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Autobiografia do Professor João Fernandes Pratas (1880-1954) Samora Correia 2007
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FICHA TÉCNICA
Autobiografia Pouco VulgarJoão Fernandes Pratas
GrafismoSandra Figueiras
Material FotobiográficoArquivo João Fernandes Pratas
EdiçãoMunicípio de Benavente
Tiragem1000 exemplares
Depósito LegalISBN
Execução Gráfica
Nota de Abertura
Integrado na abertura do Núcleo João Fernandes Pratas, instalado
na Biblioteca Municipal Odete e Carlos Gaspar, em Samora Correia,
editamos a “Autobiografia Pouco Vulgar”, manuscrita entre 1950 e
1952. O documento relata-nos a vida do Professor, evidenciando a
coragem, a lucidez e o empenho em face dos acontecimentos
trágicos mas também plena de consciência social e,
consequentemente, de cidadania participativa.
Com efeito, entre os anos de 1901 e 1948, o Professor do Ensino
Livre preparou e propôs a exame de Instrução Primária 403 alunos,
marcando de forma intensa gerações de crianças e jovens
samorenses. Particularmente atento ao universo social e humano,
considerava o Professor a urgência de resolver o magno problema
de estirpar o cancro do analfabetismo, que tanto nos vexa, de
enveredar abertamente no caminho progressivo da cultura
intelectual nos cérebros infantis (Pratas, 1912).
A vasta produção literária de Fernandes Pratas, constituída por
sonetos, rimas, diálogos, peças de teatro e artigos de opinião
integram hoje este Núcleo, revelando-nos uma personalidade
atenta, participativa e que, apesar dos constrangimentos físicos,
viveu a vida como uma missão.
Professor João Fernandes Pratas com os alunos, 1931
EXPLICAÇÃO TALVEZ NECESSÁRIA
Uma vez que me tornei, de uma forma inesperada, herdeiro
testamentário dos bens da Exma. Senhora D. Maria Odete Gaspar,
veio parar-me às mãos um conjunto de manuscritos relativos à vida
do Professor João Fernandes Pratas, figura ilustre de Samora
Correia.
Como considerei que o conjunto de documentos encontrados -
autobiografia, sonetos, poemas e três peças teatrais eram de
interresse histórico para o concelho e em especial para a vila de
Samora Correia, vi-me envolvido no dever de proceder à sua
divulgação, recorrendo para isso ao Exmo. Senhor Presidente da
Câmara Municipal de Benavente que prontificou-se a dar todo o
apoio necessário.
Assim, a autobiografia que se apresenta, redigida nos anos
cinquenta, foi em parte resultado da insistência do seu discípulo,
amigo e admirador Senhor Carlos Augusto Gaspar.
Pela análise feita a alguma correspondência trocada entre eles
nessa década, pude concluir que a modéstia do Professor Pratas era
incompatível com a elaboração de um documento com estas
características, pelo que a sua concretização, só poderá ter sido
possível dada a amizade e consideração que o mesmo dedicava a
Carlos Gaspar.
Adriano Martins
Samora Correia, Abril de 2006
I
João nasceu em Samora Correia, ridente vila ribatejana, no dia 25
de Junho de 1880. A mãe era também samorense e o pai, que
nascera no Montijo, viera trabalhar nos campos de Samora e aqui
casou, nascendo desse casal, João e quatro irmãs. Estas morreram
em crianças de tenra idade e João, embora fosse, por vezes,
acometido pelo paludismo, resistiu, resistindo também a um ataque
de varíola com carácter benigno.
Aos 5 anos, indo lavar os pés, sujos de lama, na brincadeira, à beira
duma nascente, caiu nela e morreria afogado, se lhe não acudisse
uma bondosa mulher que o retirou da água, já sem sentidos, e o
levasse, correndo, a casa da mãe, onde esta o reanimou.
Quando completou os 7 anos, o pai levou-o consigo para o campo,
aviado para toda a semana, encarregando-o de guardar os bois que
folgavam, alternadamente, das charruas, por conta dum lavrador-
rendeiro da Companhia das Lezírias.
E, daí até aos 11 anos, foi pastor de vários gados, trabalhou a dirigir
equídeos a puxar grades, mondou, sachou e fez outros serviços
compatíveis com a sua idade de então, sofrendo as naturais
intempéries:
ventos, chuvas, trovoadas, frios e calores, consoante as estações.
II
Em Junho de 1891, ou seja com onze anos, foi João, acompanhado
pela mãe, para casa duma tia paterna, em Lisboa. A tia fê-lo
matricular numa escola oficial e ele, que era então completamente
analfabeto, dedicou-se a aprender com vontade, conseguindo
aprovação no seu exame elementar, em Agosto de 1893 e, em Maio
de 1894, no de admissão ao Liceu.
Por ser muito inteligente? Não; mas sim com o capricho de ser mais
alguma coisa, no futuro, do que simples trabalhador rural.
Depois de ter feito o seu segundo exame, João foi internado na
enfermaria de S. Francisco, do hospital de S. José, a fim de ser
sujeito a uma raspagem no dedo anular da mão esquerda, o qual
fracturara quando ainda na terra e que, não tendo sido devidamente
tratado, cariava no osso da falange, a ponto de se tornar
imprescindível essa raspagem, aliás sem o desejado resultado, pelo
que teve de ser depois amputado o dedo.
Nesse mesmo ano, ou seja o de 1894, matriculou-se no curso
elementar de comércio, que frequentava à noite, ajudando de dia o
seu protector em serviços forenses, como paquete.
Esse protector vivia com a tia, em casa de quem estava alojado, e
era solicitador encarregado de vários processos cíveis e comerciais.
Apesar de ser algo fatigante o serviço de paquete, João aproveitava
os poucos momentos que parava, no escritório do seu protector,
para estudar, conseguindo aprovação em 4 disciplinas, no ano
seguinte, contando uma reprovação.
Em Maio de 1896 faleceu esse bondoso protector; e tão infausto e
inesperado acontecimento causou um doloroso choque na vida de
João. A tia ficou apenas com o modesto recheio da casa e viu-se
obrigada a trabalhar de costura em casa de várias amigas, para
ocorrer à sua subsistência, não podendo, portanto, com o encargo
do sobrinho, que foi acolhido generosamente por um comerciante e
sua irmã E., e que eram filhos do mesmo saudoso protector,
judicialmente separado da esposa, e com a qual esses filhos(que o
eram também dela) não conviviam, dando-se, todavia, com a tia de
João, a quem muito respeitavam, pela sua dedicação ao pai deles,
durante 28 anos de vida em comum, e na melhor harmonia.
Em Julho desse mesmo ano de 1896, João empregou-se num
escritório de comissões e consignações, com armazém de artigos
para modas, não podendo, por várias circunstâncias, alheias à sua
vontade, fazer qualquer exame nesse ano.
Em 1897, e sem prejuízo das suas obrigações no emprego,
conseguiu passar nos exames de línguas francesa e inglesa, mais
não fazendo, por lho não permitirem as suas ocupações.
lll
João fora sempre muito grato aos filhos do seu falecido protector,
nutrindo por eles um verdadeiro afecto fraternal que, felizmente, era
por ambos correspondido.
Esse afecto, porém, transformou-se em E. noutro sentimento mais
ardente, ao qual João, que não concorrera voluntariamente para tal
transformação infeliz, não podia corresponder, porque, amando
deveras uma outra menina, com quem antes convivera e lhe
correspondia, só poderia dedicar a E., aliás muito gentil e excelente
dona de casa, embora com mais idade do que ele, um terno e
respeitoso amor de irmão; e este tributava-lho com a maior
sinceridade e efusiva gratidão.
O irmão, percebendo os sentimentos de E., encarregou um amigo
de propor a João o casamento com a irmã, proposta honrosa e com
vantagens futuras, incluindo uma quota no seu bem, próspero
estabelecimento de modas; mas João não aceitou (apesar de ter
apenas 18 anos incompletos) tão penhorante e amistosa proposta,
respondendo: - “Que não queria de forma alguma infelicitar a filha do
homem a quem tanto devera e cuja memória lhe era sagrada, pois
que, ciumenta como já se manifestava na “soirée” do aniversário do
irmão, seria impossível haver harmonia numa tal união, se ele a ela
anuísse.”
João quis sair, nessa altura, da casa onde era tratado o melhor e
mais generosamente possível (à parte as cenas desagradáveis de
ciúme, bem contrárias à sua vontade e que ele lamentava do íntimo
de alma); mas o irmão opôs-se terminantemente e João obedeceu,
contrariado.
Pouco tempo depois, João sentiu-se mal disposto do estômago e
intestinos e, querendo tomar um medicamento para debelar esse
mal-estar, ficou em casa.
Precisamente, e por casual coincidência, E. ia jantar nesse dia a
casa duma tia que para isso, a convidara; e o que pensou ela, tão
erradamente? Que João escolhera aquele dia, para não ir ao
escritório e ficar mais à vontade com outra senhora, que fazia parte
da família, senhora, aliás, muito respeitável e mais idosa que E.
Claro que essa suposição tão afrontosa para a dignidade dessa
senhora, inocente, numa tal acusação caluniosa, feriu também a de
João, e este, aproveitando a ausência do irmão de E., saiu então
revoltadíssimo e definitivamente, contra as reiteradas instâncias em
contrário, indo novamente para casa da tia dele e ajudando-a no
pagamento da respectiva renda. Não deixou, todavia, de frequentar,
como era costume à noite, a loja do irmão de E., que, inteirado do
que se passara, o recebia sempre amistosamente, sem quaisquer
vislumbres de ressentimento.
IV
João continuava no seu primeiro emprego e servia a contento do
patrão, que tinha por ele muita estima e tanta consideração que o
sentava todos os dias à sua mesa, para o jantar, sendo igualmente
estimado pela esposa dele e mais família.
Nos colegas do escritório tinha, em cada um, um amigo, a ponto de
verem com simpatia a sua investidura como representante do
patrão, na sua ausência para a província ou para o estrangeiro, isto
em Agosto de 1898.
Nesse ano sofreu um ataque de reumatismo nos pés, e mal podia
andar, ele que, vulgarmente, andava sempre depressa.
Tomou os banhos sulfurosos de S. Paulo e essa crise passou,
voltando à sua anterior actividade.
O patrão fora com a família veranear para os arredores da capital e
pagava-lhe a ida e volta no comboio, para jantar com eles todos os
dias.
Em Abril de 1899 foi acometido por dores intermitentes, mas
violentas, na coxa esquerda, e consultou o seu médico assistente,
por conta da Associação de Socorros Mútuos, da qual João era
sócio. O clínico, supondo naturalmente tratar-se de mais uma
manifestação reumática, receitou-lhe iodeto de potássio e tintura de
iodo, até a estância balnear de S. Paulo abrir, no mês seguinte,
paliativos que não deram resultado benéfico; e os banhos
sulfurosos, depois, foram contraproducentes, porque o reduziram a
um estado de extrema fraqueza, acrescida ainda duma quase
absoluta falta de apetite, exceptuando para frutas de ocasião.
O médico, admirado da ineficácia dos banhos, observou-o mais
detalhadamente e confessou ter errado no tratamento, visto o mal
ser outro, sem, todavia, dizer qual. Receitou-lhe reconstituintes e
estimulantes que não deram resultado nenhum; e João perguntou
se não seria conveniente internar-se no Hospital, ao que o clínico
anuiu, dizendo que esse internamento seria talvez de um mês ou
pouco mais, com umas prováveis aplicações de pontas de fogo...
Apesar do seu bom patrão lhe dizer que fosse só ao escritório,
quando estivesse liberto de dores, sempre que se sentia mais
aliviado, lá ia encostado a uma bengala e, algumas vezes, caiu nas
ruas da cidade, quando eram mais fortes os ataques.
V
Em Junho de 1899, internou-se João novamente na enfermaria de
S. Francisco do Hospital de S. José, e foi colocado numa cama com
trapézio, porque o seu mal era uma coxalgia sem supuração,
segundo o diagnóstico então feito, sendo-lhe logo aplicado um
aparelho de adesivo e um saco de areia suspenso, para distensão
da perna enferma.
E isto, enquanto estivesse assim tão fraco como se apresentou,
porque, logo que recuperasse mais forças, ser-lhe ia colocado um
aparelho gessado.
Para essa recuperação, receitaram-lhe fosfato de cálcio,
estimulantes e, por último, cacodilato de sódio, dieta fraca, a
princípio, e aumentando lentamente a suculência.
Passado tempo, foi-lhe tirado o aparelho de adesivo e permitiram se
levantasse. Assim se manteve o seu estado alguns meses.
E, quando resolveram colocar-lhe o aparelho de gesso, foi
cloroformizado e, ao recuperar os sentidos, viu, com espanto, que
lho não tinham colocado, sendo-lhe dito que não estava ainda
suficientemente robusto para suportar o sacrifico de estar só deitado
de costas, durante alguns meses.
Pacientemente, foi vencendo o tempo e procurando alimentar-se
melhor, no intuito de adquirir mais forças e animado de boas
esperanças no almejado aparelho gessado.
E como as não havia de ter, se a idade lhas acalentava como doce
refrigério ao seu já longo sofrimento?
De novo foi resolvida a colocação do aparelho, em que João antevia-
que amarga desilusão, depois! - a sua libertação; e, estando já
deitado na «marquesa», pediu para lhe ser dispensada a
cloroformização, mas disseram-lhe que era indispensável a
anestesia, visto que lhe deslocariam a perna e ele não aguentaria tal
operação a «sangue frio». Submeteu-se, pois, à incómoda «pitada».
O aparelho, posto a valer desta vez, tomou-lhe toda a perna, da anca
às falanges do pé, imobilizando-a, claro está, e assim esteve dois
meses.
Nessa altura manifestou-se - para cúmulo de infelicidade! - o mesmo
mal na perna direita e com dores cruciantes, principalmente no
joelho, onde aplicaram, nos primeiros dias, inúmeras pontas de fogo
e, depois, um líquido cauterizante, que, se não está em erro, era licor
de Squire e produzia o efeito dos cáusticos.
Ordenaram a João para conservar a perna direita e quieta,
horizontalmente, ao que obedeceu, sempre esperançado que,
assim, melhoraria...
É certo que as dores quase desapareceram por completo; e,
passados mais alguns meses, foi-lhe cortado o aparelho da perna
esquerda, vendo-se que ambas estavam anquilosadas, não as
podendo flexionar.
Foram-lhes feitas dolorosas massagens e o resultado foi o
inflamarem-se-lhe fortemente as articulações e ser ordenada a
suspensão das massagens e ficar hemíplégico.
Então é que o pobre João perdeu o ânimo e maldizia a triste sorte
que o esperava, vendo desmoronarem-se as suas mais queridas
aspirações no futuro, arquitectadas no seu espírito, e justificadas
pelo ambiente de simpatias e verdadeiras amizades, com que
encetara a sua carreira na vida prática!
Lamentava-se amargamente, e passava noites sem poder conciliar
o sono e, se dormia alguns momentos, com sonhos animadores,
maior era a decepção ao despertar, por se ver, aos 20 anos,
incapacitado para o trabalho e julgando-se incurável duma coxalgia
dupla, que o impedia de andar e movimentar-se à sua vontade!
Não deixava, porém, transpirar essa inenarrável amargura moral,
antes mostrando-se sempre animoso e com fé em melhorar, para
não desanimar os pais e os amigos.
Mas quão ténue era essa esperança que fazia transparecer, ou o
tentava com estoicismo!
Pedia a Deus que, ao menos, lhe concedesse a precisa resignação
para conformar-se com o destino que lhe marcara em seu alto
desígnio; e, como cristão que sempre fora e era, confiava que nessa
força se escudaria para poder suportar a sua cruz, já que as
melhoras físicas seriam pouco prováveis, infelizmente.
Esse bálsamo foi-lhe concedido pela vontade divina; e passou a
distrair-se ensinando a ler, escrever e contar dois companheiros de
infortúnio e a servir de intérprete a outro, um jovem marinheiro
alemão que, além da sua língua, falava também a francesa e, nesta,
se entendiam muito bem.
Esse simpático rapaz, de quem João possui a fotografia, mandada
depois de Wilhlebushaven, fazia parte do navio- escola “gneisenau”
e fracturou a perna esquerda, numa manobra a bordo, quando o
barco singrava no Tejo, sendo, por isso, internado na mesma
enfermaria de S. Francisco, cama 51, passando depois a 46, por
ordem do senhor Director da enfermaria, para que João lhe servisse
de intérprete, visto estar na 47.
Pouco tempo depois, foi permitido a João deslocar-se num carrinho
de rodas, pela enfermaria, e nisso se distraía também, conversando
e animando os outros doentes e escrevendo-lhes às famílias,
sempre que lhe pediam, para o que andava munido duma caixa com
tinteiro e caneta.
Um dia constou que iam construir, nos arredores de Lisboa, um
anexo do Hospital, para asilar os doentes julgados incuráveis; e a
mãe de João, sabendo do boato, enganou-o, piedosa e
maternalmente, afirmando-lhe que o pai e um tio materno a
encarregaram de dizer-lhe que os ares da terra talvez o ajudassem
nas melhoras do seu estado, e que eles ganhavam o suficiente para
o manterem até se curar.
João hesitou, a princípio; mas tão carinhosas foram as instâncias
que, por fim, cedeu e pediu alta, saindo em Julho de 1901, depois de
estar hospitalizado durante 25 meses. Saiu da enfermaria (para
onde havia entrado a coxear, é certo), mas em braços para um
carro, deste para o comboio, do comboio para a lancha, desta para a
diligência e, desta para casa do tio, em Samora.
VI
Ficou João muito desgostoso ao perceber que o pai mal ganhava
para si e sustento da mãe, e que o tio já estava bem sobrecarregado
com o auxílio à avó materna, ganhando também pouco.
À dignidade de João pesava fortemente o ver-se a sobrecarregar
ainda mais aquele quadro de autêntica pobreza e, então, pensou em
voltar para o Hospital.
Estava embrenhado em tal ideia, quando uma lojista lhe pediu para
ensinar instrução primária ao marido, analfabeto, seguindo-se- lhe
outras pessoas, para ensino dos filhos. E, assim, foi João feito
professor primário particular, começando o seu nobre magistério em
Setembro de 1901; a princípio, sentado na cama e, 3 anos depois,
só deitado de costas, porque, sobrevindo-lhe uma pneumonia,
acompanhada de dores horríveis no corpo todo, perdeu as forças
para se movimentar na cama e ficou na posição em que ainda hoje
se conserva, aos setenta anos completos.
Porque existe ainda esse homem, quando ele próprio supôs que não
viveria meia dúzia de anos em tal situação, se não melhorasse?
Só Deus o sabe em Seus impenetráveis desígnios!
Sempre na esperança de melhoras, sujeitava-se a tratamentos que
lhe aconselhassem, alguns até disparatados e incómodos, sendo o
último com um cinto eléctrico, comprado por subscrição da iniciativa
dos pais de alguns alunos, mas de resultados negativos.
Quando do louco entusiasmo do tratamento pelo método do Dr.
Asuero, João também se sugestionou com tal loucura e, por
indicação do então médico local e seu grande e saudoso amigo,
também entusiasmado, fez um relatório circunstanciado do seu
mal, a fim de, em Lisboa, o apresentar a consideração dos seus
colegas empenhados no aludido tratamento, agindo depois
consoante o que visse fazer.
Ao regressar, esse bom amigo, completamente desanimado com as
conclusões a que chegou, disse serem fictícias as apregoadas
curas.
O pai, já com sessenta anos e gasto em tantos trabalhos violentos,
aspirava o lugar de guardar rural da Companhia das Lezírias; e, para
o satisfazer, João escreveu ao então administrador dessa empresa
agrícola a fazer o pedido nesse sentido. Atendido na primeira vaga
que se deu, ficou radiante o tão malogrado e saudosíssimo ancião,
que foi tomar posse do seu novo lugar, onde se sentia feliz a fazer as
suas searinhas na horta que lhe fora concedida, depois de cumprida
a sua missão de guarda.
Isso, porém, durou poucos meses, porque a fatalidade espreitava-o
na pessoa dum tarado perigoso, que, traiçoeiramente e com
requintes de barbaridade, o agrediu na cabeça, à enxadada, quando
o viu de costas voltadas, até consumar o assassínio do pobre e
honrado trabalhador, em tantos anos de constante labuta, sendo o
móbil do nefando crime o roubo duns míseros cobres e dum
modesto relógio de aço.
O sinistro autor desse acto de malvadez não era de Samora e foi
acabar os seus dias, completamente dementado, ao Hospital Miguel
Bombarda.
Imagine-se a intensidade do rude e cruel golpe sofrido por João ao
saber tão horrível tragédia, sucedida em Setembro de 1907!
Outra tragédia foi o Terramoto de Abril de 1909, que destruiu grande
parte de Samora, Benavente e outras terras, vitimando muitas
pessoas.
João estava lendo o jornal, porque os alunos já tinham saído da aula,
e sentiu oscilar as paredes do seu quarto com violência, em seguida
a um pavoroso trovão subterrâneo. Ouviu o estrondo produzido pelo
desmoronar das outras divisões da casa, excepto o outro quarto
contíguo ao seu; algumas pedras e caliças da parede, a sua
cabeceira, caíram-lhe sobre o ombro direito, magoando-o; a
deslocação do ar, produzida pelos desmoronamentos interiores,
fechara a janela do quarto, que estava antes aberta, e João contava
como inevitável a queda do madeiramento sobre ele.
Nessa altura estava só em casa, porque a mãe tinha ido ao quintal
enterrar um pintassilgo que morrera pouco antes, e as outras
pessoas da casa estavam no campo. A mãe, gritando aflita, correu
sobre os escombros a abraçar-se a ele, sufocado de poeira, sem
forças para o arrancar de tão crítica situação, o que fizeram outras
criaturas com grande abnegação.
Só se ouviam choros e lamentações. Um pavor!
Se o fenómeno sísmico se desse meia hora antes, haveria então
muitas vítimas sob os escombros da escola de João, frequentada
por 30 crianças, na maioria estacionando na casa , junta ao quarto
cujas paredes abateram.
Como toda a gente, João esteve ao ar livre nessa trágica noite,
sendo, no dia seguinte, alojado numa barraca onde, poucos dias
depois, recomeçou a sua faina de professor e, mais tarde, numa
casa dum barracão de madeira, até voltar para a vila reconstruída.
VII
João foi, em tempos, correspondente do “Século”, da “Lucta”, e seus
substitutos e colaborou com prosa e verso em jornais da província:
“Vida Ribatejana”, “Ribatejo”, “Mensageiro do Ribatejo”,
“Benaventense”, etc.
Leccionando crianças e adultos (estes em curso nocturno, só nos
primeiros anos, devido ao progressivo enfraquecimento da sua vista
de míope) desde Setembro de 1901 até Julho de 1949, ou seja
quarenta e oito anos dedicados à causa da instrução popular,
empregou João os seus melhores esforços, conquanto modestos
mas orientados sempre nos bons preceitos morais, cívicos e sociais,
para bem servir a sua querida Pátria e honrar a sua Terra, o berço
adorado onde nasceu.
Desses esforços, por vezes exaustivos, conseguiu, dentre os 403
alunos, que frequentaram a sua escola (afora os transitórios, não
matriculados) ver aprovados em exames primários dos 1º e 2º
graus, admissão aos liceus e escolas comerciais e industriais, 301,
incluindo uma de regente de posto escolar, além de numerosas
passagens de classe e saídas antes de exame, e contando algumas
distinções nos 1º e 2º graus. Contrabalançando este lisonjeiro
resultado, teve João a decepção amarga de 28 reprovações, sendo
apenas uma no de admissão ao liceu, e na parte oral.
Impossibilitado de acompanhar os seus alunos a exame e
propondo-os sempre conscientemente, encarregava João dessa
missão pessoa da sua confiança.
Mas não seria melhor o seu “activo”, se ele os acompanhasse, a
insuflar-lhes o ânimo com o apoio moral da sua presença e
orientando-se ele mesmo “de visu” e de “auditu” sobre a marcha dos
exames?
Sem dúvida!...E, nisto, não há opiniões divergentes.
Em 1919, e no próprio dia de Natal, sofreu João outro dos mais
cruciantes transes para o seu coração de filho amantíssimo, pela
inesperada e brutal morte da sua tão querida e extremosa mãe, a
sua desvelada e carinhosa enfermeira de tantos anos, vitimada por
uma traiçoeira congestão!
Passou, então, a ser tratado por uma tia materna até 1925, ano em
que esta sofreu um desastre que a inabilitou, vindo a falecer,
infelizmente, em 1932. Tinha-a substituído outra, sua madrinha de
baptismo, que, em 1934, pela sua avançada idade, deixou de poder
tratar de João, mas que este não esqueceu nem esquecerá os seus
apreciáveis serviços.
Desde Novembro desse ano tem sido tratado, também
dedicadamente, por uma outra enfermeira que muito se lhe
afeiçoou.
Aquela a quem ficou devendo a sua educação e que o visitava,
sempre que podia, faleceu em Junho de 1921, na Capital, deixando-
lhe também as mais vivas saudades.
João cegou da vista direita em 1938, tendo, por vezes, sérias
apreensões sobre a esquerda; mas Deus louvado! ainda a
conserva, felizmente, servindo- se com lentes de 24 dioptrias.
A despeito de tantas vicissitudes mostra-se sempre conformado e
confiante na bondade divina, procurando antes animar os
desalentados, que dele se acercam e carecem de conforto moral.
Um grupo de antigos alunos de João levaram a efeito, e sem que ele
o soubesse, duas récitas, com cujo produto líquido lhe ofereceram
um receptor de T.S.F., duas baterias e um relógio de horas
luminosas. Isto, em 1938; e, em 1947, mandaram reparar o mesmo
aparelho e ofereceram-lhe nova bateria.
Em 1948, uma Comissão, também de antigos alunos, preparou-lhe
uma significativa e comovedora homenagem, incluindo um almoço
de confraternização, de que só lhe deram conhecimento 10 dias
antes, quando tudo já estava preparado.
O almoço foi de 100 talheres, aproximadamente.
Se muito o sensibilizou essa manifestação do alto e penhorante
apreço, indelevelmente gravada no espirito de João, mas o mais
comoveram ainda as crianças das escolas oficiais, de bibes
brancos, com as suas ilustres professoras, e a correcção e
respeitosa compostura do povo que pejava o largo onde ela se
realizou, desfilando, sob um sol de Julho, ante o carro automóvel,
previamente preparado, onde, comodamente, alojaram o
homenageado, como se estivesse na sua cama. Isto, em 10 de
Outubro.
Então é que ele sentiu bem o desvanecimento de ver-se alvo à
consideração dos seus semelhantes, como prémio consolador à
consciência do dever cumprido, sua maior satisfação; e sente-o na
alma como o natural orgulho de samorense e de português!
João descansa agora, por grata imposição dessa generosa pléiade
de rapazes que, quotizando-se entre si, e juntando essas quotas aos
subsídios que já recebia lhe, perfizeram um ordenado, com o qual
vive como vivia.
Bem hajam!
Samora Correia, Julho de 1950
Por sugestão, digo por uma autossugestão, enviei ao “Diário de
Notícias”, em 2 de Agosto de 1950, uma cópia dactilografada (por
outro, gentilmente) da autobiografia acima concluída até ao
pseudónimo assinado, não me alongando mais para não
ultrapassar o número de palavras, estipulado no concurso do
mesmo jornal, acompanhando essa cópia uma carta dizendo não
representar conto ou novela (rubrica do concurso), visto não ter a
louca pretensão de me julgar com capacidade ou imaginação para
tanto, mas apenas como um exemplo vivo da resignação cristã e de
adaptação ao trabalho, quando se seja ferido pela adversidade. E,
só por isso, venceu a premente sugestão que, aliás, não julguei
muito a propósito.
Seguem mais alguns factos que, de memória, vou citando e
passados na minha longa vida:
Com 5 anos aproximadamente, fui a um jardim, perto da minha
residência, no pátio do Arneiro, colher uma grande rosa vermelha
que me enlevava. O sobrinho do dono ou rendeiro do prédio a que
pertencia o jardim, rapaz dos seus 20 anos, agarrou-me e
inconscientemente, levou-me até a nora ali existente e fez menção
de atirar-me para dentro dela, suspendendo-me mesmo e
ameaçando deixar-me caír lá no fundo. A nora era e é muito grande e
com abundância de água. Calcule-se a minha aflição em tal
conjuntura! Tamanha, que nem sequer podia chorar ou gritar, todos
se admirando de eu não ficar gago. A minha mãe, revoltada contra
essa estúpida brincadeira, censurou deveras o seu autor, que se
desculpou como pôde.
Fiquei-lhe com tanto medo que, mal o via, fugia logo para casa; e
isso durante algum tempo.
Como criança, fui sempre muito amigo da brincadeira, o que era
naturalíssimo, mas gostando também de medir forças com os
companheiros, para não passar por cobarde, embora, por vezes,
fosse vencido; e isso era igualmente natural.
Nos trabalhos do campo era brioso e, aos 9 anos, comecei a fumar,
pois me julgava já um homem pequeno. O meu pai dava-me um
vintém para figos ou outras guloseimas, quando lhe entregava a
féria que eu ganhava, e o vintém era aplicado na compra de um
maço de cigarros, dos chamados «bregeiros», apresentando-me
todo ancho da minha pessoa e já «olhando para a sombra»,
algumas vezes sem as pequenas darem por isso...
Em casa de minha tia Matilde, em Lisboa, não mexia em frutas ou
doces, contentando-me com o que me era distribuído à sobremesa.
Mas fumava de parceria com o meu bondoso protector, sem que
dessem por tal. Ele fornecia-se de pacotes de macinhos de
cigarrilhas «Ferreirinhas» e encarregava-me de, quando acabava
os que trazia na algibeira, ir buscar mais ao pacote e eu pecava
tirando algum para mim também, tendo o cuidado de preveni-lo, logo
que havia poucos, para me mandar comprar novo pacote à
tabacaria que o fornecia. Mais tarde fumava por conta própria e
fumei até Janeiro de 1926, visto não o poder fazer, devido à
bronquite- asmática que me acometeu nessa altura, com dispneia.
Passados poucos dias, já o médico amigo me permitia o fumo, por já
não ter falta de ar; mas eu não quis, apesar das saudades que tinha
do cigarro, com o qual, antes afogava os ataques de tosse, quando
constipado.
E porquê, este capricho?
Para ter a autoridade moral de, pelo exemplo, condenar o fumo ante
os meus alunos, o que eu fizera sempre, mas com a doutrina de
«Frei Tomás», atenuando sofismadamente o meu vício com a
alegação da falta doutras distracções...
Capricho mantido com inegável força de vontade, porquanto fui
tentado por uma caixa de magníficos charutos baianos e bonitos
maços de cigarros belgas, ofertas de dois antigos alunos,
persuadidos de que eu fumava ainda, e resisti, oferecendo tudo a
outros amigos.« Querer, é poder».
Lamento, indubitavelmente e com incomensurável mágoa, o
insucesso dos tratamentos a que fui sujeito (o que seria diferente
com os modernos processos cirúrgicos); não maldigo, porém, as
pessoas que nele intervieram, atendendo às suas boas intenções.
No hospital, todos, desde o director e assistente da enfermaria,
enfermeiro, ajudante e praticantes até aos serventes (assim era,
nesse tempo, a hierarquia hospitalar nas enfermarias) me trataram
com dedicação e carinho, nalguns encontrando verdadeiros
amigos, e sem interesses materiais. Um exemplo, entre tantos:
Na noite de Natal, creio que de 1900 (se não foi de 1899) o
marinheiro alemão entregou-me o presente de bolos finos, frutas e
charutos, que o consul do seu país ( homem já de idade e de suíças
respeitáveis), lhe levara nessa tarde, para eu fazer o que quisesse
da oferta.
Chamei o praticante- velante dessa noite e pedi-lhe me trouxesse de
fora uma garrafa de licor ou vinho do Porto, para o que lhe dava o
dinheiro preciso. Não levou o dinheiro e ofereceu-me, depois, uma
botija de excelente geropiga de Lamego, pedindo-me para que
viesse também um doente da terra dele a compartilhar connosco do
festim. Lavou muito bem os copinhos, com os quais se davam os
remédios, e neles se bebeu a geropiga. Éramos cinco a beber, mas o
marinheiro foi quem bebeu mais, contra a minha vontade, por temer
que ele, ébrio, fizesse qualquer distúrbio, no que eu teria uma
grande responsabilidade moral, e quis travar-lhe as libações, mas
ele arrebatou-me a botija e bebeu os copinhos que lhe aprouve e
dizendo sempre «c'est très bon! c'est très bon!» Por fim adormeceu
com uma respeitável «piela» e só acordou às 9 horas do dia
seguinte, muito bem disposto e jovial. Abençoado sono! Antes deste,
passámos, eu e o velante, que não consegui tirar-lhe a botija, um
mau quarto de hora de «Rabelais».
Ainda a propósito do mesmo marinheiro:
O « Gneisenau» saiu sem ele do Tejo e seguiu para Málaga, em cujo
porto naufragou, por imprudência do seu comandante, morrendo
afogados muitos homens da sua equipagem, chorados mui
dolorosamente pelo dito marinheiro que, antes preparado com o
necessário conforto moral, me pediu a interpretação do
circunstanciado relato do «Século» sobre tão horrível desastre, ao
que anuí, bastante emocionado - diga-se de passagem. O
comandante responsável suicidou-se no seu camarote.
Sofri um grande martírio, no Verão, poucos meses depois da
colocação do aparelho gessado, no qual se instalou um ninho de
percevejos, na chamada «barriga da perna», entrados por uma
quase imperceptível abertura na ligadura, junto ao dedo polegar.
Faziam-me uma comichão insuportável, não me deixando dormir
noites consecutivas, passando pelas brasas, às vezes só de dia.
Como via, de vez em quando, algum daqueles bicharocos
passeando pela cama, logo limpa pelo encarregado da minha
esquadra, depreendi serem insectos desses que me afligiam na
perna e disse-o, mas o pessoal enfermeiro não o acreditou, por
impossível, assim o julgando também o senhor Director, que, rindo-
se, me afirmou ser essa comichão só devido à natural atrofia da
perna, o que me não convenceu, sujeitando-me, contudo, à
continuação do flagelo sanguinário. Noutro dia, insisti na mesma
queixa e S. Exª, algo ironicamente, e para me afastar da mania,
mandou buscar a tesoura própria e fez um pequeno corte no
aparelho, onde eu indiquei, começando dele a sair um cardume
daqueles malditos sugadores. S. Exª. pôs as mãos na cabeça,
deveras condoído e disse, textualmente: - « Quanta razão tinha este
pobre rapaz para se queixar!»
E ordenou a imediata limpeza da cama e que a fizessem sempre que
me queixasse.
Quando foi proclamada a República, houve dois republicanos
exaltados que se propunham ir fazer um auto de fé aos paramentos
existentes na igreja da Misericórdia que era onde se exercia o culto,
por estar interdita a igreja Matriz, em virtude do terramoto. Respondi-
lhes com a minha alma de republicano e de cristão revoltado:«Isso
seria uma criminosa violência e uma afronta condenável às crenças
de cada um, contrárias aos verdadeiros princípios republicanos e ao
natural e humano respeito pelos vencidos.»
Um dos aludidos exaltados ainda me retorquiu com
inconveniências, mas o auto de fé não se realizou, felizmente, para
honra de nós todos.
Também me não solidarizei com a abusiva prisão e afrontas
exercidas na pessoa do revº. Prior da Freguesia, acusado, sem
provas, de conspirar contra a República. Protestei contra tais
arbitrariedades e achei justíssima a reprimenda dada pelo então
Administrador do Concelho aos captores e acompanhantes. E,
quando passado dias, o Prior regressou, congratulei-me com o facto
e manifestei-lho sinceramente.
Antes da proclamação do regime republicano, ensinava-se a
doutrina cristã nas escolas e, nos exames primários, perguntava-se
qualquer ponto dessa doutrina aos examinandos.
Algumas vezes o Prior me pediu rapazes para fazerem a primeira
Comunhão, no que eu anuía de boa vontade, sempre que os pais
estivessem de acordo e os próprios comungantes também, e nunca
exerci qualquer pressão, nesse sentido, sobre ninguém.
Depois do advento da República, a Junta de Freguesia arbitrou-me,
no seu orçamento, um pequeno subsídio, com o qual só discordou,
em princípio, um dos seus cinco membros. Foi-me pedida, pouco
tempo passado, a admissão de dois filhos desse discordante
membro da junta e eu admiti-os na minha escola, e fiz quanto pude
por eles até fazerem os seus exames com aprovação.
Uma nova Junta em 1914 aumentou esse subsídio e, porque, então,
era obrigado a sair de casa onde estava, que fora comprada para
moradia do próprio comprador, pedi oficialmente à mesma Junta
que me cedesse parte do seu edifício, para instalação minha e da
escola, em substituição do subsídio orçado. Foi-me afirmado que a
Junta toda estava de acordo nessa cedência, contrariando-a
somente o seu escrivão, sem voto, mas que venceu. Protestei,
também oficialmente, contra tal subserviência e subordinação à
vontade suprema desse funcionário, e esse protesto
desassombrado valeu-me o corte do subsídio que aliás, fora orçado
espontaneamente. Que miséria moral!
Uma outra Junta restabeleceu o subsídio e, por ocasião da
epidemia, chamada «pneumónica», foi o seu edifício transformado
em Hospital, não ousando eu, portanto, pensar, sequer, em lá
instalar-me com a escola. Isto, em 1918.
Pouco depois, fechou o Hospital, por falta de recursos, e nova Junta
foi eleita, a qual manteve-me o subsídio, lembrando-se pessoa
amiga( sem meu prévio conhecimento) de tomar a iniciativa duma
representação à mesma Junta, no sentido da cedência da casa, e
essa Corporação estava - segundo me disseram - na melhor
disposição de a ceder.
Mas o médico local e também amigo escreveu-me, nessa altura,
uma carta, que conservo, na qual me dizia estar esperançado em
conseguir fundos para a reabertura do Hospital e que, por me saber
então bem instalado, não concordava com a minha ida para o
edifício da Junta. Oficiei, pois, a esta agradecendo-lhe a penhorante
disposição em que estava a meu favor, não podendo, todavia, ir
instalar-me no seu edifício, em virtude das considerações que me
tinham sido feitas pelo médico, considerações morais perante as
quais me curvei. Pena foi eu perder o ensejo que se me oferecia,
visto o Hospital não reabrir mais!
Por intermédio do Núcleo de Santarém da Liga Nacional de
Instrução, recebia, por despacho ministerial, o subsídio anual de
500$00, desde 1922 a 1928, deixando de recebê-lo, pela extinção
dessa Liga. Nesse subsídio se empenhou outro amigo, que, com
outro, e ambos acompanhados de um redactor do jornal« O Mundo»
entregaram uma exposição minha, documentada com o relato dos
meus serviços, passado pelo Sr. Inspector escolar de Santarém, ao
ministro da Instrução, em Novembro de 1920. A exposição foi
recebida pelo secretário geral do ministério, que achou justa a
pretensão, mas que não havia dinheiro para qualquer auxílio; no
entanto, recomendá-la-ia ao ministro. Isto foi publicado pelo jornal
supra de 24 de Dezembro desse mesmo ano de 1920, em
circunstanciada reportagem e com o seu aplauso tendente a
qualquer resolução que premiasse o meu esforço.
E porque me resolvi a expor ao ministro a minha precária situação?
Porque estava lutando com uma grave crise económica e me faltou
sempre a coragem de aumentar as mensalidades dos meus alunos,
em harmonia com a carestia da vida, proveniente das primeira e
segunda grandes guerras. E, senão, veja-se: Antes da primeira,
recebia $40 mensais por cada aluno, sem distinção de classes, o
que foi reputado uma miséria por professores examinadores de
alunos meus do 2º. grau, em Santarém, sem me conhecerem
pessoalmente, e dizendo a um dos examinandos não saber eu
valorizar o meu trabalho. Ultimamente, com uma média de 20 alunos
(a antiga era de 30), recebia 12$50 para a 1ª. e 2ª. classes, 15$00
para a 3ª. e 20$00 para a 4ª. (passando de 20$00 a 60$00, só de
Março a Julho, em virtude do serviço extraordinário dos pontos para
admissão aos liceus).
Poderia eu viver, com os encargos que tinha, só com o produto do
meu trabalho, aliás sempre espinhoso e, por vezes, extenuante,
sem os subsídios que já recebia? Não era fácil!
Devo dizer, para honra das penhorantes iniciativas locais, que os
subsídios que recebo me foram concedidos espontaneamente, não
os pedi, o que mais é para agradecer.
Em Junho de 1930 fui instalado então no edifício da Junta de
Freguesia, consoante a sua resolução, exarada, a meu pedido, na
acta de 15 de Maio do mesmo ano, continuando a pagar-me também
o subsídio que já dava e aumentando-o, por vezes.
Fui visitado em Junho de 1931 pelo Sr. Inspector chefe do círculo
escolar de Santarém, acompanhado pelo bom e saudoso amigo,
então presidente da Junta, sendo, nessa altura, aconselhado a
requerer os prémios de passagens de classe, ao abrigo do Decreto
n.º 18.141 de 22/3/930, o que fiz, recebendo esses prémios desde
1931 a 1936. Não recebi, porém, os requeridos em 1937, 1938 e
1939, ignorando a razão que impediu o seu pagamento e deixando,
portanto, de requerê-los.
Por não serem legais, embora justos, como disse quem mos fez
requerer? E por que recebi os outros?
No mesmo mês de Junho de 1931, a Junta de Freguesia requereu a
oficialização da minha escola, escudando-se no Decreto n.º 19.245
de 16/1/931, requerimento que não teve despacho favorável na
instância superior, talvez devido ao meu estado físico, quando é
certo que este não obstou aos serviços já então prestados à causa
da Instrução durante 30 anos.
É também certo que uma criatura, a quem tive a fraqueza de
confidenciar o facto desse requerimento, me disse que não
contasse com oficialização, repetindo-o a um amigo meu, dizendo
até que seria vexatório para a classe do professorado oficial a minha
oficialização. Em 1936 a mesma pessoa afirmou a alguém que eu
não mais receberia os prémios que recebia, e não se enganou.
Coincidência? Talvez, porque essa colega oficial só de mim
recebeu, até esse ano, provas inequívocas de estima e
consideração. Se alguma culpa teve, que Deus lha tenha perdoado,
como eu lha perdoei. Paz à sua alma!
Em Abril de 1933, e atendendo a serviços prestados, a Câmara
Municipal de Benavente, por proposta do amigo e vereador daqui,
deliberou, em sua sessão de 12 desse mês, atribuir-me também um
subsídio mensal para limpeza da escola a meu cargo.
No dia 4 de Fevereiro de 1941, o mesmo amigo, por sugestão do Sr.
administrador do concelho, apresentou uma nova exposição ao Sr.
subsecretário de Estado da Educação Nacional, subscrita pela
Câmara, Junta de Freguesia e Casa do Povo, e creio que nem
resposta houve.
Porquê? Ignoro-o, como ignorava a sua entrega, só o sabendo
depois, quando esse bom amigo me entregou a cópia da exposição
entregue.
Estando em Julho de 1946 deveras apreensivo com a minha vista
esquerda, pela qual me perpassavam umas sombras, de onde em
onde, dificultando-me o serviço escolar, e temendo cegar dela,
como sucedera à direita em 1938, obriguei-me a expor ao Sr. Dr.
Oliveira Salazar a minha situação ante tão aterradora perspectiva e
pedir-lhe um auxílio do Estado, para poder descansar. Hesitei muito
em fazê-lo, não por vergonha, visto o imperativo da necessidade,
mas porque, até então, nunca tivera a coragem de o fazer muito
antes, como me aconselhara insistentemente um velho amigo,
também grande admirador de S. Exª
O meu caso foi entregue à Assistência, que passou a dar-me um
pequeno subsídio desde Julho de 1947. Nesta altura, agradeci ao sr.
Presidente do Conselho e, com respeitosa franqueza, ousei dizer
que esse subsídio não era o suficiente para eu poder descansar. S
exª mandou comunicar-me que fora entregue de novo à Assistência
Pública a segunda petição, continuando, porém, a ser-me dado o
mesmo subsidio mensal.
Um escrivão- notário da comarca de Benavente escreveu um artigo,
no jornal de Lisboa «A Lucta» de 10/11/912, preconizando a
extinção da Companhia das Lezírias.
Eu, que era então correspondente desse jornal, sem quaisquer
sugestões ou incitamentos alheios, servindo-me dos meus
conhecimentos próprios e algumas informações que colhi, e visando
apenas os interesses da minha Terra e da sua população, fui à liça
no mesmo periódico, numa polémica contrariando os pontos de
vista daquele senhor, que replicou e mantivemos a mesma em
artigos seguidos, alguns com azedume escusado diga-se de
passagem -. Causou surpresa a minha arrojada iniciativa, pois que o
meu contendor era mais culto ( digo-o sem imodéstia, sinceramente
e honrando reverente a sua memória).
Estaria eu em erro na defesa dos meus pontos de vista?
É possível. A intenção foi, contudo, das melhores e segundo a minha
consciência.
Em 5 de Novembro 1946, contra minha vontade e grande
aborrecimento meu, saiu daqui a minha tia e madrinha Ana,
voluntariamente ou por incitamento do filho e neta.
Apesar desse aborrecimento, fiz o que julguei ser meu dever desde
8 desse mês até ao seu falecimento em 14 de Dezembro 1951, outro
tanto tendo feito à minha tia Eusébia, após o desastre que a
inabilitou e foi causado, involuntariamente, por uma das suas netas.
Que descansem em paz as saudosas extintas!
Quer como empregado em Lisboa, quer como professor, nunca
afrontei fosse quem fosse, não me acusando a consciência de
quaisquer agravos ou deslealdades, se bem que alguns e algumas
houvesse sofrido, infelizmente, por inexplicáveis más vontades. Em
contrapartida, lenificam-me a alma inequívocas provas de
compreensão, de estima e de consideração de entidades oficiais e
particulares.
E porque ninguém é perfeito na vida, houve na minha um
condenável deslize, pela tentação da carne em fruto proibido. Que
Deus mo perdoe com a Sua infinita Misericórdia!
Terminando, pesa-me de nunca me ter lembrado de fazer um “diário”
de tudo quanto se passou comigo, desde a minha mocidade
perdida.
Possuo documentos da minha vida, comprovando-a como
empregado e como professor. Segue um aditamento.
Aditamento:
Quando se concluiu a restauração da casa, destruída pelo
terramoto, meu bom e saudoso tio materno José Trindade disse-me
para ir ocupá-la, embora lá se alojasse, transitoriamente, um
parente meu com a família. Porque estava então remediado, pedi-
lhe que deixasse lá continuar a família que a ocupava.
Logo que se completou a reconstrução da vila, e não querendo
prejudicar esses meus parentes, arrendei casa, em Março de 1913,
na rua 5 de Outubro. Alguém as comprou, para moradia própria, e
saí para outras na mesma rua, em Julho de 1914. Em Dezembro de
1915, e precisamente pela mesma razão, fui para a rua 31 de
Janeiro, sucedendo outro tanto em Abril de 1918, indo para um 1º.
andar, no Arneiro. Em Outubro de 1922, fui para outras em rés-do-
chão, no mesmo largo, a fim de instalar-se no 1º andar, o dono do
prédio. Sucedeu a mesmíssima coisa em Outubro de 1926, indo
para a rua da Sacristia, donde vim para aqui. Interessantes
coincidências nas anteriores moradias!
Seria esta odisseia, por ser caloteiro? Não, porque paguei sempre
em dia as respectivas rendas, como, de resto, e até hoje, mercê de
Deus, tenho pago quanto devo, excepto os favores, que só se
pagam com sincera gratidão, e essa não me abandona.
6/9/952
João F. Pratas