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Parte I PESQUISA CIENTÍFICA

Metodologia cientifica da pesquisa juridica

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Parte I PESQUISA CIENTÍFICA

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1CONHECIMENTO CIENTÍFICO

E CIÊNCIA DO DIREITO

A ciência dá soluções na medida em que levanta novos problemas. Assim, a ciência está muito mais próxima de nossa ignorância do que de nossas certezas (GOLDENBERG, 2015, p. 107).

1 CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A definição de conhecimento científico, em geral, implica o uso da ra-cionalidade de forma sistemática, metódica e crítica para desvelar o mundo, compreendê-lo e explicá-lo. Para Köche (2015, p. 37), ele

é construído através de procedimentos que denotem atitude científica e que, por proporcionar condições de experimentação de suas hipóteses de forma sistemática, controlada e objetiva e ser exposto à crítica intersubje-tiva, oferece maior segurança e confiabilidade nos seus resultados e maior consciência dos limites de validade de suas teorias.

Considerando que todas as formas de ver e apreender o mundo são im-portantes e adequadas, a depender da situação e do sujeito do processo, Michel (2015, p. 21) classifica o conhecimento em tácito (individual e relacionado à aquisição de habilidades e competências), explícito (socialmente construído), dogmático (religioso), empírico (realizado com base na experimentação e no senso comum), filosófico (reflexivo e ocupado da discussão da verdade no nível das ideias) e científico (apoiado na investigação e explicação dos fatos e fenômenos).

Para Marconi e Lakatos (2011, p. 15-20), uma das exigências fundamen-tais para reconhecer o conhecimento científico consiste em diferenciá-lo dos demais tipos de conhecimento. Arrolam então: conhecimento popular (senso comum), filosófico, religioso e científico.

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O que distingue o conhecimento popular do científico são os métodos e os instrumentos utilizados. Um agricultor, por exemplo, sabe que uma planta precisa de água; um cientista, mediante observação rigorosa, conhece as características do vegetal, composição, ciclo de desenvolvimento. Não é infundado o conhecimento do agricultor, não é incorreto, mas menos pro-fundo que o do cientista. Por isso, a necessidade de clareza quando se estuda metodologia: a ciência não é a única forma de conhecimento verdadeiro. Entre as características do conhecimento popular, salientam-se: superficialidade, subjetividade (sujeito às emoções do indivíduo), assistematicidade, ausência de posicionamento crítico.

O conhecimento filosófico apoia-se na razão, no esforço para ques-tionar os problemas com os quais o homem se depara no contato com o universo, com outros homens e consigo mesmo. É um tipo de conhecimento valorativo, que não pode ser verificável, pois seus resultados não podem ser confirmados nem refutados. É um conhecimento sistemático e racional que, diferentemente da ciência que utiliza sobretudo o método experimental, que se baseia nos fatos concretos, afirmando apenas o que a experimentação autoriza, no conhecimento filosófico prevalece o raciocínio dedutivo, que exige tão somente coerência lógica.

O conhecimento religioso é o conhecimento teológico, que se apoia em verdades reveladas, infalíveis, indiscutíveis. Constituem suas principais carac-terísticas ser: valorativo, inspiracional, sistemático, não verificável, infalível, exato. A adesão das pessoas a esse tipo de conhecimento se faz pela fé e não por meio da evidência de fatos observados, submetidos a experimentação controlada.

Finalmente, o conhecimento científico caracteriza-se por ser factual, contingente, sistemático, verificável, falível, aproximadamente exato. É um conhecimento racional, que se baseia em método constituído por um sistema conceitual, definições, técnicas de pesquisa. Método estabelecido segundo o objeto escolhido, que, no processo de investigação, orienta-se pelo cumprimento de etapas previamente definidas, que incluem técnicas e instrumentos de investigação. É um tipo de conhecimento que é planejado, apoia-se em conhecimento anterior (hipóteses já confirmadas, leis e princípios já estabelecidos). Conhecimento que não admite o acaso; não é disperso nem desorganizado, mas que constitui um sistema de ideias, a teoria. É preditivo e útil, possibilitando o avanço tecnológico, bem como o aparecimento de novas teorias. Todavia, é um conhecimento que não é definitivo nem abso-luto; pelo contrário, é falível. Dá-se ora por acumulação, ora por quebra de paradigmas (revoluções). Ocupa-se de objetos que têm certas características de homogeneidade.

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Parte I • Cap. 1 • CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CIÊNCIA DO DIREITO | 9

Na atualidade, reconhece-se que a ciência não é a única explicação possível da realidade

e não há qualquer razão científica para a considerar melhor que as expli-cações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos fenômenos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação científica dos fenômenos é a autojustifica-ção da ciência enquanto fenômeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica (SANTOS, 2013, p. 84).

Köche (2015, p. 23-37), que chama o conhecimento popular de conheci-mento do senso comum, conhecimento ordinário, comum ou empírico, postula que ele é “a forma mais usual que o homem utiliza para interpretar a si mesmo, o seu mundo e o universo como um todo, produzindo interpretações significa-tivas, isto é, conhecimento”. Suas principais características seriam: solução de problemas imediatos e espontaneidade, caráter utilitarista, subjetividade, baixo poder de crítica, linguagem vaga, desconhecimento dos limites de validade.

Já o conhecimento científico é objetivo (ao descrever a realidade, evita a participação da subjetividade), racional (vale-se particularmente da razão e não de sensações e percepções), sistemático (constrói sistemas de ideias organiza-das, permitindo inferir de fatos particulares verdades válidas para fenômenos menos particulares; elaborando leis e teorias que explicam partes da realidade), verificável (permite a verificação dos resultados alcançados) e falível (porque reconhece seus limites, a possibilidade de novos conhecimentos virem a inva-lidar conhecimentos anteriores). A verificação da coerência lógica entre enun-ciados, entre teorias e leis, constitui um dos mecanismos que possibilitam que uma teoria alcance padrão de aceitação ou rejeição pela comunidade científica.

O conhecimento científico busca princípios explicativos e apresenta visão unitária da realidade; é resultado da dúvida, da investigação científica e surge não só da necessidade de solução para problemas práticos do cotidiano, mas também do “desejo de fornecer explicações sistemáticas que possam ser testadas e criticadas através de provas empíricas e da discussão intersubjetiva” (KÖCHE, 2015, p. 29).

O ideal da objetividade da ciência caracteriza-se por construir modelos teóricos representativos da realidade. O conhecimento científico pretende que as construções conceituais representem com fidelidade o mundo da realidade, sejam impessoais e possam ser submetidas a testes experimentais; os resulta-dos alcançados devem poder passar pela avaliação crítica intersubjetiva da comunidade científica. A verdade da ciência é uma verdade pragmática; exige o confronto da teoria com dados empíricos e a utilização de uma linguagem es-

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pecífica. Os conceitos utilizados são elaborados à luz das teorias que lhe servem de embasamento. Daí a formação de constructos, que reduzem a ambiguidade ou imprecisão dos conceitos, ou seja, os constructos constituem “conceitos que têm uma significação unívoca convencionalmente construída e dessa forma universalmente aceita pela comunidade científica” (p. 33). Para Köche, ainda, o conhecimento científico “é decorrente da forma como é produzido e justifi-cado”. Os critérios de cientificidade estariam “atrelados à cultura das diferentes épocas” (p. 35). Finalmente, é o conhecimento científico é falível: o pesquisador pode construir hipóteses inadequadas, excluindo da análise do problema fatores significativos, não realizar o teste das hipóteses de forma criteriosa, não utilizar instrumentos e técnicas de observação apropriados e ser influenciado por sua predisposição subjetiva, extraindo de sua investigação uma conclusão indevida.

As características do conhecimento científico, embora sejam valiosas para distingui-lo de outras formas de conhecimento, não permitem estabe-lecer com segurança se “determinado conhecimento pertence à ciência ou à filosofia” (GIL, 2016b, p. 3), particularmente em Ciências Humanas. No Direito, quando examinarmos o pensamento de Kelsen e Cossio, parece que essa afirmação faz muito sentido.

É um lugar-comum a afirmação de que no nosso tempo a ciência se tornou um tipo de conhecimento que goza de alto prestígio social, um tipo de conhecimento que substitui a metafísica, disciplina da Filosofia que pretende constituir-se em conhecimento verdadeiro e universal da realidade. Preten-siosamente, porém, o homem moderno “concebeu a ciência como sendo a única modalidade de conhecimento válido, portanto, também universal e verdadeiro” (SEVERINO, 2016, p. 112). Nesse sentido, acrescentamos duas interrogações de Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 16):

Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos se inacessível à maioria? Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática?

O mesmo Boaventura afirma pouco adiante que o modelo de raciona-lidade da ciência moderna “constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das Ciências Naturais”. No século XIX, esse modelo estendeu-se às Ciências Sociais. Depois disso, passou-se a falar de um “modelo global de racionalidade científica”, que defende a existência de “fronteiras ostensivas”, separando o conhecimento do senso comum e os estudos humanísticos (aqui incluindo

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estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos, teológicos) do conhecimento científico. E conclui o autor citado, sobre a ruptura do paradigma científico com o que existia até o século XVI:

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas (SANTOS, 2013, p. 21).

É da natureza do conhecimento científico entender que um resultado pressupõe sempre uma causa; à luz das regularidades observadas na natureza, aspira formular leis, que proporcionariam prever o comportamento futuro dos fenômenos. Entende o autor de Um discurso sobre as ciências que “as leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas” (p. 30), rompendo, por essa via, com o conhecimento do senso comum.

Apoiado no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano, o Po-sitivismo vai postular a existência apenas de duas formas de conhecimento científico: o que provém das disciplinas formais da Lógica e da Matemática e o que provém das ciências empíricas. Nasciam então as Ciências Sociais para serem empíricas, em que Santos (2013, p. 33-34) distingue duas vertentes principais: (1) A dominante, em que o estudo da sociedade deveria ser feito segundo “os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o século XVI”. É notável nesse ponto o nome com o qual Comte denominava o estudo científico da sociedade: “Física social”. (2) A segunda corrente, que foi marginal durante muito tempo, mas que hoje é cada vez mais comum, “consistiu em reivindicar para as Ciências Sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza”. As Ciências So-ciais, diferentemente das Naturais, não dispõem de teorias explicativas ou leis universais, “porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados”. Previsões nas Ciências Sociais não são confi-áveis, visto que o comportamento dos seres humanos alteram-se “em função do conhecimento que sobre ele se adquire”. Além disso, diferentemente das Ciências Naturais, em que, embora revoluções científicas ocorram, mas em geral seguem paradigmas, nas Ciências Sociais não há consenso paradigmá-tico. Santos (2013, p. 36, 38) introduz então um argumento fundamental:

Os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as Ciências Sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar-se, no ato de observa-

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ção, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista [...].A ação humana é radicalmente subjetiva. O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes. A Ciência Social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as Ciências Naturais.

Santos, ainda, defende a tese de que o conhecimento científico-natural é científico-social, que a distinção entre Ciências Naturais e Ciências Sociais já não faz sentido nem tem utilidade, visto que tal distinção se apoia numa concepção mecanicista da matéria e da natureza à qual contrapõe os conceitos de ser humano, cultura e sociedade. E conclui:

O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um co-nhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura/natural/artificial, vivo/inani-mado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa.

A superação da dicotomia entre Ciências Naturais e Ciências Sociais não seria suficiente para a caracterização do modelo de conhecimento segundo o pa-radigma emergente. É o sujeito que está investido da tarefa de estabelecer a nova ordem científica: as Ciências Naturais aproximando-se das Ciências Sociais e estas das Humanidades. Essa superação dicotômica, que tende a “revalorizar os estudos humanísticos”, ocorrerá desde que as Humanidades também sejam transformadas.

Aguillar (1999, p. 158) tem posicionamento contrário. Alega que o pen-samento de Boaventura de Sousa Santos leva a uma transdisciplinaridade, “que responde a necessidades integrativas, a construção de uma nova língua comum entre diversas disciplinas”. Entende que a aproximação dos domínios das ciências naturais e sociais, em que a dominação seria destas sobre aquelas, ainda conta com barreiras a serem transpostas e que tem a convicção “de que a similaridade entre ciências naturais e sociais, pela interação reconhecida entre o sujeito e o objeto, não basta para esmaecer as barreiras ainda existentes”. Haveria ainda razões que exigiriam “uma delimitação de objeto entre os dois grandes modelos de ciência”.

Outro ponto relevante no pensamento de Boaventura de Sousa Santos, agora em Introdução a uma ciência pós-moderna (2003, p. 30), diz respeito à relação da ciência com a sociedade: “Deve-se suspeitar de uma epistemologia que recusa a reflexão sobre as condições sociais de produção e de distribuição (as consequências sociais) do conhecimento científico.”

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Bittar (2016, p. 35), analisando os déficits metodológicos históricos no ensino e na pesquisa jurídicos, afirma ser escassa “a intimidade da grande massa e operadores do direito com os procedimentos científicos e com as re-flexões metodológicas”. E destaca que a produção científico-jurídica brasileira é marcada pela “ausência de pesquisas empíricas”, “à exceção de raríssimos esforços de grupos de pesquisa, sociólogos e correntes teórico-empíricas pontualmente localizáveis em algumas instituições”. Entende ainda que

diferentemente das demais ciências sociais, muito afeitas e íntimas às instituições de pesquisa brasileiras (história, política, sociologia, antro-pologia, filosofia...), as ciências jurídicas não se constroem nos mesmos moldes, devido a resistências tipicamente decorrentes do modus cultural pelo qual o direito ainda é visto e interpretado, praticado e ensinado, vivenciado e assimilado pela comunidade jurídica, bem como pela própria sociedade (p. 36) [destaque nosso].

A produção científica jurídica no Brasil, ainda segundo Bittar, por “se valer exaustiva e insistentemente de métodos dedutivo-normativos para a construção do conhecimento jurídico (norma caso, ou norma dogma ciência), que raramente extravasa a linha da exegese textual da lei” não chegaria a ser constituída comumente “dentro de critérios metodológicos, ou, muito menos, por vezes, a produzir material de pesquisa adequado dentro de parâmetros de produção intelectual das ciências humanas” (p. 36). Elen-ca então (p. 36 e 204) um conjunto de temas e de modalidade de pesquisa esquecidos pela pesquisa jurídica, do qual salientamos:

• Estudo de caso.• Discussão e debate hermenêuticos.• Historiografia dos fatos jurídico-políticos.• Estudos da aplicação das penas.• Implicações ético-profissionais das práticas jurídicas.• Estudos processuais de inclusão social pelo acesso à justiça em

regiões periféricas de grandes centros urbanos.• Arqueologia dos projetos de lei.• Estudos estatísticos das tendências do Judiciário.• A pesquisa de história oral.• A pesquisa empírica.• O entendimento crítico-reflexivo da dinâmica do ordenamento

jurídico.

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Para Bittar (2016, p. 203), que volta a insistir no tema do déficit da pes-quisa jurídica no Brasil, “a pesquisa empírica – e mesmo a produção teórica – nas faculdades de direito praticamente inexiste”. O quadro prevalecente nas faculdades seria árido. Do seu ponto de vista

as escolas não assumem, há tempos, a função de produtoras do conhe-cimento jurídico, quando muito, limitam-se, e quase sempre mal, a re-produzir o legalismo oficial. Professores e doutrinadores, em sua grande maioria, não costumam imaginar nada além de simples e tradicional pesquisa bibliográfica.

Em relação à pesquisa bibliográfica, também nota que normalmente é composta de estudos de exegese normativa ou de repertórios jurisprudenciais “atados a um dogmatismo estrito [...], incapaz de ir além da pura forma das normas jurídicas para examiná-las em termos de sua origens históricas, de suas implicações sociais” (p. 203). Quando muito, ao positivismo normativista contrapõe-se “um tipo de jusnaturalismo que se expressa sob uma crítica ideológica ao direito legislado a partir da recusa de materialização social de determinados princípios e procedimentos jurídicos, especialmente em matéria de direito de família e direito de propriedade”.

2 CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS

Um primeiro conceito de ciência diz que ela se identifica com um conjunto de procedimentos que permite a distinção entre aparência e essência dos fenôme-nos perceptíveis pela inteligência humana: um conhecimento objetivo, racional, sistemático, verificável e falível. É um conhecimento atento e aprofundado que se ocupa da realidade que nos cerca e, por isso, implica reflexão ou experiência sistemática, que se adquire pela observação, identificação, pesquisa e explicação dos fatos e dos fenômenos que são formulados de forma metódica e racional. Daí se postular que a ciência se propõe “atingir conhecimento sistemático e seguro, de forma que seus resultados possam ser tomados como conclusões certas, aceitas, sob condições mais ou menos amplas e uniformes” (MICHEL, 2015, p. 5). Em outros termos, a ciência é um tipo de conhecimento cujo objetivo é formular, em linguagem precisa e apropriada, leis que regem os fenômenos que nos cercam. A definição de ciência, entretanto, é controversa, “havendo mesmo autores que consideram essa discussão insolúvel” (GIL, 2016b, p. 2).

As peculiaridades de seu método diferenciam a ciência das muitas for-mas de conhecimento humano, e uma de suas particularidades é aceitar que nada é eternamente verdadeiro. O dogma não encontra lugar na ciência. É, portanto, a ciência um campo de conhecimentos com técnicas especializadas de verificação, interpretação e inferência da realidade. Ela compreende a teo-

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ria e a análise. A teoria caracteriza-se como conjunto de princípios de uma ciência, ou conjunto de tentativas de explicação de um número limitado de fenômenos. Apenas a mente humana que possui teorias é capaz de distinguir, entre inúmeros fatos, aqueles que são relevantes. A análise, por sua vez, ocupa--se da aplicação da teoria; objetiva distinguir fenômenos não contemplados no desenvolvimento da teoria e procura interpretar fatos e fazer previsões.

O objetivo da ciência é compreender, explicar, predizer e, se possível, controlar os fenômenos da realidade empírica. Busca, por meio da acumu-lação de conhecimento, o controle dos fenômenos que atingem o homem. Ora, como o universo é complexo e os fenômenos diversos, a necessidade de conhecê-los para explicá-los levou o homem à realização de diversos ramos científicos, quer considerando o objeto, quer a metodologia empregada. Gil (2016, p. 3), todavia, entende que “nenhum desses sistemas se mostra abso-lutamente satisfatório”.

Podemos inicialmente classificá-las em dois segmentos: as formais e as empíricas. As ciências formais compreendem a Lógica e a Matemática. As ciências empíricas ocupam-se de fatos e fenômenos; subdividem-se em natu-rais (Física, Química, Astronomia, Biologia, Psicologia) e sociais (Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Economia, História, Psicologia, Direito).

Para Comte, que se apoiou na complexidade crescente do objeto, as ciências classificam-se em: Matemática, Astronomia, Física, Química, Bio-logia, Sociologia e Moral. Outros autores, como Carnap e Bunge, entendem que ela se divide em formais (Lógica e Matemática) e factuais (naturais: Física, Química, Biologia, Psicologia Individual; culturais: Psicologia Social, Sociologia, Economia, Ciência Política, História Material, História das Ideias). Marconi e Lakatos (2011, p. 28), com base em Bunge, também dividem as ciências em formais (Lógica e Matemática) e factuais, que se subdividem em naturais (Física, Química, Biologia) e sociais (Antropologia Cultural, Direito, Economia, Política, Psicologia Social, Sociologia). As ciências factuais são constituídas por conceitos, juízos, raciocínios, que permitem a combinação de ideias, segundo um conjunto de regras lógicas, para a produção de novas ideias (inferência dedutiva), organizadas em sistemas.

O CNPq, órgão fomentador de pesquisa, apresenta a divisão da ciência por áreas de conhecimento (Disponível em: <http://www.cnpq.br/docu-ments/10157/186158/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2016). Entre elas, destacamos:

• Ciências Exatas e da Terra: álgebra, análise, geometria, Estatística, Ciência da Computação, Astronomia, Física, Química, Geoci-

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ências (Geologia, Geofísica, Meteorologia), Geografia Física, Oceanografia).

• Ciências Biológicas: Biologia Geral, Genética, Botânica, Zoologia, Ecologia, Bioquímica, Farmacologia, Parasitologia.

• Engenharia: civil, hidráulica, de minas, metalurgia, elétrica, me-cânica, química, sanitária, de produção, nuclear, de transportes, naval, aeroespacial.

• Ciências da Saúde: medicina, cirurgia, odontologia, farmácia.• Ciências Agrárias: agronomia, recursos florestais, agrícola, zoo-

técnica, medicina veterinária, ciência e tecnologia de alimentos.• Ciências Sociais e Aplicadas: direito (teoria do direito, direito públi-

co [penal, processual, constitucional, administrativo, internacional público e privado], direito privado [civil, comercial, direito do trabalho, internacional privado]), administração pública, econo-mia, arquitetura e urbanismo, demografia, ciência da informação, museologia, comunicação, jornalismo e editoração, serviço social.

• Ciências Humanas: filosofia, sociologia, história, geografia, psi-cologia, educação, ciência política, teologia.

• Linguística, Letras e Artes.• Outras: administração hospitalar, administração rural, carreira

militar, decoração, ciências atuariais, desenho e moda, secreta-riado executivo.

A pesquisa científica objetiva fundamentalmente contribuir para a evolução do conhecimento humano em todos os setores, da ciência pura ou aplicada; da matemática ou da agricultura, da tecnologia ou da literatura. Ora, tais pesquisas são sistematicamente planejadas e levadas a efeito segundo critérios rigorosos de processamento das informações. Será chamada pesquisa científica se sua realização for objeto de investigação planejada, desenvolvida e redigida conforme normas metodológicas consagradas pela ciência.

Inicialmente, a ciência, sob a perspectiva das Ciências Naturais, se desenvolveu acreditando na necessidade da unicidade metodológica. Ao tomar o homem como objeto de sua investigação, entendia Comte que ele deveria ser examinado como todos os seres naturais, que ele estava sujeito às mesmas leis da natureza e que, portanto, estaria acessível à observação e experimentação. O método experimental vale-se de técnicas de observação e operacionais que permitem rigoroso controle e mensuração das experiências realizadas, possivelmente isentos de subjetividade, que é fonte de enganos e leva a resultados frustrantes. Todavia, não se pode esquecer que, ao fazer

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Parte I • Cap. 1 • CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CIÊNCIA DO DIREITO | 17

ciência, partimos de determinada concepção de realidade e de seu modo de conhecer. Partimos, em geral, de determinados paradigmas epistemológicos, que são tidos como verdades universais. Demo (2012, p. 50) postula que “toda metodologia científica é caudatária de uma ontologia: para pretender explicar alguma coisa, precisamos, antes, imaginar o que seja essa coisa, mesmo que hipoteticamente”. Por isso, o estudioso deve ter consciência de que a realidade científica é uma realidade construída.

E a ciência do Direito, como se classifica?1 Em primeiro lugar é de reconhe-cer que as ciências jurídicas pertencem às Ciências Humanas. Todavia, é também de dizer que se trata de uma ciência normativa aplicada. Ela “comunga com as demais ciências sociais a natureza de um saber voltado para as preocupações não naturalísticas, mas sim valorativas” (BITTAR, 2016, p. 71). Entende ainda o autor citado que a ciência jurídica é parte das ciências humanas, visto estar comprometida com a causa humana, mas que entre as ciências humanas ou sociais, ela “é ciência normativa e aplicada” (p. 71). E, mais adiante salienta que

foi na tentativa de isentar a ciência jurídica do valor que se cometeu o equívoco positivista, ao estiolo kelseniano (Teoria pura do direito), asse-melhando-se a metodologia do direito à metodologia preponderantemente avalorativa das ciências exatas ou naturais (p. 72).

Como já vimos e não é fato desconhecido do estudante de Direito, a teoria kelseniana reduz p Direito “a um esquematismo mecânico de concatenação lógico-hierárquica de normas, derivadas que são de uma norma fundamental”. Bittar aponta que, “dessa forma, o fenômeno jurídi-co aparece alheado, despido de qualquer fundamentação social, política, sociológica, ética, psicológica, histórica”, uma forma que Kelsen encontrou para “isentar a ciência jurídica da variação de valores, e, sem empréstimos metodológicos, produzir a autonomia científica almejada para a ciência jurídica” (p. 72). Entende então Bittar ser grande o desafio de definir o que seja ciência jurídica e que não se poderia defini-la sem “identificar as múltiplas correntes filosóficas que procuraram definir o sentido do jurídico, e, nisso, debruça-se no desfiladeiro de uma tradição de múltiplas explica-ções (positivismo, normativismo, egologismo, historicismo, sociologismo, culturalismo, trimensionalismo)” (p. 72-73).

3 CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS HUMANAS

Como fazer ciência? Como explicar a realidade?

1 Ver na seção 4 do capítulo 2, p. 49, a zetética jurídica.

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Ao tratar das características da ciência, Marconi e Lakatos (2011, p. 23) salientam que ela se apresenta “como um pensamento racional, objetivo, lógico e confiável” que tem como especificidade “ser sistemático, exato e falível, ou seja, não final e definitivo, pois deve ser verificável, isto é, submetido à experi-mentação pra a comprovação de seus enunciados e hipóteses, procurando-se as relações causais”. Goldenberg (2015, p. 107), ao definir ciência como um conjunto organizado de conhecimentos relativos a um objeto, obtidos pela observação e experiência, ressalta:

A ciência não é universalmente neutra, mas efeito de uma realidade par-ticular. É um corpo de conhecimentos sistemáticos, adquiridos com um método próprio, em um determinado meio e momento. O conhecimento de hoje pode ser negado amanhã, o que faz da ciência um processo em constante criação e não uma verdade absoluta.

De modo geral, entende-se também como fundamental para a ciência a exigência de uma metodologia para a consecução de seus resultados. E a primeira questão que se coloca no estudo da metodologia é se ela vale tanto para as Ciências Naturais e Exatas quanto para as Ciências Humanas. As posições vão daqueles que consideram que o método científico vale para qualquer objeto aos que defendem posições extremamente opostas. A posição intermediária ensina que há conclusões sobre os objetos naturais que valem igualmente para os objetos humanos. E chega-se ao fulcro da questão:

Regras lógicas do conhecimento, por exemplo, são as mesmas, como é a mesma a matemática para “gregos e troianos”. No entanto, justifica-se uma metodologia relativamente específica para as Ciências Humanas, porque o fenômeno humano possui componentes irredutíveis às características da realidade exata e natural (DEMO, 1985, p. 13).

As Ciências Humanas não podem ser vistas como um bloco indivisível, uno. Dentro delas, destacam-se as Ciências Sociais, cuja visão metodológica vê seu objeto socialmente condicionado, isto é, ele se torna incompreensível se estudado fora do contexto social. Dentro das Ciências Sociais, algumas são aplicadas, como Direito, Administração, Serviço Social. As Ciências Sociais mais clássicas incluem Sociologia, Economia, Psicologia, Educação, Antro-pologia, Etnologia, História. Ainda haveria Letras e Linguística, um grupo importante, mas menos delineado dentro das Ciências Humanas. O grupo das Artes é formado pelo estudo de todas as manifestações artísticas, como música, teatro, pintura, escultura, arquitetura, dança, literatura. Não menos relevante nas Ciências Humanas encontra-se a Filosofia e outros ramos do saber, como Jornalismo, Planejamento Urbano, Geografia.

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Ao tratar das peculiaridades das Ciências Sociais, Gil (2016b, p. 3-4) salienta que

durante muito tempo, as ciências trataram exclusivamente do estudo dos fatos e fenômenos da natureza. Até a segunda metade do século XIX, o estudo do homem e da sociedade permaneceu com os teólogos e filósofos, que produzi-ram trabalhos notáveis, que até hoje despertam admiração. Mas a partir desse período, profundamente marcado por inovações tanto no campo tecnológico quanto político, passou-se a buscar conhecimentos acerca do homem e da sociedade tão confiáveis quanto os proporcionados pelas ciências da natureza. Desenvolveu-se, então, uma concepção científica do saber denominada Positi-vismo, cujas principais características são: (1) o conhecimento científico, tanto da natureza quanto da sociedade, é objetivo, não podendo ser influenciado de forma alguma pela pesquisador; (2) o conhecimento científico repousa na expe-rimentação; (3) o conhecimento científico é quantitativo; e (4) o conhecimento científico supõe a existência de leis que determinam a ocorrência dos fatos.

Sob a perspectiva positivista, as Ciências Sociais entendiam que os fatos humanos são semelhantes aos da natureza e deveriam ser observados com rigor e isentos de subjetividade; deveriam ainda ser submetidos à experi-mentação e ser explicados em termos quantitativos, bem como por meio de leis gerais. Esse modelo de Ciência Social, no entanto, foi alvo de críticas e questionamentos, que manifestaram os limites de tal metodologia.

A perspectiva positivista, de certa forma, atinge o pensamento de Kel-sen. Nesse sentido, Diniz (2015, p. 25) faz referência à concepção positivista reinante no século XIX, que “identificava o conhecimento validado com a ciência natural, fundada na indução experimental”. E continua:

O jurista, malgrado sua vocação científica, aderia ao sociologismo, que, com sua feição eclética, submetia o direito a diversas metodologias em-píricas: a psicológica, a dedutiva silogística, a histórica, a sociológica etc. Com isso, não havia domínio científico no qual o cientista do direito não se achasse autorizado a penetrar. O resultado dessa atitude não podia ser senão a ruína da Jurisprudência, que perdia prestígio científico ao tomar empréstimos metodológicos de outras ciências.

Kelsen reagiu contra essa situação. Entendia que o direito é uma realidade específica e que a ele não se deveriam aplicar métodos apropriados a outras ciências. Para Diniz (2015, p. 26), o autor de Teoria pura do direito afastou o estudo do Direito das influências sociológicas, liberando-o

da análise de aspectos fáticos que porventura estivessem ligados ao direito, remetendo o estudo desses elementos sociais às ciências causais

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(sociologia e psicologia jurídicas, por exemplo), uma vez que, na sua concepção, ao jurista stricto sensu não interessa a explicação causal das instituições jurídicas.

O mestre de Viena afastou ainda do interesse da ciência jurídica os as-pectos valorativos, isto é, investigações morais e políticas, endereçando-as à ética, à política, à religião, à filosofia da justiça. Apoiando-se no prefácio da segunda edição de Teoria pura do direito (“O problema da Justiça, enquanto problema valorativo, situação fora de uma teoria do Direito que se limita à análise do Direito positivo”), Diniz (2015, p. 27) afirma que

a justiça é uma questão insuscetível de qualquer indagação teórico--científica, porque constitui um ideal a atingir, variável de acordo com as necessidades da época e de cada círculo social, dependendo sempre de uma avaliação fundada num sistema de valores. Dentro de um sistema de referência a justiça é uma, e em outro, é outra.

A postura, pois, de considerar o Direito isoladamente da sociedade, ocupando-se tão somente do exame da norma, tem recebido críticas.

Para Demo, uma das características das Ciências Sociais esta em que o seu objeto é histórico, enquanto a realidade física das Ciências Naturais é cronológica, “no sentido de que padecem desgaste temporal”. E conclui: “Realidades históricas, de modo geral, nascem, crescem, amadurecem, en-velhecem e morrem. Não acontece isto com uma pedra.” E, ainda:

Ser histórico significa caracterizar-se pela situação de “estar”, não de “ser”. A provisoriedade processual é a marca básica da história, significando que as coisas nunca “são” definitivamente, mas “estão” em passagem, em transição. Trata-se do “vir a ser”, do processo inacabado e inacabável, que admite sempre aperfeiçoamentos e superações. Ao lado de componentes funcionais, que podem transmitir uma face de relativa harmonia e institu-cionalização, predominam os conflituosos, através dos quais as realidades estão em contínua fermentação (DEMO, 1985, p. 15).

Embora o tempo as desgaste as realidade físicas, ele não as afeta intrin-secamente. Já as realidades históricas têm sua identidade nas formas variáveis de sua existência. Além disso, as realidades materiais não têm consciência de si mesmas, enquanto a realidade das Ciências Humanas (aqui no sentido amplo que inclui Ciências Sociais) implica consciência histórica. É de salientar que, quando se faz ciência humana, identificam-se objeto e sujeito. Ao estudar a sociedade, o homem estuda também a si mesmo, ou fatos que lhe dizem respei-to. Diferentemente, pois, do estudo que o homem possa fazer de uma matéria

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Parte I • Cap. 1 • CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CIÊNCIA DO DIREITO | 21

inorgânica, por exemplo. Portanto, poderá haver envolvimento entre o cientista social e seu objeto, embora ele seja treinado para evitar excessos de subjetividade.

A manipulação do objeto é outro fator que diferencia Ciências Humanas e Ciências Exatas e Naturais. Realidades sociais manifestam-se, por exem-plo, de forma particularmente qualitativa, e não quantitativa, o que impede conclusões exatas.

Novamente, Demo (1985, p. 17) alerta que “a percepção da qualidade não deve ser desculpa para falta de rigor na análise, como se nas Ciências Sociais valesse a reflexão solta, confusa e mesmo disparatada”. Esse é o desa-fio do pesquisador de fatos sociais: apresentar construções científicas ainda mais cuidadosas.

Finalmente, uma diferença fundamental entre um e outro tipo de ciência: as Ciências Sociais são ideológicas:

A ideologia acomete qualquer ciência, também as naturais, mas aqui de forma extrínseca, a saber, no possível uso que se faz delas. Seu objeto não é ideológico em si. O objeto, porém, das Ciências Sociais é intrinsecamente ideológico, porque a ideologia está alojada em seu interior, inevitavelmente. Faz parte intrínseca do objeto (DEMO, 1985, p. 17).

Ideologia é o modo de justificar posições políticas, interesses sociais, privilégios. É mais um fenômeno de conteúdo político que de argumenta-ção. Esta se caracteriza pelo esforço humano de apresentar provas e rigor na explicação da realidade. O cientista natural pode passar ao largo do uso do conhecimento gerado, enquanto o cientista social, mesmo que se proponha a neutralidade, ainda assim já estará assumindo uma postura ideológica: fará parte de sua postura ideológica não participar da ideologia... O que pode o cientista social é controlar criticamente a ideologia. As Ciências Sociais são científicas se prevalecem métodos científicos, mas não o serão se nelas pre-dominar a intenção ideológica, ou mera alusão à postura ilusória de isenção ideológica. Todavia, salientamos, acompanhando Gil (2016b, p. 5) que, diante dos fatos sociais, “o pesquisador não é capaz de ser absolutamente objetivo. Ele tem suas preferências, inclinações, interesses particulares, caprichos, pre-conceitos, interessa-se por eles e os avalia com base num sistema de valores pessoais”. E conclui logo adiante: “nas Ciências Sociais, o pesquisador é mais do que um observador objetivo: é um ator envolvido no fenômeno”.

4 DIREITO E CIÊNCIA

O método científico consiste em procedimentos nos quais a ciência apoia a aceitação ou rejeição de seu corpo de conhecimentos, como hipóteses, leis,

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teorias. O método científico é a lógica utilizada para validar ou justificar um conhecimento.

Muitos juristas, até hoje, resistem a considerar o Direito uma ciência, a fazer dele objeto de uma pesquisa científica. O que impede essa visão é a própria natureza dos preceitos jurídicos, seu caráter normativo. Não trata do que é, mas do que deve ser. Lévy-Bruhl (1997, p. 91), no entanto, afirma que “isso não é um obstáculo à constituição de uma ciência que tomaria esses preceitos por objeto”. Se se admite que os fenômenos sociais (e os jurídicos são um exemplo) têm causas sociais, que as normas do Direito são a expressão de grupos e não de indivíduos, pode-se nele reconhecer uma objetividade passível de constituir-se em objeto de pesquisa científica.

Lévy-Bruhl (1997, p. 89) postula que as normas jurídicas estão submeti-das a um “determinismo mais frouxo talvez, porém não menos real que aquele que rege os fenômenos da natureza” e que o direito pode ser objeto de uma investigação científica. Segundo o autor citado, o Direito foi concebido no passado como arte e como técnica. De um lado, arte do legislador que busca fórmulas orais ou escritas que encerrem em poucas palavras as prescrições estabelecidas pela sociedade. De outro, arte do intérprete dos textos legais.

Para o autor de Sociologia do direito, é injusto admitir que o Direito romano não tenha ultrapassado a técnica, visto que elaborou conceitos adotados até hoje. E considera que foi Montesquieu o primeiro a ocupar-se do Direito com um sentido científico. Em O espírito das leis, escreveu: “As leis são... relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (Apud LÉVY-BRUHL, 1997, p. 90).

Um número crescente de estudiosos cada vez mais se dedica à pesquisa no Direito, o que revela transformação na concepção do direito ocorrida nas últimas décadas. Os estudiosos já não se contentam com uma vaga filosofia do direito que servia, acima de tudo, como pretexto para lugares-comuns. Cada vez mais o objeto da pesquisa consiste no estudo metódico das instituições e dos sistemas jurídicos e tende a se confundir com o que se chama de jurística (LÉVY-BRUHL, 1997, p. 95). A jurística seria a verdadeira ciência do Direito; juristicista seria o cientista que a ela se dedica.

Foi graças a Émile Durkheim que a norma de direito perdeu sua aura de imutável e de quase sagrado. Ele mostra que ela é tão variável quanto o são os seres humanos. Ora, como a norma expressa aspirações e desejos humanos, terá de igual forma as mesmas características humanas, inclusive a da mobilidade. E é isso que aproximou o Direito da realidade e o fez “sair do esoterismo no qual até então se vira confinado” (LÉVY-BRUHL, 1997, p. 98). E continua na mesma página: “O direito, manifestação da vida social

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como a linguagem, a arte, a religião etc., não pode ser encarado diversamente dessas outras atividades da sociedade, com as quais mantém relações estreitas.”

A nova orientação dada às pesquisas jurídicas impõe ao jurista estudar o meio social para verificar se a norma de Direito é aplicável, as razões de seu aparecimento, os motivos de sua eficácia ou ineficácia (desuso).

Para Diniz (2015, p. 11) são questões que o cientista do direito se põe: “O que é a ciência jurídica? Qual o seu objeto específico? Qual o seu método? A que tipo de ciência pertence? Como se constitui e caracteriza o conhecimento do jurista?” Salienta ainda a

surpreendente pluralidade de concepções epistemológico-jurídicas que pretendem dar uma visão da ciência jurídica, cada qual sob um ponto de vista diverso. [...] Parece-nos que quando o epistemólogo se põe a pensar sobre o que deve entender por ciência jurídica não pode tomar as posi-ções doutrinárias como definitivas nem adotar uma posição, excluindo as demais, mas sim lançar mão de um expediente muito simples: expor o tema sob uma forma problemática.

Páginas adiante, ao avaliar o pensamento de Kelsen e rebater algumas críticas que a ele lhe são endereçadas, conclui:

não nos parece acertado, data venia, o entendimento de que Kelsen situou a essência do direito de maneira defeituosa, nem tampouco que ele conceitue o direito como norma. Para tanto, seria necessário que ele tivesse buscado o eidos do direito. Em momento algum de sua obra nos levou ele ao estágio da ontologia jurídica: colocou-se no plano epistemológico-jurídico. [...] Nunca se preocupou com o problema ontológico do direito; nem sequer levantou a questão decisiva: Que é o direito? (DINIZ, 2014, p. 66).

A autora de A ciência jurídica estuda então a Ciência do Direito sob o prisma de duas doutrinas: a teoria pura de Hans Kelsen e a teoria egológica de Carlos Cossio. Sua tese “situa-se no âmbito da epistemologia jurídica, que fundamenta filosoficamente a ciência do direito” (p. 21). Considera, portanto, o aspecto jusfilosófico.

À indagação sobre o que é ciência jurídica, posiciona-se ao lado de Tercio Sampaio Ferraz Jr., salientando que o vocábulo ciência não é unívoco, não obstante com ele se designar um tipo específico de conhecimento: “não há um critério único que determine sua extensão, natureza e caracteres, devido ao fato de que os vários critérios têm fundamentos filosóficos que extravasam a prática científica” (p. 13).

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Em outro texto, Compêndio de introdução à ciência do direito (1988, p. 198), postula que a ciência jurídica consiste em buscar metódica e siste-maticamente “as normas vigentes de determinado ordenamento jurídico--positivo”, bem como em “estudar os problemas relativos a sua interpretação e aplicação”, objetivando solucionar possíveis conflitos e orientar sobre como “devem ocorrer os comportamentos procedimentais que objetivam decidir questões conflitivas”.

Em relação à especificação do objeto da ciência jurídica, que é um problema fundamental, Diniz também considera trazer em seu bojo grande complexidade. Entende que há estudiosos que julgam necessário,

para que o jurista possa conhecer o direito, que se determine escrupu-losamente esse objeto, ou melhor, que se capte o que o direito é, que se elucide qual é a sua essência, isto é, qual é o ‘ser’ do objeto. Só depois dessa reflexão de cunho nitidamente ontológico é que poderá conhecer esse objeto: o direito (DINIZ, 2015, p. 14).

Entende ainda Diniz que o conhecimento do direito precisa do conceito de direito, visto que o conceito apresenta um esquema prévio, que tem a função lógica de um a priori. E, considerando a definição de direito, afirma tratar-se de um “problema supracientífico, ou melhor, jusfilosófico, pois a questão do ‘ser’ do direito constitui campo próprio das indagações da ontologia jurídica” (p. 15). Conclui, no entanto, que

não há entre os autores um consenso sobre o conceito do direito [...]. Realmente, o direito tem escapado aos marcos de qualquer definição uni-versal, dada a variedade de elementos e de particularidades que apresenta; não é fácil discernir o mínimo necessário de notas sobre as quais se deve fundar seu conceito (p. 16).

No capítulo 3 de sua obra, quando faz um balanço do pensamento de Kelsen, Diniz (2014, p. 66) afirma a “cegueira ontológica da doutrina kelse-niana”, mas que teria andado bem deixando de se preocupar com o conceito do direito, “devido à impossibilidade de se conseguir uma definição univer-salmente aceita, que abranja de modo satisfatório toda a gama de elementos heterogêneos que o compõem”. Postula, então:

Poder-se-á dizer até que o seu pecado original é a prescindência da resposta prévia a essa indagação, tão necessária, como vimos, para uma organização metódica do conhecimento jurídico. A busca do ‘ser’ do direito ou dos

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seus caracteres essenciais é imprescindível, segundo alguns jusfilósofos, para o exato conhecimento do direito.

Na página 81, volta Diniz a insistir: “A tarefa de definir ontologicamente o direito resulta sempre frustrada ante a complexidade do fenômeno jurídico.” Na mesma linha de pensamento, Bittar (2016, p. 72) afirma:

O desafio é grande ao se tentar definir o que seja a ciência jurídica, pois seria como adentrar o tenebroso abismo ontológico da definição do seja o “jurídico” com relação ao “não jurídico”, isto é, significa o mesmo que definir o que é o direito, o objeto desta ciência.

Ferraz Jr. (2016, p. 11) também salienta ser “muito difícil” definir Direito com rigor. E, adiante, conclui:

Compreender o que seja o direito não é tarefa fácil. Não só é um fenômeno de grande amplitude e muitas facetas, mas também a própria expressão direito (e seus correlatos) possui diferenças significativas que não podem ser desprezadas (p. 13).

Apresentando uma discussão sobre conceito de língua que raramente se encontra nos estudos do Direito, Ferraz Jr. (2016, p. 14) entende que, para resolver o problema da definição de Direito, pode-se recorrer à concepção da língua em seu relacionamento com a realidade e que há “entre os juristas uma concepção que corresponde à teoria essencialista”. Ele explicita:

Trata-se da crença de que a língua é um instrumento que designa a reali-dade, donde a possibilidade de os conceitos linguísticos refletirem uma presumida essência das coisas. [...]Essa concepção sustenta, em geral que deve haver, em princípio, uma só definição válida para uma palavra, obtida por meio de processos intelec-tuais, como, por exemplo, a abstração das diferenças e determinação do núcleo: “mesa”, abstração feita do material (madeira, ferro, vidro), do modo (redonda, quadrada, de quatro pés) leva-nos à essência (por exemplo: objeto plano, a certa altura do chão, que serve para sustentar coisas). Esse realismo verbal, contudo, sofre muitas objeções.

Apresenta então Ferraz Jr. algumas metonímias no uso da palavra mesa, que, segundo ele, não haveria como falar de “essência”: “mesa diretora dos trabalhos”, “a mesa que a empregada ainda não pôs, a mesa pródiga de sicrano, da qual muitos desfrutam”. Entende ainda o autor de Introdução ao estudo do direito que “os autores jurídicos, em sua maioria, têm uma visão

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conservadora da teoria da língua, sustentando, em geral, no que se refere aos objetos jurídicos, a possibilidade de definições reais, isto é, a ideia de que a definição de um termo deve refletir, por palavras, a coisa referida” (p. 14). O estudo apresentado por Ferraz Jr. apoia-se em Saussure, que entendia a língua como sistema de signos estabelecidos por convenção. A língua não descreve propriamente a realidade; ela a constrói, cria efeitos de sentido de realidade (ilusão de que o discurso é cópia do real) (cf. BARROS, 2011, p. 59).

Kelsen estabelece que o objeto da ciência jurídica é a norma de direito, ou seja, o estudo científico do direito reduz-se à normatividade. Ao jurista não caberia aprovar ou desaprovar seu objeto de estudo, legitimar ou justificar a norma jurídica, por meio de considerações morais, mas apenas conhecer e descrever a norma jurídica. Daí Diniz (2015, p. 31) postular que ele “preten-deu construir uma teoria pura do direito e não uma teoria do direito puro”. E, mais adiante, explicitando com precisão a delimitação do objeto da ciência jurídica, Diniz considera que o método kelseniano é normológico e que sua natureza é hipotético-dedutiva e lógico-transcendental. Assevera:

Para os prosélitos dessa doutrina, o jurista stricto sensu deve ater-se ex-clusivamente às normas jurídicas, aceitando-as como dogmas, ordenando seu sistema segundo critérios lógicos, pois se assim não fosse o seu esforço científico se desnaturalizaria, infiltrando-se na política e na sociologia jurídicas. O problema precípuo dos professores e tratadistas do direito é o de “saber como as normas se articulam entre si, qual a raiz de sua validade e qual o critério a adotar para se lhes definir unidade sistemática” (p. 37).

No capítulo 3, ao tratar especificamente do objeto da ciência do Direi-to, salienta o “divórcio” entre a teoria de Kelsen e a de Cossio. Kelsen teria realizado uma redução científica do direito à normatividade:

O direito, que constitui objeto de conhecimento jurídico-científico, deve ser entendido como norma, de modo que a atividade da ciência jurídica esgota sua tarefa ao conhecer as normas de direito.O objeto de investigação do verdadeiro jurista deve ser a norma jurídica, e a conduta humana só o será na medida em que constitui o conteúdo de comandos jurídicos” (DINIZ, 2014, p. 55).

Para Kelsen, o conhecimento jurídico-científico pode focalizar as normas a serem aplicadas (teoria estática) ou os atos de produção e aplicação (teo-ria dinâmica). No primeiro caso, o objeto do direito é o sistema de normas em seu momento estático; a pesquisa científica parte das normas de direito positivo e as confronta entre si, “mostrando o uno (sistema) no múltiplo (pluralidade de normas)”. No segundo caso, o direito é visto em movimento

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e o conhecimento jurídico-científico focaliza o processo jurídico em que é produzido e aplicado o direito (cf. DINIZ, 2014, p. 56).

A validade de um sistema de norma implica uma realidade social que lhe corresponda; se o sistema não alcançar nenhuma eficácia, ele não terá vigência para a ciência jurídica. Então,

a norma jurídica vigente que for ineficaz será derrogada com o tempo, mas essa falta de eficácia não significa que ela perdeu sua vigência, pois ela pode ser ineficaz somente por alguns momentos, recuperando sua efi-cácia quando outras condições sociais o permitirem (DINIZ, 2014, p. 60).

Maria Helena Diniz (2014, p. 65) salienta que muitos autores apresen-tam objeção fundamental à teoria de Kelsen por sua visão parcial do direito, porque ele “não se compõe só de normas; há algo mais: valores, fatos sociais, comportamentos humanos etc.”

Com base na distinção entre “ser” e “dever ser” neokantianos, duas ca-tegorias originárias do conhecimento, Kelsen entendia que o dever ser é que era a expressão da normatividade do direito; ele é que deve ser investigado, visto que o objeto do Direito “consiste em normas que não enunciam o que sucedeu, sucede ou sucederá, mas tão somente o que se deve fazer”. O mundo do ser, por sua vez, “diz respeito à natureza, regida pela lei da causalidade, que enuncia que os objetos da natureza se comportam de um determinado modo” (DINIZ, 2015, p. 16-17).

Para Kelsen, dois seriam os modos de ordenar os fenômenos: pela causalidade (relação de causa e efeito) e pela imputabilidade (relação de um fato condicionante a um fato condicionado; seria pela imputação que se estabelece a conexão entre o ilícito e a consequência do ilícito. A causalidade é o princípio gnosiológico da natureza; quem a estuda busca estabelecer relações constantes entre os fenômenos, constituindo leis físico-naturais que descrevem seu comportamento. Todavia, mesmo nas Ciências Naturais, modernamente a ciência vem utilizando com mais frequência o conceito de probabilidade. Diniz (2015, p. 39) então postula:

A verdade é que, no campo do direito, o princípio metodológico pre-valecente é o da imputação, que é aplicado no domínio da liberdade. A norma jurídica brilha quando é violada, pois “sem a possibilidade de um ato contra o que determina a norma não há como falar da norma como um ‘dever ser’ em cuja estrutura está a possibilidade da imputação de uma sanção a um comportamento (delituoso) que o provoca”.

É a norma fundamental, para Kelsen, que produz o direito que é objeto do conhecimento científico do jurista: “É só através dela que o jurista pode

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dizer se determinada lei, decreto ou regulamento é ou não parte integrante da ordem jurídica, isto é, se constitui ou não objeto de investigação jurídico--científica” (DINIZ, 2015, p. 43).

A segunda corrente dos estudos do Direito a que se dedica Diniz (2015, p. 44-47) é a Egológica, de Carlos Cossio, para quem “a ciência jurídica deve estudar a conduta humana enfocada em sua dimensão social e não a norma jurídica”. Com base em Husserl, Diniz afirma não ser a causalidade, mas a motivação o que governa os objetos culturais. O Direito não poderia, pois, ser explicado, pois

para o conhecimento do objeto cultural só pode ser empregado o método empírico-dialético, devido à íntima integração entre substrato (elemento material) e sentido (vivência espiritual).O ato gnosiológico com o qual se constitui tal método é o da compreen-são. [...]O direito, como objeto cultural, deve ser compreendido, uma vez que os objetos culturais – que implicam sempre um valor – não se explicam nem por suas causas nem por seus efeitos, mas se compreendem através da captação do sentido, que os define como objetos culturais. Portanto, compreender não é ver as coisas segundo nexos causais, mas na integri-dade de seus sentidos ou fins, segundo conexões determinadas de modo valorativo. É conhecer sua razão e ser; é revelar seu sentido, e isso só se obtém através da aplicação do método empírico-dialético, dirigido a lograr uma investigação entendedora e não meramente explicativa.

Segundo Diniz (2014, p. 76), a teoria egológica de Carlos Cossio teria partido da indagação sobre o “ser” do direito. O objeto da ciência jurídica “é a conduta, pois as normas são apenas conceitos com que se representa a conduta”. A norma jurídica, no plano gnosiológico da lógica transcendental, é “um conceito que pensa a conduta em sua liberdade” (p. 78). No plano da lógica formal, a norma é “um juízo que “diz algo a respeito de algo”:

Se a norma-juízo diz algo a respeito de algo, esse “algo” é a conduta, uma vez que só um “dever ser lógico” poderia conceituar convenientemente o “dever ser existencial”. A norma jurídica é, concomitantemente, um juízo imputativo e um conceito que pensa uma conduta como conduta.

Para Diniz (2014, p. 70), “o egologismo situa o direito no campo da cultura, que significa vida humana plenária, ou seja, a vida humana ligada a valores”. E, adiante, esclarece:

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O direito só pode ser vivido pelo homem perante os demais membros da comunidade. Por isso é um objeto cultural egológico, pois tem por suporte a própria vida do homem, fora de sua significação biológica, mas no sentido de vida biográfica; e assim, nesse substrato, está inseparável o ego atuante de toda a ação humana.Em consequência, o objeto da ciência jurídica é a “vida humana vivente” em sua liberdade. A concepção egológica de Cossio constitui uma forma peculiar de aplicação da filosofia existencial, porque a liberdade da pessoa humana real e vivente é o seu ponto de partida. Essa liberdade manifesta--se na conduta. É a liberdade que a individualiza e caracteriza. Não pode ser a conduta considerada, portanto, como um “ser”, mas sim como um “dever ser” existencial (DINIZ, 2014, p. 72-73).

Entende ainda Diniz (2014, p. 74) que o cerne da doutrina egológica está em

determinar que o direito não é produto da razão, nem de normas, mas se oferece dado na experiência como conduta compartida. Logo o legislador não cria o direito; ele está na conduta humana que “constitui uma expe-riência de liberdade, donde a criação de algo axiologicamente original emerge a cada instante”, e não uma experiência de necessidade como o é a realidade física.

Posicionando-se, a autora, todavia, esclarece que a conduta não seria objeto de conhecimento do Direito, mas da história, da psicologia e da so-ciologia jurídicas. Também considera inadmissível que a norma seja vista como “um objeto ideal, como um simples esquema lógico” (DINIZ, 2014, p. 81). Finalmente, Diniz (2014, p. 165) conclui que

a ciência do direito é uma ciência normativa, mas, para evitar equívocos, convém esclarecer as três acepções da expressão “ciência normativa”: ciên-cia que estabelece normas (Wundt); ciência que estuda normas (Kelsen); e ciência que conhece a conduta através de normas (Cossio).

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