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NA ALGAZARRA DAS BRINCADEIRAS E NO ACALANTO DAS HISTÓRIAS E MÚSICAS: OS PRIMEIROS APRENDIZADOS DE CRIANÇA (CAETITÉ-BA, 1910-1930) Giane Araújo Pimentel Carneiro (UFMG/UNEB) [email protected] Palavras chave: História da criança. Educação. Família. Introdução Este estudo visa analisar os primeiros aprendizados da criança na vida familiar em Caetité- BA, no período compreendido entre as décadas de 1910 e 1930. Essas experiências nos ajudam a perceber as práticas educativas direcionadas à infância, a exemplo das brincadeiras e das práticas fundamentadas na oralidade, como a contação de histórias e as músicas. Pesquisar a história das crianças pressupõe uma busca criteriosa das fontes disponíveis, pois são poucos os registros produzidos por elas e, em alguns casos, inexistem tais registros. A pesquisa sobre as práticas educativas familiares vivenciadas pelas crianças em Caetité i demandou uma diversidade maior de fontes. As fontes acessadas fazem parte do acervo do Arquivo Público Municipal criado na década de 1990, integrado à Rede de Arquivos do Estado da Bahia. Para adentrar no cotidiano da vida privada utilizamo-nos das correspondências trocadas entre os membros de uma família da elite local, das inúmeras fotografias preservadas nos álbuns de fotografia e de duas obras memorialísticas de pessoas que viveram suas infâncias em Caetité, na época em estudo. O entrecruzamento de dados foi possível ainda por meio de notícias do jornal A Penna, editado na cidade e em efetiva circulação no período analisado. As correspondências foram nossa fonte principal de pesquisa e constituem-se por cartas, por cartões postais, cartões de visitas, de nascimentos e de falecimentos. A quase totalidade das correspondências foi trocada pelos membros da família Teixeira: entre mãe e filhos, marido e esposa, entre irmãos, avós e netos, além dos primos e das tias e sobrinhos. Compartilhar vivências, estreitar laços, mandar notícias são alguns dos muitos motivos para as pessoas que estão distantes se corresponderem. O deslocamento espacial das pessoas, por motivos diversos, dava-se da cidade de Caetité para várias regiões dentro e fora do País. Essas regiões compreendiam desde as fazendas até a cidade da Bahia (Salvador), São Paulo, Rio de Janeiro, até Buenos Aires e Nova York. Alguma/s pessoas da família teve/tiveram a preocupação em reunir as correspondências no sobrado da família, conservá-las e assim garantir a sua preservação. Os indícios presentes nos documentos da família Teixeira e a memória da família permitem-nos acreditar que, possivelmente, foi a segunda filha, Celsina Teixeira (1987-1979), a guardiã desse riquíssimo acervo, como uma das últimas moradoras do Sobrado. Em 1998, o sobrado da família foi restaurado e toda a documentação foi transferida para a casa do Barão de Caetité, lá permanecendo até 2002, quando sua doação foi feita ao Arquivo Público pela filha de Anísio Teixeira: Babi Teixeira (RIBEIRO, 2009). O jornal A Penna foi utilizado na coleta de dados referentes à vida familiar e suas relações com o cotidiano na cidade, às crianças e aos ofícios, atentando sempre para a produção do discurso sobre a infância e suas intencionalidades. Este jornal, editado de 1897 a 1943, pelo caetiteense João Gumes, possuía duas edições mensais até 1915, com um número médio de quatro páginas por edição. A partir de então, passou a quatro edições mensais, com uma média de seis a oito páginas cada. Ele se encontra digitalizado no Arquivo Público Municipal de Caetité. Algumas edições se encontram em boas condições de preservação, enquanto outras, nem tanto.

Na Algazarra Das Brincadeiras e No Acalanto - Cbhe 7

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  • NA ALGAZARRA DAS BRINCADEIRAS E NO ACALANTO DAS HISTRIAS E

    MSICAS: OS PRIMEIROS APRENDIZADOS DE CRIANA

    (CAETIT-BA, 1910-1930)

    Giane Arajo Pimentel Carneiro (UFMG/UNEB)

    [email protected]

    Palavras chave: Histria da criana. Educao. Famlia.

    Introduo

    Este estudo visa analisar os primeiros aprendizados da criana na vida familiar em

    Caetit- BA, no perodo compreendido entre as dcadas de 1910 e 1930. Essas experincias

    nos ajudam a perceber as prticas educativas direcionadas infncia, a exemplo das

    brincadeiras e das prticas fundamentadas na oralidade, como a contao de histrias e as

    msicas.

    Pesquisar a histria das crianas pressupe uma busca criteriosa das fontes disponveis,

    pois so poucos os registros produzidos por elas e, em alguns casos, inexistem tais registros.

    A pesquisa sobre as prticas educativas familiares vivenciadas pelas crianas em Caetiti

    demandou uma diversidade maior de fontes. As fontes acessadas fazem parte do acervo do

    Arquivo Pblico Municipal criado na dcada de 1990, integrado Rede de Arquivos do

    Estado da Bahia. Para adentrar no cotidiano da vida privada utilizamo-nos das

    correspondncias trocadas entre os membros de uma famlia da elite local, das inmeras

    fotografias preservadas nos lbuns de fotografia e de duas obras memorialsticas de pessoas

    que viveram suas infncias em Caetit, na poca em estudo. O entrecruzamento de dados foi

    possvel ainda por meio de notcias do jornal A Penna, editado na cidade e em efetiva

    circulao no perodo analisado. As correspondncias foram nossa fonte principal de pesquisa

    e constituem-se por cartas, por cartes postais, cartes de visitas, de nascimentos e de

    falecimentos. A quase totalidade das correspondncias foi trocada pelos membros da famlia

    Teixeira: entre me e filhos, marido e esposa, entre irmos, avs e netos, alm dos primos e

    das tias e sobrinhos.

    Compartilhar vivncias, estreitar laos, mandar notcias so alguns dos muitos motivos

    para as pessoas que esto distantes se corresponderem. O deslocamento espacial das pessoas,

    por motivos diversos, dava-se da cidade de Caetit para vrias regies dentro e fora do Pas.

    Essas regies compreendiam desde as fazendas at a cidade da Bahia (Salvador), So Paulo,

    Rio de Janeiro, at Buenos Aires e Nova York. Alguma/s pessoas da famlia teve/tiveram a

    preocupao em reunir as correspondncias no sobrado da famlia, conserv-las e assim

    garantir a sua preservao. Os indcios presentes nos documentos da famlia Teixeira e a

    memria da famlia permitem-nos acreditar que, possivelmente, foi a segunda filha, Celsina

    Teixeira (1987-1979), a guardi desse riqussimo acervo, como uma das ltimas moradoras do

    Sobrado. Em 1998, o sobrado da famlia foi restaurado e toda a documentao foi transferida

    para a casa do Baro de Caetit, l permanecendo at 2002, quando sua doao foi feita ao

    Arquivo Pblico pela filha de Ansio Teixeira: Babi Teixeira (RIBEIRO, 2009).

    O jornal A Penna foi utilizado na coleta de dados referentes vida familiar e suas

    relaes com o cotidiano na cidade, s crianas e aos ofcios, atentando sempre para a

    produo do discurso sobre a infncia e suas intencionalidades. Este jornal, editado de 1897 a

    1943, pelo caetiteense Joo Gumes, possua duas edies mensais at 1915, com um nmero

    mdio de quatro pginas por edio. A partir de ento, passou a quatro edies mensais, com

    uma mdia de seis a oito pginas cada. Ele se encontra digitalizado no Arquivo Pblico

    Municipal de Caetit. Algumas edies se encontram em boas condies de preservao,

    enquanto outras, nem tanto.

  • Foram utilizadas tambm duas obrasii de memorialistas que viveram suas infncias na

    dcada de 1910, em Caetit. Convm considerar que os dois autores escreveram suas

    lembranas na idade adulta, portanto, elas apresentam a memria sobre outros tempos

    vividos, leituras feitas, por certo, j afetadas por outras experincias de vida. Na anlise e

    interpretao dos dados procuramos efetuar o cruzamento de informaes com outras fontes,

    inclusive levando em conta a fragilidade dos dados memorialsticos na pesquisa histrica.

    As imagens fotogrficas compem tambm os documentos de nossa pesquisa, pois oferecem

    o registro, no tempo, de uma realidade passada impossvel de ser por ns visitada. O APMC

    possui uma grande coleo de fotografias familiares, que atualmente esto sendo digitalizadas

    e catalogadas. Existem em quantidade expressiva e retratam, como citamos anteriormente, a

    infncia de elite da cidade no incio do sculo XX. As fotos da famlia Teixeira estavam

    organizadas em suntuosos lbuns de famlia que se tornaram comuns a partir da maior

    divulgao da fotografia.

    2. Os primeiros aprendizados de criana

    Ao nascer, a criana interage com o mundo sua volta e inicia seus primeiros

    aprendizados: aprende a engatinhar, a falar, a caminhar, enfim, a viver na sociedade em que

    est inserida, de acordo com os padres culturais construdos pelos seus sujeitos. Em Caetit,

    no incio do sculo XX, as fontes encontradas indicam que a famlia valorizava e estimulava

    os pequenos passos do desenvolvimento da criana, tanto fsico como intelectual, no seu

    cotidiano. De acordo com uma carta do ano de 1908, uma das irms noticia s outras essas

    primeiras conquistas das crianas da famlia:

    Zelinda em meia lngua fala tudo, muito viva, mais do que Angelina, que agora tornou-se muito preguiosa para caminhar, a ponto de nem aqui em

    casa querer vir. Osvaldo est muito ladino e gordo, engatinha muito, tem 2

    dentes, bate palmas, chama o gato, etc. Anisio e Jayme vo bem de sade e de escola.

    iii

    O tempo que cada criana levava para o alcance de certos nveis de desenvolvimento era

    muito valorizado e percebe-se que havia uma exigncia para que ele acontecesse cada vez

    mais rpido, sendo isso fator de comparao e diferenciao entre uma criana e outra:

    Zelinda muito mais viva que Angelina. A variedade dos aprendizados tambm foi enfatizada: Osvaldo bate palmas, chama o gato, etc. Essas aes indicam a ateno que essa criana recebeu por parte de outras pessoas, quer sejam outras crianas ou adultos, na

    mediao dessas aprendizagens. A autora da carta chama a ateno ainda para uma

    caracterstica da criana: ladino, que significa esperteza, rapidez em aprender o que se ensina e bom observador; o mesmo sentido ao dizer que a primeira criana citada era viva, em contraste com a segunda, Angelina, que estava muito preguiosa para caminhar. As mes, principalmente, eram as que faziam relatos mais enaltecedores sobre os filhos. Mas,

    como percebemos anteriormente, criavam-se muitas expectativas quanto a esses aprendizados,

    geralmente comparando a forma, a variedade e o tempo de uma criana aprender com o de

    outras crianas.

    Neste trecho de uma carta, a me no esconde sua ansiedade para que o filho comece a

    caminhar: aqui em casa todos bons, inclusive Ernani e Luiz que est muito espertinho,

    completou hontem 11 mezes. Engatinha muito e fica em p s, mas ainda no teve coragem

    de dar o primeiro passo.iv Possivelmente, neste perodo, era esperado que uma criana de

    onze meses j estivesse caminhando. Para a me, o fato do filho no ter dado ainda os

    primeiros passos estava representando um atraso no desenvolvimento e isso no era muito

  • bem visto. Na concepo dos pais, deveria transparecer na criana, alm de muita sade e

    beleza, tambm as habilidades fsicas e intelectuais.

    2.1. Brincadeiras: as meninas com suas bonecas de pano...

    As brincadeiras das crianas aconteciam tanto no espao da casa como no espao das

    ruas, tuteladas, no geral, pelas famlias. O ambiente domstico limitava um pouco as

    brincadeiras das crianas, principalmente numa cidade interiorana em que o espao das ruas

    era bem mais convidativo e que a casa era tida como o lugar das atividades domsticas

    desempenhadas pelas mulheres. Entretanto, enquanto as crianas eram pequeninas, o espao

    da casa era o mais apropriado, pois permitia cerc-las dos cuidados e proteo exigidos pela

    pouca idade. No perodo estudado, tudo leva a crer que as brincadeiras eram atividades tidas

    como especficas da criana. Philippe Aris (2006) em seu clssico estudo sobre a histria da

    criana defende a ideia de que antes da Idade Moderna os mesmos jogos e brincadeiras eram

    atividades comuns a todas as classe e idades, e que, com o surgimento do sentimento de

    infncia, essas atividades foram se diferenciando entre as geraes. No primeiro perodo da

    infncia, as brincadeiras eram indistintas entre meninos e meninas, o que se diferenciava com

    a conquista de mais idade, pois a os meninos ganhavam mais liberdade, enquanto que as

    meninas seriam iniciadas nas regras e aprendizados das responsabilidades exigidas delas na

    vida futura, como mulher adulta e me de famlia. Flvio Neves relata que:

    Meninos e meninas se entregavam, em conjunto, s mesmas correrias e

    brinquedos. Ao crescerem, uma separao gradual se operava: as meninas com suas bonecas de pano, a cuidarem de suas roupinhas; os meninos a se

    apurarem em artimanhas, como saltar muros e cercas dos vizinhos.

    (NEVES, 1986, p. 48).

    As atividades de lazer das meninas era, prioritariamente, brincar de bonecas. As meninas

    pobres s tinham acesso s bonecas confeccionadas em casa, com tecido, mas que surtiam

    para elas o mesmo efeito das bonecas de porcelana das meninas de famlias ricas, vendidas

    nas lojas da cidade ou trazidas de viagens. urea Silva, nas suas brincadeiras de menina,

    sempre em casa, ressalta o gosto pelas bonecas de pano que ganhava: a velhinha Sofia,

    enquanto me contava histrias da carochinha, fiava algodo e fazia-me bonecas de pano de

    quase do meu tamanho (SILVA, 1992, p. 34).

    As brincadeiras mais comuns das crianas mais velhas e mais adaptadas para o espao da

    casa eram os jogos: peteca, dama, baralho ou bisca, alm de ouvirem msicas na vitrola ou

    gramofones. Na viso das mulheres da famlia Teixeira, esses momentos eram muito

    divertidos e apreciados por elas ao verem os filhos e sobrinhos divertirem-se juntos,

    principalmente quando alguns deles j haviam sado de casa para estudarem na capital do

    estado. A carta a seguir, do ano de 1924, relata-nos que: a casa agora est animada e alegre,

    os meninos estudam, brincam, jogam e conversam muito. J estou imaginando a sahida

    dellesv. Quanto a outros brinquedos industrializados (a vitrola para essas crianas funcionava

    como um brinquedo) encontramos este registro fotogrfico de um patinho de pelcia nas

    mos de uma criana, num estdio fotogrfico. Provavelmente, esse brinquedo fazia parte do

    estdio e era utilizado para entreter as crianas menores no momento da pose para as fotos,

    mas que tambm poderia pertencer criana para distra-la em casa. Alm do mais, o

    brinquedo fazia parte da composio da cena, caracterizando o ser criana, o que evidenciava o processo de distino geracional que estava se desenvolvendo no perodo.

    Brinquedo, nessa concepo, coisa de criana. A expresso da criana indica bastante satisfao e tranqilidade no momento em que a foto foi tirada:

  • Figura 10 - APMC, Fundo: Acervo

    particular da famlia de Dr. Deocleciano

    Pires Teixeira. Srie: Iconografia. Caixa

    02, mao 05. S/d [Data estimada 1928]. As famlias caetiteenses que tinham condies de viajar aos grandes centros do Pas

    tinham acesso a muitos brinquedos industrializados, mas a prpria cidade tambm oferecia

    muita diversidade nesse ramo, como anuncia a matria do jornal A Penna, de 5 de maio de

    1922:

    O proprietrio do importante estabelecimento LOJA POPULAR tem a honra

    de apresentar ao publico em geral e aos seus amveis freguezes, a photografia do seu novo e vasto edificio, recentemente inaugurado nesta Cidade. (...) Um deslumbrante sortimento de brinquedos em exposio

    permanente em sua vitrines: -Carros, carroas, espingardas, realejos,

    gaitas, gatos que miam, chocalhos, cornetas, papagaios que gritam,

    apparelhos, bycicletas, caixas de musica encimadas de figuras que

    danam, bolas, aves, ratos que correm, aves que andam, bonecas nuas e

    vestidas de diversos tamanhos, papeis cores em tubo e uma infinidade de brinquedos. ( A Penna, 05/03/1922, p.03, n 263, Anno XI. Grifos meus.)

    A matria do jornal enumera uma srie de brinquedos em exposio nas suas vitrines e

    caracteriza-os como deslumbrantes: os gatos que miam, os papagaios que gritam, as bicicletas, as caixas de msica, etc. O comrcio da cidade, por meio desses itens apresentados,

    d-nos uma pista de como os artigos, especificamente direcionados para a criana, vo

    definindo um universo prprio do mundo infantil. Se a loja est inaugurando o novo edifcio e

    destaca as suas novidades, entre elas, os brinquedos das crianas, ento, podemos inferir que essa uma realidade diferente da que existia, no que se refere a esse quesito. Entretanto,

    temos conscincia de que essa grande diversidade de brinquedos no era acessvel grande

    parte das crianas da cidade. Mesmo assim, no podemos negar que isso vai provocando

    alteraes na forma de ver, de tratar e de ser da criana.

    Na medida em que as crianas cresciam, adquiriam mais idade, ganhavam mais liberdade

    e o espao das ruas passava a ser um espao possvel para a realizao de algumas

    brincadeiras. Convm ressaltar que havia diferenas na forma das famlias e da prpria

    sociedade pensarem sobre a liberdade da criana nesse espao das ruas. Flvio Neves relata

    sobre as brincadeiras na rua que realizava na sua infncia que

  • em noites, especialmente, enluaradas, ouvia-se a gralhada da meninada

    entregues ao jogo da picula (pegador em Minas), ou a combates, priso de

    ladres, com delegado de polcia, soldados e mais figurantes. (...) Ns, os

    meninos, tnhamos o nosso o cavalo de pau. (...) Apenas uma haste de pau. As melhores e mais vistosas cavalgadas ocorriam noite. E a Rua Dois de

    Julho enchia-se de um bando disposto a grandes cavalgadas. (...) Em noites

    de lua divertamos no Beco do Areio... Era brinquedo preferido amarrarem-se as calas, altura dos joelhos, e ench-las, ao mximo, com areia, alm da

    camisa, at o pescoo. (NEVES, 1986, p. 48-49.)

    A forma como a realizao dessas brincadeiras foi narrada, d a entender que as crianas

    eram totalmente livres do domnio dos adultos, entretanto, em outros indcios das memrias

    de Flvio Neves, percebemos que essas atividades, no caso dele e dos irmos, era tutelada

    pelos pais. Existiam regras, hora para dormir, etc. No caso da famlia Teixeira, as brincadeiras

    das crianas nos espaos pblicos era ainda mais tutelada pelos adultos. Encontramos nas

    nossas fontes registros apenas de atividades que eram realizadas, prioritariamente, na

    companhia dos adultos e nenhuma brincadeira que as crianas praticavam sozinhas nas ruas.

    Nesta carta de Tilinha para as irms, datada do ano de 1908, ela diz:

    Neste dia passei mais distrahida, fui com Alzira, Titia e os meninos passeiar

    no S. Sebastio, l elles pularam, saltaram, jogaram muitas laranjinhas, etc. Fazemos sempre destes passeios, ora na Methereologia, ora no Cruzeiro. No

    domingo fomos tarde, ao Cruzeiro, voltando de l s 7 horas, todos muito

    canados, os meninos queixando-se que os ps estavam doendo, porm todos com muito appetite.

    vi

    De acordo com a mensagem da carta, os adultos e crianas estavam juntos na atividade

    dos passeios, mas percebemos que houve uma inteno de especificar as atividades

    diferenciadas que as crianas realizaram: elles pularam, saltaram, jogaram laranjinhas, etc.,

    ou seja, ficou claro que as crianas brincaram alm de passearem. Quando as atividades infantis eram realizadas sem a tutela da famlia, sem regras, de forma aleatria nos espaos da

    cidade, a sociedade, por meio do jornal A Penna, interferia insistentemente atravs das suas

    matrias para que a ordem fosse restabelecida, quer seja pela famlia ou pela polcia, como no caso dos jogos de futebol. Nesse caso, as crianas que brincavam nas ruas eram os

    meninos vadios:

    Continuamos a chamar a atteno da polcia para certos factos que lhe

    parecem triviaes, sem nenhuma importncia, mesmo numa cidade que tem foros de civilisada.

    Assim que os garotos continuam a jogar futebol, em toda parte, de dia e de

    noite, com os incovenientes de quebrarem as vidraas das casas e

    terminarem o jogo sempre aos sopapos; at na Avenida Baro de Caitet, a garotada espalha-se vontade, sem que um policial apparea ali, para cohibir

    os precoces jogadores de pontaps.

    preciso que surja uma providncia para o caso, porque esses meninos vadios nem frequentam a escola, nem as officinas. (A Penna, 18/08/1927, p.

    02 , n 420, Anno XVI.)

    Aqui o redator do jornal apela para a polcia e no mais para a famlia, como fez antes,

    em outras matrias: os paes desses infelizes como vae generalisando-se em pernicioso

    costume entre ns, no curam da educao dos seus filhos, que so criados sem o menor

    preceito para a nossa infelicidade futura, affeitos ao desrespeito e falta de moralidade.vii

    Nesse caso, do jogo de futebol, vemos a ao dos setores pblicos da cidade interferindo na

  • vida da famlia, mais estritamente na forma de conduo da educao dos seus filhos.

    Segundo Martha Abreu e Alessandra Frota Martinez (1997), desde a dcada de 1870, com a

    proposta da libertao dos filhos de escravos nascidos a partir da Lei de 1871, uma srie de

    debates e projetos foram impulsionados visando proteger e amparar a infncia. Alm da educao em escolas pblicas e escolas profissionalizantes, creches e asilos, buscaram-se

    tambm inserir prticas jurdico-policiais de correo ao menor. O ano de 1927, em que foi publicada a notcia acima no jornal A Penna, foi o ano em que se discutiu e concluiu o

    primeiro Cdigo de Menores. Esse Cdigo constituiu-se em um dos marcos para a

    sistematizao de uma poltica voltada para a regulamentao da infncia em geral, visando

    organizar as formas de trabalho, a educao, a preveno e a recuperao dos criminosos e delinqentes. ABREU E MARTINEZ (1997, p. 28). Destaque das autoras. A vida privada da famlia era respeitada desde que no afetasse a ordem da vida pblica.

    Era por meio da educao das crianas que essa ordem desejada seria alcanada. Caso a

    famlia no tomasse as providncias necessrias e assumisse as suas responsabilidades com as

    crianas, a polcia seria ativada. A notcia afirma que o que agravava a falta de educao era o

    fato dessas crianas no trabalharem, nem freqentarem escolas, outra instncia educativa

    muito valorizada no perodo, alm da famlia. Vemos, nesses exemplos, como a diferenciao

    ocorre dentro da prpria categoria de gerao entre as crianas bem educadas, que no contrariavam as regras, geralmente identificadas no jornal como inteligentes, interessantes, etc, e as crianas vadias, inoportunas que se supunham, no eram alvo da ao educativa das famlias, nem do trabalho e nem das escolas, como afirmou o redator do

    jornal.

    O controle sobre a educao das crianas, por meio das brincadeiras, foi evidenciado

    pela realizao de algumas atividades na cidade como a prtica do escoteirismo e a criao de

    um Tirinho de Guerra, procurando imitar as aes dos adultos. Na atividade do escoteirismo, procuravam-se adequar para as crianas algumas atividades atribudas ao mundo

    adulto. Em Caetit, segundo Flvio Neves: Os meninos contagiaram-se do entusiasmo que o Tiro de Guerra gerava.

    Resultado: o Tirinho da crianada foi organizado, com o beneplcito dos

    papais e mames. O Sargento Philadelpho desconhecia a organizao do

    escoteirismo. Assim o Tirinho era um decalque daquele dos adultos. Arranjaram-se uniformes, chapus de aba larga e armamento adequado espingardinhas de madeira, todas confeccionadas pelo Olmpio Pacincia. A

    instruo era similar dos adultos. O mais pitoresco de tudo era o ver-nos em exerccio de formao do Quadrado, movimento rpido ao rufar do

    tambor para receber o choque da cavalaria, como ao tempo de Osrio, nos

    campos do sul. E marchvamos cauda do Tiro maior, sob os olhares

    enternecidos do papai e da mame. (NEVES, 1986, p.17). Grifos meus

    Quando se compara essa atividade com o escoteirismo, percebe-se uma necessidade de

    afirmar que o Tirinho de Guerra no estava corretamente adaptado para as crianas. As

    atividades das crianas no poderiam ser do mesmo modo que a atividade do Tiro de Guerra

    desenvolvida pelos adultos. A fase de criana era vista como uma fase diferente da adulta.

    Abaixo vemos a fotografia de uma criana trajada com o uniforme do Tirinho de Guerra:

  • Figura 12 - APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira.

    Srie: lbum de fotografias. Caixa 04. S/d [Data aproximada: 1916].

    2.2 Contao de histrias: Entrei por um p de pato, sa por um p de pinto, manda o

    rei que conte cinco...

    As crianas caetiteenses, como era comum em outras partes do Pas, no perodo, ouviam

    histrias das pretas velhas, das avs, dos pais, alm de outras pessoas idosas, amigos das famlias. Os assuntos mais freqentes eram histrias da carochinha, fbulas envolvendo

    animais, episdios de literatura entre aqueles com maior conhecimento das obras literrias;

    lendas, assombraes e almas penadas, casos engraados vivenciados ou inventados por

    algumas pessoas com inclinaes para os gracejos, alm de casos da vida passada que falavam

    de outras formas de viver que as crianas no conheceram; histrias da juventude,

    relembrados de forma a enaltecer estes fatos e as relaes estabelecidas com grandes

    personalidades da regio. O velho Benedito, hspede da famlia Neves, agraciava as crianas

    da casa com histrias narradas aps o jantar, em que enaltecia a figura do Baro de Caetit,

    alm de contar histricas cmicas que entrelaavam contos de fada com a ridicularizao de

    aspectos da vida cotidiana, conforme nos relata Flvio Neves (1986, p. 30):

    O segundo hspede que me deixa vivas lembranas o velho Benedito

    Marques. (...) Comprazia-se em narrar sua solidariedade ao Baro de Caetit, demonstrada em momento de iminente conflito poltico. (...)

    Era contador de estrias que nos divertiam. Uma, entre todas, era a preferida.

    (...) Tomado de entusiasmo pela narrativa, o velho Benedito, no meio da sala, as abas do fraque agitadas, buscava reproduzir a performance de cada

    um (...). A meninada vibrava e, sempre que possvel, pedia: Si Benedito,

    conta aquela!

    J a preta velha contava histrias com outro repertrio, principalmente, envolvendo animais, como nos indica o trecho a seguir:

  • Havia contadores de estrias, com variado repertrio. Martinha, uma preta,

    nossa empregada, sabia de muitas. Predominavam as estrias em que eram

    partes a ona e o macaco, a ona e o bode. Conta mais uma No j chega. Entrei por um p de pato, sa por um p de pinto, manda o rei que conte cinco. (NEVES, 1986, p.30)

    urea Silva (1992, p. 34-35) traz boas recordaes das histrias contadas pela sua av,

    tambm sobre fatos da sua juventude: minha av, sempre risonha,... contava-me casos de sua

    juventude, quando vivia na casa dos pais, senhores de terras e de muitos escravos e tambm

    das histrias contadas pela velha Sofia, ao realizar prendas domsticas: a velhinha Sofia,

    enquanto me contava histrias da carochinha, fiava algodo e fazia-me bonecas de pano de

    quase do meu tamanho.

    As histrias eram narradas principalmente noite, nos seres aps o jantar, no interior

    das casas ou nas varandas e terreiros. Alguns contadores compraziam-se em narrar lendas

    tradicionais da regio, histrias de assombraes, de alma penada, inculcando nas crianas um

    medo terrvel de ficarem a ss, de passarem perto de lugares com fama de mal assombrados,

    dos cemitrios e das suas redondezas, como relembra Neves: A escurido exterior era geradora de imaginao de lendas e assombraes

    que adquiriam foros de verdade... Locais havia em que afirmaes

    fidedignas garantiam manifestaes de almas penadas. O Beco do Ario, sem casa era um deles; (...) As vizinhanas dos cemitrios eram evitadas. Mormente um j abandonado e

    em runas, era rico de assombraes. E as histrias que nos contavam! (...)

    Durante uma sesso destas era impossvel recolher-se ao nosso quarto de dormir. Muitas vezes carregvamos cobertas e travesseiros, para abrigarmos

    junto ao pai, de preferncia grudado em seu p. (NEVES, 1986, p. 52)

    Em geral, o medo desses personagens de assombrao, que faziam parte do universo

    cultural, era provocado intencionalmente nas crianas, como forma de controle sobre a

    infncia (GALVO, 1998). Ao destacar a ao pedaggica dos contadores de histrias,

    Gilberto Freyre (2004) afirma que a menina ou o menino brasileiro ouvia de norte a sul do

    pas quase as mesmas histrias pelas mes-negras: histrias de lobisomem e de mula sem-

    cabea e pelas avs brancas: histria de Carlos Magno, a de prncipes encantados, a de reis, de

    imperadores, de guerreiros. Entretanto, referindo-se s ltimas, Freyre (2004, p.291) ressalta

    que:

    Estas eram histrias mais contadas aos meninos brasileiros da poca pelas

    avs brancas que pelas mes negras. Mas as avs brancas e as mes-negras nem sempre se conservavam fiis s suas funes convencionais: s vezes

    era a branca que contava histrias de assombro e a preta que falava aos

    sinhozinhos de mouras encantadas.

    2.4 Msica: com sua vozinha trmula, comeou a cantar a Marselhesa

    A modinha A Casa branca da serra era muito cantada pela me de urea Silva na sua infncia, conforme ela nos relata: muitas vezes, minha me me acalentava cantarolando uma

    modinha muito em voga na poca: Na casa branca da serra. (SILVA, 1992, p. 45). Segundo Mario de Andrade as Modinhas distraam com seus ais. Eu me atreveria mesmo a

    aconselhar que se cantasse com rosto sorridente esses textos de mal de amor e saudades

    (1980, p. 5). Jos Ramos Tinhoro (1998) afirma que at o aparecimento deste gnero de

  • cano, no existia outro para atender s expectativas de homens e mulheres, dentro da nova

    tendncia de maior aproximao entre os sexos. A modinha surge no sculo XVIII, mas em

    meados do sculo XIX que, na fuso das melodias mais simples, das ruas, com as mais

    elaboradas, dos sales, ela se expande sob o novo estilo das modinhas romntico-

    sentimentais, popularizada pelos bomios urbanos. No incio do sculo XX, com o avano

    tecnolgico, as modinhas penetraram nas casas das pessoas quando as caixas de msicas foram substitudas pelo gramofone (FREYRE, 2004, p.163). Apesar das modinhas serem msicas que tratavam de temas ligado ao amor, urea recorda-se dA casa branca da serra como uma msica que, na sua infncia, serviu como acalento, decerto pela ligao afetiva

    com a figura materna. Segundo Gilberto Freyre (2004, p. 312),

    a msica vem sendo a arte por excelncia brasileira no sentido de ser, desde

    os comeos nacionais e at coloniais do Brasil aquela dentre as belas artes em que de preferncia se tem manifestado o esprito pr-nacional e nacional da gente luso-americana: da aristocrtica e burguesa tanto quanto

    da plebia ou rstica.

    No caso da modinha, elas tiveram sua origem ligada ao gnero de cantigas populares,

    mas foram cultivadas por camadas sociais diferentes (TINHORO, 1998). Os relatos

    memorialsticos daqueles que viveram sua infncia em Caetit, no incio do sculo XX, e as

    correspondncias familiares consultadas indicam que a msica estava entre as prticas

    vivenciadas pelas crianas naquela cidade. Flvio Neves (1986, p. 58) recorda as msicas de

    pera francesa cantaroladas por seu pai na rotina da vida familiar, conforme nos indica no

    trecho seguinte: inapagvel na memria, a figura do meu pai...a conferir o fechamento de

    portas e janelas, antes de deitar-se; enquanto trauteando um pequeno trecho

    musical que, mais tarde, vim a identificar como pertencente Traviata ou a Gait Parisiennes de Offenbach.

    O pai de Flvio Neves tinha gosto por msica e distino social na cidade, tanto que

    ocupava o posto de Presidente de uma das bandas de msica de Caetit, a Lyra Caetitense. Abaixo temos uma foto de 1915 dessa banda:

    Figura 13 - APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Srie:

    iconografia, caixa 02, mao 05. 1915.

  • Nas suas memrias, Flvio (1986, p. 18) fala dessa foto: H uma fotografia da

    Diretoria da Lyra de 1915; ao centro, sentado, meu pai, o Presidente, com a cartola sobre o joelho e seu gracioso filhinho posando para a histria. Os dois maestros em extremos do

    grupo Mestre Guilhermino, clarinetista exmio, e Seu Neco Retratista, pistonista e suplente. Quando fala do gracioso filhinho, est falando de si, mais ou menos com seis ou sete anos de idade, o menino ao centro com um chapu na mo.

    Assim como nas memrias de Flvio, a msica francesa tambm fez parte das

    memrias de urea Silva (1992, p. 35), sempre relacionada com a figura da av paterna: Um

    dia, pedi-lhe [ av] que me cantasse alguma cano antiga, e ela, com sua vozinha trmula,

    comeou a cantar a Marselhesa. Percebemos como a cultura francesa, neste caso, no aspecto

    musical, esteve presente na vida destes brasileiros, desde os avs, nascidos em meados do

    sculo XIX, passando pelos pais, chegando s crianas que tomamos como foco do nosso

    estudo, no incio do sculo XX. De acordo com Laurence Hallewell, a influncia francesa no

    Brasil foi acentuada a partir da Independncia, quando a herana portuguesa passou a

    representar o atraso nacional. Segundo o referido autor, mesmo os costumes sociais

    extremamente conservadores do Pas estavam sendo lentamente transformados pela

    admisso generalizada de que a Frana era a nica nao civilizada no mundo ocidental

    (1985, p.73).

    As msicas faziam parte da vida cotidiana dessas crianas, entremeavam os

    relacionamentos familiares, como a relao pai/filho, neta/av e me/filha, e proporcionavam

    momentos de alegrias, de cumplicidade e de afetividade. Essas msicas citadas fazem parte do

    repertrio musical que classificamos como constituintes do repertrio musical adulto; as

    nossas fontes no indicaram nenhuma msica que hoje trataramos como especficas para

    infncia.

    Alm de as crianas terem uma relao com a msica como ouvintes, as famlias mais

    abastadas economicamente procuravam proporcionar-lhes maiores habilidades nesta arte,

    como cantar e tocar instrumentos. Os responsveis por essa aprendizagem poderia ser um

    parente mais velho: tia, irm ou professores particulares. O jornal A Penna, em vrias edies

    do ano de 1922, traz anncios de um professor de msica, residente na cidade, que ministrava

    aulas particulares de msica. Eis o anncio:

    Jos Elysio da Silva

    MESTRE DE MUSICA Ensina em sua casa e em casas particulares. Ensina a solfejar, transmutar,

    rythmar & Ensina tocar Violino, violo, Bandolim, flauta e outros

    instrumentos, preo baratssimo 5$000 por mez. Toca em espectaculos, (Theatro ou circo) 10$000 por noite. Poder ser procurado em sua residncia

    rua Aquidaban.

    CAITET BAHIA (A Penna, 02/02/1922, p.03, n 261, Anno XI.)

    O professor Jos Elysio, em 1908, dava aula para as meninas da famlia Teixeira, em

    casa, entretanto, a me no estava satisfeita com os resultados das aulas, indicando que seria

    melhor que a segunda filha ensinasse as irms a tocarem instrumentos, pois ela estava tendo

    aula de msica com uma professora na capital da provncia, conforme nos indica a mensagem

    abaixo:

    V. fez bem em tomar uma Professora para lhe encinar o bandolim.

    Deocleciano j tinha lembrado disto, e mesmo serve para V. encinar Tilinha

    e Leontina. O Jos Elysio continua a vir sempre, mas, logo que V. chegar vou despensar porque at hoje Leontina, no sabe uma nota da musica.

    viii

  • A msica, alm de envolver sentimentos e afetos entre os membros da famlia, tambm

    estava presente nas relaes sociais, nos momentos de visitas domiciliares, dinamizando a

    vida social da famlia na comunidade. Cabia s meninas apresentarem as melhores

    habilidades em tal arte para serem apreciadas pelos parentes e visitantes, independente da

    vontade individual e da vocao. Entre os instrumentos musicais mais prestigiados, desde o

    Segundo Reinado at as primeiras dcadas da Repblica, estava o piano, conforme afirmam

    Jos Ramos Tinhoro (1998) e Freyre (2004). Este instrumento servia como demarcador de

    prestgio e de progresso cultural da famlia:

    De tal modo o piano se tornou parte do sistema social, ou sociocultural,

    brasileiro, durante o Segundo Reinado e os primeiros anos da Repblica, que alguns observadores estrangeiros a ele se referem como a uma praga; e

    evidente que nem sempre ter sido instrumento bem tocado ou manejado

    pelas iais suas senhoras, das quais nem sempre ter sido dcil e obediente

    escravo. (FREYRE, 2004, p. 313-314)

    Ao que indicam as fontes, a segunda filha da famlia, Celsina Teixeira, era a mais

    propensa msica e servia como referncia e estmulo s irms no aprendizado e gosto por

    essa arte. Na correspondncia abaixo, percebemos esta influncia:

    No tenho desenhado, ora uma occupao, ora outra; agora estou lhe esperando para dar-me boas lies, assim como de bandolim que estou no

    mesmo; (...) Vi o que V. diz sobre o bandolim que tocando-se junto com o

    piano facilita muito mais, vou dizer o mesmo as meninas do Dr. Meirelles.ix

    No que se refere s questes de gnero, nas cartas familiares encontramos,

    prioritariamente, referncias aprendizagem de msica pelas meninas. Todavia, no lbum de

    fotografias da famlia consta uma foto de um dos irmos [2 menino sentado da esquerda para

    a direita] posando com outros meninos, exibindo violinos nas mos:

    Figura 14 - APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira.

    Srie: iconografia, caixa 02, mao 05. S/l. s/d. [Data aproximada: dcada de 1910].

  • O documento no nos permite, porm, fazer maiores inferncias a respeito dessas

    prticas no que se refere aprendizagem de msica pelos meninos da famlia, com exceo de

    uma carta afirmando que um dos netos, j na segunda dcada do sculo XX, estava

    aprendendo a tocar piano com uma das tias: o Luiz est espertinho e gordinho. Ernani bom e

    estudioso, est apprendendo tambm piano com Alice.x

    A msica constituiu-se, assim, como umas das prticas bastante presentes na vida das

    pessoas em Caetit, quer sejam ricos ou pobres. De acordo com Freyre, foi rara a vida do

    brasileiro dos tempos de Pedro II e dos primeiros anos da Repblica que no fosse de algum

    modo tocado pela msica (2004, p. 318). No entanto, nossas fontes permitiram constatar que

    apenas nas famlias de elite havia a intencionalidade para que esta arte fizesse parte da

    formao educacional de suas crianas, majoritariamente da educao das meninas.

    At aqui vimos exemplos de gneros musicais consagrados pela histria da msica no

    perodo, entretanto, nas brechas das memrias de Neves, encontramos o registro de um tipo

    de gnero, pertencente s camadas desfavorecidas da populao, originria da cultura

    africana, o batuque: Embora no se trate de uma legtima expresso da arte musical, sou tentado

    a evocar o ritmo do batuque que, em muitos sbados, se implantava no alto da Ladeira, em que a preta Bernarda era a grande dama. De seis da tarde s

    seis horas do domingo. O zabumba sustentando o ritmo, acompanhando uma

    trova montona, o suficiente para sustentar o sapateado e a umbigada. (NEVES, 1986, p.19-20.)

    Tinhoro (1998) associa o batuque ao lundu, afirmando que os dois ritmos tm uma

    origem comum. Ambos nasceram nos terreiros africanos, realizados em lugares ermos pelos

    escravos das roas muitas vezes ligados s cerimnias religiosas. Talvez, por essa origem,

    Flvio Neves no reconhece o batuque como uma legtima expresso da arte musical. Esses ritmos surgiram na Bahia, mas tambm se teve notcias deles, simultaneamente, na dcada de

    1760, no Rio de Janeiro e Pernambuco.

    3. Consideraes:

    As prticas ocorridas na vida familiar evidenciaram que havia uma intencionalidade e

    muito esforo na preparao para a vida adulta, principalmente entre as crianas de elite. A

    criana pequena aprendia as primeiras lies de vida junto famlia, no espao privado da

    casa. medida que ia adquirindo maior autonomia, como ser capaz de comandar seus passos,

    os espaos comeavam a se ampliar, assim como abrir novas perspectivas para outros

    aprendizados, mesmo sob a responsabilidade do pai e da me ou adultos responsveis.

    Aprender a ter o controle motor sobre seu corpo, aprender a falar e a compreender a lngua

    materna propiciavam o aprendizado de outras prticas culturais oriundas do seu grupo de

    origem, como as brincadeiras e as histrias que foram sendo elaboradas e repassadas de

    gerao a gerao, alm das msicas.

    Entrar em contato com as manifestaes da cultura de que a criana fazia parte era

    fundamental na sua educao. Elas aproximavam a criana dos costumes da sua comunidade

    e, de certa forma, funcionavam como aprendizados das regras dos comportamentos desejados.

    Por meio das histrias de assombrao, por exemplo, conseguia-se um controle do

    comportamento ao instituir o medo na criana. Aquelas crianas que conseguiam superar seus

    medos provavam que eram fortes e que estavam crescidas suficientemente para ganharem mais autonomia.

    Percebemos que aos poucos, a cada nova aprendizagem, o mundo da criana galgava

    passos e permitia-nos compreender como era produzida a infncia no perodo e espao em

    estudo.

  • i A cidade de Caetit est situada na Serra do Espinhao, a 825m de altitude e distante 757 km de Salvador. ii O livro Rescaldo de saudade, publicado em 1986, traz as memrias de Flvio Neves sobre sua vida de criana na cidade natal. A outra obra memorialstica utilizada na coleta de dados foi o livro Luz entre os roseirais, de urea Costa Silva, publicado em 1992. iii ALZIRA. Carta para Evangelina e Celsina. Caetit, 07 de abril de 1908. APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Grupo: Celsina Teixeira Ladeia. Srie: Correspondncias pessoais, caixa 02, mao 03. iv

    iv LEONTINA. Carta para Sissinha (Celsina). 21 de agosto de 1927. APMC, Fundo Casa Ansio Teixeira. Grupo

    Celsina Teixeira Ladeia. Srie: Correspondncias pessoais, mao 01, caixa 01. Grifo meu. v EVANGELINA. Carta para Nenem (Celsina). Gurutuba, 15 de junho de 1924. APMC, Fundo: Acervo particular

    da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Grupo: Celsina Teixeira Ladeia. Srie: Correspondncias pessoais, caixa 01, mao 04. vi TILINHA. Carta para Vanvan e Sissinha. Caetit, 19/11/1908. APMC, Fundo: Acervo Casa Ansio Teixeira. Grupo: Correspondncias de mulheres da famlia Teixeira. Srie: Mulheres diversas, caixa 01, mao 01. vii A Penna, 09/06/1921, p.01, n 245, Anno X. viii ANNA SPNOLA. Carta para Evangelina e Celsina. Caetit, 30 de maro de 1908. APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Grupo: Celsina Teixeira Ladeia. Srie: Correspondncias pessoais, mao 04, caixa 01. ix TILINHA. Carta para Sissinha (Celsina). Caetit, 07 de abril de 908. APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Grupo: Celsina Teixeira Ladeia. Srie: Correspondncias pessoais, mao 01, caixa 01. x LEONTINA. Carta para Sissinha (Celsina). Bahia, 11 de dezembro de 1925. APMC, Fundo: Acervo particular da famlia de Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Grupo: Celsina Teixeira Ladeia. Srie: Correspondncias pessoais, mao 01, caixa 01.

    REFERNCIAS:

    ABREU, Marta; MARTINEZ, Alessandra Frota. Olhares sobre a criana no Brasil:

    prspectivas histricas. In: RIZZINI, Irene. Olhares sobre a criana no Brasil: sculo XIX e

    XX (org.). Rio de Janeiro: USU Ed. Universitria/CESPI/USU: AMAIS Livraria e Editora,

    1997.

    ANDRADE, Mrio. Modinhas imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia, [1930]1980.

    ARIS, Philippe. Histria social da criana e da famlia. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

    NEVES, Flvio. Rescaldo de saudades. Belo Horizonte: Academia Mineira de Letras, 1986.

    FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. 6. ed.Rio de Janeiro: Record, [1959] 2004.

    GALVO, Ana Maria de Oliveira. Amansando meninos: uma leitura do cotidiano da escola a

    partir da obra de Jos Lins do Rgo (1890-1920). Joo Pessoa: Ed. Universitria/UFPB, 1998.

    HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua histria. So Paulo: T. A. Queiroz: Ed. da

    Universidade de So Paulo, 1985.

    RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres e poder no Alto Serto da Bahia: a escrita epistolar de

    Celsina Teixeira Ladeia (1901 a 1927). Dissertao (Mestrado). Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, 2009.

  • SILVA. urea Costa. Luz entre os roseirais. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes

    Grficas, 1992.

    TINHORO, Jos Ramos. Histria social da msica popular brasileira. So Paulo: Ed. 34, 1998.