Manifesto Do Teatro Da Morte (Tadeusz Kantor)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Manifesto do Teatro da Morte de Tadeusz Kantor

Citation preview

  • 563

    TADEUSZ KANTOR

    MANIFESTO DO TEATRO DA MORTE

    Traduo feita a partir da verso francesa que foi publicada em: KANTOR, T. Le Theatre de La Mort Textes Runis et Rassembls par Denis Bablet. Lausanne LAge DHome 1977.

  • 564 O TEATRO DA MORTE

    1. Craig afirma: a marionete deve reaparecer; o ator vivo deve desaparecer. O homem, criado pela natureza, uma ingerncia estranha na estrutura abstrata de uma obra de arte.

    Segundo Gordon Craig, em algum lugar s margens do rio Ganges, duas mulheres entraram no templo da divina marionete, que guardava vigilantemente o segredo do verdadeiro teatro. Essas mulheres tinham cimes desse ser perfeito do qual invejavam o papel, que era o de iluminar o esprito dos homens pelo sentimento sagrado da existncia de Deus: elas desejavam a sua glria. Elas imitaram os seus movimentos e os seus gestos, suas roupas maravilhosas, e, pelo vis de uma medocre pardia, se colocaram a satisfazer os gostos vulgares da plebe. Quando, enfim, elas construram um templo, feito imagem daquele outro, o teatro moderno aquele que ns conhecemos muito bem, e que assim permanece at hoje, nasceu - a brilhante instituio de utilidade pblica. No mesmo tempo em que essa instituio, apareceu o ator. Para dar apoio sua tese, Craig invoca a opinio de Elonra Duse:

    Para salvar o teatro, preciso destru-lo. preciso que todos os atores e atrizes morram da peste... So eles que atrapalham a arte....

    2. Teoria de Craig: O homem ator suplanta a marionete e assegura o seu lugar, causando assim, o declnio do teatro.

    Existe qualquer coisa de imponente na atitude desse grande utpico quando ele afirma: Eu exijo muito seriamente o retorno do conceito de surmarionete ao teatro.

  • 565

    E desde que ela reaparea, as pessoas podero novamente venerar a felicidade da existncia e render uma divina e feliz homenagem morte.

    De acordo com a esttica simbolista, Craig considerava o homem submisso a paixes diversas, e a partir dessas emoes incontrolveis, e por conseqncia, ou destino (acaso), como um elemento absolutamente estranho sua natureza homognea e estrutura de uma obra de arte, como um elemento destruidor do carter fundamental dessa: a coeso. Craig ainda bem que os simbolistas, cujo programa, em seu tempo, trouxeram um desenvolvimento notvel atrs deles haviam os fenmenos isolados, mas extraordinrios., que no sculo XIX, anunciavam uma nova poca e uma arte nova: Henrich Von Kleist, Ernest Theodor Hoffmann, Edgar Allan Poe...

    Cem anos antes, e por razes idnticas quelas de Craig, Kleist exigia que o ator fosse substitudo por uma marionete, achando que o organismo humano, submisso s leis da natureza, constitui uma ingerncia estranha na fico artstica nascida de uma construo do intelecto. Os outros protestos de Kleist recaem sobre os limites das possibilidades fsicas do homem, e ele denunciava, alm do mais, o papel nefasto do controle permanente da conscincia, incompatvel com os conceitos de encanto e beleza.

    3. Da mstica romntica dos manequins, e das criaes artificiais do homem do sculo XIX ao racionalismo abstrato do sculo XX.

    Sobre o caminho que se acreditava certo, e que emprestava ao homem do sculo das luzes e do racionalismo, eis que avanavam, saindo subitamente das trevas, sempre mais numerosa, os ssias, os manequins, os autmatos, os homnculos - criaturas artificiais que so tanto mais que ofensas s prprias criaes da natureza e que carregam nelas todo o aviltamento, todos os sonhos da humanidade, a morte, o horror e o terror. Assiste-se apario da f nas foras misteriosas do movimento

  • 566

    mecnico, ao nascimento de uma paixo manaca de inventar um mecanismo que superaria, em perfeio, em implacabilidade, o vulnervel organismo humano. E tudo isso em um clima de satanismo, ao limite do charlatanismo, das prticas ilegais, da magia, do crime, do pesadelo. Essa a cincia-fico da poca, na qual um cervo humano demonaco criava o homem artificial. Isso significava simultaneamente uma crise de confiana sbita em relao natureza e de seu domnio das atividades dos homens que lhe esto intimamente ligados.

    Paradoxalmente, dessas tentativas romnticas e diablicas ao extremo de negar natureza seu direito criao, que nasce e se desenvolve o movimento racionalista ou mesmo materialista sempre mais independente e sempre mais distanciado da natureza correndo na direo de um mundo sem objeto, do construtivismo, o funcionalismo, o maquinismo, a abstrao ,e , finalmente, o visualismo purista, reconhecendo simplesmente a presena fsica de uma obra de arte. Essa hiptese arriscada tendendo a estabelecer a gnese pouco gloriosa do sculo do cientificismo e da tcnica no engajada qual minha prpria conscincia e que serve apenas minha satisfao pessoal.

    4. O dadasmo introduz a realidade toda pronta (os elementos da vida) destri os conceitos de homogeneidade e de coerncia de uma obra de arte postulada pelo simbolismo, pela Art Nouveau, e por Craig.

    Mas retornemos marionete de Craig. Sua idia de substituir um ator vivo por um manequim, por uma criao artificial e mecnica, em nome da homogeneidade e da coerncia da obra de arte, no mais da nossa poca. Das experincias posteriores onde foi destruda a homogeneidade da estrutura de uma obra de arte e nela introduzidos elementos estranhos, atravs da colagem e acoplamentos23 (reunio) ; a aceitao da realidade toda pronta ; o pleno reconhecimento do papel do acaso; a localizao de uma obra de arte sobre a estreita fronteira entre a realidade da vida e fico artstica tudo isso omitidos os escrpulos do incio do nosso sculo, do

    23 assemblages

  • 567

    perodo do simbolismo e da art noveau. A alternativa arte autnoma de estrutura cerebral ou o perigo do naturalismo, deixou de ser a solitria possibilidade.

    Se o teatro, em seus momentos de fraqueza, sucumbia ao organismo humano vivo e s suas leis, que ele aceitava, automaticamente e logicamente, essa forma de imitao da vida que constituem sua representao e sua re-criao.

    Ao contrrio, aos momentos onde o teatro era suficientemente forte e independente para se permitir se liberar dos constrangimentos da vida e do homem, ele produzia equivalentes artificiais da vida que, ao se dobrar abstrao do espao e do tempo, somente os mais vivos e os mais aptos seriam capazes de alcanar a absoluta coeso.

    Nos nossos dias, essa alternativa na escolha perdeu tambm sua significao como seu carter exclusivo. Porque ele criou uma nova situao no domnio da arte, surgiram novas formas de expresso.

    A apario do conceito de realidade toda pronta, extrada do contexto da existncia, tornou possvel sua anexao, sua integrao na obra de arte pela deciso, pelo gesto ou pelo ritual. E isso no presente, muito mais fascinante e muito mais poderoso ao corao do real, que toda entidade abstrata ou artificialmente elaborada, ou que esse mundo surrealista do maravilhoso de Andr Brton. Happenings, acontecimentos, ambientes, so impetuosamente reabilitados das regies inteiras da realidade at aqui desprezadas, libertando do peso de suas destinaes terra-a-terra. Esse deslocamento da realidade pragmtica esse desencadeamento fora da rotina da prtica cotidiana so colocados em balano na imaginao dos homens muito mais profundamente que a realidade surrealista do irreal onrico. Eis que finalmente se perde toda importncia dada aos temores de ver o homem e sua vida interferirem no plano da arte.

  • 568

    5. Da realidade imediata do happening a desmaterializao dos elementos da obra de arte.

    No entanto, como toda fascinao, tornou-se, ao final de um certo tempo, conveno pura universalmente, estupidamente, vulgarmente implementadas. Essas manipulaes quase rituais da realidade, ligadas contestao do estado da arte e do lugar reservado arte, foram, pouco a pouco, dando sentido a matria fsica do objeto e o tempo presente no qual podem, somente, figurar a atividade e a ao que aparentemente alcanaram os seus limites e tornaram-se um entrave. Ultrapass-los significava privar essas relaes de sua importncia material e funcional, ou seja, de sua possvel apreenso. (Sendo dado, tratar-se esse de um perodo totalmente recente, ainda no acabado, fluda, as consideraes que iro continuar se relacionando, e que esto relacionadas s minhas prprias atividades criativas).

    O objeto ( A Cadeira, Oslo, 1970) tornou-se vazio, desprovido de expresso, de encantamentos, de pontos de referncia, das marcas de uma intercomunicao desejada, de sua mensagem; ele no estava orientado em nenhuma direo e tornou-se um engano. Situaes e aes permanecem trancadas em seu prprio circuito, enigmticos ( O Teatro Impossvel, 1973). Em meu manifesto intitulado Assalto (Cambriolage) teve lugar uma invaso ilegtima sobre o terreno onde a realidade tangvel encontrava seus prolongamentos invisveis, de mais em mais, distintamente se determina o papel do pensamento, da memria e do tempo.

    6. A recusa da ortodoxia do conceitualismo e da vanguarda oficial das massas.

    Em mim, tornou-se cada vez mais forte a convico de que o conceito de vida no pode ser reentroduzido na arte a no ser pela ausncia de vida no sentido convencional (ainda Craig e os simbolistas) . Esse processo de desmaterializao se instalou em minhas atividades criativas, evitando contudo toda a panplia ortodoxa da lingstica e do conceitualismo. certo que, em parte, essa escolha foi

  • 569

    influenciada pelo gigantesco congestionamento que se acumulou nesse caminho, doravante oficial e que constitui, infelizmente, o ltimo perodo da grande rota dadasta, afixado de seus slogans arte total, tudo arte, todo mundo artista, a arte est em sua cabea, etc.

    Eu no gosto dos congestionamentos. Em 1973, eu escrevi um esboo de um novo manifesto, que levava em considerao essa situao falsa. Aqui est o incio. Aps o Verdun, o Cabar Voltaire e o Water-Closed, de Marcel Duchamp, quando o fato artstico foi encoberto pelos resmungos da Grosse Bertha, a deciso ficou isolada, possibilidade que resta ao homem de ousar qualquer coisa ainda hoje inconcebvel. Ela foi, por muito tempo, o primeiro estimulante da criao, uma condio e uma definio da arte. Esses ltimos tempos dos milhares de indivduos medocres, tomam decises, sem escrpulos, nem reticncias de nenhuma espcie. A deciso tornou-se um negcio banal e convencional. Esse que foi um caminho perigoso agora um caminho cmodo segurana e sinalizao hipermelhorados. Guias, agendas, painis indicadores, placas, centros, congressos de arte eis a, aquilo que garante a perfeita criao artstica. Ns somos testemunhas de um levante em massa de comandos de artistas, de combatentes de rua, artistas de impacto, de fazedores de arte, de escrevinhadores (rabiscadores), de caixeiros viajantes, de charlates, chefes de escritrios, e de agentes. Sobre esse caminho, desde j oficial, o trfico ameaador do nosso afogar sob uma onda de rabiscos insignificantes e de pretendidos golpes de teatro, cresce todos os dias. preciso deix-lo o mais depressa possvel. Mas isso no nada fcil! Especialmente porque est no seu apogeu cego e garantido pelo grande prestgio do intelecto, incluindo paralelamente, prudncia e estupidez a onipresente vanguarda.

    7. Sobre os caminhos secundrios da vanguarda oficial. Os manequins fazem sua apario.

    Minha recusa imutvel de no aceitar as solues do conceptualismo, se bem que elas me parecem como a nica sada para o caminho escolhido, me tem conduzido ao lugar, marcado e circunscrito, os acontecimentos relatados, os maiores,

  • 570

    que marcaram a ltima fase de minha atividade criativa por os caminhos secundrios suscetveis de me oferecer maiores chances de me debruar sobre o desconhecido (incomum).

    Tal situao, mais que qualquer outra, me enche de confiana. Todo perodo novo sempre comea por tentativas sem grande significao, dificilmente considervel, quietamente, no tendo grande coisa em comum com o caminho traado; tentativas privadas, ntimas, eu diria mesmo, pouco inocentes, no claras em todo caso. Difceis! Esses so os momentos mais fascinantes e mais carregados de sentido da criao artstica.

    De sbito, eu me interessei pela natureza dos manequins. O manequim em minha encenao de A Galinha Dgua, de Witkacy (1967) e os manequins em Os Sapateiros, do mesmo Witkacy (1970) tinham um papel muito especfico: eles constituam uma espcie de prolongamento imaterial, qualquer coisa como um rgo complementar do ator que era o proprietrio. Quanto queles que utilizei em grande nmero na encenao de Balladyna, de Slowacki, constituam em dubles de personagens vivas, como se fossem dotados de uma conscincia superior, atingida aps a consumao de sua prpria vida. Esses manequins j eram visivelmente marcados pelo selo da morte.

    8. O manequim como manifestao da realidade mais trivial. Como um processo de transcendncia, um objeto vazio, um artifcio, uma mensagem de morte, um modelo para o ator.

    O manequim que utilizei em 1967 no teatro Cricot 2 (A Galinha Dgua) , foi, aps O Peregrino eterno, e as Embalagens humanas, o posterior dos meus personagens a entrar naturalmente em minha coleo como outro fenmeno a apoiar essa convico ancorada em mim aps um longo tempo, de que somente a realidade

  • 571

    mais trivial, os objetos mais modestos e os mais desprezados, so capazes de revelar em uma obra de arte o seu carter especfico de objeto.

    Manequins e figuras de cera sempre existiram, mas mantidos distncia, nas molduras da cultura admitida, nas barracas dos mercados, nas barracas duvidosas dos prestidigitadores, longe dos esplndidos templos da arte, olhados como curiosidades menosprezados, boas apenas para o poder do gosto popular. Exatamente por essa razo, so elas bem mais que as acadmicas peas de museu que podem ao tempo de um breve olhar, elevar, em um canto o vu.

    Os manequins so tambm uma marca do pecado de transgresso e delito. A existncia dessas criaturas confeccionadas imagem do homem, de uma maneira quase sacrlega e quase clandestina, fruto de procedimentos herticos, carrega a marca desse lado obscuro, noturno, sedicioso do comportamento humano, a impresso do crime e dos estigmas da morte como fonte de conhecimento. A impresso confusa, inexplicvel, que para o intrprete de uma criatura nos fraudulentos aspectos da vida, mas privada de conscincia e de destino, que a morte e o nada liberam sua inquietante mensagem isso que causa em ns esse sentimento de transgresso, ao mesmo tempo rejeitando e atraindo, isolando e fascinando.

    O ato da acusao esgotou todos os argumentos. O primeiro a deixar-se atacar

    foi o prprio mecanismo dessa ao, considerada levianamente como um fim em si mesmo, e desde ento relegado entre as formas medocres da criao artstica, colocadas no mesmo saco que a imitao, a iluso enganosa destinada a abusar do espectador como as peas do manipulador de feira, e a utilizao de ingnuos artifcios que escapam aos conceitos da esttica, como o uso fraudulento das aparncias e as prticas do charlato. E para fazer boa aparncia, juntaram-se ao processo as acusaes de uma filosofia que, aps Plato e freqentemente, ainda hoje, designa como fim da arte o de revelar o ser e sua espiritualidade antes de afundar na concretude material do mundo, nessa trapaa das aparncias que representam o mais baixo nvel da existncia.

  • 572

    Eu no penso que um manequim ( ou uma figura de cera) possa substituir o ator vivo, como queriam Kleist e Craig. Isso seria fcil e por demais ingnuo. Eu me esforo em determinar os motivos e a destinao dessa entidade inslita surgida inesperadamente em meus pensamentos e nas minha idias. Essa apario concorda com a convico cada vez mais forte em mim, que a vida s pode ser expressa na arte pela falta de vida e pelo recurso morte, atravs das aparncias, da vacuidade, da ausncia de toda mensagem. No meu teatro, um manequim deve tornar-se um modelo que encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condio dos mortos um modelo para o ator vivo.

    9. A minha interpretao da situao descrita por Craig. A apario do ator vivo, momento revolucionrio. A descoberta da imagem do homem.

    Eu Tiro minhas consideraes da origem do teatro; mas elas se aplicam geralmente arte atual. Existe um motivo para se pensar que a descrio imaginada por Craig, nas circunstncias nas quais apareceu o ator, e que faz ele uma anlise terrivelmente acusativa, devia servir ao seu autor como ponto de partida para as suas idias concernente super-marionete. Ainda que seja eu admirador do menosprezo soberbo professado por Craig e de suas crticas passionais sobretudo a de que ns estamos no total declnio do teatro contemporneo eu devo entretanto, fazendo minha, a primeira parte do seu credo, no qual ele denega ao teatro institucional toda razo de existir no plano da arte, levar meu distanciamento em relao s solues bem conhecidas e que ele encontrou sobre o destino do ator. Porque o momento onde um ator apareceu pela primeira vez diante de um auditrio (empregando o vocabulrio atual) parece-me ser, bem ao contrrio, um tempo revolucionrio e de vanguarda. Eu vou experimentar compor e fazer entrar na histria uma imagem oposta, cujos acontecimentos tero uma significao inversa:

    Eis que do crculo comum dos costumes e dos ritos religiosos, das cerimnias e das atividades ldicas, algum saiu e tomou a deciso temerria de se desligar da comunidade cultural. Seu motor no era nem o orgulho (como em Craig), nem o

  • 573

    desejo de atrair sobre ele a ateno de todos. Soluo simplista ao excesso. Eu o vejo mais como um rebelde, um oponente (objecteur), um hertico, livre e trgico por ter ousado permanecer s com sua sorte e seu destino. E se nos somarmos ao seu papel, teremos diante de ns o ator. A revolta teve lugar sobre o terreno da arte. Esse acontecimento, ou ainda, essa manifestao, provavelmente provocou uma grande perturbao nos espritos e suscitou opinies contraditrias. Muito certamente se julgar esse ato como uma traio em relao s tradies antigas e s prticas do culto, se ver uma manifestao de orgulho profano; de atesmo, de perigosas tendncias subversivas; ser criado no escndalo, na imoralidade, na indecncia, se medir o homem tal como um palhao de feira, um cabotino, um exibicionista, um depravado. O prprio ator, afastado, ser feito, no somente dos inimigos cruis, mas de fanticos admiradores. Infmia e glria conjugadas.

    Isso seria de um formalismo ridculo e superficial como querer explicar esse ato de ruptura pelo egocentrismo, pelo desejo de glria, ou uma tendncia inata para a exibio. Ele devia se lanar em uma aposta mais considervel, de uma comunicao de importncia capital. Tentaremos representar essa situao fascinante: Em frente queles que desse lado, um homem se ergue exatamente semelhante a cada um dos demais, entretanto, (pela virtude de qualquer operao misteriosa e admirvel) infinitamente distante, terrivelmente estranho, como habitado pela morte, separado deles por uma barreira, que por ser invisvel, no parecia menos assustadora e inconcebvel, tal que o sentido verdadeiro e a honra, que s podem nos ser revelado pelo sonho.

    Assim que na luz ofuscante de um raio, eles percebem repentinamente a imagem do homem, barulhento , tragicamente clownesca, como se eles o vissem pela primeira vez, como se eles vissem a si mesmos. Esse foi com toda a certeza, uma percepo que se poderia qualificar de metafsica.

    Essa imagem viva do homem saindo das trevas, colocando sua marcha adiante, constitui um manifesto, irradiante, de sua nova condio humana, somente humana,

  • 574

    com sua responsabilidade, e sua conscincia trgica, determinando seu destino em uma escalada implacvel e definitiva, a escalada da morte.

    Foi aos espaos da morte que esse manifesto foi endereado, revelador que provocou no pblico (utilizando um termo atual) esse acesso ao metafsico. Os meios e a arte desse homem, o ator (empregando nosso prprio vocabulrio), ligando-se assim morte, a sua trgica e horripilante beleza.

    Ns devemos devolver relao espectador/ator a sua significao essencial. Ns devemos fazer renascer esse impacto original do instante onde um homem(ator) apareceu pela primeira vez diante de outros homens (espectadores), exatamente semelhante a cada um de ns, e no entanto, infinitamente estranho, alm dessa barreira que no pode ser transposta.

    10. Recapitulao

    Embora suspeitem, e nos acusem de nos alimentar dos escrpulos sem propsito, ns expulsaremos nossos preconceitos e nossos temores inatos, e, para uma melhor imagem no interesse de concluses eventuais, ns fincaremos as estacas dessa fronteira que tem nome: a condio da morte, porque ela constitui a marca mais avanada que no mais ameaada por nenhum conformismo da condio do artista e da arte... Essa relao particular, desconcertante e atraente por sua vez, entre os vivos e os mortos, que h pouco tempo atrs, quando eles estavam ainda em vida, no davam espao a espetculos inesperados, em inteis divises, desordem, eles no eram diferentes e no tomavam grandes ares e em razo desse risco aparentemente banal, mas, como se ver, forte e importante, eles eram simplesmente, normalmente, respeitosamente no perceptvel.

  • 575 E eis que agora, de sbito, do outro lado, frente a ns eles despertam a surpresa,

    como se ns o vssemos pela primeira vez exposto na vitrine numa cerimnia ambgua: honradas e rejeitadas, e ao mesmo tempo irremediavelmente outra e infinitamente estranha, e ainda: privado de qualquer espcie de significao, sem acordo, sem a mais magra esperana de ocupar um lugar parte nas texturas de nossa vida que no so acessveis, familiares, inteligveis para ns, mas para eles desprovidos de sentido.

    Se ns estamos de acordo que o trao dominante dos homens vivos sua aptido e sua facilidade em amarrar entre si mltiplas relaes vitais, somente frente aos mortos que surge em ns a captura da conscincia repentina e surpreendente qual essa caracterstica essencial dos vivos que se torna possvel por sua ausncia total de diferenas, por sua banalidade, por sua identificao universal que destri impiedosamente toda iluso diferente ou contrria por sua qualidade comum, aprovada sempre no vigor de um persistir indiscernvel. So somente os mortos que tornam-se perceptveis (para os vivos) obtendo assim, por esse preo o que mais elevado: o seu prprio status, a sua singularidade, a sua silhueta brilhante (espetacular, quase como no circo).