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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE DIREITO COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA RAONI MEDEIROS GARCIA A REVOLUÇÃO FRANCESA E OS DIREITOS HUMANOS: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA 2014

Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

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historia e direito

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Page 1: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE DIREITO

COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

RAONI MEDEIROS GARCIA

A REVOLUÇÃO FRANCESA E OS DIREITOS HUMANOS: UMA

PERSPECTIVA CRÍTICA

2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE DIREITO

COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

RAONI MEDEIROS GARCIA

A REVOLUÇÃO FRANCESA E OS DIREITOS HUMANOS: UMA

PERSPECTIVA CRÍTICA

Trabalho de conclusão de curso apresentado

à Coordenação de Monografia do Curso de

Direito da Universidade Federal de Mato

Grosso, como requisito para aprovação na

disciplina Orientação de Monografia.

Orientadora: Prof. Msc. Vera Lúcia Marques Leite

CUIABÁ-MT

MARÇO/2014

Page 3: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

A meus pais

Page 4: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

AGRADECIMENTOS

A minha família, por me dar suporte em

todos os momentos.

A minha orientadora, pela compreensão

e absoluta liberdade com que me

permitiu desenvolver este trabalho e

enfrentar todos os obstáculos para sua

conclusão.

Aos colegas de graduação, pelo

companheirismo e fraternidade. Em

especial, Lucas Lelis, pela amizade e

pelo apoio fundamental ao longo dos

anos de faculdade.

A todos aqueles que, de alguma maneira,

contribuíram para a finalização desta

etapa.

Page 5: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 6

1 – ORIGENS FILOSÓFICAS .................................................................................................. 8

1.1 O ILUMINISMO ............................................................................................................... 8

1.2 O DIREITO NATURAL .................................................................................................. 13

1.2.1 THOMAS HOBBES .................................................................................................. 17

1.2.2 JOHN LOCK .............................................................................................................. 19

2 – A REVOLUÇÃO FRANCESA E A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E

DO CIDADÃO (1789) ............................................................................................................... 26

2.1 A REVOLUÇÃO FRANCESA NA HISTÓRIA DO MUNDO ...................................... 26

2.2 A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789) ............. 29

2.3 A DECLARAÇÃO FRANCESA E AS DECLARAÇÕES NORTE-AMERICANAS ... 33

2.4 A UNIVERSALIDADE DA DECLARAÇÃO DE 1789..................................................37

3 – AS CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO DE 1789 .................................................. 42

3.1AS MINORIAS RELIGIOSAS......................................................................................... 43

3.2 OS NEGROS E A ESCRAVIDÃO .................................................................................. 44

3.3 OS DIREITOS DAS MULHERES .................................................................................. 56

4 - CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A HERANÇA REVOLUCIONÁRIA........65

4.1 AS REFLEXÕES DE EDMUND BURKE......................................................................65

4.2 AS CRÍTICAS DE KARL MARX...................................................................................72

4.3 DIREITOS HUMANOS E UTOPIA................................................................................78

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 85

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 87

Page 6: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

6

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar as relações entre a Revolução Francesa e

os direitos humanos, abordadas sob um viés crítico, discutindo os interesses e

contradições que se ocultam por trás dos direitos humanos das primeiras declarações de

direitos, ao mesmo tempo revelando seu potencial libertador, fornecendo assim

subsídios teóricos para uma melhor compreensão desses direitos hoje.

Para atingir o objetivo proposto, será utilizado o método da pesquisa

bibliográfica. Além disso, será feita uma abordagem interdisciplinar, valendo-se do

conhecimento produzido em diversas disciplinas, como História, História do Direito,

Direitos Humanos, Filosofia, Filosofia do Direito, etc. Contudo, não se trata de uma

interdisciplinaridade meramente formal, mas que tem presente a crítica do conteúdo

problematizado, servindo para enriquecer as questões colocadas ao longo do trabalho.

Para melhor organização do texto, o trabalho será desenvolvido em quatro

capítulos. O primeiro capítulo tratará sobre as origens filosóficas da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão (1789), com vistas a compreender os direitos nela

proclamados. Assim, analisar-se-á a filosofia do Iluminismo e a evolução da doutrina do

Direito Natural até o Jusnaturalismo moderno, no qual serão aprofundadas as teorias de

Thomas Hobbes e John Locke, pela sua importância na compreensão dos direitos

naturais.

O segundo capítulo, primeiramente, destacará o significado e a importância da

Revolução Francesa na História Mundial. Em seguida, será analisada a Declaração de

1789, sua importância, os direitos nela proclamados, sua relação com as declarações de

direitos norte-americanas e por fim o seu caráter universal.

O terceiro capítulo, por sua vez, terá como objetivo retraçar as consequências

imediatas da Declaração, enfocando três grupos sociais: as minorias religiosas, os

negros e as mulheres. Com isso, buscar-se-á evidenciar, por um lado, os enormes

avanços na conquista por direitos de cidadania na França; por outro, os paradoxos

surgidos com a proclamação dos direitos humanos, bem como os limites da Revolução

Francesa, a despeito de sua vocação universalista.

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7

Por fim, o quarto capítulo abordará, primeiramente, as duas principais críticas

aos direitos humanos proclamados pela Revolução Francesa e que repercutem até hoje:

as críticas de Edmund Burke e Karl Marx. Por último, será apontado o caráter utópico e

ainda atual dos lemas da Revolução Francesa e dos direitos humanos nela proclamados,

a partir da perspectiva de Ernst Bloch.

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8

CAPÍTULO I – ORIGENS FILOSÓFICAS

1.1. O ILUMINISMO

O século XVIII, a época da Revolução Francesa, é conhecido como o “Século

das Luzes”, a era do “Iluminismo”. Esse vasto movimento de ideias ocorrido na Europa

– especialmente na França, na Inglaterra e na Alemanha – exerceu uma influência

considerável sobre os grandes acontecimentos políticos ocorridos no continente europeu

e nas colônias americanas.

Quando falamos em Iluminismo não estamos nos referindo a um movimento

homogêneo, uma doutrina sistemática, uma escola. Além da grande variedade de pontos

de vista doutrinários, em cada país, o Iluminismo tem particularidades próprias,

variando quanto à periodização, a problemáticas, a relação entre estratos sociais, etc.

Trata-se de um movimento eclético. O que caracteriza as Luzes é uma nova

mentalidade, um “espírito comum”, uma profunda crença na razão humana universal e

nos seus poderes.

Segundo Diderot, no verbete ecletismo, da Enciclopédia:

O ecletismo é uma filosofia que, calcando aos pés os preconceitos, a

tradição, a velharia, o consenso, universal, a autoridade, em suma,

tudo o que subjuga o espírito, ousa pensar por si mesma, remontar aos

princípios gerais mais claros, nada admitindo que não tenha passado

pelo filtro dos sentidos e da razão.1

“Pensar por si mesmo”, tal é a palavra de ordem. “Sapere aude!” (“ousa

saber!”), afirma Kant no ensaio “O que é o Esclarecimento?”, publicado em 1784. Para

1 Apud SOBOUL, Albert. História da revolução francesa. Tradução de Hélio Pólvora. 3. ed. Rio de

Janeiro: Zahar, 1981, p. 54.

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9

Kant, o Iluminismo (Aufklärung) significava autonomia intelectual, “a saída do homem

de sua menoridade pela qual ele próprio é responsável”.2

Para os iluministas, não há nenhuma autoridade acima da razão. Contra as

superstições e os preconceitos, eles impunham as armas da crítica racionalista. Tudo

deve ser submetido ao espírito crítico. Os filósofos das Luzes “opuseram em todos os

domínios o princípio da razão ao da autoridade e da tradição, quer se trate de ciência,

crença, moral ou organização política e social”.3

O desenvolvimento das ciências naturais proporciona a segurança e a confiança

na razão. Essa confiança na ciência apresenta-se como característica do espírito

moderno, herdeiro do racionalismo de Descartes e do empirismo de Bacon.

A este respeito Cassirer irá afirmar: “O século XVIII está impregnado de fé na

unidade e imutabilidade da razão. A razão é uma e idêntica para todo o indivíduo

pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura”.4

Princípio de toda verdade, autônoma por definição, a razão iluminista

se opõe a tudo que é irracional e se oculta sob as denominações vagas

de “autoridade”, “tradição” e “revelação”. Tampouco essa razão é

escrava dos dados empíricos, daquilo que chamamos de “fatos”, uma

vez que a verdade jamais é diretamente “dada” por qualquer tipo de

“evidência”. Para o pensamento iluminista, a razão é trabalho,

trabalho de intelecto, cujas ferramentas são a observação e a

experimentação. A razão é instrumento de mudança: o primeiro passo

é mudar o próprio modo de pensar.5

Neste sentido, Diderot declara que a Enciclopédia foi criada não para ser um

mero acervo de conhecimentos, mas “pour changer la façon commune de penser”

(“para mudar a maneira comum de pensar”).6

O principal centro das Luzes foi a França e sua capital, Paris, a grande metrópole

do século XVIII. Foi lá que foi publicada a monumental Enciclopédia ou Dicionário

2 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? Tradução de Luiz Paulo Rouanet.

Disponível em:<http://ensinarfilosofia.com.br/__pdfs/e_livors/47.pdf> Acesso em: 27 mar. 2014. 3 SOBOUL, ob. cit., p. 53.

4 CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. 3. ed. Campinas: Editora da

UNICAMP, 1997, p. 23. 5 FALCON, Francisco José Calanzas. Iluminismo. São Paulo: Ática, 1986, p. 36-37.

6 CASSIRER, ob. cit., p. 34.

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10

Raciocinado das Ciências, das Artes e dos Ofícios. Tendo começado a ser publicada em

1751, organizada por Denis Diderot e o matemático D’Alembert, a Encyclopédie reuniu

estudos e comentários críticos, em todos os campos do conhecimento.

A crítica à religião e ao obscurantismo, a crença no progresso e na

razão, o otimismo com relação ao futuro, a liberdade de pensamento, a

preocupação com as técnicas, a importância dada à experimentação

como método científico, tudo isso unia os enciclopedistas.7

Vários pensadores ilustres – a elite do pensamento científico da França nessa

época – colaboraram na Enciclopédia: Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Buffon,

Quesnay, Turgot, Holbach, Helvetius, Condillac, etc. Os enciclopedistas foram

contundentes contra o absolutismo. A liberdade é reivindicada em todos os domínios,

das liberdades individuais à liberdade econômica (“liberalismo”, laissez-faire).

A Encyclopédie, entrando em luta contra as instituições e as ideias

políticas, jurídicas e religiosas do regime feudal e absolutista, abriu

fogo contra todas as frentes das fortificações ideológicas da

feudalidade. Nela encontramos as principais ideias da burguesia do

século XVIII.8

O ideal revolucionário na França é preparado pelo clima que o Iluminismo

ajudou a criar, muito embora fosse inerente ao pensamento iluminista, ao exigir

mudanças radicais em todos os domínios, supor também que elas se fariam

racionalmente, sem violência, ou seja, por meio de reformas. Entretanto, não é menos

evidente para todos os enciclopedistas “que compete à razão assumir a direção do

movimento de renovação política e social, a ela cumpre empunhar o facho”.9

Nesse sentido, conclui Florenzano:

A crítica iluminista, como toda crítica verdadeira, era a um só tempo

crítica ao estado de coisas vigente e proposta alternativa a ele. Neste

sentido, a observação de que os filósofos iluministas foram uma das

causas da revolução é verdadeira na medida em que elaboraram, a

nível teórico, um projeto social. Mas deve se considerar que, embora o

7 MOTA, Carlos Guilherme. A revolução francesa. São Paulo: Ática, 1989, p. 48-49.

8 MANFRED, A. A grande revolução francesa. Tradução de Maria Aparecida de Camargo e Antonia da

Costa Simões. São Paulo: Cone, 1986, p. 46. 9 CASSIRER, ob. cit., 354.

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Iluminismo enquanto tal fosse revolucionário, a maioria, senão todos,

os filósofos eram reformistas. Acreditavam que o Estado, através da

ação esclarecida do Príncipe, seria capaz de realizar as reformas

necessárias que o conduziriam a sociedade no caminho do progresso e

da razão. Ora, na França, a incapacidade da monarquia absolutista em

realizar as reformas que a burguesia exigia, cada vez com mais

determinação, foi fatal para a sua sobrevivência.10

Como veremos mais à frente, a Revolução Francesa levou às últimas

consequências alguns dos princípios iluministas e, acima de todos, a ideia de liberdade.

Entre os filósofos franceses do período, Jean-Jaquecs Rousseau certamente foi o

que exerceu maior influência entre os revolucionários.

Nas suas obras Discurso sobre as ciências e as artes e Discurso sobre a origem

e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau atacava a “civilização”,

de um lado, e, de outro, a própria organização da sociedade atual. Ambas, para

Rousseau, degenerativas para o homem. No seu O Contrato Social, Rousseau

desenvolveu as grandes teorias sobre o Estado e o direito que influenciarão a Revolução

Francesa.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de

cada associado de toda força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só

obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes”,11

eis o problema

fundamental a que o contrato social dá solução, segundo Rousseau.

“Se, afinal, – declara Rousseau – retira-se do pacto social aquilo que não

pertence à sua essência, veremos que ele se reduz aos seguintes termos: cada um põe em

comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e

enquanto corpo, recebe-se cada membro como parte indivisível do todo”.12

“O contratualismo rousseauniano pleiteia a solução racional do problema

político associando ao máximo de liberdade o máximo de poder”.13

10

FLORENZANO, Modesto. As revoluções burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 24-25. 11

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a economia política e do contrato social. Tradução de

Maria Constança Peres Pissarra. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 78. 12

Ibid., p. 79. 13

BONAVIDES, Paulo. Democracia e liberdade no contrato social de Rousseau. In Estudos em

homenagem a J.J. Rousseau. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1962, p. 156.

Page 12: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

12

A vontade geral é a vontade do povo, da qual deriva a lei como ato de soberania.

Esta vontade geral é inalienável e indivisível; a democracia só pode ser direta. Todo

poder que não emanar do povo será um poder fora da lei, será o despotismo. A

soberania popular se transforma assim em fonte primária e absoluta da ordem política.

Para Rousseau, as formas de organização da sociedade e as formas de

organização política têm que repousar no consentimento de todos. “É unicamente sob

esse interesse comum que a sociedade deve ser governada”,14

afirma Rousseau.

Fora da França, no campo da ciência do direito, além dos pensadores que

trataremos no próximo tópico, destaca-se o italiano Cesare Beccaria. Beccaria teve uma

grande influência na defesa dos direitos da humanidade e na reforma do direito penal.

Sua obra “Dos delitos e das penas” (1764) é a filosofia iluminista aplicada à legislação

penal: contra os preconceitos e uma tradição jurídica bárbara, invoca a razão e o

sentimento humanitário; defende a presunção de inocência do acusado, o fim da tortura,

da punição cruel, da pena de morte (algo extraordinário para a época). Em síntese,

conclui que a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, proporcional ao

delito e determinada pela lei (nullum crimen, nulla poena sine lege). A maior parte das

ideias de Beccaria encontram-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

1789 e nos Códigos penais de 1795 e 1810.

No campo da filosofia jurídica, o Iluminismo estava ligado aos teóricos do

direito natural. A ideologia jurídica do liberal-contratualismo do século XVIII refletiu as

condições sociais e econômicas da burguesia capitalista ascendente, conforme ensina

Wolkmer:

A função ideológica da teoria jusnaturalista, enquanto proposição

defensora de um ideal eterno e universal, nada mais fez do que

esconder seu real objetivo, ou seja, possibilitar a transposição para um

outro tipo de relação política, social e econômica, sem revelar os

verdadeiros atores beneficiados. A ideologia enunciada por este

jusnaturalismo mostrou-se extremamente falsificadora ao clamar por

14

ROUSSEAU, ob. cit., p. 87.

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13

uma retórica formalística da igualdade, da liberdade, da dignidade e da

fraternidade de todos os cidadãos.15

Foi na doutrina do direito natural que se inspirou a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão (1789). Considerando isso, no próximo tópico iremos retraçar a

evolução do conceito de “direito natural” até a definição que encontram nas Declarações

do século XVIII.

1.2 O Direito Natural

A noção de “direito natural” remonta a pelo menos dois mil anos antes do início

da Idade Moderna. As primeiras manifestações de jusnaturalismo se dão na Antiguidade

grega. Ao lado das leis escritas, havia entre os gregos a noção de “leis não escritas”,

“leis divinas” e “eternas”, que aparecem no século V a.C. na tragédia Antígona de

Sófocles. Nas gerações seguintes, o fundamento religioso dessas leis universais foi

dando lugar a outro. “Para os sofistas e, mais tarde, para os estóicos, esse outro

fundamento universal de vigência do direito só podia ser a natureza (physis)”.16

Mas, segundo Michel Villey, a ideia de um direito que se extrai da “natureza do

homem” individual e não mais da natureza cósmica, da ordem natural, somente

aparecerá a partir do nominalismo de Guilherme de Ockham, no século XIV, e dele, a

noção de direito subjetivo, de direito como poder do indivíduo, e, como consequência, o

de lei concebida como emanação desse poder. O nominalismo será o ponto de partida

para as grandes filosofias do direito da era moderna.17

Da antiga Grécia, é importante citarmos a contribuição duradoura dos estóicos,

descrita por Bobbio:

15

WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,

p. 159. 16

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva,

2011, p. 26. 17

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 225- 296. “Para o franciscano Guilherme de Ockham, existem tão-

somente indivíduos: este mundo é um mundo de pessoas e de coisas singulares; toda ciência se constrói

não mais sobre a noção dos conjuntos, mas a partir de coisas singulares, e toda ciência humana, a partir e

em torno dos indivíduos. Assim como as noções gerais, os organismos coletivos, as pólis não são

naturais: são criações artificiais dos indivíduos”. (Ibid., p. 693)

Page 14: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

14

O Jusnaturalismo, presente igualmente em Platão e, se bem que

incidentalmente, também em Aristóteles, foi elaborado na cultura

grega, principalmente pelos estóicos, para quem toda a natureza era

governada por uma lei universal racional e imanente; conhecemos a

sua doutrina sobre este ponto sobretudo pela divulgação que Cícero

dela fez em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva

no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval

e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas. Numa celebre

passagem do De republica, Cícero defende a existência de uma lei

“verdadeira”, conforme à razão, imutável e eterna, que não muda com

os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem

renegar a própria natureza humana. 18

Na Idade Média, a lei natural passa a ser a lei de Deus, manifestada ao homem

de forma direta, com a revelação, ou indiretamente, pela razão. No Decretum de

Graciano, de 1140, o direito natural é definido como sendo o que está contido na lei

revelada por Deus a Moisés (os Dez Mandamentos) e no Evangelho (“Jus naturale est

quod in lege et in Evangelio continetur”).19

A ideia de que o mundo implica uma ordem e não é efeito do acaso era o legado

comum de Aristóteles, de Platão, dos estóicos; São Tomás de Aquino encontrou a

confirmação dessa tese em certos textos do Gênese e no conjunto do dogma cristão. Na

Suma Teológica, São Tomás faz uma classificação das leis e coloca no cume de todo

sistema legislativo a “lei eterna” (lex aeterna) tomada de Santo Agostinho: razão de

Deus ordenando o universo. A lei natural é um princípio depositado na razão humana

por Deus, consistente na máxima “deve-se fazer o bem e evitar o mal”, da qual a razão

deduz todos os outros. O direito natural fornece diretrizes de caráter muito geral,

flexíveis. É um direito natural relativo. A lei humana é expressão e prolongamento da

lei natural, uma adaptação à situação concreta.20

A doutrina de São Tomás serviu às necessidades da sociedade de seu tempo

ressuscitando o método e as fontes do direito antigo. A justiça tornou-se uma categoria

do direito natural e expressava a supremacia da hierarquia da Igreja e feudal. “A

18

BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo In Dicionário de política. 4. ed. Brasília, Editora Universidade de

Brasília, 1992, p. 656. 19

BOBBIO, NORBERTO. Locke e o direito natural. 2. ed. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1997, p. 37. 20

VILLEY, ob. cit., p. 148-149.

Page 15: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

15

autoridade, a dominação política, a sujeição, a hierarquia são justificados como

naturais”.21

Segundo Bobbio:

Na realidade, a doutrina tomística da lei natural não fazia senão

repetir, embora inserindo-a em moldes teológicos, a doutrina estóico-

cíceroniana da lei “verdadeira” enquanto racional. [...] o

Jusnaturalismo moderno (que assumiu, principalmente no século

XVIII, características acentuadamente laicas e, no campo político,

liberais) procede, em grande parte, da doutrina estóico-ciceroniana do

direito natural, propagada justamente graças à acolhida que lhe

dispensou o tomismo. Isso se deu sobretudo na medida em que a

corrente tomista se opôs energicamente, a partir do século XVI, no

tempo da Reforma, ao voluntarismo teológico inspirado nas teses de

Guilherme de Occam, que punha como fonte primeira de toda norma

de conduta e como fonte de legitimidade de autoridade política a

vontade divina e, consequentemente, a Sagrada Escritura. Entre o

voluntarismo e o Jusnaturalismo de inspiração tomística, os teólogos

juristas espanhóis do século XVI (entre eles, o maior de todos,

Francisco Suárez), que trataram amplamente do direito natural,

tentaram, em geral, uma mediação.22

Contra o voluntarismo das alas extremas do calvinismo (defensores da tese de

Calvino da predestinação) – que deduz o direito de uma vontade divina absolutamente

irracional – de um lado, e o pensamento absolutista – que vinha ganhando terreno desde

a Renascença, presente nas obras de Maquiavel e Bodin, – de outro, o holandês Hugo

Grotius sustenta a tese de um direito que está acima de todo poder humano ou divino e

que dele é independente, um direito baseado na razão pura. Sua doutrina é reconhecida

como a origem do direito natural moderno.23

Na obra De iure belli ac pacis (Do direito da guerra e da paz), de 1625, Grotius

põe o direito natural como fundamento de um direito que poderia ser reconhecido por

todos os homens e aceito por uma pluralidade de Estados soberanos (aquilo que virá a

ser o Direito Internacional).

21

Ibid., p. 162. 22

BOBBIO, ob cit., p. 657. 23

CASSIRER, ob. cit., p. 322.

Page 16: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

16

Para Grotius, os preceitos da lei natural são normas jurídicas universalmente

obrigatórias e imutáveis, que “existiriam de qualquer maneira, mesmo se admitíssemos

[...] que Deus não existe”.24

Essa famosa afirmação é, evidentemente, uma simples

hipótese, pois Grotius é um pensador profundamente religioso. A luta que Grotius trava

é pela autonomia da ciência jurídica. O Direito não deve apoiar-se em nenhuma

existência, seja ela empírica ou absoluta.25

Se no plano internacional, o apelo à razão natural tinha como objetivo encontrar

um fundamento autônomo e laico para o Direito das Gentes, no plano interno ele tinha

como meta, na elaboração contratualista, chegar a uma justificação para o Estado e o

Direito que não encontra o seu fundamento no poder do soberano ou no poder de Deus,

mas sim da vontade dos indivíduos.

Direitos inatos, estado de natureza e contrato social foram os

conceitos que, embora utilizados com acepções variadas, permitiram a

elaboração de uma doutrina do Direito e do Estado a partir da

concepção individualista de sociedade e da história, que marca o

aparecimento do mundo moderno. São estes conceitos os que

caracterizam o jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII, que

encontrou o seu apogeu na Ilustração.26

Esses conceitos característicos do jusnaturalismo moderno encontram-se de tal

modo presentes em todas as doutrinas do direito natural dos séculos XVII e XVIII que

se pode falar de uma “escola do direito natural”. Entre os jusnaturalistas modernos,

além de Grotius, podemos citar Hobbes, Locke, Pufendorf, Wolff, Burlamaqui, Vattel e

Rousseau.

Posto isso, apresentar-se-á, doravante, uma análise do pensamento de dois dos

grandes filósofos do jusnaturalismo desse período, são eles: Thomas Hobbes e John

Locke.

1.2.1 Thomas Hobbes

24

Apud VILLEY, ob. cit., p. 647. 25

CASSIRER, ob. cit., p. 323-324. 26

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah

Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 38.

Page 17: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

17

Thomas Hobbes dedicou parte das suas obras políticas – o De cive (1642) e o

Leviatã (1651) – ao estudo do direito natural.

Hobbes, para construir sua teoria no Leviatã, transfere para a política o método

de “resolução” e de “composição” que Galileu empregou na física. Assim, para a

compreensão do todo, Hobbes começa por reduzir a realidade, mediante análise, a

elementos simples, às unidades últimas e indecomponíveis; depois a reconstrói,

mediante síntese.

Ele concebe um “estado de natureza” feito de uma poeira de homens

isolados, e a sociedade, as instituições serão reconstruídas a partir dos

homens. Inversão da filosofia de Aristóteles. Pois Aristóteles observa

na “natureza” homens encerrados em grupos sociais; o homem, dizia

ele, é naturalmente “político” (Zôon politikón). Hobbes, impregnado

da lógica de Guilherme de Ockham, partidário do nominalismo, nela

só encontrará indivíduos, mas providos de uma “natureza” comum;

naturalmente iguais e livres, subtraídos a qualquer hierarquia.27

O problema da teoria política consiste em explicar como, desse isolamento

absoluto de indivíduos, pode nascer uma associação que deve acabar por uni-los num

todo único. Tal é o problema que Hobbes quer resolver mediante a doutrina do estado

de natureza e do contrato social.

Por “estado de natureza” entende-se o estado em que o homem se encontrava, ou

se encontraria em determinadas circunstancias, sem o apoio de um poder civil. A

natureza, para Hobbes, é dominada pelas paixões, os instintos, o egoísmo. Os homens

comportavam-se, nesse estado natural, uns contra os outros, como lobos. Hobbes não

nega que o estado de natureza seja um estado de liberdade e igualdade, diferentemente

do civil, mas justamente por isso o estado de natureza é intolerável e deve ser

suprimido.

No De cive, Hobbes define como iguais: “Aqueles que podem executar, um

contra o outro, os mesmos atos; aquele que pode agir com relação ao seu semelhante de

27

VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado

Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 145.

Page 18: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

18

forma extrema, isto é, matá-lo, pode fazer tudo o que podem os demais.”28

Liberdade,

no sentido jurídico, é, para Hobbes, a faculdade de fazer tudo o que não é ordenado ou

proibido pelas leis.

No início do capitulo XIV do Leviatã, afirma Hobbes:

O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus

naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio

poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria

natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo

aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios

adequados a esse fim.29

Esse texto é uma clara definição dos modernos direitos do homem, os direitos

individuais. O direito natural em Hobbes deriva exclusivamente da natureza de “cada

homem”.

O direito natural, diz o texto, é absoluto: liberdade que o indivíduo tem de usar

seu próprio poder, da maneira que quiser. A liberdade do sujeito é ilimitada. Cada

indivíduo, motivado por seu apetite de conservação, desfrutando de uma total liberdade,

tem direito a tudo. Como conseqüência, as ações de uns e outros colidem no mesmo

objeto, os homens disputam com violência o acesso a todas as coisas, levando a todo

tipo de desgraça. O estado natural dos homens então é o estado de guerra perpétua de

todos contra todos, marcado pela insegurança, miséria e barbárie.

Justamente porque o estado da natureza é marcado pela insegurança perpétua, os

homens, por razões de segurança (a busca da paz), aspiram a passar para o estado civil.

Para isto, eles fazem entre si um contrato, no qual renunciam a todos os direitos que

tinham no estado de natureza – exceto o direito à vida –, transferindo-os ao poder

soberano que instituirá a ordem e a paz. Os homens, ao criarem o Estado, ganharam as

condições da prosperidade, da aquisição de direitos subjetivos eficazes, protegidos pela

espada do príncipe. Assim justifica-se o poder absoluto do soberano.

O contrato social, o ato que constitui inicialmente a sociedade, apenas será, para

Hobbes, um contrato de submissão. “O contrato social, entendido como contrato de

28

Apud BOBBIO, ob. cit., p. 173. 29

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de

João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 78.

Page 19: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

19

sujeição é, portanto, o primeiro passo que conduz do “status naturalis” ao “status

civilis” e continua sendo a conditio sine qua non da manutenção desse estado civil”.30

Se de um lado Hobbes pertence à tradição do jusnaturalismo, de outro é

considerado também um precursor do positivismo jurídico. Como explica Bobbio,

“Hobbes adota a doutrina do direito natural não para limitar o poder civil – como fará,

por exemplo, Locke –, mas para reforçá-lo”.31

No estado civil o soberano fará a ordem, o direito, por suas leis; as leis civis têm

a vantagem de serem acompanhadas de coerção, tornando as obrigações eficazes.

“Assim, se no estado civil os indivíduos são obrigados a obedecer às leis civis, isto

significa que nele só existe um direito, imposto pelo soberano, ou seja, o direito

positivo”.32

A lei natural passa a ser identificada com a lei civil concedida pelo Estado, e a

justiça torna-se obediência às leis, às ordens do soberano. Com isso, inverte-se a função

tradicional do direito natural, que passa a justificar o poder soberano ilimitado.

1.2.2 John Locke

John Locke, o primeiro grande filósofo do liberalismo, em seus dois Tratados

sobre o governo civil (1690), defende a ideia de que o poder estatal deve ser limitado

pelas leis naturais. Seus escritos políticos dirigem-se especialmente contra duas linhas

de argumentação absolutista. Uma era a teoria patriarcal da monarquia por direito

divino, defendida por Robert Filmer, e a outra era a tese do absolutismo apresentada por

Hobbes.

Como Hobbes, Locke começa sua teoria política com a descrição do estado de

natureza. Porém, diferentemente da teoria hobbesiana, para Locke, o estado de natureza

não é originariamente um estado de guerra, mas tende a tornar-se um; não é

essencialmente mau, mas apresenta inconveniências.

30

CASSIRER, ob. cit., p. 341-342. 31

BOBBIO, ob. cit., p. 41. 32

Ibid., p. 43.

Page 20: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

20

Locke parte também do pressuposto de que o estado de natureza é uma situação

de liberdade e igualdade. Contudo, liberdade não significa o jus in omnia ilimitado de

Hobbes. Ela se define como o direito “de regular as suas ações e de dispor da sua

propriedade e da sua pessoa como melhor se queira, dentro dos limites da lei da

natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de ninguém mais”.33

Trata-se,

portanto, de uma liberdade negativa, isto é, a liberdade do homem de seguir a sua

própria vontade em tudo aquilo que não seja regulado por lei.

Da mesma forma, a igualdade de que fala Locke não é a igualdade de forças,

física ou material, a que se referia Hobbes, mas uma igualdade jurídica, na qual não há

subordinação ou sujeição de um indivíduo a outro.

O inconveniente do estado de natureza assim concebido está no fato

de que, se uma lei natural é violada, isto é, se um indivíduo abusa da

sua liberdade – a qual consiste em fazer tudo o que é permitido pelas

leis naturais –, há ausência de subordinação. Em outros termos, a

igualdade, implica que, quando ferido pela violência alheia, o

indivíduo deve fazer justiça por si.34

Mas quem é juiz em causa própria dificilmente consegue ser imparcial e tende a

vingar-se, em vez de punir. Em conclusão, o problema maior do estado de natureza é a

falta de um juiz imparcial para julgar as controvérsias que nascem entre os indivíduos

que participam de uma sociedade. O estado de natureza de Locke não é anárquico por

princípio, mas, por não ter juízes imparciais, corre sempre o risco de degenerar em

anarquia.

“Para Hobbes, o estado civil deve proporcionar uma lei aos indivíduos que

fogem do estado da natureza. Para Locke, a rigor, é preciso que haja um juiz, porque a

lei – a lei natural – preexiste e continua vigente na nova situação”.35

A função do poder

civil que surge com o contrato social é conservar o elemento positivo do estado de

natureza – os direitos naturais – e eliminar o elemento negativo – a falta de um juiz

imparcial. Além dos direitos naturais à liberdade e a igualdade, Locke descobre no

estado de natureza um outro direito: o direito à propriedade.

33

BOBBIO, op. cit., p. 180. 34

Ibid., p. 181. 35

Ibid., 182.

Page 21: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

21

Hobbes tinha negado que o direito de propriedade fosse um direito natural. Para

Hobbes, a propriedade, entendida como um direito garantido contra todos, nascia

exclusivamente depois da instituição do Estado e mediante a sua proteção; era, portanto,

um instituto de direito positivo.

“A concepção hobbesiana da propriedade era justamente o oposto da que

convinha a Locke e aos políticos das suas relações de amizade, que lutavam para

proteger os proprietários da espoliação arbitrária pelo soberano”.36

Locke demonstra que a propriedade é um direito natural no sentido específico de

que ele nasce e se aperfeiçoa no estado de natureza, ou seja, antes que o Estado seja

instituído e de forma independente. Assim, Locke dá à propriedade individual um

fundamento que a protege da ingerência do soberano e das outras pessoas estranhas ao

acordo.

Para Locke, o fim principal da reunião dos homens em sociedade é a

conservação da sua propriedade.37

O filósofo sustenta que o fundamento da propriedade

individual deve ser procurado no trabalho, empregado para apossar-se de uma coisa ou

para transformá-la, valorizando-a economicamente, como se lê nessa passagem:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os

homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A

esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu

corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele.

Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a

proveu e deixou, mistura-a a ele com o eu trabalho e junta-lhe algo

que é seu, transformando-a em sua propriedade.38

A propriedade é o direito que cabe inicialmente ao individuo sobre a “sua

pessoa”, em consequência sobre seu trabalho, sobre suas atividades. É o trabalho que dá

valor às coisas. A propriedade de cada um se estende aos frutos de seu trabalho. Locke

afirma que “embora as coisas da natureza tenham sido dadas em comum”, o homem

“sempre teve em si mesmo o primeiro fundamento da propriedade”.39

36

Ibid., p. 190. 37

LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 579. 38

Ibid., p. 409. 39

Apud BOBBIO, ob. cit., p. 196.

Page 22: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

22

No estado de natureza, esse direito de propriedade é limitado. Esse limite está

ligado ao próprio fim do instituto da propriedade, que serve para o sustento de cada um,

com sua família; o que pode ser efetivamente aproveitado. O que ultrapassar esse limite

excede a parte de cada um, e pertence aos outros. Mas esse limite vale somente em uma

sociedade primitiva, antes do surgimento da moeda. Com a introdução da moeda, os

homens permitiram uma acumulação potencialmente sem limites, que é uma das

características determinantes da concepção capitalista da propriedade.

Mas, se a propriedade é fruto do trabalho, a rigor só deveria possuir a terra quem

pode lavrá-la. Porém, ao falar de trabalho, Locke inclui o trabalho alienado, o trabalho

que o homem presta em troca de um pagamento. Assim, ficam superados os limites à

propriedade impostos pela força dos braços: quem tem mais empregados tem mais

propriedade. Como o trabalho dos empregados pode ser comprado com direito, quem

tem mais dinheiro tem mais empregados.

A teoria de Locke sobre a propriedade foi revolucionária e é considerada a parte

mais original de sua filosofia política. Como afirma Bobbio, no pensamento jurídico e

econômico do filósofo inglês, “justamente com respeito ao problema da propriedade,

fazem sua aparição triunfal a teoria da acumulação capitalista ilimitada e a defesa da

sociedade burguesa, que vive e prospera alimentando-se do trabalho alienado”.40

Sobre a concepção de estado de natureza de Locke, analisa Bobbio:

O “estado da natureza” em abstrato dos teólogos e dos jusnaturalistas

é preenchido, em Locke, com um conteúdo concreto. É o local das

relações econômicas entre os indivíduos e representa muito bem a

descoberta de um plano econômico das relações humanas, distinto de

um plano econômico das relações humanas, distinto do plano político.

Ou ainda, o estado de natureza significa a individuação do momento

econômico como momento precedente e determinante do político. A

sociedade natural, isto é, a sociedade na qual os homens vivem

conforme as leis naturais – não impostas mais ou menos

arbitrariamente por uma autoridade – se transforma em uma sociedade

40

Ibid., p. 197.

Page 23: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

23

dominada pelas leis da livre concorrência econômica, elas também

naturais.41

Como afirmamos no início do tópico, Locke combate a teoria absolutista. Para

Locke, a monarquia absolutista é incompatível com a sociedade civil. No Estado

despótico, o soberano, que detém todo o poder, tanto o legislativo, como o executivo, se

subtrai do julgamento de um juiz imparcial, cuja constituição é o principal objetivo do

governo civil.

Para explicar a formação do poder civil, Locke repete a teoria tradicional que

fundamenta o poder político no chamado “contrato social”. O que diferencia o contrato

social de Locke do de Hobbes é o fato de que a renúncia aos direitos naturais, em vez de

ser total – exceto o direito à vida – compreende somente um – o direito de fazer justiça

por si mesmo –, conservando todos os demais. A consequência disso é que o Estado de

Locke surge com poderes bem mais limitados do que o de Hobbes. O Estado não deve

intervir no âmbito privado do cidadão, na vida econômica, familiar e religiosa, devendo

respeitar a liberdade de consciência e de opinião.

A sociedade civil – ou política – não suprime a sociedade natural,

porém a conserva e aperfeiçoa. É inútil acrescentar que essa

configuração do Estado é que deu corpo à tradição do Estado liberal,

entendido como Estado negativo, custódio, limitado, etc.; à concepção

das relações entre indivíduo e Estado definida pela fórmula da

liberdade do Estado. Mais ainda: da idéia de um Estado cuja função

principal é julgar imparcialmente, nasceu a figura do Estado de

direito, que se contrapõe ao Estado patrimonial de então [...]

Locke define os limites a que se deve submeter o Poder Legislativo. O primeiro

limite é a proteção e a conservação dos direitos naturais inalienáveis e invioláveis, dos

quais o indivíduo não pode ser despojado pelo poder civil. O segundo limite é imposto

pela afirmação do princípio da legalidade. O poder supremo deve regular a conduta dos

cidadãos mediante leis e não decretos casuísticos, garantindo a igualdade de todos os

cidadãos perante a lei pelo critério da generalidade, e à certeza do direito, pelo seu

caráter abstrato. O terceiro limite sanciona solenemente o princípio da liberdade

econômica que inspira a ideologia de Locke. O poder supremo não pode privar um

41

Ibid., p. 205-206.

Page 24: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

24

cidadão de sua propriedade. Pode-se dizer que, para Locke, a propriedade é “sagrada e

inviolável”, como consta no art. 17 da Declaração de 1789.

Locke organiza seus direitos humanos para o proveito de uma classe social, em

cujo lado ele é engajado. Esses direitos do homem “formais” (liberdades) não são para

todos, mas para uma minoria: a classe proprietária. Nesse sentido, a opinião de Bobbio:

Se tivessem dito a Locke, campeão dos direitos da liberdade, que

todos os cidadãos deveriam participar do poder político e, pior ainda,

obter um trabalho remunerado, ele teria respondido que isso não

passava de loucura. E, não obstante, Locke tinha examinado a fundo a

natureza humana; mas a natureza humana que ele examinara era a do

burguês ou comerciante do século XVIII, e não lera nela, porque não

podia lê-lo daquele ângulo, as exigências e demandas de quem tinha

uma outra natureza ou, mais precisamente, não tinha nenhuma

natureza humana (já que a natureza humana se identificava como a

dos pertencentes a uma classe determinada).42

A organização política da sociedade inglesa vem atender às exigências de

liberdade para os negócios de uma burguesia ansiosa por direitos plenamente

institucionalizados na Carta Política, na legislação, no Estado. Locke é o teórico do

ideal do modelo mercantil, que exige uma segurança vantajosa para o desenvolvimento

da livre iniciativa no domínio da economia.43

Para Locke, considerado erroneamente o pai da teoria da separação dos três

poderes, o poder civil é formado por apenas dois, o Legislativo e o Executivo – o

Parlamento e o rei. Ademais, a teoria de Locke é a teoria da separação dos poderes, não

da separação e do equilíbrio entre eles. O Poder Executivo deve estar subordinado ao

Legislativo – a doutrina constitucional que se encontra na base dos modernos Estados

parlamentaristas. A teoria do equilíbrio dos poderes é a que foi elaborada por

Montesquieu e será acolhida pela Constituição dos Estados Unidos da América.44

42

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiros: Elsevier, 2004. 43

BOBBIO, ob. cit., p. 81. 44

Ibid., p. 231-236. Micheline Ishay afirma que Locke “ponderava que os direitos individuais somente

estariam protegidos de forma confiável num governo em que os três poderes básicos – legislativo,

executivo e federativo – fossem separados um do outro. Suas justificações dos direitos de propriedade e

da separação dos poderes deixaram sua marca na Constituição dos Estados Unidos (1776) e na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).” (Direitos humanos: uma antologia. Tradução

de Fábio Duarte Joly. São Paulo: Edusp, 2013, p. 25). Ocorre que, conforme ensina Bobbio, o Poder

Page 25: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

25

Se, para Locke, o Poder Executivo responde perante o Legislativo, o Legislativo,

que também é limitado pelos direitos naturais, responde perante o que? A resposta:

perante o povo, no qual se encontra, em última instância, o poder originário da

comunidade – embora por “povo” Locke entendesse a sociedade dos proprietários.

Contra a tirania, o povo tem o direito legítimo de resistência. Quando o Poder

Legislativo viola os direitos naturais dos indivíduos, Locke afirma que o poder deve

retornar ao povo, que tem o direito de retomar sua liberdade original e instituir um novo

Legislativo.

As últimas páginas do Segundo tratado constituem um apelo à resistência à

opressão, ao direito que têm os cidadãos de não se deixarem oprimir por governos

inescrupulosos, e terá “o efeito de suscitar ecos de simpatia e de adesão em todos os

envolvidos na preparação e na execução das duas grandes revoluções do século

XVIII”.45

Compreende-se, agora, a influência da doutrina de Locke na definição dos

“direitos do homem” que encontraremos na Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão (1789), art. 2º: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos

direitos naturais e imprescritíveis do homem. Tais direitos são a liberdade, a

propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.46

Federativo de que fala Locke é “claramente uma parte do Executivo, isto é, do poder coativo do Estado,

voltado não para o interior, mas para o exterior, conforme a distinção clássica entre a ordem interna e

externa, a paz social e a internacional. Está, assim, ligado indissoluvelmente, ao Poder Executivo, do qual

é um aspecto”. (Ob. cit., p. 234) 45

Ibid., p. 245. 46

COMPARATO, ob. cit., p. 170.

Page 26: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

26

CAPÍTULO II – A REVOLUÇÃO FRANCESA E A DECLARAÇÃO DOS

DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789)

2.1 A REVOLUÇÃO FRANCESA NA HISTÓRIA DO MUNDO

CONTEMPORÂNEO

A Revolução Francesa (1789-1799) assinala uma ruptura definitiva com o

Antigo Regime, por meio da destruição do regime senhorial, varrendo os vestígios das

antigas autonomias, destruindo os privilégios locais e os particularismos provinciais. O

súdito torna-se cidadão e o Reino, um Estado sob a unidade nacional.

Revolução burguesa clássica, ela marca uma etapa decisiva na transição do

feudalismo ao capitalismo, tornando possível a instauração de um Estado moderno

correspondendo aos interesses e às exigências da burguesia. Ao Estado absolutista,

encarnado na figura do monarca Luís XVI, ela ofereceu um Estado liberal e laico,

fundado nos princípios da soberania nacional e na igualdade civil. Ela é, ao mesmo

tempo, uma ruptura e uma fundação (fim do Antigo Regime e criação da nação-

soberana).

Com a Revolução do século XVII e a Revolução Industrial do século XVIII na

Inglaterra, e ainda com a Revolução Americana de 1776, a Revolução da França lança

os fundamentos da História Contemporânea. “Se a economia do mundo do século XIX

foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua

política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa”.47

Com a Revolução Francesa, velhas palavras ganham novos conteúdos, entre

elas, “cidadão”, “pátria”, “nação”, “república”. A própria palavra “revolução” 48

adquire

47

HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: europa 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Lopes

Teixeira e Marcos Penchel. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 71. 48

O termo é derivado da astronomia, onde revolução designava o movimento regular e cíclico dos corpos

celestes dentro de suas órbitas; retorno de um astro ao seu ponto de partida. O exemplo clássico é dado

pela obra de Copérnico De revolutionibus orbium coelestium (1543). É no século XVII que a palavra vem

a ser usada como termo propriamente político, para indicar um retorno às origens, a uma ordem

preestabelecida que foi perturbada. O termo é usado, pela primeira vez, pelos ingleses para caracterizar a

Page 27: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

27

um novo sentido, e passa a indicar uma inversão radical da ordem constituída; uma

ruptura com o passado e o inicio de uma nova era:

[...] da mera restauração de uma ordem perturbada pelas autoridades,

se passa à fé na possibilidade da criação de uma ordem nova; da busca

da liberdade nas velhas instituições, se passa à criação de novos

instrumentos de liberdade; enfim, é a razão que se ergue contra a

tradição ao legislar uma constituição que assegurasse não só a

liberdade, mas trouxesse também a felicidade ao povo.49

Dessa forma, “os revolucionários já não são os que se revoltam para restaurar a

antiga ordem política, mas os que lutam com todas as armas – inclusive e sobretudo a

violência – para induzir o nascimento de uma sociedade sem precedentes históricos”.50

Vale reproduzir em detalhes a conclusão de Soboul sobre os caracteres próprios

da Revolução Francesa perante as diversas revoluções similares:

Se se mostrou a mais brilhante das revoluções burguesas, eclipsando

pelo caráter dramático de suas lutas de classe as revoluções que a

tinham precedido, ela o deveu sem dúvida à obstinação da

aristocracia, ancorada em seus privilégios feudais, que recusava

qualquer concessão, e ao encarniçamento oposto das massas

populares. A contra-revolução aristocrática obrigou a burguesia

revolucionária a prosseguir, não menos obstinadamente, a destruição

total da antiga ordem. Mas esta somente chega a isto aliando-se com

as massas rurais e urbanas às quais era preciso contentar: a

feudalidade foi destruída, a democracia instaurada. O instrumento

político da mutação foi a ditadura jacobina da pequena e da média

burguesias, apoiada nas massas populares: categorias sociais cujo

ideal era uma democracia de pequenos produtores autônomos,

camponeses e artesãos independentes, trabalhando e trocando

livremente. A Revolução Francesa se fixou assim um lugar singular na

restauração monárquica de 1660, após a ditadura de Cromwell. Precisamente com o mesmo sentido

(restauração), a palavra foi usada em 1688, quando os Stuarts foram expulsos e o poder real foi

transferido para Guilherme e Maria, acontecimento que ficou definitivamente marcado na historiografia

como a Revolução Gloriosa. (ARENDT, Hannah. Da revolução. Tradução: Fernando Dídimo Vieira. 2.

ed. São Paulo: Ática-UNB, 1990, p. 34) 49

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 2.

ed.Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 1123. 50

COMPARATO, ob. cit., p. 141.

Page 28: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

28

história moderna e contemporânea: a revolução camponesa e popular

estava no âmago da revolução burguesa e a impelia para a frente.

Estes caracteres explicam a ressonância da Revolução Francesa e seu

valor de exemplo na evolução do mundo contemporâneo.

Indubitavelmente, foram os exércitos da República, em seguida os de

Napoleão, que, mais do que a força das ideias, abateram nos países

por eles ocupados o Antigo Regime: abolindo a servidão, libertando

os camponeses dos foros senhoriais e dízimos eclesiásticos, pondo em

circulação os bens de mão morta, a conquista francesa limpou a casa

para o desenvolvimento do capitalismo. Mais ainda, foi graças à

própria extensão do capitalismo, conquistador por natureza, que os

princípios novos e a ordem burguesa se apoderaram do mundo,

impondo em toda parte as mesmas transformações.51

A referência francesa serviu de matriz às revoluções nacionais e liberais do

século XIX até 1917, permanecendo até essa data o maior exemplo a uma modificação

violenta da ordem social e institucional, como o lugar fundador de toda uma filosofia

política.

Os motivos que explicam que ela tenha, de certo modo, ofuscado os outros

movimentos contemporâneos ou antecedentes, e suas consequências tenham sido mais

profundas, são assim sintetizados por Hobsbawm:

Em primeiro lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso Estado da

Europa (não considerando a Rússia). [...] Em segundo lugar, ela foi,

diferentemente de todas as revoluções que a precederem e a seguiram,

uma revolução social de massa e incomensuravelmente mais radical

do que qualquer levante comparável. [...] Em terceiro lugar, entre

todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única

ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas

ideais de fato o revolucionaram.52

51

SOBOUL, Albert. A revolução francesa. DIFEL: São Paulo, 1974, p. 115-116. 52

HOBSBAWM, op. cit., p. 72.

Page 29: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

29

Como notou Tocqueville,53

a Revolução considerou o cidadão de uma maneira

abstrata, do mesmo modo como as religiões consideram o homem em geral,

independentemente do país ou da época. Dessa forma, ela operou como uma revolução

religiosa, e conseguiu tornar-se compreensível a todos e copiável em todos os lugares:

Todas as revoluções civis e políticas tiveram uma pátria e nela se

fecharam. A Revolução Francesa não teve um território próprio, mais

do que isso, teve por efeito por assim dizer apagar do mapa todas as

antigas fronteiras. Aproximou ou dividiu os homens a despeito das

leis, das tradições, dos caracteres, da língua, transformando às vezes

compatriotas em inimigos e irmãos em estranhos ou, melhor,

formando acima de todas as nacionalidades uma pátria intelectual

comum da qual os homens de todas as nações podiam tornar-se

cidadãos.54

A influência da Revolução Francesa é, portanto, universal. Como afirmou o

revolucionário francês Maximilien Robespierre, ela foi “a primeira revolução feita em

nome dos direitos da humanidade”.55

2.2 A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789)

No final de julho e início de agosto de 1789, em meio à atmosfera

revolucionária, os deputados da Assembléia Nacional (que desde 9 de julho

autoproclamara-se Assembléia Nacional Constituinte) ainda estavam debatendo se

precisavam de uma declaração, se ela deveria aparecer como preâmbulo à Constituição

e se deveria ser acompanhada por uma declaração dos deveres do cidadão.

A divisão sobre a necessidade de uma declaração refletia os desacordos

fundamentais sobre o curso dos acontecimentos. Se a autoridade monárquica precisasse

apenas de uma reforma, uma declaração dos "direitos do homem" não era necessária.

53

TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. Tradução de Yvonne Jean. 3. Ed. São

Paulo: Hucitec, 1989, p. 59. 54

Ibid., p. 59. 55

GAUCHET, Marcel. “Direitos do Homem”. In: FURET, F.; OZOUF, M. (Orgs.). Dicionário crítico da

revolução francesa. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.

679.

Page 30: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

30

Para aqueles, em contraste, que defendiam que o governo tinha de ser reconstruído do

nada, uma declaração de direitos era essencial. Como os princípios que iam ser

proclamados condenariam as ordens e privilégios, os aristocratas sustentavam o

adiamento, esperando conseguir algumas de suas prerrogativas.

Por fim, na histórica noite de 4 de Agosto, a Assembléia Nacional suprimiu

todos os privilégios e os direitos feudais e votou por redigir uma declaração de direitos

sem os deveres. O debate na Assembléia Nacional que antecedeu e deu feição à

Declaração durou quinze dias, de 11 a 26 de agosto, quando finalmente foi aprovada,

com dezessete artigos.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamando a liberdade, a

igualdade e a soberania nacional, representa, na famosa expressão do historiador

Alphonse Aulard, “o atestado de óbito” do Antigo Regime.56

A Declaração afirma que todos os homens "nascem e permanecem livres e iguais

em direitos" (artigo 1º). A igualdade proclamada é uma igualdade formal, jurídica, ou

seja, a lei é a mesma para todos, não há mais distinções de nascimento; profissões e

funções públicas são igualmente acessíveis a todos. A liberdade é definida como sendo

o direito de “poder fazer tudo o que não prejudique os outros” (art. 4º). Trata-se de uma

liberdade negativa, isto é, permite-se aos indivíduos tudo o que não é proibido por lei.

Além da liberdade, também são definidos como "direitos naturais e imprescritíveis do

homem": a propriedade (sem preocupação com a imensa massa dos que nada possuem),

a segurança e a resistência à opressão (art. 2º). O objetivo do governo civil é a garantia

desses direitos individuais. Note-se que a igualdade não figurou entre os “direitos

naturais e imprescritíveis”.57

“O princípio de toda a soberania”, dizia a Declaração, “reside essencialmente na

nação” (art. 3º). Desta forma, os constituintes substituíram a soberania do monarca pela

do “povo”, e, ao fazerem isso, eles anularam o poder pessoal do rei; “de atributo do

56

Apud LEFEBVRE, Georges. A revolução francesa. Tradução de Ely Bloem de Melo Pati. São Paulo:

IBRASA, 1966, p. 147. 57

A igualdade só vai aparecer entre os “direitos naturais” na “Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão” da Constituição do Ano I (1793). De caráter mais social e igualitário, a Declaração de 1793

proclamava que a “a finalidade da sociedade é a felicidade comum”, definia o direito ao trabalho ou

subsistência, a instrução pública e o direito de insurreição no caso de violação dos direitos dos povos. A

Constituição de 1793 estabelecia o sufrágio universal, foi “a primeira constituição genuinamente

democrática proclamada por um Estado moderno.” (HOBSBAWM, ob. cit., p. 87). Porém, jamais foi

aplicada, pois após sua promulgação a Convenção Nacional instituiu um governo de exceção

(revolucionário), que deveria atuar enquanto durasse a guerra com as potências monárquicas.

Page 31: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

31

monarca proprietário, o Estado transformou-se em mandatário dos governados, e sua

autoridade subordinou-se às prescrições de uma Constituição”.58

A monarquia não foi

posta em discussão, mas Luís XVI passou a ser “o primeiro funcionário da nação”. 59

Se Luís XIV tinha proclamado: “A nação não se corporifica na

França, ela reside inteiramente na pessoa do rei”; se Luís XV

reafirmara, cem anos mais tarde (3 de março de 1766): “Os direitos e

os interesses da nação, de que se ousa fazer um corpo separado do

monarca, estão necessariamente unidos aos meus e não repousam

senão em minhas mãos”; a Declaração dos direitos humanos e do

cidadão (26 de agosto de 1789) afirma, ao contrário, que o princípio

de toda a soberania reside essencialmente na nação e que nenhum

corpo nem nenhum indivíduo pode exercer autoridade se não emanar

expressamente dela (art. 3º).60

A lei passa a ser a formalização da “vontade geral” (nítida inspiração de

Rousseau), "todos os cidadãos" têm o direito de participar na sua formação,

“pessoalmente, ou por seus representantes” (art. 6º). Na prática, a Constituinte

estabeleceu um regime exclusivamente representativo, não se exercendo a soberania

nacional senão no momento das eleições. Assim, define o título III, art. 2º da

Constituição de 1791: “A Nação, de quem unicamente emanam todos os Poderes, não

pode exercê-los senão por delegação. – A Constituição francesa é representativa”.61

Todos os cidadãos também têm o direito de consentir na tributação (art. 14), que

deveria ser dividida igualmente segundo a capacidade de pagar (art. 13). A necessidade

de uma "força pública" para garantia dos direitos do homem e do cidadão foi incluída

no artigo 12°. No campo penal, fixou-se o princípio da anterioridade da lei penal (art.

8º) e da presunção de inocência (art. 9º). Além disso, a declaração proibia "ordens

arbitrárias" (art. 7°), punições desnecessárias (art. 8º) ou apropriação governamental

abusiva da propriedade, considerada inviolável e sagrada (art. 17). Afirmava que

“ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo as religiosas" (art. 10), uma

alusão discreta a tolerância religiosa, enquanto enunciava com mais vigor a liberdade de

58

LEFEBVRE, op. cit., 494. 59

Como explica Lefebvre, não há nessa designação intenção difamante, pois, na época, chamavam-se

funcionários os próprios mandatários políticos do povo, e não seus empregados salariados. (Ibid., p. 151) 60

BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, ob. cit., p. 30. 61

COMPARATO, ob. cit., p. 156.

Page 32: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

32

imprensa (art. 11). No artigo 16, estabelece a concepção moderna de Constituição, que

assegura a garantia dos direitos individuais e determina a separação dos poderes.

Num único documento, portanto, os deputados franceses tentaram

condensar tanto as proteções legais dos direitos individuais como um

novo fundamento para a legitimidade do governo. A soberania se

baseava exclusivamente na nação (artigo 3º), e a "sociedade" tinha o

direito de considerar que todo agente público devia prestar contas de

seus atos (artigo 15). Não era feita nenhuma menção ao rei, tradição,

história ou costumes franceses, nem à Igreja Católica. Os direitos

eram declarados "na presença e sob os auspícios do Ser Supremo",

mas por mais "sagrados" que fossem não lhes era atribuída uma

origem sobrenatural. Jefferson tinha sentido a necessidade de afirmar

que todos os homens eram "dotados pelo seu Criador" com direitos,

mas os franceses deduziam os direitos de origens inteiramente

seculares: a natureza, a razão e a sociedade. Durante os debates,

Mathieu de Montmorency havia afirmado que "os direitos do homem

na sociedade são eternos" e "não é necessária nenhuma sanção para

reconhecê-los". O desafio à antiga ordem na Europa não poderia ter

sido mais direto.62

Conquanto a Declaração de 1789 tenha sido precedida pela norte-americana,

foram os princípios de 1789 que constituíram, durante um século ou

mais, a fonte ininterrupta de inspiração ideal para os povos que

lutavam por sua liberdade e, ao mesmo tempo, o principal objeto de

irrisão e desprezo por parte dos reacionários de todos os credos e

facções.63

As críticas conservadoras e reacionárias não tardaram a aparecer. Tão logo

chegam à Inglaterra as notícias de Paris, é publicado em 1790 o panfleto escrito por

Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução em França, uma das mais duras e

virulentas críticas aos novos princípios franceses, que desencadeou um frenesi de

discussão em vários idiomas sobre os direitos do homem. Burke, condenando a

abstratividade e pretensa universalidade desses direitos, argumentava: “Não fomos

62

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009, p. 132. 63

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiros: Elsevier, 2004, p. 118.

Page 33: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

33

preparados e fixados de modo a que sejamos recheados, como pássaros embalsamados

de museus, com farelos e trapos e pedaços miseráveis de papel sujo sobre os direitos do

homem”.64

As réplicas vieram logo em seguida, a mais famosa delas é a de Thomas Paine,

Os direitos do homem, publicado em duas partes, em 1791 e 1792.

"O sr. Burke, com sua costumeira violência", escreveu Paine,

"insultou a Declaração dos Direitos do Homem. [...] A essa chamou de

'pedaços miseráveis de papel borrado sobre os direitos do homem'. O

sr. Burke pretende negar que o homem tenha direitos? Nesse caso,

deve querer dizer que não existem esses tais direitos em nenhum

lugar, e que ele próprio não tem nenhum: pois quem existe no mundo

senão o homem?" Embora a resposta de Mary Wollstonecraft,

Vindication of the Rights of Men, in a Letter to the Right Honourable

Edmund Burke; Occasioned by his Reflections on the Revolution in

France, tivesse sido publicada antes, em 1790, Os direitos do homem

causou um impacto ainda mais direto e estupendo, em parte porque

Paine aproveitou a ocasião para argumentar contra todas as formas de

monarquia hereditária, inclusive a inglesa. A sua obra teve várias

edições inglesas ainda no primeiro ano de sua publicação.65

A polêmica entre os escritores de língua inglesa ajudou a disseminar a

linguagem dos direitos humanos por todo o mundo ocidental.

2.3 A DECLARAÇÃO FRANCESA E AS DECLARAÇÕES NORTE-AMERICANAS

Ao se relacionar a Declaração de Direitos da França às Declarações de Direitos

do Estado Unidos, é preciso atentar-se, em primeiro lugar, para as enormes diferenças

históricas entre a Revolução Americana - a revolta das treze colônias inglesas da costa

64

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em frança. Tradução de Renato Assunção Faria, Denis

Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

1982, p. 107. Examinaremos mais detidamente as críticas de Burke no capítulo 4. 65

HUNT, ob. cit., p. 135.

Page 34: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

34

leste da América do Norte, contra sua metrópole, entre 1776 e 1783 - e a Revolução

ocorrida na França no século XVIII.

A Revolução Americana não se revestiu do mesmo caráter tão ambiciosamente

universal que caracterizou o grande evento político francês, ela não teve necessidade de

derrubar um estado social aristocrático para instaurar uma sociedade de indivíduos

livres e iguais. O estado social aristocrático, os colonos americanos deixaram-no para

trás, ao deixar a Inglaterra ou a Europa para vir para o “novo mundo”. Além disso, a

Inglaterra já havia se livrado do feudalismo e do absolutismo com as suas revoluções e

desenvolvido noções jurídicas de liberdade individual e garantias pessoais. Essas

noções, com as restrições à participação que existiam na metrópole (como o voto

censitário para as assembléias locais), foram estendidas aos súditos das treze colônias.

Os colonos norte-americanos já possuíam a experiência de autogoverno e herdaram das

revoluções inglesas uma tradição política constitucional/liberal. Assim, o que a

Revolução Americana derrubou não foi o feudalismo e o absolutismo, mas os laços

coloniais com a metrópole. Por isso,

[...] o período da Independência Americana, dito período

revolucionário, não questionava realmente o modo de vida dos

habitantes das colônias, suas relações mútuas ou seus interesses

imediatos. Fora da zona limitada das operações e das desordens

passageiras suscitadas pelas manobras militares, prosseguia e

prosseguiria a mesma existência, sem que se modificassem os

equilíbrios fundamentais. A República federal americana continuou,

sem grandes alterações, um movimento que adquirira no curso do

tempo seus equilíbrios específicos. Pôs-se um presidente no lugar do

monarca constitucional da Inglaterra; o Congresso de Washington

substituiu o distante Parlamento de Londres. Alguns intelectuais

entraram em polêmica, de modo cortês, quanto a essa transformação

dos poderes, que influiu fracamente na vida cotidiana de uma

população habituada ao funcionamento de órgãos representativos. Os

insurretos americanos lançaram mão das armas para garantir uma

liberdade que já possuíam. Qualquer que tenha sido a emoção dos

momentos de crise, a violência dos sobressaltos populares e a coragem

dos combatentes, a liberdade não se iniciou nos Estados Unidos em

1776-1777, em 1783 ou 1787; não foi arrancada das mãos do ‘tirano’

Page 35: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

35

de Londres; não deu origem a uma nova ordem de coisas. Ela é

contemporânea do estabelecimento das primeiras colônias. Os colonos

se revoltaram porque tiveram o sentimento de que se queria despojá-

los das prerrogativas de que sempre haviam usufruído. Vê-se aqui,

sem dúvida, uma diferença fundamental entre os acontecimentos da

América e os da França. O que estava em jogo na Revolução Francesa

era uma total mutação da existência comunitária, uma transformação

pela raiz da ordem social, das hierarquias tradicionais, das estruturas

políticas e econômicas, uma redistribuição da propriedade, uma

renovação dos valores psicológicos e morais, que também se afirmou

na ordem da moral, da língua, do costume. Nada seria como antes,

enquanto nos Estados Unidos tudo continuou como antes, com

exceção de certas estruturas políticas. A despeito de alguns violentos

safanões, as colônias da América não foram submersas por um

cataclisma; o abalo permaneceu superficial, e a continuidade

sobrepujou a ruptura. Antes, como depois, habeas corpus é a lei do

país, e os cidadãos votavam para eleger seus representantes nas

assembléias locais.66

Quanto à influência das declarações norte-americanas na elaboração da

declaração francesa, do ponto de vista da própria ideia de uma declaração como algo

que devia preceder a Constituição, é inegável que o exemplo norte-americano

representou um papel decisivo na elaboração da Declaração francesa. 67

E mais do que a

Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, foram as declarações de

direitos contidas nas Constituições dos Estados norte-americanos (redigidas

separadamente pelas colônias rebeldes após a independência e antes da Constituição Fe-

deral) que serviram de modelo aos deputados franceses em 1789 – em especial a de

Virgínia (12 de junho de 1776) – as quais haviam sido reunidas, traduzidas e publicadas

na França em duas ocasiões, em 1778 e 1783, a segunda sob o patrocínio direto de

Benjamin Franklin.

Ressalta-se que a própria idéia de se publicar uma declaração de direitos à

humanidade, como fizeram os norte-americanos com a Declaração de Independência em

1776, constitui um fato sem precedentes. Como afirma Comparato, “a ideia de uma

66

GUSDORF, Georges. As Revoluções da França e da América. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.

192. 67

BOBBIO, ob. cit., p. 104.

Page 36: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

36

declaração à humanidade está intimamente ligada ao princípio da nova legitimidade

política: a soberania popular”.68

Nas cartas de direitos que precederam as declarações de 1776 na América e a de

1789 na França, os direitos ou liberdades não eram reconhecidos como existentes antes

do poder soberano. Sem a concessão do soberano, o súdito jamais teria tido qualquer

direito. Assim, a Magna Carta de1215 formalizou os direitos dos barões ingleses em

relação ao rei inglês; a Petição de Direitos de 1628 confirmou os “diversos Direitos e

Liberdades dos Súditos”; e a Bill of Rights inglesa de 1689 validou “os verdadeiros,

antigos e indubitáveis direitos e liberdades do povo deste reino”.69

Diversamente, a Declaração de Independência de 1776 estabelecia que os

direitos não originavam-se de um acordo entre o governante e os cidadãos, menos ainda

de uma petição a ele ou de uma carta concedida por ele, mas antes da natureza do

homem em geral. Desta forma, elas ajudaram a tornar efetiva uma transferência de

soberania, do monarca para o povo. Os governos são instituídos para assegurar esses

direitos e derivam seus poderes legítimos do consentimento dos governados. A partir de

então, esses direitos universais passaram a ser o fundamento do governo.

A Declaração de Independência dos EUA é o primeiro documento político que

reconhece, além da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes

a todo ser humano, conforme se observa no seu famoso trecho:

Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são

criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos

inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da

Felicidade. – Que para assegurar esses direitos, Governos são

instituídos entre os Homens, derivando seus justos poderes do

consentimento dos governados. – Que, sempre que qualquer Forma de

Governo se torne destrutiva desses fins, é Direito do Povo alterá-la ou

aboli-la [...]7071

68

COMPARATO, ob. cit., p. 118. 69

HUNT, ob. cit., p. 114. 70

Ibid., p. 219. 71

“Grande parte da história norte-americana subsequente seria a implementação das implicações de

princípios tão eloquentemente enunciados no documento.” (MAY, Charles Sellers Henry; MCMILLEN,

Neil R.Uma reavaliação da história dos estados unidos. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:

Zahar, 1990, p. 72)

Page 37: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

37

O texto da Declaração é uma lembrança quase literal dos princípios básicos da

teoria de Lock: direitos naturais, governo instituído para preservar os direitos naturais, e

direito à rebelião.

As "Declarações" e a Constituição americanas tinham claro

fundamento na filosofia jusnaturalista da época e na tradição

constitucional inglesa. Além de limitarem o poder arbitrário dos

governantes sobre a pessoa (o que já existia nos textos anteriores da

ex-metrópole), ampliavam a autonomia dos indivíduos em relação ao

Estado. Tratavam apenas de direitos civis e políticos, nenhuma

cogitação de direitos sociais (isso não cabia no credo liberal). Mesmo

os direitos civis e políticos enunciados, teriam – malgrado o

"universalismo" que perpassava as "Declarações" – que percorrer uma

longa jornada pela frente até começarem a ser estendidos a homens

mais pobres, a escravos, a índios e a mulheres.72

2.4 A UNIVERSALIDADE DA DECLARAÇÃO DE 1789

Como afirma Comparato:

O estilo abstrato e generalizante distingue nitidamente, a Declaração

de 1789 dos bills of rights dos Estados Unidos. Os americanos, em

regra, com a notável exceção, ainda aí, de Thomas Jefferson, estavam

mais interessados em firmar a sua independência e estabelecer o seu

próprio regime político do que em levar a idéia de liberdade a outros

povos.73

Por quase dois séculos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

incorporou a promessa de direitos humanos universais. Em 1948, quando as Nações

72

TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In:

ESTADO DE SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Direitos humanos: construção da liberdade e

da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998, Série Estudos, n. 11,

p. 32. “Tanto na Declaração de Virgínia, como na portentosa Declaração de Independência, afirmava-se

que todos os homens são livres e iguais. Mas o próprio Thomas Jefferson, um dos fundadores da nação

americana e redator da Declaração de Independência, continuou — após essa Declaração — a ser

proprietário de quase duas centenas de escravos. Ainda se passariam mais noventa anos até que os

escravos negros fossem legalmente emancipados em toda a extensão do país - e, ainda assim, à custa de

uma guerra civil (1861-1865) que matou mais de 600.000 pessoas”. (Ibid., p. 32) 73

COMPARATO, ob. cit., p. 145.

Page 38: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

38

Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 1º dizia:

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". Em 1789, o

artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já havia proclamado: "Os

homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos".

Sobre a Declaração, o historiador Jules Michelet destacou o seguinte:

Não se tratava de maneira nenhuma de uma Petição de Direitos, como

na Inglaterra, de um apelo ao direito escrito, às cartas contestadas, às

liberdades, verdadeiras ou falsas, da Idade Média. Não se tratava,

como na América, de ir buscar, de Estado em Estado, os princípios

que cada um deles reconhecia, de resumi-los, generalizar, e com eles

construir, a posteriori, a fórmula total que a federação aceitaria.

Tratava-se de apresentar do alto, em virtude de uma autoridade

soberana, imperial, pontifical, o credo da nova era. Qual autoridade?

A Razão, discutida por todo um século de filósofos, de profundos

pensadores... Tratava-se de impor como autoridade à razão o que a

razão descobrira no fundo do livre exame. Era a filosofia do século,

seu legislador, seu Moisés, que descia da montanha, trazendo na

fronte raios luminosos, e as tábuas nas mãos...74

Para entendermos as razões que levaram a Declaração de 1789 a assumir um

caráter mais universal que a sua equivalente norte-americana, além das já mencionadas

diferenças históricas entre as Revoluções Americana e Francesa, devemos analisar,

ainda que brevemente, as circunstancias de sua elaboração.

O primeiro a apresentar um projeto oficial de declaração à Assembléia Nacional

foi o marquês de La Fayette, herói da Guerra de Independência dos Estados Unidos,

inspirado pelas declarações norte-americanas e muito provavelmente auxiliado por Thomas

Jefferson (então embaixador dos Estados Unidos em Paris), em 11 de julho.

Em resposta à proposta de Lafayette, o conde Lally-Tollendal expressou

preocupação pela possibilidade de a declaração anteceder e assumir uma forma avulsa à

Constituição. Conforme ele declarou à Assembléia,

74

MICHELET, Jules. História da revolução francesa. Da queda da bastilha à festa da federação.

Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 210-211.

Page 39: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

39

“os franceses não são um povo infante anunciando seu nascimento ao

universo... um povo colonial quebrando os vínculos com um governo

distante”, mas “um antigo e imenso povo, um dos primeiros do

mundo, o qual adotara para si uma forma de governo para os últimos

quatorze séculos e obedecera a mesma dinastia nos últimos oito, que

apreciava este poder quando o mesmo foi temperado por costumes e

irá reverenciá-lo uma vez que seja regulado pelas leis”. Semelhante

sociedade, concluía Tollendal, poderia ser precipitada rapidamente na

desordem pela propagação de princípios metafísicos e noções

abstratas de igualdade.75

Nos debates da Assembléia sobre a redação da Declaração, o deputado do

Terceiro Estado, Jérome Pétion, rejeita a proposta daqueles que desejavam seguir o

modelo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, que referenciava os

acontecimentos históricos envolvendo a Grã-Bretanha e as Colônias que então

alcançavam a independência. Pétion afirmou: “Não se trata aqui de fazer uma

declaração de direitos unicamente para a França, mas para o homem em geral”.76

E

esses direitos, como afirmou o deputado Mathieu de Montmorency (outro veterano da

guerra da independência americana), são “invariáveis como a justiça, eternos como a

razão; eles são de todos os tempos e de todos os países”.77

Nos debates, o duque Mathieu de Montmorency exortou seus colegas deputados

a "seguir o exemplo dos Estados Unidos: eles deram um grande exemplo no novo

hemisfério; vamos dar um exemplo para o universo". 78

Ele defendeu que os franceses

não apenas deviam seguir o exemplo oferecido pelos norte-americanos, como tinham o

dever de “aperfeiçoá-lo”, invocando “mais altamente a razão”.79

Contrário aos deputados da direita moderada, como Mounier e Tollendal

(adeptos da Monarquia temperada, com um sistema bicameral a exemplo da

Constituição inglesa), o deputado da esquerda Emmanuel-Joseph Sieyès foi crítico em

relação às cartas norte-americanas.

75

SOARES, José Miguel Nanni. A declaração francesa de 1789: o atestado de óbito do antigo regime.

In: ANNONI, Danielle et. al. (Org.). A influência da declaração dos direitos do homem e do cidadão

(França, 1789). Curitiba: Multideia, 2013, p. 170-171. 76

Apud COMPARATO, ob. cit., p. 146. 77

Ibid., p. 146. 78

Apud HUNT, ob. cit., p. 117. 79

Apud SOARES, ob. cit., p. 171.

Page 40: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

40

Para o abade Sieyès, a Revolução Americana foi pioneira em romper com o

esquema tradicional das declarações de direitos, uma vez que não se limitou em obter

concessões do “senhor” ou “suserano”, mas derrubou por completo o jugo do

despotismo. Contudo, para Sieyès, era inadmissível que um povo que reconquistava sua

soberania mantivesse uma imagem antiga do poder e seus limites.80

Assim, entendia o

deputado que

Ao orientarem sua declaração para uma demanda específica (isto é,

resposta aos agravos imediatos do governo inglês e controle sobre o

futuro governo central), os revolucionários norte-americanos teriam

produzido declarações particularistas (direitos válidos para os

cidadãos de cada um dos estados, não para o “homem” enquanto tal e,

no que tange ao caráter federativo, anteriores à “Nação” ou ao

Estado), sintomas de uma revolução incompleta.81

Com efeito,

Os novos governos estaduais dos Estados Unidos começaram a adotar

declarações individuais dos direitos já em 1776, mas os Artigos da

Confederação de 1777 não incluíam nenhuma declaração de direitos, e

a Constituição de 1787 foi aprovada sem nenhuma declaração desse

tipo. A Bill of Rights americana só passou a existir com a ratificação

das primeiras dez emendas da Constituição, em 1791, e era um

documento profundamente particularista que protegia os cidadãos

americanos contra abusos cometidos pelo seu governo federal. Em

comparação, a Declaração da Independência e a Declaração de

Direitos da Virginia de 1776 tinham feito afirmações muito mais

universalistas. Na década de 1780, os direitos na América tinham

assumido uma posição menos importante do que o interesse em

construir uma nova estrutura institucional nacional. Como

consequência, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

1789 de fato precedeu a Bill of Rights americana, e logo atraiu a

atenção internacional.82

80

SOARES, ob. cit., p. 171. 81

Ibid., p. 171-172. 82

HUNT, ob. cit., p. 126.

Page 41: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

41

O objetivo dos constituintes franceses era diverso do dos americanos. Tratava-se

para os franceses, ao elaborarem a Declaração de 1789, de “destruir tudo para

reconstruir tudo”, ou seja, depor a ordem social do Antigo Regime, libertando a nação

dos privilégios aristocráticos e do absolutismo monárquico, e instaurar uma ordem

nova, fundada nos direitos naturais.

Embora redigida num estilo abstrato, cada um dos direitos e liberdades

elencados na Declaração podem ser interpretados como a representação de uma espécie

de antítese contra os fatos concretos que os constituintes haviam suportado e desejavam

combater. Como declarou Mirabeau na Assembleia Constituinte, a Declaração não era

uma lista de declarações abstratas, mas “um ato de guerra contra os tiranos”.83

E os

princípios nela insculpidos iriam transcender largamente não apenas a sua época, mas

também o seu território e os interesses da própria classe burguesa que a redigira. Assim

resume Godechot:

A declaração não é, pois, nem a cópia servil de modelos americanos,

nem a transcrição prematura de ideias filosóficas. Foi uma obra

humana que teve o maio número de contingências históricas no meio

das quais nasceu. Embora redigida pela burguesia francesa do século

XVIII e em seu interesse, ela ultrapassou amplamente, devido à sua

importância, os interesses desta classe, as fronteiras da França e os

limites do século. Ela também despertou no mundo inteiro profundas

repercussões.84

83

BOBBIO, ob. cit., p. 92. 84

GODECHOT, Jacques. As revoluções: 1770-1799. Tradução de Erothildes Millan Barros da Rocha.

São Paulo: Pioneira, 1976, p. 46.

Page 42: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

42

CAPÍTULO III – AS CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO DE 1789

Antes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a

humanidade jamais havia sido sujeito de direitos. Em seu artigo 1º, a Declaração afirma

que “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.85

Não os homens

franceses, não os homens brancos, não os católicos, mas os “homens”, o que tanto

naquela época quanto hoje não significa apenas pessoas do sexo masculino, mas

membros da raça humana. Porém, logo ficou claro que os deputados que com tanta

confiança declararam que esses direitos são universais tinham algo muito menos

inclusivo em mente.

A declaração de direitos de 1789 se destinava a articular os direitos universais da

humanidade e os direitos políticos gerais da nação francesa e dos seus cidadãos. Não

cuidava das diferenças na posição política. Na semana de 20-27 de outubro de 1789, os

deputados aprovaram uma série de decretos estabelecendo as condições de elegibilidade

para votar. Esses requisitos nada diziam sobre religião, raça ou sexo, embora fosse

claramente pressuposto que as mulheres e escravos estavam excluídos.86

Entretanto, como veremos, o universalismo abstrato da Declaração de 1789

acabou por favorecer grupos inicialmente excluídos de determinados direitos,

legitimando uma série de reivindicações.

Os deputados tinham reagido à recomendação insistente do duque de

Montmorency – "dar um grande exemplo" redigido uma declaração de

direitos – e em algumas semanas começaram a descobrir como

podiam ser imprevisíveis os efeitos desse exemplo. "A ação de

afirmar, dizer, apresentar ou anunciar aberta, explícita ou

formalmente", implícita no ato de declarar, tinha uma lógica própria.

Uma vez anunciados abertamente, os direitos propunham novas

questões – questões antes não cogitadas e não cogitáveis. O ato de

declarar os direitos revelou-se apenas o primeiro passo num processo

extremamente tenso que continua até os nossos dias.87

85

Apud COMPARATO, ob. cit., p. 170. 86

HUNT, op. cit., p. 149. 87

Ibid., p. 149.

Page 43: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

43

Os grupos que trataremos a seguir buscaram ligar suas reivindicações específicas

ao movimento revolucionário mais amplo que ocorria na França e que teve

consequências no mundo inteiro.

3.1 AS MINORIAS RELIGIOSAS

A Declaração reconhecia a liberdade de religião, mas isso implicava direitos

iguais para as minorias religiosas?

A França era o lar de cerca de 40 mil judeus em 1789, além deter de 100 mil a

200 mil protestantes (os católicos formavam os outros 99% da população). Os

protestantes já haviam ganhado seus direitos civis com o Edito de Tolerância de 1787,

mas eram excluídos dos cargos políticos pela lei desde a revogação do Edito de Nantes,

em 1685.88

Na Assembléia Nacional, eles argumentaram que os princípios gerais

proclamados na Declaração não admitiam exceções, que todos aqueles que preenchiam

as condições de elegibilidade tinham de ser automaticamente elegíveis e que, portanto,

as restrições anteriores contra os protestantes já não eram válidas. A porta estava aberta

para que outros grupos reivindicassem os mesmos direitos.

Ao contrário dos protestantes, que possuíam debutados eleitos na Assembléia

Nacional, os judeus parisienses não passavam de algumas centenas e não tinham status

corporativo. Durantes os debates na Assembléia, a sugestão de conceder direitos

políticos iguais aos judeus, historicamente vítimas de preconceito, suscitou furiosa

resistência.

Em 24 de dezembro de 1789, a Assembléia votou por estender direitos políticos

iguais aos “não-católicos” e a todas as profissões89

, ao mesmo tempo que adiava a

questão dos direitos políticos dos judeus.

88

Ibid., p. 146. 89

Aos carrascos e os atores eram negados direitos políticos no passado por serem considerados

desonrados. Os carrascos porque ganhavam a vida matando pessoas; os atores porque fingiam ser outra

pessoa. (HUNT, ob. cit., p. 147).

Page 44: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

44

Apenas um mês depois, os judeus espanhóis e portugueses do sul da França

apresentaram a sua petição à Assembléia, argumentando que, como os protestantes, eles

já estavam participando da política em algumas cidades francesas no sul. Assim, o que

eles pediam era apenas que continuassem a gozar os direitos de cidadãos ativos que eles

já exerciam.

Quando os deputados reconheceram os direitos dos judeus do sul, em janeiro de

1790, foi questão de tempo para que esses direitos fossem estendidos para os outros.

Assim, em 27 de setembro de 1791, a Assembléia revogou todas as suas reservas e

exceções anteriores com respeito aos judeus, concedendo a todos eles direitos iguais.

Em dois anos, portanto, as minorias religiosas tinham ganhado direitos iguais na

França. Embora o preconceito não tenha desaparecido, especialmente com relação aos

judeus, a grandiosidade de tal mudança em tão pouco tempo pode ser percebida ao se

comparar o exemplo francês com a Grã-Bretanha, majoritariamente protestante, onde os

católicos só puderam ser eleitos para o Parlamento britânico depois de 1829, e os judeus

depois de 1858.90

3.2 OS NEGROS E A ESCRAVIDÃO

Em meados do século XVIII, a servidão e a escravidão tornaram-se alvo de

veementes ataques de alguns escritores da Ilustração. A escravidão havia se tornado a

metáfora fundamental da filosofia política ocidental, significando a subordinação

política do homem tanto na Europa absolutista, quanto na América colonial. Esse

deslocamento metafórico se faz presente nos artigos Despotisme e Esclavage da

Encyclopédie de Diderot e D'Alembert, em que a servidão é associada às formas

despóticas e tirânicas de governo.91

É isso que se vê na afirmação de Adam Smith de que um tipo de

escravidão "ainda subsiste na Rússia, Polônia, Hungria, Boêmia,

Morávia, e outras partes da Alemanha. É somente nas províncias do

90

Ibid., p. 160 91

VENTURA, Roberto. Leituras do Abade Raynal na América Latina. In: COGGIOLA, Osvaldo. (Org.).

A revolução francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella, 1990, p. 174.

Page 45: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

45

oeste e do sudoeste da Europa, que ela vem sendo gradualmente

abolida", ou na censura de Raynal a Montesquieu, dado que este

último havia dito que cristianismo e escravidão eram incompatíveis:

"na Alemanha católica, na Boêmia, na Polônia, países muito católicos,

o povo é ainda escravo".92

John Locke inicia o seu Dois tratados sobre o governo (1690) declarando que

"A escravidão é uma condição humana tão vil e deplorável, tão diametralmente oposta

ao temperamento generoso e à coragem de nossa Nação, que é difícil conceber que um

inglês, muito menos um fidalgo, tomasse a sua defesa."93

Mas, como observa BUCK-

MORSS,

[...] o ultraje de Locke contra "as cadeias para toda a humanidade" não

era um protesto contra a escravização de africanos negros em

plantações do Novo Mundo, e muito menos em colônias que fossem

britânicas. Pelo contrário, a escravidão era nesse caso uma metáfora

para a tirania legal, conforme o uso corrente nos debates

parlamentares britânicos sobre teoria constitucional. Como acionista

da Real Companhia Africana, envolvida na política colonial

americana na Carolina, Locke "claramente considerava a escravidão

negra como uma instituição justificável". O isolamento do discurso

político do contrato social em relação à economia da produção

doméstica (oikos) tornou possível essa visão dupla. A liberdade

britânica significava a proteção da propriedade privada, e os escravos

eram propriedade privada. Enquanto os escravos se situassem no

âmbito de autoridade doméstica, sua condição era protegida pela lei.94

A publicação do Espírito das Leis (1748) de Montesquieu é considerada um

divisor de águas na evolução da crítica antiescravista. Nele a escravidão é duramente

censurada por ser contrária à moral, ao direito natural, ao espírito da monarquia, ao

92

ROCHA, Antonio Penalves. Idéias antiescravistas da Ilustração da sociedade escravista brasileira.

Revista brasileira de história, São Paulo, v. 20, n. 39, p. 43-79. 2000, p. 38. 93

LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes,

1998, p. 203. 94

BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 90, jul. 2011. Disponível

em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000200010> Acesso em:

25 jan. 2014.

Page 46: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

46

direito civil e incompatível com o cristianismo, além de considerar o trabalho escravo

menos produtivo que o do homem livre.95

Muito embora Montesquieu tivesse condenado a escravidão, nunca defendeu a

sua extinção imediata. Montesquieu acreditava que a escravidão, empregada em certas

circunstâncias, apesar da injustiça causada pelos abusos que lhe são inerentes, e dos

perigos que representa, teria o seu bom funcionamento garantido se fosse regulada por

leis adequadas. Nesse sentido, afirma que “qualquer que seja a natureza da escravidão,

cumpre que as leis civis procurem dela extirpar, de um lado, os abusos e, de outro, os

perigos”.96

Montesquieu preocupava-se, sobretudo, com a manutenção da ordem nas

colônias, onde, em razão do grande número de escravos, a ameaça de revoltas era

constante: “a benevolência para com os escravos, nos Estados moderados, poderá

prevenir os perigos que se poderia temer de seu número excessivo”.97

Poucos anos depois da publicação do livro de Montesquieu, suas ideias contra a

escravidão foram ordenadas por Jaucourt, que as veiculou nos artigos "Escravidão" e

"Tráfico negreiro" da Enciclopédia.

A História filosófica e política do estabelecimento e comércio dos europeus nas

duas Índias, ou apenas História das Duas Índias, do Abade Raynal98

, publicada em

1770 e revista em 1774 e 1780, aborda a história dos impérios coloniais europeus desde

a descoberta da América. A obra foi um dos manifestos filosóficos mais importantes e

influentes de sua época. A Histoire des Deux Indes marcou o momento em que a crítica

da moderação da escravidão colonial evoluiu para planos de sua supressão gradual.

Na edição de 1774, há uma importante mudança no tema da escravidão colonial,

que assume um tom mais inflamado e ameaçador. Em um trecho da obra, é evocado um

95

Entretanto, Montesquieu se mostra extremamente preconceituoso em relação aos negros: “Não

podemos aceitar a idéia de que Deus, que é um ser muito sábio, tenha introduzido uma alma, sobretudo

uma alma boa, num corpo completamente negro” [...] “É impossível supormos que tais gentes sejam

homens, pois, se os considerássemos homens, começaríamos a acreditar que nós próprios não somos

cristãos.” (MONTESQUIEU. O espírito das leis. Coleção Os Pensadores, XXI. São Paulo: Abril, 1973, p.

223) 96

Ibid., p. 225. 97

Ibid., p. 227. 98 “Como tantas outras grandes obras do enciclopedismo, a famosa Histoire des Deux Indes foi na

realidade obra coletiva: Valadier, Deleyre, Pechméja, St. Lambert e Diderot nela amplamente

colaboraram. [...] De importância decisiva parece ter sido a contribuição de Diderot, que radicalizou as

posições anticolonialistas de Raynal.” (NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo

Sistema Colonial (1777-1808). 8.ed. São Paulo: HUCITEC, 2005)

Page 47: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

47

futuro líder, “um novo Spartacus”, que guiaria as massas escravas na sua luta pela

liberdade e na vingança pelos séculos de sofrimento.

As rebeliões de escravos na colônia francesa de São Domingos e a Revolução

Haitiana em 1791 dão a algumas passagens da História das Duas Índias, como o apelo

ao Spartacus negro (que, no futuro, seria associado à Toussaint Louverture), um tom

profético, gerando o temor de uma ampla revolta racial:

Onde está esse grande homem que a natureza deve a seus filhos

vexados, oprimidos, atormentados? Onde está ele? Ele aparecerá, não

duvidemos, ele se mostrará, ele elevará o estandarte sagrado da

liberdade. Esse sinal venerável reunirá ao seu redor os companheiros

de seu infortúnio. (...) Os campos americanos se inebriarão de forma

arrebatada com um sangue aguardado há tempos, e as ossadas de

tantos infelizes amontoadas há três séculos tremerão de alegria.99

No entanto, os escritores da Ilustração como Raynal jamais tiveram a intenção

de incitar os escravos à revolta, predicando a sua sublevação. Na verdade, a ideia da

revolta foi usada para fins retóricos, a fim de chamar a atenção para as atrocidades

cometidas nas colônias contra os negros e persuadir por intimidação seus

contemporâneos sobre a necessidade de reformar a escravidão e preparar sua abolição

gradual. Um exemplo desta nova posição gradualista encontra-se nas Reflexões sobre a

Escravidão dos Negros (1781) de Condorcet, que seria a base do programa da

“Sociedade dos Amigos dos Negros”.

Somente na década de 1780, foram fundadas sociedades abolicionistas na

Europa, tendo sido a primeira delas criada na Inglaterra, em 1783, para lutar pelo fim do

tráfico negreiro. Mas, suas atividades só se iniciaram efetivamente em 1787, quando

passou a se chamar "Sociedade pela abolição do tráfico e da escravidão dos negros".

Seguindo o modelo inglês, os abolicionistas na França criaram em 1788 a Société des

Amis des Noirs (Sociedade dos Amigos dos Negros), formada por algumas das maiores

figuras da Revolução, como Brissot, La Fayette, Mirabeau, Condorcet, Clavière, Sieyès,

Grégoire, Pétion, etc. Era uma sociedade de elite, composta por nobres, homens de

letras e de finanças. A sociedade defendia meios para amenizar o estado dos negros e

abolir a escravidão de forma gradual, primeiramente o tráfico, dentro dos limites ditados

99

Apud VENTURA, ob. cit., p. 173.

Page 48: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

48

pela continuidade da produção colonial. Os Amigos dos Negros atacavam a escravidão,

mas não a preservação da ordem colonial. Estavam, portanto, longe de pregar algum

tipo de revolução nas colônias ou fomentar a insurreição dos escravos. Porém, sua causa

esbarrava no quadro de uma revolução que tinha no comércio de produtos coloniais uma

de suas bases econômicas.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ao proclamar que

todos os homens nasciam e permaneciam livres e iguais em direito, não mencionava os

negros, mas não abria nenhuma exceção à sua universalidade. No plano do discurso, a

Revolução Francesa era apresentada como um movimento pela liberdade, não só da

França, mas de todos os povos contra a tirania e a opressão. Essa percepção encontrava,

entretanto, seu primeiro limite na questão colonial.

Os revolucionários franceses sempre se viram a si mesmos como um

movimento de libertação que livraria as pessoas da "escravidão", das

iniquidades feudais. Em 1789, os lemas "Liberdade ou morte" e

"Antes a morte que a escravidão" eram correntes, e a "Marseillaise"

denunciava l'esclavage antique ["a escravidão antiga"] nesse contexto.

Era uma revolução não apenas contra a tirania de um governante

específico, mas contra todas as tradições antigas que violavam os

princípios gerais da liberdade humana. [...] Mas e as colônias, a fonte

da riqueza de uma porção tão grande da população francesa? O

significado da liberdade estava em jogo em sua reação aos eventos de

1789, e em lugar nenhum mais do que na joia da coroa, Saint-

Domingue.100

As colônias ocupavam um lugar primordial na organização econômica da França

do final do século XVIII. A principal delas era Saint-Domingue (hoje Haiti), a “pérola

das Antilhas”.

Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos,

representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado

100

BUCK-MORSS, Susan, op. cit.

Page 49: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

49

individual para o tráfico negreiro europeu. Era a colônia mais produtiva do mundo, sua

estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.101

Além dos escravos negros, havia em São Domingos cerca de trinta mil brancos e

um número um pouco inferior de mulatos livres. Excluídos por decreto real de praticar a

maioria das profissões ou até de adotar o nome de parentes brancos, os livres de cor

eram, na sua maioria, artesãos, pequenos comerciantes e pequenos proprietários. Mas

também havia mulatos donos de grandes propriedades. Em 1789, eles possuíam cerca

de um terço das plantações e um quarto dos escravos de São Domingos. O grande

aumento da população escrava em São Domingos se tornava uma ameaça à conservação

da ordem, o que só fortalecia a segregação racial por parte dos brancos.

Com a chegada das notícias da Revolução em São Domingos, a sociedade

colonial viu-se dividida. Os ricos plantadores brancos exigiam uma maior autonomia na

gestão de seus interesses e ameaçavam exigir a independência. Os brancos mais pobres,

por outro lado, esperavam que a revolução na França lhes trouxesse compensação

contra os brancos mais ricos, no intuito de obter maior poder político na colônia.

Se os brancos viam na Revolução a oportunidade de se livrar do pacto colonial,

os homens de cor livres viram nela uma oportunidade de reivindicar os seus direitos de

cidadania e o fim das leis discriminatórias.

Um de seus delegados em Paris em 1789, Vincent Ogé, tentou

conquistar os cultivadores brancos enfatizando os seus interesses

comuns como donos de plantações: "Veremos derramamento de

sangue, nossas terras invadidas, os objetos de nosso trabalho

destruídos, nossas casas queimadas [...] o escravo levará a revolta

mais longe". A sua solução era conceder direitos iguais aos homens de

cor livres como ele próprio, que então ajudariam a conter os escravos,

ao menos por um tempo.102

Em 8 de março de 1790, os deputados votaram por excluir as colônias da

Constituição e portanto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O decreto

ainda considerava criminoso todo aquele que procurasse incitar levantes contra os

101

SAES, Laurent Azevedo Marques de. A Société des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a

Revolução francesa (1788-1802). Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. 102

HUNT, ob. cit., p. 163.

Page 50: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

50

colonos. “Na sua primeira abordagem colonial, a Assembleia Constituinte traía

completamente os princípios e os direitos por ela proclamados menos de um ano

antes”.103

Vincent Ogé deixou Paris em maio de 1790, para reivindicar os direitos dos

homens de cor em São Domingos. Chegou à ilha em outubro e liderou uma revolta de

mulatos livres. A revolta fracassou, e Ogé e seus companheiros foram condenados ao

suplício da roda.104

Em Paris, a agitação contínua dos Amigos dos Negros conquistou um decreto,

em maio de 1791, que concedia direitos políticos a todos os homens de cor livres

nascidos de mães e pais livres. Porém, diante de uma forte pressão do partido colonial

contra o decreto, alertando para os perigos que dele resultariam, ele acabou sendo

revogado em setembro do mesmo ano. Numa tentativa de conciliação, no mesmo mês

foi aprovada uma lei que declarava que todo homem que entrasse no território francês

seria livre e admissível a todos os direitos previstos na Constituição. A lei reconhecia,

desta forma, os direitos políticos dos negros e homens de cor residentes na metrópole e

que preenchiam as condições para a cidadania ativa.

A Constituição, proclamada em setembro de 1791, dispunha, no Título

VII, art. 8º, que: “As colônias e as posses na Ásia, África e América,

embora façam parte do Império francês, não estão compreendidas na

presente Constituição”. Mais do que nunca, o que valia para a

metrópole não valia para as colônias. Enquanto, no território francês,

prevalecia o princípio da liberdade e o fim das discriminações, nas

colônias, consolidava-se um sistema baseado na segregação e na

desigualdade jurídica dos indivíduos. Para manter viva a ordem

escravista colonial, erigia-se uma ordem constitucional distinta.105

Entretanto, a 22 de agosto de 1791, tinha início um evento que abalaria o mundo

colonial francês: a insurreição dos escravos negros em São Domingos. Enquanto mesmo

os mais ardentes opositores da escravidão na França esperavam passivamente por

mudanças, os escravos em São Domingos tomavam nas próprias mãos as rédeas da luta

103

SAES, ob. cit., p. 210 104

HUNT, ob. cit., p. 163. 105

Ibid., p. 290.

Page 51: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

51

pela liberdade, não através de petições, mas por meio de uma revolta violenta e

organizada.

A revolta dos escravos havia atraído até 10 mil insurgentes já no final de agosto

de 1791, um número que continuava a crescer rapidamente. Bandos armados de

escravos massacravam os brancos, queimavam os campos de cana-de-açúcar, as casas

das plantações e as paróquias. Os colonos imediatamente culparam os Amigos dos

Negros de terem estimulado a insurreição negra, pregando ideias de liberdade e

igualdade desmedidamente. Mas, para os Amigos dos Negros, a revolta escrava não era

uma via legítima para a supressão da escravidão: ela tinha que ser contida antes que um

processo de emancipação gradual pudesse ter início.

A conjuntura revolucionária havia criado as condições para que a revolta escrava

assumisse um caráter verdadeiramente abolicionista. Embora inicialmente as

motivações concretas dos escravos nada tivessem a ver com a Revolução na metrópole,

esta não apenas forneceu o contexto para uma insurreição generalizada, mas permitiu

aos escravos que ampliassem seus horizontes, concebendo a própria liberdade como o

resultado de uma transformação revolucionária do sistema que os oprimia.

Tendo inicialmente rejeitado a visão dos Amigos dos Negros, um número cada

vez maior de deputados em Paris começou desesperadamente a endossá-la no início de

1792. O resultado foi o decreto de 24 de março de 1792, que concedia a igualdade plena

de direitos a todas as pessoas de cor livres das colônias. Os deputados esperavam que os

homens de cor livres pudessem barrar a revolta escrava. Deputados como Armand-Guy

Kersaint, antigo senhor de escravos, passaram a defender a própria abolição gradual da

escravidão.

No verão de 1793, as colônias francesas estavam em total sublevação.

Uma república havia sido declarada na França, e a guerra agora

opunha a nova república à Grã-Bretanha e à Espanha no Caribe. Os

cultivadores brancos procuraram fazer alianças com os britânicos.

Alguns dos escravos rebeldes de Saint Domingue juntaram-se aos

espanhóis, que controlavam a metade leste da ilha, Santo Domingo,

em troca de promessas de liberdade para si mesmos. Mas a Espanha

não tinha a menor intenção de abolir a escravidão. Em agosto de 1793,

Page 52: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

52

enfrentando um colapso total da autoridade francesa, dois comissários

enviados da França começaram a oferecer a emancipação aos escravos

que lutavam pela República Francesa, e depois também a suas

famílias. Além disso, prometiam concessões de terra. No final do mês,

estavam prometendo liberdade a províncias inteiras. O decreto

emancipando os escravos do norte abria com o artigo 1º da Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens nascem e

permanecem livres e iguais em direitos". Embora inicialmente

temerosos de uma trama britânica para solapar o poder francês por

meio da libertação de escravos, os deputados em Paris votaram por

abolir a escravidão em todas as colônias em fevereiro de 1794.106

No período da Convenção Republicana Jacobina (2 de junho de 1793 a 28 de

julho de 1794), a Revolução atinge seu ponto mais fundo, em que o domínio da

Montanha na Convenção Nacional e a instauração de uma ditadura jacobina de salvação

pública apoiada nos sans-culottes permitiram vencer as resistências quanto à promoção

de um relativo igualitarismo social. Os movimentos populares tiveram importância

fundamental na aprovação da lei de abolição.

O decreto de 4 de fevereiro de 1794, além de abolir a escravidão dos negros em

todas as colônias, decretava que “todos os homens, sem distinção de cor, domiciliados

nas colônias, são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos garantidos pela

constituição.”107

Num momento em que a distinção entre cidadãos ativos e passivos

tinha sido suprimida, isso significava que os antigos escravos eram agora eleitores e

tinham sido incorporados à ordem republicana francesa. O decreto – ao contrário da

abolição final de 1848 – recusava qualquer tipo de indenização aos proprietários de

escravos.

A Revolução Francesa tinha levado cinco anos para aplicar à escravidão os

princípios da Declaração dos direitos, a “liberdade universal”. A universalidade dos

seus ideais foi posta em prática. A abolição não era uma conseqüência da corrente

antiescravista desenvolvida a partir da metade do século XVIII, representada pelos

Amigos dos Negros, que defendiam a superação gradual da escravidão.

106

HUNT, ob. cit., p. 165. 107

SAES, ob. cit., p. 419.

Page 53: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

53

“A abolição era o resultado da ascensão de um ideal abolicionista

radical impulsionado pela revolta dos escravos em São Domingos e

favorecido por fatores conjunturais importantes, tais como a guerra

externa e a evolução da Revolução na França para um republicanismo

de base popular. A insurreição escrava nas colônias, a postura

contrarrevolucionária dos colonos e a ameaça estrangeira forneceram

o impulso necessário para que se passasse do plano das ideias para o

plano da ação política concreta.108

Mais uma vez, a potente combinação de teoria (declaração dos direitos) e prática

(nesse caso, franca revolta e rebelião), forçou os deputados a reconhecer a

aplicabilidade dos direitos do homem em lugares, e em relação a grupos, que eles

tinham originalmente esperado excluir desses direitos. Os escravos utilizaram-se do

discurso dos revolucionários franceses para legitimarem sua luta.

Embora os escravos talvez não tivessem compreendido todas as

sutilezas da doutrina dos direitos do homem, as próprias palavras

passaram a ter um efeito inegavelmente talismânico. O ex-escravo

Toussaint Louverture, que se tornaria em breve o líder da revolta,

proclamou em agosto de 1793 que "Eu quero que a Liberdade e a

Igualdade reinem em Saint Domingue. Trabalho para que elas passem

a existir. Uni-vos a nós, irmãos [companheiros insurgentes], e lutai

conosco pela mesma causa". Sem a declaração inicial, a abolição da

escravatura em 1794 teria permanecido inconcebível.109

Foram necessários anos de derramamento de sangue antes que a escravidão - não

apenas sua metáfora, mas a escravidão real - fosse abolida nas colônias francesas, e

mesmo então os ganhos foram apenas temporários. Entre o verão de 1794 e 1802, a obra

abolicionista da Convenção Jacobina deu gradualmente lugar ao retorno da política

colonial escravista do Antigo Regime e da Constituinte.

Em 1802, Napoleão enviou uma imensa força expedicionária da França sob o

comando do próprio cunhado, o general Leclerc, para capturar Toussaint Louverture e

restabelecer a escravidão nas colônias francesas. Mas, ao contrário de suas expectativas,

defrontou-se com uma resistência feroz. Diante da valentia dos negros, excedeu-se na

108

SAES, ob. cit., p. 422. 109

HUNT, ob. cit., p. 166-167.

Page 54: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

54

prática de crueldades. O país foi reduzido a cinzas pelos incêndios ateados pelos

combatentes dos dois lados. Preso e transportado de volta para a França, Toussaint

morreu na prisão, em abril de 1803, louvado pelo poeta inglês William Wordsworth110

e

celebrado pelos abolicionistas em toda parte.

Mas a deportação de Toussaint não trouxe a vitória para Leclerc. Jean-Jacques

Dessalines e outros líderes negros prosseguiram o combate e conseguiram derrotar e

expulsar o exército francês. No processo da luta, massacraram a maioria dos brancos,

que antes dominavam a colônia. Dos 60 mil soldados franceses, suíços, alemães e

poloneses enviados à ilha, apenas uns poucos milhares retornaram ao outro lado do

oceano. Os outros tinham tombado em combates ferozes ou pela febre amarela que

dizimou milhares, inclusive o comandante-chefe das forças expedicionárias, Leclerc.111

Em 1º de janeiro de 1804, Dessalines deu o passo final ao declarar

independência da França, combinando, assim, o fim da escravidão com o fim da

condição colonial. O novo Estado foi batizado Haiti, nome indígena original da ilha.

O sangrento desfecho da história colonial da Revolução Francesa é revelador dos

limites – geográficos, mas também políticos e econômicos – que ela, revolução liberal e

burguesa, foi incapaz de ultrapassar, a despeito de sua vocação universalista.

[...] a lei consular de 30 floreal do ano X (20 de maio de 1802), ao

restabelecer o tráfico e a escravidão nas colônias francesas, falaria

expressamente em restaurá-los tal como eram praticados em 1789, o

que era estranho visto que medidas abolicionistas só foram adotadas

em 1793-94. A referência a 1789 não faz sentido a não ser pelo fato de

que, a despeito das intenções da maioria da burguesia revolucionária,

a Revolução francesa, ao entrar em contato com as realidades

colônias, desencadeou, de imediato, um curso de eventos cujos

110

Wordsworth escreveu o poema Para Toussaint L’Overture (1803): “Toussaint, o mais infeliz dos

homens!/ Se o Rústico sibilante lavra terra/ Ao alcance do teu ouvido, ou se tua cabeça estiver agora/

Repousando na cova de uma profunda masmorra/ Sem ouvidos; - Ó miserável Capitão! Onde e quando/

Terás paciência! Mas não morras;/ Usa em tuas algemas uma fronte jovial;/ Embora caído, para nunca

mais levantar,/ Vive e consola-te. Deixaste para trás/ Poderes que trabalharão por ti; ar, terra, céus;/ Não

há sopro de vento comum/ Que te esquecerá; tens grandes aliados;/ Teus amigos são exultações, agonias,/

E amor, e a mente invencível do homem.” (apud HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução

de Berilo Vargas. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 131) 111

HUNT, op. cit. p. 168.

Page 55: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

55

resultados superaram até mesmo as pretensões dos antiescravistas da

metrópole.112

Em 1807, a Grã-Bretanha votou pelo fim da participação no tráfico de escravos e

em 1833 aboliu a escravidão nas colônias britânicas. Na França, foi necessária uma

nova revolução, a republicana de 1848, para o país suprimir definitivamente a

escravidão. “A escravidão não pode existir em nenhuma terra francesa”, declara o artigo

6º da Constituição Francesa de 1848.

A história nos Estados Unidos foi mais sombria porque a Convenção

Constitucional de 1787 não concedeu ao governo federal o controle

sobre a escravidão. Apesar de o Congresso ter também votado a

proibição da importação de escravos em 1807, os Estados Unidos só

aboliram oficialmente a escravidão em 1865, quando a 13ª emenda da

Constituição foi ratificada. Além disso, o status dos negros livres na

realidade declinou em muitos estados depois de 1776, atingindo o seu

nadir no notório caso Dred Scott, de 1857, quando a Suprema Corte

dos Estados Unidos declarou que nem os escravos nem os negros

livres eram cidadãos. Dred Scott só foi derrubado em 1868, quando a

14ª emenda da Constituição dos estados Unidos foi ratificada,

garantindo que "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos

Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados

Unidos e do estado em que residem".113

O Brasil foi a última nação do continente americano a abolir a escravidão, em 13

de maio de 1888. A abolição da escravidão não alterou a situação marginalizada dos

negros na sociedade brasileira e a discriminação racial persistiu, conforme observa

Florestan Fernandes:

O sistema de castas foi abolido legalmente. Na prática, porém, a

população negra e mulata continuou reduzida a uma condição social

análoga à preexistente. Em vez de ser projetada, em massa, nas classes

sociais em formação e diferenciação, viu-se incorporada à “plebe”,

como se devesse converter-se numa camada social dependente e

tivesse de compartilhar uma “situação de casta” disfarçada. Daí resulta

que a desigualdade racial manteve-se inalterável, nos termos da ordem

112

SAES, op. cit., p. 25 113

HUNT, op. cit., p. 161.

Page 56: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

56

racial inerente à organização social desaparecida legalmente, e que o

padrão assimétrico de relação social tradicionalista (que conferia ao

“branco” supremacia quase total e compelia o “negro” à obediência e

à submissão) encontrou condições materiais e morais para preservar-

se em bloco.114

3.3 OS DIREITOS DAS MULHERES

No século XVIII, as mulheres eram vistas como dependentes de seus pais e

maridos, um estado definido pelo seu status familiar, e assim, por definição, não

plenamente capazes de autonomia política. O espaço da mulher na sociedade era

claramente definido como sendo o espaço privado. A mulher que atuava nos territórios

“masculinos” da cultura e da política era repudiada em favor da mulher doméstica,

limitada ao cuidado do lar e da família. Na obra Emílio, Rousseau propõe o modelo de

uma educação feminina exclusivamente voltada para o casamento, à submissão ao

homem, a maternidade e domesticidade.115

Apesar disso, durante a Revolução Francesa, dezenas de milhares de mulheres

entraram na arena política. Elas tiveram atuação vigorosa na militância política das

classes populares no período inicial da Revolução, participando intensamente do

movimento revolucionário, organizando-se em clubes políticos e exercendo na prática

alguns direitos políticos reservados aos homens. As militantes adquiriram uma

visibilidade nunca antes imaginada para mulheres do povo, despertando o interesse e a

inquietação de integrantes do governo acerca da questão dos direitos civis e políticos

femininos.

114

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro,

1972, p. 85. 115

“[...] a mulher foi feita especialmente para agradar ao homem. [...] Se a mulher foi feita para agradar e

ser subjugada, deve tornar-se agradável ao homem em vez de provocá-lo; sua violência própria está em

seus encantos; é por eles que ela deve forçá-lo a descobrir sua força e a usar dela”. (ROUSSEAU, J.-J.

Emílio, ou, Da educação. Tradução Roberto Leal Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 517).

Page 57: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

57

As mulheres não constituíam uma categoria política claramente separada e

distinguível antes da Revolução. Como categoria, elas não apareceram nas discussões

da Assembleia Nacional entre 1789 e 1791.116

No final de 1789, direitos iguais para a classe feminina era algo quase

impensável para quase todo mundo, tanto homens quanto mulheres. Entretanto, depois

da promulgação da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, uma minoria

ousou reivindicar os direitos das mulheres como parte dos direitos humanos universais.

Entre eles, destacaram-se o marquês de Condorcet, Olympe de Gouges e Mary

Wollstonecraft.

O filósofo iluminista Condorcet foi o mais aberto defensor masculino dos

direitos políticos das mulheres durante a Revolução. Em julho de 1790, publicou em um

jornal o ensaio Sur l'admission des femmes au droit de cité (“Sobre a admissão das

mulheres aos direitos da cidadania”), tornando explícito o fundamento lógico dos

direitos humanos:

[...] os direitos dos homens resultam simplesmente do fato deles serem

racionais, sensíveis, capazes de adquirir ideias de moralidade e de

raciocinar com relação a estas ideias. Ora, se as mulheres têm essas

mesmas qualidades, elas têm necessariamente os mesmos direitos. Ou

todos os indivíduos da espécie humana não podem desfrutar de

nenhum direito verdadeiro, ou todos têm os mesmos direitos; e aquele

ou aquela que votar contra os direitos de seu semelhante, seja qual for

sua religião, cor ou sexo, por este fato irá abjurar os seus próprios

direitos.117

Sobre o trecho acima, observa Hunt:

Aí estava a filosofia moderna dos direitos humanos na sua forma pura,

claramente articulada. As particularidades dos humanos (excluindo-se

talvez a idade, as crianças ainda não sendo capazes de raciocinar por

116

HUNT, ob. cit., p. 170. 117

CONDORCET, Marquês de. Sobre a admissão das mulheres aos direitos da cidadania. Tradução de

Paulo Costa Galvão. Disponível em: < http://www.revistasol.com.br/nabigcondorcettrad.html> Acesso

em: 15 fev. 2014.

Page 58: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

58

conta própria) não devem pesar na balança, nem mesmo dos direitos

políticos.118

Condorcet se opõe à farta argumentação sobre as razões “naturais” para a

discriminação das mulheres, sua sujeição aos maridos (a qual chama de “tirania da lei

civil”) e sua pretensa inferioridade. Ele desafiava os seus leitores a reconhecer que as

mulheres sempre tiveram direitos, absolutamente os mesmos que os dos homens, e que

a força do costume os cegara para essa verdade fundamental.

Poderia haver prova mais forte do poder que tem o hábito, mesmo

entre homens sábios, do que ouvir-se invocar o princípio da igualdade

de direitos em favor de talvez uns 300 ou 400 homens - os quais

tinham sido privados deles por preconceitos absurdos - e esquecer

esses direitos com relação a doze milhões de mulheres?119

O filósofo elenca uma série de grandes mulheres da história, como a rainha

Elizabeth da Inglaterra e as duas Catarinas da Rússia, para demonstrar a hipocrisia de se

julgar as mulheres inferiores moral e intelectualmente, incapazes para exercerem todas

as funções públicas, embora fossem capazes de exercer a realeza e funções tipicamente

masculinas, muitas vezes superando os próprios homens:

Será possível manter que a Senhora Macauley não teria expressado

suas opiniões na Casa dos Comuns melhor que muitos dos

representantes da nação britânica? Lidando com a questão da

liberdade de consciência, não teria ela expressado princípios mais

elevados que os de Pitt, bem como um raciocínio mais poderoso?

Apesar de ser uma entusiasta da causa da liberdade tão grande quanto

o pôde ser Mr. Burke, embora fosse opositora dele, enquanto

defendendo a Constituição Francesa teria ela feito uso duma falta de

senso tão absurda e ofensiva quanto a que este celebrado retórico usou

para atacar essa Constituição? Em 1614, não teria a filha adotiva de

Montaigne melhor defendido os direitos dos cidadãos em França do

que o Conselheiro Courtin, que acreditava em magia e em poderes

ocultos? Não era a Princesa de Ursins superior a Chamillard? O

Marquês de Chatelet escreveria tão bem quanto escreveu Madame

Rouillé? Teria Mme. de Lambert feito leis tão absurdas e bárbaras

118

HUNT, ob. cit., p. 171. 119

CONDORCET, ob. cit.

Page 59: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

59

quanto as da "garde dês Sceaux" ou as de Armenouville, contra os

Protestantes, contra invasores da privacidade doméstica, os ladrões e

os negros? Examinando a passada lista dos que governaram o mundo,

os homens têm pouco direito de serem considerados seres tão

elevados.120

Assim, Condorcet121

derruba, um a um, os argumentos comumente utilizados na

época como desculpas para continuar recusando às mulheres o desfrute dos direitos da

cidadania. No entanto, as ideias de Condorcet sobre os direitos cívicos femininos

tiveram pouca repercussão entre os líderes revolucionários.

A dramaturga e escritora francesa Olympe de Gouges (1748-1793) encabeçou a

luta pelos direitos da mulher durante a Revolução Francesa. A sua Declaração dos

Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), dirigida à rainha Maria Antonieta, inverteu a

linguagem da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e insistia que "A

mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos" (artigo 1º)122

. Olympe de

Gouges argumentava que todos os direitos dos homens, enumerados pelos

revolucionários em 1789, também pertenciam às mulheres. Tendo-se oposto à execução

de Luís XVI, ela mesma foi morta na guilhotina em 1793.

Na Inglaterra, as mesmas preocupações com as mulheres foram expressas pela

escritora Mary Wollstonecraft. Em Vindication of the Rights of Woman (1792),

manifesto escrito em tom urgente e apaixonado, ela impelia a sociedade e as próprias

mulheres a lutar por mudanças de atitude e de mentalidade capazes de tornar mais digno

o seu lugar na vida social, acabando com todas as formas de despotismo na sociedade.

Na obra, a escritora critica o modo como as mulheres foram orientadas a

permanecer inocentes (“como é chamada polidamente a ignorância”123

) e submeter-se

cegamente à autoridade. Um tipo de educação que visa a superficialidade e a

dependência, que as orienta a ter como único objetivo o casamento, tornado-as um

simples objeto de desejo. A escritora ressalta que as mulheres não foram criadas apenas

para saciar o apetite do homem, ou para servi-lhes de serva; não era natural nelas ter sua

existência voltada para agradar e atrair os homens. Era fundamental, portanto, explicava

120

Ibid. 121

Ibid. 122

GOUGES, Olympe de. Declaração dos Direitos da Mulher. In: ISHAY, Micheline R. (Org.). Direitos

humanos: uma antologia. Tradução de Fábio Duarte Joly. São Paulo: Edusp, 2013, p. 250. 123

WOLLSTONECRAFT, Mary. Os direitos da mulher. In: ISHAY, ob. cit., p. 263.

Page 60: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

60

Wollstonecraft, que as mulheres fortalecessem suas mentes e seu senso moral de

responsabilidade por meio de uma educação pública e igualitária, que as tornasse

independentes, capazes de tomar as próprias decisões.

Uma vez desencadeado o momentum, os direitos das mulheres não

ficaram limitados às publicações de uns poucos indivíduos pioneiros.

Entre 1791 e 1793, as mulheres estabeleceram clubes políticos em ao

menos cinquenta cidades provincianas e de maior porte, bem como em

Paris. Os direitos das mulheres começaram a ser debatidos nos clubes,

em jornais e em panfletos. Em abril de 1793, durante a consideração

da cidadania numa nova proposta de Constituição para a república, um

deputado argumentou detalhadamente em favor de direitos políticos

iguais para as mulheres. A sua intervenção mostrava que a idéia tinha

ganhado alguns adeptos. "Há sem dúvida uma diferença", ele admitia,

"a dos sexos [...] mas não compreendo como uma diferença sexual

contribui para uma desigualdade nos direitos. [...] Vamos antes nos

desvencilhar do preconceito do sexo, assim como nos liberamos do

preconceito contra a cor dos negros." Os deputados não seguiram a

sua orientação.124

Em outubro de 1793, após lutas nas ruas entre militantes da Sociedade das

Republicanas Revolucionárias e vendedoras de mercado a respeito do uso de insígnias

revolucionárias, o deputado Fabre d´Églantine expressou suas preocupações com as

sociedades de mulheres. Para o deputado, tais sociedades não eram “compostas de mães

de família, moças de família, irmãs ocupadas com irmãos mais novos, mas sim espécies

de aventureiras, cavaleiras errantes, jovens emancipadas, granadeiras”.125

Églantine

considerava que as revolucionárias não eram respeitáveis, porque não eram mães ou

moças dedicadas à família.

No dia seguinte, Jean-Batiste André Amar, relator do Comitê de Segurança

Geral, apresentou um relatório sobre as sociedades de mulheres. No documento, não só

negava às mulheres o direito de se reunir em Sociedades populares, como julgava que o

sexo feminino como um todo era incapaz de exercer direitos políticos.126

A Convenção

124

HUNT, ob. cit., p. 172-173. 125

Apud MORIN, Tania Machado. Práticas e representações das mulheres na revolução francesa –

1789-1795. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009, p. 148-149. 126

Ibid., p. 148.

Page 61: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

61

votou por suprimir todos os clubes políticos femininos. Derrotadas politicamente, as

militantes passaram a simbolizar o modelo negativo de comportamento feminino. As

razões apresentadas pelo deputado são relevantes para a compreensão da repressão

política das ativistas:

“As funções privadas às quais a mulher está destinada pela natureza se

relacionam à ordem geral da sociedade; tal ordem resulta da diferença

existente entre o homem e a mulher. Cada sexo foi chamado a um

gênero de ocupação que lhe é próprio, sua ação está circunscrita num

círculo que ele não pode ultrapassar (...) o homem é forte, robusto,

nascido com grande energia, audácia e coragem (...) só ele tem a

inteligência e a capacidade para meditações profundas e sérias que

exigem um grande controle do espírito e longos estudos que a mulher

não foi feita para seguir. Qual é o caráter da mulher? A moral e os

bons costumes determinam as suas funções: começar a educação dos

homens, preparar o espírito e o coração das crianças de acordo com as

virtudes públicas (...)127

Para o deputado, as mulheres não tinham o conhecimento, a dedicação ou a

impassibilidade exigidos para governar. Deviam se ater aos cuidados que a natureza

lhes reservou. Seu discurso deriva de um ideal de mulher típico de alguns filósofos do

Iluminismo, como Rousseau, que inscreviam as desigualdades de gênero nas leis

naturais. Os homens eram biologicamente fortes, audaciosos e empreendedores; as

mulheres eram o seu oposto: fracas, sensíveis e intelectualmente inferiores. Assim,

recusa-se qualquer papel intelectual e político às mulheres; uma carreira pública

destruiria a família, fundamento da sociedade e base da ordem natural.

A honestidade de uma mulher permite que ela se mostre em público,

lute com homens, e discuta (...) questões das quais depende a salvação

da República? Em geral, as mulheres são pouco capazes de

concepções elevadas (...) Vocês querem que na República francesa

elas venham à tribuna (...) abandonando a sua reserva, fonte de todas

as virtudes desse sexo, e os cuidados de suas famílias? Nós cremos

127

Apud MORIN, ob. cit.,p. 151-152.

Page 62: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

62

que uma mulher não deve sair de sua família para se imiscuir nos

negócios do governo.128

André Amar ressalta o ideal de mulher virtuosa de Rousseau, sentimental,

passiva, modesta, dependente e destinada ao lar, tão criticado por Mary Wollstonecraft.

A mulher que abandona seus deveres de mãe e esposa para se imiscuir na vida política

está prejudicando a própria República. Sobre o discurso do deputado, observa Hunt:

O fundamento lógico não era nenhuma novidade; o que era novo era a

necessidade de vir a público e proibir as mulheres de formar e

frequentar clubes políticos. As mulheres podem ter surgido por último

nas discussões e como tema de menor importância, mas os seus

direitos acabaram entrando na agenda, e o que foi dito a seu respeito

na década de 1790 – especialmente em favor dos direitos – teve um

impacto que durou até o presente.129

Seus direitos políticos foram negados, mas, pela primeira vez o assunto foi

debatido e os deputados tiveram que explicar a exclusão publicamente. Antes da

Revolução, nenhuma explicação teria sido necessária.

Entretanto, a Revolução trouxe importantes avanços em relação aos direitos civis

das mulheres. Elas ganharam direitos iguais de herança e o direito ao divórcio pelas

mesmas razões de seus maridos. O divórcio não era permitido pela lei francesa antes de

sua decretação em 1792.130

O Código Civil francês de 1804 reagiu contra o que foi

designado então como “torrentes de imoralidades” nascida das leis revolucionárias. O

divórcio por mútuo consentimento foi mantido, mas tornou-se mais difícil por um

processo longo e complicado. Entretanto, a monarquia restaurada revogou o divórcio

em 1816 – quando a religião católica foi declarada religião do Estado. Nem mesmo a

Revolução de 1848 pôde restabelecer o divórcio, que só foi reinstituído em 1884 (graças

128

Ibid, p. 152. 129

HUNT, ob. cit., p. 173. 130

“A Revolução Francesa, rompendo com a concepção canônica da indissolubilidade, admite a

dissolução completa e definitiva do laço conjugal, na condição de ser proferida por um tribunal. A lei

francesa de 20 de setembro de 1792, admite o divórcio com a maior facilidade: o divórcio pode ser obtido

não apenas por consentimento mútuo, como ainda por inúmeras causas, entre as quais a simples

incompatibilidade de feitio alegada por um dos cônjuges.” (GILISSEN, John. Introdução histórica ao

direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

2003, p. 576).

Page 63: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

63

à intensa campanha de mulheres e à aliança entre feministas e republicanos), e mesmo

então com mais restrições do que as aplicadas em 1792.131

Os próprios revolucionários sentiram a necessidade de marcar um

limite intransponível, de mostrar claramente que as mulheres estavam

do lado privado e os homens do lado público. A partir de 1794, em

1803, em 1816 e ao longo de todo século XIX, essa demarcação entre

o público e o privado, o homem e a mulher, a política e a família,

acentuou-se de forma constante. [...] Mas as ondas de choque que

criaram não deixaram de se fazer sentir até a década de 1970, quando

as leis francesas sobre a família finalmente retomaram alguns

princípios de 1792: a lei sobre o divórcio de 11 de julho de 1975

tornou o procedimento tão fácil quanto em 1792; a lei de 4 de junho

de 1970 livrou o casal dos resquícios da supremacia conjugal do

marido, tal como nos primeiros anos da Revolução; a lei de 3 de

janeiro de 1972 assegurou aos filhos naturais direitos que já haviam

sido concedidos a eles no ano II. Haverá maneira melhor de avaliar a

modernidade dos princípios da Revolução e os efeitos a longo prazo

(positivos e negativos) da herança revolucionária? 132

Depois de 1793, as mulheres se viram mais reprimidas no mundo oficial da

política francesa. Embora as ativistas da Revolução Francesa tenham sido derrotadas (e,

posteriormente, por muito tempo, repudiadas e esquecidas) e conquistas femininas

específicas tenham sido desprezadas, sua promessa de direitos não foi esquecida e seu

legado será retomado, mais tarde, nos diversos campos de ação de mulheres em suas

lutas a partir da década de 1830.133

Na França, as mulheres aproveitaram as novas oportunidades de

publicação criadas pela liberdade de imprensa para escrever mais

livros e panfletos do que nunca. O direito das mulheres à herança

igual provocou incontáveis processos na justiça, porque as mulheres

determinaram se agarrar ao que era agora legitimamente delas. Afinal,

131

Retomando o sistema do Code Civil de 1804, a lei de 19 de julho de 1884 restringe a possibilidade do

divórcio aos casos de adultério (no caso do marido, unicamente se manteve a concubina na casa comum),

sevícias, injúrias graves ou condenação a pena infamante. (Ibid, p. 576-577). 132

HUNT, Lynn. Revolução francesa e vida privada.In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.).

História da vida privada.Tradução Denise Bottman e BernardoJoffily. São Paulo: Companhia das Letras,

1991, p. 51. 133

PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e especificidade. In: PINSKY, Jaime;

PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 270.

Page 64: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

64

os direitos não eram uma proposição tudo-ou-nada. Os novos direitos,

mesmo que não fossem direitos políticos, abriam o caminho de novas

oportunidades para as mulheres, e elas logo as aproveitaram. Como as

ações anteriores dos protestantes, judeus e homens de cor livres já

tinham mostrado, a cidadania não é apenas algo a ser concedido pelas

autoridades: é algo a ser conquistado por si mesmo. Uma medida da

autonomia moral é essa capacidade de argumentar, insistir e, para

alguns, lutar.

O direito à participação política das mulheres só foi conquistado depois de

muitas lutas ao longo dos séculos XIX e XX. Nos Estados Unidos, em junho de 1919, o

Senado aprovou a 19ª emenda, reconhecendo como cidadãs todas as mulheres com mais

de 21 anos. Na Inglaterra, embora o sufrágio feminino tenha sido aprovado em 1918, foi

somente em 1928 que o Parlamento inglês permitiu o voto para as mulheres em igual

condição à dos homens. No Brasil, a conquista do voto feminino data de 1932. Com

relação à França, causa espanto a demora em conferir às mulheres esse direito político.

Somente em 1944 o direito de voto foi concedido às francesas.134

134

Ibid., p. 294-297.

Page 65: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

65

CAPÍTULO IV – CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A HERANÇA

REVOLUCIONÁRIA

Neste capítulo, serão analisadas nos dois primeiros tópicos as críticas clássicas

de Edmund Burke e Karl Marx aos “direitos do homem” proclamados pelas Declarações

da Revolução Francesa. Em conjunto com essas críticas, iremos citar as de outros

autores que concordaram com seus pontos principais e os desenvolveram em outras

direções. Conforme afirma Douzinas, “se as declarações do século XVIII constituem a

base do discurso dos direitos, as reflexões de Burke e Marx a respeito da Revolução

Francesa constituem a base das críticas a esse discurso”.135

As críticas que esses autores

fizeram aos fundamentos dos direitos humanos permanecem vivas até hoje. Por fim, o

último tópico falará sobre a herança utópica dos direitos humanos legados pela

Revolução Francesa, a partir da perspectiva de Ernst Bloch.

4.1 AS REFLEXÕES DE EDMUND BURKE

A obra Reflexões sobre a Revolução em França, do britânico Edmund Burke, foi

publicada em novembro de 1790. Seu objetivo era criticar os defensores ingleses da

Revolução Francesa, entre os quais estava o pastor dissidente da Igreja Anglicana

Richard Price. Num sermão, de novembro de 1789, Price exaltara a luta dos

revolucionários franceses:

Vivi para ver os direitos dos homens mais bem compreendidos do que

nunca, e nações ansiando por liberdade que pareciam ter perdido a

ideia do que isso fosse. [... ] Depois de partilhar os benefícios de uma

Revolução [1688], fui poupado para ser testemunha de duas outras

Revoluções [a americana e a francesa], ambas gloriosas.136

135

DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p 160. 136

Apud HUNT, ob. cit., p. 134

Page 66: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

66

Burke foi o “primeiro grande homem na Inglaterra” a denunciar os perigos da

Revolução em marcha na França.137

Burke percebeu, com horror, a ameaça que este

acontecimento representava:

Privada de seu antigo governo ou, mais exatamente, de qualquer

governo, parecia que a França era mais um objeto de insulto e

compaixão que o flagelo e o terror do gênero humano. Mas do túmulo

desta monarquia assassinada saiu um ser informe, imenso, mais

terrível que qualquer daqueles que já acabrunharam e subjugaram a

imaginação dos homens. Este ser hediondo e estranho marcha em

linha reta para seu alvo sem deixar-se apavorar pelo perigo ou deter-se

pelo remorso; contendor de todas as máximas herdadas e de todos os

meios habituais, derruba aqueles que nem podem compreender como

chega a existir.138

A crítica de Burke nas Reflexões tem por fim repelir os argumentos dos

defensores na Inglaterra das ideias que impulsionaram a Revolução na França. Era

preciso proteger a Inglaterra, e, se possível, toda a Europa do contágio dos novos

princípios franceses. Philip Francis definiu – logo em 1791 – as Reflexões como “um

manifesto da contra-revolução”.139

É importante lembrar que Burke, que era membro do partido liberal inglês Whig,

é considerado “o pai do conservadorismo”.140

Não se pode perder de vista o momento

histórico a partir do qual e sobre o qual se desenvolve sua concepção: a transição da

antiga ordem feudal para a nova ordem capitalista, burguesa. O conservadorismo, como

reação ao movimento revolucionário, dirigia-se para a defesa intransigente da velha

ordem, feitas as adaptações necessárias à sua sobrevivência.

O espírito da renovação total e radical; a destruição de todos os

direitos consagrados pela tradição; o confisco da propriedade, a

destruição da Igreja, da nobreza, da família, dos costumes, da

137

BURKE, ob. cit., p. 14. 138

Apud Tocqueville, ob. cit., p. 52. 139

Ibid., p. 22. 140

MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. O discurso autoritário de Cairu. 2 ed. Brasília: Senado

Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 173.

Page 67: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

67

veneração aos ancestrais, da nação – esse é o catálogo de tudo aquilo

que Burke odiava.141

Neste ponto, cabe ressaltar a influência das ideias de Burke no Brasil, mais

precisamente no discurso liberal-conservador de José da Silva Lisboa, o Visconde de

Cairu (1756-1835), importante personagem de nossa história. Coube ao Visconde a

primeira tradução para a língua portuguesa da obra Reflexões sobre a revolução em

França, através do livro Extratos das obras políticas e econômicas de Edmund Burke

(1812).

No prefácio da obra, o escritor afirma que tomou o trabalho de vertê-la ao

português persuadido de que ela serviria de “antídoto contra o pestífero miasma, e sutil

veneno das sementes da Anarquia e Tirania da França”, e sublinha a “extraordinária

ótica mental” de Burke, que viu “as fatais consequências do Mal Francês, com que

ambiciosos, entusiastas, e sofistas, ofertando atraiçoados presentes de amor, tinham

feito a Declaração, e Propaganda dos Falsos Direitos do Homem”.142

Para Burke, ao contrário dos “direitos metafísicos”, os “verdadeiros direitos do

homem” são os direitos que a sociedade civil proporciona ao homem.143

O publicista inglês chama os legisladores franceses de “metafísicos e alquimistas

da legislação” por terem nivelado todos os homens, reduzindo-lhes “à mera condição de

números em uma conta, sem conceder-lhes a importância decorrente dos lugares que

ocupam” na sociedade, em diferentes classes. 144

Para Burke, apenas uma pequena

parcela da população, aquela que dispunha de determinadas condições econômico-

sociais, podia ter acesso à política.

Burke via o Estado como ente orgânico que se eleva sobre a vontade dos

indivíduos, com missão sagrada, com vinculação no eterno. Contra o que ele chama de

“constituição geométrica e aritmética”145

e uma “monstruosa ficção”146

, ele invoca o

exemplo da Constituição britânica, sólida, estável, cuja autoridade deriva de sua antiga

141

O’BRIEN, Connor Cruise. In: ob. cit., p. 3. 142

LISBOA, José da Silva. Extractos das obras políticas e economicas do grande Edmund Burke. 2. ed.

Lisboa: Viuva Neves e Filhos, 1822, p. V. 143

BURKE, ob. cit., p. 88. 144

Ibid. p. 178. 145

Ibid., p. 85. 146

Ibid., p. 72.

Page 68: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

68

tradição e sabedoria. Os ingleses são um povo “que detém, de uma longa linha de

ancestrais, seus privilégios, suas franquias e suas liberdades”.147

As liberdades dos ingleses são antigas liberdades, reivindicadas como uma

herança recebida dos antepassados. “Nem todos os sofistas de seu país poderão produzir

nada melhor para garantir uma liberdade razoável e generosa que o método que

adotamos”148

, afirma Burke para o fidalgo francês para quem escreve.

Burke foi crítico do racionalismo iluminista. Sua principal crítica em relação ao

discurso dos direitos do homem é o seu idealismo e racionalismo metafísico. De acordo

com Burke, direitos metafísicos são moral e politicamente falsos149

. Para os direitos

realmente serem eficazes é imprescindível que estejam arraigados a uma história,

tradição e cultura particulares. Não é possível conhecer os homens fora da história de

cada povo, pois os homens são seres socialmente determinados e historicamente

construídos.

O cosmopolitismo da filosofia do Iluminismo foi amplamente contestado pelos

conservadores, como Joseph de Maistre, que no mesmo diapasão de Burke escreveu:

A Constituição de 1795, tal como as suas irmãs mais velhas, é feita

para o homem. Ora, não há homem no mundo. Em minha vida, vi

franceses, italianos, russos etc. Sei até, graças a Montesquieu, que se

pode ser persa: mas quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei

em toda a minha vida; se ele existe, eu o ignoro completamente.150

Burke defende que não é possível os homens serem esvaziados de seus antigos

costumes e regras de vida, de um momento para outro, e recheados com valores novos,

criados pela doutrina de homens de letras e políticos, que acreditam que “a forma de

governo pode mudar como a moda”.151

“Na Inglaterra, ainda não fomos completamente esvaziados de nossas

entranhas naturais; ainda temos entre nós, e os estimamos e

cultivamos, os sentimentos inatos que são os guardiães fiéis e os

ativos conselheiros do dever, bem como os verdadeiros suportes de

147

Ibid., p. 69. 148

Ibid., p. 70. 149

BURKE, ob. cit., p. 91. 150

Apud COMPARATO, ob. cit., p. 145 151

BURKE, ob. cit., p. 108.

Page 69: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

69

todos os costumes viris e liberais. Não fomos preparados e fixados de

modo a que sejamos recheados, como pássaros embalsamados de

museus, com farelos e trapos e pedaços miseráveis de papel sujo sobre

os direitos do homem”.152

Nesse sentido, cabe citar o juízo de H. A. Taine sobre a Declaração Francesa,

segundo o qual a maior parte dos seus artigos

não são mais do que dogmas abstratos, definições metafísicas,

axiomas mais ou menos literários, ou seja, mais ou menos falsos, ora

vagos, ora contraditórios, suscetíveis de mais de um significado e de

significados opostos (...), umas espécie de insígnia pomposa, inútil e

pesada, que (...) corre o risco de cair na cabeça dos transeuntes, já que

todo dia é sacudida por mãos violentas.153

Finalmente, a célebre objeção de Burke aos direitos do homem:

“De que adianta discutir o direito abstrato do homem à alimentação ou

aos medicamentos? A questão coloca-se em encontrar o método pelo

qual se deve fornecê-la ou ministrá-los. Nessa deliberação,

aconselharei sempre a que busquem a ajuda de um agricultor ou de um

médico, e não a de um professor de metafísica”.154

Douzinas complementa a crítica de Burke a partir de uma perspectiva

contemporânea: “de que adianta o direito abstrato à vida ou à liberdade de expressão e

de imprensa às vítimas de fome e da guerra ou às pessoas incapazes de ler por falta de

recursos educacionais?”155

Burke, ao defender as liberdades dos americanos contra o rei e o parlamento

inglês, dos hindus contra os europeus, defendeu essas liberdades não porque eram

novidades, descobertas na “Era da Razão”, mas porque elas eram prerrogativas antigas,

garantidas por costumes imemoriais.156

Conforme opina Montenegro, tais argumentos estão relacionados

152

Ibid., p. 107. 153

Apud BOBBIO, ob. cit., p. 91. 154

BURKE, ob. cit., p. 88-89. 155

DOUZINAS, ob. cit., p. 165. 156

MONTENEGRO, ob. cit., p. 164.

Page 70: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

70

“com os caracteres socioculturais da sociedade britânica, ciosa de suas

prerrogativas de liberdade, de suas tradições jurídicas, do espírito de

legalidade que permeia as suas instituições desde a célebre Carta

Magna, elevando-a ao primeiro plano das nações. O que só seria

conquistado na França e em outros países depois de lutas sangrentas,

com a Revolução, e a partir de outro quadro ideológico, a do

Nacionalismo apoiado na Metafísica, na Razão abstrata”.157

Feitas estas considerações, não se pode negar que a crítica de Burke ao caráter a-

histórico e abstrato dos direitos humanos foi a matriz de boa parte das críticas

posteriores. Muitas de suas análises acerca das dificuldades confrontadas por qualquer

teorização consistente sobre os direitos humanos não se mostraram equivocadas.158

A Declaração de 1789 introduziu a distinção entre ser humano e cidadão,

abrindo uma lacuna entre a universalidade proclamada a toda humanidade e o conceito

de cidadania estabelecido. Ela também criou o conceito de soberania nacional e deu

início ao nacionalismo, que no futuro levaria a consequências nefastas como genocídios,

conflitos étnicos, minorias, refugiados e apátridas.159

O Estado-nação passa a existir com

a exclusão de outras pessoas e nações:

Após as revoluções, os Estados-nação são definidos por fronteiras

territoriais, que, os separam de outros Estados e excluem outros povos

e nações. A cidadania passou a ser exclusão de classe para exclusão de

nação, que se tornou uma barreira de classe disfarçada.160

Ao mesmo tempo que os direitos humanos são universais e inalienáveis, só o

Estado pode garantir ao “homem” quaisquer direitos. Hannah Arendt reconheceu que os

argumentos com que Burke se opôs à Declaração de 1789 soam, irônica e amargamente,

proféticos à luz dos fatos ocorridos depois da primeira guerra mundial, em que milhões

de pessoas sem território ficaram da mesma forma sem direitos que as protegessem.161

Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como

“inalienáveis”, porque se supunha serem independentes de todos os

157

Ibid., p. 164-165. 158

DOUZINAS, p. 160. 159

Ibid., 116. 160

Ibid., p. 116. 161

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia

das Letras, 2004, p. 333.

Page 71: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

71

governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos

deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade

para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los.162

A perda de suas nacionalidades levou a perda de seus lares, e o que é pior, levou

a impossibilidade de encontrarem um novo lar. Ao perderem seus direitos de cidadania,

os apátridas perderam a proteção do governo, e isso não significava apenas a perda da

condição legal no próprio país, mas em todos os países. Ficou claro, portanto, que a

perda da nacionalidade representava a perda dos direitos humanos.163

Estes fatos parecem confirmar a afirmação de Burke de que os direitos humanos

eram uma “abstração”, que seria muito mais sensato confiar nos direitos como uma

herança transmitida entre gerações, e afirmar que os seus direitos são os “direitos de um

inglês”, os direitos que emanam “de dentro da nação”, e não os direitos inalienáveis do

homem.164

Os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos

de concentração e de refugiados, e até os relativamente afortunados

apátridas, puderam ver, mesmo sem os argumentos de Burke, que a

nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que

corriam. Devido a ela, eram considerados inferiores e, receosos de que

podiam terminar sendo considerados animais, insistiam na sua

nacionalidade, o último vestígio da sua antiga cidade.165

É a partir dos problemas jurídicos suscitados pelo totalitarismo que Hannah

Arendt enfatiza que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos.166

Para Arendt, não é verdade que “todos os homens nascem livres e iguais em

dignidade e direitos”, como afirma o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, de 1948, na esteira da Declaração Francesa de 1789 (art. 1º). Nós não

nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em

virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é

162

Ibid., p. 333. 163

Ibid., p. 325-327. 164

Ibid., p. 333. 165

Ibid., p. 333. 166

LAFER, ob. cit., p. 154

Page 72: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

72

um dado, não é natural. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação

conjunta de homens através da organização da comunidade política.167

4.2 AS CRÍTICAS DE KARL MARX

Na obra A questão judaica, publicada em 1844, Marx faz a crítica aos direitos

naturais do homem, previstos nas Declarações Francesas do período revolucionário.

Trata-se da análise de Marx mais desenvolvida sobre o tema.

Ainda que, em obras como Para a Crítica da Filosofia do Direito de

Hegel e Crítica ao Programa de Gotha subjaz preocupações com a

realidade jurídica, é, entretanto, em A Questão Judaica que fica

melhor realçada a crítica aos direitos formais das sociedades

burguesas presentes nas Declarações Americana e Francesa do século

XVIII.168

Para Marx, os franceses, ao suprimirem o feudalismo e o poder senhorial,

realizaram uma revolução apenas “parcial”, “puramente política”, visto que emancipou

apenas uma parte da sociedade civil, a burguesia dos proprietários. É nesta sociedade

individualista,

fundada nos interesses particulares, que o Estado moderno se erige

como figura subordinada, tal como vimos surgir da Revolução

Francesa, isto é, como Estado democrático representativo que sucedeu

ao Estado monárquico. Seu caráter representativo exprime a separação

da sociedade em relação ao Estado e seu caráter democrático

(universal), a abstração da cidadania igualitária considerada em

relação às situações reais dos indivíduos membros do corpo social. O

Estado democrático representativo constitui a ilusão comunitária da

167

LAFER, ob. cit., p. 150. 168

WOLKMER, Antônio Carlos. Marx, a questão judaica e os direitos humanos. Revista Seqüência, n.º

48, p. 11-28, jul. de 2004, p. 21.

Page 73: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

73

história real, que é a história das desigualdades das riquezas e da

dominação burguesa.169

Assim, afirma Marx que a “emancipação política é a redução do homem, de um

lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a

cidadão do Estado, a pessoa moral”.170

Eis por que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão concede ao

homem, membro da sociedade civil, uma primazia absoluta sobre o cidadão, figura do

novo Estado democrático. Distintos como são dos direitos do cidadão, os direitos do

homem não se referem ao homem em geral, mas ao homem egoísta da sociedade

burguesa, “o homem separado do homem e da comunidade”.171

Marx analisa cada um dos direitos naturais e imprescritíveis dispostos no art. 2º

da Declaração Francesa da Constituição de 1793, a “mais radical das Constituições”: a

igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.

A liberdade (la liberté), comenta Marx, “é o direito de fazer e empreender tudo

aquilo que não prejudique os outros”.172

O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em

direção ao outro é determinado pela lei, assim como as estacas

marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. [...] Trata-se da

liberdade do homem como mônoda isolada, dobrada sobre si

mesma.173

Essa liberdade do homem é fundada, portanto, não na associação entre os

homens, “mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A

liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si

mesmo”.174

A aplicação prática da liberdade é o direito à propriedade privada.

O direito humano à propriedade privada

169

FURET, François. Marx e a revolução francesa. Tradução: Paulo Brandi Cachapuz. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 1989, p. 19. 170

MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, s/d, p. 51. 171

Ibid., p. 41. 172

Ibid., p. 42. 173

Ibid., p. 42. 174

Ibid., p. 42

Page 74: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

74

é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente

(à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da

sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e

esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa.175

A igualdade “nada mais é senão a igualdade da liberté acima descrita, a saber:

que todo homem se considere igual, como uma mônoda presa a si mesma”.176

Por fim, o

direito a segurança “é o conceito supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia,

segundo o qual toda a sociedade existe para garantir a cada um de seus membros a

conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade”.177

De qualquer modo,

acrescenta que o “conceito de segurança não faz com que a sociedade burguesa se

sobreponha a seu egoísmo. A segurança, pelo contrário, é a preservação deste

[egoísmo]”.178

Assim, conclui Marx:

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o

egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa,

isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse

particular, em sua arbitrariedade privada e dissociada da comunidade.

Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos,

pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um

marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência

primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade

natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas

propriedades e de suas individualidades egoístas.179

Marx procede desta forma à desmistificação do suposto “universalismo” dos

direitos humanos. A burguesia francesa, ao falar em nome do homem em geral, disfarça

seus interesses e o novo domínio que pretende estabelecer na sociedade.180

175

Ibid., p. 43. 176

Ibid., p. 43 177

Ibid., p. 44. 178

Ibid., p. 44. 179

Ibid., p. 44-45. 180

FURET, ob. cit., p. 44.

Page 75: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

75

Com a emancipação política, “o homem não se libertou da religião; obteve, isto

sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de

propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial”.181

Embora, para Marx, a emancipação política represente um grande progresso, ela

não é a última etapa da emancipação humana em geral. Para ele, a Revolução francesa

não criou uma emancipação “universalmente humana”. Essa só pode ser realizada por

uma classe submetida a grilhões radicais, sem outra num escalão inferior e,

consequentemente, portadora, dessa vez, da emancipação do homem. “A primeira era a

revolução do cidadão, a segunda seria a do homem”.182

Ao derrubar o Antigo Regime, a Revolução Francesa criou a política

moderna, característica da sociedade mercantil. Entretanto, como a

política é uma ilusão produzida pela alienação dos cidadãos

“democráticos” no novo Estado, a Revolução Francesa por seu turno

deverá ceder a vez a uma “verdadeira” revolução, que destruirá

precisamente o político, absorvendo-o no social: o que significa dizer

que ela deve realizar não mais a transformação do Estado, mas sua

abolição, e promover o homem à condição denominada por Marx de

“ser genérico” (isto é, sua humanidade”) pela destruição da figura

intermediária de sua alienação na ilusão política representada pela

cidadania.183

Portanto, a emancipação humana somente pode ocorrer quando o Estado e a

sociedade civil já não estiverem mais separados, e os direitos humanos forem

afirmados, tendo em vista a existência propriamente humana dos homens e não apenas a

sua existência jurídica.

A revolução proletária irá concretizar as aspirações dos direitos

humanos ao negar não apenas sua forma moralista, mas também seu

conteúdo idealista, exemplificado pelo homem abstrato e isolado. A

negação combinada de conteúdo e forma, no comunismo, atribuirá aos

181

MARX, ob. cit., p. 50. 182

FURET, ob. cit., p. 10. 183

Ibid., p. 20.

Page 76: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

76

direitos fundamentais o seu verdadeiro significado e introduzirá a

liberdade e a igualdade verdadeiras a um novo homem socializado.184

É importante considerar que a crítica de Marx em A Questão Judaica ainda não

apreende uma específica correlação, que mais tarde Marx reconheceria como

necessária: a relação entre os direitos humanos e as formas concretas assumidas pelas

relações econômicas no capitalismo, a relação de troca de mercadorias.185

Por outro lado, importantes pensadores marxistas recentes, como Etienne Balibar

e Claude Lefort, criticam Marx por depositar uma ênfase exagerada na separação entre

homem e cidadão e compreender mal, consequentemente, a inovação política da

Declaração Francesa: em vez de separar, ela identificou homem e cidadão, aproximou

pela primeira vez liberdade e igualdade e criou um direito universal à participação

política.186

As reivindicações de direitos expressam uma demanda de ampliação do

significado de cidadania ou de uma nova ampliação da liberdade e da igualdade.

Conforme afirma Zizek, “foi a ‘liberdade formal’ burguesa que colocou em movimento

as demandas políticas e práticas bem “substanciais” do feminismo e do

sindicalismo”.187

Para Zizek, a ambiguidade radical da noção marxista da “diferença” entre a

democracia formal – os Direitos do Homem, as liberdades políticas – e a realidade

econômica de exploração e dominação, pode ser lida de duas formas. A primeira é a

forma “sintomática” padrão: a democracia formal é uma expressão necessária, porém

ilusória de uma realidade social concreta de exploração e de dominação de classe.188

Contudo, conforme opina Zizek, ela

também pode ser lida em um sentido mais subversivo de uma tensão

na qual a “aparência” da égaliberté não é uma “mera aparência”, mas

contém uma eficácia própria, que a permite pôr em movimento a

rearticulação das relações socioeconômicas reais por meio de sua

184

DOUZINAS, ob. cit., p. 173. 185

TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels.

Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010, p. 57. 186

DOUZINAS, ob. cit., p. 183. 187

ZIZEK, Slavoj. Contra os direitos humanos. Revista: Mediações. Traduzido por Sávio Cavalcante, p.

27. 188

Ibid., p. 27.

Page 77: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

77

progressiva “politização”. Por que às mulheres também não deveria

ser permito o voto? Por que as condições de trabalho não deveriam ser

também uma questão de interesse público?189

Nesse sentido, afirma Zizek:

Não é suficiente apenas firmar uma articulação autêntica de uma

experiência do mundo e da vida que depois é reapropriada por aqueles

que estão no poder para servir aos seus interesses particulares ou para

fazer de seus súditos dóceis peças na engrenagem social. Muito mais

interessante é o processo oposto, no qual algo, que era originalmente

um edifício ideológico imposto por colonizadores, é tomado

subitamente em seu conjunto pelos súditos como uma maneira de

articular suas queixas “autênticas”.190

Desta forma,

Embora os direitos humanos não possam ser postulados como um

Além a-histórico e “essecialista” em relação à esfera contingente das

lutas políticas, como “direitos naturais do homem” universais

dissociados da história, eles também não deveriam ser descartados

como um fetiche reificado, produto do processo histórico concreto de

politização dos cidadãos.191

Por outro lado, não se pode exagerar os efeitos igualitários da Revolução

Francesa e sua Declaração. Nesse sentido, argumenta Douzinas:

É verdade que a política democrática da modernidade estabeleceu um

espaço público no qual a igualdade política pudesse ajudar a

minimizar as reais desigualdades da esfera privada. Esta igualdade da

cidadania criada por meio do exercício dos cidadãos com idênticas

liberdades políticas. Mas o conjunto de cidadãos permaneceu

severamente restrito em sua composição por exclusões raciais, étnicas,

189

Ibid., p. 27-28. 190

Ibid., p. 28. 191

Ibid., p. 28.

Page 78: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

78

legais e de gênero durante mais de um século, e a cidadania ainda

obedece geralmente a limites territoriais arbitrários [...]192

Douzinas reconhece ter sido Marx o primeiro crítico radical que insistiu no

caráter histórico dos direitos humanos em oposição às afirmações dos ideólogos dos

direitos naturais:

Depois da crítica de Marx, ficou claro que, embora os direitos

humanos fossem apresentados como eternos, eles são criações da

modernidade; embora passassem por naturais, eles são construtos

sociais e legais; embora fossem apresentados como absolutos, eles são

os instrumentos limitados do Direito; embora fossem concebidos

acima da política, eles são o produto da política do seu tempo;

finalmente, embora fossem apresentados como racionais, eles são o

resultado da razão do capital e não da razão pública da sociedade.

Todas essas inversões entre fenômeno e realidade significavam que,

para Marx, os direitos humanos representavam o principal exemplo da

ideologia de seu tempo.193

4.3 DIREITOS HUMANOS E UTOPIA

O filósofo marxista Ernst Bloch preserva os principais elementos da crítica de

Marx aos direitos, mas descobre, na tradição do Direito Natural o traço humano

historicamente variável, porém eterno, de resistir à opressão e lutar pela dignidade

humana.194

Bloch diferencia utopias sociais das utopias jurídicas. As primeiras representam

buscas pela felicidade humana, dirigidas, sobretudo, à eliminação da miséria, enquanto

que o direito natural está dirigido à busca pela dignidade humana, à eliminação da

humilhação humana.195

192

DOUZINAS, ob. cit., p. 184. 193

Ibid., p. 174-175. 194

DOUZINAS, op. cit., 187. 195

MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia. São

Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 135.

Page 79: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

79

Por isso, Bloch se vale dos temas do direito natural e da dignidade humana como

bandeiras políticas. Ele entende que o campo da felicidade do homem, no qual se situa

sua emancipação econômica, o fim da exploração do trabalho, o fim das classes, não

esgota necessariamente o campo da dignidade humana.196

Para Bloch, as três cores da Revolução Francesa, seus lemas “liberdade,

igualdade e fraternidade”, contém uma utopia que ainda não se cumpriu e que aponta

um horizonte utópico socialista. Mas a utopia que Bloch aponta não é a utopia abstrata,

idealista, como são a de Thomas More, de Campanella, dos franceses socialistas Charles

Fourier, Saint-Simon e outros. A utopia que se refere Bloch é a utopia concreta197

, que

está ligada à situação real da história e suas contradições, vinculada à atividade humana,

à práxis orientada para o futuro.198

Para Bloch, os lemas da Revolução Francesa, embora inicialmente sejam lemas

burgueses, só podem se concretizar na transcendência da sociedade burguesa. A

burguesia, por se basear na exploração, na divisão de classe, é incapaz de levar adiante

tal processo de emancipação proposto pelos lemas da Revolução.199

De tal forma, Bloch deposita nas mãos da classe proletária a utopia da

liberdade, da igualdade e da fraternidade. A bandeira da Revolução

Francesa persiste, empunhada agora por outra classe. A utopia mais

uma vez se levanta, trazendo do passado os seus sonhos mais

profundos, mas sendo concretizada pela concretude da ação social

revolucionária.200

A liberdade, para Bloch, ao mesmo tempo em que é individual, nas escolhas e

eleições, é libertação da opressão, da exploração da propriedade. A igualdade, da

mesma forma, não é um conceito estrito, e só pode ser pensada juntamente com a

liberdade. Uma só existe com a outra. Assim, afirma Bloch:

196

Ibid., p. 135-136. 197

A noção de utopia concreta de Bloch refere-se a uma sociedade onde os seres humanos não têm mais

que viver suas vidas como meio para se manter através de desempenhos alienados. Utopia concreta:

‘utopia’ porque tal sociedade ainda não existe em lugar algum; ‘concreta’ porque tal sociedade é uma

possibilidade real. (...) Que uma qualidade de vida alternativa seja possível foi demonstrado. A utopia

concreta de Bloch pode ser alcançada. (MARCUSE apud MASCARO, ob. cit., p. 113) 198

Ibid., p. 114. 199

Ibid., p. 155-156. 200

Ibid., p. 156.

Page 80: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

80

Não só a partir de um ângulo formal, mas também parcialmente, a

partir do ângulo de seu conteúdo, a liberdade se prestou a ser

transformada e definida como a liberdade do sujeito econômico

individual, ou, pelo menos, pôde ser contida nestes limites; no entanto,

a igualdade e a fraternidade, se não permanecem no âmbito do formal

e pretendem receber um conteúdo, ou bem são socialistas ou nada são

em absoluto.201

A fraternidade, por sua vez, se dirige à paz, e a paz, para Bloch, só pode ser

obtida por meio da superação da exploração de classes. A fraternidade é a concretização

da liberdade e da igualdade.202

“Liberdade, igualdade, fraternidade, a intentada

ortopedia do andar ereto, do orgulho viril, da dignidade humana, apontam muito mais

adiante do horizonte burguês”.203

Bloch aproveita parte da tradição do direito natural, naquela em que está

presente a utopia da dignidade humana, e afasta outros princípios jurídicos que, durante

a história, com este contrastaram. Mas ele não adota uma teoria jusnaturalista

tradicional. Seu método de reflexão sobre o direito natural não é jusnaturalista, ou seja,

não é idealista, metafísico ou burguês, e sim marxista, baseado na história e na práxis.204

Assim, afirma Bloch: “Não é sustentável que o homem seja, por nascimento,

livre e igual. Não há direitos inatos, e sim que todos são adquiridos ou têm todavia que

ser adquiridos em luta”.205

Portanto, conclui Mascaro:

O que resta, assim, ao marxismo, da doutrina do direito natural, é

justamente aquilo a que os jusnaturalistas pouco se aferram nas suas

lutas por metafísicas e absolutos: a inspiração pela dignidade humana

e o andar ereto. Na ânsia pela defesa da propriedade privada,

inscreveram-na num rol fundamental. Este rol fundamental, no

entanto, há de ser aproveitado para a dignidade, e sua marca maior é

201

Apud MASCARO, ob. cit., p. 157. 202

Ibid., p. 157. 203

BLOCH Apud MASCARO, ob. cit., p. 158. 204

Ibid., p. 162-163. 205

Apud MASCARO, ob. cit., p. 162.

Page 81: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

81

ser uma justiça a partir de baixo, não patriarcal nem metafísica.

Constrói-se na história, por meio dos explorados.206

Para Bloch, “não pode haver dignidade humana sem o fim da miséria e da

necessidade, tampouco felicidade humana sem o fim das velhas e novas formas de

servidão”.207

Para Douzinas, o fim dos direitos humanos, assim como o fim do Direito

Natural, é a promessa do “ainda não”: a utopia. Os direitos humanos perdem sua

finalidade quando perdem sua utopia.

No Direito, a utopia tem um papel decisivo, como observa Herkenhoff:

É a utopia que dá luzes para ver e julgar o Direito vigente na

sociedade em que vivemos e para estigmatizá-lo como um Direito que

apenas desempenha o papel de regulamentar a opressão.208

A utopia é um projeto, algo que o homem lança em sua frente para, a seguir,

partir em busca de sua realização. A imaginação utópica sempre existiu nas sociedades

históricas e continuará existindo, pois é inerente ao homem. Ela é o motor das

invenções, das descobertas, das reformas e das revoluções.209

Consoante afirma Teixeira

Filho, ela é “uma necessidade e um direito, a sobrepor-se aos apelos e exigências

amortalhantes feitos pelo real, pela ‘realidade’”.210

A imaginação utópica é um direito que não se contenta com o sonho, apenas,

quer transformar-se em algo concreto, aspira a realizar seu objetivo numa proximidade

imediata.211

Mas ela não se esgota por aí, segundo lição de Teixeira Coelho, na esteira

de Ernst Bloch:

Mesmo quando este [objetivo] se apresenta como algo concreto, como

resultado da ação utópica, há um resto que permanece para ser

retomado por outra imaginação utópica do mesmo homem, do mesmo

grupo social. Há sempre um excedente utópico a funcionar como mola

206

Ibid., p. 164. 207

Apud DOUZINAS, ob. cit., p. 190. 208

HERKENHOFF, João Baptista. Direito e utopia. 3.ed. Porto Alegre: Revista do Advogado, 1999, p.

15. 209

COELHO, Teixeira. O que é utopia. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 9-14. 210

Ibid., p. 12. 211

Ibid., p. 12.

Page 82: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

82

de um novo ciclo imaginativo, há sempre algo de irrealizado que

busca realizar-se numa nova projeção.212

No reconhecimento da existência desse excedente utópico está a esperança. É o

“princípio esperança” de que fala Bloch que nos faz resistir a dobrar os joelhos diante

de uma realidade opressiva.

Este “princípio esperança”, segundo o qual todas as relações nas quais

o homem é um “ser degradado, escravizado, abandonado ou

desprezado” deveriam ser destruídas, continua tão válido hoje quanto

jamais foi e consiste na melhor justificativa e no mais efetivo fim para

os direitos humanos.213

Os direitos humanos devem ser vistos como parte da luta de grupos sociais

empenhados em promover a emancipação humana. Não devemos esquecer sua enorme

capacidade de gerar esperanças nas lutas contra as injustiças e explorações que sofre

grande parte da humanidade.

Embora com todas as profundas críticas mencionadas ao longo deste trabalho, a

Declaração de 1789 tornou possível reivindicações antes não imaginadas ou

imagináveis, abriu espaços de luta pela dignidade humana e aumentou o poder de

indignação pela violação dos direitos nela inscritos. A Revolução Francesa gerou

excedentes utópicos e energias para a transformação social e política que foram

apropriados posteriormente em diversos domínios.

Como afirma Hunt:

A noção dos "direitos do homem", como a própria revolução, abriu

um espaço imprevisível para discussão, conflito e mudança. A

promessa daqueles direitos pode ser negada, suprimida ou

simplesmente continuar não cumprida, mas não morre.214

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi importante para grupos e

indivíduos na sua luta por emancipação, que se apoderaram de suas palavras e buscaram

torná-las realidade.

212

Ibid., p. 12. 213

DOUZINAS, ob. cit., p. 191-192. 214

HUNT, ob. cit., p. 176.

Page 83: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

83

Algo parecido foi observado nos Estados Unidos e sua Declaração de 1776. Às

vésperas da aprovação da lei de 1964 (Civil Rights Act) que bania, na forma jurídica,

quaisquer distinções de raça, sexo, cor, religião ou origem natural, reafirmando assim os

mesmos princípios contidos na Declaração de Independência de 1776, Martin Luther

King retomou a tradicional argumentação do século XVIII na sua defesa à igualdade

racial.

No seu famoso discurso (I have a dream, “Eu tenho um sonho”), Luther King

afirma que nem a Independência nem o fim da escravidão significaram o fim das

limitações à cidadania dos negros e cobra que os direitos expressos na Declaração de

Independência sejam compreendidos amplamente:215

Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas

palavras da Constituição e da Declaração de Independência, estavam

assinando uma nota promissória de que todo norte-americano seria

herdeiro. Esta nota foi a promessa de que todos os homens, sim,

homens negros assim como homens brancos, teriam garantidos os

inalienáveis direitos à vida, liberdade e busca de felicidade.216

Um pouco mais adiante, afirma Luther King:

Eu tenho um sonho de que, um dia, esta nação se erguerá e viverá o

verdadeiro significado de seus princípios: “Achamos que estas

verdades são evidentes por elas mesmas, que todos os homens são

criados iguais”. Eu tenho um sonho de que, um dia, nas rubras colinas

da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos

senhores de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da

fraternidade.217

A promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade”, herança da Revolução

Francesa, permanece viva até hoje. Como valores, segundo Comparato218

, eles formam

os princípios fundamentais em matéria de direitos humanos e estão inscritos no artigo 1º

da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “Todas as pessoas nascem

215

KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla

Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 151. 216

Apud KARNAL, op. cit., p. 156. 217

Ibid., p. 156. 218

COMPARATO, ob. cit., p. 240.

Page 84: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

84

livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir

em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.219

Mas os direitos humanos perdem sua finalidade quando deixam de ser uma

prática de resistência para se transformarem em instrumentos de opressão, ou quando se

tornam letra morta em inúmeros tratados internacionais. A bandeira dos direitos

humanos deve ser levantada no combate contra a dominação, a segregação, o

colonialismo, o imperialismo, e não para justificá-los, acobertá-los ou aceitá-los. Os

direitos humanos devem trazer consigo a utopia de um mundo sem exploração,

alienação ou fronteiras. Eles devem ser instrumentos de luta contra toda forma de

opressão.

219

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Coletânea de direito internacional, constituição federal. 8. ed. Ver.,

ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 787.

Page 85: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

85

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após examinar e problematizar as relações entre a Revolução Francesa e os

direitos humanos, conclui-se que muitas das causas dos problemas que cercam os

direitos humanos atualmente, sua finalidade, suas contradições, seu caráter ideológico,

suas aporias, originaram-se desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

(1789) e sua repercussão imediata, na teoria e na prática. Por outro lado, evidenciou-se a

importância histórica dos direitos e ideais proclamados na Revolução Francesa na luta

pela dignidade humana.

Primeiramente, procurou-se traçar as origens das ideias da Revolução Francesa.

Tais ideais são produto da filosofia do Iluminismo, que na França era representada pelos

filósofos da Enciclopédia. Após, abordou-se a doutrina do direito natural, que marcou a

época e influenciou decisivamente as primeiras declarações de direitos. Para

compreender os seus fundamentos, foi feito um retrospecto histórico, da Antiguidade à

era medieval, até chegar à formulação individualista que ganhou na era moderna,

destacando as teorias dos filósofos Tomas Hobbes e John Locke.

Ressalta-se que esses tópicos foram abordados como desenvolvimento

necessário para se compreender a Revolução Francesa e os direitos humanos nela

proclamados, mencionados ao longo do trabalho.

No segundo capítulo, comentou-se primeiramente a importância da Revolução

Francesa na história. Ela inaugurou uma nova era, pôs fim ao absolutismo monárquico

na França, instaurou um Estado liberal e laico, fundado nos princípios da soberania

nacional e na igualdade civil, e repercutiu no mundo inteiro. Ela também nos legou a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), marco fundamental no

processo de afirmação histórica dos direitos humanos. Foram analisados sucintamente

os direitos nela proclamados.

Em seguida, se relacionou a Declaração francesa e as Declarações norte-

americanas, destacando o pioneirismo da Declaração de 1776 no reconhecimento de

direitos inerentes a todo ser humano, levando em conta, ainda, a diferença entre os dois

eventos históricos nos quais surgiram, a Revolução na França e a Revolução Americana.

Page 86: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

86

Discutiu-se, também, o caráter universal da Declaração de 1789, que a diferenciou da

sua equivalente norte-americana.

No terceiro capítulo, foram abordadas as consequências advindas da

proclamação da Declaração de 1789, na França e no mundo. Dentre as muitas

repercussões, escolheu-se privilegiar três: a luta pelo reconhecimento de direitos civis

das minorias religiosas na França; o impacto da Declaração na colônia francesa de São

Domingos (Haiti) e as pioneiras reivindicações pelos direitos das mulheres.

Devido à sua importância nas lutas por direitos humanos ao longo da história, as

duas últimas consequências foram mais aprofundadas. No segundo tópico, restou

evidente que os princípios da declaração dos direitos não valiam para todos os homens,

nem para todos os lugares. Ainda assim, depois de campanhas abolicionistas na França

e combates intensos na colônia, a escravidão foi abolida e os negros conquistaram

direitos de cidadania importantes. Por fim, no terceiro tópico, foi mostrado que, em

relação à igualdade, a linha foi traçada nas mulheres, tendo sido negado a elas os

direitos políticos, mas pela primeira vez a questão teve que ser discutida publicamente.

As reivindicações e a promessa daqueles direitos, no entanto, não foram esquecidas.

No quarto capítulo, inicialmente foi analisada a crítica de Edmund Burke ao

caráter metafísico e abstrato dos direitos do homem. Em seguida, foi abordada a crítica

de Karl Marx, mostrando que por trás do homem universal e abstrato da Declaração, o

que existia de fato era um tipo muito determinado de homem: o homem burguês. Por

fim, o tópico final traz um alento para os direitos humanos, apontando o seu caráter

utópico e libertador.

O universalismo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789),

fruto do Iluminismo, embora tenha sido criticado por operar com um conceito abstrato

de homem em geral, não atentando suficientemente para a existência de diferenças reais,

gerou efeitos importantes, como a condenação de qualquer forma de racismo, de

colonialismo, de sexismo. Esse universalismo foi consolidado pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Page 87: Monografia - A Revolução Francesa e Os Direitos Humanos

87

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