas são as virtudes na terra sem rei.
Sem lei, pequei.Minha vida é viajar Benin, Paris, Nova York, Irajá.
Sorry senhor, não sei sambarplease, meu fluente português
ne me quite pas.
WAldeCy PAulo PereIrA
177
um hOmEm
Um homem acordou de um sono secularsem lança, sem caneta, sem tatuagens, sem som de tambor.
Um homem desperto de um sono lisérgiconum quarto e sala em Todos os Santos.
Ele era negro, era branco, era indio também.Ele era brasileiro, e nisso absolutamente não cabe nenhum talvez.
Despido em plena segunda -feira de todas as suas metáforas,culpas e carnavais, um homem de lágrimas e sorrisos. Pleno.
Com suas crenças e sua fé.De vida desimportante, anônimo, antônimo e quase gigante,
um homem, aguardava sentado na janela de seu quarto e sala,aguardava um som ser posto em palavras numa metrópole sitiada.
WAldeCy PAulo PereIrA
WAldeCy PAulo PereIrA, carioca, é poeta, cronista e tradutor. Formado em Português–Francês (Uerj). Participou das atividades da FLUPP e de diversas oficinas literárias. Prepara-se para o lançamento de seu primeiro livro de poemas.
178
RéquIEm
WIlmAr SIlvA de AndrAde
meu chãoé o gado pastando
na margem do rio paranaíbaremoendo capim verde
e traçando nas pisadas fortesa infância de meus pés
crianças
o menino de estilingueque não matou passarinhos
o menino de calça curtaa galopar na velha égua pampa
e buscar na manga da vargem do rioos bezerros e as vacas leiteiras
mansas ou doidasdaqueles matagais
daquele sertão paranaíba
oh meu chãominha terra paranaíba
onde tantas tardes de vento puro e livreesperei uma cigana
para ler e até mesmo inventaros traços marcadosem minhas mãos
oh chão da minha vidaáguas sensuais do virginoso rio
da minha Paranaíbaguarda para mim
a infânciadessa lonjura de lá
179
cAchOEIRAS
Chorei de tanto mirar o corpo de meu pai,O corpo sozinho quente esfriando de meu pai, O
Corpo quente esfriando sozinho, ChoreiArrasado Devastado Comido Bebido por um
E por todos Abandonei meus sonhos meus Pés
Chorei me Desesperei frente a todos,Eu E o cavaleiro ladrão de vento Orgair, Eu E
a maior Antônia, eu E a menor EleniceEu e a que chegou condor Maria Que depois
Perdeu um Angel
Mãe, isso não é um nome nem um chamado,É um grito, o grito mais alto ao mais altoaltar
o Altar sem Andor
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mENINO JESuSé REI
Alvez eu screva um oemaepois do atalE alvez eu screva um oemaepois da assagem
E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzesE do eregrino que asceu na strebaria e ndou
Luminado elo undo de elém e epois
Orreu na ruz ara alvar os omensAlvezEu screva um oema que ale de az Alvez
A az eja um írculo de strelas adentesAindoozinhas ao éuhuviscam a oite
Que é iva e ediviva de aga-umes
Leluia, eninoesus é ei-É ei, É ei, Ér Rei.
WIlmAr SIlvA de AndrAde
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O mISERávEL
A todos eu pudesse escrever os poemasComo se escreve Tijolos Paredes Fogo Camas
Tecidos Os corpos que vivem As casasOnde os corpos andam e param como fossem
A mesa O campo de arremessos As bocasQue falam As palavras mais quentes e Também
As mais frias A todos eu pudesse escreverOs poemas invioláveis a estranhos mundos
Mesmo que fosse a você A miserável EuPudesse escrever os poemas A palavra casaQue fosse mais que casa pernas andando lá
Dentro Rudes como As pedras líquidasQue evaporam A todos eu pudesse escrever
Os poemas e depois me abandonar
WIlmAr SIlvA de AndrAde
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SuDáRIO
çimjeusscsritoivevedntro de mmieeldromeemmnihacsaaemmnihacmaa
eueoajno de lux msorto os ohlos de lúziferejeussbiejamnihabcoa os libáoscehios de
erestlas eu o ajno de luazvvio de parzservvio e fmoe
fmoe e sdee de sxeojeussum
jeuss de ohlosmohladosohlandoosm e usohlosmohlados
eu o ajno de luz com a sdee do mnudoasdeeemmnihalínuga
oajno de luz teprdaonacurz
osbulime o ajnoridevvio de lu
zabra
WIlmAr SIlvA de AndrAde
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LENDA
abriu a laranja com os olhos nas mãoso nariz nas unhas
a boca nas sementesengoliu uma duas três quatro cinco seis
sete vezes a árvore na pedra de jadee Jade não nãonãonãonãonãonão
e o pai
sim um galho na orelhasim um galho na orelhasim um galho no olhosim um galho no olho
sim um galho nonariz
sim um galho nonariz
e
a laranja na boca
WIlmAr SIlvA de AndrAde
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NumE
Eu sussurroO seu nome na florestaMas eu ssuussuurroo
O seu nome e o seu numeE a floresta sussurra comigoE o sussurro sussurra comigo
O seu nome e o seu numeE eu sussurro O seu nome florestaE eu sussurro O seu nume floresta
Nome floresta eu sussurroNume floresta eu sussurro
Eu floresta sussurro você flor-esta flor-esta flor-esta flor-esta flor-esta flor-esta flor
-esta
A caminho do sétimo céu o Sussurro sussurra comigo
lume
WIlmAr SIlvA de AndrAde
WIlmAr SIlvA de AndrAde, poeta, performer, editor, curador, multiartista, natural de Rio Paranaíba, Triângulo(MG), 30 de abril de 1975. Ensaísta/criador/curador do projeto de pesquisa de poesia de línguas neolatinas Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética (Anome Livros, 2009). Fundador/editor da Anome Livros, prêmio Jabuti/2009. Criador/curador do Encontro Internacional de Leitura, Vivência e Memória de Poesia Terças Poéticas (Belo Horizonte/MG). Poesia traduzida e publicada em espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, finlandês, húngaro.
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