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Mercal na Venezuela * I. INTRODUÇÃO Quando Jorge Luis Rodriguez desembarcou do helicóptero em que o mandaram buscar, ninguém menos do que o presidente da Venezuela Hugo Chávez o esperava. E o motivo da viagem era estrategicamente justificável. Naquele 2 de setembro de 2003, ele foi nomeado presidente da Mercados de Alimentos (MERCAL), a nova rede estatal de comercialização de alimentos de primeira necessidade da Venezuela. Chávez havia descoberto a importância de contar com um instrumento que lhe garantiria a alimentação básica dos setores mais empobrecidos da população, sua principal força de apoio durante a greve dos petroleiros de 2002 que foi estimulada por sua oposição política. Essa paralisia não só desativou a atividade no setor energético como também conseguiu produzir um forte desabastecimento de alimentos e minou a popularidade presidencial. A Mercal funciona com supermercados instalados pelo governo ou por pequenos empresários, dirigidos por cooperativas e cujos produtos são a maior parte * Este caso foi produzido no ano de 2007 por Sandro Alex de Souza, mestre em Instituições jurídico- políticas na UFPA e doutorando em Filosofia do Direito na Università degli studi di Lecce – Itália, e Bárbara Dias, mestre em Direito Constitucional pela PUC-RJ e doutoranda em ciência política no IUPERJ, com a colaboração de Mario Gomes Schapiro, coordenador da Casoteca. O caso integra a segunda rodada de casos da “Casoteca Latino-americana de Direito e Política Pública” (www.direitogv.com.br/casoteca ). O financiamento deste caso foi propiciado por acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção contínua de novos casos por meio do financiamento de pesquisa empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações-problema reais, produzidas a partir de investigação empírica e voltadas para o ensino. Evidentemente, não comportam uma única solução correta. A Casoteca permite uso aberto e gratuito de seu conteúdo, que é protegido por uma licença Creative Commons (Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil). A licença pode ser acessada através do link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/br/ .

Narrativa Final Mercal na Venezuela

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Mercal na Venezuela*

I. INTRODUÇÃO Quando Jorge Luis Rodriguez desembarcou do helicóptero em que o mandaram buscar, ninguém menos do que o presidente da Venezuela Hugo Chávez o esperava. E o motivo da viagem era estrategicamente justificável. Naquele 2 de setembro de 2003, ele foi nomeado presidente da Mercados de Alimentos (MERCAL), a nova rede estatal de comercialização de alimentos de primeira necessidade da Venezuela. Chávez havia descoberto a importância de contar com um instrumento que lhe garantiria a alimentação básica dos setores mais empobrecidos da população, sua principal força de apoio durante a greve dos petroleiros de 2002 que foi estimulada por sua oposição política. Essa paralisia não só desativou a atividade no setor energético como também conseguiu produzir um forte desabastecimento de alimentos e minou a popularidade presidencial. A Mercal funciona com supermercados instalados pelo governo ou por pequenos empresários, dirigidos por cooperativas e cujos produtos são a maior parte

* Este caso foi produzido no ano de 2007 por Sandro Alex de Souza, mestre em Instituições jurídico-políticas na UFPA e doutorando em Filosofia do Direito na Università degli studi di Lecce – Itália, e Bárbara Dias, mestre em Direito Constitucional pela PUC-RJ e doutoranda em ciência política no IUPERJ, com a colaboração de Mario Gomes Schapiro, coordenador da Casoteca. O caso integra a segunda rodada de casos da “Casoteca Latino-americana de Direito e Política Pública” (www.direitogv.com.br/casoteca). O financiamento deste caso foi propiciado por acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção contínua de novos casos por meio do financiamento de pesquisa empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações-problema reais, produzidas a partir de investigação empírica e voltadas para o ensino. Evidentemente, não comportam uma única solução correta. A Casoteca permite uso aberto e gratuito de seu conteúdo, que é protegido por uma licença Creative

Commons (Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil). A licença pode ser acessada através do link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/br/.

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confeccionados por outras cooperativas. A Mercal já conta com 2.000 fornecedores diferentes. A Mercal oferece frangos comprados no Brasil e carne argentina, brasileira e colombiana sem intermediários para diminuir os custos. Vale ressaltar que a Mercal obrigou empresas como a cervejaria Polar, Coca-cola, Cargill da Venezuela e Brahma, entre outras companhias antes reticentes em falar com Chávez a bater a porta da estatal. De fato, algumas delas já estão vendendo seus produtos na rede. Além disso, a Mercal foi o estopim para que os pequenos fornecedores se multiplicassem. “Passamos de 32 microempresas fornecedoras em 2003 para 114” diz Jorge Rodriguez que até maio de 2004 foi presidente da rede. “E as compras de produtos nacionais frente aos importados passaram de 20% do total a 52% em dois anos”. O governo destinou US$ 6,5 milhões à Mercal durante o primeiro ano de operações. Esse volume crescerá para US$13,9 milhões em 2004 e para US$18 milhões em 2006. Segundo os institutos de pesquisa Datos e Datanálisis, a Mercal incorporou um vasto segmento de consumidores ao mercado que nunca havia sido levado em conta pelas empresas de alimentos tradicionais e as rede varejistas. Mas agora elas estão atentas. “A Cargill da Venezuela está colocando 20% de sua produção – farinhas, massas e óleos – na Mercal”, afirma Tomás Sócias, gerente de relações corporativas da empresa. A entrada da Cargill se dá por meio de produtos próprios e da fabricação por encomenda de marcas da Corporación de Abastecimiento de Servicios Agrícolas, o braço executor das compras e da distribuição atacadista dos produtos de primeira necessidade do programa. Da mesma forma, a cervejaria Brahma entrou no programa de comercialização estatal com a venda de sua linha Caracas. E a extensa rede de distribuição da Mercal permite à Brahma presença em 13 Estados da Venezuela, ou seja, mais de 50% do território. “No momento de fazer as compras, a Casa sai ao mercado solicitando ofertas de determinado produto por meio de um leilão, em que fixamos um preço e identificamos as ofertas com base na qualidade e certificação de normas, e a comparamos com a informação de demanda registrada em nossos sistemas”, diz Omar Duarte, diretor administrativo da corporação estatal. Com esse método, a Mercal permite um desconto em produtos importados de 28% sobre os preços regulados e de 40% com relação aos valores de mercado. Nos produtos locais, o desconto é de 10% com relação aos regulados, e de 30% sobre os preços de mercado. Segundo todos os parâmetros do governo venezuelano, a rede Mercal é um sucesso no negócio varejista. Mas será sustentável no tempo? Segundo Jean Marc Françoise, especialista em varejo, professor e pesquisador do Instituto de Estúdios Superiores de Administración (Iesa): “a Mercal tem características semelhantes aos hard discounts europeus, que oferecem somente marcas próprias e obtêm preços até 30% abaixo dos de mercado, graças à compra de grandes volumes, a diferença é que o programa venezuelano mantém-se pelos altos preços do petróleo estatal; isso não garante a presença de produtos, nem a capacidade logística”.

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Para Francoise, da IESA, a Mercal cria uma enorme distorção para os fornecedores. “Têm um cliente importante e com alto volume de vendas, mas, além de atrofiar a força de venda e distribuição o que acontecerá se o programa oficial fracassar?”Os críticos advertem que não há muita novidade no modelo varejista de Chávez e que há 20 ou 30 anos iniciativas parecidas fracassaram, como as venezuelanas Corpomercado e Mersefria, as lojas populares de Alan García no Peru ou a experiência das Juntas de Abastecimiento y Precios de Salvador Allende. A associação empresarial Fedecameras e os donos de estabelecimentos privados denunciam uma "concorrência desleal".De fato, o Mercal não paga direitos de alfândega, não é sujeito ao Imposto ao Valor Acrescentado (IVA), e os seus produtos são subsidiados. Em resumo, "o Mercal tem vantagens que nós não temos", reclamou o presidente da associação de supermercados Ansa, Javier Macedo. "O Mercal poderá sustentar-se enquanto o preço do petróleo continuar alto, mas quando o país não puder mais manter a rede popular aparecerão os grandes problemas", advertiu o porta-voz do Conselho Nacional do Comércio, (Consecomercio), Nelson Maldonado. Os críticos também alegam que Mercal não é alvo de controles e que parte da enorme quantidade de dinheiro investida pelo governo na rede popular de supermercados desaparece nos meandros da corrupção. II. ANTECEDENTES POLÍTICO-ECONÔMICOS DA VENEZUELA

O monte Ávila vigia Caracas. É uma muralha verde de onde se vê a metrópole reduzida a um amontoado de tijolos brancos que a vista alcança sem dificuldades. Lá embaixo, ao sul, o vale de Caracas; ao norte, o mar do Caribe. Os colonizadores espanhóis levaram nada menos de 67 anos para vencer a geografia imponente do Ávila, desde a fundação de Nueva Cádiz, na ilha de Cubágua, o primeiro assentamento espanhol nas águas cristalinas do caribe venezuelano. Não foi antes de 1567, depois de duas tentativas frustradas, que Diego de Losada logrou fundar Santiago de Leon de Caracas, após ter vencido as tribos indígenas nativas e trilhado a montanha. Hoje, aos pés do Ávila, se deitam as paisagens urbanas do Distrito Federal e do estado Miranda, ladeadas pelas deformidades da pobreza periférica latino-americana – a oeste, o subúrbio desesperadamente de Catia la Mar e, a leste, as cidades-dormitório de Guatire e Guarenas. É a geografia da desigualdade. A comunicação do porto de La Guairá, no mar do Caribe, com o centro rico da cidade é feita por uma autopista que contorna o trecho noroeste do Ávila, passando pelo aeroporto de Maiquetía e pelo subúrbio de Catia, 25 quilômetros de asfalto e túneis que revelam barracos amontoados nas escarpas norte e noroeste da montanha. São as mesmas moradias miseráveis que a cada chuva forte desabam às dúzias com a areia molhada. À noite, com sua luminosidade débil, quebram a escuridão do monte subindo pelos seus clarões, conformando a área pobre da periferia urbana. Mas basta seguir o contorno da estrada para deixar para trás a favela, cruzar o centro da cidade e alcançar a leste, as regiões abastadas de Caracas. Ali, em áreas estritamente residenciais, a herança do Ávila não são os “ranchos” – os barracos que se aglomeram nos declives da montanha -, mas a folhagem fresca e juvenil que dá

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aos bairros um ar ameno e viçoso. A topografia acompanha o formato da colina e desenha ladeiras curvas, que descem o vale recoberto de árvores e trepadeiras. Um oásis de tranqüilidade, que os caraquenhos souberam reconhecer nos nomes das localidades – La Floresta, Los Chorros, El Rosário, Bello Campo. Por aí, no entorno do Parque del Este, estão também as agradáveis regiões de Las Mercedes e La

Califórnia, que durante o dia oferecem uma opção sadia de caminhada e, à noite, enchem-se de pontos aconchegantes onde se pode comer e beber madrugada adentro. De comum entre a Caracas pobre do oeste e a cidade rica do leste, só mesmo o Ávila, que na prática as obriga a coexistir frente a frente, a miséria aboletada nos cantos da montanha e a bonança à sua sombra. Paz social mantida em banho-maria, assentada na alienação rotineira das tensões sociais. O dia-a-dia de uma grande cidade latino-americana. Por vezes, o sistema mostra que o equilíbrio é precário. Se, por algum motivo, os atritos se agravam e os nervos se exaltam, a tendência é que as tensões venham à tona e aflorem da forma mais irracional de violência e vandalismo. Isso aconteceu pelo menos duas vezes nos últimos quinze anos. A primeira foi em 1989, durante uma explosão social que ficou conhecia como Caracaço. Na ocasião, o povo saiu às ruas para protestar contra um pacote econômico neoliberal do então presidente Carlos Andrés Perez. A Venezuela sofria a crise da dívida que afetou a América Latina nos anos 80, e a população via despencar seu poder de compra. Em poucos dias, a revolta popular deixou oficialmente 350 mortos, embora haja estimativas que apontam até 10 mil vítimas. O morro veio abaixo novamente em abril de 2002, durante o fracassado golpe de Estado que tirou o presidente Hugo Chávez do poder durante dois dias.

No ano de 1958, com o fim da ditadura do militar Marcos Peres Jiménez, a

Venezuela inicia um processo de democratização baseado no chamado “pacto populista de conciliação”, que teve como ápice a Pacto de Punto Fijo e se estendeu até 19881 (VILLA, 2005).

Este Pacto (base política), juntamente com o clientelismo advindo da renda petrolífera (base material), proporcionaram uma “sólida engenharia institucional” apoiada num bipartidarismo composto pelos partidos Ação Democrática (AC) e Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei).

De acordo com Villa2, tais partidos buscavam traduzir em seus quadros uma grande variedade social, no entanto, advinha da classe média (a grande maioria) e alta a maior parte dos seus membros.

Apoiada nessa base política do Pacto do Ponto Fijo, e na base material derivada do petróleo, construiu-se na Venezuela uma sólida engenharia institucional que perduraria por cerca de trinta anos, e que vem sendo descrita tendo-se como referência os seguintes elementos constitutivos:

1) Um sistema bipartidário caracterizado por uma mínima diferenciação

ideológica e programática, fato este que sufocava os partidos pequenos 1 VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Estudos Avançados 19 (55), 2005 2 Idem.

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e deixava as minoria sem voz ativa no cenário nacional3. Dentro desse sistema, o partido Acción Democrática (AD), representante de um projeto social-democrata, e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei), representante de um projeto social democrata-cristão, alternaram-se no poder sem outros concorrentes entre os anos de 1959 e 1988. Como sugere Alfredo Ramos Jimenéz: nos últimos quarenta anos “[...] o acesso ao governo na Venezuela sempre foi mediado pelo partido. Isso explica em parte a estabilidade do sistema político frente às opções desestabilizadoras e também o fato de quase nunca existir conflito entre o Estado e o partido no governo”4. A partir de 1973, ambos os partidos detinham juntos 83% das cadeiras da Câmara em um sistema legislativo bicameral.

2) Os partidos venezuelanos eram altamente institucionalizados. Os principais líderes políticos, especialmente Rômulo Betancourt (AD) e Rafael Caldera (Copei), evitavam as disputas polarizadas. Ou seja, o sistema democrático contava com uma liderança política madura que, ao aprender com as experiências passadas, descartou o sectarismo e propiciou pactos interpartidários. Como sugere Levine 5as lideranças políticas venezuelanas não estavam dispostas a repetir experiências de intensa concorrência, que pudessem dar margem para novos golpes de Estado. Este fator, por sua vez, permitiu o estabelecimento de uma democracia de coalizão que abriu canais de participação dos partidos menores, e que permitia também o controle bipartidário, por parte da AD e do Copei, dos cargos de primeiro escalão em instituições como o Congresso, a Corte Suprema de Justiça e nos próprios sindicatos. Ademais, o discurso nacionalista e anti-imperialista próprio de lideranças latino-americanas, tais como Haya de la Torre, Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas, sempre esteve ausente nas principais lideranças venezuelanas. Tanto Rômulo Betancourt (AD) como Rafael Caldera sempre cultivaram uma boa relação com os Estados Unidos, tendo mesmo, em alguns momentos, cooperado com este último nas políticas hemisféricas de isolamento político de Cuba6

3) Os grandes partidos venezuelanos tinham raízes em todos os estratos da sociedade. Eram partidos multiclassistas, mas que, contudo, tinham na classe média a origem de seus principais quadros. Os recursos petrolíferos são importantes para explicar esse fato. De acordo com Karl (1987) e Hellinger (1984), a economia petrolífera teve um impacto político positivo na medida em que tais recursos ajudaram à formação de uma forte classe média urbana, da qual emergiram as lideranças dos principais partidos políticos e sindicatos. Essa origem social das lideranças, contudo, não lhes impediu de ter um discurso e

3 ELLNER, Steve. En la búsqueda de interpretaciones. Em ELLNER, Steve e HELLINGER, Daniel (eds.) La política Venezolana en la época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas, Nueva Sociedad, 2003. 4 JIMENEZ, Alfredo Ramos. “El escenário del nuevo comienzo: aproximação ao fenômeno Chávez” (mimeo). Venezuela, Universidade de los Andes, s/d. 5 LEVINE, Daniel H. “Venezuela since 1958: The Consolidation of Democratic Politics”. In LINZ, Juan e STEPHAN, Alfred. (eds.) The President Democratic Regimes: Latin América. Baltimore, John Hopkins University Press, 1978. 6 ALEXANDER, Robert Jackson. The Venezuelan Democratic Revolution. A Profile of Regime of Romulo Betancourt. New Brunswick, NJ, Transciton Books, 1982.

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uma filiação partidária multiclassista, evitando que tanto a AD como o Copei fossem identificados como representantes da classe média em particular. Soma-se a isso o fato de que a distribuição dos recursos petrolíferos se fazia sentir entre todos os estratos da sociedade, o que mantinha o nível de conflito social sob controle partidário.

4) Os dois grandes partidos do sistema democrático puntofijista, AD e Copei, deram prioridade à disciplina partidária, fato este que que os fortaleceu. Ambos eram estruturas rígidas, nas quais não se perdoavam dissidências.

5) Por fim, o sistema político venezuelano foi suficientemente aberto para gerar oportunidades atrativas tanto para sócios em coalizão como para outros partidos pequenos. Os dois grandes partidos cuidavam para que a governabilidade não se operasse como um jogo de soma zero. Representantes dos partidos pequenos eram incorporados no exercício de cargos de segundo escalão, e alguns setores de esquerda tinham alguma representação proporcional na poderosa Central de Trabalhadores na Venezuela (CTV), que, por sua vez, era controlada pela AD. Esta articulação de representação de interesses alíticos, além de transferir estabilidade institucional, excluía a atração por opções políticas radicais, fossem estas de esquerda ou de direita. Além disso, eram também incorporados “[...]outros atores, como as forças armadas, a igreja, os empresários e os no sentido de sua institucionalização e na agregação de interesses sociais e corporativos”7 Tais fatos, desta forma, revelam que o fechamento do universo partidário fez com que aqueles setores da sociedade, que conseguiram se institucionalizar, negociassem seus interesses diretamente com as lideranças dos dois partidos. Atores como os sindicatos, que na época tinham como principal representante a CTV, desenvolveram uma forma corporativista com a AD, que lhes garantiam, então, em troca de seu apoio, distribuição de cargos e benefícios.

O governo manifestou claramente sua decisão de intervir de forma ativa e sistemática nas atividades econômicas. Desta forma, em 1958, se criou a Oficina Central de Coordenação e Planificação da Presidência da República (CORDIPLAN) que elaborou o Primeiro Plano da Nação. Em que se traçavam as metas e os instrumentos do desenvolvimento econômico. Anunciou-se que o país não outorgaria novas concessões petrolíferas. Simultaneamente, o Ministério de Minas e Hidrocarburetos estudava possíveis mecanismos legais para anular as concessões outorgadas durantes os últimos anos do governo de Pérez Jiménez. Criou-se a Corporação Venezuelana do Petróleo (CVP). No campo petroleiro internacional, a Venezuela participou ativamente de maneira ativa na criação da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP). A elevação dos custos da produção decorrente do aumento dos salários, assim como o incremento das taxas de Imposto sobre a Renda, gerou para a indústria petrólera uma subida em seus custos de produção da ordem de 20%.

7 VILLA DUARTE, Rafael. “Venezuela: o projeto de refundação da República”. Lua Nova, n.49, 2000, pp. 135-139.

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A partir de 1958, o Estado Venezuelano anunciou sua decisão de intensificar sua atuação no âmbito empresarial. As empresas receberam um importante impulso, com o qual o Estado incrementou suas inversões tanto na industria siderúrgica quanto na petroquímica. Ampliou-se também sua gestão direta na industria açucareira e na indústria elétrica. Paralelamente, se deu grande importância ao processo de industrialização do país, pondo em marcha um audaz programa de substituição de importações recomendado pela CEPAL. Para isso, expandiram-se também os créditos concedidos ao setor privado. Segundo Asdrúbal Batista boa parte das empresas manufatureiras que estavam se estabelecendo, dependiam em alto grau da importação de insumos, ou seja, não se deu um verdadeiro impulso no aproveitamento de matérias primas nacionais, nem se sucedeu com a magnitude esperada o efeito multiplicador que mudou de mãos nas novas inversões. A formação bruta do capital fixo experimentou considerável deterioração até o ano 1962, a partir do qual se inicia uma moderada recuperação. Este fator foi possivelmente uma das causas principais do aumento das taxas de desemprego do período e a diminuição das inversões, tanto nacionais como estrangeiras. O bem-estar econômico da coletividade, medido em termos de consumo priva do não acompanharam a desfavorável conjuntura econômica. De 1957 a 1963, os gastos de consumo privado cresceram a uma taxa em média de 5,5% ao ano, cifra que representa cerca de metade da taxa a que se incrementaram ditos gastos no período de 1950-1957. Apesar da reforma agrária ter constituído um dos aspectos fundamentais da política econômica do governo, razão pela qual se destinaram importantes recursos, o produto gerado pela agricultura aumento em termos reais a uma cifra da ordem de 6% anual no lapso compreendido entre 1958 e 1963, porcentagem muito similar ao experimentado durante o período de 1950-57. O Produto Interno Bruto cresceu entre 1958 e 1963 num ritmo de 4,3%, menos da metade do crescimento que este indicador havia experimentado entre 1950 e 1957. Como conseqüência disso o produto per capita, que havia crescido a uma taxa anual de 4,9% de 1950-57, teve durante o lapso 1958-1963 um crescimento da ordem de apenas 1%. A partir de 1958 há um forte aumento do gasto público. Entre 1958 e 1964 os ingressos do Tesouro aumentaram em 124% em comparação com os sete anos precedentes. Tais ingressos, que em 1958 haviam chegado a uns 6.300 bilhões de bolívares. Em 1964 superaram os 7.600 bilhões de bolívares. Há um aumento na pressão tributária que se materializou pela via da elevação das taxas de imposto sobre a renda, os impostos de importação e o aumento de alguns tributos municipais e estatais. Ademais, há também uma intensificação na utilização do crédito público. No fim de 1957, as Reservas Internacionais da Venezuela alcançavam 1.396 bilhões de dólares. A partir de 1958, se inicia um violento processo de drenagem das reservas provocados pela fuga de capitais, atemorizados pelas mudanças que estavam ocorrendo no país. Tal processo se via ademais estimulado pelo rumo comunista que teria adotado

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a Revolução Cubana e os que a mesma pudesse se estender a Venezuela. Desta forma, para 1962, as Reservas Internacionais haviam diminuído para 583 bilhões de dólares. Com a intenção de frear a saída de divisas, o Governo Nacional cria em novembro de 1960, mediante Decreto n°390, um regime de controle de cambio. Vale dizer que o primeiro qüinqüênio do “ponto fijo” foi o único período no qual não houve nenhum trauma de importância nos mercados petroleros internacionais. Talvez por isso um período de acentuada depressão econômica Venezuelana. Dali em diante, durante o mandato de cada um dos presidentes, os citados mercados petroleros sofreram em algum momento sérios desajustes que, de uma forma ou outra refletiram em um incremento importante aos ingressos fiscais, aportados para o setor de hidrocarburetos. Ao iniciar-se o mandato do presidente Raúl Leoni, a economia Venezuelana parecia haver superado a crise que a havia afetado durante o qüinqüênio anterior. Em janeiro de 1964, havia se eliminado o regime de controle do cambio formalizando se a desvalorização do bolívar e fixando-se um cambio livre a razão de Bs. 4.50 por dólar. Mantinha-se a obrigatoriedade de vender ao Banco Central da Venezuela as divisas provenientes das atividades petroleras e minerais. A recuperação econômica e a diminuição dos níveis de desemprego estiveram acompanhadas, no âmbito monetário, por uma significativa estabilidade no nível de preços. Debatia-se a necessidade de se aprovar uma Reforma Tributária. Surgiu o denominado Movimento da classe média, encabeçado por Guillermo Morón, que alegava, que não se deveria aumentar a pressão fiscal sem antes diminuir os gastos do governo. O governo submeteu a consideração do Congresso em 1966, um conjunto de instrumentos legais entre os quais cabe destacar o Projeto de Desapropriação em razão de utilidade pública. Simultaneamente, aumentaram as tarifas de serviços e os fundos de cotização do Seguro social obrigatório. Em maio de 1967 a denominada Guerra dos seis dias estalou no Oriente Médio. As conseqüências para os mercados petrolíferos internacionais foram enormes. Derrotado o Egito decidiu bloquear pela segunda vez o Canal de Suez, que permaneceu fechado a navegação entre 1967 e 1975. Por este passavam diariamente tanques que transportavam milhões de barris, provenientes do Golfo Pérsico, que para chegar aos mercados europeus teriam que bordear todo o continente africano. Isso implicava um aumento adicional na viagem de cerca de 9.500 milhas náuticas. Como conseqüência do conflito antes descrito, o petróleo venezuelano adquiriu novamente uma extraordinária importância estratégica. Os ingressos do Fisco Nacional experimentaram um considerável incremento. Assim, em 1967 superaram pela primeira vez os 10.000 bilhões de bolívares. Durante esse período as Reservas Internacionais da Venezuela experimentaram um constante aumento (exceção feita ao ano de 1966), passando de 835 milhões de dólares em 1964 a 939 milhões de dólares em 1968.

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O período compreendido entre 1964 e 1968 se caracterizou por uma recuperação econômica e uma maior estabilidade social, fator este último que se põe em evidência ao comprovar que a taxa de desemprego diminui desde 10,32% até 6,31% da população ativa. Três pontos fundamentais caracterizam o período compreendido entre os anos de 1969 e 1973, do primeiro mandato de Rafael Caldera: a guerra contra os considerados guerrilheiros comunistas, a busca do equilíbrio dos poderes públicos e a disciplina fiscal. Aos finais de 1973 a chamada guerra de Yom Kippur entre Israel e os árabes fizeram os preços do petróleo subir de 2 a 12 dólares o barril. Novamente foi a Venezuela que supriu a demanda do mercado. Então em 1974 os ingressos ordinários do Estado aumentaram em aproximadamente 165% com respeito ao ano anterior e, ainda mais entre 1975-77 onde os ingressos ficaram em torno de 40.000 bilhões de bolívares. O crescimento dos ingressos impulsionou um ambicioso plano de desenvolvimento, em que se contemplavam várias inversões em projetos de expansão industrial, assim como um acelerado crescimento dos serviços governamentais. O rápido incremento da oferta proveniente do brusco aumento dos preços do petróleo, junto às políticas fiscais expansivas que, pelo lado da demanda, propiciou o governo, desembocaram em uma subida do nível dos preços. Tais pressões inflacionárias surgiram como conseqüência do rápido crescimento da liquidez monetária. A política de gasto público impulsionou um rápido incremento da atividade produtiva, isso refletiu um crescimento excepcional do PIB (chamado de Produto Territorial Bruto – PTB por lá). A renda per capita, medida a preços constantes de 1968, foi de 2,9%, crescimento este que no qüinqüênio anterior tinha sido de 1,64%. Apesar do crescimento real médio da atividade manufatureira foi de 9,3% interanual e o setor de serviço de 9,8% interanual, o setor produtivo interno não pode gerar bens e serviços necessários para satisfazer totalmente a demanda interna, já que esta última crescia a um ritmo muito acelerado. Entre 1974 e 1977, o consumo real mostrou uma taxa de crescimento interanual na média de 12%. A impossibilidade que se encontrava o aparato produtivo de satisfazer as exigências da demanda exacerbada, não somente pelo crescimento do gasto público senão também pela expansão do crédito bancário e do endividamento externo, se traduziu em um importante aumento das importações. O crescimento do saldo global da balança de pagamentos, que havia mostrado elevados superávits entre 1974 e 1975, estancou durante os dois anos seguintes, para experimentar uma contração em 1978. Para José Toro Hardy durante o primeiro qüinqüênio de Carlos André Perez se engendraram a maior parte dos desequilíbrios e desajustes que desembocaram ao longo do período de estancamento que posteriormente sofreria a economia Venezuelana. Ainda segundo o autor, talvez o maior dano que padeceu o país que transcendeu muito mais do que o puramente econômico. Tratou-se de uma afetação geral conforme a qual o Venezuelano adotou uma atitude de novo rico. O dinheiro, não importava sua origem, passou a ser motivo de admiração e apreço por vastos setores da sociedade.

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Durante a maior parte dos anos de referência, o governo venezuelano esqueceu todas os ensinamentos de Keynes que aconselhava a aplicação de medidas fiscais expansivas durante os períodos de contração e de políticas fiscais restritivas em momentos de expansão. Ao se iniciar o ano de 1979, as perspectivas da economia venezuelana eram lamentáveis. A queda dos ingressos do petróleo haviam provocado uma brusca desaceleração da demanda agregada e persistiam os problemas que obstaculizavam a capacidade de expansão da produção. O PIB cresceu somente 3%, cifra muito inferior a dos anos anteriores. Os setores da mais afetados era da manufatura e do comércio. O enfraquecimento do mercado petroleiro havia refletido em uma contração dos ingressos fiscais que essa indústria aportava as finanças públicas, em uma ordem de 3.600 bilhões de bolívares. Como conseqüência houve uma contração das operações cambiárias, originado pela dissimulação do valor das exportações petrolíferas, a oferta monetária padeceu de uma grande desaceleração em seu ritmo de crescimento com respeito aos anos anteriores. A aguda deterioração da balança de pagamentos gerava expectativas cambiárias negativas e a demanda agregada interna experimentava, por sua vez, uma importante contração. Pela primeira vez desde 1930, ano em que Gómez havia cancelado integralmente as dívidas da Venezuela com o exterior, o país enfrentava um sério problema em matéria de dívida pública externa. Em resumo, o novo governo presidido por Luís Herrera Campins havia recebido, como dizia, um “país hipotecado”. No entanto, novamente o mercado internacional petroleiro padeceu de um novo acontecimento, a rebelião do Irã com a queda do Shah e se instaura a revolução islâmica, dirigida por Ayatollah Khomeine. A nova elevação abrupta dos preços do petróleo, veio corrigir o desequilíbrio da balança de pagamentos e contribuiu também para moderar o déficit fiscal. Cabe destacar que aumento dos preços do petróleo produziu um sério estancamento da economia mundial, que, por sua vez, afetou a economia Venezuelana. Ao tomar posse o governo de Herrera Campis, as novas autoridades estavam convencidas de que os desequilíbrios fundamentais da economia venezuelana surgiram como conseqüência de uma super estimulação provocada pela aplicação de medidas fiscais expansivas e uma mal utilização das políticas de demanda. Decidiram, portanto, em princípio, adotar um conjunto de medidas do lado da oferta, tendentes a diminuir os controles exagerados que pesavam sobre as distintas atividades produtivas. Procurou-se estimular a livre iniciativa do setor financeiro, liberaram-se os preços e, em geral realizaram políticas monetaristas com o objetivo de frear o crescimento do gasto público. A luta contra a inflação se tornou a bandeira econômica mais importante do governo. A partir de 1982, a situação da Venezuela experimentou novamente uma profunda mudança. Os ingressos petroleiros começaram a diminuir. A crise econômica mundial e, em particular a dos países latinoamericanos, começou a afetar profundamente o país. O problema da dívida externa se tornou agudo. Os ativos internacionais da Venezuela elevados, começaram a diminuir de maneira preocupante, apesar da tomada de medidas para impedir que a reserva do país caíssem a níveis inaceitáveis.

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A primeira de tais medidas foi uma revalorização das reservas em ouro, as quais aumentaram de 42,22 dólares a 300 dólares pelos Estados Unidos. Por isso, o valor contável das reservas internacionais em ouro refletiu um aumento da ordem de 2.995 bilhões de dólares. Adicionalmente, o Banco Central da Venezuela subscreveu um convênio cambiário graças ao qual as divisas da PDVSA foram centralizados no BCV. Se tratava de manejo puramente contábil, pois, na prática, as reservas reais caiam de maneira brusca. Enfrentava-se a necessidade de pagar a dívida externa, já que uma parte substancial da mesma havia sido contraída a curto prazo. A nação encontrou uma resistência inesperada por parte da banca internacional. Supunha o governo que de alguma maneira se estava “cobrando” da Venezuela o apoio moral dado à Argentina na guerra das Malvinas. No final de 1982, conjugavam-se uma soma de fatores que tendiam a escurecer o cenário econômico da Venezuela. De um lado, os ingressos petroleiros caíram fortemente, com o conseguinte efeito negativo tanto no setor interno, o qual evidenciava um claro estancamento, como no setor externo da economia. De outro lado, deflagrou-se a crise mexicana, criando sérias tensões na banca internacional, ante ao temor da insolvência das nações latinoamericanas frente a sua alta dívida externa. O clima de incerteza gerava uma alta fuga de capitais e, por conseguinte a drenagem das disponibilidades monetárias do poder público e da banca, o que por sua vez incidia numa drástica redução da inversão privada e determinava um pronunciado déficit na balança de pagamentos, afetando o montante das reservas internacionais. Em 18 de fevereiro de 1983, uma data que popularmente ficou conhecida como “a sexta negra”, o governo se viu obrigado a reconhecer que resultava impossível fazer frente aos compromissos externos que venceriam nesse ano. Em conseqüência adotou uma política de controle do câmbio. Desta forma, implantaram-se conjuntamente tanto o Regime de Câmbios Diferenciais (RECADI) como o Sistema de Controle de preços, através dos quais se privilegiou, por uma parte, a importação de insumos com um tipo de cambio preferencial e, por outra, impuseram-se severos controles para impedir a transferência dos preços finais aos custos de produção. O controle de preços aplicado consistiu originalmente em um congelamento transitório, em todo o território nacional, do preço de todos os bens e serviços. Vencido o prazo de 60 dias, dentro do qual todos os preços haviam sido congelados, entrou em vigência o referido Sistema Administrativo de Preços, que implicava no regresso da política de controle generalizado dos preços, abandonada parcialmente em 1979. Mediante o novo sistema, somente se permitiam altas de preços ajustadas aos aumentos do custo de produção. Tais aumentos estavam fundamentalmente influenciados pelos novos custos cambiários derivados da desvalorização. O resultado inicial do Sistema de controle de preços foi uma redução da pressão inflacionária e se reduziram drasticamente os preços. É claro que tal medida coincidia com o ano eleitoral. Ademais foi o resultado de elevados acúmulos de matéria-prima como de produtos determinados que haviam sido importados em anos anteriores que

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puderam seguir sendo importados ao mesmo tipo de cambio preferencial prevalecente até o momento. O refinanciamento da dívida externa venezuelana acabou condicionado pela banca credora no estabelecimento de um acordo com o Fundo Monetário Internacional. Posto que se tratava de um ano eleitoral, o governo se negou a realizar mudanças econômicas acentuadas que eram necessárias aos planos de ajuste, razão pela qual se negociaram vencimentos periódicos das obrigações vencidas. Venezuela teria se tornado isolada financeiramente e se fecharam todas as possibilidades creditícias, incluindo as linhas de crédito de que se necessitava para importar os insumos requeridos do processo industrial. Ao iniciar-se o novo período governamental, resultava imperativo resolver o problema com a banca internacional, já que o país havia fechado suas possibilidades financeiras internacionais, o que acarretava graves conseqüências tanto para o setor público como para o setor privado. Com efeito, o presidente Lusinchi anunciou que resolveria o problema do refinanciamento. Na realidade, a banca não estava disposta a formalizar nenhum convênio até que se tivesse completado um processo de revisão e reconhecimento da dívida externa privada, o qual se realizou em fins de 1985. Por outro lado, a crítica situação em que se encontrava a economia do país havia obrigado o governo, a tomar desde 1984 um conjunto de medidas de caráter restritivo, ajustadas de acordo com as recomendações do Fundo Monetário Internacional. No âmbito fiscal se acordaram um conjunto de medidas de austeridade tendentes a reduzir o déficit fiscal do setor público. Tais medidas conduziram a uma diminuição das obrigações governamentais, relacionadas aos gastos correntes da administração pública, como com os gastos de inversão. Enfim, este período pode ser resumido na extrema dependência da economia venezuelana com respeito ao setor petrolífero. Os efeitos negativos de tal dependência se manifestaram periodicamente em circunstâncias particulares, como por exemplo em 1986, quando os preços do petróleo derrubaram os mercados internacionais e nos erros cometidos na renegociação da dívida externa venezuelana em 1986. Apesar das numerosas advertências por parte de muitos setores, o Executivo Nacional se empenhou em realizar uma negociação inconveniente para o país. Esta obrigava a altos pagamentos de juros e as condições obtidas foram as menos vantajosas do que as que foram obtidas por outros países da América Latina. O período entre os anos de 1989 e 1993 é de fundamental importância para a delimitação e compreensão da profundidade da crise que se iniciara, e de qual era a margem de manobra que possuíam os principais atores do puntofijismo. Os venezuelanos ainda elegeram, pela segunda vez, em finais de 1988, o social-democrata Carlos Andrés Perez da AD. Pérez já havia governado o país entre 1973 e 1978, período coincidente com a primeira grande escalada dos preços internacionais do petróleo. No seu mandato anterior a Venezuela estava vivendo o melhor dos mundos, no momento em que as nações árabes produtoras de petróleo impunham um embargo às

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poderosas democracias, a Venezuela era a grande esperança das nações industrializadas, sendo o único abastecedor seguro de petróleo para o Ocidente. Nunca antes a Venezuela havia gozado de uma posição geopolítica tão destacada. Já em 1989 a situação era outra. Os mercados petroleiros se encontravam abarrotados de petróleo e a OPEP se debatia um infrutífero esforço para impor cotas de produção a seus membros, com o objetivo de frear a queda de preços. Nos Estados Unidos se instaurou um novo estilo de governo e das políticas conhecidas como “supply-side-economics” do presidente Reagan. No mundo inteiro prevaleciam às políticas econômicas orientadas para o “lado da oferta”, tanto que o Keynesianismo aparecia como algo fora de moda. O socialismo desmoronava na União Soviética. Na América Latina a CEPAL estava desprestigiada e as virtudes da economia de mercado e das políticas de oferta determinavam o rumo que as nações latino-americanas deveriam seguir. Tais eram as tendências prevalecentes para o segundo mandato de Carlos André Pérez. Assim, este resolve adotar um “pacote econômico” que estava integrado por medidas de caráter estrutural e desenhadas “conforme o mercado”. Com respeito, as políticas de oferta, em sua orientação básica, se concebem mais como uma atuação tendente a flexibilizar as regras do jogo de um sistema econômico. A política de oferta há de ser entendida, sobretudo, como um conjunto coordenado de atuações encaminhadas para eliminar os obstáculos e a rigidez que impossibilitam o funcionamento fluído do sistema econômico. Entre os programas de maior importância empreendidos pelo Executivo Nacional se encontra sem dúvida alguma o início do processo de privatização de várias empresas do Estado. Na Venezuela a privatização se iniciou a partir de 1990 com a venda do Banco Ocidental de Desconto. Continuou com a venda, em março de 1991, do Banco Ítalo Venezuelano, pela quantidade de 3,446 bilhões de bolívares a um grupo de pequenos bancos, representados pelo Banco Hipotecário Falcón, o Banco Profissional e Sofitasa. Uma grande parte desses recursos foi destinada a repor o capital do banco, recebendo o Banco Central da Venezuela, seu antigo dono, a quantia de 700 milhões de bolívares. Posteriormente se vendeu o Banco República, também pertencente ao Banco Central da Venezuela. No caso da venda dessas instituições, se impôs um prazo para converter-se em empresas SAICA, ou seja, que 50% de suas ações deviam passar as mãos de pequenos acionistas. Privatizou-se o serviço de telefonia celular, o qual este momento estava em mãos do monopólio do Estado. Desta forma, o consórcio Telcel passou a ser competidor da CANTV no campo da telefonia. Igualmente se privatizou e regionalizou a administração dos portos, em especial se liquidou o Instituto Nacional dos Portos, assim se pode demitir cerca de 12.000 trabalhadores que prestavam seus serviços ao instituto. Em 4 de fevereiro de 1992 o processo de privatização foi paralisado. As normas para a nova política comercial se implantaram através de uma série de reformas, que tinham por finalidade abrir progressivamente o mercado interno venezuelano a livre iniciativa estrangeira. Um aspecto fundamental de tal política foi a adesão da Venezuela ao GATT em setembro de 1990.

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O período entre os anos de 1989 e 1993 é de fundamental importância para a delimitação e compreensão da profundidade da crise que se iniciara, e de qual era a margem de manobra que possuíam os principais atores do puntofijismo. As medidas do “pacote econômico” não foram muito bem acolhidas pelos setores populares venezuelanos. A opção neoliberal inaugurada em 1989, que incluía um forte ajuste fiscal, privatização dos principais estatais, com exceção da petrolífera, e o enxugamento da máquina administrativa do Estado (em um país onde o Estado e suas empresas eram os principais empregadores), nunca suscitou o mesmo entusiasmo popular “que as políticas intervencionistas do passado. Enquanto o intervencionismo havia achado sua expressão máxima na nacionalização do petróleo de 1976, aplaudida pelo país e uma fonte de orgulho nacional, o período neoliberal (inaugurado por Pérez) assistiu à transferência a grande escala de empresas nacionais”8 O primeiro forte sintoma da instabilidade política do sistema democrático venezuelano foi o então denominado Caracaço, de 27 de fevereiro de 1989, e que se constituiu de uma reação militar repressiva dirigida ao protesto de setores mais pobres da população (vindo dos cerros e os ranchos de Caracas, como são conhecidas as favelas na Venezuela) contra as medidas neoliberais de Pérez. Nesse acontecimento morreram aproximadamente trezentas pessoas, de acordo com dados oficiais, e mais de mil segundo fontes extra-oficiais9. A escalada de instabilidade política, por sua vez, não cessaria neste incidente. De fato, as instituições democráticas venezuelanas oriundas do Pacto de Punto Fijo nunca mais se refariam dos efeitos desestabilizadores do Caracaço. Na seqüência, um grupo de oficiais, liderados pelo então tenente-coronel Hugo Chávez Frias, aprofundaria a crise política venezuelana, protagonizando uma tentativa de golpe em fevereiro de 1992. Encerrando o drama da tragédia democrática venezuelana do período, a instituição presidencial ficou profundamente desmoralizada quando o então presidente Carlos André Peréz é afastado do governo, em 1993, sob a acusação de corrupção. As relações entre o comportamento da economia de petróleo e o sistema político também são importantes para explicar a crise do puntofijismo. O comportamento negativo da economia nos anos de 1980 afetou de forma relevante a base material redistributiva do regime venezuelano, fato que mostrava que a eficácia política do Pacto de Punto Fijo estava intrinsecamente atrelado ao comportamento do modelo rentista petrolífero. Com a crise dos anos de 1980, a chamada década perdida, toda a América Latina enfrentou uma derrocada econômica feitas pelas elites políticas na região latino-americana. No caso da Venezuela, a situação agravou-se devido à queda internacional dos preços do petróleo a partir do ano de 1984, e também ao aumento nos encargos da dívida externa. O regime democrático, que entre 1965 e 1980 havia sido capaz de manter um ritmo de aumentos salariais relativamente constantes e do gasto social, claras resultantes do aumento dos preços do petróleo, via reduzida esta capacidade. O PIB per capita, que havia chegado a um teto máximo em finais dos anos de 1970, caiu cerca de

8 ELLNER, Steve. En la búsqueda de interpretaciones. Em ELLNER, Steve e HELLINGER, Daniel (eds.) La política Venezolana en la época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas, Nueva Sociedad, 2003 9 Ver em anexo a esta narrativa o filme sobre o Caracaço.

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20% nos anos de 1980, fazendo com que os indicadores regredissem àqueles dos anos de 196010. Com certa perplexidade, os analistas reconheciam que a Venezuela parecia vítima do próprio sucesso institucional e socioeconômico dos seus trinta anos de democracia. Os mesmos fatores que antes eram tidos como importantes para o sucesso e a estabilidade do sistema democrático venezuelano, os pactos partidários originados a partir do Estado, a excessiva institucionalização do bipartidarismo, a economia exportadora baseada no petróleo, e até mesmo sistema eleitoral e a disciplina partidária, eram agora identificados como causas da própria instabilidade democrática. O diagnóstico apontava que tais fatores, que antes haviam garantidos o sucesso da democracia venezuelana, fechavam o espaço para incorporar novos atores políticos e sociais “com capacidade de decisão no sistema político”11 Uma reforma do Estado que pudesse ter a descentralização política administrativa como meta foi então tentada. Os governadores que antes eram indicados pelo presidente da República e os alcaides (prefeitos), que eram eleitos indiretamente pelas próprias câmaras municipais, passaram a ser eleitos diretamente pelo voto popular. Essas reformas não foram suficientes para reinstitucionalizar politicamente os atores de Punto Fijo, então incapazes de entender que não era possível conciliar e manter intacto o sistema por eles montado, ao mesmo tempo que deterioravam as condições institucionais e materiais de tal sistema. É a compreensão de que eram necessárias mudanças no sistema político, desta forma, que talvez se associe o principal mérito da emergência da figura de Hugo Chávez no cenário da política venezuelana. Todavia, o enterro do puntofijismo realizou-se apenas no segundo governo Rafael Caldera, que já havia governado o país entre 1968 e 1972. Rafael Caldera foi o único grande dirigente da elite tradicional de Punto Fijo que compreendeu que eventos como o Caracaço e a insurreição militar encabeçada por Hugo Chávez não eram momentos circunstanciais, produtos de aventureiros como alguns setores políticos os qualificaram, mas que refletiam sim um descontentamento político e social generalizado para com a ineficácia das instituições democráticas face à crise econômica e à ausência de canais de participação políticas institucionalizadas. Caldera tirou proveito de sua habilidade para interpretar de maneira diferente o significado da crise e, tendo abandonado seu partido de origem (Copei) e se apresentado com um discurso populista que o aproximava das reivindicações dos setores populares e da classe média, elege-se presidente em finais de 1993. Todavia, uma vez eleito, Caldera continuaria a agenda inaugurada por Pérez, aprofundando as medidas neoliberais sob o pomposo nome de Agenda Venezuela. A segunda gestão de Caldera, mais do que restituir o pontofijismo nos trilhos anteriores a 1989, aprofundou entre os setores sociais venezuelanos três sentimentos quase irreversíveis em relação ao sistema político: o desprestígio dos partidos políticos tradicionais e de suas lideranças, das quais Caldera era um ícone; uma sensação de que existia um vazio institucional de poder incapaz de ser coberto por uma elite política remanescente de 1958; e, por fim, o desejo dos setores populares, e mesmo da classe

10 ROBERTS, Kenneth. “Polarización social y resurgimiento del populismo en venezuela”. In ELLNER, Steve e HELLINGER, Daniel (eds.) La política Venezolana em la época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas, Nueva Sociedad, 2003. 11 Idem.

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média, de renovar suas elites dirigentes para que estas fizessem funcionar novamente o sistema clientelismo redistributivo que tinha operado até os anos de 1980. Claro exemplo disso foi o fato de La Causa Radical, um partido regional e de base social laboral, conseguir viabilizar-se como opção eleitoral nas eleições de 1993. Destaca-se que para alguns observadores ainda não está completamente esclarecido se seu candidato, Andrés Velásquez, não teria ganhado as eleições presidenciais desse ano12. Com o enfraquecimento do puntofijismo, estabeleceu-se uma espécie de vazio na política venezuelana, a despeito da vontade de muitos voluntários de preenchê-lo, dentre os quais pode-se apontar “os sindicatos, os setores profissionais e gerenciais e o setor militar”13. Contudo, nenhuma alternativa seria tão bem aceita pela população quanto aquela proposta por Hugo Chávez. Destaca-se que mesmo o próprio Chávez, a princípio não compreendeu bem a dimensão política das conseqüências de sua tentativa de golpe de 1992, e o porquê desta ter sido tão bem recebida por grandes contingentes da população, tamanha era a descrença nas lideranças democráticas do Punto Fijo. Essa falta de compreensão inicial, por parte de Chávez, em relação ao exato significado das forças em prol da mudança institucional que havia colocado em movimento, pode ser relacionada ao fato de que, nas eleições de 1993, ele e o Movimento Revolucionário Bolívar 200 (MBR 200, seu movimento político de origem da época de oficial), conclamassem a abstenção eleitoral. Após 1993, Hugo Chávez reviu sua posição e, dada a grande aceitação popular em torno de sua figura, propôs modificar as instituições de “dentro pra fora”, por meio de uma Assembléia Nacional Constituinte. Com isso, tornou-se vital a modificação de sua estratégia de ação política sustentada até então. Fazia-se necessária a defesa da participação nos próximos pleitos. Surge, assim, o movimento Quinta República (MVR)14. O discurso chavista que precede as eleições presidenciais de 1998, transformou-o naquele que melhor interpretava o desejo de mudança popular, tanto em relação à classe política dominante como em relação às suas instituições legadas pela constituição de 1961. A linguagem dura com que Chávez dirigiu-se a seus adversários nos seus longos discursos era o idem sentire de tudo aquilo que sua base social gostaria de ter expressado para as elites nas duas décadas perdidas de 1980 e 199015. Para a emergência de Chávez, contribuíram consideravelmente tanto os erros de alguns de seus adversários, como o profundo sentimento de rejeição aos partidos tradicionais que manifestavam os venezuelanos. Em relação a estes dois pontos, o exemplo mais notável foi protagonizado pela carismática aspirante presidencial Irene Sáez. Esta ex-miss universo, independente politicamente, havia realizado nos anos de 1990 duas gestões administrativas bastante aceitáveis como prefeita do Município Chacao, um dos vários municípios nos quais se divide a capital Caracas. Este retrospecto político positivo a qualificava como uma candidato de peso, fato que rapidamente se expressou nos altos índices atingidos nas pesquisas eleitorais, nas quais liderou durante mais de um ano. Saez, ciente de que não

12 HELLINGER. Op. Cit. 13 Idem. 14 MÁRQUEZ, Patrícia. Por qué la gente voto por Hugo Chávez? In In ELLNER, Steve e HELLINGER, Daniel (eds.) La política Venezolana em la época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas, Nueva Sociedad, 2003. 15 VILLA. Op.cit.

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podia concorrer sem o apoio de uma maquinaria política, cometeu o erro de aceitar o apoio do partido Copei. O efeito foi devastador: em poucos meses sua candidatura declinou. O julgamento popular evidentemente não foi feito à candidata, mas sim aos partidos tradicionais. Questionou-se se a candidata teria a suficiente força e vontade política para romper com os partidos do pacto de elites, AD e Copei, então julgados como os principais responsáveis da crise social e política do país. Sua queda nas pesquisas não podia ser creditada necessariamente ao surgimento de um sentimento anti-partidário ou anti-político, mas sim aos anseios, tanto das classes médias como dos setores populares, de uma renovação dos partidos e da classe política. Ou, para usar a conhecida expressão de Pareto, de um anseio de circulação das elites. A vitória eleitoral de Chávez em dezembro de 1998, que recebeu 58% dos votos válidos frente ao adversário Enrique Salas Romer Feo, candidato que assumia publicamente a opção pela continuidade de agenda neoliberal implementada pelos dois governos anteriores, trouxe importantes alterações para a política venezuelana, e para a própria política latino-americana.Apesar das desconfianças despertadas em torno de seu estilo personalista, a transformação do parlamento de bicameral para unicameral, a eleição dos juízes, e, sobretudo, o esvaziamento do antigo sistema bipartidário, indicam uma “forte preferência por uma administração das mudanças através de meios democráticos”16. Segundo Villa, Chávez poderia ser caracterizado como um tipo intermediário de liderança populista que, apesar de ter derrubado um sistema de partidos e de ter abraçado um discurso duro contra os partidos tradicionais, não é propriamente uma liderança anti-partidária como foram à sua época Collor de Mello no Brasil e Fujimori no Peru.O movimento V República se constituiu mais em uma frente heterogênea de forças políticas e sociais, na qual se albergam desde setores nacionalistas e da esquerda tradicional até setores provenientes dos partidos hegemônicos do puntofijismo, do que propriamente um partido político. E, ao contrário do que se estabelecia no sistema de partidos de Punto Fijo, no qual a fidelidade partidária era uma característica forte dos setores nucleados em torno de AD e Copei, tal fidelidade dos setores não se associa à instituição, o MVR, mas à própria figura de Chávez. Por outro lado, a oposição na era Chávez é ainda bastante fragmentada politicamente, não tendo sido capaz de se reinstitucionalizar e de se legitimar eleitoralmente. A proposta programática parece, de alguma maneira, reduzir-se à proclamação do antichavismo. Um traço distintivo da política doméstica de Chávez é que o embate entre forças políticas deixou de ser de natureza estritamente política para se transformar num embate abertamente social. Alguns estudiosos do processo político venezuelano têm apontado tal processo como sendo uma transformação da polarização social em polarização política17 Chávez assumiu a presidência da Venezuela em fevereiro de 1999 e, em julho do mesmo ano, promoveu eleições para a eleição de Assembléia Nacional Constituinte (ANC), que produziria uma nova constituição em substituição àquela de 1961. As forças chavistas obtiveram esmagadora maioria na ANC, elegendo 125 deputados, 16 Idem. 17 Idem.

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enquanto a oposição só conseguiu eleger seis. Aprovada em dezembro de 1999, a nova Constituição tem entre suas fortalezas o fato de ter estabelecido novas pautas para a reestruturação do poder judiciário e de ter elevado a cinco os poderes públicos: além dos três poderes clássicos (Executivo, Legislativo e Judiciário), somaram-se o Poder Cidadão e o Eleitoral, ambos já presentes em documentos do MBR 200 nos anos de 1990. Além disso, a nova Constituição, que alteraria o nome de Venezuela para República Bolivariana da Venezuela, concedeu também o voto aos militares e transformou o poder legislativo de bicameral em unicameral, sendo sua instância máxima a Assembléia Nacional. Destaca-se também na nova Constituição a capacidade do executivo poder legislar por meio da lei habilitante a respeito de qualquer matéria. Em finais de 2000, a Assembléia Nacional aprovou um pacote de 49 leis habilitantes. Duas dessas leis, em especial, causaram grande polêmica no país:A lei de hidrocabornetos, que rege o setor petroleiro, e a Lei de Terras, que trata da reforma e do desenvolvimento agrários. No primeiro caso, porque o governo passou a exigir que o capital venezuelano tivesse maioria acionária nas parcerias com petroleiras estrangeiras atuantes no país, o que os defensores da liberalização do setor viram como retrocesso. O governo ainda aumentou de 16,6% para 30% os royalties cobrados sobre o barril do petróleo, se bem que essa medida foi atenuada pela diminuição de 64% para 50% do imposto sobre a renda petroleira. Já a polêmica sobre a lei de terras é um pouco mais complexa. De qualquer modo, se estabeleceu no artigo 342 da Constituição Bolivariana que “o regime latifundiário é contrário ao interesse social” na Venezuela18 A partir da intensa discussão dessas duas leis habilitantes, há uma radicalização entre os “chavistas” e a oposição, gerando-se um quadro de polarização de campos políticos de “nós e os outros”. O resultado foi que a classe média, além de sentir poucos sinais positivos de recuperação de seu status e alto padrão de vida socioeconômico dos anos de 1970 e início de 1980, começou a questionar a eficácia da retórica presidencial para combater o desemprego (em torno de 18% em finais de 2002), a desigualdade social e a a violência urbana, além de se sentir desconfortável em relação à linguagem dos discursos de Chávez. Chávez também não levou em conta que a classe média venezuelana não teria a suficiente paciência para esperar por mais reformas que fizessem funcionar o velho e desgastado sistema político venezuelano, então inaugurado em 1958. Há que se destacar que grande parte da geração da classe média que protestava nas ruas de Caracas contra Chávez é aquela que cresceu nos melhores anos do boom petroleiro venezuelano dos anos de 1970 e início de 1980. As demandas desse setor social em muito se distanciavam da pregada “revolução pacífica e bolivariana”. A expectativa desses setores de classe média quando votaram em Chávez, em dezembro de 1998, era a de que o novo governante fizesse funcionar novamente, e de maneira eficaz, o velho sistema político19. Os sintomas da transformação da polarização social em polarização política se manifestaram em três momentos importantes. Em primeiro lugar, aponta-se a greve petrolífera ocorrida entre finais de 2002 e início de 2003, quando só os setores informais da economia não pararam suas atividades. Em segundo, destaca-se a tentativa de golpe 18 UCHOA, Pablo. Venezuela: a encruzilhada de Hugo Chávez. São Paulo, Globo, 2003. 19 VIVAS, Leonardo. Chávez: a última revolución del siglo. Caracas, Planeta, 1999.

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de estado de abril de 2002. “A marcha massiva do 11 de abril (de 2002) que originou a tentativa de golpe partiu das zonas abastadas de Caracas e estava composta principalmente por membros da classe média”. Em contrapartida, neste período, setores populares de Caracas uniram-se a segmentos das Forças Armadas fiéis a Chávez de forma a reinstalar no comando do governo o presidente deposto. O terceiro momento, por sua vez, refere-se ao referendo presidencial de 15 de agosto de 2004, no qual Chávez obteve massiva votação entre os mesmos setores populares. O resultado desses fatos foi, pois, um período de enorme instabilidade política entre o segundo semestre de 2001 e o segundo de 2004. Alguns estudos mais recentes têm chamado a atenção para o fato de que a polarização social na Venezuela não é um fenômeno que aparece exatamente no governo Chávez. Depois do Caracaço de inícios de 1989, “os pobres chegaram a considerar qualquer bairro de classe média e alta de Caracas como território inimigo [...] Mas a desconfiança é mútua. A classe média teme que os pobres estejam a ponto de invadir suas comunidades”20. Mas, de qualquer maneira, até seu primeiro triunfo eleitoral em 1998, a base de apoio social de Chávez era bastante ampla. Assim, Chávez não criou a polarização de classes, todavia alguns trabalhos apontam que ele teria estimulado #### “Depois de sua primeira vitória eleitoral Chávez se apoiou cada vez mais nos setores mais pobres [...] É notável que as grandes marchas de apoio a Chávez se organizaram na zona oeste de Caracas, onde estão concentrados os setores de menos recursos, enquanto as marchas da oposição acontecem nas urbanizaciones do Leste da capital (na que se aloja a classe mais endinheirada e a classe média)21. Depois do fracassado golpe de 11 de abril de 1992, um dos objetivos de Chávez era reconquistar o apoio do setor social médio por meio da utilização de uma linguagem de conciliação nacional e de políticas públicas efetivas. Para atingir tal objetivo, poderia ter aproveitado da fraqueza e da torpeza dos setores empresariais associadas ao comprometimento de seus dirigentes para com o falido golpe. Chávez até tentou esse movimento de conciliação, mas existia um problema que pareceu ter ficado fora de seus cálculos: o país havia chegado a um grau tal de polarização política e social que o presidente ficara com uma margem reduzida de possibilidades de conciliação. O que significava, em outras palavras, que os ódios políticos superavam, por ampla margem, as possibilidades de conciliação nacional. O epílogo da polarização de forças políticas e sociais na Venezuela do período Hugo Chávez foi dado pela discussão sobre o referendo revogatório presidencial de meados de 2004. O efeito mais dramático desse desfecho foi mostrar o grau de instabilidade, e mesmo de falta de credibilidade, ao qual chegaram algumas instituições fundamentais, tais como o judiciário e o poder eleitoral. Ambas foram tomadas pela politização intensa que envolvia a sociedade venezuelana, permitindo que grupos utilizassem-nas de maneira instrumental, adequando as normas as suas finalidades mais imediatas.A ratificação da continuidade do mandato presidencial Hugo Chávez realizou-se em 15 de agosto de 2004, e de maneira categórica. O presidente obteve 59,1% dos votos válidos dos eleitores venezuelanos, contra 40% obtidos pela opção da oposição no referendo22.

20 Entrevista a dirigente de uma ONG Venezuelana, em ELLNER, 2003, PP.34-35. 21 ELLNER. Op. Cit. 22 Ver http://www.cne.gov.ve/resultados.

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A hipótese que pode ser apontada tanto para explicar o fenômeno eleitoral em que se transformou Chávez, como para explicar sua permanência na instabilidade política é a de que seu regime se legitima fortemente em medidas sociais concretas em prol dos setores mais marginalizados da população venezuelana, sobretudo depois do golpe de 11 de abril de 2002, quando foi clara a identificação deste setor social com a figura de Chávez. Em primeiro lugar, destaca-se o impacto positivo dos planos sociais, conhecidos como Misiones, em amplos setores populares, e em, no mínimo, um terço de setores de classe média. Tais planos constituem-se de medidas sociais emergenciais, dentre as quais pode-se destacar três de curto e médio prazos e uma de longo prazo. Os planos de curto e médio prazos são: o programa de saúde Bairro Adentro, dentro do qual médicos, cubanos em sua maioria, prestam consultas diárias e permanecem em estado de prontidão durante as 24 horas do dia nas regiões mais pobres do país; os programas Mercal, nas quais mais de vinte produtos da cesta básica podem ser compradas a preços subsidiados pelo governo; e o programa de distribuição gratuita de alimentação pronta a setores populares que vivem em condições de quase indigência. O plano que possui efeitos de longo prazo concentra-se na área de educação e abrange três frentes: a Missão Robinson, que pretendia alfabetizar mais de 1,5 milhões de pessoas entre os anos de 2003 e 2004; a Missão Ribas, que objetiva o estímulo ao reingresso no subsistema de segundo grau de pessoas que ainda não concluíram seus estudos; e, por fim, a Missão Sucre, dirigida à educação superior, cuja realização mais concreta foi a Universidade Bolivariana, que se propõe incorporar quinhentos mil estudantes sem vaga no subsistema de educação superior público e privado. Em segundo lugar, a vitória de Chávez associa-se, indubitavelmente, ao comportamento positivo da economia venezuelana nos indicadores macroeconômicos a partir de 2004, e aos efeitos redistributivos desse crescimento. De acordo com o Banco Central Venezuelano (BCV)23 depois da greve de finais de 2002 e início de 2003, deu-se uma recuperação substancial da economia no ano de 2004. No primeiro semestre desse último ano, o PIB cresceu 23,1% em comparação ao mesmo período de 200324. Esse comportamento da economia, por sua vez, refletiu-se na queda do desemprego, que passou de 18% no primeiro semestre para 15% no primeiro de 200425. Além disso, o preço médio do petróleo venezuelano atingiu preços recordes. A fortuna parece acompanhar a gestão do presidente Chávez, posto que o financiamento do petróleo, para as quais foi criado, no interior do PDVSA, o Fundo de Desarrollo Econômico, que financia tanto as Misiones como diferentes obras de infra-estrutura em diferentes regiões do país26. Ressalte-se que após o referendo o país passou a ser menos polarizado politicamente. O resultado que aproximou o presidente Chávez de quase 60% das preferências eleitorais, além de lhe assegurar uma ampla margem de legitimidade, depois de quatro anos de governo, abriu-lhe melhores perspectivas de governabilidade. De outro lado, o referendo mostrou que o quadro eleitoral era mais complexo do que aquele suposto a partir das escolhas políticas a priori dos setores sociais. Antes do referendo era forte a

23 O Banco Central goza de autonomia na Venezuela. 24 Ver http://www.bcv.org.ve. 25 QUANTUM (Caracas). “La economia se disparo 23,1% en el primer semestre de 2004”, vol I. n. 29, 2004. 26 Idem.

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idéia de que todos os setores populares votariam em massa em favor do chavismo, e que a classe média votaria em massa contra o chavismo. Uma breve análise dos dados eleitorais mostra que, em regiões de renda baixa de Caracas (distrito capital), 23% a 31% votaram pela saída de Chávez, enquanto em regiões da classe média da capital os índices dos votos contrários à saída de Chávez do poder em determinadas zonas eleitorais variaram entre 30% a 37%.A partir desses dados, então, poderíamos deduzir que a significativa diferença de quase 20% a favor daqueles que votaram pela permanência de Hugo Chávez no poder pode ser explicada, em parte, pelo volume importante de votos que Chávez recebeu de setores da classe média. É verdade que quase 70% dos eleitores de menor renda, como era previsível, votaram contra a saída de Hugo Chávez. Porém, foi uma parcela da classe média, um terço aproximadamente, o setor diferencial a favor do presidente. Desmistifica-se, portanto, a crença de que todo cidadão do setor popular tinha uma grande tendência de ser favorável ao governo do presidente, e de que todo cidadão de classe média era um potencial opositor de Chávez. III - MISIÓN MERCAL I27 Em janeiro de 2003, de acordo com o Decreto n. 2.74228 se cria a Comissão Presidencial para o Desenvolvimento do Abastecimento Alimentar, denominada Misión Mercal, como mecanismo articulador para garantir a segurança alimentar da população. A Comissão Presidencial para o desenvolvimento do abastecimento alimentar, denominada Misión Mercal, surge como mecanismo articulador para garantir a segurança alimentar da população, através do fortalecimento do mercado interno e o desenvolvimento de canais de distribuição confiáveis a nível nacional e internacional, e também garantindo a oferta permanente de produtos alimentícios para os consumidores a preços baixos, mantendo-se a qualidade do produto. A meta inicial proposta pela misión Mercal foi de comercializar 3.200 toneladas de alimentos para favorecer 8 milhões de habitantes. A partir de agosto de 2004, se estabelece como nova meta da Misión Mercal, a comercialização de 6.925 toneladas de alimentos em benefício de 15 milhões de pessoas. A quantidade de beneficiários sobe para 17 milhões em 2005 e 20 milhões em 2006. A misión Mercal se converte na conclusão de um processo que se inicia com o Plano Bolívar 2000 e os megamercados. Foram os primeiros passos do Executivo Nacional para pôr em prática uma política de seguridade alimentar, com o objetivo de combater os problemas de desabastecimento originados pela sabotagem econômica realizada pela elite econômica empresarial e reforçar os planos sociais. A Misión Mercal29 se integra a outras missiones do governo Chavez, que são:

27 http://www. mem.gob.ve/misiones/index.php. Veja também: http://www.mercal.gov.ve 28 Ver no anexo dos comentários sobre o projeto de reforma constitucional proposto pelo presidente Chávez a discussão sobre o centralismo político realizado através das missiões. A missão Mercal está inserida no plano Bolívar que se inica em 2000. 29 Idem.

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Misión Barrio Adentro30: um projeto que relaciona educação, esporte, cultura e seguridade social. Sua atividade fundamental é produto do acordo com a República de Cuba e se cumpre com a presença de 30.000 médicos cubanos em diversos bairros das cidades venezuelanas. Misión Sucre31: tem como objetivo garantir o acesso ao ensino de pós-graduação.Misión Piar: auxilia os trabalhadores da economia informal, as atividades passam a ser consideradas legais32. Misión Identidad33: objetivo de outorgar a carteira de identidade a Venezuelanos e estrangeiros. Misión Vuelvan Caracas34 (em 24 de abril de 2007 passou a se chamar Misión Che Guevara): pretende iniciar uma mudança no modelo econômico, modificando as relações de produção, com um enfoque no desenvolvimento endógeno, sob as premissas da economia popular, da equidade, solidariedade e cooperação. Misión Habitat35: esta missão tem como objetivo torna efetiva a norma constitucional de que todas as pessoas têm o direito de uma moradia adequada, segura, cômoda, higiênica, com serviços básicos essenciais que incluam um habitat que humanize as relações familiares, vizinhas e comunitárias (art.82 da Constituição Venezuelana de 1999). Misión Rivas36: tem como objetivo garantir o acesso a educação universitária a todos e transformar as condições dos excluídos do sistema de educação superior.Misión Guaicaipuro37: promover o reconhecimento referente a existência dos povos e das comunidades indígenas, sua organização social, política e econômica, sua cultura, seus costumes, idiomas e religiões, assim como seus habitats e os direitos originários sobre as terras que ocupam e que são necessárias para a sua forma de vida. Misión Miranda38: organizar, captar, registrar, controlar e capacitar a reserva da Força Armada Profissional. Misión Zamora39 (fundos zamoranos) ► recuperação da terra e luta contra o latifúndio;40Misión Robinson41: tem como objetivo o fim do analfabetismo na Venezuela.Misiión Cultura42: tem como objetivo o desenvolvimento sóciopolítico e o desenvolvimento sócio-comunitário e cultural. Misión Negra Hipólita43: tem como objetivo coordenar e promover todo o relativo a atenção integral de todas as crianças, adolescentes e adultos que vivem na rua, adolescentes grávidas, pessoas com deficiências e adultos em situação de pobreza extrema. Misión Ciência44: tem como objetivo constituir um processo dinamizador para permitir a construção de uma nova cultura científica-tecnológica que aborde a organização coletiva da ciência, o diálogo dos saberes e a interdisciplinariedade. Misión Madres del Barrio45: apoiará as donas de casa que se encontram em extrema pobreza ou necessidade, através do pagamento de 80% referente ao salário mínimo, que pode ser temporal ou permanente.

30 www.barrioadentro.gov.ve 31 http://www.misionesucre.gov.ve 32 http://www.mem.gob.ve/misiones/index.php. 33http://www.mem.gob.ve/misiones/index.php. 34 Idem. 35 http://www.mhv.gob.ve/habitat/pag/program 36 http://www.misionribas.gov.ve 37 www.misionguaicaipuro.gov.ve 38 www.misionvenezuela.gov.ve/12miranda/12Ejercitodepueblo.htm 39 Htttp://www.mem.gob.ve/misiones/index.php. 40 Ver em anexo a Lei de desapropriação fundiária em razão de função pública da propriedade e veja também os comentários sobre as mudanças propostas pelo anteprojeto de reforma constitucional de 2007. 41 http://www.misionerobinson.gov.ve 42 www.misioncultura.gob.ve 43 http://www.mem.gob.ve/missiones/index.php. 44 http://www.misionciencia.gob.ve 45 Gaceta oficial n°. 38.404, de 24 de março de 2006, Decreto n°.4.382.

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IV. MISIÓN MERCAL II46 Já em abril de 2003, dois anos após o seu lançamento por decreto presidencial, acontecia uma verdadeira revolução no negócio venezuelano de varejo. Com 14.164 pontos de venda, os grandes braços da Mercal alcançaram nada menos que 10 milhões de venezuelanos e, segundo cifras administradas oficialmente pela rede de distribuição de alimentos, esses consumidores de baixa renda representam um potencial de US$600 milhões anuais. Em 2006 as vendas de três milhões de toneladas passaram a oito milhões. Em agosto de 2006, a Mercal vendeu em média 4.781 toneladas de alimentos por dia nos seus 14.307 pontos de venda, que vão de "megamercados" (enormes supermercados com muitos produtos) a pequenos estabelecimentos em bairros populares. Metade dos 26 milhões de venezuelanos fazem as suas compras nesses mercados, segundo dados obtidos pela AFP. Segundo uma pesquisa recente do Instituto Nacional de Estatísticas, Mercal e Barrio Adentro (a missão de saúde em bairros populares) são os planos sociais mais aprovados pela população. O Mercal, por exemplo, é apoiado por 70 por cento dos venezuelanos. "Eu não tenho problemas em fazer fila. Aqui, o frango custa 1.900 bolívares (0,88 centavos de dólar) o quilo. Noutro supermercado, custa pelo menos o dobro", declarou à AFP Maria Urbina, que enfrentava uma fila de três horas para fazer as suas compras no Mercal de Gramovén, no noroeste de Caracas. Quinzenalmente ocorre na Av. Bolívar uma mega feira, onde alimentos são vendidos por 50% do preço. Nos dias úteis, a Avenida Bolívar é uma das mais movimentadas do centro de Caracas. Mas nos fins de semana, 1 km dela é fechado ao tráfego para a Mercal. Hoje, encontra-se de tudo lá, desde produtos de limpeza a prendedores de cabelo. O forte, entretanto, continuam sendo os produtos alimentícios, principal razão que levou no domingo mais de 2 mil pessoas à feira. Venho todos os fins de semana, no sábado ou no domingo. Fazer as compras aqui representa 50% de economia em relação aos supermercados, afirma o motorista Ricardo Garcia, de 61 anos, acompanhado da mulher, Maria Núñez. Dona-de-casa, Maria atesta que o orçamento doméstico ficou mais folgado depois que o casal passou a freqüentar o Mercal: tem ainda a vantagem de não ter embalagens industriais, que sempre encarecem os produtos - disse, junto ao carrinho de feira já cheio, enquanto esperava na fila sua vez de comprar óleo, sob sol forte. Nas sacolas, já havia tomate e cebola a 1.000 bolívares o quilo (cerca de R$1), arroz a 990 bolívares (R$ 0,99) e um pouco de pó de café, o artigo mais caro do Mercal: 1kg chega a custar R$ 10,80. No fim do ano passado, a Venezuela viveu uma crise de abastecimento de café, que sumiu das prateleiras dos supermercados. Onde era encontrado, cobrava-se ágio.Para amenizar o calor na feira - o mormaço queima a pele dos desavisados, e o boné é peça indispensável, ambulantes oferecem água, refrescos, refrigerantes e cerveja. E disputam espaço com consumidores e feirantes que não têm dinheiro para alugar uma barraca e expõem seus produtos no asfalto quente. A Mercal da Avenida Bolívar conta com mais de 100 barracas, pelo menos 35 delas administradas

46 Em anexo a filmagem realizada de uma mega-feira da misión Mercal.

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diretamente pela Associação Cooperativa Força Bolivariana, aliada ao governo. Nas tendas governamentais, o preço é um pouco mais em conta do que nas cedidas aos demais feirantes. Nelas, as filas são sempre maiores, mas não há confusão. Todos sabem que não vai faltar produtos porque a venda é limitada por pessoa - dependendo do artigo. Se alguém insistir em querer levar mais do que pode, sempre há um policial militar por perto para dissuadi-lo. Bétis Piegas, de 48 anos, é feirante no Mercal há mais de seis meses. Além de ter um lugar de graça para fazer comércio, o governo subsidia os grãos que vende, como lentilha, feijões e milho. Tudo é importado, de países como a China e a Argentina. A Venezuela até produz alimentos, mas a demanda é muito maior do que a produção. O governo importa, eu compro e revendo. Em média, o meu lucro chega a 30% - conta.Bétis mora em Caracas e toda sexta-feira chega à Av. Bolívar às 22h, para montar a tenda com os produtos. Tudo tem que estar pronto às 6h de sábado, quando começa o Mercal. Às 18h, a feira encerra, para recomeçar no domingo, à mesma hora. Há feirantes que vêm de Maracay e Valencia, perto da capital, onde plantam principalmente batata e milho. - Eles dormem nos caminhões ou em casas de amigos na cidade - diz. - Mas como há Mercal em várias cidades da Venezuela, os vendedores do interior não são maioria aqui. Há mercado para esta feira em todo o país. O motorista García ressalta outro aspecto do Mercal, além de fazer o salário do trabalhador render mais: - Comprar aqui é uma forma de apoiar a revolução do comandante – afirma. O Mercal da Avenida Bolívar também tem uma barraca - a maior de toda a feira -destinada a vender livros a preços populares. Os títulos são subsidiados pelo Ministério da Cultura e vários são reedições feitas pela Fundação Kuai Mare do Livro Venezuelano. O preço começa em 1.000 bolívares (R$ 1) e vai até 30.000 (R$ 30), no máximo. Neste caso, há desconto de 20%, fazendo-o cair para R$ 24). Temos todos os tipos de compradores, desde os mais pobres, que separam mil bolívares para um livrinho, até a classe média. E não fazemos distinção, temos promoção para todos. Quem compra um livro pode ganhar outros três ou quatro, dependendo do que houver em estoque - afirma Marisbel Bisbal, que trabalha no caixa da barraca, onde ficam expostas os exemplares de bolso da Constituição Bolivariana, a R$ 4 cada. Diferentemente das livrarias, não há corredores, os livros ficam em mesas unidas, que dão bastante espaço para os interessados que queiram entrar com os carrinhos de feira. A tática dá resultado: são vendidos até 300 livros num fim de semana, segundo Marisbel. - As pessoas de classe média tendem a comprar poesia, literatura. Os mais pobres, livros de política e literatura infantil - conta a caixa. - Os livros políticos são os mais vendidos, sempre. Os títulos disponíveis variam de semana a semana. No domingo, por exemplo, havia vários volumes de Cuba desde Venezuela, A revolução Chavista, Povos indígenas e o Plano Colômbia, O destino superior dos povos latino-americanos (uma entrevista dada por Chávez a Heinz Dieterich) e até um livro de caricaturas dos presidentes venezuelanos, de Perez Jiménez a Chávez. Leitores também encontravam As aventuras de Quixote, de Miguel de Cervantes, uma biografia do jogador de futebol brasileiro Ronaldo e do ídolo pop britânico David Bowie. - Os venezuelanos estão lendo bem mais agora. E, como diz o slogan do programa do Ministério da Cultura, 'o livro liberta' - afirma Marisbel.

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Hoje há quase 15.000 lojas em todo o país e estes pontos de vendas já representam 10% de todas as compras feitas pelos domicílios venezuelanos (para algumas categorias de produto, como “Massas Alimentícias”, Mercal representa 40% das compras totais do mercado). É muito importante observar que Mercal trabalha principalmente com sua marca própria (CASA) e, por esta razão, a indústria de produtos de consumo embalados em geral está começando a se preocupar com o canal, pois a rede está interessada em começar a comercializar produtos de Higiene Pessoal e Limpeza Doméstica. A LatinPanel, através de seu Painel de Consumidores, é a única empresa de pesquisa de mercado monitorando as vendas da rede Mercal. V. MISSIÓN MERCAL: GARANTIA DE SEGURIDADE ALIMENTAR Segundo o artigo 305 da Constituição da Republica Bolivariana da Venezuela47: o Estado promoverá a agricultura sustentável como base estratégica do desenvolvimento rural integral e, em conseqüência, garantirá a seguridade alimentar da população; entendida como a disponibilidade suficiente e estável de alimentos no âmbito nacional e o acesso oportuno e permanente a estes por parte do público consumidor. Segundo o governo, o objetivo era tornar mais eficiente a ação política em matéria alimentar e esta foi a razão da criação da Missão Mercal, concebida como uma rede de abastecimento que oferece alimentos da cesta básica a preços baixos e sem intermediários. A missão Mercal se converte na conclusao de um processo que se inicia com o Plano Bolivar 2000 e os Megamercados. Foram os primeiros passos do Executivo Nacional para pôr em pratica uma política de dotação orcamentária; com o objetivo de resolver os problemas de desabastecimento e reforçar os planos sociais. A Mercal oferece produtos que compra diretamente do produtor independente e das cooperativas. Isto significa que a cadeia de venda se simplifica, isto é, se elimina a figura do intermediário e, portanto, há o barateamento dos custos finais. A Mercal vende produtos alimenticios a preços que estão estipulados por regulamentaçao governamental. Isto se pode conseguir porque, em linhas gerais, se oferecem artigos que não formam parte da rede de comercialização habitual e também não há gastos com a publicidade dos produtos. Por outro lado, a rede de distribuição de alimentos Mercal é um novo sistema que esta associado a produção e comercialização nacional: cada um dos que participam da Missão Mercal se integra como sócio igualitário. A rede funciona através da seguinte estrutura: MÓDULOS MERCAL TIPO I: Pontos de venda de todos os produtos. Sua estrutura guarda um formato standart para todas as localidades. Modelo ampliado (274 m2) e Modelo básico (154 m2). MÓDULOS MERCAL TIPO II: Pontos de venda de todos os produtos. Cuja estrutura e capacidade são de dimensões variáveis; dado que provém da recuperação e 47 Em anexo um cd com todas as Constituições da Venezuela e uma cópia do anteprojeto de reforma constitucional da Constituição de 1999.

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acondicionamento das infra-estruturas físicas de origem pública e privada. Podem ser especializados, isto é, podem vender linhas especiais de alimentos, tais como linhas de embutidos ou outros. SUPERMERCAL: Módulo de novo tipo. Podem ser tanto do Estado como de cooperativas, com capacidade de armazenagem e de venda superior ao do Mercal Tipo I. Permite maior variedade de produtos, ao incorporar a produção de pequenas e médias empresas locais e regionais. Se vendem hortaliças, frutas, tubérculos, flores, por produtores previamente selecionados por sua qualidade, seriedade e compromisso de vender a baixo do preço de mercado. Em troca se ganham os espaços de venda. BODEGAS MERCAL: Pontos de venda de tudo, previamente inscritos no registro Mercal, instalados em zonas de maior densidade populacional com riscos maiores de seguridade alimentar. Possui correspondência às tradicionais bodegas (mercearias) venezuelanas. Permite a integração das famílias ao programa Mercal. BODEGAS MÓVEIS: Unidades de veículos destinadas a cobrir diferentes rotas e determinados pontos de venda, com o objetivo de garantir a seguridade alimentar a zonas de difícil acesso. MEGAMERCADOS A CÉU ABERTO: Venda de todos os tipos de produtos alimentícios variados e de outros de primeira necessidade, em setores populares das principais cidades e municípios, ao ar livre em baixo de toldos. PROGRAMAS ESPECIAIS EM ÁREAS RURAIS E EM COMUNIDADES INDÍGENAS: Estão destinados a beneficiar uma maior porcentagem de pequenos produtores e comunidades com grandes famílias. Segundo consta no sítio eletrônico da Rede Mercal, tal programa se revela como um “remédio para curar um dos piores males da pobreza”, que é a fome. Segundo os idealizadores, a Mercal possui dois fundamentos, o primeiro é de encarar a fome como componente de uma situação de exclusão e, portanto, aliando-a ao conjunto de outros fatores, tais como a educação, saúde, esporte, lazer e etc. Ou ainda, encará-la como transitória, pois que a rede possui a finalidade de apagar o problema, já que o mesmo é conseqüência do neoliberalismo, mais ainda, do capitalismo. Assim, observa-se que programa de Hugo Chávez pode-se enquadrar como uma economia solidária uma vez que, tem como principal desafio combater a pobreza e a exclusão social de milhões de venezuelanos. Tal economia solidária vem como uma forma de sobrepujar o modo capitalista de organizar as relações sociais dos seres humanos entre si, onde há a participação de todos, contribuindo para o exercício da cidadania. (RATTNER, 2005). A idéia é enquadrar o homem como sujeito e finalidade da atividade econômica. Nesse sentido, pode-se afirmar que a economia solidária é um modelo alternativo que preza pela satisfação de necessidades básicas, por intermédio do próprio esforço no trabalho e dos recursos disponíveis. Isto se reflete na forma como se apresenta o programa venezuelano, já que o mesmo consiste em relações de consumo, comercialização, produção e serviços em que estão presentes a participação coletiva, a democracia, a autogestão, cooperação e promoção do desenvolvimento humano (MANCE, 2002). A economia deu um salto, e não se pode deixar de ressaltar que a Rede Mercal vem gerando empregos.

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Ainda segundo o que diz o sítio institucional do programa, a Rede Mercal possui como valores: a responsabilidade no cumprimento efetivo de tarefas, a identificação das pessoas com a instituição, ensejando uma forma de confiança, a sensibilidade social, no sentido de responsabilidade ética com a sociedade, e a justiça em receber o adequado, com ética, comunicação e excelência48. A Rede Mercal atua principalmente com a sua própria marca, qual seja, a Corporação de Abastecimento e Serviços Agrícolas (CASA), fornecendo produtos alimentícios, produtos de primeira necessidade e ainda passou a ter interesse pela comercialização de produtos de higiene pessoal e limpeza49. A Corporação CASA é uma empresa do Estado Venezuelano, atuando pela forma de sociedade anônima, atrelada ao Ministério de Alimentação (Minal) e faz parte dos organismos da administração pública descentralizada. De acordo com as informações contidas no sítio eletrônico institucional da corporação, a empresa possui o ideal de promover a produção de alimentos para toda a Venezuela e ser a líder do mercado venezuelano. Vale ressaltar que mesmo com a grande atuação da CASA, esta não é a única a compor o fornecimento da Rede Mercal, uma vez que a mesma também importa produtos para serem comercializados. A Rede Mercal possui uma estrutura administrativa bastante extensa, o que reflete a amplitude do programa governamental, como se pode visualizar na tabela abaixo:

ÓRGÃO OBJETIVO

Junta Diretiva Garantir a certificação posterior de auditorias, inspeções, fiscalizações e exame dos programas, processos, operações e atividades desenvolvidas pela empresa Mercal.

Auditoria Interna

Garantir a certificação posterior de auditorias, inspeções, fiscalizações e exame dos programas, processos, operações e atividades desenvolvidas pela empresa Mercal.

Presidente

Garantir a comercialização e o mercado de produtos alimentícios de qualidade e com alto conteúdo nutricional, de consumo massivo e de necessidade básica, cuja origem seja nacional ou internacional assim como a distribuição e imposição dos pontos estratégicos de venda.

Coordenação de Despacho

Planificar, coordenar e controlar as atividades inerentes à presidência da Mercados de Alimentos.

Gerencia de Tecnologia da Informação e Comunicação

Planificar, coordenar, fomentar, desenhar e executar políticas, planos e estratégias em matéria tecnológica e de processos que conduzam à melhora da gestão da empresa.

48 Ver http://www.apagina.msnet.com.pt/2005/10/venezuela-economia.html. 49 Ver http://www.latinpanel.com/article/static/669?GlobalSectionIDOverride=1&Pais=Venez.

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Consultoria Jurídica

Apoiar a instituição nos aspectos e processos jurídicos necessários para a tomada de decisões e execução de políticas conforme o ordenamento legal vigente.

Gerência de Análise Estratégica

Apoiar o presidente para a tomada de decisões a curto e longo prazo, avaliando e desenhando cenários estratégicos e elaborando propostas de opções para a tomada de decisões.

Vice-Presidente de Operações e Inspeção

Garantir a operatividade da rede de comercialização e abastecimento em nível nacional e ainda, inspecionar as atividades que se realizam com o mesmo fim de verificar que se cumpram de acordo com os parâmetros estabelecidos pela organização.

Gerência Geral de Comercialização

Planejar e executar atividades de comercialização a nível nacional e regional da Mercal, conforme as diretrizes estabelecidas pelo vice-presidente.

Gerência de Seguridade Integral

Planejar, coordenar, supervisar e controlar a execução das políticas, planos e programas que garantam a proteção e o resguardo físico do componente humano, dos bens pertencentes à instituição e aqueles que se encontram em custódia.

Gerência de Logística Planejar e executar atividades de abastecimento, gestão de armazenamento e distribuição e transporte da instituição.

Gerência de

Compras

Planejar e executar as atividades de compra a nível nacional e regional, conforme as diretrizes estabelecidas pelo Presidente e pela Junta diretiva.

Gerência de

Programas Especiais

Garantir o abastecimento de produtos para os programas sociais alimentícios, conforme as diretrizes estabelecidas pelo presidente e pela Junta diretiva.

Gerência de Controle de Qualidade

Planejar e executar as atividades para controle de qualidade dos produtos, desde a sua execução até chegar às mãos do consumidor. Possui ainda, como objetivo, apoiar a Gerencia de Compras, no que tange os aspectos de gestão de qualidade dos produtos.

Gerência de Desenvolvimento e

Infra-estrutura

Garantir a criação e manutenção da infra-estrutura da planta física da Mercal.

Gerência de Mercado

e Vendas

Planejar, coordenar, executar e dirigir estratégias que permitam elevar o consumo dos produtos da Mercal com o fim de obter maior rentabilidade, satisfazendo as demandas alimentícias da população.

Vice-Presidente de Gestão Econômica

Garantir o bom funcionamento das atividades econômicas e financeiras da instituição.

Page 29: Narrativa Final Mercal na Venezuela

Gerência de Finanças Planejar, coordenar, fomentar, desenhar e executar planos, políticas e estratégias, em matéria de estatísticas e planejamento que conduzam ao melhoramento da gestão da instituição.

Gerência de Administração

Planejar, coordenar e executar os recursos financeiros e físicos da empresa em matéria de bens e serviços.

Gerência de

Planejamento

Planejar, coordenar, fomentar e executar políticas em matéria de estatística, planejamento que conduzam ao melhoramento da gestão da instituição.

Vice Presidente de

Gestão Institucional

Propiciar o desenvolvimento da instituição, garantindo o cumprimento dos planos e programas em matéria de recursos humanos, social e de comunicação.

Gerência de

Desenvolvimento Social

Garantir e contribuir para o desenvolvimento da atividade alimentícia nacional, através de planos e programas no âmbito social.

Gerência de Gestão de Comunicação

Apoiar, coordenar e desenvolver a política de comunicação da Mercal mediante análise da opinião pública e desenvolvimento de mecanismos de intercâmbio institucional.

Gerência de Recursos Humanos

Garantir e contribuir para o desenvolvimento de atividades voltadas para a execução das diferentes unidades de organização da Mercal, mediante o planejamento, coordenação e supervisão dos processos de captação, ingresso, classificação, remuneração, capacitação e desenvolvimento de recursos humanos.

A rede se estendeu por quase todo o território venezuelano, e a tendência é chegar em sua totalidade, constata-se que as regiões de Amazonas, Anzoategui, Apure, Aragua, Barinas, Bolívar, Carabobo, Cojedes, Delta, Amacuro, Distrito Capital, Falcón, Guarico, Lara, Mérida, Miranda, Monagas, Nueva Esparta, Portuguesa, Sucre, Táchira, Trujillo, Vargas e Yaracuy, já possuem estabelecimentos da Mercal.