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John Hughes Professor de Sociologia da Universidade de Lancaster

A FILOSOFIA DA PESQUISA

SOCIAL Tradução:

Heloísa Toller Gomes

Revisão Técnica: Menga Lüdke

Professora de Metodologia da Pesquisa, Depto. de Educação, PUC-RJ

ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

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Titulo original: The Philosophy of Social Research

Tradução autorizada da primeira edição inglesa publicada em 1980 por Longman Group Limited, de Londres, Inglaterra.

Copyright © John Hughes, 1980

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988)

Capa: Érico

Composição: Zahar Editores

1983 Direitos para a língua portuguesa adquiridos por Z A H A R E D I T O R E S S.A. Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta versão Impresso no Brasil

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ÍNDICE

Prefácio 9

1. A Filosofia da Pesquisa Social 11 Introdução 11 A natureza da filosofia 12 Ontologia, epistemologia e autoridade intelectual 15 A filosofia e o processo de pesquisa 20

2. A Ortodoxia Positivista 25 O background intelectual 26 Os elementos do positivismo 28 O positivismo de Durkheim 32 As lições de Durkheim 40

3. O Positivismo e a Linguagem da Pesquisa Social 42 A linguagem de observação 43 A linguagem de observação e a ciência social 45 O problema dos todos sociais 48 O status da teoria 53 O positivismo e a teoria científica 63

4. A Alternativa Humanista 70 Alguns precursores intelectuais 71 A ação e o significado social 75 Regras, motivos e descrição da ação social 78 Razões versus causas 91

5. Os Significados e a Pesquisa Social 96 A crítica da ontologia positivista e seus métodos 96 Conceitos leigos versus conceitos científicos 108 Os significados e a pesquisa social 118

6. Considerações Finais 125

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Para Wesley John Que chegou no meio de tudo isto

e provou que é possível sobreviver, apesar de sonos interrompidos e de manhãs com olheiras.

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P R E F Á C I O

Este livro é uma introdução ao assunto e pode simplesmente fornecer as linhas gerais de várias das importantes questões filosóficas envolvidas. Não tenta competir com vários dos excelentes textos que tratam de questões mais amplas da filosofia da ciência social. Minha preocupação principal foi discutir problemas filosóficos que brotam da própria pesquisa da ciência social. Espero, pelo menos, ter mostrado como e por que o estudo fi-losófico da pesquisa é um dos importantes aspectos da ciência social, embo-ra seja freqüentemente negligenciado. Por este motivo, dei ênfase especial a problemas descritivos na ciência social e à sua relação com descrições leigas de fenômenos sociais.

Como sociólogo, utilizei-me de ilustrações e exemplos na maior parte das vezes retirados desta disciplina e espero que outros cientistas sociais encontrem aqui algo que lhes interesse e os estimule. Os filósofos, sem dúvida, sentir-se-ão descontentes; posso apenas prestar-lhes a homenagem de tentar, modestamente, caminhar em seu território.

Gostaria de aproveitar a oportunidade para agradecer a muitas pes-soas que em diversas ocasiões contribuíram com idéias de algum modo incorporadas a este livro. Dois dos meus ex-alunos de pós-graduação, o Dr. Paul Drew, da Universidade de York, e o Dr. Ray Pawson, da Universidade de Leeds, influenciaram sensivelmente o meu pensamento sobre a metodo-logia. Eles forneceram respostas diferentes à crítica já bem conhecida ao positivismo e recomendo as suas teses a quem deseje ir mais adiante no es-tudo da metodologia. Também Jeff Coulter e Doug Benson tiverain signi-ficativa participação no meu trabalho, quer através de discussões, quer através de sua obra publicada. John Urry não me influenciou mas, como sempre, suas idéias constituíram um desafio em razão de seu rigor e pro-fundidade. A defesa às vezes apaixonada empreendida por Steve Ackroyd em relação à ciência social "tradicional" foi, diversas vezes, um padrão eficaz com o qual pude avaliar idéias mais radicais. Finalmente, agradeço a minha esposa, Jacky, e a Brenda pelo cuidado com que se dedicaram à da-tilografia de um manuscrito que às vezes lembrava um álbum de recortes à mercê da ventania.

JOHN A. HUGHES

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A F I L O S O F I A DA P E S Q U I S A SOCIAL

INTRODUÇÃO

A relação entre filosofia e aquilo que atualmente chamamos de ciências sociais tem uma história, de certa forma, semelhante à parábola do filho pródigo. Assim como os adolescentes arrogantes, as ciências sociais, nasci-das e criadas no âmbito familiar da filosofia, rejeitam seus pais e dissipam sua herança, só retornando à casa paterna quando o mundo exterior se mos-tra hostil e inóspito. Desde que se desenvolveram como disciplinas autôno-mas, as ciências sociais só têm procurado reexaminar seus fundamentos fi-losóficos em períodos de crise: períodos em que os métodos conhecidos e dignos de confiança não mais parecem justificar a fé que neles se depo-sitava, em que os pesquisadores perdem a confiança em seus achados e em que princípios óbvios e "garantidos" não mais parecem tão indiscutí-veis. É em tais períodos que surgem advertências sobre a "crise iminente", ou apelos em prol de um "reexame" da teoria social. Tais períodos (e, para muitos, as ciências sociais dão a impressão de ser constituídas quase que inteiramente dessas lacunas) forçam os estudiosos a se voltarem mais uma vez para seus princípios básicos, reavaliando os fundamentos filosóficos de suas práticas.

Embora as questões filosóficas talvez se tornem mais evidentes em períodos de crise intelectual, isso não significa que só então sejam relevan-tes. Em se tratando da sociologia, a trindade fundadora de Marx, Weber e Durkheim significou considerável esforço e os resultados daí advindos ainda afetam maciçamente os estilos do pensamento sociológico, no esta-belecimento e aprimoramento das bases filosóficas de suas indagações mais cruciais. Para eles, as questões filosóficas tinham que ser resolvidas a fim de tornar viáveis as próprias indagações empíricas — e isso é ainda mais típi-co da tradição européia da ciência social do que no tocante à tradição bri-tânica ou norte-americana.

Qual é, então, a relação entre filosofia e ciências sociais? Por que os filhos pródigos voltam quando os tempos são maus? Que oferece a filoso-fia, que as ciências sociais não podem fornecer? É claro que tais perguntas, embora formuladas, exigem mais do que simples respostas. Entretanto, é

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necessário que esbocemos as relações em pauta antes de discutirmos algu-mas de suas facetas com maiores detalhes.

A relação entre filosofia e ciências sociais tem aspectos históricos, lógicos e conceituais. Na verdade, do ponto de vista histórico, só recen-temente essa relação tem sido examinada em profundidade. O assunto pressupõe um longo período de desenvolvimento intelectual, e apenas ao final deste a própria idéia de uma ciência social tornou-se articulável. Tal não tem sido sempre o caso ou, pelo menos, nem sempre se deu da forma como talvez entendamos hoje em dia. Platão, por exemplo, falou sobre a sociedade, sobre a relação entre a sociedade e seus membros, mas tinha objetivos diferentes e falava com subsídios diferentes dos de Marx, Weber e outros teóricos sociais mais recentes. Entre Platão e a época atual, as conquistas das ciências naturais influenciaram as formas através das quais concebemos e estudamos a sociedade: não mais podemos estudar a vida social como se as ciências naturais não existissem. Isto vale não apenas para a sociologia mas para todas as ciências sociais: economia, ciên-cia política, antropologia, psicologia e mesmo a história. Tal fato não significa que essas disciplinas tenham subservientemente adotado os méto-dos das ciências naturais, mas assinala apenas que estas últimas constituem um aspecto inevitável de seu embasamento intelectual.

O que tem isto a ver com a filosofia? Em poucas palavras, a noção de que o estudo da vida social poderia ser tratado como o estudo da natu-reza inanimada foi o desfecho de um longo debate filosófico; um debate cuja importância permanece presente. E mais: sugere que existe algo na natureza da filosofia que lhe dá um lugar único no campo dos esforços intelectuais humanos.

A NATUREZA DA FILOSOFIA

Existem muitas definições de filosofia, e há tantos estilos diferentes co-mo as próprias definições. O que agrava o problema, conforme observou Hospers, é o fato de que há dificuldades especiais quanto a uma definição de filosofia que possa ser entendida antes de examinarmos os problemas filosóficos relativos à definição em geral.1 Isto assinala uma das caracte-rísticas mais importantes das questões filosóficas, isto é, sua qualidade interminável e aparentemente circular, o modo como dependem da signi-ficação de tantas outras coisas antes mesmo de podermos começar a res-ponder àquilo que aparentava ser uma pergunta direta e inofensiva. "O

J. Hospers, An Jntroduction to Philosophical Analysis, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1967, p. 1.

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que é a realidade?" é pergunta que, se formulada filosoficamente, di-ficilmente teria uma resposta do tipo "a realidade é isto e aquilo". 0 mais provável seria o conseqüente surgimento de outras indagações, tais como "o que você quer dizer com.. .?" , "como proceder para determinar o 'real'?", "em que consistiria o 'não-real'?" e assim por diante.

Este tipo de reação é, sem dúvida e em grande parte, responsável pela sensação de assombro que freqüentemente sentimos ao abordar ques-tões filosóficas e pela sensação de que são indagações sobre as questões mais fundamentais e mais gerais: a realidade, a natureza do conhecimento, a mente, a matéria, a verdade e assim por diante. A filosofia se indaga sobre tudo isso, mas de um modo especial. Se a filosofia tratasse simples-mente de fenômenos materiais, por exemplo, seria reduzível à física; se visasse apenas à mente ou à verdade, seria reduzível à psicologia ou à lógi-ca, respectivamente. Mas não é o assunto por si só que define a filosofia e suas ramificações, e sim a sua forma específica de questionamento e o modo quase infantil e inocente com que gera confusão nas idéias estabe-lecidas a respeito do mundo. Nada existe de claro e específico para deter-minar o que faz com que uma questão seja filosófica. Não se trata tanto de sua forma enquanto pergunta; nem todas as perguntas são filosóficas, afinal de contas. Trata-se antes da incerteza sobre se, ao se fazer uma per-gunta, esta pode constituir uma questão filosófica. Com a maior parte das perguntas, tais como "o que é uma caixa de câmbio?", geralmente sabemos que forma a resposta pode ter mesmo que não possamos, pessoalmente, responder de modo satisfatório. Por outro lado, com as perguntas filosófi-cas, não temos certeza quanto ao tipo de resposta que satisfaça à questão, o que, por sua vez, nos traz dúvidas com relação ao caráter da própria pergunta. Os outros pontos que mencionei, como a sensação de assombro, o sentimento de que as questões filosóficas tratam dos assuntos mais ge-rais, mais fundamentais, parecem-me proceder desta característica. Ten-tarei ilustrar esses aspectos com um exemplo bastante corriqueiro.

Há algum tempo, eu dirigia meu automóvel tendo à frente um cami-nhão no qual se lia a palavra "Leite". Naturalmente cheguei à conclusão de que o caminhão tinha por objetivo transportar leite. Mas qual era a base de tal suposição? O fato de que "Leite" aparecesse no caminhão? É bem provável, porém eu então teria que continuar presumindo que "Leite", quaisquer que fossem suas outras funções, correspondesse àquilo que o ca-minhão carregava. E, entretanto, muitas vezes os caminhões portam outros nomes ou palavras que não têm qualquer relação com aquilo que geralmen-te transportam. Que se poderia pensar dessa ocorrência corriqueira? Para quem tenha preocupações filosóficas, uma pergunta que poderia surgir diz respeito aos fundamentos sobre os quais certos tipos de observações são fei-tas. Voltando ao caminhão de leite: como sei, neste caso, que "Leite" re-fere-se ao que o caminhão normalmente carrega? Afinal de contas, "Leite"

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poderia ser o nome do dono do caminhão, ou mesmo sua marca de fabri-cação. Que razões posso apresentar para afirmar que este caminhão trans-portava leite? Existem, é claro, muitos argumentos a apresentar: tratava-se de um caminhão-tanque; "Leite" não é um sobrenome tão comum; que eu saiba, nenhuma marca de caminhão tem esse nome; tampouco sei de mo-toristas que batizem de "Leite" seus caminhões; e assim por diante. Um acúmulo dessas razões provoca uma "soma" reforçando a convicção de que tal caminhão normalmente transporta leite. Mas por quê?

As razões que apresentei incluem referências à minha experiência pessoal, a hábitos de fabricantes de veículos, a costumes de caminhoneiros, e assim por diante. O que mais precisaria enumerar até que a ligação entre o signo "Leite" e a função do caminhão estivesse estabelecida? Poder-se-ia argumentar que, ao invés de fazer todas essas perguntas, bastaria simples-mente olhar o interior do caminhão — desde que, é claro, se apresentasse uma oportunidade para isso e o motorista fosse tolerante o suficiente para colaborar com o meu capricho filosófico! Mas o que torna olhar mais segu-ro ou corroborativo do que as razões já apresentadas? Eu ainda poderia me enganar. A que conclusões chegaria se o caminhão estivesse cheio de uísque e não de leite? Deveria acusar o motorista de contrabando? Concluir que durante todo o tempo eu havia entendido mal o letreiro e que a palavra "Leite" não se refere a um líquido branco produzido pela vaca mas sim a um líquido claro e amarelado que vem da Escócia? Quaisquer que fossem as minhas conclusões, a verdade é que eu me envolveria em questões tais como a natureza do dado, ou como distinguir entre coisas falsas e verda-deiras, ou que inferências podem legitimamente ser feitas a partir de vários tipos de dados e assim por diante. Assim procedendo, começamos a perder algo do nosso senso de direção; as experiências conhecidas tornam-se con-fusas e mesmo os aspectos mais evidentes, certos e ordinariamente verda-deiros do nosso mundo passam a adquirir um caráter problemático.

Observe-se que essas questões surgiram de um exemplo corriqueiro. Não é necessário qualquer conhecimento esotérico para fazer o tipo de conexões que fiz de início entre o letreiro no caminhão e a sua função de transportar leite: a conexão entre letreiro e função é um assunto de roti-na diária. A capacidade de ler sinais de tráfego, rótulos em pacotes ou gar-rafas, cabeçalhos ou nomes de ruas é parte da competência de cada dia; por que então levantar questões filosóficas sobre isso? Naturalmente, num cer-to nível, não há motivo algum para se duvidar dessa capacidade. Trata-se simplesmente de algo que os seres humanos fazem e é pouco provável que discussões filosóficas tenham qualquer relação com isto e com a forma co-mo isto afete nossas vidas. Entretanto, num outro nível, as questões filo-sóficas são importantes e, para demonstrar de que modo o são, passarei a discutir a noção de autoridade intelectual trazendo, portanto, a discussão para mais perto da ciência social e da pesquisa social.

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ONTOLOGIA, EPISTEMOLOCIA E AUTORIDADE INTELECTUAL

Muitas pessoas pretendem estudar aspectos da vida social: romancistas, sociólogos, psiquiatras e psicólogos, homens de negócios e economis-tas, poetas e camponeses, garçons e biólogos e assim por diante. Logo de pronto pergunta-se: o que distingue entre si todos estes e outros exem-plos? Quais os critérios relevantes para tal distinção? Como sempre, exis-tem muitas respostas. Um possível critério diz respeito à forma e ao status de conhecimento envolvidos em cada caso. Pode-se alegar que as atividades das pessoas mencionadas tratam de aspectos diversos do mundo: os psi-quiatras e psicólogos, por exemplo, lidam com a "vida interior" dos seres humanos; os sociólogos, com os aspectos coletivos; romancistas e poetas, com a expressão; garçons e camponeses, com o lado cotidiano prático, menos abstrato e teórico da vida. É claro que tais distinções não são assim tão simples e imediatas, constituindo, em todo caso, apenas um começo. Para propósitos imediatos, entretanto, as distinções assinalam objetos que podem ser discutidos e estudados, tais como emoções, fatos psíquicos, coletividades etc. Pode haver todo tipo de conexões entre essas e outras "coisas", e tais conexões podem apresentar argumentos adicionais quanto à sua natureza. Basta dizer, neste ponto, que as distinções feitas estabele-cem afirmações ontológicas, ou seja, afirmações a respeito daquilo que existe.

Um outro conjunto de afirmações que poderíamos fazer quanto às distinções mencionadas refere-se menos àquilo que elas "representam", e mais às formas pelas quais tais aspectos do mundo podem ser conhecidos. Assim, seria possível afirmar que algumas dessas atividades envolvem pro-cedimentos que tratam com uma "ordem mais elevada" de conhecimento, de índole mais positiva, mais digna de confiança, menos exposta a capri-chos, interesses e emoções pessoais. Fazer uma afirmação como essa — e não é preciso que seja esta afirmação especificamente — significa preo-cupar-se com as formas e os meios de entender os objetos e acontecimentos do mundo. Preocupar-se, em suma, com a epistemologia; afirmações ou teorias filosóficas que podem ser expressas a respeito de como o mundo vem a ser conhecido. Tais questões não visam a técnicas ou tópicos factuais do tipo "como se mede o QI?" ou "qual foi o índice de suicídio na Grã-Bretanha em 1973?"; tais questões técnicas e factuais só se postulam dentro de posições epistemológicas filosoficamente justificadas. Em suma, as ques-tões epistemológicas são questões a respeito do que devemos considerar como fatos.

Os problemas ontológicos e epistemológicos, evidentemente, não são isolados entre si. Afirmações a respeito do que existe no mundo quase sem-pre levam questões relativas à possibilidade mesma de se conhecer o que

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existe. Se eu pretender afirmar em 1978 que fadas ou duendes existem, provavelmente serei chamado a dizer como sei de sua existência, especial-mente porque poucas outras pessoas terão feito afirmações semelhantes. Na ausência de evidências corroborativas, eu teria que explicar a natureza de tais criaturas e os procedimentos através dos quais sua existência pôde ser estabelecida. Neste caso específico, é provável que meu êxito fosse bastante pequeno, mas o exemplo ilustra claramente o importante elo existente entre ontologia e epistemologia. Afirmações sobre a natureza dos fenômenos têm implicações sobre o modo pelo qual os fenômenos podem ser conhecidos. As afirmações dos físicos quanto à existência de certas partículas subatômicas, para usar um exemplo mais atualizado, estão carregadas de teorias a respeito de como tais partículas podem ser detectadas.2 Da mesma forma, a crença na existência de Deus é sempre acompanhada de afirmações sobre como demonstrá-la, afirmações que podem não satisfazer aos procedimentos rigorosos das ciências naturais mas que estabelecem um método de conhecimento do mundo espiritual, diferente daquele que pretende conhecer o material.

É importante enfatizar que as questões ontológicas e epistemoló-gicas não devem ser respondidas através da investigação empírica, uma vez que se preocupam, entre outras coisas, com a natureza e a signifi-cância mesmas da investigação empírica. São questões que requerem dis-cussão e debates filosóficos nos quais se focalizam, como questão geral, as próprias pressuposições de conhecimento.

Segue-se que, ao se fazer uma afirmação de conhecimento, qualquer que seja ela, também se indica a disposição de justificá-la através da especi-ficação dos meios de conhecimento. Tais meios podem incluir referências a métodos experimentais, procedimentos corretos de análise, fontes auto-rizadas, inspiração espiritual, idade, experiência e assim por diante: ou seja, referências àqueles processos coletivamente acreditados como constituin-do, em geral, boas razões para que se saiba algo. É dessa licença pública co-letiva que deriva a autoridade intelectual do nosso conhecimento.3

2 Não há qualquer afirmação aqui quanto à natureza existencial de tais partículas; se elas existem em algum sentido tangível ou se constituem construtos hipotéticos cuja função principal não é fazer afirmações existenciais como tal mas sim operar dentro de uma teoria visando a explicar certos aspectos do mundo, do ponto de vista econômico. 3 S. Toulmin, Human Understanding, Vol. 1, Oxford University Press, 1972, p. 10. Receber tal permissão nem sempre é, naturalmente, uma garantia suficiente, ao que se saiba. O que está sendo enfatizado, aqui, é a natureza racional de nossas afirma-ções e o modo pelo qual as razões específicas possuem uma categoria de autoridade. Porém, como todas as razões, elas são revogáveis. Ou, em outras palavras, pode haver, no caso de uma reivindicação específica de conhecimento, razões específicas pelas quais, de uma maneira geral, "as boas razões" não são aceitáveis. Ter "boas razões" não é uma garantia "à prova de tolos" de que se sabe de fato.

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Nesse ponto, desejo fazer uma ou duas advertências a respeito do que já tratamos. Primeiramente, não pretendi até agora discutir os méritos relativos de diferentes formas de conhecimento. Um dos temas principais de todo o livro é um exame das razões pelas quais algumas formas da com-preensão humana das ciências sociais vêm a ser investidas de qualidades superiores. Em segundo lugar, gostaria de acentuar a ambigüidade existente na própria noção de conhecimento. Como será assinalado mais tarde, ou-tros termos, tais como "compreensão", têm sido usados para caracterizar o objetivo das ciências sociais em oposição a outras formas do saber. Esta distinção específica é relevante quando se debate se as ciências sociais possuem um parentesco com as ciências naturais ou se, como ciências hu-manas, têm uma natureza inevitavelmente diferente.

Mencionei anteriormente a idéia de uma autoridade intelectual sobre a qual, podemos dizer, repousam as afirmações relativas ao conhecimen-to. Esta formulação pretende assinalar numerosas qualidades de afirma-ções de conhecimento e a relacionar a análise filosófica de conceitos às concepções histórica e socialmente fundamentadas que os seres humanos mantêm sobre o mundo e sobre suas vidas dentro dele. Em linguagem clara: uma afirmação de conhecimento tem dimensões sociais. Nossas afir-mações e justificações funcionam, se o fazem, em virtude de concepções coletivamente mantidas acerca do mundo e sobre o modo como a ele nos relacionamos.

Até aí, tudo bem. Entretanto, nem todas as concepções do mundo possuem o mesmo peso ou são sequer sustentadas por uma maioria. Alguns corpos de saber são tão esotéricos que apenas uns poucos os entendem embora muitos creiam neles. Além disso, as coisas se complicam pelo fato de que algumas concepções do mundo, tal como a física nuclear, são tidas em elevada conta até mesmo por aqueles que as desconhecem, ao passo que outras são escarnecidas como sendo produtos insensatos de uma ala lunática e postas de lado por causa daqueles que as sustentam. Essas obser-vações levantam mais uma vez a questão formulada anteriormente: existe alguma forma objetiva, sistemática e justificável de se discriminar o co-nhecimento verdadeiro daquelas afirmações que apenas aparentam ser conhecimento? Na verdade, uma das principais atividades das teorias fi-losóficas do conhecimento foi e ainda é fornecer aquilo que Quinton cha-ma de "uma avaliação crítica da ordem lógica das justificações".4 Isto tem freqüentemente tomado a forma de uma busca dos fundamentos irre-futáveis do conhecimento humano: embora possamos dizer que algumas crenças baseiam-se em outras, existem conjuntos de crenças cujas relações com outros conjuntos são assimétricas e não obtêm apoio das crenças que

4. A. Quinton, The Nature of Things, Routledge & Kegan Paul, 1973, p. 115.

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justificam. Se tais crenças pudessem ser formuladas, então todas as crenças poderiam ser dispostas numa seqüência ou ordem em cujo início estariam aquelas que, conquanto justificando outras, não requerem seu apoio. Estas, as possuidoras da prioridade epistemológica absoluta, seriam os funda-mentos do conhecimento humano. Infelizmente, conforme veremos, os conhecimentos candidatos a crenças dotadas de prioridade epistemológica não têm aceitação universal e a busca, ao menos em certos setores, perma-nece. E mais ainda, as concepções do mundo têm mudado historicamente. Qualquer pessoa com conhecimento mesmo limitado de história e antro-pologia rapidamente percebe que, em muitos aspectos, nossos antepassa-dos possuíam a respeito do mundo idéias muito diferentes das que temos, embora provavelmente se sentissem tão seguros da correção de suas opi-niões quanto nos sentimos hoje das nossas.

Por tudo isso, é necessário prestar atenção à advertência de Toulmin e não tratar a epistemologja como se fosse uma disciplina isolada, sem raízes no pensamento de um período ou sem relações com os procedi-mentos e com os problemas práticos de disciplinas concebidas historica-mente.5 Por exemplo, os debates metodológicos dentro das ciências sociais não podem ser entendidos independentemente do cenário cultural mais amplo nem tampouco das descobertas das pesquisas anteriores, baseadas, embora, em suposições epistemológicas diferentes. Nenhuma epistemologia filosófica, como espero demonstrar, pode ser composta de verdades auto-evidentes, inabaláveis em todas as épocas. Na verdade, conforme veremos, e teremos motivos para criticar com mais detalhes, posteriormente, as atuais concepções baseadas no "bom senso" a respeito da natureza do mundo e dos modos através dos quais é possível conhecê-lo derivam, elas próprias, de debates do século XVII.

Descartes e Locke, duas figuras filosóficas de primeira ordem, apesar de sua genialidade, eram homens de sua época e discutiam os princípios do conhecimento humano à luz das idéias vigentes acerca da ordem da natureza e do lugar do homem dentro desta. Segundo Toulmin, eles acei-tavam sem contestação três "lugares comuns": que a natureza era fixa e estável, podendo ser conhecida por princípios de entendimento igualmente fixos, estáveis e universais; que havia um dualismo entre espírito e matéria, sendo a segunda inerte, enquanto que o espírito era a fonte da razão, mo-tivação e outras funções mentais; e, finalmente, que o critério de conheci-mento, de certeza inabalável, era fornecido pela geometria, ante a qual deveriam ser julgadas todas as outras afirmações de conhecimento.6

5 Toulmin, op. cit., p. 11. 6 Ibid., pp. 13-19.

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Podemos ver como tal concepção, além de fornecer uma descrição ontológica básica do mundo, continha também prescrições epistemoló-gicas quanto à forma pela qual o mundo poderia ser investigado. Orientava as preocupações de cientistas e filósofos e, através dos tempos, estabeleceu-se como versão autorizada do mundo, exatamente como um conjunto de instruções indicando de que modo o mundo deveria ser armado. Esta fase posterior teve lugar porque se tratava de uma visão amplamente aceita por cientistas e filósofos. O trabalho teórico mais detalhado dentro das várias disciplinas obtinha validade intelectual na medida em que era visto como condizente com esta concepção original ao mesmo tempo que, de modo reflexo, legitimava a validade desta concepção. Houve diversas esco-las teóricas, mesmo dentro de uma única disciplina — racionalistas, empi-ristas, corpuscularistas, vorticistas — consideradas coerentes com os prin-cípios ontológicos e epistemológicos previamente firmados. No entanto, tais princípios estabeleciam o contexto de debates no qual as diversas escolas discutiam suas divergências e suas versões particulares do mundo. Em suma, eram esses princípios que possuíam autoridade intelectual.

A consciência dos contextos social e histórico das afirmações de co-nhecimento gera um problema (a ser visto com mais detalhes posterior-mente, neste livro) ligado à relatividade do conhecimento que surge, po-deríamos dizer, de sua determinação social. Embora os "lugares comuns" da visão seiscentista do mundo (visão, aliás, específica de certos grupos eruditos na Europa) mantivessem uma forte influência ao longo dos dois séculos seguintes, nenhum deles conserva a mesma significação atualmen-te, nem é mais defendido com igual convicção. As idéias de evolução e de um Universo em mutação não mais admitem a concepção de um Universo fixo e inalterável. Da mesma forma, a distinção entre espírito e matéria, tão verdadeira segundo o "bom senso", perdeu a força e a nitidez de outro-ra. A invenção de novas geometrias não-euclidianas, a par disso, acarretou o questionamento em profundidade do ideal geométrico como modelo do Universo, concedendo a esta disciplina mais espaço enquanto cria-ção humana; sempre útil e potente para propósitos específicos, mas de modo algum a fonte de certeza enquanto parâmetro universal de conheci-mento. Porém, se tais princípios "evidentemente verdadeiros" de nossa cultura vierem a ser questionados, o que virá a substituí-los? E mais ainda: esta mudança representará um progresso, uma evolução do nosso conheci-mento na direção de formas mais elevadas, ou os sistemas de conhecimento podem apenas ser julgados em seus próprios termos enquanto produtos de sistemas sociais e históricos específicos? Como encarar formas de conhe-cimento diferentes das nossas, tais como crenças em bruxaria, por exem-plo, ou em medicamentos baseados em concepções muito diversas de doen-ça e que, ao menos nas culturas em que atuam, mostram-se extremamente eficazes?

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Esses exemplos, e há muitos outros mais até mesmo de caráter me-nos exótico, colocam agudamente o problema da relatividade dos crité-rios de conhecimento ou, em outras palavras, das fontes de nossa autori-dade intelectual. Como julgar entre diferentes sistemas de conhecimento? Existem critérios claros e não-ambíguos (conforme Platão e seus seguido-res acreditavam ser aqueles representados pela geometria), através dos quais possamos determinar se o que sabemos é verdadeiro ou não? Existe, em resumo, alguma fonte universal de autoridade intelectual? Questões como essas serão discutidas posteriormente e, embora possam parecer bastante abstratas, são de extrema importância, pois nos ajudam a com-preender o que estamos fazendo quando, por exemplo, nos engajamos na pesquisa social.

Isto nos remete a outra característica da filosofia. A filosofia sur-ge naquela área do pensamento humano onde nossas idéias e conceitos são levados a seus limites. Referi-me anteriormente às ciências sociais como filho pródigo voltando à filosofia quando surge uma profunda in-certeza a respeito de suas finalidades, quando a imaginação humana pa-rece extraviada, quando indagações de difícil ordenação parecem minar nossas concepções mais caras e consolidadas. É em tempos como esses que os cientistas sociais, ou ao menos alguns deles, começam a falar em "rupturas epistemológicas" e "mudanças de paradigma" ou, de forma mais prosaica, em desenvolvimentos no pensamento humano.

A FILOSOFIA E O PROCESSO DE PESQUISA

Finalizando este capítulo introdutório, tentarei relacionar a$ observações gerais sobre a natureza da filosofia ao processo de pesquisa social.

Em termos amplos, a pesquisa é empreendida a fim de descobrir algo sobre o mundo, um mundo concebido, embora de maneira vaga e tentativa, em termos dos conceitos básicos que caracterizam uma disci-plina, qualquer que seja esta. A imagem popular do pesquisador enfa-tiza o que poderíamos chamar de aspectos manipulativos da função — o tangível, o "remexer" nas coisas, sejam elas compostos químicos, tu-bos de ensaio, microscópios e dispositivos, aceleradores de partícula, fios e transistores, e assim por diante. Este panorama decorre do realce das ciências naturais em nossa cultura e se "remexer" resumisse todo o neces-sário para a pesquisa, pouco interesse teria esta para nós. Embora muitas das descobertas primordiais de nossa época — e de outras — tenham sido imprevistas, até mesmo acidentais, foram estabelecidas e aceitas como descobertas conseguidas através da aplicação de um método, um corpo de procedimentos investidos do poder de produzir conhecimento que chama-ríamos de "científico". Como observa Wallace, os métodos científicos pro-

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curam deliberadamente anular a perspectiva individual do cientista e são propostos como preceitos, de onde decorrerá a possibilidade de concor-dância a respeito de versões específicas do mundo: procura-se, em suma, uma distinção entre o produtor de uma afirmação e o procedimento então empregado.7 Teria sido irrelevante que Galileu simplesmente afirmasse que os planetas percorrem suas órbitas em torno do Sol sem que acrescentas-se afirmações e argumentos sobre como chegou a esta conclusão, sem espe-cificar que procedimentos seguiu, que provas apoiavam sua teoria e como tais provas foram obtidas.

Tendo levantado a questão epistemológica, torna-se menos fácil dizer exatamente em que constituem os procedimentos. Poderíamos simples-mente citar experimentos, testes de hipóteses, verificação pública do mé-todo, enquanto componentes de pelo menos alguns dos meios importantes na produção do conhecimento científico. Entretanto, ante qualquer con-junto de procedimentos que pudessem ser apresentados como os procedi-mentos para a produção de conhecimento cientificamente válido, cabe a nós perguntar: por que justamente esses procedimentos e não outros? Que tipo de garantias — se é que existem — fornecem tais métodos que outros não podem fornecer? Para colocar essas questões no contexto das ciências sociais, é preciso perguntar que elemento existe nos procedimen-tos e métodos utilizados por pesquisadores sociológicos, ou economistas, psicólogos, historiadores etc., que os torna superiores, que lhes dá maior autoridade intelectual frente àqueles usados, digamos, pelo homem ou pela mulher comuns, pelo jornalista, pelo fanático racial, pelo político, revolu-cionário, ou habitante das Ilhas Trobriand. Ou, colocando-se a questão em termos ainda mais fundamentais, em que bases pode ser feita a afirmação de autoridade intelectual?

Não será surpresa descobrir que as respostas a essas perguntas não são simples. As dificuldades aumentam se contemplarmos, mesmo super-ficialmente, o que os pesquisadores sociais fazem quando dizem estar engajados em pesquisa. Seu treinamento normalmente consistirá no domí-nio de técnicas de questionário, de princípios de projetos de surveys e suas análises, das complexidades dos testes estatísticos, regressão e correlação, path analysis, análise fatorial, talvez mesmo programação para computado-res, modelos de computação e assim por diante. É claro que a ênfase dada a diferentes técnicas dependeria da disciplina envolvida; o pesquisador sociológico também teria que conhecer os métodos de observação partici-pante, assim como as técnicas para a coleta de dados mais agregados, o economista deveria conhecer um instrumental matemático e estatístico

7 W. Wallace, The Logic of Science in Sociology, Chicago, Aldine Atherton, 1971, p. 11.

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ainda mais sofisticado, enquanto o historiador provavelmente se preocupa-ria mais com o desenvolvimento de habilidades para a interpretação de vários tipos de dados documentais. A questão é que tais aptidões podem ser adquiridas e utilizadas como se fossem as aptidões de um ofício. Um problema de pesquisa levanta a questão da escolha da aptidão adequada à execução da tarefa indicada dentro dos limites estabelecidos. Trata-se de julgar acuradamente a adequação de um determinado instrumento de pes-quisa ao fornecimento dos dados necessários. Em suma, isto significa tratar os métodos de pesquisa como uma tecnologia. E, sem dúvida, sem tal pos-tura a "ciência normal", para usara expressão de Kuhn, não seria possível.8

A importância das questões filosóficas discutidas surge do fato de que todo instrumento ou procedimento de pesquisa encontra-se inextrica-velmente permeado de compromissos para com versões particulares do mundo e modos de conhecimento do mundo adotados pelo pesquisador que os utiliza. Utilizar um questionário, uma escala de atitudes, assumir o papel de observador participante, selecionar uma amostragem aleatória, medir índices de crescimento populacional, e assim por diante, tudo isso significa estar envolvido em concepções do mundo que autorizam a utiliza-ção desses instrumentos em relação aos fins concebidos. Nenhuma técnica ou método de investigação (e isto é verdadeiro tanto para as ciências natu-rais quanto para as sociais) confere autenticidade a si próprio: sua eficácia, sua própria categoria enquanto instrumento de pesquisa capaz de inves-tigar o mundo depende, em última análise, de justificação filosófica. Quer sejam tratados dessa forma ou não, os métodos de pesquisa não podem ser divorciados da teoria; como instrumentos de pesquisa, eles operam apenas dentro de um determinado conjunto de suposições sobre a natureza da sociedade, a natureza do homem, a relação entre os dois e como ambos podem ser conhecidos. É nesse nível que começamos a encontrar os pro1

blemas e questões filosóficas mencionados anteriormente. A relação da filosofia com as ciências sociais apresentada aqui não

pertence quer à concepção da filosofia como subserviente, quer à concep-ção do "cientista mestre". Na primeira, exposta por Locke entre outros, a filosofia simplesmente visa a afastar obstáculos existentes no caminho do conhecimento, tais como a expressão vaga, os termos obscuros, as no-ções imprecisas e outros. Na segunda concepção, encontrada nos escritos dos grandes construtores de sistemas metafísicos como Descartes, Leibnitz e Hegel, a filosofia busca organizar a totalidade do conhecimento humano em sistemas logicamente articulados. A perspectiva adotada neste livro vê a filosofia diferentemente: é mais do que uma serva e menos do que

8. T. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2ª ed. ampliada, University of Chicago Press, 1970.

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uma senhora, e não há razão para que exista apenas uma concepção válida a respeito.9 Na minha opinião, as questões filosóficas podem surgir do interior de qualquer atividade, embora nem sempre com o mesmo vigor através dos tempos. Os filósofos profissionais não são os únicos capazes de levantar questões filosóficas, embora possam fazê-lo melhor do que outros não versados em aptidões filosóficas. Como já sugeri, as questões filosófi-cas podem surgir de dentro de qualquer disciplina, e ao invés de serem desvinculadas de sua prática diária ou consistirem em especulações distan-tes de um pequeno círculo de eruditos, suas soluções são cruciais para a forma e a índole futura dessa disciplina em particular.

Nossa preocupação aqui gira em torno das questões filosóficas ori-ginárias da pesquisa social. Inevitavelmente, muitas das questões a serem discutidas ultrapassarão as simples técnicas de pesquisa social. Dessa forma, muito da discussão consistirá em determinar quais podem ser os fundamen-tos conhecidos da filosofia da ciência social. Não há como evitar isto, mas tentarei assinalar mais diretamente questões relativas à natureza da pesquisa social. Trata-se de mais do que mero interesse técnico, como po-deria ser numa concepção subserviente da filosofia. Para demonstrá-lo, basta lembrar a falta de consenso no seio das ciências sociais, atingindo proporções crônicas em algumas delas, quanto a serem ciências, pseu-dociências, ciências imaturas, ciências pluriparadigmáticas, ciências morais, e assim por diante. Desde a sua aparição na cena intelectual, elas vêm sendo acompanhadas por um contínuo sentimento de fracasso em razão de sua incapacidade para produzir análises da vida social tão convincentes quanto aquelas produzidas pelas ciências naturais do mundo material. Apesar da economia, nós ainda temos crises econômicas, acusação algu-mas vezes lançada aos políticos por não escutarem, ou por não terem a coragem de implementar as descobertas da ciência econômica. Por sua vez, os políticos acusam os cientistas sociais de não tratarem dos "pro-blemas da nossa época", e assim prosseguem as disputas. O status das ciências sociais não se encontra estabelecido, como já afirmei, nem mesmo dentro de disciplinas individuais. No âmbito da sociologia, por exemplo, têm surgido contínuos debates sobre se a sociologia pode ser científica à maneira das ciências naturais — e isso gerou um exame do que seja a ciên-cia natural como forma de conhecimento. As respostas a tais questões são importantes para a justificação intelectual de métodos de pesquisa e para o status de autoridade das conclusões obtidas através da sua utilização.

9 T. Benton, Philosophical Foundations of the Three Sociologies, Routledge & Kegan Paul, 1977, cap. 1. Benton também discute detalhadamente a relação entre a filosofia e a ciência social.

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Poder-se-ia dizer que minha preocupação gira em torno da metodolo-gia das ciências sociais, ou seja, um exame dos meios de obtenção de conhe-cimento do mundo social. No âmbito dos métodos de pesquisa, tentarei abordá-los através das afirmações que podem ser feitas sobre o conheci-mento que produzem. Para isto, é preciso examinar as teorias do conhe-cimento nas quais se baseiam e chegar a algumas conclusões a respeito de sua plausibilidade. Começarei, nos dois capítulos seguintes, por discutir o que chamo de "ortodoxia positivista" uma vez que, enquanto teoria do co-nhecimento, esta tem sido a principal influência nas ciências sociais. Exa-minarei em seguida uma perspectiva alternativa que sugere conclusões bastante diferentes sobre a natureza das ciências sociais e as formas de co-nhecimento às quais estas podem, ou devem, aspirar.

Uma palavra final. Minha formação é a de sociólogo. Assim, segundo o princípio de que um autor deve escrever de acordo com suas forças, tais como são, a maior parte dos exemplos e idéias aqui presentes originam-se da sociologia. No entanto, não se deve pensar que outras ciências sociais estão excluídas das questões que serão discutidas; muito pelo contrário. Através de todo o livro, a não ser quando claramente especificado em ou-tro sentido, usei o termo "ciências sociais" por conveniência e advirto o leitor de que o status científico dessas disciplinas é uma das preocupações básicas na discussão que se segue.

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A O R T O D O X I A P O S I T I V I S T A

Uma advertência a respeito do título deste capítulo. Os críticos da ciência social positivista, entre os quais considero-me incluído, como todos os críticos, têm a tendência de atacar a oposição como se esta fosse de caráter monolítico, além de totalmente estúpida. Embora seja necessário dar uma visão sumária da variedade de positivismos, deve-se lembrar ao leitor que existe muito mais a dizer sobre o assunto do que é possível mencionar no pequeno espaço deste volume. Além disso, é bom esclarecer que aqui-lo que chamo de positivismo tem freqüentemente outros rótulos: "na-turalismo", "empirismo", "behaviorismo" e até mesmo "ciência" são alguns dos prediletos. Para confundir ainda mais as coisas, alguns destes são usados em determinadas ocasiões para indicar pontos de vista antiposi-tivistas. Positivismo é também um termo associado a diversas outras esco-las filosóficas bastante diferentes. No entanto, tendo em mente o teme-rário princípio da rosa, de que esta seria a mesma com qualquer outro nome, continuarei a usar o rótulo que escolhi uma vez que é o mais co-mum, chamando a atenção para as diferentes abordagens intelectuais, na medida do necessário.

Falo em "ortodoxia" porque, ao menos em algumas de suas ver-sões, o positivismo constitui a epistemologia filosófica que atualmente mantém o domínio intelectual no seio das ciências sociais. Não que este domínio seja igualmente seguro em todas estas: na sociologia, por exem-plo, sua autoridade é menos do que absoluta ao passo que na economia, segundo suponho, não é seriamente contestada. Na ciência política, o cha-mado "movimento comportamental" visa a dar a esta disciplina um es-tatuto "científico" bem, mais recente, em relação ao de muitas outras ciências sociais. Desde o advento da psicologia experimental, o positivismo nunca foi seriamente contestado na psicologia, já que a psicanálise foi posta de lado. A história, também, está começando a entrar em cena em resposta ao sucesso putativo das ciências sociais. Entretanto, a autoridade intelectual do positivismo não surgiu da noite para o dia, apesar da impres-são algumas vezes dada pela história das idéias pelo uso de termos como "uma revolução no pensamento". Essa autoridade foi decorrente de um debate intelectual travado ao longo de muitos anos.

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O BACKGROUND INTELECTUAL

Assim como se pode dizer que todos os seres humanos atualmente vivos devem a Adão sua primeira origem, pode-se também dizer que o progenitor intelectual da epistemologia positivista contemporânea provavelmente en-contraria algum antigo filósofo grego no início de sua tabela genealógica. As origens históricas mais próximas datam do florescer do pensamento europeu que teve lugar nos séculos XVI e XVII. Muito embora a perspec-tiva da Renascença e do Iluminismo relativa às trevas intelectuais da Idade Média tenha sido exagerada e mesmo caricaturada, é certo que os séculos seguintes presenciaram tremendas mudanças no pensamento científico e social. Em suma, o pensamento europeu libertou-se gradualmente da prisão teológica erigida pela aliança entre o absolutismo e a Igreja Católica Roma-na. Filósofos naturalistas como Newton viram seus achados, primordial-mente, mais como religiosos do que como científicos, como um meio de melhor compreender a mente de Deus e sua criação. Porém a visão alegó-rica do mundo dos tempos medievais foi substituída por um ceticismo quanto à possibilidade da Natureza ser, de modo tão simples, explicada pela referência à Bíblia ou ao dogma religioso. Embora os elementos reli-giosos ainda mantivessem sua força, o terreno estava sendo preparado para uma revisão secular radical das tradicionais imagens teológicas do mundo natural e social.1

Duas figuras projetam-se de maneira marcante, Bacon (1561-1626) e Descartes (1596-1650). O primeiro representa o legado aristotélico do em-pirismo como fonte do conhecimento humano, enquanto que o segundo reviveu e revigorou a tradição racionalista platônica. Ambos buscavam um método intelectual que pudesse superar o ceticismo e proporcionar uma nova certeza para as idéias a respeito da Natureza.

Bacon defendeu o valor da experiência, dos experimentos, da indu-ção e da observação exaustiva como formas de proporcionar uma base con-fiável para as idéias científicas, em lugar do método a priori da escolástica medieval. Descartes, por outro lado, depositava sua fé nas certezas da matemática como o instrumento fundamental do conhecimento científico. Para ele, os princípios matemáticos eram intemporais e imutáveis e, por-tanto, consistiam a linguagem mais adequada para a expressão das leis da Natureza. Embora as doutrinas que ambos esposassem fossem extrema-mente diferentes em muitos aspectos, possuíam algo em comum: a busca

1 C.L. Becker, The Heavenly City of the Eighteenth Century Philosophers, Yale University Press, 1932, ainda constitui um dos melhores estudos sobre as conseqüên-cias intelectuais dessas mudanças na sociedade européia; R. Nisbet, The Social Philos-ophers, Heinemann, 1974, é também uma boa fonte.

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pelos fundamentos do conhecimento humano. Descartes e outros filóso-fos racionalistas como Spinoza e Leibnitz, apesar de não negarem o valor da experiência sensorial, acentuavam a função da dedução lógica a partir de premissas auto-evidentes, ao passo que Bacon, Locke, Hume e outros filósofos empiristas davam prioridade à experiência sensorial. Embora a observação precisa e a teoria logicamente sistemática fossem essenciais para o desenvolvimento da ciência durante e após esse período, o positivismo enquanto interpretação específica ou explicação filosófica do conheci-mento científico colocava muito mais ênfase no papel da experiência sen-sorial como o fundamento seguro do conhecimento humano.

Nas ciências sociais, a primeira voz resoluta a proclamar o método positivista seria ouvida através dos estudos de Auguste Comte no início do século XIX. Foi ele quem cunhou os termos "filosofia positivista" e, inci-dentalmente, "física social" ou "sociologia". A obra de Comte foi influen-ciada pelos sérios ataques filosóficos contra a metafísica empreendidos por Hume e outros ainda no século XVIII, assim como pelas novas idéias de progresso e de ordem que antecederam a Revolução Francesa. Para Comte, a filosofia tinha por função expressar a síntese do conhecimento científi-co; sua própria postura filosófica determinava a necessidade de se dar uma atenção cuidadosa à realidade empírica, com um método preciso e certo, baseando-se as leis naturais na observação empírica segura. Para ele, as ciências sociais e as naturais eram aparentadas, compartilhando da mesma forma epistemológica e livres da impureza especulativa da metafísica.

A partir do século XIX, a obra de Comte tem sido amplamente con-siderada como de mero interesse histórico, mas seu espírito foi preservado através das obras de John Stuart Mil!, Herbert Spencer, Emile Durkheim e muitos outros; está representada de forma difusa no estilo e comportamen-to das ciências sociais de hoje. Talvez a afirmação mais importante de Comte seja a de que a sociedade pode ser estudada utilizando-se a mesma lógica de investigação usada pelas ciências naturais. A aceitação explícita de Com-te de uma unidade de métodos entre o natural e o social foi tão oportuna quanto funesta. E isto porque esta postura deu considerável ímpeto e for-ça à concepção de que a explicação dos fenômenos sociais não era, em princípio, diferente da explicação dos acontecimentos naturais. Os fenô-menos estavam sujeitos a leis invariáveis, tanto no mundo humano quanto no natural. As diferenças entre estes decorriam de seus respectivos objetos de estudo e consistiam pouco mais do que obstáculos a serem ultrapassa-dos através do desenvolvimento de métodos de pesquisa apropriados. O próprio Comte acentuou a importância da experimentação indireta e do método comparativo. Mais profundamente do que isto, a idéia estimulava uma concepção determinista do homem e da sociedade, jogando efetiva e sutilmente com fatores considerados especificamente humanos: livre-arbí-trio, acaso, escolha, moralidade, emoções e similares. A vida social humana

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era simplesmente o resultado de uma coalescéncia de forças interagindo de forma a produzir uma seqüência especifica de comportamento. Também a história era o resultado de forças semelhantes, um tema com variações em que fatores humanos e outros fatores combinavam-se paralela e sucessiva-mente para se expressarem através da sociedade.2

Em todo o século XIX esta concepção foi obtendo autoridade cres-cente, sempre reforçada pelo aparentemente admirável progresso das ciên-cias naturais e suas aplicações. Os marcos desta progressão vêm a ser bem conhecidos. O mais importante deles foi a publicação, em 1'859, de A Ori-gem das Espécies, de Darwin, que deu ao mundo uma exposição sistemá-tica da idéia de que a humanidade era, irremediavelmente, parte da Nature-za, sendo sujeita às mesmas leis de processo, desenvolvimento e seleção. Pouco tempo depois as ciências sociais começaram a usar tais percepções para desenvolver teorias da sociedade humana. Herbert Spencer, por exem-plo, utilizou-se explicitamente da obra de Darwin para justificar seus pró-prios métodos e teorias.3 Ao final do século, a concepção científico-deter-minista do positivismo estava firmemente impregnada nas ciências sociais.

Trata-se agora de perguntar: quais foram os envolvimentos que esta concepção da ciência e seu conhecimento trouxeram para as ciências so-ciais? Que procedimentos e modelos de investigação tal postura sugeria e justificava? Que tipo de conhecimento, portanto, seria o objetivo especí-fico de uma ciência social?

OS ELEMENTOS DO POSITIVISMO

Segundo Giddens, a "filosofia positivista" em seu sentido mais amplo co-bre aquelas perspectivas que constituem algumas ou todas as seguintes afir-mações:4 Em primeiro lugar, a tese assegura que a realidade consiste essen-cialmente naquilo que os sentidos podem perceber. Em segundo, a filosofia enquanto disciplina separada é parasitária em relação às descobertas da ciência. Juntamente a isso, verifica-se uma aversão à metafísica, questio-nando-se seu lugar de direito na investigação filosófica propriamente dita. Como uma filosofia, portanto, o positivismo preocupa-se fundamentalmen-te em estabelecer os limites do conhecimento, assim como o caráter deste.

2 Ver, a este respeito, S. Toulmin e J. Goodfield, The Discovery of Time, Hutch-inson, 1965, especialmente o Cap. 5. 3 Algo do impacto da obra de Darwin sobre o pensamento social na segunda metade do século XLX está indicado pelo desejo de Marx de lhe dedicar O Capital 4 A. Giddens, "Positivism and its Critics", em seu Studies in Social and Political Theory, Hutchinson, 1977, PP- 28-9. Trata-se de excelente discussão sobre muitos dos principais temas metodológicos em vigor no decorrer dos últimos 150 anos, nas ciências sociais.

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A petulante investida de Hume contra a metafísica bem revela este ponto e o espírito mais geral do positivismo:

Examinemos um volume qualquer; de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo; perguntemos: este contém algum raciocínio abstrato relativo a quan-tidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental relativo a questões de fato e existência? Não. Atiremo-lo então às chamas: pois nada po-de conter além de sofismas e ilusões.5

Em terceiro lugar, as ciências naturais e sociais compartilham de um mes-mo fundamento lógico e metodológico. Isto não significa que comparti-lhem dos mesmos procedimentos, uma vez que seus respectivos objetos de estudo requerem, pragmaticamente, métodos de investigação bastante diversos. Em quarto, há uma distinção fundamental entre fato e valor. A ciência trata do primeiro, enquanto que o segundo representa uma ordem de fenômenos bem diferentes, além do âmbito da ciência. Conforme vere-mos posteriormente como sendo um dos temas recorrentes na filosofia da ciência social, isto não implica necessariamente o dualismo de espírito e matéria. 0 positivismo, em outras palavras, rejeita a noção de que todas as qualidades humanas transcendem o alcance da compreensão científica. Embora o conhecimento científico tenha seus limites, estes não excluem o conhecimento da suposta vida "interior" ou "espiritual" da humanidade. Como veremos, Durkheim, por exemplo, tentou forjar uma síntese entre idealismo e materialismo. Mas isso será comentado posteriormente.

Esta exposição dos principais elementos do pensamento positivista naquilo que concerne especificamente às ciências sociais não pode, obvia-mente, fazer plena justiça às várias e importantes nuanças representadas por suas diversas escolas. Segundo a nossa perspectiva de pesquisa social, as questões importantes giram em torno do que o positivismo implica em relação aos métodos de se estudar a sociedade, de qual seja, segundo ele, o conhecimento adequado a ser obtido deste estudo e, igualmente impor-tante, dos critérios apresentados para avaliar tal conhecimento. Esses aspec-tos são muito amplos e há muitos estilos diferentes de pesquisa social con-sistentes com as hipóteses do vasto domínio do positivismo. Entretanto, examinemos um pouco mais as imagens inerentes ao positivismo, enquanto sistema de pensamento com pretensões a autorizar versões específicas do mundo, tanto natural quanto social.

A reação contra o pensar metafísico vinculou-se a um forte precon-ceito em favor do conhecimento que tratasse de fatos sistematicamente descobertos, vigorosamente analisados e teoricamente significativos. A fim

5 D. Hume, Enquiry Concerning Human Understanding, Longmans, 1875, Sec. XII, Parte III, org. T.H. Green e T.H. Grose.

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de estabelecer e de manter a distinção entre conhecimento empiricamente fundamentado e mera especulação, eram necessários critérios de demarca-ção. O positivismo reconhecia apenas dois tipos de conhecimento que pu-dessem pretender a uma autoridade legítima, o empírico e o lógico: o primeiro representado pelas ciências naturais, o segundo pela lógica e pela matemática. O privilégio pleno era dado ao empírico. Para tanto, o positi-vismo inspirava-se naquela tradição filosófica que afirmava virem todas as nossas idéias, de um modo ou de outro, da experiência: qualquer idéia que não fosse declaradamente derivada da experiência não seria uma idéia ge-nuína. Esta noção depende fortemente de uma interpretação sensorial da experiência, isto é, uma interpretação que postula a existência independen-te de um mundo exterior que nos é conhecido através de suas ações em nossos sentidos. O conhecedor contribui muito pouco para a organização de tal experiência e para o conhecimento que esta fornece do mundo exte-rior. Esta concepção constituiu o alicerce sobre o qual a ciência construiu seu edifício e foi acolhida por Comte e seus seguidores como o fundamento para uma ciência social. As crenças sobre o mundo exterior só seriam, se-gundo estes, dignas de serem descritas como "conhecimento" se pudes-sem ser testadas através da experiência. Não havia conhecimento a priori da experiência o qual, ao mesmo tempo, fosse informativo a respeito do mundo.

Embora essa visão da fonte do conhecimento tivesse alguma plausi-bilidade no sentido de corroborar o conhecimento das ciências naturais, suas fraquezas se evidenciavam no que se referisse à vida social humana. A noção de fato especialmente quando colocada em oposição ao tipo de entidades invocadas pelos metafísicos, possuía fortes conotações do mun-do material, o mundo da matéria permanente, fixa, tangível. Neste sentido, o positivismo precisou superar uma distinção expressa de diversas maneiras entre "coisas humanas" e "coisas materiais". A distinção esboçada aqui de modo tão simples teve uma importância marcante na história do pensamen-to por conter, como certamente o fazia, implicações legais, religiosas, éti-cas e políticas. Segundo essa distinção, o humano, o espiritual, o mental constituíam uma ordem de fenômenos diversa da ordem material, não sen-do possível aplicar as mesmas formas de entendimento para ambas. Esta, é claro, era precisamente a posição que os positivistas tinham que invalidar, embora tal não fosse uma tarefa fácil. Alguns viriam a negar totalmente a distinção, reduzindo o tipicamente humano a manifestações de natureza material. Num único golpe, a vida humana era reduzida a uma ramificação da química, da biologia, ou de alguma psicologia especificamente compor-tamental. Outros contentavam-se em elaborar grandiosos sistemas compre-endendo a biologia, a psicologia, a climatologia, a geografia e a sociologia na suposição de que sendo estas, e outras, partes da vida humana, todas eram importantes para compreender tal vida em sua totalidade. Muitos,

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entretanto, não seguiam qualquer dessas vias; ao invés disso, alegavam que os fenômenos humanos e sociais eram de fato tão reais quanto os fenô-menos materiais e, assim, passíveis de serem conhecidos com o uso do mé-todo científico, da mesma maneira como o mundo material era conhecido.

As dificuldades para provar tal concepção eram muitas: os fenôme-nos do mundo material, segundo o próprio bom senso, pareciam ser de natureza e caráter independentes do observador, ao passo que muitos dos fenômenos humanos pareciam ser devidos ao capricho, fantasia ou imagi-nação. Seria possível substanciar a crença em deuses, sistemas de magia, emoção, fés religiosas, códigos de leis, lendas, opinião pública, poesia e assim por diante, da mesma forma que se fazia em relação à Lua, estrelas, esqueletos, gases, elementos químicos etc.? Possuem eles os mesmos atri-butos de permanência, durabilidade, independência de volição e percep-ção humanas apresentados pelos fenômenos do mundo exterior? Estas eram as perguntas que precisavam ser respondidas antes que o positivismo pudesse, de forma satisfatória, postular que o mundo social, como o físi-co, operava de acordo com leis precisas e fixas.

Uma vez aplicada ao âmbito dos assuntos humanos, esta visão mos-trar-se-ia alarmante e, nas mãos de muitos de seus fornecedores, revolucio-nária. A questão era: o que, no mundo social, correspondia aos "duros fa-tos" da Natureza? E, mais ainda, que procedimentos seriam apropriados para descobrir e estudar tais fatos? E, finalmente, seguindo-se a essas ques-tões, quais as leis que poderiam ser descobertas e que corresponderiam às leis da Natureza descobertas pelos cientistas naturais? No início do sé-culo XIX havia alguns indícios favoráveis no ar. Alguns estudiosos começa-vam a levar a sério a observação (agora bastante evidente) de que a ação humana não é acidental mas que se conforma a certos padrões previsíveis. Um dos grandes achados, no final do século XVIII, foi a formulação de Adam Smith de que os indivíduos, no exercício de suas próprias preferên-cias particulares, poderiam produzir regularidades sociais em larga escala, como que controlados por uma "invisível mão".6 A própria noção de so-ciedade, segundo se percebeu, supõe marcantemente um conjunto de fenô-menos os quais, embora envolvendo indivíduos com todas as suas particula-ridades, caprichos e fantasias, não deixa de exibir regularidades em larga escala tão reais e previsíveis, de alguma forma, como os indivíduos são únicos e diferentes. Em suma, surgiram idéias em torno das quais tornou-se plausível conceber a sociedade como um nível de realidade sui generis. O problema era explicar como. Havia, e ainda há, muitos enigmas nesse sen-tido e cabe, neste ponto, examinar mais detalhadamente uma das respos-tas propostas a tais questões e a outras correlatas. A intenção é ilustrar

6 A. Smith, The Wealth of Nations, org. A. Skinner, Penguin Books, 1970.

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algumas das questões fundamentais enfrentadas por uma ciência social positivista através da obra de alguém que foi profundamente influente na colocação dos termos de tal abordagem, Emile Durkheim. Não se trata de supor que a obra de Durkheim forneça as respostas para todos os pro-blemas. Isto seria absurdo. Mas ele sem dúvida fez muito, pelo menos, no sentido de identificar os problemas. Como é talvez inevitável, o corpo da obra de Durkheim exibe muitas contradições, inconsistências, raciocí-nios duvidosos e outras dificuldades, mas ele de fato exemplifica a ciência social positivista em seu melhor espírito.7

O POSITIVISMO DE DURKHEIM

Durkheim foi o primeiro sociólogo a partir de Comte - com quem ele teve uma considerável dívida intelectual - a justificar fervorosamente a sociolo-gia como uma disciplina autônoma caracterizada por rigor, precisão e mé-todo científico. Durkheim foi um grande construtor de sistema no molde clássico, abarcando discussões filosóficas sobre a natureza da sociologia, assim como investigações mais substanciais a respeito da divisão do traba-lho, suicídio, religião e educação. Sua obra representa uma ponte entre os séculos XIX e XX. Muitas das idéias de Durkheim, inclusive a centralidade da divisão do trabalho, o reconhecimento de que a sociedade representava um nível específico de realidade, de que a sociedade consistia fundamen-talmente numa ordem moral, tiveram suas raízes em Comte e seus contem-porâneos. Outros estudiosos, como J .S. Mill, Spencer e Tönnies, também influenciaram as idéias de Durkheim. Entretanto, embora Durkheim fosse realmente um filho do pensamento social do século XIX, ele viria a modifi-car essa tradição de um modo importante e essencial.

Durkheim insistia com todo o vigor possível que a sociedade era um fenômeno moral na medida em que modos coletivos de pensar, perceber, sentir e de agir incluíam elementos de coação e obrigação constituindo, assim, uma consciência moral coletiva. Isto, afirmava ele, expressava-se atra-vés da religião, da lei, da divisão do trabalho e da própria institucionaliza-ção. No entanto, como um verdadeiro filho do positivismo, ele desejava comprovar como os métodos da ciência eram provavelmente superiores a outros métodos de investigação e à filosofia especulativa no estudo da asso-

7 Além dos próprios escritos de Durkheim, encontram-se outros estudos úteis in R. Fletcher, The Making of Sociology, Vol. II, Developments, Nelson, 1973, Parte 2; R. Aron, Main Currents of Sociological Thought, II, Penguin Books, 1970. Uma críti-ca interessante embora difícil é P.Q. Hirst, Durkheim, Bernard and Epistemology, Routledge & Kegan Paul, 1975, esp. Parte 2; também a excelente biografia da autoria de S. Lukes, Emile Durkheim, His Life and Work, Allen Lane, 1973.

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ciação moral que constituía a sociedade. Durkheim estava, assim, tentando forjar uma nova unidade entre o idealismo e o materialismo. O primeiro grupo de filosofias defendia uma dualidade rigorosa entre a Natureza e o homem rejeitando, em outras palavras, a idéia positivista de uma unida-de de método entre as ciências naturais e as humanas. Durkheim, por sua vez, desejava reter a concepção espiritual e moral do homem porém usar os métodos das ciências naturais no estudo deste sem as implicações materia-listas dessas ciências, levando a uma redução do material daquilo que é distintamente humano. Nisto reside a importância de seus esforços para estabelecer a sociologia como uma disciplina autônoma definida por seu objeto de estudo, evitando a tendência existente em grande parte do pen-samento do século XIX de reduzir o moral e o espiritual a epifenômenos de forças materiais. Os fenômenos morais tais como a lei, a religião, a mo-ralidade, poderiam ser o objeto de uma ciência natural do homem se fossem examinados de modo correto. "O objetivo é trazer o ideal, de várias for-mas, para a esfera da Natureza, com seus atributos distintivos intactos."8

Essas aspirações trouxeram a Durkheim dois problemas correlatos, ambos dentro da estrutura do positivismo: estabelecer a realidade do social e des-cobrir modos através dos quais esta realidade possa ser conhecida.

A ciência, para Durkheim, era o estudo das "coisas" e preocupava-se, em primeira instância, em descrevê-las e classificá-las com precisão e, pos-teriormente, em explicar os modos pelos quais estas eram relacionadas. Aqui Durkheim instaura o contraste entre "coisas" e idéias:

As coisas incluem todos os objetos de conhecimento que não podem ser conce-bidos pela atividade puramente mental, aqueles que requerem para a sua con-cepção dados exteriores á mente, provenientes de observações e experimentos, aqueles que são elaborados desde as características mais externas e imediata-mente acessíveis até as menos visíveis e mais profundas.9

Uma característica extremamente importante das "coisas" na realidade exterior é que estas não são sujeitas à nossa vontade, resistem a nossas ten-tativas subjetivas de mudá-las, provando, segundo Durkheim, que sua exis-tência independe de nossas idéias sobre elas.

As ciências, assim, lidam com "coisas" e a sociologia e as ciências so-ciais não devem constituir exceção a isto. Portanto, deixando de lado as propriedades das "coisas" em geral, examinemos agora o modo pelo qual Durkheim estabelece a concretitude do social. "Os fatos sociais" assumem

8 E. Durkheim, Sociology and Philosophy, trad. D.F. Pocock, Cohen & West, 1953, p. 96. 9 E. Durkheim, The Rules of Sociological Method, org. G.E.C. Catlin, Nova York, The Free Press, 1966, p. xliii.

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as propriedades das "coisas" em geral: eles são exteriores a nós, são resis-tentes à nossa vontade e nos restringem. Para ilustrar, Durkheim cita a lín-gua francesa, regras morais, organizações econômicas, leis, costumes: todos esses fenômenos sociais que independem dos indivíduos e os restringem.

Aqui, então, está uma categoria de fatos com características bastante distin-tivas: trata-se de modos de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e do-tados de um poder de coerção, em razão do que estes o controlam... o termo "social" refere-se a eles exclusivamente, pois tem uma significação distinta ape-nas se designa exclusivamente os fenômenos não incluídos em qualquer das categorias de fatos já estabelecidas e classificadas. Esses modos de pensar e agir, portanto, constituem o domínio adequado da sociologia.10

Tais fatos não são reduzíveis a fatos biológicos ou psicológicos, pois não com-partilham de suas características. "Os fatos sociais", entretanto, são "coi-sas", uma vez que possuem exterioridade, coerção, difusão e generalidade.

A concepção de Durkheim a respeito da sociedade é realista, basean-do-se na suposição de que existe, no âmbito da Natureza, uma entidade de-finida em termos de um sistema de relações responsável por gerar normas e crenças coletivamente mantidas.11 A sociedade, assim, é uma realidade "em si" e os "fatos sociais" existem "de forma autônoma", à parte das ma-nifestações pessoais dos indivíduos. A interação e a associação de indiví-duos dão lugar a fenômenos emergentes análogos ao modo como os elemen-tos químicos se combinam para produzir uma nova síntese. Isto acarreta a conseqüência de restringir a explicação de "fatos sociais" a outros fatores sociais no mesmo nível de complexidade.

A sociedade não é uma mera soma de indivíduos . . . o sistema formado pela associação destes representa uma realidade específica que tem suas próprias características. . . . È, portanto, na natureza desta individualidade coletiva . . . que se deve buscar as causas imediatas e determinantes dos fatos que ali aparecem.12

A tarefa do cientista social, como entendida por Durkheim, é descrever as características essenciais dos fatos sociais e demonstrar como eles vêm a existir, relacionam-se entre si, atuam reciprocamente e funcionam em con-junto para formar todos sociais coordenados.

Deste modo, Durkheim procurou rejeitar o dualismo entre idéias e matéria, mas de forma a preservar as qualidades das idéias, sem reduzi-las a produções meramente materiais. As relações sociais e os fenômenos engen-

10 Ibid., pp. 3-4. 11 Ver, a respeito do "realismo relacionai ou associativo" de Durkheim, H. Alpert, Emile Durkheim and his Sociology, Columbia University Press, 1939, pp. 151-7.

12 Durkheim, Rules, pp. 103-4.

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13 Ibid., p. 27.

drados por estas são fatos, possuem uma realidade, mas não uma realidade material. Não existem à parte dos indivíduos ou em um único indivíduo, mas nos indivíduos associados. Ao agirem juntos, os indivíduos produzem símbolos lingüísticos, crenças religiosas, códigos morais, leis, compartilha-dos pela maior parte dos membros de uma determinada sociedade ou gru-po. Assim, quando os indivíduos pensam e agem sobre essas idéias ou "re-presentações" coletivas, eles o fazem não como indivíduos isolados mas como membros de um todo cultural mais amplo. Além disso, assim fazen-do, produzem uma estrutura ou modelo que fornece ao grupo ou socieda-de sua morfologia característica. A vida social consiste de "representações" que são estados da "consciência coletiva", distinta da consciência indivi-dual de seus membros, e regida por diferentes leis.

Tendo estabelecido a realidade do social, a tarefa seguinte de Dur-kheim foi mostrar como esta realidade pode ser conhecida como uma ciên-cia social. Com este fim, um de seus mais famosos estudos foi devotado à elucidação dos procedimentos para o estudo e a explicação definitivos dos "fatos sociais". Algumas noções amplas já estavam implícitas na concep-ção de "fatos sociais" como "coisas", mas havia detalhes essenciais de método e metodologia surgindo em virtude da natureza específica do so-cial. Sua concepção de "fatos sociais" como exteriores ao indivíduo o le-vou a rejeitar a opinião de que uma explicação satisfatória de um fato social deveria descrever seu uso atual na sociedade e, como corolário, ex-plicá-lo dizendo que este fato surgira deliberadamente a fim de realizar tais usos. Em suma, ele rejeita qualquer forma de explicação teleológica; os "fatos sociais" requerem explicação por causas que são deterministas e não intencionais.

Já observamos anteriormente que Durkheim, em seus esforços por estabelecer uma garantia intelectual para as ciências sociais, teve que superar a concepção dualista que distinguia nitidamente "idéias" e "matéria". Este passo foi necessário a fim de colocar o âmbito das "idéias" sob o olho in-quiridor da ciência. A ciência, para Durkheim, lidava com aquilo que é "sujeito à observação".13 Cada ciência preocupa-se com uma espécie dis-tinta da realidade que constitui seu domínio exclusivo. Entretanto, a ob-servação científica não era um assunto simples. As "coisas", ou neste caso específico os "fatos sociais", não apenas aparecem ante nossos sentidos. Ao contrário disto, o que aparece diretamente ante nossos sentidos é fre-qüentemente enganoso, mesmo ilusório. Os membros da sociedade, embora sujeitos aos "fatos sociais", tenderiam muito provavelmente a substituir as "representações" dos "fatos sociais" pela coisa real. Essas "notiones vul-gares" ou "idola" são ilusões que adulteram os processos sociais reais e são

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essencialmente produtos da mente "como um véu suspenso entre a coisa e nós próprios".14

Para construir fundamentos sólidos, a ciência deve afastar-se de tais ilusões mentais e revelar o real. O cientista, assim, precisa estar preparado para abordar o mundo social como se o estivesse vendo pela primeira vez; "deve sentir-se na presença de fatos cujas leis são tão ignoradas como eram as leis da vida, antes da era da biologia; deve estar preparado para desco-bertas que o surpreenderão e perturbarão".15 Assim, Durkheim traça um nítido contraste entre o que poderíamos chamar de "categorias do senso comum", aqueles conceitos usados pelos membros da sociedade para des-crever e explicar o mundo social como este se lhes apresenta, e "conceitos científicos".

Com esta distinção Durkheim insiste que, no sentido científico, os membros da sociedade não sabem o que os fenômenos sociais realmente são: eles não sabem o que são Estado, soberania, liberdade, democracia, so-cialismo, religião. Isto não significa que não tenham idéias formadas sobre isso tudo, mas sim que as idéias são vagas e confusas quanto à real natureza das coisas. Especialmente esclarecedoras, a esse respeito, são suas observa-ções ao definir o "suicídio" cientificamente:

Devemos indagar se, dentre as diferentes variedades de morte, algumas pos-suem qualidades comuns, bastante objetivas para serem reconhecíveis por to-dos os observadores honestos, bastante específicas para não serem encontradas em outros lugares e também suficientemente semelhantes àquelas oridinaria-mente denominadas suicídios para que retenhamos o mesmo termo sem nos afastarmos do uso comum.16

Em outras palavras, o uso comum é uma fonte de conceitos sociais e cien-tíficos mas é vago, freqüentemente obscuro, ambíguo, grosseiro e, conse-qüentemente, necessita de clarificação. A fim de desvendar esta natureza real, o cientista social deve tratar desses fenômenos como "coisas" e livrar-se de preconceitos e de outras concepções prévias que obstruam o conhe-cimento científico. Os fatos sociais devem ser observados "de fora", des-cobertos objetivamente como os fatos físicos são descobertos.17

Durkheim realmente quer dizer que a ciência existe simplesmente porque os cientistas adotam uma específica atitude perante o mundo, co-mo sua máxima "os fatos sociais devem ser considerados como coisas" pa-

14 Ibid.,p. 15. 15 Ibid., p. xiv. 16 E. Durkheim, Suicide, trad. J.A. Spaulding e G. Simpson, Routledge & Kegan Paul, 1952, p. 42. [Ed. brasileira: O Suicídio. Rio, Zahar, 1982.) 17 Aron, op. cit., pp. 70-1.

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18 Durkheim, Rules, p. 42. 19 Aron, op. cit., p. 74. 20 Durkheim, Suicide, p. 44.

rece indicar. Ele quer dizer que, desta forma, a natureza real do mundo torna-se conhecida. Isto lhe traz o problema de como devemos reconhecer os "fatos sociais" usando os métodos que ele advoga. Já existem algumas indicações fornecidas em sua noção de "coisa" e sua incorporação ao con-ceito de "fato social": este é geral, exterior, coletivo e coercivo. Infeliz-mente, o cientista tem que começar apenas com as aparências, as "ilusões", não com a apreensão direta do fato social; assim, a primeira tarefa do cien-tista, como já foi mencionado, é livrar-se de concepções prévias. A segunda é procurar os fenômenos que apresentam as características de "coisas" e a terceira é defini-los. A definição é essencial para a epistemologia de Dur-kheim, pois significa "estabelecer contato com as coisas".18 Até este pon-to, o investigador está lidando apenas com as características exteriores da-das à percepção, pois elas são o único indício acessível para a realidade.

Entretanto, uma definição científica de um fenômeno é construída pelo agrupamento de características comuns exteriores e "objetivas" e, uma vez formulada uma definição, é preciso incluir na investigação to-dos aqueles fenômenos adequados a ela. Para definir crime, por exemplo, observa-se de início que o crime pode ser reconhecido por sinais exteriores específicos. O que distingue o crime de outros fenômenos sociais é que este provoca uma reação social, a punição.19 A punição não é um ato indi-vidual, embora os indivíduos sejam os agentes operativos. Trata-se de uma questão social corporificada em códigos legais e morais e, como tal, é um sinal de que a "consciência coletiva" está envolvida de algum modo. De forma semelhante, o "suicídio" é definido como "todos os casos de morte resultantes direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo da pró-pria vítima, ato este cujas conseqüências a serem produzidas ela conhe-ce".2 0 Esta definição, segundo Durkheim, assinala um grupo homogêneo, distinguível de outros e delimita um campo para a investigação.

Durkheim invoca um axioma essencial à sua epistemologia, o princí-pio da causalidade, para passar da exterioridade aos fenômenos reais. Ele havia se interessado intensamente pelos trabalhos metodológicos de J.S. Mill, concordando com este quanto às dificuldades enfrentadas pelas ciên-cias sociais ao planejar experimentos adequados para testar suas teorias. Além disso, o próprio conceito de Durkheim de "fatos sociais" como "coi-sas" dava margem a que essas parecessem estar além da possibilidade de manipulação deliberada sob condições controladas. Ele insistia, no entan-to, no seguinte: já que a marca distintiva da ciência é que esta lidava com causas, tal devia ser também o procedimento normal da sociologia. A expli-

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cação dos fatos sociais deveria ser testada na suposição de que um dado efeito sempre procede de uma única causa apesar de que, na realidade, es-tes fatos freqüentemente se confundiam de modos complexos. Assim, uma vez definida uma categoria de fatos sociais da forma recomendada, será então possível encontrar uma única explicação para esta. É, portanto, pos-sível identificar subespécies ou tipos de suicídio em termos de suas dife-rentes subespécies de causas.

Não sendo possível, nas ciências sociais, o experimento direto pa-ra estabelecer causas, é necessário fazer uso do método comparativo. Para Durkheim isto significava, efetivamente, a "variação concomitante" ou correlação, ou seja, o movimento paralelo de uma série de valores apresen-tados por dois fenômenos; apenas isto constitui prova de que existe uma relação causai, desde que a relação tenha se revelado em suficiente número e variedade de casos. A concomitância constante de dois fatores é suficien-te para estabelecer uma lei.21 Por si só, tal não bastava para uma compre-ensão profunda da conexão, indicando apenas que uma conexão de algum tipo causai existia. Um terceiro fator poderia ser responsável pela correla-ção entre os fatos originais, e a investigação subseqüente teria que exami-nar esta possibilidade. Deste modo, através de refinamentos sucessivos, uma aproximação cada vez mais próxima seria feita revelando a realidade verdadeira atrás dos fenômenos sociais.

Um ponto que precisa ser acentuado é a insistência de Durkheim em que as causas dos "fatos sociais" devem ser buscadas entre os outros "fatos sociais" no ambiente social. Esta é uma das condições essenciais da própria existência da sociologia. Cada ciência trata de seu próprio domínio e não pode exceder a si mesma na busca de causas explanatórias.

Felizmente Durkheim não se contentava com programáticas. Ele também se interessava profundamente em aplicar suas "regras" metodoló-gicas a programas concretos de teoria e sociedade. Neste último aspecto, continuava a tradição moralista de Comte e de outros positivistas com seu interesse permanente na intervenção racional na sociedade. O conheci-mento fornecido pelas ciências sociais era um prelúdio essencial à com-preensão das origens das várias patologias herdadas pela sociedade, assim como à sua possível prevenção. Num sentido mais próximo, as idéias de Durkheim ofereciam um conjunto de justificações imensamente interes-sante para usar várias formas de dados a fim de testar certas teorias socio-lógicas. Suas "regras do método sociológico" tinham por objetivo ir além do uso meramente ilustrativo de materiais históricos e sociais com os quais, dizia ele, Comte, Spencer e outros haviam se contentado. Em lugar disso,

21 Durkheim, Rules, pp. 130-1.

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pretendia fundamentar tais materiais sistematicamente dentro de uma ciên-cia social racionalmente concebida.

O estudo de Durkheim sobre o suicídio é de especial interesse. Aqui ele apresenta de modo marcante a relação entre suas idéias filosóficas sobre a natureza da sociologia e a aplicação destas na investigação de fenômenos concretos. A decisão de estudar o suicídio foi especialmente corajosa, da-das as afirmações de Durkheim sobre a natureza dos fatos sociais. De todos os atos humanos, o suicídio parece tão pessoal, o produto de uma vontade individual - ponto de vista que ele reconhece plenamente em sua definição de suicídio como um ato cometido deliberada e conscientemente. Apesar disso, ele sustentaria que a explicação em termos de psicologia individual era insuficiente. Seu método de variação concomitante é especialmente eficaz, quando ele mostra que não há correlação entre índices de suicídio em populações diferentes e a incidência de certos estados psicopatológicos. Por exemplo, a proporção de neuróticos e de pessoas insanas entre os ju-deus é relativamente alta, mas a freqüência de suicídios no mesmo grupo religioso é baixa. De um modo semelhante ele fornece explicações em ter-mos de hereditariedade e imitação. Eliminando as explicações alternativas e pela coleta positiva de outras evidências, pretende demonstrar a natureza social do suicídio. Observa que os índices de suicídio permaneciam cons-tantes em várias sociedades durante um período significativo porém dife-riam entre as sociedades, e demonstra como os índices variavam de manei-ra constante com certas condições sociais. Portanto, embora o indivíduo sem dúvida alguma tivesse experiências particulares ligadas ao suicídio, os índices deviam-se às condições de associação prevalecentes nos grupos aos quais o indivíduo pertencesse. Variações nessas condições gerais davam lu-gar a diferentes tipos de suicídio, o altruístico, o egoístico e o anômico. Deste modo, Durkheim podia chegar a uma relação de concomitância cons-tante entre uma única causa (o grau de integração social de grupos sociais), e um único efeito, o suicídio; o segundo variando no sentido inverso em relação à primeira.

O uso de estatísticas feito por Durkheim neste estudo é especialmen-te interessante, uma vez que oferecia à ciência social meios possíveis de utilizar materiais que fossem além de mera contagem. índices de suicídio, cifras de população e outros dados semelhantes eram, para Durkheim, os sedimentos observáveis do estado moral da sociedade, "a vida social con-solidada", tornando possível estudar a realidade social através dessas mani-festações objetivas. Ele via os índices de suicídio, por exemplo, como o produto da "corrente suicidogênica", ou aqueles "fatos sociais" que esta-belecem que haverá, num determinado grupo, um certo número de mortes voluntárias de diferentes tipos. Através da utilização de tais "manifestações objetivas", segundo o princípio de correlação para estabelecer ligações cau-

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sais, o cientista social estaria apto a penetrar além das aparências, atingindo os fatores reais subjacentes à vida social.

AS LIÇÕES DE DURKHEIM

É impossível apresentar no momento uma apreciação plena das muitas su-tilezas do pensamento de Durkheim. Ele está sendo discutido aqui porque enfrentou muitas das questões que a ciência social positivista teve que en-frentar e resolver na tentativa de se firmar como a versão ortodoxa da ciên-cia social. É desnecessário dizer que Durkheim não é a única figura de im-portância a esse respeito. Ele deveu muito a outros, especialmente a Comte e J.S. Mill. Sua influência nos anos subseqüentes tampouco permaneceu isenta de modificações e desvirtuamentos, pois os estudiosos liam aquilo que desejavam ler em sua obra a fim de justificarem as próprias idéias e teorias. Os iniciadores sempre correm o risco de serem mal-entendidos, já que seus nomes e reputações dão crédito a produções menos marcantes. O que, portanto, Durkheim representa para a ciência social positivista em geral e para a sociologia em particular?

Talvez o primeiro elemento a reiterar seja sua preocupação em esta-belecer o social como uma realidade específica. Ele não apenas afirmou is-to, mas procurou mostrar como esses "fatos" eram partes da Natureza — exatamente como os fatos biológicos, químicos e outros fatos físicos. Este "realismo social relacionai" era um belo argumento: capacitava-o a afirmar que o social poderia ser estudado através dos mesmos métodos científicos usados nas ciências naturais sem a obrigação de reduzir os fenômenos so-ciais a "coisas" materiais. Assim, ontologicamente falando, a natureza e as realidades sociais eram da mesma ordem — da ordem das coisas (thinglike) — e, dessa forma, poderiam ser estudados pelos mesmos princípios episte-mológicos. Uma vez estabelecida a realidade independente do social e a unidade de método, ele tinha condições de argumentar que a vida social podia ser estudada objetivamente através do método científico.

Um segundo aspecto lhe trouxe dificuldades bem maiores, embora sua solução seja engenhosa e significativa. A ciência lidava com objetos de sensação; era isso que, efetivamente, a separava da metafísica e a estabele-cia como uma forma válida de conhecimento. Durkheim aceitava esta no-ção, como outros positivistas, e afirmava que os "fatos sociais" eram "coi-sas", embora não fossem coisas materiais como tecidos, células ou rochas e, de forma análoga, assumiam as características de um "mundo exterior" material além das idéias. O mundo social, entretanto, conforme experimen-tado por aqueles que nele viviam, não parecia pertencer à ordem das coisas. Ao contrário, estava sujeito à vontade e à escolha humanas. Conseqüente-mente, Durkheim precisou abalar a noção "interna" da sociedade baseada

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no senso comum enquanto ilusória, embora retendo a concepção de que a ciência trata de "objetos de sensação". Com este fim, teve que desenvolver uma teoria e um método para relacionar o modo como a sociedade apare-cia diante de seus membros e a real natureza desta.

Isto ele tentou realizar de diversas formas, nem sempre totalmente claras. Insistia na adoção de uma atitude específica, por parte do cientista social, para com os fenômenos: uma atitude de objetividade, distanciamen-to, surpresa, e assim por diante. Além disso, tomando os atributos da or-dem das coisas (thingness) da ciência natural e aplicando-os ao social, afir-mava que os processos reais na sociedade poderiam ser identificados. Eles viriam a ser identificados através de suas manifestações individuais, dos se-dimentos e outros traços deixados atrás de si, com a ajuda do princípio da correlação. Desta forma, revelavam-se as leis da sociedade. Ele manti-nha, portanto, a idéia de que a ciência lida com materiais observáveis mas apenas como índices de causas mais subterrâneas. Essas causas mais pro-fundas não eram acessíveis aos membros comuns da sociedade, cegos por suas concepções prévias e preconceitos, mas requeriam um método cientí-fico que as revelasse. Assim, o conhecimento fornecido pela ciência social é o conhecimento especial produzido por observadores apropriadamente preparados; em suma, profissionais. E mais ainda, o estudo da ciência so-cial era visto como uma atividade independente do mundo social investi-gado. Esta independência era na verdade um ingrediente essencial para o estatuto científico, em primeiro lugar.

Durkheim destaca-se na história das ciências sociais porque ele pro-curou legitimar uma concepção de ciência social consistente com a imagem dominante de ciência natural. Esta.imagem era profundamente engano-sa em diversos aspectos, conforme veremos, mas a insistência de Durkheim em leis e em explicação causai, objetividade e método rigoroso é impor-tante e deu autoridade a suas próprias investigações empíricas. Seus esfor-ços para demonstrar que a sociedade era uma realidade sui generis como parte integrante de seu compromisso mais amplo de demonstrar a cientifi-cidade da sociologia não deixaram de atrair críticas. Numerosos críticos afirmaram que ele era culpado de "coisificar" a sociedade, atribuindo-lhe propriedades que esta simplesmente não podia ter. Certamente, muito do que Durkheim tinha a dizej dava a forte impressão de que ele pensava em termos de mentalidades de grupos, ou da sociedade como um organismo no sentido literal, mais do que no figurativo. No entanto, apesar dessas e de outras críticas, ele representa o núcleo da interpretação positivista de ciência social. Deverá tornar-se evidente, nos capítulos seguintes, que suas concepções não deixavam de apresentar dificuldades.

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3 O P O S I T I V I S M O E A L I N G U A G E M DA P E S Q U I S A S O C I A L

A primeira metade deste século viu o florescimento da filosofia positivista como a ortodoxia da ciência social. Não quero dizer com isto que seus pre-ceitos tenham sido aceitos por unanimidade, mas simplesmente que o posi-tivismo serviu para estabelecer o contexto do debate, até onde este se deu, sobre a natureza das ciências sociais. O positivismo tornou-se a justificação metodológica dominante para aquilo que Kuhn chamou de "ciência nor-mal": uma ciência praticada sem constantes referências às premissas filosó-ficas fundamentais,1 uma ciência caracterizada pela pesquisa empírica de "resolver enigmas", em lugar de constituir uma grandiosa especulação filo-sófica sobre as teorias ou abordagens fundamentais. A maior parte dos cientistas sociais concordava que as ciências sociais deveriam modelar-se de acordo com as ciências naturais, especialmente a física, uma vez que aque-las disciplinas representavam o ápice da realização no conhecimento huma-no. Isto era aceito em geral, porém havia muito menos concordância quan-to à natureza precisa não só das ciências sociais mas também das próprias ciências físicas. É importante lembrar que, embora a maioria das ciências sociais tomasse as ciências naturais como parâmetro, assim o faziam a res-peito de interpretações específicas das ciências naturais das quais o positi-vismo era a principal.

No seio das ciências sociais de inspiração positivista surgiram deba-tes, por exemplo, sobre se as explicações funcionais seriam consistentes, ou logicamente equivalentes, a explicações causais convencionais; se teo-rias de ciência social poderiam atingir a certeza de teorias na ciência natu-ral ou se teriam de se satisfazer com aproximações a isto, permanecendo num nível de probabilidades; se a falsificação ou a verificação era o critério fundamental em afirmações científicas, e assim por diante. Estes debates e outros formavam as questões cruciais na filosofia da ciência social.2 Nos-

1 Para esta noção de "ciência normal", ver T.S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 2ª ed. ampliada, Chicago, University of Chicago Press, 1970. Deve ser assinalado que Kuhn estava falando de ciência natural, e não de ciência social. 2 Ver, por exemplo, R.S. Rudner, Philosophy of Social Science, Englewood Cliffs,

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sa preocupação aqui, entretanto, é com as questões filosóficas emergentes do próprio processo de pesquisa. Isto não significa, como já assinalei, que tais questões não se vinculem a preocupações mais amplas da filosofia da ciência. Ao contrário, quando está se lidando com questões a respeito da natureza do conhecimento não é possível evitá-las. Como vimos no capítulo anterior, ao discutirmos a tentativa de Durkheim de estabelecer uma ciência social de sociologia, o uso explícito do que é considerado co-mo a explanação filosófica correta da ciência natural, ou seja, o positi-vismo, tem sido o modo tradicional de demonstrar que, apesar de seus diversos objetos de estudo, as ciências sociais usam os mesmos princípios metodológicos das ciências naturais.

A LINGUAGEM DE OBSERVAÇÃO

Uma das características mais importantes das filosofias positivistas da ciên-cia foi o lugar proeminente concedido à pesquisa empírica na produção do conhecimento. Todos os principais avanços científicos, argumentava-se, tinham sido feitos pela paciente coleta de fatos sobre o mundo empreen-dida pelo cientista, produzindo as generalizações conhecidas como leis científicas. A extensão deste procedimento a todas as áreas produziria, com o passar do tempo, tal acúmulo de conhecimento que não haveria can-to do mundo humano ou natural além da visão penetrante da ciência. A ciência era, sobretudo, uma atividade empírica e suas bases se apoiavam na observação do que podemos denominar "dados brutos": isto é, dados que não são o resultado de julgamento, interpretação, ou outros tipos de operação mental subjetiva.3 Do mesmo modo que os cientistas naturais descrevem e classificam os fenômenos através da anotação de elementos observáveis tais como forma, tamanho, posição, movimento e assim por diante, assim também os cientistas sociais deveriam definir seus fenômenos de interesse.

Os positivistas argumentavam, portanto, que a base da ciência está numa linguagem de observação teoricamente neutra que é ontológica e epistemologicamente primária.4 Ou seja, as exposições feitas nesta lingua-

Prentice-Hall, 1966; A. Ryan, The Philosophy of the Social Sciences, Macmillan, 1970 ; M. Lessnoff, The Structure of Social Science, Allen & Unwin, 1974 ; D. Popi-neau, For Science in the Social Sciences, Macmillan, 1978. 3 Ver G.E. Anscombe, "On Brute Facts", Analysis, 18 (1957-8), 69-72 ;C. Taylor, "Interpretation and the Sciences of Man", in R. Beehler e A.R. Drengson (orgs.), The Philosophy of Society, Methuen, 1978, p. 160. 4 R. Carnap, The Logical Structure of the World, Routledge & Kegan Paul, 1967 (inicialmente publicado em alemão, 1928), por exemplo, fornece um relato de todo

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gem privilegiada são diretamente verificáveis como sendo verdadeiras ou falsas, dependendo simplesmente da observação dos "fatos" do mundo. O positivismo incorporava o que se chama teoria de verdade de correspon-dência, isto é, a verdade de uma afirmação deve ser determinada pela sua correspondência com os fatos. Caso corresponda é verdadeira, se não é falsa. Mais tarde isso viria a se tornar, numa forma modificada, um critério da significância de uma afirmação.

A versão do positivismo mais clara e influente foi proposta por um grupo conhecido como os Positivistas Lógicos, uma escola de filosofia iniciada em Viena ao final da década de 1920 sob a liderança de Mach, Schlick e Carnap. Eles viriam a dar à filosofia positivista da ciência uma forma e sistema que fariam dela a perspectiva predominante da primeira metade do nosso século.5 Como em outras formas de positivismo, eles re-jeitavam a metafísica, reconhecendo apenas dois tipos de poposição: a ana-lítica, como as da matemática e da lógica, e a sintética, verificável através da observação empírica. Invalidavam as proposições que não pertencessem a qualquer desses dois tipos. Os conceitos religiosos, morais e estéticos, além dos metafísicos, eram depositados na lata de lixo da inutilidade ou, quando muito, vistos como afirmações de gosto ou preferência pessoais, uma vez que não eram verificáveis pela observação empírica ou analítica. O princípio de verificação tornou-se um critério para decidir se uma afir-mação seria válida ou não, e dependia basicamente da possibilidade de se propor uma linguagem "básica" ou "protocolar?' consistindo em uma classe terminal de proposições que descrevessem diretamente o mundo de fatos brutos.

Para a maior parte dos membros da escola, esta linguagem consistia em relatórios diretos e não-inferenciais de experiência,. Mas a que se referia exatamente o termo "protocolar" na linguagem observacional era uma questão de debates infindáveis. Alguns sugeriam a interpretação de dados de sentido dos relatórios não-inferenciais. de experiência, outros os "obje-tos físicos", outros ainda os "fatos atômicos". Porém, para nossos objeti-vos, interessa que qualquer que fosse a caracterização desses termos de protocolo, a linguagem observacional era ontológica e epistemologicamen-

o aparato do discurso empírico em termos da similaridade recordada entre impressões sensoriais. São esses os elementos básicos a partir dos quais se constroem, com a aju-da da lógica, os conceitos de coisas materiais, outras mentes, instituições sociais. Os tópicos de pensamento existem em vários níveis, cada um deles reduzível ao pre-cedente. As afirmações de nível mais elevado se justificam pela indução de afirmações de níveis inferiores; as afirmações básicas de nível mais baixo não precisam nem podem ter justificação inferencial. Neste ponto, o sistema de crenças entra em con-tado, através da observação, com o mundo do fato empírico, s Ver as seleções in A.J. Ayer (org.), Logical Positivism, Nova York, Free Press, 1959.

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te privilegiada. No que se referisse à prática científica, não se sugeria que todos os termos ou conceitos descritivos deveriam ser expressos nesta lin-guagem observacional básica. O necessário é que, se estes pretendessem ser significativos, deveriam então, em princípio, ser traduzíveis ou reduzíveis a afirmações na linguagem observacionál. Como quanto à natureza das pró-prias entidades básicas, havia consideráveis debates em torno do modo de efetuar tal tradução ou redução.

Embora muitas das posições mais radicais dos Positivistas Lógicos fossem de fato insustentáveis, sem dúvida sua influência foi profunda. Sua perspectiva foi considerada por muitos filósofos e cientistas como a versão da ciência filosoficamente autorizada. Embora as dificuldades permaneces-sem, a importância destas não era considerada fundamental a ponto de in-validar a tradição positivista.

A LINGUAGEM DE OBSERVAÇÃO E A CIÊNCIA SOCIAL

A noção de uma linguagem de observação primária como alicerce da ciên-cia é poderosa, embora problemática. Esta estabelecia a ciência como uma disciplina empírica, dava-lhe' um caráter objetivo por fornecer, ao menos em princípio, um modo de expressão publicamente acessível, emocional, ideológica e teoricamente neutro. Além disso, proporcionava um critério de veracidade aparentemente rigoroso e rápido, independente dos capri-chos e preconceitos humanos, e concedia uma condição privilegiada a seus pronunciamentos como sendo conhecimento da mais alta ordem. Entretan-to, transplantada para a arena da vida social, esta concepção encontrava problemas nem sempre enfrentados, por muitas razões, nas ciências natu-rais. As próprias dificuldades de formular uma linguagem apropriada de observação básica, ou protocolar, sugeriam que a observação era um assun-to complexo, mesmo nas ciências naturais. Os fatos não apareciam, sim-plesmente. Eles não estavam à disposição, à espera de algum cientista de passagem, porém tinham de ser descobertos, reunidos e tornados informa-tivos; Todos os "fatos" usados por Darwin como evidência para sua teoria de evolução eram "conhecidos" antes de utilizados por ele. Os fósseis ha-viam sido notados por outros naturalistas muitos anos antes de Darwin, também a maior parte de aves e animais tinham sido descobertos por outros viajantes. A contribuição de Darwin foi uma maneira profundamen-te radical de rearranjar esses dados.6 A observação científica, portanto, consistia em muito mais do que simplesmente "observar os fatos", por mais básicos que tais "fatos" pudessem parecer.

6 S. Toulmin e J. Goodfíeld, The Discovery of Time, Hutchinson, 1963, fornece um excelente relato sobre a contribuição de Darwin à geologia e à biologia.

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46 A Filosofia da Pesquisa Social

Assim, conquanto a formulação de uma linguagem de observação primária se mostrasse ilusiva, se não ilusória, eram necessários outros critérios ou princípios de observação. Até certo ponto, estes estavam im-plícitos na noção positivista de ciência. O mundo, quer natural quer so-cial, operava de acordo com leis rigorosas e, portanto, possuía uma estru-tura determinista que poderia ser revelada através de instrumentos de pesquisa apropriados! E mais ainda, esta estrutura podia ser descrita quan-titativa e formalmente. Metodologicamente, então, a pesquisa empírica significava descobrir aquelas propriedades das coisas no mundo que exi-bissem regularidades invariáveis com outras coisaj; tais propriedades de-vendo ser descritas, tanto quanto possível, em termos do que é rigorosa-mente observável. Assim, o físico não lida com bolas de bilhar, penas ao vento, carros que colidem, água fervendo, mas com corpos de formato, tamanho, massa, mobilidade, comprimento de onda etc., específicos. As correlações entre tais atributos constituem os dados básicos para a teoria. Esses atributos podem não ser observáveis sem o auxilio de instrumenta-ção, mas o princípio é o mesmo. Trazida para o âmbito da ciência social, esta concepção encontrou problemas. Um deles referia-se aos chamados "estados mentais". Os seres humanos não são simplesmente arcabouços externos de formato, tamanho e movimento: possuem uma vida interior não acessível à observação ordinária. Alguns argumentaram que esta ina-cessibilidade fazia com que tais fenômenos não pudessem ser tratados com objetividade, ou seja, cientificamente. Os objetos físicos, os eventos fí-sicos, os processos físicos podiam ser descritos em versões mais rigorosas dos cinco sentidos e eram, conseqüentemente, publicamente acessíveis. Os estados mentais ou estados da consciência, por outro lado, só podiam ser experimentados ou verdadeiramente conhecidos por uma pessoa, es-pecificamente aquela que estivesse passando pela experiência. Não faria sentido descrever uma atitude, a não ser talvez poeticamente, em termos de seu cheiro, tato, cor, som ou gosto. Portanto, se a ciência social vai lidar com pessoas, pois evidentemente deverá fazê-lo de uma forma ou de outra, a fim de manter a posição positivista sua linguagem observa-cional precisa ser capaz de lidar com estados mentais. Várias soluções foram apresentadas. Uma delas foi ignorar completamente os estados mentais, usando uma linguagem observacional que lidasse apenas com o comportamento exterior. Tal método, conhecido como "behaviouris-mo", obteve alguma aceitação em psicologia e baseava-se numa recusa em usar a introspecção dos próprios estados mentais do indivíduo como dados. Ao invés disso, propunha que as leis na psicologia deveriam ba-sear-se no comportamento manifesto e publicamente observável. Não se tratava tanto de negar a existência dos estados mentais mas sim de igno-rá-los como irrelevantes para o desenvolvimento de uma ciência adequada do comportamento humano.

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Uma estratégia mais típica foi sugerir que, embora os estados mentais não fossem observáveis por qualquer modo direto, os estados mentais espe-cíficos eram associados a manifestações exteriores específicas. Por exem-plo, observamos uma pessoa a apertar as próprias mãos, ranger os dentes, arregalar os olhos com o rosto congestionado, e inferimos logicamente que o estado mental experimentado por essa pessoa é raiva; na verdade, que a causa de toda essa postura dramática é a experiência daquele indivíduo de raiva e de ira. Conseqüentemente, apresentou-se o argumento de que todas as afirmações referindo-se a estados mentais poderiam ser analisadas num conjunto posterior de afirmações referindo-se a aparências ou manifesta-ções concretamente reveladas. Os fenômenos mentais, portanto, poderiam ser observados, para todas as intenções e propósitos, através do estudo das manifestações comportamentais exteriores correspondentes, sendo estas últimas um índice dos primeiro.

Este tipo de avaliação da relação entre estados mentais e comporta-mento manifesto foi tranqüilizador para muitos empiristas, uma vez que colocava a "mente" sob a observação científica. Os estados mentais eram, afinal de contas, publicamente observáveis. O princípio epistemológico da experiência sensorial como fundamento do conhecimento científico estava preservado. No entanto, poder-se-ia objetar que os seres humanos experj-mentam estados de consciência mais sofisticados do que ira, prazer ou dor. Eles também podem desejar riqueza, status ou poder, podem crer na de-mocracia ou no direito divino dos reis, considerar o estupro imoral, achar os Beatles maravilhosos, apreciar a beleza da Gioconda e sentir repulsa por Johnny Rotten. Poderia tudo isso ser interpretado do mesmo modo? Para os positivistas, a resposta seria afirmativa; As crenças que as pessoas man-têm, os valores que sustentam, os julgamentos que fazem, seus gostos e preferências, são todos publicamente verificáveis. Os valores são objetivos no sentido que estes são sustentados por pessoas que podem relatar seus "sentimentos interiores" ou "estados de consciência". O cientista social não precisa concordar ou discordar das crenças em pauta, mas deve sim-plesmente relatá-lasíou usá-las como dados primários. Em suma, os valores pessoais são fatualmente tão brutos quanto estratos geológicos, átomos, fluidos gasosos, velocidades, e assim por diante. Pelo uso cuidadoso de questionários, escalas de atitudes, entrevistas e instrumentos semelhantes, os indivíduos podem chegar a exprimir suas crenças, assegurando desta forma o acesso objetivo a importantes aspectos da vida mental.

Resolver o problema da vida interior constituía parte de uma ques-tão mais ampla mencionada anteriormente — a formulação dos princípios da própria observação social científica. Para estar de acordo com os que os cientistas naturais podiam atingir, a linguagem de observação da ciência social tinha que consistir de termos objetivamente definidos, tinha que ser generalizável e, se possível, quantificável. Uma vez que o objetivo era atin-

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48 A Filosofia da Pesquisa Social

gir a visão comtiana de descobrir as leis gerais da vida social, os termos lin-güísticos básicos precisavam expressar as qualidades gerais, mais do que as específicas. Um dos principais movimentos na história da ciência social foi o uso de termos de tipo matemático ao se falar de dados, e um dos mais importantes dentre estes foi a linguagem de variáveis.7 Isto representava uma forma de falar de fenômenos sociais dentro de uma estrutura visivel-mente neutra em termos de seus atributos e propriedades, observando como estes variavam entre si e com relação um ao outro. Assim, o conceito de grupo simplesmente denota um tipo de coletivo humano muito geral e abstrato. Entretanto, especificar qualidades variáveis tais como tamanho, coesão, grau de consciência entre seus membros, grau de organização for-mal e assim por diante, é aprimorar a serventia do conceito especialmente na comparação empírica de grupos e no exame das condições sob as quais tipos diferentes de grupos emergem. O que o pesquisador deve fazer é deli-near os índices desses atributos variáveis e correlacioná-los a outros atribu-tos nos quais esteja interessado, fusando processos e salvaguardas apropria-dos. Mais ainda pode ser atingido se o pesquisador puder fazer suposições adequadas sobre o nível de mensuração que os índices ou variáveis repre-sentam. A formulação dessas suposições tem levado a um desenvolvimento extremamente rápido de métodos de pesquisa de base estatística, tais co-mo a amostragem e a escala, e de métodos de análise de dados tais como a regressão, correlação e técnicas multivariadas. Através de processos de operacionalização, medida e análise estatística, os conceitos são traduzidos em grupos discretos de dados. A inteligência é definida de acordo com as mensurações de testes de inteligência, a coesão de grupos através de índices de mudanças de seus participantes ou de comparecimento a reuniões, o grau de anomia por índices numa escala de atitudes e assim por diante. Os dados objetivos são produzidos por instrumentos padronizados visando a eliminar fontes de propensões de todos os tipos e fornecer uma linguagem observacional neutra.

Desta forma a pesquisa social, ao menos diante de tal visão, parecia um tipo de especulação na qual os cientistas naturais estivessem envolvidos.

O PROBLEMA DOS TODOS SOCIAIS

Para a pesquisa empírica da ciência social, assim, a linguagem dos variáveis oferecia uma forma de expressar generalizações objetivamente e com pre-

7 Este desenvolvimento muito deveu à obra de P.F. Lazarsfeldl e M. Rosenberg (orgs.), The Language of Social Research, Nova York, Free Press, 1965. N. Smelser escreve sobre a linguagem da ciência: "A linguagem que utilizei é a linguagem dos in-gredientes da ciência: variáveis dependentes, variáveis independentes, arcabouços teó-

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cisão. Além disso, tais generalizações podiam ser usadas para testar ou in-validar teoriag, uma vez que se tivesse em mãos um método para descrever o mundo social sem ambigüidades. Todos os fenômenos sociais podiam ser codificados, medidos (em algum nível), correlacionados, precisamente delineados e manipulados de diversas maneiras através da linguagem dos variáveis. As hipóteses podiam ser formuladas e testadas por métodos ra-zoavelmente rigorosos. Embora nem todas as ciências sociais pudessem competir com a psicologia e empreender experimentos no laboratório, aproximações justas poderiam ser efetuadas através de projetos de pesqui-sa apropriados. Para algumas ciências sociais, tais como a economia, dispu-nha-se de conceitos prontamente quantificáveis; em outras, a quantifica-ção requeria algum engenho; em algumas, tais como a ciência política, a tendência em direção a uma ciência social de inspiração positivista e de espírito empírico ocorreu relativamente tarde. Em todos os casos, no en-tanto, o impulso primário foi utilizar uma metodologia fiel ao preceito de que os dados básicos são compostos daquilo que é observável, num sentido mais fraco do que forte. Entretanto, isto levantava um problema relativo a uma questão vital para a ciência social, ou seja, a relação do individual para com o coletivo. Conforme Durkheim havia se esforçado por demons-trar, as ciências sociais não estavam tão interessadas em fenômenos indivi-duais em si, mas sim nos fenômenos coletivos incluindo, naturalmente, aqueles estados individuais de consciência que provinham da operação dos processos sociais.

As ciências sociais lidam com grupos de vários tipos, instituições, cul-turas, sistemas inteiros de interação e processos,os quais, nessa perspecti-va, são fenômenos coletivos antes de serem fenômenos individuais. A eco-nomia trabalha com instituições que tratam da produção e distribuição da riqueza; a sociologia com classes, grupos, até mesmo com sociedades intei-ras; a ciência política com instituições governamentais, partidos políticos, sistemas de votação, e assim por diante. Entretanto, como verificamos an-teriormente com relação a estados mentais, estes elementos não são obser-váveis por quaisquer formas diretas. Não é possível observar, por exemplo, classes sociais, o sistema econômico, o capitalismo, e assim por diante, por-tanto que categoria ontológica tais conceitos possuem? Lembremos que Durkheim afirmou enfaticamente a realidade desses fenômenos coletivos: "A sociedade não é uma mera soma de indivíduos. Ao invés disso, o siste-ma formado pela associação destes representa uma realidade específica que tem suas próprias características".8 A realidade social, em suma, transcen-

ricos, e métodos de pesquisa." Essays in Sociological Explanation, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1968, p. 43. 8 Durkheim, Rules, p. 103.

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50 A Filosofia da Pesquisa Social

de os indivíduos. Como na natureza, ocorrem no mundo social totalidades que não são simplesmente agregados dos elementos individuais que as com-põem, mas sim unidades orgânicas, mais do que a soma de suas partes. Tais totalidades emergentes não podem ser reduzidas às partes que as compõem.

O êxito na concretização dessa afirmação em especial, poder-se-ia argumentar, é necessário para a legitimação de todas as ciências sociais, pois de outra forma o estudo específico do comportamento humano seria apenas a psicologia ou alguma de suas ramificações. A questão, adverte Lukes, é ontológica e refere-se à realidade das entidades sociais.9 Conforme vimos, Durkheim afirmava que as entidades sociais eram tão reais quanto as "coisas", muito embora não fossem coisas materiais. Entretanto, meto-dologicamente, os problemas não se resolviam com tanta facilidade. A evi-dência empírica aduzida para os fatos sociais derivava, em primeiro lugar, de indivíduos. Apenas o comportamento humano podia ser observado de alguma forma óbvia, através de respostas a questionários, testes de atitu-de, observações, índices da freqüência de alguma categoria do comporta-mento humano tais como suicídio, votação, índices de consumo etc. Em suma, "nada é observável nos fatos sociais, a não ser suas manifestações individuais".10 Isto parecia levar a um paradoxo: por um lado, a alegação de que os todos sociais eram reais dependia da impossibilidade de reduzir completamente afirmações a respeito destes a afirmações a respeito de indivíduos; por outro lado, a evidência da realidade dos todos sociais pa-recia depender quase exclusivamente da evidência derivada de manifesta-ções individuais observáveis de comportamento. Embora Durkheim e mui-tos outros tivessem mostrado que o comportamento individual variava, ou era determinado ou causado por fatores sociais contextuais, tais como religião, classe social, estado civil, e assim por diante, tais dados sempre re-metiam a suas origens com indivíduos. O problema não é tanto uma ques-tão de técnicas de pesquisa pois, afinal de contas, a análise multivariada, a análise contextual, a correlação etc., são extremamente poderosas, dadas as suposições da realidade de coletividades, mas sim um problema de auto-rizar esta interpretação em primeiro lugar.

Sem dúvida há propriedades atribuídas a todos sociais que não po-dem ser atribuídas a indivíduos. Pode-se dizer de uma sociedade ou grupo que este é estratificado, oligárquico, democrático, dividido em classes e assim por diante, ao passo que as mesmas características não podem ser

9 S. Lukes, "Methodological Individualism Reconsidered", in D. Emmet e A. Mac-Intyre (orgs.), Sociological Theory and Philosophical Analysis, Macmillan, 1970, pp. 76-88; também J. 0'Neill (org.), Modes of Individualism and Collectivism, Heine-mann, 1973. 10 Lessnoff, op. cit., p. 77 ; grifado no original.

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atribuídas a indivíduos, pelo menos da mesma forma. É possível dizer a respeito de grupos, por exemplo, que estes mantêm sua integridade apesar da substituição de seus membros. O caráter dos grupos, além disso, influen-cia o comportamento de seus membros, e isto pode ser demonstrado. Em muitos sistemas legais algumas associações são tratadas como se fossem pessoas com direitos e deveres distintos dos de seus membros. Entretanto, essas observações são, até certo ponto, irrelevantes. Embora na linguagem jurídica e na coloquial nós possamos falar — e o fazemos — deste modo, o problema é se tal seria cientificamente legítimo. E, caso isto se dê, que jus-tificações ontológicas e epistemológicas podem ser oferecidas para tanto? As respostas a esta pergunta afetam a legitimidade e a interpretação de operações de pesquisa que lidam supostamente com fenômenos coletivos. Existe uma restrição adicional para o positivista: uma resposta aceitável deve abster-se de qualquer implicação a respeito de um "espírito de grupo" ou outras entidades metafísicas — a armadilha da reificação na qual Durk-heim quase caju.

A fim de manter a noção de que há todos tanto individuais quanto sociais, embora aceitando ao mesmo tempo que os segundos não são obser-váveis por qualquer meio direto, devemos também afirmar que, se algo for atribuído com justeza a um todo social, tal deverá implicar a veracidade de pelo menos várias descrições de indivíduos. Sem esta condição seria impossível testar afirmações sobre todos sociais por observação, uma vez que estes não são observáveis embora os indivíduos o sejam.11 Porém é preciso mais do que isso. A descrição de todos sociais, apesar de implicar descrições individuais, deve envolver muito mais; ou seja, deve deixar cla-ro que o conjunto de descrições individuais relevantes não exaure aquilo que pode ser atribuído ao todo social. Assim, por exemplo, "a sociedade britânica" pode ser oferecida como o nome de uma coletividade social e de uma série de propriedades que lhe são atribuídas, tais como "é um welfare state", "é governado pelo Partido Trabalhista", "constituiu em certa época uma sociedade feudal", "é uma monarquia constitucional", "tem um baixo índice de criminalidade em comparação às sociedades X, Y, Z", "seu índice de inflação é elevado", e assim por diante. O problema, entre-tanto, é se cada uma dessas afirmações, embora sugerindo a verdade de uma quantidade de afirmações sobre indivíduos, o comportamento destes nos mercados, nas urnas eleitorais, sua obediência à lei, suas atitudes e crenças, será reduzível simplesmente a uma listagem de tais afirmações in-dividuais, embora ampla? Caso contrário, então o que nos resta que não seja assim reduzível? Segundo a doutrina do "individualismo metodológi-

11 Ver M. Mandelbaum, "Social Facts", British Journal of Sociology, 6 (1955), 312 ; Lessnoff, op. cit., pp. 80-1.

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52 A Filosofia da Pesquisa Social

c o " nada nos resta uma vez que todos os fatos sociais são, em princípio, explicáveis em termos de fatos sobre indivíduos; As referências a todos ou coletividades sociais são, nesta perpectiva, essencialmente referências su-márias às características e propriedades de indivíduos, e estes últimos po-deriam substituir os primeiros sem deixar resíduos. O "real", em outras palavras, restringe-se ao que pode ser observado. O máximo que se pode afirmar ontologicamente de todos sociais, já que estes nunca são concre-tamente dados através da observaçãb, é um status de entidades teóricas dotadas apenas de conveniência explanatória.12 A realidade ontológica é atribuível somente a indivíduo?, ao passo que todos sociais são considera-dos entidades abstratas ou teóricas não-observáveis, porém possuindo uma utilidade explanatória, como os tipos semelhantes de conceitos teóricos na física e em outras ciências naturais.

Esta interpretação foi extremamente importante, pois parecia apro-ximar ainda mais as ciências sociais da prática da ciência natural, conforme veremos posteriormente. Além disso, parecia evitar os lapsos metafísicos aparentemente herdados pelas ciências sociais, tais como a reificação de coletividades e a atribuição a estas de qualidades as quais, adequadamente falando, só poderiam pertencer a indivíduos e a suas relações mútuas. Uma vez que se recorreu, na linguagem ordinária, a coisas como "o espírito do povo", "consciência de classe", "memória racial", "espírito de uma épo-ca", e assim por diante, isto seria ou um modo descuidado de falar ou, na melhor das hipóteses, uma forma convenientemente sucinta de referir-se a grandes quantidades de indivíduos em determinado sentido ou ainda, no pior dos casos, não-científico e, conseqüentemente, ignorante.

Para alguns teóricos sociais a estratégia do "individualismo metodo-lógico" era demasiado tímida, além de parecer levar a um reducionismo psicológico no qual todos os chamados fatos sociais seriam, em última análise, reduzíveis a explicações em termos de disposições psicológicas. Durkheim com toda certeza teria feito tal crítica. Era necessário dar aos todos sociais uma categoria ontológica mais durável, menos abstrata, mais concretizada do que a de meras entidades teóricas. Era. preciso apresentar, em lugar disso, uma concepção sensivelmente mais consistente com uma visão dos todos sociais como verdadeiros fatores causais. Quanto ao redu-cionismo psicológico, o individualismo metodológico não implica neces-sariamente que as únicas explicações válidas da vida social são aquelas expressas em termos de disposições psicológicas humanas. Em primeiro lugar, este concorda que a ação humana é, ao menos em grande parte, o resultado da interação com outros. Isto é, o individualismo metodoló-

12 Ver, por exemplo, F.A. Hayek, The Counter-Revolution of Science, Nova York, Free Press, 1964, pp. 54-5.

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gico reconhece que há propriedades emergentes que provêm da presença de dois ou mais indivíduos, propriedades que não estão presentes no indi-víduo isolado. A interação é uma dessas propriedades emergentes, outras são o poder, o status social, as trocas, a cooperação, o conflito, e assim por diante. Em suma, todo o contexto relacionai da vida social não é redu-zível a disposições psicológicas individuais. O que não significa, natural-mente, que explicações em termos de disposições psicológicas sejam irre-levantes para a explicação de fatos sociais.

O que tudo isso quer dizer, metodologicamente? Quais as implica-ções de tais noções para a pesquisa social? Lembremos de dois princípios fundamentais do positivismo, a saber, que o mundo social opera de acordó com leis causais, e que o alicerce da ciência é a observação sensorial1. Nesta breve discussão, procurei indicar alguns dos problemas emergentes dessas concepções naquilo que se refere à ciência social. Um problema em par-ticular tem a ver com a natureza da relação entre o indivíduo e o todo social. O problema ocorre para as ciências sociais do seguinte modo: "indi-víduos" e "todos sociais" não são fenômenos discretos e separados, e estes últimos se definem em grande parte em termos dos primeiros porque ape-nas os indivíduos, seus atributos e comportamento, são observáveis. Se isto é correto, é então extremamente difícil, teórica e empiricamente, esta-belecer a realidade dos todos sociais independentemente da realidade já aceita para os indivíduos. Porém formulemos a pergunta, por que dese-jaríamos estabelecer tal coisa? Existem numerosas razões mas, para o posi-tivista, se não for possível fornecer uma base observacional para os todos sociais, então estes serão pouco mais do que entidades metafísicas, e pre-sumivelmente os dados sobre tais entidades não terão validade como dados científicos. A questão possui ramificações bem mais amplas, além disso, e constitui um problema que surge do compromisso positivista quanto ao primado de uma linguagem como a linguagem da ciência e, como conseqüência, mostra um tratamento inadequado da natureza da teoria científica.

O STATUS DA TEORIA

Já me referi à teoria ligada à interpretação de afirmações sobre os todos sociais. Entretanto, na tradição empirista do positivismo, o tratamento filosófico da teoria vinha muito depois da formulação e desenvolvimen-to de métodos de procedimento de pesquisa empírica. Talvez isso não seja surpreendente, em virtude da ênfase colocada na observação empírica como o método primordial da ciência. Bacon e J.S. Mill, por exemplo, ansiosos por explorar os métodos experimentais, consideravam a natureza e suas leis como que à espera de serem descobertas através dos métodos

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empíricos corretos.13 Havia também alguma confusão a respeito do caráter da teoria, leis e generalizações.

Supunha-se geralmente que o objetivo da ciência fosse produzir gene-ralizações ou leis expondo as relações causais existentes entre as coisas no universo. Parecia que a ciência natural havia progredido através da desco-berta de conexões invariáveis e necessárias entre os fenômenos, num uni-verso organizado e obediente às leis. Galileu, Newton, Darwin e outros haviam contribuído individualmente com afirmações precisas e universais quanto ao modo de operação de certos fenômenos e, usando essas afirma-ções, poder-se-ia prever com uma precisão admirável. Tais afirmações, se-gundo parecia, eram universais na medida em que especificavam que todos os acontecimentos de um determinado tipo eram invariavelmente ligados a outros acontecimentos, com a forma lógica de "todo A é B". O problema era como considerar essas afirmações. A tradição positivista, com sua pres-suposição de que o conhecimento empírico constituía o tipo mais funda-mental de conhecimento e a base da ciência, viria a lhes dar uma interpre-tação empírica. Nisto, muito deveu a Hume e a outros filósofos da escola empírica inglesa. Hume argumentava que a idéia de causa não é mais do que o resultado da observação repetida de um objeto após outro, ou de um acontecimento após outro acontecimento. Para Hume, as idéias seriam impressões obtidas dos sentidos, e sua interpretação de causas era consis-tente com este ponto de vista. O conhecimento de causas era o resultado, de sensação e hábito: a mente pouco contribuía para tal. A razão por si só, por exemplo, não poderia chegar à idéia de calor fazendo com que a água fervesse, ou de gravidade fazendo com que os corpos caíssem sem o concurso da experiência. Dizer que A causa B significa dizer que A e B estão "constantemente associados" em nossas sensações; a conexão causai sendo atribuída mas não observada na Natureza. Através de observações repetidas de conjunções similares chega-se, pelo hábito, a esperar que estas sejam sempre relacionadas.

A idéia de causa e efeito é derivada da experiência, a qual nos informa que tais objetos específicos, em todos os exemplos passados, foram constantemente associados entre si. E como supõe-se que um objeto semelhante a um destes está imediatamente presente em sua impressão, nós por este motivo presumi-mos a existência de um semelhante ao que o acompanha.14

Em alguns aspectos, isto não parecia um grande avanço. As leis uni-versais eram consideradas temporalmente universais pois aplicavam-se tan-

13 F. Bacon, Novuum Organum, Oxford University Press, 1889; J.S. Mill, A System of Logic, Longmans, 1884.

14 D. Hume, A Treatise of Human Nature, Oxford University Press, 1978, 2? ed., pp. 89-90.

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to ao passado quanto ao presente ou ao futuro. Os raciocínios de Hume, entretanto, fazendo das generalizações causais o resultado da experiência sensorial, não podiam garantir que as generalizações fossem mantidas no futuro, uma vez que eram baseadas na evidência, a qual só poderia ser reunida no passado e no presente. Suas conexões, por definição, não po-diam ser observadas no futuro. A resposta de Hume foi que, na verdade, não seria possível garantir que tais generalizações se mantivessem no futu-ro, como a própria experiência passada mostraria. No entanto, dispomos apenas da experiência passada para servir de base às expectativas futuras, portanto isto é tudo que podemos usar. Conseqüentemente, o conhecimen-to de conexões empíricas, das causas e seus efeitos, nunca é seguro mas apenas provável; isto é, jamais podemos ter absoluta confiança na sua cone-xão repetida no futuro.

Uma afirmação causai geràl, nessa perspectiva, era um sumário de nossas sensações de dois conjuntos de fenômenos e constituía o que nor-malmente se chama uma generalização empírica1. A fim de determinar causas, nós formulamos categorias de objetos ou acontecimentos tendo como base suas respectivas semelhanças. Observa-se a relação entre estes, quer natural quer experimentalmente, e registra-se a seqüência. Se desco-brirmos que, numa quantidade suficientemente de casos, há uma conjun-ção constante da causa putativa seguida de seu efeito, então esperamos que esta associação se mantenha no futuro, embora não haja garantia de que tal suceda, e assim temos nossa generalização causai.

Posteriormente, J.S. Mill viria a fornecer outros argumentos para a interpretação empirista de leis. Ele começa por definir conceitos referentes a classes de objetos os quais demonstram uma semelhança a respeito de alguma propriedade. Homem, mulher, vaca, menina, MG, temperatura, energia, católico etc., todos seriam conceitos nos termos de Mill porque cada palavra serve para um grupo de objetos com características semelhan-tes. O método de relacionar conceitos dentro de proposições sintéticas, as únicas proposições consideradas relevantes para a ciência, era denomina-do por ele "indução'": isto é

aquela operação da mente através da qual inferimos que aquilo que sabemos ser verdadeiro num determinado caso ou casos, será verdadeiro em todos os casos semelhantes ao primeiro em certos aspectos designáveis;15

Enquanto Hume justificava generalizar a partir de casos específicps sobre o fundamento pragmático de que o futuro não será, provavelmente, dife-rente do passadof, Mill alegava que poder-se-ia fazer a inferência indutiva de que o conhecimento que temos de alguns casos será verdadeiro para

15 Mill, op. cit., p. 188.

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todos os casos de todos os tempos. Isto ele justificava apelando para a uniformidade da natureza esta própria alcançável através de um processo indutivo no qual as acumulações de induções de uniformidades individuais na natureza são a base da indução globalizante de que a natureza é unifor-me. A indução se justificava através da indução;

Mill, entretanto, reconhecia que a vida não era assim tão simples. Na natureza as coisas não surgiam relacionadas entre si de um modo sim-ples. Pequenas regularidades empíricas se sobreporiam dando a aparência de irregularidades; algumas pareceriam regulares apenas por serem normal-mente produzidas por um agente causai não tão visível, e assim por diante. As várias regularidades causais absolutas só poderiam ser encontradas pela seleção sistemática de uma uniformidade a partir de outra, usando-se a manipulação e controles experimentais. Estes métodos eram seus famosos "cânones de prova", técnicas a serem utilizadas para selecionar relações causais a partir da confusão freqüentemente mostrada pelo mundo. Em poucas palavras, os cânones eram o "método de concordância", o "método de diferença", o "método conjunto de concordância e diferença", o "mé-todo de resíduos'', e o "método de variação concomitante". O resultado final da aplicação desses métodos deveria ser a constituição de generaliza-ções causais absolutas.

Entretanto, mesmo para um empirista convicto, tal interpretação possuía suas fraquezas. Os métodos de Mill baseavam-se firmemente na noção de que a Natureza é uniforme segue leis e é inter-relacionada de maneira causa e, assim sendo, a linguagem usada para descrevê-la é causai. Não havia necessidade de falar em teorias. Embora existam hierarquias de leis, no pináculo das quais estariam as de Newton, as leis fundamentais são descobertas, como qualquer outra generalização, pela aplicação de méto-dos de averiguação. A fonte de toda lei científica é a generalização empí-rica; uma conclusão elaborada na pressuposição de que a Natureza segue leis e é uniforme. A legalidade é, em outras palavras, uma característica da própria Natureza. O pensamento moderno positivista e empírico, no entanto, tem criticado a interpretação ingênua das leis causais como tipi-ficadas pela filosofia da ciência de Mill. O conhecimento na ciência é mais certo do que provável. Conseqüentemente, embora admitindo a natureza essencialmente empírica das leis, argumentou-se que a certeza surgia do emprego de conexões rigorosas de inferência dedutiva através do uso da matemática e da lógica, mais do que da indução. Assim, a afirmação "to-dos os cisnes são brancos", se interpretada como uma generalização em-pírica, tem que ser testada sucessivamente a cada nova observação de cisnes. Tal afirmação não pode autorizar inferências para o futuro, assim como a afirmação: "Todos os primeiros-ministros britânicos são homens" refere-se apenas a experiências passadas, nada dizendo em absoluto sobre o futuro, conforme uma lei científica faria. O puro empirismo não pode

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gerar leis científicas universais. Estas, argumentava-se, só podem ser for-necidas pela lógica, onde o determinismo, a necessidade, são conseqüência da estrutura formal. A conclusão de um argumento lógico deve seguir-se, a partir das premissas gerais, se as regras dedutivas são obedecidas de ma-neira correta. Esta interpretação da explicação científica, um casamento da interpretação empírica com as certezas da lógica dedutiva, tornou-se conhecida como o modelo hipotético-dedutivo da explicação científica.

Nessa perspectiva, uma teoria científica consistia em um conjunto de afirmações ligadas por regras lógicas. A lei era expressa por uma afirmação universal da forma "Todos os 'A ' são 'B'" A partir disso e de outras afir-mações de condições iniciais, deduzia-se uma hipótese a ser testada contra a observação empírica. Considerava-se um acontecimento explicado se fosse possível mostrar que o mesmo era uma conseqüência lógica das afir-mações teóricas. Esta interpretação parecia solucionar diversos problemas; em primeiro lugar, evitava as dificuldades da indução. Embora afirmações do tipo "todos os 'A' são ' B ' " não possam logicamente ser provadas ou verificadas de forma conclusiva, podem ser desmentidas por algum contra-exemplo de um A que não seja um B. Popper, por exemplo, nega a possi-bilidade de se usar a indução para chegar-se a leis gerais. A universalidade de uma lei não pode ser uma questão de probabilidade, tampouco, pois isto diria efetivamente que a lei às vezes seria verdadeira, às vezes não. Apesar disso, as leis científicas são leis empíricas e sujeitas à confirmação empírica, e o método de testagem é dedutivo. A explicação científica é explicação causai uma vez que "a explicação de um acontecimento signi-fica deduzir uma afirmação que o descreve, usando como premissas da de-dução uma ou mais leis universais; juntamente com certas afirmações pe-culiares, as condições iniciais".16 As leis científicas são afirmações causais empíricas descrevendo acontecimentos na Natureza e podendo ser verda-deiras ou falsas, e sua verdade ou falsidade é determinada pela observação.

Uma outra questão, a combinação de empirismo e lógica, que isto parecia resolver foi discutida anteriormente em conexão com os todos sociais e a capacidade — ou melhor, incapacidade — de percebê-los. Uma teoria, interpretada deste modo, era evidentemente mais complexa do que a afirmação "Todos os 'A' são ' B ' " pareceria sugerir. A teoria pode conter postulados e conceitos que não são, eles próprios, sujeitos a testes obsef-vacionais1. Tais conceitos obedeciam a um propósito heurístico dentro da linguagem teórica. Assim, embora ainda se desse às teorias uma interpre-tação empírica, concedia-se mais espaço aos não-observáveis, conceitos cuja verdade não dependia diretamente de uma correspondência com o mundo. A estrutura formal de uma teoria era muitas vezes tão complexa

16 K. Popper, The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson, 1959, p. 59.

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58 A Filosofia da Pesquisa Social

e detalhada que os "conceitos teóricos" eram freqüentemente necessários para a conveniência da manipulação lógica e matemática. Não mais se considerava necessário que todos os conceitos numa teoria tivessem sig-nificado empírico. Uma forma de expressar tal fato foi falar de uma lin-guagem teórica e de uma linguagem observacional, unidas por regras de correspondência que interpretavam alguns dos conceitos teóricos empi-ricamente.11 Deste modo, a teoria ainda estava sujeita ao teste empírico através de predições atingidas dedutivamente.

Estes afastamentos da interpretação de ciência bastante ingênua pro-posta por Mill e seus seguidores não destruíram, no entanto, o espírito empirista: a reinterpretação apenas o reformava para que correspondesse mais de perto àquilo que era considerado como sendo a prática da ciência natural. Isto constituiu um desenvolvimento útil para as ciências sociais, uma vez que autorizava os atuais métodos de pesquisa ortodoxos. A dis-tinção entre linguagem teórica e linguagem observacional empírica era importante. Assim também a idéia da certeza da predição que parecia ca-racterizar as ciências naturais. A interpretação empirista do conhecimento científico sustentava que as leis só eram prováveis no sentido de serem tentativas e abertas à revisão. Como, então, seria possível falar-se da certe-za da ciência natural? Segundo o modelo de explicação hipotético-dedu-tivo, tal se dava em razão do uso da lógica e da matemática as quais, com-binadas com uma interpretação de leis essencialmente empírica, davam à ciência natural a sua "certeza". Esta "certeza" era uma ficção, certamente conveniente e útil, mas sem dúvida uma ficção pois não conseguia ocultar a natureza tentativa da descoberta científica: Afinal de contas, a história registrava que as leis científicas haviam se mostrado deficientes, sendo substituídas por outras mais novas e eficazes. Para as ciências sociais isto foi benéfico, porque a sua falta de sucesso ao formularem leis de probabi-lidade até mesmo moderada podia ser atribuída à complexidade muito maior dos fenômenos sociais se comparados aos da natureza inanimada. Os fenômenos sociais eram também mais difíceis de medir com a precisão obtida nas ciências naturais, e os erros mais prováveis. Tudo isto foi consi-derado um sinal de que a ciência social positivista estava, pelo menos, no caminho certo, ao enfatizar o desenvolvimento de métodos de pesquisa cada vez mais sofisticados e ao prestar menos atenção à questão da base teórica; das disciplinas.

Os problemas permaneciam. Anteriormente, ao discutirmos o mé-todo hipotético-dedutivo, foi assinalado que a teoria relaciona-se ao mun-do através de regras de transformação que traduzem alguns dos conceitos

17 E. Nagel, The Structure of Science, Routledge & Kegan Paul, 1961, uma discussão de linguagens "teórica" e "de observação".

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em conceitos observacionais. Viu-se a teoria como dependente, quanto à sua verdade ou falsidade, sem se levar em conta a posição adotada de verifi-cação ou invalidação dos fatos do mundo. O mundo era "exterior" à teo-ria. A teoria não modelava o mundo mas podia apenas ser responsável por ele. A importância de uma linguagem observacional neutra residia precisa-mente nisto, apesar do fato de que a idéia de tal linguagem mostrava-se problemática. As regras de transformação mostravam-se igualmente refra-tárias e se reduziam ante o que veio a ser amplamente conhecido como o problema da mensuração.

Entre os positivistas, as soluções a isto foram vários modelos de me-dida que presumivelmente aplicar-se-iam aos dados sociais. Uma doutrina influente foi a do "operacionalismo", baseada na suposição de que as cate-gorias usadas na pesquisa empírica seriam mais bem definidas em termos das operações usadas para medi-las.18 Assim, nesta doutrina, o conceito de Ql é definido pelo que os testes de QI medem; da mesma forma, con-ceitos tais como classe, status, poder, autoridade e outros seriam definidos pelos indicadores utilizados para medi-los. Tais medidas poderiam ser usadas em manipulações estatísticas e matemáticas. Mais uma vez, o opera-cionalismo encarnava uma concepção empirista da natureza dos concei-tos que não correspondia às esperanças nele depositadas. Uma dificuldade era que, sendo rigorosamente concebido, o operacionalismo criava proble-mas agudos de validade. Embora, rigorosamente falando, não se pudesse perguntar o que um teste realmente media uma vez que a medida era o conceito, as questões de validada de fato surgiam. Primeiramente, poder-se-ia dizer que diferentes mensurações de fenômenos tais como o QI me-diam coisas diferentes, já que constituíam testes diferentes. De forma se-melhante, diferentes mensurações de classe ou status social seriam coisas diferentes. É claro que esta situação era insatisfatória se o propósito era descobrir generalizações. Além disso, mesmo um operacionalismo fraco, isto é, não sustentando que os conceitos fossem as operações de men-suração mas que, ao invés disso, considerasse a doutrina um guia útil para a pesquisa empírica, ainda levava ao problema de relacionar os conceitos empíricos aos teóricos.

Conquanto os procedimentos de mensuração em diversas ciências sociais sejam extremamente sofisticados, existe ainda a questão sempre pertinente da relevância teórica de tais técnicas: Muitas delas visavam a explorar o princípio de associação ou correlação, de acordo com a tradi-ção dos cânones de investigação de Mill, sendo o objetivo medir conceitos num nível suficientemente alto de forma a corresponder às suposições de

18 Ver P. Bridgeman, The Logic of Modern Physics, Nova York, Macmillan, 1927; N.P. Campbell, Foundations of Science, Nova York, Dover, 1957.

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60 A Filosofia da Pesquisa Social

medidas estatísticas de associação.19 Embora tais técnicas tenham resulta-do em qualquer número de generalizações empíricas, nenhuma foi ofere-cida como base ou como "não sendo inteiramente consistente"? De fato, as interpretações de tais associações são primordialmente de uma natureza post hoc apesar de sua freqüente obediência ao método hipotético-dedu-tivo e ao teste de predição. Todos os tipos de racionalizações, plausíveis e às vezes não tão plausíveis, são empreendidos para tornar as associações teoricamente "interessantes". Aquele clássico da ciência social positivista, o estudo de Durkheim sobre o suicídio, contém muitas generalizações sintetizando a relação correlacionai entre casamento e suicídio, vida ur-bana e suicídio, religião e suicídio, e assim por diante, ao passo que o restante da análise consiste em interpretações e argumentos, muitos deles argutos, engenhosos e perceptivos, elaborando bases lógicas post hoc para explicar o que existe nos fenômenos correlacionados que leva ao suicídio.

Tais associações podem ser consideradas protoleis? Uma resposta afirmativa a esta pergunta parece improvável, uma vez que o que até agora foi dito começa a sugerir a conclusão de que nenhuma generalização empí-rica pode jamais, logicamente, constituir uma lei. Brown estabelece aqui uma distinção útil entre "generalizações nomológicas" e "generalizações acidentais".20 Embora ambas compartilhem da mesma forma lógica — "todos os 'A' são 'B' " — as generalizações nomológicas sustentam as afir-mações condicionais subjuntivas e contrafatuais, enquanto que as genera-lizações acidentais não o fazem. Por exemplo, a lei sobre sólidos dissolvi-dos aumentando o ponto de fervura de um líquido permite um condicional subjuntivos tal como: "Se esta porção de sal sólido fosse dissolvida neste recipiente de água fervente, o ponto de ebulição seria então elevado." A lei, juntamente com afirmações a respeito das condições iniciais decla-rando que a lei é aplicável neste caso específico, nos permite fazer tal afirmação. De forma semelhante, fornece base para uma afirmação contra-fatual tal como: "Se esta porção de sal sólido tivesse sido dissolvida em água — embora de fato tal não tenha ocorrido - o ponto de ebulição da água teria sido elevado." Em suma, as generalizações ou leis nomoló-gicas permitem-nos fazer inferências sobre casos que não ocorrem agora, não ocorreram no passado e podem não ocorrer no futuro. As generaliza-

19 As técnicas de análise de dados de survey são bons exemplos do uso prático dos cânones de Mill. Ver também H. Blalock, Causai Inferences in Non-Experimental Research, University of North Carolina Press, 1964. 20 R. Brown, Rules and Laws in Sociology, Routledge & Kegan Paul, 1973, pp. 91-

2; D. Willer e J. Willer, Systematic Empiricism, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1973, p.10. Trata-se de uma excelente discussão, por vezes sem rodeios, de muitos dos

problemas levantados neste capítulo.

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ções nomológicas expõem relações hipotéticas de conexão invariável, quer a relação seja de fato exemplificada quer nãò.

Isto prova ou invalida uma teoria? Alternativamente, poderíamos dizer algo um pouco mais fraco do que isso: que "empresta" leis sociais. A ciência social produziu um catálogo de associações entre qualquer nú-mero de variáveip: entre, por exemplo, classe e educação, educação e mobi-lidade social, classe e votação, classe e doença mental, religião e votação, participação associativa e alienação, grau de industrialização e alcance da violência política doméstica e assim por diante. Todas variam de fracas a fortes mas nenhuma é perfeita? um fato normalmente atribuído a erros de medida e/ou ao fato de que o mundo social é tão complexo que ou-tras variáveis, talvez mesmo desconhecidas, afetem de alguma forma as relações. Em todo caso, tudo o que se requer é prolongar a pesquisa e aprimorar as medidas. No entanto, algo parece estar errado aqui. Em pri-meiro lugar, a que levam as generalizaçõés? Em segundo, são estas as prote-leis de disciplinas jovens e imaturas que podem formar a base para verda-deiras leis científicas?

Tomemos inicialmente a questão da natureza de tais generalizações, onde uma série de observações pode ser feita. Tais associações baseiam-se normalmente numa amostra de alguma população, as medidas de asso-ciação sintetizando as relações encontradas entre as variáveis daquela amos-tra. Em qualquer amostra poder-se-ia produzir qualquer número dessas associações entre todos os tipos de fenômenos "dessemelhantes", portanto elas sintetizam relações entre aquelas variáveis consideradas importantes o bastante para serem levadas em conta e incluídas no estudo. Isto levanta mais uma questão: como chegar a uma decisão a respeito do que incluir no estudo? O método hipotético-dedutivo sugeriria que a teoria prescreve o que deve ser incluído, que variáveis devem ser examinadas, que variáveis devem ser controladas, e assim por diante. O próprio Mill, embora um empirista tão radical quanto é possível sê-lo, não descartou a importância da hipótese. As hipóteses eram necessárias ao se aplicar qualquer de seus métodos de investigação e ao se derivar conseqüências verificáveis das leis expressas pelas hipóteses. Porém, para Mill, todas as hipóteses eram sugeri-das pela experiência e capazes de serem verdadeiras ou falsas. Mesmo acei-tando isso, no entanto, não fica ainda claro como o tipo de associações de que falamos pode ser considerado teoricamente relevante. O que fazei mos com uma associação que não seja perfeita?

Nenhuma dessas características aplica-se às generalizações acidentais. A generalização, para usar o próprio exemplo de Brown, de que todos os livros nesta sala tenham o formato de oitava não nos capacita a inferir que qualquer livro adicional trazido para a mesma sala seja do mesmo formato. Embora diversas generalizações acidentais possam sempre ser confirmadas de fato, em todos os tempos e lugares, isto ainda será, segundo afirma

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62 A Filosofia da Pesquisa Social

Brown, "um acidente feliz e não uma conseqüência de constituírem uma conexão semelhante a uma lei entre as propriedades em questão ou, mais basicamente, de constituírem uma teoria científica a partir da qual pode-se derivar a generalização".21 Isto é, pareceria não haver uma teoria cientí-fica a partir da qual deduzir uma generalização que impedisse que um livro de outro formato fosse incluído entre os livros daquela sala. A questão é se as generalizações acidentais ("acidental" talvez seja uma escolha de pala-vra pouco feliz neste caso, uma vez que essas certamente não são triviais ou insignificantes) constituem o tipo de generalizações produzidas pela maior parte dos métodos de ciência social'. Brown sustenta que não se pode traçar uma linha nítida entre as generalizações acidentais e as generaliza-ções empíricas universais. Isto porque todas baseiam-se em processos observacionais, e não em processos teóricos. São generalizações sobre regu-laridades observadas, diferentemente das leis teóricas, e seu âmbito expla-natório é conseqüentemente limitado.

Suponhamos, por exemplo, que após estudos intensivos de amostras de indivíduos encontramos uma correlação alta e positiva entre o número de irmãos e irmãs e um mau desempenho educacional. Esta seria uma generalização acidental ou empírica - ou o quê? É difícil dizer, pois há argumentos nas duas direções. Mas este não é realmente o problema. Se desejássemos usar a generalização para explicar por que o pequeno Johnny, na casa ao lado, com doze irmãos e irmãs não vai bem na escola, isto po-deria realmente ser oferecido como razão. Porém e quanto aos outros fatores, outras razões? Não se poderia deduzir o mau desempenho de John-ny a partir da generalização? A resposta parece ser negativa por duas ra-zões principais. Em primeiro lugar, diferentemente das leis normais ofe-recidas na ciência natural, as condições sob as quais a aplicabilidade da lei é julgada são no mínimo indeterminadas. Há uma falta de teoria da qual derivar a generalização. Isto é o que dizíamos anteriormente, ao afirmar que grande parte da interpretação das generalizações empíricas é post hoc. Existem, de fato, muitas diferentes teorias consistentes com esta ge-neralização. Embora os mecanismos envolvidos pudessem ser intuitiva-mente óbvios, por exemplo, famílias grandes implicam menos tempo para o estudo, menos atenção dos pais para cada criança, rivalidade entre os diversos irmãos e assim por diante, esta não é a mesma espécie de relação que se esperaria encontrar entre uma teoria científica e quaisquer obser-vações que dela pudessem ser deduzidas. Em segundo, já que a generaliza-ção é extraída de uma amostra, teríamos apenas uma generalização estatís-tica? declarando que uma propriedade' (número de irmãos) associa-se a outra propriedade (mau desempenho educacional) com uma freqüência

21 Ibid. Brown, p. 93, op. cit.

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O Positivismo e a Linguagem da Pesquisa Social 63

específica. Nada se segue a isto sobre qualquer exemplo em particular:22

a correlação simplesmente expõe a proporção que provavelmente surgi-rá a longo prazo. Isto não pode fornecer uma conclusão dedutiva, mas apenas uma indutivà. As'premissas elaboradas a partir de tal generalização não podem logicamente implicar uma conclusão, somente uma forte base.

O POSITIVISMO E A TEORIA CIENTIFICA

As observações anteriores começam a nos levar à conclusão de que a con-cepção positivista da ciência, com sua confiança quase total na observação e no método empírico, é bem pouco precisa. As generalizações produzidas pela maior parte dos métodos empíricos na ciência social não começam a parecer semelhantes às leis fornecidas pela ciência natural. Isto tem sido freqüentemente atribuído à imaturidade das disciplinas e à complexidade relativamente maior dos fenômenos sociais! comparados ao objeto de estu-do das ciências naturais. Entretanto, é possível que algo mais esteja errado aqui, relativo à visão de ciência encarnada pelo positivismo.

Uma visão persuasiva disso continua a argumentar com a interpreta-ção predominantemente empírica das leis científicas e das teorias cientí-ficas que constituem parte da herança positivista. Como um sistema de empirismo do conhecimento, do qual o positivismo é uma parte, vai ser encontrada em muitas atividades diversas de conteúdo amplamente variado desde a magia primitiva até a tecnologia moderna. Sua característica prin-cipal e determinante é que esta relaciona o observável ao observável.23 Efe-tivamente, trata-se de um sistema de tentativa e erro e pode bem levara resultados eficazes os quais, por sua vez, levam a procedimentos de rotina. Em contraste a isso, o pensamento racional1 lida apenas com a concatena-ção teórica de idéia a idéiaie é característico da lógica e da matemática mas também de alguns sistemas metafísicos de pensamento. A ciência tem características tanto do empírico quanto do racional, porém de um modo muito diferente daquele pressuposto pelo positivismo. A ciência, como o empirismo, preocupa-se com a conexão empírica e, como a lógica e a matemática, com a conexão racional de idéia com idéia. Mas é através da

22 W.S. Robinson, "Ecological Correlations and the Behaviour of Individuais", American Sociological Review, 15 (1950), 351-7, identificou numerosas falácias eco-lógicas relativas à inferência de dados individuais a partir de agregados. Também H. Alker, "A Typology of Ecological Fallacies", in M. Dogan e S. Rokkan (orgs.), Quan-titative Ecological Analysis, Cambridge, Mass., MIT Press, 1969, pp. 69-86. Mas ver P.F. Lazarsfeld e H. Menzel, "On the Relation Between Individual and Collective Properties", in A. Etzioni (org.), Complex Organizations: a sociological reader, 2? ed., Nova York, Holt, Rhinehart & Winston, 1969, pp. 499-516.

23 Willer e Willer, op. cit., p. 16.

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"conexão abstrativa" de conceitos teóricos com observações que esses con-ceitos recebem importância empírica. Uma explicação científica usa leis determinativas e não leis interpretadas como afirmações causais gerais. Esta é a fonte da precisão maior do conhecimento científico, a saber, da determinação de suas conexões racionais. O exemplo oferecido por Willer e Willer para ilustrar a diferença entre conhecimento empírico e científico é instrutivo, aqui.24

Uma relação entre tempo frio e radiadores avariados de automóveis pode ser facilmente descoberta pelo uso de métodos empíricos. Observa-se o gelo presente no sistema de resfriamento do automóvel e, tendo ouvido de outros proprietários que deixaram de utilizar medidas de não-congela-mento e também encontraram seus radiadores avariados, conclui-se que os radiadores se estragam dessa forma, no inverno rigoroso, quando não se tiver acrescentado um produto preventivo de congelamento à água fria. Esta explicação (e é perfeitamente adequada para seus propósitos) faz uso de conexão empírica entre observáveis tais como radiadores avariados e inverno rigoroso. A conexão é feita como resultado de observações re-petidas e, acrescentaria Hume, de hábito. Uma explicação científica, por outro lado, poderia começar com a idéia de que, sob a elasticidade perfei-ta, a tensão é igual à pressão. Então tentar-se-ia determinar um valor para o limite de elasticidade do radiador, medindo-se a quantidade de força aplicada antes do estrago. Medindo-se a temperatura do ar e da água na noite em pauta, podemos determinar o ponto no qual a água se congelaria, produzindo bastante gelo para gerar a tensão que levaria o radiador a seu limite de pressão; uma tensão maior do que este limite de pressão que-braria o radiador. Neste caso uma lei está sendo usada, uma afirmação de identidade, na qual a tensão é igual à pressão sob condições de perfeita elasticidade de um objeto. Tanto a pressão quanto a tensão são medidas pela força e o conceito de "elasticidade" é associado ao termo observacio-nal "objeto". O objetivo da lei é derivar uma medida para o limite de pressão aplicando a tensão, e comparar a tensão calculada no momento de se romper este limite. Na medida em que o valor do limite de pres-são foi determinado por um cálculo de tensão, é difícil ver como as leis poderiam ser provadas como falsas em tal aplicação. O cálculo exato de um limite não poderia ter sido atingido empiricamente. Mesmo que a tem-peratura pudesse ter sido medida exatamente e se afirmasse que quanto mais fria a temperatura mais probabilidades haveria de que o radiador se avariasse) tal não resulta no cálculo exato de um limite. Pode resultar numa distribuição de probabilidade, mas isto não nos dirá se o radiador vai se quebrar ou não. As leis científicas podem indicar uma condição mensurá-

24 Ibid.

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vel sob a qual a quebra se dê, uma generalização empírica apenas de que isto acontecerá com uma certa probabilidade.

A ciência e o empirismo diferem no modo como transcendem exem-plos particulares. O segundo o faz por generalização, isto é, aplicando um nome para um conjunto de objetos semelhantes formando, assim, uma categoria empírica através do processo observacional: carro, árvore, socie-dade, macho, fêmea, e assim por diante. Estes são então relacionados a outras categorias empíricas por meio de métodos como as correlações. A ciência, por outro lado, transcende o caso particular por abstração, por um processo de seleção e não pela adição de características similares. Na verdade, os fenômenos observacionais abstraídos deste modo podem ter pouca similaridade óbvia entre si. As bolas de bilhar não são como os foguetes, para usar outro exemplo de Willer e Willer, mas ambos podem ser abstratamente conectados com os conceitos das mesmas leis de movimento.

O significado de conceitos abstraídos deriva-se não da aparência se-melhante de objetos mas de suas relações com outros conceitos na teoria. O processo de abstração, efetivamente, conceitua observações de forma que estas possam ser deterministicamente relacionadas a outros conceitos. De repente é fornecido um' universo potencialmente infinito como arca-bouço conceituai para a teoria. A conexão racional entre os conceitos numa teoria não é em absoluto como a conexão causal. Podemos certa-mente usar a relação x = vt, mas não observamos a distância a descobrir se esta é seguida pela velocidade multiplicada pelo tempo. A abstração na ciência move-se sem cessar entre o nível empírico e o teórico, expondo e aguçando o âmbito de aplicação e seu poder explanatório. É questão de estabelecer um isomorfismo entre termos teóricos, os quais, por sua na-tureza, são não-observáveis e observáveis empíricos. Isto pode ser auxiliado pela manipulação em condições de laboratório, fixando as condições empí-ricas e variando o modelo, construindo um modelo que se ajuste ao caso empírico, e assim por diante. Diferentemente das generalizações, na abs-tração não existe problema a respeito da precisão das semelhanças, uma vez que a teoria e seu(s) modelo (s) são construções ou invenções delibe-radas e mentais, e os pontos de descrição são limitados por essa descrição. Além disso, a teoria pode ser aplicada, como já foi sugerido, a um número ilimitado de casos. Tal não se verifica com as generalizações empíricas. Os modelos gerados a partir de uma teoria podem também parecer muito dessemelhantes. A falta de sucesso no caso de uma teoria não significa que a teoria era falsa; em lugar disso, pode indicaram limite para seu alcance, ou significar que um erro de abstração tenha sido cometido?

Existe uma concepção bem diversa de medida nesta noção de ciên-cia. Para o positivista, a medida é efetivamente um assunto empírico bas-tante divorciado da teoria. Conseqüentemente, o chamado "problema de

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medida" na ciência social tem gerado esforços para tentar medir todos os tipos de variáveis numa tentativa de dar-lhes a precisão e a exatidão con-sideradas características das ciências naturais. Dedicou-se energia no senti-do de "operacionalizar" conceitos teóricos com índices que poderiam servir para os conceitos não-observáveis da teoria com todas as dificuldades resultantes deste procedimento. Mais uma vez, o objetivo era conectar a teoria ao mundo empírico de observáveis pelo uso de técnicas empíricas. Entretanto, na noção aqui esboçada, os conceitos numa teoria científi-ca relacionam-se abstratamente aos observáveis. Eles são empiricamente interpretados e a medida é um meio pelo qual um conceito é empiricamen-te interpretado! A medida determina os dados e não o inverso. A medida é, decididamente, uma conseqüência da teoria. 0 "comprimento", por exemplo, numa teoria científica tem um significado puramente teórico, e seria tolice indagar o que comprimento "realmente é". A resposta a "o que significa o conceito 'comprimento"' está nas leis e postulados da teoria. Os conceitos que são medidos são escolhidos como conseqüência desses postulados fundamentais, sendo empiricamente interpretados em muitos modos diversos, de acordo com as circunstâncias. A aplicação de uma teoria a uma vasta série de fenômenos dá lugar a interpretações em-píricas bastante diversas. A temperatura pode ser medida, por exemplo, usando-se um termômetro de mercúrio comum ou, com objetos muito frios, por meio de resistência a uma corrente elétrica. Nos dois casos, a medida é o resultado direto das leis da termodinâmica. A medida é im-possível sem uma teoria já entendida.

O que esta noção de ciência implica para o positivismo e as ciências sociais? Se as noções que acabamos de sintetizar são corretas, então á noção positivista de ciência natural deve ir por água abaixo. No decorrer deste capítulo, discutimos algumas das dificuldades existentes na aplicação positivista desta noção de ciência ao objeto de estudo da ciência social. Começa a parecer que a interpretação de ciência natural à qual esta aplica-ção foi atribuída é, ela própria, falha e mal concebida. O positivismo en-fatizou alguns aspectos da ciência natural a expensas de outros. A ciência é empírica mas é também profundamente teórica; na verdade, talvez fosse possível argumentar de forma convincente que a ciência interessa-se mais pela teoria do que pelo empírico1. As leis? o objetivo tanto do positivismo quanto da ciência, não são generalizações empíricas causais mas afirmações racionalmente associadas. É verdade que, na sua infância, algumas ciên-cias podem bem proceder de um modo empírico relacionando observáveis com observáveis, do tipo "prove e veja", mas as coisas não podem parar nisso se houver amadurecimento como ciência. O próprio positivismo suspeitou de que a conexão racional poderia ser bastante mais importante do que alguns de seus adeptos admitiriam. O método hipotético-dedutivo, por exemplo, foi uma tentativa de racionalizar a importância da lógica

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e da matemática, porém isto estava ainda firmemente dentro da estrutura empirista.

No entanto, embora possamos certamente aceitar que o positivismo-confundiu a natureza da ciência, isto não implica que os métodos que este autorizou como métodos de ciência social sejam conseqüentemente falhos. Pode bem ser que eles não sejam científicos no sentido agora deli-neado, mas isto sugere que não possam constituir uma forma de conhe-cimento, diferente da ciência porém válida em quaisquer outros termos? Esta questão é muito ampla, e será tratada mais detalhadamente no capí-tulo final. No momento, uma ou duas observações serão suficientes. Uma implicação que pode ser extraída é que a autoridade intelectual para tais métodos não mais pode existir em termos de uma concepção positivista da ciência? ou que pela utilização de tais métodos as ciências sociais estão imitando servilmente as ciências naturais. Como tais métodos lidam com a produção de generalizações empíricas, eles estarão sujeitos às restrições lógicas de tais generalizações assinaladas anteriormente. Mas, repetimos, isto não significa que tais generalizações não interessam ou não possuem utilidade. Ainda discutiremos o que elas têm a oferecer.

Há também implicações relativas à natureza da teoria científica so-cial, a maior parte das quais não exatamente científicas. Mesmo dentro de uma estrutura positivista, a relação entre teoria e dados foi problemática. Supunha-se que a teoria dependia, para atestar sua veracidade, dos "fatos" do mundo os quais eram "externos" à própria teoria. A teoria, pois, não modelava o mundo porém reagia perante ele. A importância de desenvolver uma linguagem de observação neutra residia precisamente nisto. Entre-tanto, muitos dos candidatos à teoria eram rejeitados nos terrenos extra-empíricos. Na década de 1960, por exemplo, o grande debate teórico em sociologia foi entre teorias de conflito e funcionalismo.25 O funcionalis-mo foi atacado porque parecia ignorar o fato do conflito na vida social. Argumentava, ao contrário, que em realidade um de seus objetivos prin-cipais era examinar as causas e conseqüências do conflito dentro de um conjunto de conceitos mostrando a natureza sistêmica da sociedade. E assim o debate prosseguia, cada lado querendo levar a melhor. Os concei-tos cruciais, tais como "conflito", "estabilidade" etc., não eram consi-derados conexões racionalmente significativas, como na teoria científica. E, naturalmente, não o eram. Tratava-se de algo mais do que o status puramente científico das respectivas teorias. Em poucas palavras, isto tinha a ver com as conotações que tais conceitos traziam consigo para os acontecimentos e processos conhecidos na sociedade empiricamente con-

25 Ver, por exemplo, J. Rex, Key Problems of Sociological Theory, Routledge & Kegan Paul, 1961.

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cebida. Tais debates poderiam, em lugar disso, ser vistos como disputas sobre de que modo o mundo social poderia ser interpretado. O valor cien-tífico de teorias específicas era secundário. Isto nos remete a um outro ponto mais geral a respeito da teoria científica social, o qual será discuti-do mais amplamente no próximo capítulo.

O positivismo, com sua ênfase na idéia de uma linguagem de obser-vação neutra, generalização empírica, e assim por diante, não tinha incli-nações a preocupar-se com a origem e a fonte de teorias. Isto é ilustrado pela relativa falta de interesse demonstrada no assunto da descoberta ci-entífica, o qual era relegado a um posto secundário, além da preocupação filosófica séria. De importância muito maior era a questão de verificar tais teorias já formuladas. A descoberta destas constituía um assunto de conjecturas por parte da imaginação, fantasia, mesmo indução, dos cien-tistas — porém além da descrição lógica formal. O que poderia ser descrito como um processo lógico, segundo se pensava, era a confirmação ou tes-tagem de tais produtos da imaginação. Neste sentido, as teorias tiveram que se conformar com certos critérios formais de modo que pudessem ser testadas contra os "fatos" do mundo. Entretanto, embora esta ên-fase pudesse parecer desculpável ou justificável em relação às teorias da ciência natural, tal não sucede exatamente quando nos voltamos para as ciências sociais. A própria noção de um domínio de investigação, quer seja sociologia, economia, física, química, história ou outra, pressupõe algum esquema conceituai regulando o universo, anterior à observação de fatos relevantes. À parte a objeção óbvia que esta postura faz contra a idéia da observação ser um assunto teoricamente neutro, ela além disso sugere que o sujeito do conhecimento é um constituinte ativo na cons-trução desse conhecimento? As teorias científica, segundo a discussão anterior, são invenções ativamente engajadas na criação de uma realidade e não passivamente à espera de sua concretização nos fatos do mundo ex3

terior.. De modo semelhante, muito daquilo que passa por teoria científica social é determinado secundariamente pelos fatos do mundo? na medida em que nenhum "experimento estratégico" concebível poderia decidir a veracidade ou falsidade das várias teorias. Em lugar disso, tais teorias são antes vistas como esquemas conceituais putativamente determinando ou mesmo legislando de que domínio de fato se trata.

Até agora isto é consistente com esta última concepção de teoria científica embora, naturalmente, outros critérios tivessem que ser satis-feitos antes que estas teorias fossem consideradas como científicas. No entanto, quando aplicada ao estudo da vida social, tal posição realmente gera outros problemas, a partir do fato óbvio de que estão sendo estuda-dos seres humanos os quais também podem teorizar e ter noções a res-peito de suas vidas conforme constituídas na sociedade. Isto nos leva ao assunto dos dois capítulos seguintes. Estes começam fazendo um breve

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retorno para examinar uma tradição diferente da ciência social, tradição que, no decorrer de seu desenvolvimento, tem criticado as concepções positivistas da ciência social. Trataremos de alguns desses pontos exami-nando também as implicações que esta tradição traz para a natureza da pesquisa social.

Uma última observação. Embora a concepção positivista da ciência tenha falhas sérias, como se mostrou, isto não significa dizer que as ciên-cias sociais não possam ser científicas dentro de outra interpretação de ciência. Esta questão terá que ser abordada, mas antes disso é necessário discutir uma outra tradição da investigação social a fim de que se possa apresentar um conjunto diverso porém relevante de considerações no trata-mento dessas questões.

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Há alguns anos, teria sido bastante fácil escrever sobre a alternativa ao posi-tivismo e referir-se, pelo menos no âmbito das ciências sociais, a aborda-gens "humanistas". Estas, em sua totalidade, rejeitavam a noção de que o método científico podia ser aplicado ao estudo da vida social humana, en-fatizando ao invés disso o papel da interpretação, compreensão, comentá-rio moral ou algum outro critério relevante como o único modo apropria-do e válido de se obter conhecimento deste assunto. Atualmente não é fácil manter esta dicotomia. As chamadas abordagens humanistas aceita-ram, de uma maneira geral, a concepção positivista da ciência natural mas sustentaram que a mesma seria inapropriada para o estudo da vida social. Entretanto, é possível, como já vimos, rejeitar a versão positivista e ainda sustentar que tanto a ciência natural quanto a social podem ser entendidas usando-se métodos baseados nos mesmos princípios ontológicos e episte-mológicos:1 em suma, argumentar que a versão positivista da ciência natu-ral é incorreta, que mesmo em seus próprios termos é irremediavelmente falha e não consegue fornecer uma fundamentação adequada de conheci-mento científico, quer do mundo natural quer do social. Antes de voltar a esta questão específica, tratarei de estratégias de pesquisa baseadas em premissas ontológicas e epistemológicas bastante diversas daquelas discuti-das sob o positivismo.

No capítulo anterior, mencionei uma distinção que, historicamente falando, é de fundamental importância no desenvolvimento intelectual oci-dental, ou seja, a distinção entre espírito e matéria. As diferentes escolas filosóficas, embora admitindo a distinção de alguma forma, têm oferecido interpretações diversas para esta. Segundo alguns, os "materialistas", o espírito seria simplesmente um epifenômeno da matéria; para outros, os "idealistas", por exemplo, a matéria seria o produto do espírito ou idéia. Num sentido radical, as duas posições parecem meias verdades ou, pior ainda, absurdas. Enquanto afirmações de posições intelectuais consideradas,

1 Ver, sobre isto, T. Benton, Philosophical Foundations of the Three Sociologies, Routledge & Kegan Paul, 1977.

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estas mal começam a capturar as complexidades dos argumentos apresenta-dos como embasamento para cada doutrina. Para nossos propósitos, impor-ta que o espírito e a matéria são ordens diferentes de fenômenos, quaisquer que sejam as implicações acrescentadas a isso e que, assim sendo, requerem métodos diversos em seu estudo. Ainda mais enfaticamente: o espírito e a matéria necessitam ser estudados através de métodos apropriados a suas realidades respectivamente separadas, nenhum dos dois sendo reduzível ao outro, como muitas filosofias positivistas têm tentado fazer.

ALGUNS PRECURSORES INTELECTUAIS

Os acirrados debates do século XVII formam o background intelectual mais imediato para a noção de que o estudo adequado da sociedade huma-na não poderia ser científico à maneira das ciências naturais. No âmbito das ciências sociais, as figuras importantes são Vico e, muito mais tarde, Dilthey e outros neokantianos. Mais contemporaneamente, os fenomeno-logistas) os sociólogos existenciais' e outros desenvolveram e expandiram esta tradição. O mais antigo destes, Giovanni Batista Vico (1668-1744), via a história humana como um processo refletindo a maturação do espíri-to humano em sua compreensão da natureza de Deus. Ele também introdu-ziu a idéia de que o estudo do homem e da sociedade na história era muito diferente do estudo de outros fenômenos, no sentido de que o primeiro envolvia compreensão subjetiva em termos de significado, um tema que seria mais amplamente desenvolvido posteriormente, em especial por estu-diosos alemães. Bem mais tarde, no século XIX, Wilhelm Dilthey (1833-1911), como parte de uma reação geral contra o positivismo, sustentou que a metodologia positivista das ciências naturais é inadequada para a compreensão dos fenômenos humanos exceto considerando seu aspecto de objetos naturais. O conhecimento de pessoas só poderia ser obtido atra-vés de um procedimento interpretativo, fundamentado na recriação imá-ginativa das experiências de outros. A história, a sociedade, na verdade to-dos os produtos humanos, eram vistos como as objetivações do espírito' humano e não, de forma alguma, como coisas materiais. Assim, a compre-ensão de tais fenômenos requeria que as experiências vividas de outros fossem abarcadas através da apreensão de seu significado interior. O mundo sócio-histórico é um mundo simbólico criado pelo espírito humano e não pode ser entendido simplesmente como uma relação entre coisas materiais.

Portanto, para Dilthey e outros, a Natureza e a cultura eram essen-cialmente diferentes e envolviam métodos diferentes de estudo. A ciência natural, concebida principalmente em termos positivistas, estudava o mundo objetivo, inanimado, não-humano. A sociedade, um produto do espírito humano, era subjetiva, emotiva, além de intelectual. Aquilo que

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chamaríamos de modelos de explicação causais, mecanicistas e baseados em mensurações seriam inadequados, uma vez que a consciência humana não era determinada por forças naturais. O comportamento social huma-no estava sempre impregnado de valores e o conhecimento seguro de uma cultura só poderia ser obtido através do isolamento de idéias comuns, sentimentos ou objetivos de um período histórico específico. Eram estes que tornavam cada ato social subjetivamente significativo. O observador, sendo um ser humano a estudar outros seres humanos, tinha acesso ao mundo cultural de outros através de alguma forma de "reconstrução ima-ginativa" ou "empatia".

Alguns outros, Rickert em especial, não aceitaram a visão dicotômi-ca da realidade esposada por Dilthey em sua cisão entre Natureza e cultura, argumentando em lugar disso que a realidade era indivisível. Entretanto, diferentemente dos positivistas que mantinham uma noção semelhante, isto não implicava em que os métodos da ciência natural fossem portanto aplicáveis ao mundo da sociedade e da cultura. As diferenças entre as ciências naturais e sociais baseavam-se não na metafísica mas na lógica. Para Rickert, os seres humanos não podiam ter conhecimento do mundo independentemente do que existia em suas mentes. Eles não tinham como descobrir se seu conhecimento reproduzia fielmente uma realidade existen-te fora da mente e independente desta. O homem só pode conhecer as coisas na medida em que estas se lhe apresentam como fenômenos, nunca como as coisas são em si mesmas. Os fatos, por assim dizer, constituem-se a partir dos fenômenos e recebem da mente tanto a forma quanto o con-teúdo. Este é um ato volitivo e seu desempenho é uma atividade intencio-nal. Todo conhecimento humano é seletivo, envolvendo abstração de acor-do com interesses particulares. Atinge-se a objetividade, portanto, não pela combinação de idéias ao mundo exterior mas sim através daqueles que têm interesse em conhecer os fatos intra-subjetivamente, estabelecendo tais fatos. Conseqüentemente, se o conhecimento de leis da Natureza é o único conhecimento que se deseja, então o método legítimo que leva à sua formu-lação é o método científico. Se outros têm interesse em conhecer coisas diferentes haverá, além disso, outros métodos de abstração geralmente aceitos por aqueles cientistas que visam a estabelecer esta forma adicional de conhecimento.2

Empiricamente, segundo Rickert, existem dois princípios básicos de seleção em funcionamento, cada um possibilitando chegar-se a um, de dois tipos diversos de representações de realidade, o nomotético e o ideográfico, a saber. O primeiro, característico da ciência natural, refere-se a um inte-

2 T. Burger, Max Weber's Theory of Concept Formation: history, laws and ideal types, Duke University Press, 1976, esp. Cap. 1, discussão sobre a influência de Rikert.

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resse na procura de leis gerais, ao passo que o segundo, mais característico da história, preocupa-se em entender o caso concreto e singular. Esta dico-tomia não representa uma diferença fundamental na ontologia do mundo mas sim no tipo de conhecimento requerido por interesses diversos. Os produtos humanos encarnam valores e são estes que precisam ser entendi-dos pelo cientista social, a fim de dar sentido a constelações singulares que constituem a história humana. Portanto, enquanto a ciência natural está interessada em formar conceitos gerais separando, de todas as característi-cas do concreto, aquelas que existam em comum com outros fenômenos, a ciência histórica preocupa-se em formar conceitos individuais focalizan-do a combinação singular de elementos os quais representam um fenômeno culturalmente significativo. Ambas as atividades usam seus próprios prin-cípios de seleção com o propósito de isolar os elementos da realidade em-pírica que são essenciais para seus respectivos propósitos cognitivos. O ideal do conhecimento objetivo requer ambos os métodos, pois qualquer destes fornece apenas uma imagem parcial da realidade. A mesma realidade, entretanto, pode ser apresentada quer como história quer como ciência natural.

Embora Dilthey e Rickert diferissem quanto às razões para o empre-go de diferentes metodologias com respeito ao mundo natural e ao social, concordavam em que o método da ciência natural positivista não poderia ser utilizado para se obter um conhecimento adequado do social. Weber, muito influenciado de um modo seletivo por Rickert, aceitava o caráter distintivo das ciências sociais mas não a implicação de que estas fossem não-científicas por serem incapazes de atingir os padrões rigorosos da obje-tividade. Como Dilthey, Weber aceitou a importância da "compreensão interpretativa" como a forma distintiva do conhecimento nas ciências só-cio-históricas, mas apenas como um meio em direção ao conhecimento objetivo. Como Rickert, defendeu a noção de que a distinção essencial entre as ciências naturais e as sociais era metodológica e não ontológica. Na verdade, a possibilidade de "compreensão interpretativa" nas ciências sociais era, para Weber, uma tremenda oportunidade e não algo de que se pedir desculpas. Dessa maneira, a ação humana poderia ser estudada mais profundamente do que um cientista natural jamais poderia penetrar na natureza do mundo inanimado.3 Havia, entretanto, um preço a pagar em objetividade, precisão e caráter conclusivo. Weber, pessoalmente, procurou conciliar as vantagens da "compreensão interpretativa" com as exigências dos critérios científicos.

3 M. Weber, The Theory of Social and Economic Organization, Nova York, Free Press, 1969, org. T. Parsons, p. 101; também Z. Bauman, Hermeneutics and Social Science, Hutchinson, 1978, esp. Cap. 3; Benton, op. cit.

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Com este fim, ele apresentou dois princípios metodológicos princi-pais, e ambos ainda constituem uma parte integrante da linguagem contem-porânea da ciência social, a saber, a neutralidade de valor e o método do tipo ideal. Com relação ao primeiro, Weber sustentava que os cientistas sociais nunca deveriam abusar de sua autoridade científica fazendo passar julgamentos de valor por verdades científicas. Quanto a valores conflitan-tes, os cientistas nada podem dizer, a não ser sobre os desfechos prováveis das várias alternativas de valor; a ciência lida apenas com a atividade racio-nal, instrumental, tecnicamente orientada.4 O segundo recurso metodoló-gico, o tipo ide|l, foi oferecido como unvmeio de abarcar significados mantidos subjetivamente com mais objetividade. Todos os aspectos irracip-nais e emotivos do comportamento humano devem ser vistos como desvios de um tipo de ação racional conceitualmente pura. Este tipo ideal é claro e livre de ambigüidade. A compreensão, assim, transformou-se na constru-ção de modelos racionais. Weber sentia que o método da ciência natural, transplantado para o estudo do comportamento social, produziria um co-nhecimento válido porém a respeito de atividades bastante irrelevantes e sem importância, ao menos no que se referisse a nossa perspectiva subjetiva. O contraste entre as ciências naturais e as sociais ocorre em razão de que, nas ciências sociais, os seres humanos são tanto o sujeito quanto o objeto da investigação, o que significa que o conhecimento da sociedade é uma forma de autoconhecimento. "Verstehen" fornece a observadores sociais um método de investigar os fenômenos sociais de um modo que não detur-pe o mundo social daqueles que estão sendo estudados. Uma vez que a essência da interação social está nos significados individuais de agentes, toda análise social válida deve remeter de volta a estes. Entretanto, as per-cepções obtidas desta maneira devem basear-se em dados científicos e esta-tísticos. Todos os fenômenos, mesmo os mais singulares e específicos, são os produtos de condições anteriores, relacionadas por causas. Com isto, Weber não quer dizer que os atos devem ser reduzidos a leis únicas e extre-mamente abrangentes mas que, do todo complexo da realidade social, extraem-se antecedentes e conseqüências limitadas e singulares que relacio-nam-se a fenômenos observados. Tal "causação adequada" fornece explica-ções probabilísticas.

Esta tradição de pensamento reagindo contra as concepções positivis-tas da ciência e sua importação para o seio da ciência social criou um pode-roso impacto, principalmente na Europa, enquanto que neste país e nos Estados Unidos o impacto foi menor. Para nossos propósitos, uma carac-terística destaca-se dentre todas, ou seja, a visão de que as ciências sociais

4 M. Weber, Methodology ofthe Social Sciences, Nova York, Free Press, 1949, trad. E. Shils e M.A. Finch.

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envolvem métodos radicalmente diversos dos das ciências naturais. Sem dúvida, os argumentos para tal nem sempre assumiram uma forma ontoló-gica mas, ao invés disso, assinalavam os tipos diferentes de conhecimento requeridos pelas respectivas disciplinas. De qualquer forma, diferentes me-todologias eram envolvidas. Agora, trataremos de examinar algumas des-tas questões.

A AÇÃO E O SIGNIFICADO SOCIAL

Em parte, o programa "humanista" está reagindo contra uma concepção "cientificista" do ator social como é visto encarnado na ciência social ortodoxa de inspiração positivista. A acusação é que aquelas característi-cas que fazem da vida social um produto distintivamente humano são ana-lisadas e reduzidas à interação de variáveis.5

Certas vezes tais acusações constituem pouco mais do que uma com-preensível frustração ante a visível banalização dos problemas da ciência social e a traição que isto representa quanto às preocupações morais que motivaram os primeiros pensadorês. O que a ciência social positivista tinha exatamente deixado de lado era um assunto a ser debatido; se havia livre arbítrio e escolha, preocupações morais e políticas, uma preocupação pelo destino humano, valores, o "eu", a dimensão subjetiva, ou o quê? Assim, por exemplo, poder-se-ia apresentar o argumento de que mesmo sendo muito possível descrever empiricamente padrões de ação social através do uso de todo o aparato da ciência social positivista, isto não conseguiria; atingir o assunto específico de ciência social. Em suma, não conseguiria for-necer uma interpretação adequada das razões pelas quais o padrão de inte-ração ocorria daquele modo, de quando e onde ocorresse em termos fiéis a sua categoria enquanto produto humano. Não explicaria o fato de que seres humanos de carne e osso produzissem as interações e, conseqüen-temente, na melhor das hipóteses seria apenas uma análise parcial. O argu-mento poderia ainda ser levado adiante, com a alegação de que os métodos positivistas, além de fornecerem uma versão parcial da vida social, detur-pam-na gravementè.

Estas questões estão contidas na caracterização, atualmente famosa, de Weber quanto à "ação social": uma ação é social quando um ator social atribui um certo significado à sua conduta e, por meio deste significado, relaciona-se ao comportamento de outras pessoas.6 A interação social

s Ver, por exemplo, H. Blumer, "Sociologjcal Analysis and the Variable", American Sociological Review, 21 (1956), pp. 683-90. 6 Weber, The Theory, p. 88.

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ocorre quando as ações são reciprocamente orientadas em direção a ações de outros. As ações orientam-se reciprocamente porque os atores inter-pretam e fornecem um significado tanto a seu próprio comportamento quanto ao de outros, e não de forma mecanicista, através de estímulos e respostas. O próprio Weber dedicou esforços consideráveis para elucidar as implicações desta formulação. O ponto importante aqui tem a ver com a noção de significado e sua relação com o tipo de conhecimento do qual necessitamos ou que podemos ter a fim de compreender ou explicar os fenômenos sociais. Falar em significado é começar a assinalar o fato extre-mamente importante de que os seres humanos, podemos dizer, possuem uma vida mental rica e variada, refletida nos artefatos e instituições sociais nos quais eles vivem. Em termos sociológicos e antropológicos, referimo-nos a isto de um modo global como "cultura". Inclui-se nisto tudo o que os atores sociais podem falar, explicar, descrever para outros, desculpar ou justificar, acreditar, afirmar, assinalar, teorizar, concordar, debater, orar, criar, construir e assim por diante.

Uma forma de se considerar o significado é vê-lo como um compo-nente subjetivo ou interno do comportamento.'Isto equivaleria a traçar um contraste entre as características objetivas de ação social e seus elementos subjetivos. As regularidades que descobrimos no estudo da sociedade são apenas as aparências ou produções externas daquilo que os membros de uma sociedade compreendem. Este aspecto pode ser ilustrado usando-se o famoso exemplo de Hart de comportamento de trânsito.7 Um fluxo do trânsito controlado por semáforos certamente mostra regularidade. Se este fosse considerado puramente como o produto de fatores causais, para se explicaremos padrões seria necessário especificar as condições necessárias e suficientes que produzem um dado padrão, e prosseguir formulando uma teoria formal vinculando os sinais de trânsito ao movimento do fluxo de trânsito. Teríamos que especular sobre os mecanismos causais em pauta. Isto poderia nos levar a supor que alguns mecanismos de ligação elétrica funcionassem ativados pelas luzes de cores diversas. Entretanto, na reali-dade, sabemos que há regulamentos governando os sinais de trânsito, os quais comandam o comportamento do trânsito de maneiras determinadas, segundo o padrão das luzes. Assim, a conexão entre as luzes e o movimen-to do trânsito pode ser explicada em termos do significado que as luzes têm dentro de uma cultura específica.

A questão importante que surge deste exemplo é se uma explicação em termos de significado é compatível com uma explicação causai. Se a

7 H.L.A. Hart, The Concept of Law, Oxford University Press, 1961; e discutido mais extensamente em A. Ryan, The Philosophy of the Social Sciences, Macmillan, 1970, pp. 140-1.

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resposta for negativa, isto pareceria indicar uma diferença fundamental en-tre as ciências sociais e as físicas. Alegar-se-ia que a relação entre os semá-foros e o comportamento de veículos nas estradas não é da mesma ordem lógica da existente, digamos, entre a luz do sol e o crescimento das plantas, entre o trovão e o relâmpago, ou entre bolas de bilhar que se entrechocam. Embora elementos causais tradicionalmente considerados estejam envolvi-dos nos semáforos e no comportamento que estes produzem, por exemplo, nos mecanismos que ativam as luzes e no funcionamento dos motores dos veículos, tais elementos são irrelevantes para se compreender a relação entre as luzes e a configuração do trânsito. Esta relação é significativa, e o que revelamos é uma prática governada pelo hábito ou por regulamentos e não um exemplo de lei causal; Os motoristas poderiam dar razões pelas quais pararam quando a luz vermelha brilhou, ou se movimentaram quan-do esta deu lugar à verde. Em suma, eles próprios poderiam responder pelo que fizeram: "porque a luz vermelha sinalizou 'pare'", "a luz verde deu-me licença para prosseguir", "se alguém não parar com a luz vermelha, arrisca-se a ter problemas com a polícia", "é preciso obedecer aos sinais de trân-sito, caso contrário as estradas tornar-se-iam um caos" etc. Tais razões in-vocariam intenções, propósitos, justificações, regulamentos, convenções, e assim por diante, em lugar de mecanismos causais impessoais.

Existem aqui numerosos problemas relacionados à categoria ontoló-gica de razões e regras, à categoria das versões da ciência social em oposi-ção às dos membros da sociedade, à natureza da ação social e sua descrição, e outros mais, todos interligados de formas complexas, e torna-se impossí-vel no espaço de que aqui dispomos tratá-los com os detalhes que merecem. Entretanto, comecemos por tentar estabelecer algumas posições prelimi-nares. A tarefa do cientista social é fornecer alguma versão teórica da vida social? Isto requer pesquisa empírica a fim de obter dados que dêem conta das formulações teóricas: Tais dados devem derivar, de algum modo, das vidas dos atores sociais em estudo. Diferentemente dos fenômenos físicos, os atores sociais dão significado a seus ambientes sociais de maneira extre-mamente variada e freqüentemente exótica. Eles podem descrever o que fazem, explicar e justificar suas ações, fornecer razões ou motivos, explici-tar objetivos, decidir a respeito de rumos adequados de ação, tentar ajustar meios aos fins, e assim por diante. Schutz expressa a diferença como se segue:

Cabe ao cientista natural e só a ele definir, segundo as regras de procedimento de sua ciência, seu campo observacional, e determinar os fatos, dados e acon-tecimentos dentro deste que sejam relevantes para seus problemas ou propó-sitos científicos em pauta . . . O mundo da Natureza, explorado pelo cientista natural, nada "significa" para as moléculas, átomos e elétrons que ali estão. O campo observacional do cientista social, no entanto, especificamente a reali-dade social, possui um significado específico e uma estrutura de relevância

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para os seres humanos que nele vivem, atuam e pensam. Através de uma série de elaborações baseadas no senso comum, eles de antemão selecionaram e in-terpretaram este mundo o qual experimentam como a realidade de suas vidas cotidianas.8

O cientista social, portanto, precisa chegar a um acordo quanto a esses significados pois, conforme veremos posteriormente, num sentido fundamental a origem dos dados do pesquisador está nesses significados. O ponto de partida para a pesquisa empírica da ciência social é a observação daquilo que os membros de uma sociedade fazem ou fizeram. Essas obser-vações podem ser em forma de dados estatísticos, gravações, escritos, ques-tionários ou entrevistas, padrões de consumo, restos arqueológicos etc. A descrição do fenômeno é uma parte essencial da observação. As ações e os comportamentos devem ser classificados e categorizados. É preciso, por exemplo, decidir-se acerca de coisas como: um homem esculpindo um pe-daço de madeira estaria fazendo algo "político", "religioso", "econômi-co", "divergente", ou "integrador"? O certo é que o homem em questão teria, ele próprio, opiniões a respeito do que estivesse fazendo. Qual, en-tão, é a relação entre sua versão e a do cientista social? Qual (se é que este existe) deveria ser o vínculo entre sua descrição de sua ação e qualquer outra, apresentada por um investigador social? De maneira mais genérica, que diferença faz, para o estudo da vida social, o fato de que os atores so-ciais atribuem significados à sua realidade social?

Uma vez que a ciência social de inspiração positivista não ignorou exatamente o que poderia ser chamado de "componentes significativos" do comportamento social, e uma vez que as posições filosóficas discutidas neste capítulo envolvem uma crítica a este tratamento, talvez convenha co-meçar com alguma exposição das formas tradicionais pelas quais as razões, motivos, intenções e regras ou convenções têm sido usadas na teorização científica social.

REGRAS, MOTIVOS E DESCRIÇÃO DA AÇÃO SOCIAL

No exemplo dos semáforos utilizado acima, identificamos dois tipos de fenômenos como importantes numa explicação "significativa" do compor-tamento do trânsito, a saber, as regras e conceitos dispositivos tais como razões, intenções ou motivos. Estes, de certa forma, assinalam o caráter "interno" da relação entre as luzes e o comportamento do motorista, ou

8 A. Schutz, "Concept and Theory Formation in the Social Sciences", in M. Natan-son (org.), Philosophy of the Social Sciences, Nova York, Random House,1963, pp. 231-49.

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seja, o significado subjetivo que leva à seqüência de ações que poderíamos descrever como "obediência às regras dos sinais de trânsito". A idéia de que a ação social é governada por regras ou segue regras não é, naturalmen-te, nova ou mesmo surpreendente. Alguns dos conceitos básicos da ciência social, tais como normas, instituições, desvio, racionalidade, moralidade, autoridade, procura de lucro, troca, legitimidade, e assim por diante, todos eles rendem homenagens à idéia de que o comportamento social, qualquer que seja sua consistência, envolve regras. Em suas várias formas, a noção de regra é usada para explicar a conduta social e assim pode ser usada por-que as regras, mesmo se impostas, são parte do sistema de significado usa-do pelos atores para dar sentido a suas respectivas realidades sociais. De forma semelhante e análoga, os motivos, intenções etc., assinalam um ou-tro aspecto do significado, a saber, que os atores sociais perseguem objeti vos, possuem razões para agirem, explicam sua conduta de várias maneirai e oferecem interpretações de seu mundo. Examinemos como estes elemen-tos são tratados na ciência social positivista.

O método usual de explicação baseia-se na noção de que a interação é tanto governada por regras quanto motivada. Os padrões de ação são explicados por referência a dois grupos de fatores: os dispositivo, tais como as atitudes, motivos sentimentos, crenças, personalidade e assim por diante, e as expectativas sancionadas, ou normas, às quais o ator está sujei-to. Estas últimas são geralmente denominadas "expectativas de função", ligadas à pessoa incumbida de uma posição específica dentro de uma rede de relações sociais. Espera-se dos ocupantes de posições administrativas, por exemplo, que estes se comportem de determinadas maneiras, assim como também formam-se expectativas, embora diversas, relativas ao com-portamento de mães, pais, primeiros-ministros, crianças, homens, mulhe-res e assim por diante. Tais expectativas podem ser vistas como regras sugerindo ou mesmo determinando o modo apropriado de comportamento de alguém nessas posições. Para ilustrar: o professor recentemente admi-tido no cargo precisa aprender as regras, oficiais e extra-oficiais, que dêem forma ao que os outros com os quais entre em contacto esperam, em ter-mos do comportamento adequado de um professor. Espera-se da pessoa incumbida de qualquer posição em particular que ocupe tal posição auten-ticamente, possuindo as motivações corretas para desempenhar a função adequadamente.

Essas expectativas ou regras são, de certa forma, "externas" ao indi-víduo, num sentido durkheimiano amadurecido, no sentido em que elas existiam antes da ocupação pessoal de uma posição. Além disso, atuam como elementos coercitivos produzindo um comportamento apropriado. Nos termos de Durkheim, existe nelas uma qualidade como que "de coi-sas" (thinglike). Sua "externalidade" neste sentido produz padrões sociais porque regras semelhantes aplicam-se às mesmas posições: os administra-

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dores são tão sujeitos ao mesmo tipo de expectativas quanto as mães, os pais, e outros. Isto é em parte o que se quer dizer com a idéia de uma or dem normativa. Presume-se que haja um vínculo mais ou menos estável entre a execução de um papel que se espera dos ocupantes de determinada posição e as situações nas quais eles se encontram em razão das regras nor-mativas que governam o comportamento naquela situação. Presume-se, ain-da, que os atores foram socializados em uma cultura comum, de forma que exista alguma concordância cognitiva substancial entre eles, tornando-os capazes de identificarem situações, ações e regras mais ou menos da mesma maneira.9 Os padrões que ocorrem regular e rotineiramente possibilitam aos cientistas sociais falarem de tais elementos societais estáveis como "es-trutura social", "instituições", "sistema político" ou "sistema econômico". Um ponto final para completar: reconhece-se que pode haver significativas diferenças subgrupais dentro de uma sociedade em termos das expectati-vas ou das definições normativas ligadas a posições específicas, mas estas não modificam radicalmente o quadro básico. Na verdade, as diferenças colocam problemas de algum interesse para os cientistas sociais, tais como os estudos de fenômenos como conflito de função, marginalidade, mudança social, minorias ou esclarecimento de desvios.

Num sentido semelhante, os motivos, razões, intenções e assim por diante são vistos como antecedentes causais e, portanto, "externos" à ação, que obrigam ou reprimem as pessoas em relação a certos comporta-mentos. O comportamento, em suma, tem um caráter motivado. Atribuir um motivo a alguém, segundo esta perspectiva, é identificar um mecanismo causai "interior" que produz uma mostra "exterior" de comportamento. Dizer que os trabalhadores fazem greve porque possuem disposições ou ati-tudes antiadministrativas significa dizer que sua imagem "interior" de seu mundo de trabalho produz, ou causa, uma intransigência vis-à-vis a admi-nistração. Significa dar a seu comportamento grevista um propósito ou me-ta, uma explicação em termos dos fins que a ação visa a atingir. A análise de Weber do comportamento inovador, do ponto de vista do trabalho, dos protestantes ascéticos, designa um conjunto específico de motivações reli-giosas que fizeram com que as pessoas dotadas de tais crenças trabalhassem mais e mais, fossem econômicas em suas vidas cotidianas, buscassem o êxi-to em todos os seus empreendimentos, e assim por diante.10 É claro que

9 Ver, sobre isto, T.P. Wilson, "Normative and Interpretative Paradigms in Sociol-ogy", in J.D. Douglas (org.), Understanding Everyday Life, Routledge & Kegan Paul, 1974, pp. 59-61; também D. Lawrence Weider, Language and Social Reality, The Hague, Mouton, 1974. 10 M. Weber, The Protestam Ethic and the Spirit of Capitalism, trad. T. Parsons, Allen & Unwin, 1960.

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os motivos, embora considerados internos e de caráter particular, não são vistos como que aleatoriamente distribuídos entre uma população. Como sucede com os regulamentos, a socialização numa cultura comum significa que os motivos são padronizados, tornam-se típicos para pessoas em par-ticular, socialmente definidas, e, desta forma, são produzidos pela estrutu-ra social. Assim, a ocupação de uma posição social específica "leva ao" desenvolvimento de certas disposições conseqüenciais e socialmente rele-vantes as quais, por sua vez, causam um determinado tipo de conduta ou de comportamento. O caráter motivado de tais ações, podemos dizer, surge dos interesses consolidados na ocupação de posições específicas: o voto por motivos de vantagens de classe, o ingresso em certas associações com a finalidade de se melhorarem as perspectivas de carreira, ou a greve para se elevar o salário de companheiros de trabalho são exemplos disto.

Tal, portanto, é o modelo básico das versões sociais científicas que utilizam aqueles elementos de significado que chamamos de regras e dispo-sições. Embora tenha me baseado na sociologia para esta versão, isto de forma alguma se restringe à sociologia. Tampouco estou afirmando que as explicações sejam tão simples, mas apenas que elas seguem, mais ou menos, este modelo básico. O que precisa ser acrescentado são os elementos neces-sários para uma versão positivista da ação social, embora talvez fosse mais exato dizer que o modelo de explicação delineado já apresenta um grande débito à tentativa de tornar a explicação da vida social científica desta maneira.

Quais são estes elementos adicionais? Em primeiro lugar, a explica-ção deve ser expressa numa forma dedutiva', mostrando como o comporta-mento observado pode ser deduzido a partir de um conjunto de premissas contendo a teoria utilizada além da apresentação de condições empíricas. Isto significa, em segundo lugar, que o comportamento a ser explicado de-ve ser definido independentemente dos chamados fatores ou causas predis-ponentes: ou seja, a ação social deve ser definida ou descrita independen-temente das regras ou normas que, supostamente, governam aquela ação e independentemente de quaisquer motivos que possam ser atribuídos como causadores dessa ação. Além disso, quaisquer descrições que ingressem na argumentação dedutiva — e estas o fazem quando especificam as condições empíricas e os fatos a serem explicados — devem ter significados estáveis, independentes das circunstâncias de seu uso. Devem, em suma, ser descri-ções literais.11 Um argumento dedutivo não pode logicamente funcionar se os significados das expressões que usa são mutáveis.

11 Wilson, op. cit., p. 71 ; também W.V.O. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., MIT Press, 1960.

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O modelo de explicação delineado anteriormente pareceria satisfazer estes critérios metodológicos. As regras, motivos ou disposições, situações, relacionamentos sociais, comportamentos - todos são vistos como elemen-tos analiticamente separados, apenas circunstancialmente relacionados en-tre si. O trabalho da pesquisa empírica consiste em descobrir precisamente o modelo destas relações contingentes e em formulá-las como regularida-des Para vermos até onde isto pode ser mantido, examinemos inicialmente a relação entre os motivos e a descrição de ação social.

Conforme já afirmamos, na forma típica de explicação oferece-se alguma característica interna e particular das pessoas, muitas vezes impli-citamente, como um antecedente causai que predispõe o ator a comportar-se de determinada maneira. O motivo e o comportamento são considerados independentes, e a mola principal das manifestações comportamentais ex-ternas, a ação, é o estado interior e particular. Esta formulação da relação dá origem a todos os tipos de problemas metodológicos para a ciência so-cial. Sendo a relação concebida como interior e particular, e portanto não aberta à inspeção direta, o problema tem sido delinear métodos para ava-liar tais estados interiores através de uma variedade de métodos públicos e objetivos tais como escalas de atitudes, questionários, entrevistas, inven-tários de personalidades e outros semelhantes, usando-os para correlação com índices mais "objetivos", como o nível de educação, a classe social, a identidade social, a identidade étnica, a participação em associações, a votação, os padrões de consumo, os registros de doença mental, e assim por diante. Com tais métodos, que se baseiam para os atribuições de moti-vos no que as pessoas consultadas dizem, tem havido sempre o problema de relacionar o que estas dizem com o que fazem.12 Conseqüentemente, muitos esforços vêm sendo despendidos para o desenvolvimento de ins-trumentos e práticas de pesquisa a fim de aprimorar a validade desses mé-todos para que estes possam dar estimativas mais precisas sobre o que está realmente "na mente das pessoas". Em outros casos, inferem-se os motivos menos a partir do que as pessoas dizem a respeito de si mesmas do que a partir do que elas fazem ou têm feito. Do fato de que alguém tenha come-tido suicídio, tiram-se conclusões quanto ao estado mental da pessoa em questão. Do fato de que as latas de lixo estejam cada vez mais cheias de pacotes de comida vazios, poder-se-ia inferir que as pessoas estão se tornan-do motivadas a criar mais tempo de lazer através do uso de alimentos pré-

12 Ver, por exemplo, I. Deutscher, "Asking Questions Cross-culturally: some prob-lems of linguistic comparability", in H. Becker, et al. (orgs.), Institutions and the Person, Chicago, Aldine, 1968, pp. 318-41; ! . Deutscher, What WeSay, What We Do, Glenview, Scott, Foresman and Company, 1973; J.A. Hughes, Sociological Analysis: methods of discovery, Nelson, 1975.

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fabricados.13 Do fato de que os primeiros capitalistas eram membros de seitas protestantes ascéticas, pode-se inferir que sua filiação religiosa os motivasse ao engajamento em um comportamento apropriado à acumula-ção capitalista.

Em todos estes casos o problema tem sido formalizar as inferências aparentemente inevitáveis que devem ser feitas a fim de investigar os moti-vos de uma pessoa ou grupo de pessoas. Para os positivistas, tais inferên-cias, se deixadas sem controle, poderiam levar a indesejáveis interpretações subjetivas por parte do cientista. A situação fez com que alguns se deses-perassem, buscando a salvação na neurofisiologia ou em algum outro mé-todo que "nos permitisse observar o que se passava na cabeça de uma pes-soa da mesma forma que podemos observar as contrações estomacais ou descargas nervosas num organismo faminto".14 Seja como for, a dissidên-cia aqui é que a concepção da relação entre os chamados "estados interio-res" tais como motivos, intenções, razões, e o comportamento, pressuposta na abordagem tradicional, é fundamentalmente malconcebida.

Consideremos as seguintes descrições de atos bastante mundanos tais como: "levantei meu braço" . . . "ergui o copo" . . . "fiz um brinde ao feliz casal" . . . "saciei minha sede" . . . "decidi que a única coisa a fazer era me embriagar". Todas essas afirmações descrevem aquilo que poderia ser con-siderado como ações diferentes e, no entanto, também poderia ser dito que todas consistem de, ou envolvem, o mesmo movimento corporal. Esta "manifestação comportamental" é capaz, assim, de ser parte de muitas ações diferentes e, generalizando a partir daí, podemos dizer que não se pode combinar cada descrição de ação, individualmente, a cada manifesta-ção comportamentalí. Pitkin é bastante claro a respeito deste ponto:

Com o mesmo movimento físico, o mover de uma caneta ou um gesto de cabe-ça, um homem pode romper ou fazer uma promessa, renunciar a seus direitos de herança, insultar um amigo, obedecer a uma ordem ou cometer uma trai-ção. O mesmo movimento pode, em diversas circunstâncias e com intenções diversas, constituir qualquer dessas ações; assim, em si mesmo, não constituj nenhuma delas.15

Portanto, um observador ao ver-me erguer o braço e o copo de cerveja po-deria descrever minha ação de inúmeras maneiras diferentes. Qualquer da-

13 Esta é a lógica por detrás de "medidas discretas". Ver E. Webb et al., Unobtru-sive Measures, Chicago, Rand McNally, 1972. 14 D. McClelland, The Achieving Society, Nova York, Van Nostrand, 1961, p. 39. Este estudo é um maravilhoso exemplo do engenho a que a imputação de motivos pode aspirar, nas mãos de um cientista social de talento. Sou grato a J. Coulter, por chamar a atenção para esta citação. is H. Pitkin, Wittgenstein and Justice, University of Califórnia Press, 1972, p. 167; o presente capítulo muito deve a este livro notável.

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quelas oferecidas como exemplo seria apropriada, embora "levantei meu braço" pareça levemente não informativa. O observador não pode, natural-mente, ver diretamente o que se passa no meu interior para inspecionar minhas intenções ou estados físicos. Apesar disso, usando vários elementos particulares do contexto — era uma festa de casamento, um dia muito quente, eu acabara de levar um fora —, poder-se-ia fornecer alguma descri-ção sem muita dificuldade. Algumas das descrições bem poderiam imputar um motivo ou propósito a meu comportamento, tal como um desejo de me embriagar, de ser sociável, de desejar felicidades ao feliz casal, saciar a sede, e assim por diante. Em tais casos, o rhotivo nos diz mais acerca da ação que está sendo executada, nos diz o que a pessoa estava fazendo, "embriagando-se", "brindando ao feliz casal", "saciando a sede", ou o que quer que seja.16

Ao descrever muitas ações, somos inevitavelmente levados a imputar motivos de algum tipo qualquer. A força analítica dos motivos, das razões, não reside tanto no fato de serem estes molas mestras "internas" da ação ou do comportamento, mas sim por serem equivalentes a regras, na formu-lação de uma amostra de comportamento como ação de algum tipo espe-cífico. Os motivos, as razões, e outros conceitos dispositivos podem ser vistos como regras ou como instruções interiorizadas para ver o comporta-mento de tal ou qual forma, para prosseguir na explicação da ação, para fornecer uma versão daquela ação. Segue-se que qualquer manifestação, comportamental pode ser descrita e explicada através de numerosos modos diferentes e, com freqüência, competitivos, ou seja, como diversos tipos de ações motivadas. Nas palavras de Austin:

Em princípio, está sempre aberto para nós, seguindo linhas várias, descrever ou referir-mo-nos "Àquilo que eu fiz" de tantas maneiras diversas . . . nós diría-mos, ou dizemos, que ele extorquiu o dinheiro dela, ou que ele marcou um tento? Que ele disse: "Não tenho escolha" ou que aceitou uma oferta? Ou seja, até que ponto os motivos, intenções e convenções devem ser partes da descri-ção de ações?17

Talvez isto seja mais evidente quando o caráter motivado de um acontecimento é equívoco, como em um caso relatado por Atkinson.18

Uma viúva de oitenta e três anos foi encontrada envenenada com gás em sua cozinha. Ela havia vivido sozinha desde a morte do marido. Tapetes e

16 Ver por exemplo, A. Melden, FreeAction, Routledge & Kegan Paul, 1961. 17 J. Austin, Philosophical Papers, org. J. Urmson & G. Warnock, Oxford University Press, 1961, pp. 148-9. 18 M. Atkinson, "Societal Reactions to Suicide; the Role of Coroners' Definitions", in Cohen (org.), Inwges of Deviance, Penguin Books, 1971, pp. 165-91; também, J. Heritage, "Aspects ofthe Flexibility of Language Use", Sociology, 12 (1978), 79-103.

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toalhas tinham sido colocados debaixo das portas e em torno das janelas. Os vizinhos depuseram no inquérito que ela sempre parecera uma pessoa alegre e feliz. O juiz deixou o veredicto em aberto, alegando que não havia provas para mostrar como o gás fora ligado. Neste caso, as circunstâncias da morte, ocorrida durante o inverno, eram insuficientes para levar a um veredicto definitivo. Por exemplo, era difícil determinar se os tapetes e toa-lhas haviam sido usados para impedir a entrada do frio e do vento em lugar de para impedir a saída do gás e, assim, estabelecer se o gás ligado fora in-tencional ou não proposital e devido a esquecimento. Se a morte tivesse ocorrido no verão, o caráter motivado do acontecimento poderia ter sido menos ambíguo. O fato de que esta se deu no inverno fez com que o cará-ter motivado do acontecimento não pudesse ser esclarecido sem que se re-corresse a provas circunstanciais ligadas ao estado mental da viúva. As dife-rentes suposições quanto ao estado mental da vítima teriam instruído as testemunhas ou depoentes a compor a cena de maneiras específicas, ou vice-versa, as suposições quanto à cena teriam instruído as testemunhas a tirar conclusões acerca do estado mental da viúva, e assim por diante.

Argumentar ou presumir, como o modelo típico de explicação social científica pretenderia que fizéssemos, que o comportamento pode ser des-crito como uma espécie de "fato bruto" independente de motivo ou ra-zões, é deturpar seriamente a relação que estes têm com a descrição da ação social. Descrever minha ação mencionada anteriormente como "er-guer o copo aos lábios", como se isto fosse, de algum modo, mais real do que outras descrições que implicam em imputações ou inferências quanto à motivação, excluiria exatamente aqueles elementos os quais fazem com que este seja um ato social embora, para alguns propósitos, tal descrição possa ser bastante adequada. Tal descrição, tratada como uma descrição de "fato bruto" incontestável ou "dado de observação" fundamental, vendo o significado ou imputação de motivo, razão ou intenção, apenas como uma questão de interpretação subjetiva por parte do ator, é entender mal o processo da descrição de ação.19 Além disso, o motivo é um conceito fa-dado a ter aplicações duvidosas e indeterminadas. A conjetura quanto ao motivo não surge da ausência de evidências que poderíamos possuir mas não possuímos, como o positivista desesperado mencionado anteriormente poderia supor, porém é um exame de uma gama de possibilidades onde o próprio comportamento é ambíguo. Antes de tratarmos mais amplamente de algumas das implicações destas observações, examinemos por um mo-mento a questão das regras, em que reparos semelhantes podem ser feitos.

19 Ver Weider, op. cit.; também A. Blum e P. McHugh, "The Social Ascription of Motive", American Sociological Review, 36 (1971), pp. 98-109.

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Como sucede com os motivos, qualquer demonstração de "compor-tamento concreto" poderia ser consistente com um vasto número de re-gras, embora na prática apenas algumas possam ser consideradas relevan-tes. Normalmente consideramos as regras como mandamentos a executar, ou a não executar, algo em que poderíamos nos engajar quer a regra exis-tisse ou não. Neste sentido, vê-se a regra como independente e exterior ao comportamento ao qual se apliça. Os Dez Mandamentos, por exemplo, proíbem vários tipos de comportamento os quais, presumivelmente, eram vistos pelo elaborador de tais regras comoa condenáveis, adultério, furto, inveja, adoração de falsos ídolos etc. Existe, entretanto, um aspecto das regras que não é inteiramente separável do comportamento. Pode-se dizer que algumas regras são "constitutivas" da ação, uma vez que nos dizem como fazer alguma coisa. Seria difícil, por exemplo, imaginar jogar xadrez sem as regras de xadrez. Se eliminarmos regras como estas, a atividade ou comportamento em questão deixa de existir. Ainda haveria, naturalmen-te, o comportamento de manipular peças de madeira ou plástico num tabu-leiro quadriculado, mas mal se poderia chamar isto de jogar xadrez.20 Da mesma forma, seria difícil conceber a "obediência aos sinais de trânsito" sem a noção de regras de trânsito. Existe uma distinção relevante, aqui, en-tre um processo de acordo com uma regra e um processo envolvendo uma regra - entre "ação de acordo com uma regrà" e "ação governada por uma regra".21 Qualquer agente, ação ou processo observado pode ser facil-mente apresentado sob os auspícios de muitas formulações semelhantes a regras, e nenhuma das quais é, de maneira inequívoca, a regra que governa o processo ou acontecimento. Uma atividade está de acordo com uma re-gra se exibe as regularidades expressas pela regra. Ela envolve uma regra se os agentes na verdade usam a regra para orientar ou avaliar suas ações. As regras, entretanto, não determinam sua própria aplicação mas têm que ser usadas, e um de seus usos mais importantes é conduzir um conjunto de acontecimentos, processos, pessoas, a algum esquema de interpretação. Neste sentido, a noção de regra está vinculada a de "cometer um erro", e é esta possibilidade que ajuda a distinguir entre "ser governado por regras" e a mera regularidade. Ou seja, capacita-nos a avaliar o que está sendo fei-to, a atribuir faltas, a ser sujeito à crítica. Invocar regras é uma forma de

20 Acerca de "regras constitutivas", ver J. Searle, Speecli Acts, Cambridge University Press, 1969, pp. 33-42 ; e C. Taylor, "Interpretation and the Sciences of Man", in R. Beehler e A.R. Drengson (orgs.), The Philosophy of Society, Methuen, 1978, pp. 156-200. 21 Ver J. Coulter, Approaches to Insanily, Martin Robertson, 1973, p. 141; J. Rawls, "The Two Concepts of Rules", Philosophical Review, 64 (1955), 9-11. Deve-se a dis-tinção a L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, trad. G.E. Anscombe, Oxford, BlackweU, paras. 199-202.

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retratar ou descrever a ação, de se mostrar o que está sendo feito, de tornar nossas ações justificáveis. Utilizadas deste modo, as regras são parte de nos-sos recursos para tornar o mundo compreensível.

A conclusão destas observações sugere enfaticamente um tipo de re-lação muito diferente entre a ação e sua descrição, e as regras ou motivos que, poderíamos dizer, governam aquela ação, daquela proposta pela abor-dagem positivista. Em primeiro lugar, ele afirma que as ações e sua descri-ção são conceitualmente vinculadas a razões e motivos, não sendo passíveis de descrição como se fossem separadas e independentes. Ao contrário, ações e descrições se informam mutuamente.

Esta discussão de regras, motivos e outros conceitos intencionais — vamos chamá-los de conceitos de ação — pressupõe que estes são os meios mais importantes através dos quais os membros da sociedade constroem deliberadamente seu mundo social. Esta versão acentua, também, que õ vocabulário de ação exibe propriedades muito diversas daquelas pressupos-tas por uma versão causai. A ação deriva da idéia de um agente, especifi-camente um agente humano. O vocabulário da ação é usado pelos seres hu-manos ao falarem uns com os outros a respeito do que estão fazendo. Um agente difere de uma variável causai porque pode-se dizer que ele ou ela efetua uma escolha, é responsável, desencadeia ou faz algo, e assim por diante. Uma ação pode ser louvada ou condenada, ordenada ou proibida porque o executante da ação pode ser louvado ou culpado, comandado ou proibido. O uso de expressões causais em contextos de ações não nos deve levar a pensar em relações invariáveis ou a pensar que estas sejam mais reais do que as não causais. Dizer algo como "o fato de que estava escuro me fez tropeçar no banquinho" é fazer uso de uma relação de tipo causai entre a quantidade de luz disponível e a habilidade de ver os objetos clara-mente, mas é mais do que isto: tal relato poderia me desculpar, sugerir que eu não fui apenas desajeitado, não pude evitar o tropeção, não posso ser culpado. As ações não surgem convenientemente rotuladas como "suicí-dio", "obediência aos sinais de trânsito", "passear com o cachorro", "rou-bar", "votar no partido dos trabalhadores", "ser maternal", e assim por diante, porém precisam ser descritas, o que em si é uma ação. Isto envolve algo além de simplesmente examinar o "comportamento concreto", vendo se este faz algum sentido, mas significa também prestar atenção a circuns-tâncias, razões, motivos, regras.

Não se trata de dizer, evidentemente, que as intenções, motivos, re-gras ou convenções são necessariamente imputações em descrições de ação. É possível matar inadvertidamente, enganar sem intenção de enganar, ao passo que em outros casos as coisas não são tão claras. Pode-se assassinar sem a intenção de assassinar, prometer sem pretender prometer, por exem-plo? Pode-se descrever acontecimentos sem imputar motivos: "Aconteceu que o revólver estava carregado, o gatilho se soltou, a bala a atingiu e ela

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morreu do ferimento recebido." Os propósitos para os quais tal descrição foi formulada determinariam se esta seria considerada precisa ou adequada - ou o oposto. A descrição de uma ação é um acontecimento ocasionado, é em si mesma uma ação executada com algum propósito, informada por algum interesse, feita em algum contexto. A questão é, no entanto, que as descrições são essencialmente revogáveis; ou seja, é sempre possível, em princípio, argumentar contra qualquer descrição em particular, trazendo-se outros pormenores sobre a situação, pessoa, acontecimento ou objeto. Exemplifiquemos com um exemplo bastante doméstico.

Há algum tempo, eu caminhava por um corredor e parei para abrir uma porta para uma mulher que estava atrás de mim. A mulher parou e observou que meu gesto havia sido machista. Um tanto confuso, pedi des-culpas e respondi que abrir a porta concedendo-lhe passagem era um gesto de simples cortesia, que eu teria feito para qualquer pessoa, fosse homem ou mulher. É claro que minha atitude não foi bastante convincente para ela e o resultado foi que nenhum dos dois conseguiu passar pela porta du-rante alguns minutos. O que interessa nessa estória não é que uma manifes-tação do comportamento, atualmente bastante comum, qual seja abrir a porta e recuar, esteja aberta a diferentes interpretações, mas sim que está aberta a diferentes descrições como ação. A questão não é ajustar a descri-ção correta ao acontecimento, como seria o caso com as peças de um que-bra-cabeças ou a palavra correta em um jogo de palavras cruzadas. Trata-se de justificar a ação, descrevendo-a de modos socialmente conseqüentes. Seria irrelevante perguntar se a descrição adequada do ato que realizei cor-responde à caracterização de "cortês" ou de "atitude de porco chauvinis-ta". Nenhuma descrição poderia ser correta num sentido absoluto. A des-crição vincula-se ao ato de justificar minha ação ou ponto de vista com razões ou argumentos apropriados, tendo a ver com persuadir alguém (adu-lando, ameaçando, coagindo) de que aquilo que aconteceu teve tal ou qual caráter. As duas pessoas envolvidas poderiam, respectivamente, apresentar argumentos convincentes. Eu poderia ter alegado minha conduta de corte-sia exemplar em todas as circunstâncias, ao passo que ela poderia tomar essa mesma alegação como evidência favorável a seu ponto de vista, argu-mentando que tal comportamento apenas indicava uma atitude paternalis-ta da minha parte e que o machismo estava exatamente nisso. Como no caso dos motivos, vários argumentos poderiam ser invocados, poder-se-ia apresentar razões, a fim de defender um visão da cena dessa ou daquela maneira. Só poderíamos chegar a alguma concordância se ambos utilizás-semos métodos comuns para resolver a controvérsia.

Ao se assinalar o caráter essencialmente revogável da descrição de ações, está se afirmando que o vocabulário da ação é parte integrante do discurso moral ligado à avaliação de conduta. Neste âmbito do discurso, aquilo que fizemos ou estamos fazendo não possui uma descrição bem de-

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finida. O conhecimento do que você está fazendo, vai fazer, fez ou não fez, não pode ser totalmente explicado pelo exame do que de fato você faz. Saber o que você está fazendo é ser capaz de elaborar a ação, de dizer por que você a comete, desculpá-la ou justificá-la se for o caso, e assim por diante.22 O que está em questão, em suma, é o que de fato foi feito. A mi-nha atitude de abrir a porta terá sido um gesto de machismo chauvinista ou o último vestígio de cortesia cavalheiresca? Este é exatamente o cerne da disputa, mas não é o tipo de coisa que possa ser resolvida numa pesquisa em um dicionário de ações sociais.

Estes argumentos sugerem que a descrição da ação social é uma ques-tão problemática tanto para observadores quanto para atores sociais. As descrições são, conforme já foi assinalado, profundamente sensíveis ao contexto e revogáveis. Constituem atividades sociais executadas para pro-pósitos específicos e são consideradas adequadas ou inadequadas, depen-dendo do caso, em termos desses propósitos. Isto leva a uma outra pro-priedade geral das descrições que deve ser mencionada, a saber, que estas são sempre, em princípio, incompletas. O que quer que seja incluído numa descrição é sempre seletivo e não pode esgotar tudo o que poderia ser dito sobre um objeto, ação, p.essoa ou acontecimento) Pode-se sempre acres-centar algo: por exemplo, alguém poderia ser descrito como "alto", "de cabelos escuros", "egoísta", "reticente", "um operário", "de inteligência acima da média", e assim por diante, mas nada disso esgotaria o que possa ser dito sobre aquela pessoa. Tais descrições são seleções do que poderia ser dito e, dependendo da ocasião apresentada para a descrição, podem ser per-feitamente adequadas. A adequação, ao ser usada, é decidida por aqueles que a enunciam e por aqueles que a ouvem*. Pois, embora as descrições sejam de alguma forma incompletas ou, nas palavras de Waismann, pos-suam uma qualidade de "textura aberta" (open-textured) ,2 3 isto não as priva de cumprirem sua função, uma vez que os falantes de uma lingua-gem natural jamais buscam algo semelhante ao completo. Como já foi dito anteriormente, com freqüência um único autor de descrições fornecerá uma descrição adequada — "este amigo", "meu colega", "meu filho", "o locatário dos Greaves", "aquele cachorro estúpido" — e os pormenores que restam são, de certa forma, deixados de lado para os objetivos do momen-to, ou o seu sentido é "preenchido" usando-se especificidades do contexto no qual são utilizados. Porém sempre é possível produzir descrições alter-nativas de um objeto, acontecimento ou ação: Pode-se acrescentar outras propriedades que modifiquem a descrição original, ou apresentar outros

22 Pitkin, op. cit.,Cap. VII. 23 F. Waismann, "Verifiability", in A. Flew (org.), Logic and Language, Oxford, Blackwell, 1951, pp. 117-44; também Pitkin, op. cit.,pp. 61-2.

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aspectos com elementos adicionais que alterem aquela descrição original. A relação entre as características de um objeto, acontecimento, ato ou pes-soa e uma descrição não é determinada. A seleção feita por quem fala, ao fazer uma descrição, a partir de tudo o que poderia ser dito ou atribuído a algum fenômeno, normalmente diz ao ouvinte algo sobre os objetivos práticos do falante ao oferecer tal descrição. Esta dá margem a uma quan-tidade de elaborações possíveis e isto significa que, nas ocasiões de seu uso, uma descrição só pode indicar aquilo que poderia significar. Tem se cha-mado a isto de problema "etcetera", ou a característica da "indexação" (indexicality).24

Os argumentos apresentados aqui parecem desafiar muitas das supo-sições nas quais a ciência social positivista se baseia. A tradição da ciência social da qual estes provêm considera o significado central à vida social e assinala importantes diferenças entre aquilo que chamei de "o vocabulário da ação'' e o da ciência. O grandioso termo "significado" faz mais do que sugerir a natureza simbólica da vida social e, a seu modo, assinala o fato de que a ação humana não é tão previsível, tão determinada em seu desenro-lar, quanto o objeto de estudo inanimado da ciência natural. Enquanto que o positivismo poderia talvez atribuir esta falta à escassez de bons sistemas de mensuração e à imaturidade das ciências sociais, ou à maior comple-xidade do mundo social em relação ao natural, o que se afirma aqui é mais fundamental, ou seja, que a vida humana é essencialmente diferente, e que esta diferença requer uma metodologia diversa daquela pressuposta por uma concepção positivista. (Neste momento, deixo em aberto uma ques-tão: se o fato de que a vida social possui significados pode ser conciliado à perspectiva alternativa de ciêntia esboçada no Capítulo 3.) Naturalmente que o problema tem muito a ver com a observação banal de que os seres humanos são capazes de fornecer versões de suas próprias vidas e de seus relacionamentos com outros. Entretanto, o debate pode prosseguir com a afirmação de que esta habilidade é essencial à existência de uma vida so-cial em si. Fornecer razões, justificações, explicações, efetuar descrições, todas essas são atividades profundamente sociais e, conseqüentemente, tornam a vida social o que esta é. O que temos agora a examinar é se estas considerações implicam - ou não — a impossibilidade de uma ciência social.

24 Ver H. Garfinkel, Studies in Ethnomethodology, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1967, esp. Cap. 1; H. Garfinkel e H. Sacks, "On Formal Structures of Practical Ac-tions", in J.C. McKinney e E.A. Tiryakian (orgs.), Theoretical Sociology, Nova York, Appleton-Century-Crofts, 1970, pp. 337-66 ; H. Sacks, "Sociological Description", Berkeley Journal of Sociology, 8 (1963), 1-19; também Heritage, op. cit.

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RAZÕES VERSUS CA

Uma importante conseqüência metodológica de se vincularem razões, mo-tivos e outras disposições à noção de ação é que isto gera certas questões: a ciência social pode preocupar-se com as causas da ação? O elo conceituai entre a imputação de razão e motivo e a descrição de ações sociais sustenta que um dos critérios principais para que se identifique uma relação causai não é satisfeito, ou seja, a independência lógica entre o fator antecedente, a razão, e o efeito, a ação. Ao invés disso, sugere-se um relacionamento muito diverso em que a razão (ou o motivo) e a descrição da ação são mu-tuamente determinantes, embora isto não se dê de qualquer forma gene-ralizável com precisão. Uma outra objeção à versão causai da ação social surge a partir de questões referentes à descrição da própria ação, e é uma objeção ao uso do método de explicação hipotético-dedutivo. Argumenta-se que tal método só pode ser utilizado se a descrição literal for possível; ou seja, uma descrição que não dependa, para seu sentido ou significado, da ocasião de seu uso.25 Na forma de medida literal, por exemplo, tratam-se os fenômenos sem referência a qualquer significado intrínseco que estes possam ter, uma vez que atribui-se o significado puramente dentro da pró-pria teoria sem referência a quaisquer considerações extrateóricas.

Conforme já foi assinalado, as descrições penetram na explicação hipotético-dedutiva pelo menos em duas situações: em afirmações sobre as condições iniciais e na predição deduzida que constitui a explanação. A força do argumento aqui, no entanto, é que a descrição literal só é possí-vel nas ciências sociais se a natureza interpretativa da ação social for igno-rada. Isto é, se adotarmos a opinião de que a descrição da ação social é fundamentalmente um assunto interpretativo, daí decorre que qualquer observador, científico ou de outra ordem, deve usar a interpretação a fim de efetuar qualquer descrição de ação social; Portanto, se desejo descrever um determinado comportamento que pode ser uma expressão verbal ou um movimento físico como, digamos, indicativo de "doença mental", nem a expressão verbal em si nem o movimento indicarão tal coisa sem o uso de algum esquema interpretativo que me permita compor tais exemplos como exemplos de doença mental.26 Não é necessário dizer que algum outro esquema apresentaria diferentes descrições dos elementos, embora não necessariamente inconsistentes com o primeiro. Da mesma forma, se eu fizer uso da descrição dos elementos que outra pessoa apresentou, para compreendê-la eu deverei utilizar os mesmos procedimentos interpretativo

25 Wilson, op. cit., p. 75. 26 Encontra-se um exemplo interessante disso em "K is Mentally Ill", de D. Smit in Sociology, 12 (1978), 25-53.

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a fim de apreciar como os elementos específicos foram combinados na des-crição em pauta. Wilson refere-se a isto como o método de "interpretação documentária'', em que um conjunto de apresentações externas que po-dem ser objetos, acontecimentos, pessoas ou símbolos, é tomado como evidência para algum modelo subjacente, ao passo que o modelo postula-do serve como guia para que se veja como as próprias apresentações exter-nas devem ser lidas. Assim, a classificação da descrição de qualquer mostra de comportamento numa ocasião dada como exemplo de um tipo espe-cífico de ação "não se baseia num conjunto de características especificá-veis do comportamento e da ocasião mas, ao~invés disso, depende do con-texto indefinido visto como relevante para o observador, um contexto que obtém seu significado em parte através da própria ação que está sendo usa-da para interpretar'".27 O significado, e conseqüentemente a ação sendo executada de um braço erguido, dependeria do contexto; de forma seme-lhante, o próprio contexto tornar-se-ia em parte inteligível através do sig-nificado ou da descrição que se atribuísse ao movimento. Segue-se que qualquer interpretação é sempre, tanto retrospectiva quanto prospectiva-mente, passível de revisão "sob a luz de evidências posteriores".

Estes argumentos — e examinaremos outros mais no próximo capí-tulo — questionam seriamente a idéia de uma ciência social baseada na bus-ca de causas do comportamento social. Winch e outros críticos alegam que os conceitos de ação são logicamente incompatíveis com a idéia de neces-sidade causai e, daí, com a explicação causai científica.28 Têm surgido ten-tativas de negar a força desta distinção entre razões e causas. Maclntyre, por exemplo, preocupado com o fato de que os agentes podem oferecer muitas razões pelas quais fazem alguma coisa, apresenta o seguinte argu-mento: o fato de que o agente possui uma razão pode constituir um estado identificável, independentemente da execução de uma ação por parte do agente e, conseqüentemente, pode ser uma causa.29 A dificuldade aqui é especificar o que significa que um agente "esteja no estado de possuir uma razão". Parece que esta condição só poderia se basear nas declarações do agente em questão, embora outros, também, sejam igualmente livres para imputar razões a um agente, sem que esse agente necessariamente tenha formulado tal razão para si próprio, antes da ação. As razões comparecem como justificações, como elaborações subseqüentes às ações e não são for-çosamente formuladas como antecedentes precedendo a ação para a qual a razão seja relevante. Este argumento tampouco destrói o elo conceituai

27 Wilson, op. cit., p. 75 ; também Garfinkel, op. cit., pp. 76-103. 28 P. Winch, Theldea o f a Social Science, Routledge & Kegan Paul, 1963'. 29 A. Maclntyre, "The Idea of a Social Science", in B. Wilson (org.), Rationality, Oxford, BlackweU, 1977, p. 117.

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entre as razões e a descrição da ação: uma relação que não é de indepen-dência ou não-variação contingente.

Existem, entretanto, outras dificuldades quanto à distinção entre conceitos de ação e conceitos causais. O fato é que às vezes falamos sobre as causas de ações e fornecemos versões causais de ações. Alguns diriam que isto é apenas um hábito descuidado de falar, mas o argumento é bem pouco satisfatório.30 Toda a questão aqui está vinculada ao velho proble-ma filosófico referente ao livre-arbítrio. O debate pode ser resumido bre-vemente como se segue. Por um lado, há argumentos afirmando que nós consideramos as pessoas responsáveis pelo que fazem, culpando-as quando se comportam mal, e assim por diante. Desta forma, uma vez que seria irre-levante culpar alguém por algo além de seu controle, então pelo menos algumas de nossas ações devem ser livremente executadas pelo agente. Por outro lado, existe a opinião de que aquilo que um agente faz é função de educação, personalidade, situação e de outros fatores semelhantes e, assim sendo, ele ou ela é apenas a vítima indefesa de todos esses fatores. Embo-ra possamos todos nos sentir livres para escolher e agir, isto na verdade é enganoso.

O presente conflito, embora fácil de se expor, não se resolve com simplicidade. A própria noção de causa é usada numa variedade de formas diversas, nem todas passíveis de acomodação numa concepção Humeana. Algumas vezes, fornecemos uma versão causai de ação. Peters sugere que nós provavelmente assim o fazemos quando algo não dá certo: "Quando há algum tipo de desvio do modelo deliberado cujas regras seguimos; quan-do as pessoas, por assim dizer, saem-se mal."31 Em tais casos, surgem dú-vidas quanto ao fato da ação ter ou não sido realizada em sua totalidade. Tendemos também a dar explicações causais de ação quando a escolha ou responsabilidade dos atores é mínima ou, de modo alternativo, quando isto não nos interessa. Poderíamos assim agir, segundo Pitkin, ao considerar como fazer para que outrem participe da ação.32 Aqui, as causas não são incompatíveis com as razões, motivos e intenções. Na explicação histórica, por exemplo, tendemos acentuadamente a relatar por que alguém fez o que fez, em lugar de considerar tal pessoa responsável ou a atribuir-lhe culpa.

Poder-se-ia dizer que tudo isto é correto. As práticas da linguagem ordinária a respeito de atribuições causais em contraposição à imputação de motivos ou razões são associadas a ações específicas, não sendo exata-

30 Ver J. Gunnell, "Social Science and Political Reality", Social Research, 35 (1968) , p. 193. 31 R.S. Peters, The Concept of Motivation, Routledge & Kegan Paul, 1960, p. 10. 32 Pitkin, op. c/í., p. 269.

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mente relevantes para a ciência social, que se preocupa em explicar ca-tegorias globais de ações. Porém, em resposta, poder-se-ia alegar que, na tentativa de obter explicações, corre-se o risco de alargar a linguagem até o ponto de criar dificuldades conceituais insolúveis. "Livre", "determinado", "causa" são conceitos ligados a muitos outros conceitos. Ao se perguntar "o que é uma ação livre?" poderíamos, com facilidade, fornecer muitas ilustrações, sinônimos, conceitos toscamente equivalentes em significado, analogias, e assim por diante. Se negássemos que quaisquer ações fossem livres, estaríamos automaticamente rejeitando toda uma quantidade de outras categorias e relações conceituais, negando efetivamente áreas intei-ras de nossa linguagem. Talvez isso seja voluntário mas, ao assim fazer, estaríamos também eliminando um sem-número de ações no processo. Ter-mos tais como "livre", "causa", "determinado" e outros conceitos a estes associados são utilizados em contextos específicos, usados para avaliar al-guma ação em especial que tenha sido empreendida ou considerada. O fato de uma pessoa ter ou não a possibilidade da escolha é uma questão que depende em parte da posição adotada pelo falante na situação em pauta. Eu poderia dizer a meu amigo íntimo que "não posso ir ao cinema com você porque espero a visita de meus pais", sugerindo que a força das obri-gações filiais me tira a liberdade de ir. Se, por outro lado, meu amigo qui-sesse que eu o acompanhasse ao hospital, é possível que eu sobrepujasse as obrigações filiais. Talvez eu não o fizesse em se tratando de um simples conhecido, embora mesmo isso pudesse depender da seriedade da razão da visita. O importante é que, em cada uma dessas situações, assumo uma posição a respeito de outros, e é através disso que serei julgado. O difícil é generalizar a partir de casos particulares como estes para distinguir crité-rios pelos quais todas as ações fossem vistas enquanto determinadas por causas.

Em qualquer acontecimento, é difícil ver como se poderia descobrir se todas as nossas ações são na verdade determinadas por causas ou se de fato são todas elas livres. Parece realmente que o problema não é exata-mente a respeito dos fatos do mundo. Se, conforme foi sugerido há pouco, pensássemos seriamente que toda ação é causada (ou livre) isto envolveria vastas mudanças no sistema conceituai no qual e através do qual nossas vidas se constituem. Seria difícil falar de responsabilidade, culpa, punição, honra, realizações, generosidade, valor, talento, qualidade, fracasso, con-duta e assim por diante. Podemos, é bem verdade, reter o uso destes e de outros termos, mas sua relevância se perderia. Seria ainda possível "punir", mas isto consistiria na aplicação de outro mecanismo causa] visando a mo-dificar o comportamento. Seria ainda possível "elogiar", porém isto não significaria dar crédito a alguma realização pessoal mas sim acrescentar um outro fator causai para induzir a algum comportamento específico. Tais modificações em nossa linguagem e, conseqüentemente, em nossas vidas,

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têm sem dúvida ocorrido através dos séculos, porém o importante é que, embora nossos conceitos sejam convencionais, não são arbitrários. Eles são modelados por nossa conduta como seres humanos. O determinista talvez argumentasse que a distinção entre ações e causas surge porque ignoramos ^ as causas de algumas ações, mas tal observação seria irrelevante.

Começa a parecer que estamos tratando aqui de duas perspectivas diversas. Pitkin as denomina "a do ator engajado na ação e a do observa-dor", e ambas se encontram profundamente inseridas em nossa linguagem e forma de vida.33 Não podemos considerar separadamente uma destas sem perder, de algum modo, aspectos cruciais da realidade social. Uma ciência da sociedade puramente observacional, usando um vocabulário causai inde-pendente de nosso vocabulário de ação, poderia ser possível. Entretanto, surge o problema: o que estaríamos então observando? Não seríamos capa-zes de ver promessas, poder, interesses, guerras, cultos, organizações, ex-ploração, privação, uma vez que estes conceitos, por definição, não pode-riam atingir o observador livre do conceito de ação. Em suma, tal ciência "não poderia responder às perguntas que agora podemos formular, pois estas são formuladas com base nos conceitos que possuímos".34

Parece, portanto, que a velha dicotomia de razões versus causas não é tão simples quanto seus protagonistas possam, em qualquer dos casos, desejar. O que talvez se torne claro é que não é adequado usar um vocabu-lário puramente causai como o único apropriado para a ciência social. Os argumentos deste capítulo, embora não resolvam muitas das questões, su-gerem enfaticamente que a maneira tradicional pela qual este vocabulário causai tem sido usado em grande parte da ciência social apresenta sérias deficiências. No próximo capítulo examinarei outros argumentos de rele-vância, para este assunto.

33 Ibid.,p. 272. 34 Ibid.

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5 OS S I G N I F I C A D O S E A PESQUISA S O C I A L

No capítulo anterior, chamou-se a atenção para uma série de aspectos quanto à natureza do vocabulário que usamos para falar sobre ação. Muitos destes aspectos surgiram a partir do fato de que os próprios seres huma-nos descrevem e explicam sua conduta social usando conceitos pertencen-tes a este "vocabulário de ação". O fato não tem sido ignorado pelos cien-tistas sociais, uma vez que a fala dos atores, suas razões, as regras que invo-cam e assim por diante são usadas como fonte de dados através de métodos tais como questionários, entrevistas, documentos, relatórios etc. Também foram discutidas algumas diferenças entre vocabulário causai e de ação, num esforço para iluminar a questão da possibilidade de haver uma ciência social lidando com causas, conforme o presumido pelo positivismo. Con-quanto não se tenha ainda sugerido que a ciência social (lidando ou não com causas) seja impossível, as considerações precedentes trazem impli-cações cruciais quanto à natureza das versões sociais científicas. Além disso, os argumentos pressupõem uma concepção da realidade social bastante diversa daquela preconizada pelo positivismo. Neste capítulo, apresentarei alguns dos argumentos precedentes, tendo a ver mais diretamente com mé-todos de pesquisa tradicionalmente associados à ciência social positivista, passando então a discutir a relação entre os conceitos dos atores e os da ciência social, numa tentativa de abordar uma formulação um tanto mais clara do que uma ciência social tratando do significado poderia envolver.

A CRITICA DA ONTOLOGIA POSITIVISTA E SEUS MÉTODOS

O princípio pelo qual a ciência social positivista constrói sua versão da rea-lidade social consiste em estabelecer uma distinção entre atos, estruturas, instituições identificáveis, enquanto "fatos brutos" ou "dados brutos" por um lado, e crenças, valores, atitudes, razões, por outro. Estas duas ordens de realidade são correlacionadas a fim de fornecer as generalizações ou regularidades que são os objetivos de uma ciência da vida social. O que é real são os "dados brutos" considerados como a realidade social objetiva, e os valores, crenças, ideologias e assim por diante, de categoria meramente

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Os Significados e a Pesquisa Social 97

subjetiva. A categoria subjetiva dos significados é evidenciada pelas dispu-tas que ocorrem em torno do que sejam os "fatos brutos" da vida social. Por exemplo, quando motoristas de caminhão entram em greve, eles o fazem para obter salários mais elevados, estão protestando contra a políti-ca governamental, mostram assim apenas sua frustração e ressentimento ou estarão sendo manipulados por agitadores? A tais crenças é atribuída uma espécie de realidade subjetiva, na medida em que são vistas como ca-pazes de exercer algum efeito sobre a própria realidade social e, natural-mente, uma vez que as pessoas que admitem tais crenças atribuem tais sig-nificados a seu mundo social, elas passam a constituir um fato a respeito do mundo. Entretanto, a realidade social, que é o objeto dessas crenças, versões, significados, ou qualquer que seja o nome escolhido para tudo isso, só pode ser constituída a partir do "fato bruto objetivo". Em suma, só se permitem os significados no discurso científico se forem colocados "como citações, e atribuídos a indivíduos como suas próprias opiniões, crenças, atitudes".1

No entanto, se aceitarmos os argumentos do capítulo anterior, esta concepção dá um sentido bastante falso à natureza da ação social e, con-seqüentemente, da realidade social. Tal sucede porque relega os elemen-tos do significado a uma função subjetiva, enquanto meras versões da rea-lidade social. Isto implica, em outras palavras, "que há uma realidade so-cial que pode ser descoberta em cada sociedade, independentemente do vocabulário dessa sociedade, ou na verdade de qualquer vocabulário, as-sim como o paraíso pode existir quer os homens teorizem a seu respeito, quer não".2 Na verdade, trata-se de outra coisa. Uma formulação alter-nativa é postular as realidades sociais como sendo construídas nos signi-ficados e através deles, e dizer que as realidades sociais não podem ser identificadas abstraindo-se a linguagem na qual estão mergulhadas. O sig-nificado está profundamente vinculado à linguagem, considerada não como um sistema de regras gramaticais e sintáticas, mas como interação social. Adaptando-se uma afirmação de Austin: a linguagem não apenas relata a respeito do mundo mas é, ela própria, executante de ação nesse mundo.3

A linguagem e as práticas, as coisas e acontecimentos do mundo são inse-

1 C. Taylor, "Interpretation and the Sciences of Man", in Beehler e Drengson (orgs.), op. cit., p. 172. Este capítulo muito deve a esse excelente artigo. 2 Ibid., p. 174. 3 J.L. Austin, PhilosophicalPapers, Oxford, Clarendon Press, 1961, org. J.O. Urmson e G. Warnock, esp. pp. 66-7 e 220-39. Também, do mesmo autor, How to Do Things with Words, Oxford University Press, 1965, org. J.O. Urmson. Encontra-se uma ex-ploração sociológica dessas idéias em R. Turner, "Words, Utterances and Activities", in J. Douglas (org.), Understanding Everyday Life, Routledge & Kegan Paul, 1971, pp. 169-87.

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paráveis, e a distinção entre a realidade social e a descrição dessa realidade é, no mínimo, artificial. Generalizando a partir do que foi dito anterior-mente sobre as "regras constitutivas", podemos dizer que a "linguagem é constitutiva da realidade, é essencial para que esta seja o tipo de realida-de que é" . 4

Devemos procurar ser absolutamente claros, a respeito das implica-ções existentes nesta noção. Especificarei agora algumas de suas principais características, elaborando algumas delas posteriormente.5 Em primeiro lugar, surge a postulação de que a realidade, quer a natural quer a social, não pode ser concebida ou conhecida1independentemente dos conceitos lingüísticos. Em segundo, afirma-se que tudo o que se refira à realidade social é construído através do uso da linguagem, sendo modos de relacio-namento social. Os relacionamentos que temos com outros não são inde-pendentes da linguagem usada para invocá-los. E mais ainda, os relaciona-mentos assim invocados através da linguagem e de seus significados são ocasionados (ou seja, construídos como exemplos de relacionamentos de um certo tipo pelo uso de razões, regras, convenções e outros conceitos de ação) naquela ocasião no curso das vidas diárias de indivíduos.

Em terceiro lugar, a linguagem e o significado não são coisas subje-tivas de caráter particular mas constituem algo público e intersubjetivo. Não se trata aqui de crenças convergentes ou, como se diz algumas vezes, de consenso de valor ou normativo. Um alto nível de significado intersub-jetivo é consistente com acirradas divisões e conflitos, e os protagonistas não têm dúvidas quanto ao que os separa. Os significados comuns estão impregnados na linguagem de uma comunidade e em todas as maneiras pe-las quais os membros dessa comunidade são capazes de falar, concordar, discordar, chegar a conclusões, orar, descrever, rebelar-se ou investigar a realidade social construída através dessa linguagem.

Em quarto lugar, e voltando ao que foi dito sobre as descrições, os significados não se tornam específicos de modo finito, mas recebem seu sentido de um background formado por contexto e interpretações utili-zadas pelos falantes da linguagem nas ocasiões em que os elementos da lin-guagem são usados.

Em quinto, as disputas que surgem sobre as ações, sobre a realidade social, não são deficiências originárias da insuficiência da linguagem natural

4 Taylor, op. cit., p. 175. 5 Essas afirmações são coletadas de muitas fontes, inclusive Taylor, ibid.; Garfinkel, Stuclies; P. Winch, The Idea ofa Social Science, Routledge & Kegan Paul, 1963; D.L. Phillips, Wittgenstein and Scientific Knowledge; a sociological perspective, Macmillan, 1977; H. Mehan e H. Wood, The Reality of Ethnomethodology, Nova York, Wiley, 1975. Não é necessário dizer que estes autores, e outros de convicções semelhantes, fazem mais do que simplesmente afirmar.

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ao expressar nossas idéias, mas constituem uma característica da própria realidade social sendo parte da natureza desta enquanto uma ordem moral.

Segundo a ontologia que acabou de ser esboçada, ao estudarmos as realidades sociais não estamos lidando com uma realidade formada por "fa-tos brutos", uma realidade de forças e objetos exteriores "semelhantes a coisas" (thinglike). Estamos lidando com uma realidade constituída por pessoas relacionadas entre si através de práticas que recebem identificação e significado pela linguagem usada para descrevê-las, invocá-las e executá-las. Os proponentes desta concepção argumentam que a realidade social assim concebida não pode ser estudada pelos métodos associados à ciência social positivista. O argumento, em suma, é que tais métodos baseiam-se numa falsa ontologia e em pressuposições que não podem ser sustentadas. Já discutimos alguns dos argumentos relevantes a este respeito. Podemos, entretanto, prolongar a discussão assinalando o paradoxo de que os méto-dos positivistas só funcionam na medida em que eles próprios encontram-se engastados em uma ontologia que acabamos de delinear. Se tal argumen-to revelasse substância, então, de maneira clara, teria sérias conseqüências para a autoridade das versões sociais científicas. Assim, examinemos estas questões retomando algumas das observações feitas anteriormente neste capítulo e no anterior, enfocando mais diretamente os métodos positivis-tas da pesquisa social.

O ponto de partida (embora nem sempre de maneira óbvia) para os dados da ciência social são o que se chamava de construtos de "primeira ordem", usados pelos membros de uma dada sociedade. No entanto, pre-cisamente em razão das qualidades discutidas anteriormente em relação à descrição da ação social, estes construtos de "primeira ordem" eram consi-derados inadequados para uma ciência da vida social. Freqüentemente vagos, imbuídos de emoção, opiniões e valores, ambíguos em significado, estes eram considerados absolutamente impróprios enquanto conceitos "científicos" precisos. O espírito desta objeção pode ser apreendido a par-tir das observações de Durkheim sobre as estatísticas que utilizou em seu estudo do suicídio. Ele deixa de lado as estatísticas sobre os motivos de suicídios, argumentando que as "estatísticas dos motivos de suicídios são realmente as estatísticas das opiniões relativas aos motivos dos funcioná-rios, muitas vezes dos funcionários de categoria inferior, encarregados des-te serviço de informação".6 Ele prossegue: "Sabe-se que estas são deficien-tes mesmo quando aplicadas a fatos materiais óbvios, compreensíveis para qualquer observador consciencioso." Se funcionários de categoria mais elevada teriam tido mais êxito, é uma outra questão. No entanto, a objeção

6 Durkheim, Suicide, trad. Spaulding e Simpson, p. 148. [Ed. brasileira: O Suicídio. Rio, Zahar, 1982.]

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a construtos de "primeira ordem", neste caso os de "funcionários de cate-goria inferior" torna-se bastante clara. Estes precisam ser corrigidos de algum modo, feitos com mais objetividade, ou substituídos por construtos científicos. O problema é a natureza precisa desta transformação.

Examinemos os procedimentos de escalas, em primeiro lugar. Estes são utilizados principalmente na mensuração de atitudes e em avaliações de personalidade, embora as técnicas sejam usadas para medir outros fenô-menos além das disposições psicológicas. Tais escalas são normalmente elaboradas através da seleção de itens de uma série a qual, segundo se su-põe, atinja a atitude ou o traço de personalidade relevante. Os itens são colocados sob a forma de perguntas ou afirmações que devem ser confir-madas ou negadas pela pessoa consultada. A confirmação ou negação é assinalada adequadamente, dependendo da resposta demonstrar mais ou menos da atitude ou traço de personalidade. O seguinte exemplo é tomado de uma escala apresentada em "Faith in People":7

1. Algumas pessoas afirmam que a maior parte das pessoas merece confian-ça. Outros dizem que todo cuidado é pouco, ao se lidar com gente. Como você se sente a esse respeito?

2. Você diria que a maioria das pessoas está mais inclinada a auxiliar ou-tras, ou mais inclinada a tratar de seus próprios interesses?

3. Se você não se cuidar, os outros abusarão de você. 4. Ninguém vai se importar muito com o que sucede com você, é o que

você descobre se examinar a fundo. 5. A natureza humana é fundamentalmente cooperativa.

Dependendo do padrão de respostas a estes itens, as pessoas consultadas demonstravam ter uma fé nas outras pessoas que seria "alta", "média" ou "baixa". Cada um desses subgrupos era correlacionado a outras escalas de atitudes, demonstrando-se assim as diferentes atitudes para com o suces-so na vida. Os próprios itens eram formulados em linguagem ordinária bem reconhecível, e poderiam ser expressos numa quantidade de situações co-nhecidas. Em tais ocasiões, as respostas iriam variar — desde murmúrios de aprovação ou desaprovação, até justificações mais amplas, pronunciadas com ironia, em tom jocoso, e assim por diante. Em entrevistas ou em situa-ções de testagem, entretanto, quem responde normalmente se limita a selecionar uma escolha, dentre o restrito número de respostas já forneci-das; "sim" ou "não", ou escolhendo uma das quatro ou cinco alternativas que expressam o grau de concordância ou discordância com relação ao

7 M. Rosenberg, "Faith in Péople and Success Orientation", in P.F. Lazarsfeld e M. Rosenburd (orgs.), The Language of Social Research, Nova York, Free Press, 1955, p. 160.

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item. É este aspecto que permite ao pesquisador assinalar um modelo nu-mérico ao padrão de respostas. Surge entretanto uma importante questão: o significado dos itens para o pesquisador é equivalente ao significado que estes possuem para as pessoas consultadas? A qualidade de textura aberta peculiar à linguagem ordinária, e que o investigador tenta remediar, ao me-nos em parte, fornecendo respostas de escolha dirigida e assim por diante, coloca um ponto de interrogação quanto à suposição de que pesquisador e pessoa consultada compartilham "da mesma comunidade de estruturas de significado subjetivas para assinalar a significância cultural" dos itens.8 Se não se pode manter esta hipótese de equivalência de significado, então dei-xa de ser claro em que sentido pode se dizer que a medida de atitudes é realmente uma medida.

Mesmo que consideremos seriamente os argumentos anteriores a res-peito da qualidade de textura aberta da linguagem ordinária, não existe de fato certeza de que, ao fornecer uma resposta, o respondente entenda o item em si ou sua resposta da mesma forma que um outro respondente. O mesmo sucede quanto ao investigador, ou ainda quanto a ocasiões dife-rentes em que a mesma pessoa responda a perguntas. Isto não significa que um respondente não seja capaz de fornecer uma resposta: o problema tem a ver com o significado dessa resposta e com as implicações que possam ser extraídas dela. E mais ainda: o que inferimos sobre um respondente que forneça uma resposta positiva ao item 3, digamos, e também ao item 5? Estará ele sendo irracional, inconsistente ou apenas irrefletido? Ele pode ser tudo isto e mais ainda, mas seria difícil julgar sem lhe pedir que forne-cesse elaborações adicionais. É possível apresentar razões perfeitamente boas, conectadas racionalmente, para concordar com aquelas afirmações aparentemente "inconsistentes". As circunstâncias nas quais se oferece a pergunta ou a afirmação podem estabelecer a diferença quanto ao tipo de resposta que suija. Eu suponho que o item 5 receberia uma resposta bas-tante diversa se aparecesse num texto de exame. O item 3 poderia receber uma resposta diferente, caso fosse apresentado por um estranho de apa-rência sinistra que abordasse o respondente numa noite escura, em Soho!* Essas observações são relevantes para compreender por que, às vezes, as pessoas consultadas mostram dificuldade em responder a tais escalas, pois encontram-se afastadas de qualquer contexto no qual as mesmas perguntas fariam sentido. Incluir itens assim num questionário ou entrevista dá a es-tes um caráter abstrato e praticamente sem sentido, fazendo com que os

8 A.V. Cicourel, Method and Measurement in Sociology, Nova York, The Free Press, 1964, p. 198. * Soho - bairro popular, em Londres. (N. da T.)

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respondentes queiram perguntar "em que circunstâncias", ou utilizem-se de frases tais como "tudo isto depende".9

As questões que acabamos de levantar ligam-se aos tipos de inferên-cias que desejássemos extrair dos resultados de tal método. Essas inferências, como já demonstrei, nem sempre são claras. Que implicações poderíamos extrair, para dar outro exemplo, do fato de que um respondente atingisse uma contagem alta em tal escala? Deduziríamos que ele ou ela é sempre confiante, emprestará dinheiro a qualquer um, é um ávido e entusiasta consumidor, ingressará em qualquer grupo? Poderíamos deduzir todas essas coisas e mais ainda, mas a que conclusão chegaríamos se um respon-dente de contagem elevada não emprestasse dinheiro a seu amigo mais chegado? Diríamos que as respostas foram trapaceadas, que a pessoa sofreu uma perturbação momentânea, estava sem dinheiro no momento, ou o quê? Sem conhecimento da pessoa, das particularidades da ocasião e das elaborações ou justificações que ela própria poderia oferecer, não sabería-mos o que concluir. E no entanto a noção de "fé nas pessoas" possui algum sentido, determinado pelo senso comum. Nós compreendemos os tipos de coisas a que essa noção se refere, sabemos o que representa, quando poderia ser usada, e assim por diante. É esta habilidade que constitui o conheci-mento da linguagem e que dá à própria escala alguma plausibilidade enquan-to um recurso relevante para a compreensão da ação humana. Se, afinal de contas, o pesquisador tivesse denominado a propriedade sendo medida de XZ, mesmo assim ainda desejaríamos saber como isto se relacionaria a nossos conceitos para se falar sobre a ação. Em outras palavras, o uso ordi-nário é um recurso essencial para a nossa compreensão dos conceitos su-postamente científicos e dos itens com que se pretende aferi-los; um recur-so utilizado tanto pelo pesquisador, ao planejar uma escala, quanto pelo respondente, ao respondê-la. Mas este uso ordinário, tendo a característica de textura aberta (open-textured) , aberto a elaborações subseqüentes, só pode assinalar tudo o que poderia significar numa dada ocasião.

Estes comentários têm uma importância maior do que a avaliação de personalidade ou a mensuração de atitudes. A codificação dos questioná-rios, por exemplo, depende, para ser válida, de alguma suposta equivalência entre as soluções apresentadas pelo respondente e a intenção do pesquisa-dor ao formular a pergunta. Mas existem motivos fortes para que se ques-tione se a equivalência é observada do modo desejado. Conforme Cicourel esclarece, a respeito de seu próprio trabalho sobre a fertilidade, "ter filhos" não tem necessariamente o mesmo significado para o pesquisador ou entre-

9 Problemas como esses são muito bem tratados em J. Heritage, "Assessing People", in N. Armistead (org.), Reconstructing Social Psychology, Peguin Books, 1974 , pp. 260-81.

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vistador e para os respondentes.10 Os significados variavam, em cada en-trevista. "Ter filhos" quer dizer uma coisa para virgens, uma outra para mulheres grávidas, ainda outra quando se dá a luz e, bastante provavelmen-te, outra diversa ao se falar com o entrevistador. Tudo isto não esgota as possíveis variedades e elaborações do significado, e nem sempre é possível que um codificador volte a solicitar ao respondente que elabore uma res-posta que possa ser obscura ou ambígua. Mesmo que isto fosse possível, provavelmente não ajudaria muito, uma vez que surgiriam novos problemas para a codificação, com os novos detalhes acrescentados. Verificam-se pro-blemas semelhantes em situações experimentais, quando não se torna bas-tante claro que os sujeitos percebam ou compreendam a situação experi-mental do modo presumido pelo pesquisador.

A crítica do uso social e científico de estatísticas oficiais está muito bem documentada, especialmente quando surge a partir do uso pioneiro empreendido por Durkheim, em seu estudo sobre o suicídio. Conforme já assinalamos, o próprio Durkheim expressou muitas dúvidas sobre a precisão destas estatísticas e tentou resolver o problema interpretando-as como re-flexos de certas correntes morais dentro da sociedade. Entretanto, como outros observaram, aqueles responsáveis pela compilação de tais estatísticas - funcionários civis, membros da polícia, investigadores — têm, eles pró-prios, que decidir sobre a descrição apropriada daquela morte específica que têm diante de si. Como as pesquisas nos mostram, tais pessoas "baseiam-se em expectativas contextuais e circunstanciais, em teorização e tipificações fornecidas pelo senso comum que lhes possibilitem dar sentido e objetivar os fenômenos com os quais se deparam".11 Em suma, elas baseiam-se em seus próprios esquemas de significado a fim de organizar as particularidades diante de si, chegando assim a uma descrição deste acontecimento social, classificando-o juntamente com outros acontecimentos sociais "semelhan-tes". Os chamados "fatos objetivos", aferidos por tais estatísticas, consti-tuem a criação de práticas individuais utilizadas pelas pessoas para fazerem de seu mundo algo explicável e significativo. São essas versões, sem dúvida através de muitas negociações e processos, que se infiltram nos cálculos, e esse registro não pode representar uma realidade objetiva, ou constituir "fatos objetivos", do modo proposto por cientistas sociais de fé positivista. O fato de que os atores sociais possam considerar tais estatísticas ligadas a características objetivas de seu mundo, vem a interferir em seus processos,

10 A.V. Gcourel, Theory and Method in a Study of Argentine Fertility, Nova York, Wiley, 1973; também D. Phillips, Knowledge From What?, Chicago, Rand McNally, 1971. 11 J.M. Atkinson, DiscoveringSuicide, Macmillan, 1978, p. 45.

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métodos, significados. Interfere, podemos dizer, nas práticas encravadas na sua linguagem.

Os pontos que acabamos de reiterar não têm a ver simplesmente com a validade técnica de tais métodos, mas principalmente com as questões gerais que surgem de esforços para transformar construtos "de primeira ordem" em conceitos apropriados para uma ciência social dedutiva. Esta é uma atividade cheia de dificuldades. A estrutura da entrevista, por exem-plo, baseia-se numa lógica que visa a produzir respostas "claras" e "dire-tas" as quais possam ser codificadas com precisão para propósitos estatísti-cos. Infelizmente tal lógica nem sempre reflete os modos pelos quais os respondentes organizam deliberadamente suas interações diárias: presume-se que falar de atitudes, valores, crenças, ações etc., forneça uma descrição literal adequada do que as pessoas acreditam e fazem. No entanto, a entre-vista encontra-se afastada das circunstâncias nas quais as pessoas atuam, o que torna as respostas a essa no mínimo artificiais. A codificação e poste-rior manipulação de tais dados os remove e abstrai ainda mais das vidas so-ciais supostamente investigadas. As características indicativas da linguagem natural fazem com que as coisas ditas nessa linguagem apenas façam senti-do contra o background ou contexto da ocasião na qual são expressas. As palavras, pronunciamentos, de fato qualquer forma simbólica, precisam ser "preenchidos" em cada ocasião de uso, e isto constitui um imenso obstá-culo aos esforços para construir uma linguagem de tipo matemático para a ciência social. Afirma-se que os métodos positivistas descontextualizam construtos de "primeira ordem", distorcendo a realidade que pretendem investigar. Eles impõem arbitrariamente uma versão de realidade insensível aos modos pelos quais o mundo social é significativo e elaborado por aque-les que nele vivem.

Até o momento, neste exame crítico, argumentou-se que os métodos de pesquisa associados à ciência social positivista baseiam-se em suposições que ignoram, ou até mesmo violam, as pressuposições da concepção da rea-lidade social enquanto produzida através de significados. Entretanto, per-manece o fato de que os pesquisadores têm produzido "achados" e análises da vida social que, é preciso admitir, possuem alguma plausibilidade. Em-bora seja difícil dar uma resposta plena à questão de como isto é possível - muito principalmente no âmbito deste exame — vale a pena mencionar um ou dois pontos, uma vez que estes incorporam uma visão do conheci-mento social científico diferente da visão positivista. O primeiro ponto que desejo enfocar já foi brevemente mencionado: até onde os conceitos sociais científicos (qualquer que seja sua aplicação sob a forma de operações de pesquisa) são parasitários, quanto a seu significado, em relação aos concei-tos disponíveis na cultura e na linguagem, ou seja, conceitos de uso diário. Se, além disso, aceitarmos a noção de que os falantes de uma linguagem na-tural obtêm uma adequação descritiva em ocasiões específicas para propó-

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sitos práticos, através do uso de seu conhecimento diário do mundo baseado no senso comum, é possível argumentar que os pesquisadores implicita-mente lidam com o mesmo corpus de conhecimento a fim de realizar sua pesquisa, em primeira instância. Isto incluiria o conhecimento dos típicos motivos, razões, situações, regras, convenções e assim por diante; em suma, o conhecimento das práticas encravadas na linguagem. Na verdade, sem a utilização de tal conhecimento, é difícil verificar como de início a ativida-de de pesquisa poderia ser executada. Assim, o "sentido", se posso usar esta palavra, das descobertas de pesquisa deve muito ao conhecimento im-plícito baseado no senso comum que o pesquisador compartilha com os outros atores sobre o mundo social. Vista desta forma, a ciência social de-pende, para sua autenticidade, de significados e entendimentos existentes dentro da cultura.

Existe ainda um outro aspecto. A ciência pode ser considerada como uma prática cultural envolvendo o uso de regras de procedimentos acredi-tadas coletivamente e identificáveis como "práticas científicas". Segundo explica Wilson:

A pesquisa científica é uma atividade prática que está encravada, como qual-quer atividade prática, ríum contexto de conhecimento implícito baseado no senso comum, e que é empreendida por membros de uma comunidade científi-ca específica com o objetivo de formular descrições as quais sirvam como bases para uma compreensão teórica posterior.12

Se consideramos a pesquisa como uma atividade executada de acordo com regras, deparamo-nos com o problema existente com relação a todas as re-gras, ou seja, que nenhuma regra prescreve sua própria aplicação mas que deve ser usada. Muitas das regras — ou talvez todas — utilizadas nos méto-dos de pesquisa da ciência social baseiam-se, elas próprias, em teorias de comportamento social. A entrevista, por exemplo, depende para sua vali-dade de teorias sobre a relação entre as palavras e os atos do respondente, suas crenças etc. Uma das dificuldades aqui reside em estabelecer uma dis-tinção efetiva entre a fala utilizada em contextos diversos, um dos quais, a entrevista, torna-se "fala enquanto dado científico". Os métodos positi-vistas parecem estabelecer esta distinção primordialmente em termos de até onde aquela fala corresponde a certos critérios, tais como claridade, consistência, falta de ambigüidade, e assim por diante. Como ajuda a isto, pode-se fornecer respostas de escolha fixa, utilizar testes de consistência, rejeitar questionários se estes contiverem demasiadas respostas inconsis-tentes ou do tipo "não sei", e assim por diante. Porém tais regras precisam

12 T.P. Wilson, "Normative and Interpretative Paradigms in Sociology", in Douglas (org.), op. cit., p. 74.

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ser aplicadas a cada caso individual. Este questionário é autêntico? Esta contagem de atitudes realmente reflete a atitude desta pessoa ou é uma res-posta automática? Será esta resposta compatível com a resposta anterior, ou o respondente foi displicente em virtude de cansaço ou tédio? As res-postas a questões assim não podem ser fornecidas apenas pelas regras, mas devem preencher os vazios, de forma que a regra venha a se aplicar a casos específicos. Isto fará com que recorramos a motivos típicos, situações típi-cas, modelos típicos do respondente e outras imputações a fim de que haja concordância com alguma concepção de prática científica aceitável. O alcance de aceitação das soluções do pesquisador depende, em parte, de outros membros acreditados da comunidade científica em pauta. A prática científica, como outras práticas, é uma atividade exeqüível na qual os resul-tados, conclusões, descobertas, teorias e similares são sujeitos ao escrutí-nio de outras pessoas legitimadas. É este escrutínio público que fornece às regras da pesquisa científica sua garantia e sua força. A "objetividade", a "verdade", a "descrição relevante" e assim por diante são estabelecidas, de certa forma, através dos procedimentos interpretativos da prática social. Embora possamos considerar as regras de procedimento científico como formulações abstratas definindo a trilha em direção ao conhecimento obje-tivo da realidade, como todas as regras elas precisam ser aplicadas e isto constitui em profundidade uma questão de julgamento e prática social. As descrições e explicações científicas são os produtos de atividades de pes-quisa empreendidas por membros acreditados de uma comunidade científi-ca e consistem na aplicação de regras de procedimento fornecidas e com-preendidas por aqueles que são julgados membros competentes daquela comunidade. Qualquer pesquisador deve basear-se nessa compreensão a fim de criar, analisar e comunicar as descobertas.13 Isto é a base da concordân-cia intersubjetiva que constitui o recurso para que se veja a pesquisa como sendo "objetiva", "consistente com a evidência", "provisória", ou dotada de qualquer outra qualidade.

Estas observações sobre os métodos de pesquisa positivistas encerram uma concepção de conhecimento radicalmente diferente. A iniciativa posi-tivista via a si própria operando segundo uma epistemologia baseada pri-mordialmente na observação. Sentia-se que os esforços para formular uma linguagem de observação neutra eram cruciais no sentido de estabelecer a autoridade científica de uma disciplina, uma vez que nisto consistia a fon-te da objetividade. O mundo exterior descrito em termos de uma lingua-gem observacional neutra era considerado como o árbitro da verdade ou

13 Sobre a importância de procedimentos não explicitados e implícitos na pesquisa científica, ver T.S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, University of Chica-go Press, 1962.

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da adequação de proposições científicas. Uma linguagem de observação referindo-se a fenômenos reais e operada de acordo com um cálculo lógi-co estrito forneceria o conhecimento das leis da natureza, inclusive das leis da vida social. Já discutimos algumas das dificuldades que surgem desses esforços, especialmente em conexão com a ciência social. Uma objeção argumentava que o positivismo falseava a natureza da ciência, esposando uma versão empirista que subestima a importância da conexão abstrativa entre teoria e mundo empírico. A perspectiva que acabamos de discutir, entretanto, postula que o conhecimento, em lugar de consistir num produ-to passivo do mundo empírico, é um constituinte ativo na construção do mundo, quer natural quer social. Assim o faz, em primeiro lugar, assina-lando a base interpretativa da vida social e argumentando que os esforços para construir os chamados conceitos científicos de "segunda ordem" a partir dos de "primeira ordem" destroem a própria realidade investigada e a substituem por uma versão "cientifizada". Tal significa adulterar os conceitos usados pelos respondentes no decorrer de suas vidas, a fim de torná-las cientificamente utilizáveis. O problema é que o significado e a significância de termos supostamente neutros tais como poder, legitimi-dade, lucro, desvio, integração, sistema social, derivam em larga escala dos usos variados que possuem dentro da própria ação e da linguagem usada nessa ação. Em segundo lugar, a crítica chama a atenção para o fato de que a ciência, natural ou social, é uma atividade humana. Ela é também social e suas regras funcionam porque há um forte elemento de concordância inter-subjetiva quanto à aplicação destas. "Objetividade", "conhecimento", "verdade" e outros conceitos como estes vêm a adquirir uma qualidade convencional, firmemente baseada nas práticas sociais as quais, segundo se afirma, constituem uma disciplina. É claro que tal argumento tem impor-tantes implicações para a categoria de ciência em relação a outras preten-sões ao conhecimento. Ele também levanta o espectro do relativismo. Se a prática científica é convencional no sentido de ser governada por regras, como qualquer outra atividade, o que acontece quanto à reivindicação de que essas regras e não outras representam uma forma superior de conheci-mento? Não é possível apelar para a habilidade superior da ciência de expli-car o mundo uma vez que, nessa perspectiva, o próprio mundo é constituí-do a partir das práticas que compõem a disciplina não podendo, portanto, fornecer testemunho independente. Não é possível ir além do círculo das interpretações, como os positivistas tentaram fazer com a noção de uma linguagem de observação neutra, para julgar os méritos relativos de diferen-tes pretensões rivais ao conhecimento. Tudo o que nos resta são os vários tipos de atividades, a ciência, a arte, a crítica literária, a poesia, a literatu-ra, a religião e assim por diante, cada uma justificada internamente, por assim dizer, por suas próprias convenções. Julgar uma em termos de outra seria equivalente a avaliar o futebol em termos das regras de "cricket"!

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Existem, naturalmente, muitas questões importantes emergentes des-ta crítica específica ao positivismo, e examinarei com mais detalhes algu-mas destas. Começarei por considerar a relação entre conceitos leigos e conceitos científicos.

CONCEITOS LEIGOS VERSUS CONCEITOS CIENTÍFICOS

Os argumentos apresentados no capítulo anterior e a crítica que estes fa-zem à ciência social positivista afirmam que a ação é peculiar aos seres hu-manos, envolvendo noções de escolha, responsabilidade, significado, sen-tido, convenções, regras, intenções, motivos e assim por diante. Além disso, tais conceitos são utilizados e modelados no decorrer da ação; eles são, repetimos, constitutivos do mundo social. Isto tem servido de exemplo para sugerir que as ações, portanto, só podem ser identificadas através das concepções do ator, de acordo com a visão que este tem do mundo. Tal argumento baseia-se firmemente na distinção entre o mundo físico e o humano e nas formas diversas de conhecimento que isto encerra. Winch observa que, conquanto tanto o cientista físico quanto o social tragam um sistema de conceitos para o assunto de que tratam, aquilo que o cientista físico estuda possui

uma existência independente desses conceitos. Existiam tempestades e trovões muito antes da existência de seres humanos para formalizar conceitos sobre es-tes . . . não faz sentido supor que os seres humanos pudessem produzir coman-dos e obedecê-los antes de formular o conceito de comando e obediência.14

Os assuntos da ciência social possuem suas próprias concepções do que estão fazendo e "as concepções segundo as quais normalmente pensa-mos nos acontecimentos sociais . . . penetram na própria vida social e não apenas na descrição que o observador faz desta".15 Qualquer atividade hu-mana que envolva a linguagem - e é difícil pensar em uma que não o faça — apresentará ao observador uma interpretação pré-articulada do que seja tal atividade.

Pois o homem não espera que a ciência lhe explique a sua vida e, quando o teó-rico aborda a realidade social, encontra o campo antecipadamente ocupado pelo que pode ser chamado de auto-interpretação da sociedade. A sociedade

14 Winch, op. cit., p. 125. 15 Ibid., p. 95. Ver também S. Woün, Politics and Vision, Boston, Little Brown, 1960; L. Strauss, Natural Rights and History, University of Chicago Press, 1959; A. Schutz, Phenomenology of the Social World, trad. G. Walsh e F. Lehnert, Evanston, Northwestern University Press, 1967.

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humana não é meramente um fato, ou um acontecimento do mundo exterior, a ser estudado por um observador como um fenômeno natural . . . é um peque-no mundo integral, um cosmos, iluminado de significado a partir de seu interior pelos seres humanos que, incessantemente, o criam e conduzem como forma e condição da sua auto-realização.16

É em observações como estas que se baseia a tese de que a identificação de ações deve necessariamente processar-se nos termos do ator, utilizando-se de algumas das dificuldades mencionadas no capítulo anterior relativas à identificação de ações, à descrição destas, à especificação do que foi feito, a dizer se duas ações são equivalentes etc. Citamos novamente Winch:

Duas coisas só podem ser chamadas de iguais ou diferentes com referência a um conjunto de critérios que exponham o que deve ser considerado como uma diferença relevante. Quando as coisas em pauta são puramente físicas, os cri-térios aplicados serão, naturalmente, os do observador. Mas quando se lida com coisas intelectuais (ou, na verdade, com quaisquer aspectos do social), isto não se verifica. Pois ser intelectual ou social . . . em caráter depende inteira-mente de pertencer, de uma certa forma, a um sistema de idéias ou modos de vida. É apenas por referência aos critérios que governam tal sistema de idéias ou modo de vida que essas coisas possuem qualquer existência enquanto acon-tecimentos intelectuais ou sociais. Segue-se que, se o investigador sociológico desejar considerá-las como acontecimentos sociais . . . ele precisará levar a sério os critérios que são aplicados para distinguir diferentes tipos de ações e identi-ficar as ações iguais dentro do modo de vida que está estudando. Não lhe é permitido impor arbitrariamente seus próprios padrões vindos de fora. Se ele assim o fizer, os acontecimentos estudados perderão totalmente seu caráter de acontecimentos sociais.17

O que Winch e outros argumentam é mais do que uma simples injun-ção para que os cientistas sociais investiguem as idéias de indivíduos sociais: a identificação de ações depende dos conceitos empregados pelos atores no decorrer de suas vidas, e assim também sucede com os critérios de evi-dência, prova, racionalidade, e assim por diante. As concepções de realida-de e de como esta pode ser estudada, embora independentes de quaisquer noções individuais, são dependentes da atividade humana em questão a qual, por sua vez, deve ser definida por seus participantes. Isto é tão válido para a ciência quanto o é para a magia, a religião, e qualquer outra ativida-de humana. Em nossa cultura, segundo Winch, sentimos dificuldade em perceber tal coisa em virtude da "fascinação que a ciência exerce sobre nós", tornando "fácil para nós adotar sua forma científica como um para-

is E. Vogeün, The New Science ofPolitics, University of Chicago Press, 1952, p. 27. 17 Winch, op. cit., p. 108.

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digma contra o qual medimos a respeitabilidade intelectual de outras mo-dalidades de discurso".18

Tais argumentos possuem uma força especialmente dramática em re-lação a culturas muito diversas da nossa. Os antropólogos, embora não sejam os únicos cientistas sociais que se preocupam com outras culturas, enfrentam o problema de categorizar o comportamento que testemunham. O que, por exemplo, está um homem fazendo ao entalhar uma peça de madeira? Esta será uma atividade econômica na qual esteja empenhado? Será um ato religioso? Um gesto político? Ou simplesmente um modo de passar o tempo? O problema, conforme'Schultz assinala, é que as ativida-des podem ser parecidas mas ter significados diversos dentro de suas res-pectivas culturas. Se um modelo de comportamento é "uma dança guerrei-ra, um intercâmbio comercial, a recepção de um embaixador amigo ou qualquer outra coisa", somente os próprios participantes podem dizer.19

Winch utiliza-se do estudo de Evans-Pritchard sobre magia entre um povo africano, os Azande, para chamar a atenção para o mesmo ponto.20 Para os Azande, a feitiçaria e a magia são fenômenos bastante corriqueiros, tão conhecidos quanto geladeiras, automóveis e aparelhos de televisão o são para nós. Nada há de especialmente miraculoso nisto. Para eles, trata-se de um sistema coerente de pensamento e, embora sejam possíveis erros e fa-lhas, como sucede dentro da nossa ciência, tal não os leva a um indiscri-minado questionamento da magia enquanto sistema de conhecimento. A magia e a feitiçaria, para eles, são elementos incorrigíveis no mundo e as ações as quais, segundo eles, evidenciam a existência da magia e da feitiça-ria se apresentam diante de nós com problemas. A partir de nossa perspec-tiva científica, tendemos a dizer que o sistema deles é errôneo; que está errado quanto à natureza da realidade, uma vez que postula a existência de forças e de seres que não podem, segundo nossa visão das coisas, existir. Esta questão é uma versão do problema do relativismo cultural e, entre ou-tras coisas, tem a ver com a possibilidade de entendermos uma outra cultura.

O problema do relativismo cultural surge de forma semelhante liga-do à incomensurabilidade de diferentes formas de conhecimento. Uma cul-tura muito diversa da nossa pode ser vista como um âmbito de discurso distintivo, que se justifica a si próprio, com sua própria lógica e padrões de racionalidade, não podendo portanto ser descrita ou julgada exceto por

18 P. Winch, "Understanding a Primitive Society", in B. Wilson (org.), op. cit., p. 81. 19 A. Schutz, "Concept and Theory Formation in the Social Sciences", in M. Natan-son (org.), Philosophy of the Social Sciences, Nova York, Random House, 1963, p. 237. 20 E.E. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, Oxford, Clarendon Press, 1965. (Ed. brasileira: Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio, Zahar, 1978.]

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aqueles, por seus próprios critérios e convenções. Tudo isto faz muito sen-tido, mas o que é menos claro é se tal fato nos impede, logicamente, de poder entender em algum sentido uma sociedade ou cultura que não seja a nossa. O próprio Winch não deixa isto claro. Em certo ponto, por exem-plo, ele parece dizer que a explicação e o entendimento nos próprios ter-mos do ator são mais ricos e profundos. Em outro momento, sugere que a explicação não enquadrada nesses termos não é uma explicação social cien-tífica autêntica.21 Ele argumenta que uma posição mais moderada é a de que as ações podem ser explicadas em termos não necessariamente inteli-gíveis para as pessoas em questão, mas só se os conceitos usados forem tra-duzíveis de algum modo aos próprios conceitos do ator. Assim, Winch pa-rece aceitar, como muitos positivistas aceitariam, que a ciência social não precisa restringir-se ao "tipo irrefletido de entendimento" típico dos ato-res sociais. Por exemplo, "preferência de liquidez" não é uma expressão normalmente usada por homens de negócio no decorrer de suas vidas, po-rém os economistas a empregam na explicação de certos tipos de compor-tamento ligados a negócios. Apesar disso, a expressão está logicamente vinculada a conceitos estranhos ao mundo de negócios, e seu uso em eco-nomia pressupõe um

entendimento do que seja dirigir um negócio, o que por sua vez implica um en-tendimento de conceitos comerciais tais como dinheiro, lucro, custo, risco etc. É somente a relação entre esta versão e aqueles conceitos que a tornam uma ver-são de atividade econômica em oposição a, digamos, um texto de teologia.22

Até agora, portanto, vimos uma série de problemas girando em torno da relação entre os conceitos dos atores e os conceitos utilizados pela ciên-cia social. A ciência social positivista, como conseqüência de seus esforços para ser científica, degradou efetivamente a categoria dos conceitos de atores, vendo-os como a contraparte subjetiva de uma estrutura social obje-tiva. As perspectivas representadas por Winch e por outros, por outro lado, sustentam que a descrição e análise da vida social, quer esta seja ou não ra-dicalmente diferente da nossa própria, em termos positivistas leva a assime-trias descritivas de natureza moral. Louch, por exemplo, afirma que, na medida em que a ciência social utiliza-se dos métodos da física, não pode tratar adequadamente da ação.23 O vocabulário da ação está ligado à ava-liação moral e não aos prognósticos científicos. Os conceitos de ação tra-tam de regras, razões, motivos, intenções e não de leis causais e relações invariáveis. E, conforme foi sugerido no capítulo anterior com o episódio

21 Winch, The Idea of a Social Science, pp. 23, 77, entretanto cf. 46-47 . 22 Jbid.,p. 89. 23 A. Louch, Explanation and Human Action, Oxford, Blackwell, 1966.

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112 A Filosofia da Pesquisa Social

de abrir a porta para uma senhora, a descrição da ação não é apenas um assunto revogável, mas encontra-se intimamente ligada à avaliação. A lin-guagem da ação, segundo as palavras de Louch, contém valores enquanto elementos inextricáveis, e tentar removê-los através da invenção de "defi-nições operacionais", supostamente livres de valores, significa que não é mais possível identificar as ações e o significado que estas possuem para os atores. Os processos de identificar e avaliar uma ação não são atividades distintas. Além disso, conforme Winch pretende ter demonstrado com o caso da magia Azande, os sistemas de conhecimento justificam-se interna-mente contendo suas próprias ontologias7 epistemologias e padrões de racionalidade que, de certa forma, fornecem formas e leis de maneira re-flexiva a seus respectivos objetos de conhecimento. Nisto, a ciência não é diferente. Trata-se simplesmente de outro modo de ver o mundo e, portan-to, a ciência não pode pretender uma superioridade absoluta sobre outras modalidades de conhecimento.

Examinemos mais de perto esta posição, começando pela tese de que as ações devem ser identificadas em termos dos conceitos dos atores. Se-gundo Pitkin, esta tese é apresentada em diferentes níveis: apenas a própria concepção de um ator pode definir o que ele ou ela esteja fazendo; apenas os conceitos e regras de uma dada atividade humana podem definir as ações dentro desta atividade; e, num cruzamento de culturas, somente as normas e conceitos de uma dada cultura podem definir as ações.24

O argumento de que só o ator individual sabe o que está fazendo, ou fez, é enganoso ou mesmo falso. Existem muitas circunstâncias nas quais podemos dizer que o ator não sabia o que estava fazendo. Este pode não ser capaz de ver com precisão seus próprios atos, ou apesar das boas inten-ções a ação pode vir a ter maus resultados. Da mesma forma, uma ação tal-vez apresente conseqüências não premeditadas, das quais o ator seja igno-rante. Todos esses casos são considerados em nossas descrições e avaliações de ações. Embora haja casos em que pode-se dizer que apenas o ator saiba aquilo que está fazendo, uma interpretação do conceito de conhecimento seria por demais rígida ao afirmar que isto sempre se dá. Como se demons-trou anteriormente com relação à intenção, o tipo de ação em si é relevante a considerações como essa. Algumas ações dependem de uma intenção rele-vante, outras menos. Pitkin refere-se à tentação de dizer que quanto mais uma ação aproxima-se de movimentos físicos, do tipo efetuado por ani-mais, por exemplo, menos esta pareceria prender-se a intenções relevantes, ou a certezas, por parte do ator.25 Quanto mais complexa, abstrata e gover-nada por regras é uma ação, torna-se menos provável que a atribuamos a

24 H. Pitkin, Wittgenstein and Justice, University of Califórnia Press, 1972, p. 254. 25 Ibid.,p. 255.

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alguém sem o conceito relevante de ação. Por exemplo, é possível comer sem a intenção de comer, matar sem a intenção de matar, escapar sem a cons-ciência de escapar, mas será possível jantar, assassinar ou fugir sem a consci-ência de tais coisas?

Os problemas aqui são realmente complicados. Conforme sugerimos anteriormente, a descrição da ação envolvendo motivo, intenção, ou cons-ciência não significa criar hipóteses sobre um "estado interior" para dar conta de certa manifestação "exterior" de comportamento. Tampouco isto fica restrito apenas pelo caráter do próprio comportamento "exte-rior". As ações são descritas contra um background de contexto ou circuns-tâncias apropriadas, existindo sempre várias combinações de elementos a partir dos quais pode-se formular uma descrição. Além disso, a respeito de ações existem sempre possibilidades de ambigüidades interpretativas, pois os atores são capazes de expressar suas razões e intenções e de argumentar sobre qualquer descrição em particular. A ocorrência freqüente de tais disputas, surgindo, como geralmente ocorre, da natureza da descrição da ação, é uma das razões para que se considere esta como uma atividade mo-ral. Entretanto, o importante é que nestas disputas tanto a perspectiva do observador quanto a do ator são relevantes. Ou seja, nem sempre se dá que o ator, e só este, saiba o que está fazendo, mas tampouco se dá que ape-nas o observador o saiba. Algumas vezes concluiríamos em favor do ator, às vezes do observador, às vezes de nenhum dos dois. Nossas conclusões dependeriam muito da situação, de nosso interesse por esta, da ação em pauta, e de uma quantidade de outras questões de possível relevância. No entanto, em se tratando de ações humanas, a intenção e a perspectiva do ator são sempre potencialmente relevantes.

Um problema de maior complexidade, e talvez mais diretamente as-sociado à descrição de ações com o objetivo de fornecer dados, é a afirma-ção de que as ações dentro de qualquer atividade só podem ser definidas em termos das regras e conceitos dessa atividade; ou seja, dentro daquela área de discurso. O que estará o nosso homem fazendo, ao entalhar o peda-ço de madeira? Estará participando de um ritual religioso, de um proje-to econômico, passando o tempo ou fazendo uma boneca para sua filha? Winch usa o exemplo da oração e afirma que definir se uma atividade é ou não uma prece é uma questão religiosa e deve ser identificada dentro desse âmbito de discurso. Entretanto, se ele quer dizer com isto que as dis-ciplinas, ou outros âmbitos de discurso, tais como a psicologia, a sociologia ou a economia, não podem abordar a questão da prece, estamos então diante de um problema sério. É evidente que as formas de conhecimento, ou âmbitos de discurso, são incomensuráveis entre si. Esta tese, conforme se mostrou anteriormente, é especialmente poderosa no nível intercultu-ral. Sem o conhecimento da linguagem, costumes, convenções e institui-ções de uma sociedade estranha, tenderemos a nos enganar, ao tentar des-

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crever as ações das pessoas em questão. Mesmo com algum conhecimento de determinada sociedade, podemos ser seduzidos por "uma intensíssima fé na super-relevância de nosso esquema profissional de classificação" e ver a vida social apenas nesses termos, eliminando, por assim dizer, a própria versão dos atores a respeito daquela vida.26

Como sempre, as coisas aqui se complicam, e a escolha de exemplos é importante. Aquilo que poderíamos chamar de conceitos complexos de ação tais como a prece, a obediência, o comércio, a política e assim por diante, são freqüentemente ambíguos em seu uso e amplamente variáveis e indeterminados em seu significado. Outros conceitos, tais como comer, dormir, plantar, correr, pular, o são menos. Suponho que haveria pouca di-ficuldade em identificar essas últimas ações onde e quando quer que ocor-ressem. Entretanto, e este é o ponto central da tese, ainda permanece o pro-blema da significância de tais ações dentro da cultura em estudo. O que estão eles fazendo ao comer, pular, correr e assim por diante? Poucos cientistas sociais contentar-se-iam em descrever culturas puramente em termos de pessoas correndo e pulando, comendo e dormindo, por mais divertidas que tais versões pitorescas possam ser. Um outro ponto a se levar em considera-ção é que, certas vezes, um antropólogo ou qualquer outro cientista social lidando com outras culturas deve divergir das próprias versões dos atores, a fim de se comunicar com os leitores. Esta é uma dificuldade muito con-creta no trabalho antropológico. Caso o pesquisador se reportasse apenas em termos do sistema de conhecimento dos atores, disto talvez decorres-sem raciocínios completamente em desacordo com os da própria cultura do pesquisador. Uma tendência na outra direção deixaria de ser, ao menos parcialmente, fiel à cultura sendo estudada. Winch, conforme verificamos, admite a possibilidade de que o cientista social deva usar conceitos desco-nhecidos para os atores, desde que tais conceitos sejam logicamente ligados aos do ator; mas a exata significação disto é um outro problema. O que Winch deseja evitar é uma competição entre as versões dos cientistas so-ciais e as do ator, em que as primeiras são consideradas superiores às segun-das. Entretanto, não há razão para que ambas as versões não possam coe-xistir. Segundo Pitkin, o antropólogo não precisa dizer "embora eles afir-mem que isto é A, na verdade o que estão fazendo é B" . Em lugar disso, o antropólogo diria: "ao fazer A, posso verificar que, ao mesmo tempo, es-tão fazendo B, embora possam negá-lo pu ignorá-lo."27 Assim, a tribo po-de estar envolvida em uma "dança da chuva" a qual, para eles, destina-se

26 M. Moerman, "Analysis of Lue Conversation: providingaccounts, finding breaches, and taking sides", in D. Sudnow (org.), Studies ih Social Interaction, Nova York, Free Press, 1972, p. 223. 27 Pitkin, op. cit., p. 259.

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a produzir chuva, porém o antropólogo pode afirmar que, simultaneamen-te a isto, estão "reafirmando as normas tribais". Poderão estar "reafirman-do as normas tribais" sem o perceber, mas não estarão fazendo isto em lugar do que eles próprios afirmam fazer. Na verdade fazem ambas as coi-sas, uma através da outra. É claro que o pesquisador deve mostrar que os atores executam o que se afirma e para isto, talvez seja necessário relacio-nar os próprios conceitos a alguns conceitos tribais, porém não há regras de lógica rígidas e inalteráveis para tanto. O importante é que a atividade dos atores pode ser relatada em qualquer das duas maneiras, assim como é possível referir-se a um pedaço de madeira como um objeto artístico, uma arma, uma ferramenta, um marcador, ou algo sugerido pela ocasião.

Para alguns, esta conclusão seria bastante insatisfatória, pois parece sugerir que tudo é válido. Além disso, encobre os problemas muito con-cretos de tradução que podem ocorrer ao se estudarem culturas radical-mente diferentes da nossa. É possível admitir, talvez, que não existe um conflito inevitável entre as versões dos atores e as dos cientistas sociais, mas isto ainda deixa em aberto o problema de definir e descrever o que os atores estão fazendo. Há muitas providências que o investigador deve to-mar, entre a observação dos membros de uma cultura e a apresentação de algum relato teórico sobre essa cultura. Embora a dança da chuva possa servir para reafirmar normas tribais, ainda é necessário identificar o espe-táculo como uma dança ritual, dar alguma formulação às normas tribais, assim como àquelas ações vistas como uma afirmação dessas normas. Os problemas de descrições são abundantes.

O problema antropológico, quanto a isso, não é desconhecido. Atri-buir ou imputar crenças e outros "estados cognitivos" aos atores, numa tentativa de esclarecer o que estes fazem, é parte integrante da descrição da ação; mas, enquanto que um cientista social ao estudar sua própria cultura tem todas as vantagens de ser um participante direto, no caso do antropó-logo isto é menos provável. Tomemos um exemplo extremo de tradução radical, ou seja, tradução de uma linguagem pertencente a uma cultura completamente estranha. Aqui, pode-se argumentar que o antropólogo apenas dispõe, enquanto dados, daquilo que antes se chamava de "mostras comportamentais concretas" daqueles que estuda. A isto é possível acres-centar os desempenhos lingüísticos os quais, presume-se, são provenientes e concretizam os significados que dão sentido às "mostras comportamen-tais". Neste caso, entretanto, tudo o que possuímos são os desempenhos dos quais o significado precisa ser inferido. Para traduzir elocuções tribais africanas, por hipótese, em inglês, o antropólogo teria que começar pelo relato ao mundo de algumas delas. Desta forma, uma coleção de elocuções pode ser formada, com a especificação de suas situações de uso. Assim, se fosse empregado um conjunto específico de palavras quando quer que se ingerissem alimentos, isto poderia fornecer pistas quanto ao significado

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116 A Filosofia da Pesquisa Social

das palavras. Infelizmente, não há garantias de que o tradutor tenha real-mente percebido a situação corretamente. As palavras enunciadas na pre-sença do alimento poderiam ser receitas, uma forma de render graças, de expressar queixumes, ou até mesmo o equivalente ao ato de arrotar. É pos-sível que a presença do alimento seja irrelevante para as palavras pronun-ciadas. A única forma de resolver estes problemas seria traduzir o que os africanos dissessem a respeito do que estes percebem e querem dizer. Mas nisto está precisamente o problema: o antropólogo teria que traduzir a lin-guagem antes de descobrir o que os atores percebem e saber o que eles percebem antes de ser capaz de traduzir.28 "Temos, portanto, um círculo vicioso que parece não ter solução. Tem sido argumentado, por exemplo, que no caso de uma tradução radical em que o significado tenha que ser inferido do comportamento puramente verbal, existe uma indeterminação inata. Nas palavras de Quine:

Dois homens poderiam ter todas as suas disposições a comportamento verbal idênticas, sob todos os estímulos sensoriais possíveis, e no entanto os sentidos ou idéias expressas em suas elocuções acionadas e manifestadas de maneira idêntica poderiam divergir radicalmente, para os dois homens, numa ampla variedade de casos.29

Existirão porventura teorias de interpretação que nos permitam que-brar o círculo vicioso com a ajuda de princípios? Hollis sugere que aceite-mos o fundamental princípio a priori de que todos os atores sociais, estra-nhos à nossa cultura ou não, compartilham do mesmo padrão de raciona-lidade;30 Winch e outros argumentam que o pesquisador deve participar amplamente da vida daqueles que estuda. As duas soluções sugeridas, em-bora tenham alguma plausibilidade pragmática, não parecem oferecer prin-cípios ordenadores. Poder-sé-ia começar a simpatizar com a tentativa po-sitivista de descobrir uma linguagem de observação neutra que se refira, ou se baseie, na experiência comum da espécie humana. Porém, afinal de contas, talvez isso não seja possível. Ou melhor, talvez não haja forma de transformar em rotina, eficientemente, o processo de identificar as ações com objetividade, de maneira determinativa e sem ambigüidades. Já foi sugerido que, dentro de uma única cultura, a descrição de ações é sempre revogável, sujeita a ambigüidades, incerteza e imprecisão. Abor-dar a questão da tradução apenas realça, através de um exemplo extremo,

28 Ver, por exemplo, M. Hollis, "The Limits of Irrationality", in B. Wilson (org.), op. cit., pp. 214-20. 29 W.V.O. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., MIT Press, 1960, p. 26 ; tam-bém C. Hookway, "Indeterminacy and Interpretation", in C. Hookway e P. Petit (orgs.), Action and Interpretation, Cambridge University Press, 1978, pp. 17-41. 30 Hollis, op. cit.

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Os Significados e a Pesquisa Social 117

aquilo que constitui uma característica inevitável dos conceitos de ação. A adequação de uma tradução será julgada, em parte, em termos de seu objetivo. Se exigirmos de qualquer tradução que esta estabeleça uma equi-valência exata entre nossos conceitos e os de alguma cultura diferente da nossa, então obviamente viremos a encontrar tremendas dificuldades. Pode ocorrer que não haja equivalentes exatos em nosso idioma para alguns de seus conceitos, mas consideraremos que isto sugere a impossibilidade de conhecermos a outra cultura? A resposta é negativa. Podemos estabelecer paralelos, analogias, oferecer ilustrações e assim por diante, num esforço para encontrarmos algum sentido daquilo que a outra cultura represente. Talvez tenhamos que modificar ou ampliar nossos conceitos de algum modo, de forma que estes retratem os da outra cultura mais adequadamen-te. Presumir a necessidade de alguma equivalência exata é presumir tam-bém que os nossos conceitos são isentos de problemas. Tudo o que disse-mos até agora sugere que trata-se de algo bastante diverso disso.

Pitkin chama a atenção para os paralelos entre os problemas de com-preender uma outra cultura e compreender a ação dentro de nossa própria cultura.

A ação é, em última análise, dual, e consiste tanto naquilo que o observador externo pode ver quanto na compreensão dos atores a respeito daquilo que estão fazendo. A dualidade . . . é o que distingue a ação (e) apresenta os pro-blemas para a ciência social. O problema não é ... nossa incapacidade de obser-var as ações objetivamente ou de identificá-las sem consultar os atores.31

Os conceitos de ação desenvolvidos no decorrer da ação realizam, eles pró-prios, as ações e, como tal, são ricos em implicações as quais não são sem-pre consistentes.

Eles funcionam bem no contexto, em casos particulares; porém qualquer pes-soa que tente articular princípios amplos, gerais, abstratos sobre a natureza de promessas, obediência, votação e similares, encontrará confusões conceituais e paradoxos. Qualquer pessoa que tente estudar tais fenômenos cientificamen-te, através da observação empírica, sentir-se-á embaraçada na escolha dos fe-nômenos enquanto exemplos de promessas, obediência, votação.32

Assim, como uma criança aprendendo um idioma, um pesquisador investi-gando uma cultura diferente terá que aprender a linguagem daquela cultura a partir das particularidades tanto da ação quanto da linguagem, por meio de ensaio e erro.33 É claro que o pesquisador pode se enganar, assim co-

31 Pitkin, op. cit., p. 261. 32 Ibid. 33 Naturalmente os problemas podem ser colocados de tal forma que se tornem vir-tualmente insolúveis. Conforme observa Wittgenstein: "Se você fosse a Marte e os

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118 A Filosofia da Pesquisa Social

mo é possível haver engano numa descrição de ação dentro da própria cul-tura de origem, mas tal não significa uma impossibilidade de êxito.

Como já se sugeriu diversas vezes, a questão das "outras culturas" é, de diversas maneiras, uma constatação dramática de um problema que sur-ge no estudo de nossa própria cultura, ou seja, a identificação de ações. Embora Winch, além de outros que têm insistido no mesmo ponto, ilustre as importantes dificuldades práticas na compreensão de outras culturas, ele não demonstrou convincentemente que isto seja impossível. Seu pró-prio trabalho, de fato, é um testemunho do contrário na medida em que nos apresenta uma versão, e uma versão compreensível, de magia Azende. Mas no entanto, e é talvez este o problema real, de que critérios dispomos para decidir se se trata da versão certal As próprias opiniões de Winch a respeito nem sempre são claras e consistentes, porém parece, quase que com certeza, que os próprios atores devem exercer alguma função nesse julgamento: exatamente o que isto implicaria é uma outra questão. E, co-mo foi sugerido anteriormente, não há razão por que, em cada caso, acredi-temos nas palavras destes. Tal significaria renegar nossas responsabilidades.

Mas e quanto à questão mais ampla levantada por Winch, quanto à categoria da ciência social? Os problemas filosóficos que discutimos nestes dois capítulos constituem uma acumulação de objeções sérias à ciência so-cial positivista, tanto em relação à sua concepção do assunto da ciência social quanto à sua relação, enquanto um corpo de conhecimento, com esse assunto. Embora tais questões gerais acerca do conhecimento, seu em-basamento e suas justificações, sejam de enorme importância, gostaria de adiar a consideração destas para o capítulo final. Deter-me-ei aqui para examinar brevemente o lado positivo da crítica "humanista", a fim de veri-ficar o que esta sugere sobre a natureza da pesquisa social.

OS SIGNIFICADOS E A PESQUISA SOCIAL

Talvez.não seja surpreendente que as alternativas à abordagem positivista, embora variadas, não possuam a claridade confiante antes demonstrada pelo positivismo. Algumas delas não são novas mas representam um te-ma paralelo ao positivismo na história do pensamento social; outras são comparativamente recentes, e constituem uma resposta direta e algumas das críticas do positivismo já discutidas aqui. Uma tendência comum é a

homens fossem esferas dotadas de antenas, você não saberia o que procurar." Mas ao se lidar com as linguagens humanas, pode-se aprender a entendê-las de tantos modos diversos. Ver L. Wittgenstein, Lectures and Conversations, org. S. Barrett, Oxford, Blackwell, 1978, p. 2.

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rejeição de uma concepção científica do estudo social, geralmente vista em termos semelhantes ao positivismo, e uma sensibilidade à natureza social do próprio conhecimento. É esta segunda tendência que tem se mostrado mais complicada, do ponto de vista filosófico. Uma vez lançadas dúvidas quanto àquilo que tem sido chamado de "linguagem de observação neu-tra", na qual descrever o mundo exterior a todas as experiências subjetivas que dele possamos ter, a objetividade e o distanciamento científicos pa-recem objetivos ilusórios. As ciências sociais, embora possam copiar as ciências naturais, precisam eternamente enfrentar as dificuldades prove-nientes do fato de que seu objeto de estudo também possui uma voz. Além disso, embora essa voz possa ser influenciada pela posição social e por pro-cessos sociais, ela não existe isoladamente. Também o cientista social é um membro de uma sociedade e de uma cultura, tem uma posição dentro de uma coletividade de colegas e estes, de modo similar, provavelmente afetarão o modo como ele ou ela vê o mundo. Weber tira disto a seguin-te conclusão:

Não existe uma análise de cultura absolutamente "objetiva" - ou talvez mais estreitamente porém decerto não essencialmente diferente para nossos propó-sitos — de "fenômenos sociais" independente de pontos de vista especiais e parciais segundo os quais - de forma explícita ou tácita, consciente ou sub-conscientemente - aqueles são selecionados, analisados e organizados para propósitos expositivos . . . Todo conhecimento da realidade cultural, como po-de ser visto, é sempre conhecimento a partir de pontos de vista específicos.34

Não há, em outras palavras, nenhum ponto neutro, arquimediano, contra o qual apoiar-se e perceber o mundo social "objetivamente". É claro, a no-ção de que o conhecimento é socialmente fundamentado poderia de algu-ma forma ser também aplicado à ciência natural, mas neste caso surgiriam poucas questões do tipo moral uma vez que, ao que se saiba, as pedras, moléculas e plantas não falam. A dificuldade das ciências sociais está em dar conta do fato de que seu objeto de estudo e aqueles que o estudam vi-vem em um mundo construído através de significados. Os modos de se resolver isto, metodologicamente falando, têm sido variados. Alguns, como Mannheim e até certo ponto Marx, sugeriram que só poderiam atingir pers-pectivas objetivas aqueles que estivessem em posições de distanciamento especialmente privilegiadas, sendo os "intelectuais", de certa forma, os principais candidatos a tais posições.3S Estes eram pessoas que poderiam

34 M. Weber, The Methodology of the Social Sciences, Nova York, Free Press, 1949, trad., E. Shils e H.A. Finch, pp. 72-81; grifado no original. 35 Para uma seleção de artigos relevantes à sociologia do conhecimento, ver J .E. Cur-tis e J.W. Petras (orgs.), The Sociology of Knowledge:a reader, Duckworth, 1970.

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desenvolver um ponto de vista mais abrangente e portanto mais objetivo, a partir do qual localizar os processos reais em ação dentro da sociedade.

É importante considerar a resposta de Weber ao problema que ele tanto procurou identificar. Aceitando o fundamento social e histórico do conhecimento e a perspectiva parcial que este implicava, Weber observou que, em nossa própria época, os valores culturais haviam se fundido aos científicos, tornando a objetividade univèrsalmente aceitável. Assim, os pa-drões de objetividade contidos na ciência eram socialmente fundamenta-dos, mas em práticas sociais as quais tinham, elas próprias, mudado de tal forma que se conformavam com aqueles padrões. Tais mudanças foram ocasionadas pela ascensão da sociedade industrial. Além disso, Weber ofe-receu duas idéias, o "tipo ideal" e verstehen, como técnicas no sentido de compreender formas sociais significativas. A segunda exigia que o pesqui-sador sentisse empatia com os pontos de vista daqueles sujeitos à observa-ção, de modo que o mundo destes, construído através de significados, pudesse ser racionalmente formulado. Utilizando-se de dados provenientes de numerosas fontes sobre valores, aspirações, e similares, de protestantes ascéticos, Weber desenvolveu uma descrição significativa de como tais pes-soas, em sua situação em determinada época, com as motivações fornecidas por seus valores, poderiam ter sido estimuladas a se engajar nas formas flo-rescentes da iniciativa capitalista.

O "tipo ideal", por sua vez, era um recurso essencialmente ligado à construção de representações das formas sociais racionais, simplificadas e deliberadamente parciais, rigorosamente formuladas como sistemas de significados emergentes de um ou dois valores centrais. Dentre os "tipos ideais" que o próprio Weber formulou, aqueles vihculados à autoridade são dos mais famosos. Ele identificou três tipos centrais de autoridade em termos de suas fontes de legitimidade — carismática, tradicional e racional-legal —, cada tipo construído como representação acentuada de materiais empiricamente relevantes. Nenhum destes tipos provavelmente existiu em forma pura, mas não era isto o importante. Os tipos serviam tanto para esclarecer um mundo empírico confuso quanto para, desta forma, isolar alguns de seus elementos salientes.36 Como já foi sugerido, os tipos po-dem ser considerados como formulações rigorosas de sistemas de signifi-cado e práticas que derivem de um ou dois valores ou princípios centrais. Assim, o "tipo ideal" de burocracia pode ser visto como um modelo da-quilo que a organização pareceria ser, se o princípio de eficiência racional e calculadora viesse a ser seguido, excluindo-se os outros princípios. Seria possível arquitetar, conforme Weber o fez, tipos baseados em diferentes

36 Weber, op. cit.; J.C. McKinney, Constructive Typology and Social Theory, Nova York, Appleton-Century-Crofts, 1966.

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valores. Tais tipos serviam como conceitos elaborados, identificando ele-mentos-chave que pudessem, ou não, ser encontrados empiricamente; sua ausência, é claro, seria ela própria uma pista para entender uma situação social específica. Finalmente, um ponto importante: para Weber, os "tipos ideais" seriam o início e não o fim da investigação social.

Embora a linha de perspectiva humanista representada por Weber reconhecesse a parcialidade das versões científicas sociais, a tradição feno-menológica não abandonou a busca de uma certa fundamentação de co-nhecimento, mas a procurou em locais diversos daqueles visitados pelo positivismo. A Fenomenologia levava muito a sério, como ainda o faz, a noção de que o conhecimento é um ato da consciência.37 Para Husserl, o "mundo" significa um mundo experimentado e tornado significativo atra-vés da consciência. É através de atos de percepção, e somente destes, que o mundo se nos é dado e apresentado. Isto é verdadeiro para a ciência, assim como para qualquer outra modalidade do saber. O objeto de estudo da ciência, por exemplo, é um sistema de construções teóricas resultantes de conceitualizações, idealizações, matematizações etc., baseado na experiên-cia diária que nos é fornecida de antemão. Uma das tarefas que a filosofia fenomenológica se propôs realizar foi descrever esta experiência do "mun-do vivo", o mundo, ou seja, enquanto dado em experiência imediata inde-pendente e anteriormente a qualquer interpretação científica. Reconheci-damente, os mundos vivos pertenciam a grupos sócio-históricos específicos e, de uma perspectiva histórica, não poderia haver nenhum privilégio espe-cial ligado a qualquer mundo vivo em particular. Para Husserl, no entan-to, uma "fenomenologia transcendental" poderia ser desenvolvida como uma teoria universal da consciência. Tal "ontologia do mundo vivo" se-ria uma ciência a priori das estruturas universais do mundo da consciência e, assim, nos permitiria deduzir a partir de qualquer produto sociocultural específico, inclusive a ciência e a lógica. Tal teoria, se fosse possível, exer-ceria o mesmo papel que o positivismo destina à linguagem de observação neutra.

Para nossos objetivos, a figura importante que se impõe nesta tradi-ção é Alfred Schutz, que elaborou e modificou o trabalho de Husserl.38 O mundo social, observou Schutz, apresenta-se ao indivíduo na forma de um

37 Sobre a fenomenologia, ver as seguintes exposições e coleções: M. Roche, Phe-nomenology, Language and the Social Sciences, Routledge & Kegan Paul, 1973; M. Natanson (org.), Phenomenology and Social Reality, The Hague, Martinuus Nijhoff, 1970; G. Psathas (org.), Phenomenology and Sociology, Nova York, Wiley, 1973; T. Luckman (org.), Phenomenology and Sociology, Penguin Books, 1978. 38 Ver A. Schutz, Collected Papers: The problem of social reality, The Hague, Mar-tinuus Nijhoff, 1962; também Z. Bauman, Hermeneutics and Social Science, Hutch-inson, 1978, esp. Cap. 8.

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122 A Filosofia da Pesquisa Social

sistema objetivado de designações compartilhadas e formas expressivas. É, primordialmente, um mundo de vida cotidiana conforme é vivido e apre-ciado pelo "homem de bom senso", que demonstra uma "atitude natural".

O mundo é, conseqüentemente, "aceito como tal". Dentro da "atitude natural", o indivíduo não questiona a estrutura significativa do mundo vivo mas tem apenas um interesse prático neste. A tarefa, em outras pala-vras, é viver no mundo e não estudá-lo. A estrutura do mundo vivo se apre-senta através de "tipificações" construídas a partir de quaisquer elementos relevantes, segundo os interesses e propósitos imediatos do ator. Tais tipi-ficações, conforme utilizadas por Schutz incluiriam o universal e o estável assim como o específico e o mutável. O mundo primário no qual os atores vivem é intersubjetivo e cotidiano, um mundo de atitude natural com seus motivos e interesses pragmáticos. Além disso, os atores vivem em outros mundos de "províncias de significado" finitas, tais como a arte, a experiên-cia religiosa, os sonhos, a ciência, a infância, e assim por diante, cada um com um estilo cognitivo específico. Uma dessas "realidades múltiplas" é o "mundo da teoria científica". Este estilo, como um tipo ideal, é o do observador desinteressado que apenas está

preocupado com problemas e soluções válidas por si mesmas para qualquer pessoa, em qualquer lugar, em qualquer época, quando e onde quer que certas condições, a partir das suposições de que ele parte, prevaleçam. O "salto" no pensamento teórico implica a resolução do indivíduo de colocar em suspenso seu ponto de vista subjetivo.39

As preocupações particulares e pragmáticas da vida diária são postas de lado.

Deste modo, Schutz tenta enfrentar aquilo que considera o problema epistemológico básico da ciência social, ou seja, enquanto ciências de signi-ficado subjetivo, como são estas possíveis? Como todas as ciências, elas fa-zem afirmações de sentido objetivo, ou pelo menos aspiram a isso, porém no caso das ciências sociais, estas têm que estar dentro do contexto da ati-vidade humana que as criou e que não pode ser compreendida separada-mente deste esquema de ação. A maneira pela qual Schutz resolve tal di-ficuldade é argumentar que o cientista social preocupa-se com "típicos" esquemas de ação, usando modelos que são "ficções sem vida", "elabora-ções", "tipos ideais", "títeres", ou "homúnculos" criados por ele. Tais modelos distinguem-se das condições ontológicas reais da existência indivi-dual cotidiana e são construídos de acordo com os seguintes postulados: consistência lógica, interpretação subjetiva e adequação. O primeiro destes afirma que o construto deve estar de acordo com as exigências da lógica

39 Schutz, op. cit., p. 248.

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formal, o segundo que aquele deve preocupar-se em incorporar um modelo da mente humana e seu conteúdo típico, de tal forma que os fatos obser-vados possam ser vistos como o resultado de sua operação. O terceiro cri-tério sugere um princípio de objetividade, a saber, que o construto deve ser formulado de tal forma que seja compreensível para o ator que utilize seu próprio bom senso.

Não há espaço aqui para prosseguir numa crítica da obra de Schutz, porém vale a pena observar novamente o terceiro dos postulados, o da ade-quação, uma vez que este reconhece o problema que tem sido um tema cen-tral neste capítulo: a relação entre os conceitos dos atores e os do cientista social. A tentativa positivista de escapar da natureza socialmente funda-mentada do conhecimento tentando formular, como vimos diversas vezes, uma linguagem de observação neutra, criou tensões significativas entre os conceitos dos atores e os dos cientistas sociais. A alternativa aqui é for-necer aos padrões e conceitos dos atores uma função muito mais saliente como medida de julgamento do êxito da compreensão, por parte do cien-tista social. O interesse ou propósito do cientista social é apenas revelar os significados, muitas vezes implícitos, que penetram no universo dos atores. Vários recursos, o "tipo ideal", os "homúnculos", ou quaisquer outros, são importantes para tal, mas a sociologia de Schutz está mais interessada em verificar como a "objetividade" ou a "verdade" são estabelecidas dentro de um mundo de vida natural e de seu cenário socialmente organizado. Não se trata de questionar se uma forma de compreensão é superior, em termos absolutos, a qualquer outra.

A mudança que isto representa pode ser vista numa prática socioló-gica mais recente, inspirada em parte pela obra de Schutz: a etnometodo-logia. Embora Schutz compartilhasse da aspiração de seu mentor Husserl, de formular um "analítico transcendental" de conhecimento apenas atra-vés da dedução, a etnometodologia preocupa-se em elucidar a interação humana pelo exame empírico daqueles processos através dos quais produ-zem-se os significados na prática social. Como tal, adota uma linha neutra, contentando-se em descrever os procedimentos da produção de significado em qualquer atividade social que venha a examinar, em lugar de visar aos próprios significados em si. Reconhecidamente, estes são investigados atra-vés de fenômenos, como Bautman observa, mas não são dos fenômenos.40

Assim, qualquer setor de conversação que ocorresse naturalmente sobre qualquer tópico poderia ser o objeto de investigação segundo aquelas pro-priedades formais de raciocínio prático. Uma conseqüência desta postura é que nada precisa ser dito sobre a "objetividade" ou a "verdade", exceto na medida em que estas se estabeleçam através do "trabalho" concorde

40 Bauman, op. cit., p. 190.

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por parte dos atores sociais em pauta. Todo o conhecimento, inclusive a própria etnometodologia, fundamenta-se de forma comunitária na prática humana, e não há como ir além disso.

Esta excursão demasiado breve naquelas filosofias sociais que tentam dar conta do significado e de tudo que este implica, ilustra uma vez mais as tensões que surgem da relação entre as ciências sociais e seu objeto de estudo. Os métodos de pesquisa, onde as concepções filosóficas sujam suas mãos, por assim dizer, refletem tais tensões uma vez que sua habilidade de executar o trabalho que lhes é solicitado pelos pesquisadores depende, por sua vez, dos próprios envolvimentos dos pesquisadores em uma ou em outra das filosofias de conhecimento social científico de que se dispõe. No capítulo final, tentarei resumir a discussão dos capítulos anteriores, ao considerar questões bastante mais amplas sobre a natureza da ciência social, sua relação com o mundo empírico e, igualmente importante, a rela-ção do cientista social com o mundo que investiga.

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C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S

Chegou o momento de se levar toda a discussão dos capítulos anteriores a alguma conclusão geral. Começamos, no primeiro capítulo, falando sobre a filosofia da pesquisa social enquanto vinculada à autoridade intelectual dos vários tipos de conhecimento do mundo social. A discussão subse-qüente organizou-se ao redor de dois temas principais que têm carac-terizado a história da ciência social. Referi-me ao primeiro destes como à ortodoxia positivista, a qual extraiu sua inspiração de uma concepção específica da ciência natural, baseada fundamentalmente numa episte-mologia que acentuava a observação como sendo a via em direção a uma percepção objetiva do mundo real exterior, ou seja, o mundo independen-te da mente do estudioso. Esta concepção gerou aqueles que são atual-mente os métodos ortodoxos de pesquisa da ciência social. Embora a maior parte das perspectivas representadas nesta concepção reconhecessem que os fenômenos humanos não são idênticos aos da natureza inanimada, esta carência apenas sugeria a necessidade de mais engenho e cuidado no preparo de instrumentos apropriados de observação social científica.

O tema alternativo ao do positivismo adotou uma posição bastan-te diversa da distinção entre os mundos humano e inanimado. Neste ca-so, enfatizou-se o modo pelo qual o mundo social, e em algumas versões poder-se-ia acrescentar o mundo natural, foi criado em significados e através destes. Embora as várias abordagens positivistas não tivessem igno-rado totalmente tal característica da vida social, estas não a levaram tão adiante quanto as concepções humanistas o fizeram. Em lugar disso, man-tiveram uma noção durkheimiana de um mundo social objetivo e exterior semelhante às coisas (thinglike), um mundo "fora" dos significados e da linguagem.

Como vimos, cada escola gerou uma quantidade de dificuldades filo-sóficas. Essas dificuldades incluíam, para o positivismo, os problemas de uma linguagem de observação neutra, a relação da teoria aos dados, a ques-tão dos todos sociais, e o problema da descrição científica da ação hu-mana. Quanto ao programa humanista, as dificuldades centralizavam-se na natureza da compreensão e nos critérios de uma compreensão adequa-da, no relativismo social e cultural e na relação entre os conceitos dos

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126 A Filosofia da Pesquisa Social

atores e os de um observador. Se algumas conclusões emergiram, embora tentativas, estas davam a impressão de atacar severamente a posição posi-tivista de diversos modos. Em primeiro lugar, a versão empirista da ciência deixava de corresponder a suas próprias afirmações de fornecer leis da vida social que fossem equivalentes em âmbito, certeza e capacidade de previsão àquelas oferecidas pela ciência natural. Além disso, conforme exemplificado por seus próprios métodos de pesquisa social, deixava de levar em conta o fato de que o mundo social é construído através de signi-ficados e das práticas decorrentes destes e que, como uma forma de co-nhecimento, ela própria era uma prática social, um conjunto de procedi-mentos institucionais, dependentes para sua garantia de pressuposições freqüentemente tácitas em vigor dentro de comunidades específicas. Li-gada a isso, a idéia cronicamente ilusória de uma linguagem de observação neutra não era capaz de fornecer o alicerce do qual seu edifício intelectual necessariamente dependesse. Uma razão pela qual uma linguagem de obser-vação neutra se mostrava tão ilusória era a firmação de que todas as formas de conhecimento são fundamentadas em práticas sociais, linguagem e significados, não havendo portanto como "observar" o mundo indepen-dentemente destes. As formas de conhecimento, inclusive o positivismo, exerceram uma importante função em determinar ou legislar, de certa for-ma, a respeito do que o mundo consiste através dos diversos procedimen-tos que representam enquanto práticas humanas, para decidir o que devem ser considerados fatos, afirmações verdadeiras e reivindicações ao conheci-mento de um modo geral. Assim, o pesquisador, longe de ser um relator passivo, é um agente ativo na construção do mundo através das idéias e te-mas específicos incorporados na forma relevante de conhecimento.1

Não é de surpreender que tais críticas ao positivismo tenham, elas próprias, suas dificuldades. Se as formas de conhecimento fundamentam-se em práticas sociais, o que sucede com a objetividade, a ciência, a procura de leis da vida social, a avaliação de diferentes reivindicações de conheci-mento, e assim por diante? Não estaremos, assim, condenados a uma ter-rível relatividade em que ninguém pode alegar um conhecimento superior a outro qualquer? Em suma, uma ciência da vida social será impossível?

Mas talvez esta última pergunta não seja pertinente, pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, um dos assuntos em pauta é a natureza da pró-pria ciência. No final do Capítulo 3, apresentou-se o argumento de que a

1 Ver, sobre isto, R.M. Zaner, "The Phenomenology of Epistemic Claims: and its bearing on the essence of philosophy", in Natanson (org.), op. cit., pp. 17-34; tam-bém A.F. Blum, "The Corpus of Knowledgc as a Normative Order", in J.C. McKin-ney e E.A. Tiryakian (orgs.), Theoretical Sociology, Nova York, Appleton-Century-Crofts, 1970, pp. 319-36.

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Considerações Finais 127

concepção empirista da ciência revelava graves falhas. Em segundo, pode-se argumentar que, qualquer que seja a noção que tenhamos de ciência, não há razão para supor que apenas a ciência, enquanto uma forma de conhe-cimento, possua a autoridade intelectual para garantir o estudo da vida social: poderíamos ainda desejar manter uma distinção radical entre o estudo da natureza inanimada e o estudo da vida cultural humana. Em terceiro, e tendo a ver com o ponto precedente, mesmo armados com uma noção de ciência modificada e mais adequada, ainda teríamos que decidir se tal seria o tipo de conhecimento da vida social de que necessitamos e que desejamos.

Os tratamentos mais recentes da filosofia da ciência aceitam que a ciência seja uma atividade humana e que o conhecimento é um produto social: "um processo em pensamento e natureza que procura expressar em pensamento as naturezas e constituições e modos de agir de coisas que existem independentemente do pensamento."2 A concepção da ciência que aqui está dá consideravelmente mais peso à construção imaginativa de modelos de mecanismos produtivos para dar conta dos padrões encon-trados entre os fenômenos identificados dentro de uma ciência específica, e muito menos ênfase à descoberta de generalizações causais invariáveis do tipo empirista. Tampouco preocupa-se com previsões enquanto critérios de explicações bem-sucedidas. Sua preocupação reside nas estruturas "que resistem e operam independentemente de nosso conhecimento, nossa experiência e das condições que nos permitem acesso a elas".3 Embora se aceite que o mundo não pode ser percebido a não ser através de des-crições específicas carregadas de teoria, a idéia de um mundo intransitivo real que é o objeto do conhecimento científico torna-se logicamente neces-sária, se é que existe ciência de fato. A habilidade humana do cientista de intervir e manipular lhe fornece acesso a essas estruturas e mecanismos que existem independentemente da percepção, muito embora só possam ser conhecidas através das várias descrições de que dispomos, constituí-das como conhecimento. Esta noção nos apresenta um tipo de relação do conhecimento com o mundo muito diferente daquele postulado pelo posi-tivismo. Anteriormente, falamos sobre a conexão abstrativa da teoria com o mundo empírico, que forneceu ao conhecimento um papel muito mais ativo, na construção da ontologia desse mundo, do que a função bastante passiva, do tipo "repórter", sugerida pelo positivismo. A conexão racional, o âmbito explanativo, a eficiência da explicação permanecem como os cri-

2 R. Bhaskar, A Realist Theory of Science, Sussex, Harvester Press, 1978, pp. 249-50; também R. Keat e J. Urry, Social Theory as Science, Routledge & Kegan Paul, 1975. 3 Bhaskar, op. cit., p. 25.

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térios pelos quais pode-se fazer a escolha, dentre os modelos e teorias rivais. Os critérios de veracidade são intrínsecos à ciência em questão, assim como as metodologias para determinar o " fato" relevante. Segundo Harré, tal ciência realista deve tomar como ponto de partida os padrões observados dentro de um assunto de estudo específico, e descobrir que mecanismos operativos não-observados poderiam produzir e, portanto, explicar, os padrões observados. No que se refira às ciências sociais, isto deve incluir, como elementos dos mecanismos, as próprias teorias do ator sobre o mundo social.4 O objetivo não é tanto a previsão, objetivo esse, aliás, de apenas umas poucas ciências tais como a astronomia e a mecânica terrestre, mas uma reconstrução de qualquer fragmento específico da realidade social a partir dos elementos que os mecanismos estruturais pos-tulam. Isto se torna o critério do êxito da explicação e do conhecimento adequado.

Como uma versão da ciência, esta noção alternativa parece evitar muitas das ciladas do positivismo, mas em termos da tradição alternativa que discutimos isto faz pouca diferença. Todas as formas de pensamento são histórica e socialmente fundamentadas e, portanto, relativas. Neste caso, talvez devêssemos abandonar a busca de um conhecimento certo e absoluto. Seguramente, tal objetivo poderia, com alguma justiça, ter sido atribuído ao positivismo, embora seja menos certo se as filosofias da ciên-cia mais recentes tenham a mesma aspiração. As dificuldades que o aban-dono de tal objetivo parece colocar são variadas. Com freqüência surgem ansiedades, pois uma concepção enganosa de conhecimento está implica-da, na medida em que apenas se uma reivindicação de conhecimento for verdadeira sob todos os aspectos, podemos falar apropriadamente de co-nhecimento. Aqui faz-se o contraste entre conhecimento e crença, opinião, valores e similares, todos estes vistos, sob alguns aspectos, como reivin-dicações contaminadas por preconceitos pessoais e pela percepção in-fluenciada pela sociedade. A necessidade de tal distinção é reforçada pelas chamadas aplicações da ciência social nos campos da política pública, administração econômica, assistência social e de saúde, e outros interesses comunitários. Embora mais possa ser dito sobre este assunto, delineia-se, a partir dessa distinção conhecida, a analogia entre ciência "pura" e "apli-cada". Os próprios inícios da ciência social moderna foram influenciados por um desejo de reconstruir a sociedade sobre linhas racionais e cientí-ficas, e tal passo só poderia ser dado após a aquisição de um conhecimen-

4 R. Harré, "Blueprint for a New Science", in N. Armistead (org.), Reconstructing Social Psychology, Penguin Books, 1974, pp. 240-59; R. Harré e P.F. Secord, The Explanation of Social Behaviour, Oxford, Blackwell, 1972; R. Harré, The Principies ofScientific Thinking, Macmillan, 1970.

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to adequado da vida social e cultural; o conhecimento sendo visto muito em termos da organização e do método do conhecimento científico na-tural corrente na época. Este legado ainda permanece conosco. Escutam-se os pedagogos porque eles são cientistas, e aquilo que recomendam tem a força do conhecimento e não da mera opinião que está por detrás; o mesmo se dá quanto a economistas e outros cientistas sociais. De mui-tas outras formas, sente-se a importância da aprovação da ciência em virtude de sua associação com a idéia de conhecimento incorrigível e, conseqüentemente, de um status mais elevado do que o de outras reivindi-cações putativas.

Se esta versão segue as linhas corretas, então creio que podemos co-meçar a ver as ansiedades que surgem em resposta a alguns dos argumentos já considerados, em conexão com a perspectiva humanista. Se todo o conhecimento, inclusive a ciência, é socialmente fundamentado na prática humana e em nada mais, como podemos considerar algumas de suas formas superiores a outras? Ou, em outras palavras, se for aceito que a ciência social preocupa-se com significados, até onde pode se aceitar que as per-cepções do cientista social são mais privilegiadas do que as do leigo, do artista, do romancista, do esquizofrênico, do ativista político? Afinal de contas, os pronunciamentos dos cientistas sociais têm o mundo do leigo como seu referente, um mundo que é em si o assunto de interpretação por parte daqueles que nele vivem. Assim, a ciência social não pode deixar de estar permanentemente engajada num discurso com seu próprio objeto de estudo: um discurso, além disso, no qual tanto o investigador quan-to o assunto compartilham dos mesmos recursos.s É claro que o problema é a natureza desse discurso. Pode-se argumentar que, neste caso, a verdade — se esta pode ser atingida de fato — torna-se uma questão de concordân-cia negociada entre os cientistas sociais e aqueles que eles estudam.

Este ponto de vista postula uma relação entre a ciência social e seu objeto de assunto, bastante diferente daquela pressuposta por um ponto de vista científico. Também fornece algum esclarecimento quanto à razão pela qual as teorias da ciência social são, de certa forma, subdeterminadas por fatos, embora restringidas por estes, e sugere que a proposta de uma teoria científica social está mais ligada a um ponto de vista político ou mo-ral do que a um científico.6

s A. Giddens, New Rules of Sociological Method: a positive critique of interpreta-tive sociologies, Hutchinson, 1976 [Ed. brasileira -.Novas Regras do Método Sociológi-co. Rio, Zahar, 1978];também Z. Bauman, Hermeneutics and Social Science, Hutch-inson, 1978, p. 234. 6 M. Hesse, "Theory and Value in the Social Sciences", in C. Hookway e P. Petit (orgs.),Action andInterpretation, Cambridge University Press, 1978, pp. 1-16.

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Esta observação reitera um tema que já tivemos ocasião de mencio-nar anteriormente, em outro contexto. Pitkin, ao falar do vocabulário da ação, sugere que este é um vocabulário que encarna de modos complexos a perspectiva tanto do ator quanto do observador, e nenhuma dessas pers-pectivas por si só é adequada para compreender a vida humana produzida naquele vocabulário.7 É este dualismo que nos apresenta muitos dos pro-blemas relativos à ciência da vida social, tal como a relação entre os concei-tos dos atores e os do observador científico, a objetividade versus a subje-tividade, ou fato versus valor. É também uma observação relevante quanto à questão da ciência da vida social ser ou não o conhecimento que reque-remos dessa vida. Muitas das dúvidas que poderíamos sentir sobre o tipo de conceitos produzidos pelas tentativas de criar uma linguagem de obser-vação científica para a ciência social, muitas vezes sua aparente irrelevân-cia, seu caráter abstrato e distanciado, suas freqüentes quedas lamentáveis no jargão, podem surgir porque o conhecimento que solicitamos da vida social tem a ver com nossos envolvimentos aqui e agora: envolvimentos que provém, eles próprios, da natureza da ação e de seu vocabulário. Um vocabulário o qual, como foi sugerido, é radicalmente aberto e, conse-qüentemente, tende inevitavelmente a implicações paradoxais, à impreci-são e a significados obscuros, nada do que pode ser remediado de maneira absoluta por uma ciência da vida social.

É possível, entretanto, sugerir algumas das dimensões desta situação, temas comuns que têm constituído a preocupação da vida social e das ciên-cias sociais desde os seus inícios. A questão da liberdade versus o determi-nismo já foi mencionada, assim como brevemente a da relação entre o in-divíduo e as coletividades das quais este seja um membro. Poder-se-ia ainda acrescentar a tensão entre a ordem e o conflito. Pode-se dizer que todas as ciências sociais abordam essas importantíssimas questões, embora através de seus próprios métodos inimitáveis e amplamente variados.8 A economia ainda traz as marcas de uma moralidade Smitheana, tentando reconciliar e derivar o bem coletivo a partir da busca individual do interesse próprio. Também a política resulta de preocupação semelhante com o entendimen-to dos vários modos pelos quais os indivíduos organizam-se coletivamente através da autoridade e do poder. A relação do indivíduo com o grupo ou

7 H. Pitkin, Wittgenstein and Justice, University of Califórnia Press, 1972, esp. Caps. VII e XII. 8 Habermas vai além disso, a respeito de condições comuns bastante diversas da vida humana. Ele fala em condições de "espécies transcendentais", ou seja, condições an-tropológicas universais da existência humana, a saber, o trabalho e a comunicação humanos: J. Habennas, Knowledge and Human Interests, trad. J . J . Shapiro, Hei-nemann, 1972. [Ed. brasileira: Conhecimento eInteresse, trad. J.N.Heck. Rio, Zahar, 1982.)

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coletividade, similarmente, fornece à sociologia sua preocupação dominan-te com o problema da ordem. É claro que as versões de todos esses temas, e evidentemente estes não são desconexos, variam ao extremo. No entanto, elas fornecem às ciências sociais sua relevância, qualquer que seja a maneira como possam ser concebidas. É neste sentido que podemos considerá-las engajadas com seu próprio objeto de estudo; um diálogo que jamais pode cessar, muito embora este possa, como tem ocorrido historicamente, mu-dar seu caráter. Os debates dentro das próprias ciências sociais e entre essas constituem um aspecto essencial deste diálogo. Conquanto a forma e o conteúdo de tais debates sejam, quase que com certeza, histqrica e social-mente fundamentados, isto em si não diminui sua importância. Embora o impulso original que inspirou a ciência social positivista talvez não mais possua a confiança em si que mostrou no passado, tal não significa que seus erros não tenham importância e que não podemos aprender a partir destes.

Existe um crescente corpus literário que começa a oferecer novas alternativas para a concepção do conhecimento científico social, numa for-ma que reformula as perguntas tradicionais sobre fato e valor, objetividade e envolvimento, critérios de.compreensão, assim como as questões discuti-das há pouco. Taylor, por exemplo, defende uma ciência de vida social inevitavelmente hermenêutica, preocupada em dar sentido a um objeto de estudo considerado como um "texto ou texto-análogo, que é de certa forma confuso, incompleto, obscuro, aparentemente contraditório — de algum modo, pouco claro".9 Tal ciência seria fundamentada não em "da-dos brutos" mas em "leituras de significado" para os sujeitos de uma socie-dade ou comunidade, significados parcialmente constituídos por autodefi-nições que já são interpretações corporificando "uma visão do agente e sua sociedade".10 Tal ciência rejeitará a verificação e a previsão no sentido compreendido pelo positivismo, basear-se-á inevitavelmente na percepção imediata, e será vinculada a nossas opções divergentes na política e na vida. O fato de que os seres humanos são criaturas autodefinidoras torna a pre-visão rígida impossível, uma vez que juntamente com as mudanças na auto-definição existem mudanças naquilo que os seres humanos são, e portanto eles precisarão ser entendidos em diferentes termos. A realidade humana altera-se com as inovações conceituais, tornando o futuro radicalmente impossível de prever. Tal ciência moral da vida humana, fundamentada em intuições não compartilhadas por todos, não pode ser isenta de valores, nem tampouco pode terminar, mas constitui parte de uma "espiral herme-

9 C. Taylor, "Interpretation and the Sciences of Man", in Beehler e Drengson (orgs.) op. cit., p. 156. 10 Ibid., p. 193.

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nêutica" de redefinição e interpretações de nossas opções fundamentais na vida.11 Brown, por outro lado, tenta uma síntese das diversas perspecti-vas sobre a ciência social dentro de um arcabouço de "estética cognitiva". Tal arcabouço afasta-se de uma simples teoria de correspondência da ver-dade e, em lugar disso, vê tanto o artista quanto o cientista como indiví-duos engajados em criar paradigmas através dos quais a experiência se tor-ne inteligível.12 Embora isto possa dar a impressão de que a escolha de teorias é uma questão de gosto, na verdade uma "visão estética da raciona-lidade", como é usada tanto na ciência quanto na arte, emprega cânones de economia, congruência, consistência, elegância, originalidade e âmbito.13

Em todo caso, há um movimento afastando-se do ponto de vista parcial do positivismo em direção a uma concepção mais interpretativa do conhe-cimento, abarcando muitas áreas da atividade intelectual.

Nos anos recentes, os termos do debate entre as noções científica e interpretativa do estudo da vida social têm mudado suas bases. Ainda é muito cedo para dizer aonde chegarão. Os dois lados - se "lado" não for um termo demasiado firme para se utilizar aqui - aceitam que o conheci-mento é contextual, ao menos no sentido de que estabelece seus próprios interesses "internos". Assim, existe uma ampla rejeição do positivismo e de sua dependência da falsa suposição de que as categorias de observação se-jam independentes das categorias teóricas. Isto prejudica seriamente os métodos da pesquisa social que têm no positivismo sua fonte de autoridade intelectual. Também é interessante notar que, em algumas ciências sociais ao menos, uma ênfase no método tem sofrido um declínio em favor de uma insistência renovada na base filosófica do estudo social. E, de uma for-ma importante, poder-se-ia argumentar que o interesse demonstrado pelo positivismo quanto aos métodos de pesquisa foi uma conseqüência de seu próprio desejo de copiar aquilo que se considerava como sendo os métodos da ciência natural. A ciência era, em poucas palavras, um método empre-gado racional e rigorosamente para revelar a natureza de um mundo exte-rior e objetivo. 0 método correto fornecia, ao conhecimento objetivo e à ciência, sua autoridade intelectual. O colapso desta perspectiva e o sur-gimento de concepções constitutivas da relação que as formas de conhe-cimento possuem com o mundo abriram novas oportunidades para as ciências sociais, gerando maior boa vontade em se utilizarem "dados" de maneiras interessantes, abertas e menos restringidas. Considerar as ciências

11 Sobre a idéia de uma "espiral hermenêutica", ver o relato muito claro de H. Mehan e H. Wood, The Reality of Ethnomethodology, Nova York, Wiley, 1975, Cap. 10. 12 R.H. Brown, A Poetic for Sociology: toward a logic of discovery for the human sciences, Cambridge University Press, 1977. 13 Ibid., p. 3.

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sociais como esforços no sentido de formular aquilo que nossas sociedades, nossa cultura, podem significar, são capazes de fazer, podem desenvolver, explorando o que Taylor chama de "nossas opções fundamentais na vida", tudo isso não é uma tarefa menos importante do que a científica. Tal em-preendimento moral não implica um fim do pensamento racional, da cole-ta cuidadosa de evidências, da exploração dedicada de idéias segundo o espírito da ciência, porém pode nos impedir de procurar resolver tais ques-tões recorrendo subservientemente ao método da rotina.

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