Upload
votram
View
219
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
2
Sumário
3. Inferninho
4. Espetáculos
13. Só
22. Pequenos
31. Bolinando a morte
46. Nós
54. Coraçãozinho no espeto
66. Doente
74. B
85. Migalhas
95. Silêncio crítico
5
1
Eu, o atirador de facas, anuncio “– Respei-
tável público, preciso de alguém disposto a tudo
para ter seus cinco minutos de glória”.
6
2
Eu, o corajoso da platéia, “– Disposto a
tudo, não é?” entro no picadeiro agarro as facas
e mostro minha indignação por não me fazerem
rir.
7
3
Eu, o velho palhaço, com o sorriso de
guache no rosto, mostro a verdadeira face ao
sentir a lâmina rasgar minhas costas.
8
4
Eu, o pai de família, sorrio, tento disfarçar,
minha esposa vê. Nunca mais o casamento é o
mesmo.
10
6
Eu, o mágico ilusionista, corro para salvar
minha vida. Uma fisgada abaixo do joelho.
Conheço meu destino.
11
7
Eu, a criança espectadora, me impressiono
ao ver os corpos no chão anunciando o fim do
espetáculo “– Gostei desse tal circo, mãe”.
12
8
Eu, o repórter policial, registro tudo “– O
show tem que continuar”, e acrescento ao jornal:
“O psicopata, louco de amor, ficou em fúria ao
saber do casamento da trapezista com o mágico”.
14
Deixe recado após o sinal
Ligou para casa para avisar que chegaria
mais tarde. Goles solitários, No fun. Ficou
surpreso com o rouco da própria voz do outro
lado da linha. – Deixe recado após o sinal – Para
quem? Lembrou que agora estava sozinho.
15
O amante que passa
Sussurrou no ouvido, despenteou os
cabelos, soprou na nuca. Pronto, toda arrepiada.
Delícia, tocou sutil o umbiguinho. Levantou a
barra da saia – Ai –. Não esperava mais que isso,
era o vento.
16
Boneca
– Preciso dela, não suporto mais viver
sozinho. Ela é perfeita, é tudo que quero. Eu a
amo.
– Espera aí, mas é só uma manequim, cara,
é uma boneca de plástico.
– Como se eu não soubesse.
17
Olhar penetrante
Beijo e mordo sua boca. Corro a mão
cintura abaixo, já sobe por dentro da blusinha.
Levanto o cabelo, beijo a nuca. Puxo a cabeça
para trás, pelos cabelos, e mordo a orelhinha,
sussurro qualquer bobagem. Com a língua no
pescoço já deixo louca. Já levanto a blusa, toda
despenteada no tirar. Deixo o sutiã, primeiro
quero ver sua pele arrepiada. A sinto aqui,
juntinho. Grudo seu corpo no meu, dá até para
sentir o coração. O óculos, todo embaçado, nem
vi para onde foi. Corre zíper da calça. A calcinha
de algodão, se faz de santa o último segundo.
Pensa que me engana mulher? Agora sim, o
sutiã pendurado no braço do sofá. Cada peitinho
pedindo um beijo. Ah, duas bocas nessa hora! Já
é a língua que corre o corpo todo, brincando ali
no umbiguinho, que sentir cócegas, que nada.
Com os dentes a deixo toda nua. Mais um
beijinho. E vai dizer que não pisou no céu? Eu,
impávido, nego. Só ofereço o brinquedo quando,
já desvairada, me pede. Implora.
– Que isso, fica me olhando desse jeito, tá
maluco?
18
Na cama
– Você aqui? Não pensei que viesse.
– Deu saudade.
Um e outro beijinho furtivo. Ali no canto,
ninguém conhecido.
– Ai, se alguém vê.
Virou, olhou, apalpou: estava sozinho
debaixo do cobertor.
19
Sorriso
Ela lhe abriu um sorriso lindo. Ele não
hesitou, como se nem a visse. O melhor sorriso é
daquela que nunca olha para você.
20
Vibra call
Ali no ônibus, ela dorme. Rotina difícil. Eu
de pé, bem na frente dela. Cabelo curtinho quase
preto, esvoaçante com o ventinho da janela.
Cobre os olhos, até mais linda, estão fechados
mesmo. Que cor seriam, azuis, verdes, ai não!
vesga? Lábios puro mel, desenhados por Deus
no oitavo dia. No rosto duas pintinhas do lado
direito, charme perdido no tempo. Cada orelha
uma fadinha, isso é uma piada comigo. O
casaquinho fechado até em cima, nem sinal do
decote, escondido o caminho para Eldorado. Se
acorda, olha para mim, sorri: um mês sonhando
com ela.
De repente desperta, são castanhos os
olhos. Sorri, nem me vê. Apressada, abre a
bolsinha, no colo. Pega o celular. Atende.
– Oi, meu amor.
21
Um casal
Aos beijos, trocando carícias no parque,
felizes, sem dúvida. Sorrisos e ternuras.
Ela, uma gota de orvalho na grama,
cerejeira em flor, gata manhosa no cio, cheirinho
de pão assando, maciez de pétala, sussurro no
ouvido, bolha de sabão.
Ele, ele não sou eu.
23
De perto
Ganhou uma lupa do pai.
– Isso aqui serve pra ver as coisas
pequenininhas, deixa elas maiores.
Estava um sol escaldante. Não é que foi ver
as formigas?
24
Experiência
Na escola a professora disse que se pegar
borboleta ela perde aquele pozinho da asa – é o
pó que dá equilíbrio pra ela – e o bichinho nunca
mais voa.
No jardim de casa, pegou um vidro de
maionese vazio e ficou esperando o inseto
aparecer. Capturou-o. Delícia, a sensação das
asas entre os dedos, durou pouco mais de um
segundo. Soltou na grama, apenas se debateu.
Ficou olhando as formigas a devorarem.
25
Alice
Soube do problema de Lewis Carroll e não
voltou a sonhar. Não sabia mais quem era no
reflexo do espelho.
26
Sangue podre
– Teu filho judiou da minha menina. Em
casa, só lagrima, tadinha.
– Coitada.
– Bem que desconfiei, vagabundo igual o
pai.
– E não é a vagabunda que vem aqui atrás
dele?
27
Por dentro do ser
Viu no desenho animado um bicho branco,
fazia barulho de madeirinha batendo. "– É gente
que foi pro céu, meu filho." Na aula de Ciências
descobriu, um esqueleto. Aquele monstro, dentro
das pessoas, se morresse ele saía.
Todo mundo pensava, os egípcios faziam
múmias para o faraó ressuscitar. Que nada,
tinham medo da caveira. Amarravam com
esparadrapo. O sarcófago? Uma prisão bem
fechada, só tem como sair no filme.
Ele sabia – Atrás de cada sorriso uma
caveira –, não falava para ninguém. Não são os
dentes a pontinha do iceberg? Quebrou o
pezinho. No raio-x viu, lá dentro, bem quietinho,
esperando a hora certa.
Acordou no meio da noite, cabeça doendo,
peito coçando. Era o bicho saindo.
28
Ejaculação precoce
A garota encarregada de cuidar do primo
menor. Uma coisinha que nega, pronto, manhoso,
ele faz grande alarde, grita, esperneia. Já ela
acode.
– Tá bom, tá bom, eu deixo ver minha
calcinha de novo.
29
Primeira aula
Na escola a professora pergunta às
crianças suas ambições futuras.
– E você, lindinho, o que vai ser quando
crescer?
– Seu namorado, profe.
30
Professora
– Profe, você casa comigo?
– Ai, que gracinha. Quando você crescer eu
caso.
– Daí a gente faz igual o mano e a babá, lá
no banheiro.
32
Extrema unção
Sempre sonhou com aquilo. Desde criança
o enxoval pronto. Na hora, muita emoção,
hesitou.
– Se alguém tem alguma coisa contra, que
fale agora...
Teve uma parada cardíaca.
–... ou cale-se para sempre.
33
Beijando o cadáver
Foi dar um último beijo na ex-noiva já no
caixão. Ganhou uma cuspida no olho direito.
Pronto, mortinha de novo. O legista diz para não
se preocupar, é como um ato-reflexo.
34
Sopa
Comprei um terno, a ocasião pedia uma roupa especial. Cortei o cabelo, passei o perfume adequado, até tirei as cutículas das unhas, escovei muito bem os dentes, usei fio-dental e anti-séptico. E, é claro, uma boa capa de chuva, para não me sujar muito.
Declarei todo meu amor a ela. Desprezou. Tentei novamente e ouvi gargalhadas de feiticeira. Fui a principal diversão dela, mas não como eu queria. Sempre aguentei isso sozinho, mas agora preciso de ajuda.
Olho para baixo e vejo o corpo que sempre quis, se desfazendo em sangue e merda. Não devia ter cortado a barriga, fede muito. Preciso mesmo de ajuda, não dá para sumir com um corpo sozinho.
Posso esquartejá-la em dezenas de pedaços e jogar em diferentes pontos do rio. Desfigurar o rosto e arrancar os dentes, torrá-los, moê-los, colocar o pó num envelope e enviar ao Presidente do Clube dos Corações Solitários. Não, sempre tem o DNA.
Ah, claro. Esquartejo o corpo do mesmo jeito, e coloco dentro de cal e água. Posso até imaginar esse lindo corpo em pedaços, borbulhando em cal, as bolhinhas estourando uma a uma. Cal, merda e sangue. Acho que vai ficar com uma tonalidade marrom, como sopa eslava. Acho que meus olhos vão começar a arder com a fumaça. O que sobrar dou um jeito depois. Mas sem enviar nada pelo correio, apesar de ser tentador. Bem, tenho muito trabalho pela frente.
35
Amor à arte
Ela só queria saber dos artistas de
vanguarda.
Ele pegou a arma e pintou uma tela, com o
próprio cérebro.
36
Notícia metafórica
Comprou um par de alianças. Ao entregá-
las, foi surpreendido. O coração lhe explodiu no
peito. O jornal publicou: latrocínio seguido de
homicídio doloso.
37
A tampa do caixão
Um mês casados, tudo nele a irrita. O ronco,
a meia usada, o modo de mastigar, a gargalhada,
os horários de comer.
Ela entra no banheiro, ele na privada.
– Meu deus, que nojo, não foi com você
que casei. Tranca essa porta, porco! Se isso
acontecer de novo eu te largo. Juro que te largo!
– Eu tranco, mas não a porta. Fecho a
tampa do caixão.
Não fez a barba, mas usou a navalha.
39
O corpo dela
Quando morreu, fiz o que queria com o
corpo: a tatuagem do coração flechado no
peitinho esquerdo, com meu nome dentro.
40
Criado mudo
Ela sempre ciumenta, obcecada, é bem
capaz de uma loucura. Fui tomar umas com o
pessoal do trabalho. Cheguei mais tarde,
cheirando cigarro. Fez um escarcéu disse que se
acontecer de novo pega a arma no criado, ao
lado da cama, e dá dois tiros: um no bebê, outro
nela. Hoje, fui trabalhar e esqueci de esconder
arma, se tiro de lá na frente dela, já viu o
escândalo. O dia inteiro preocupado. À tardinha,
fico preso no trânsito, atraso uns minutos. Chego
nervoso. Ufa, a casa trancada, melhor assim.
Abro. Entro no quarto e vejo a gaveta aberta.
42
Suicídio
Tomou uma cartela de comprimidos e três
frascos de perfume. Ficou uma semana com o
estômago ruim e a boca amarga.
43
Segunda tentativa
Desistiu de viver. Passou a faca no pulso,
uma gota de sangue no lençol branco.
Apavorado, não mais tentou. Ainda hoje a faca
debaixo do colchão.
44
O demônio no quarto
De cima mesa eu pego a faca, ainda suja
de gordura, vou de mansinho ao quarto. Ela
cochila, puxo de leve o cobertor, e com um só
golpe transformo a utilidade doméstica na arma
que me liberta.
Acordo de sobressalto, e ela:
– Que foi, amor?
– Nada não, aquele meu sonho de sempre,
sonhei que caía.
Ela vira e dorme, eu fico na vigília. Olhos
abertos, cuidando dos demônios do escuro.
47
Palco só para mim
Por ela me pintei de palhaço, entrei no
picadeiro, me equilibrei, me contorci, fiz show de
ilusão, engoli espada, cuspi fogo, andei na corda
bamba, domei o leão e atirei faca para cima, que
caiu direto no meu coração.
48
Romantismo friamente calculado
Deitados na grama contavam as estrelinhas.
– Ali, o Cruzeiro do Sul.
– Não aponta com o dedo, senão nasce
verruga.
Noite chuvosa, frio na alma. Beberam vinho
e, com a língua, contaram suas cicatrizes.
49
Silêncio, por favor
– Cala essa boca, saco!
Esta manhã ele acordou atrasado. Sempre
o celular dela que despertava. No banheiro, o
espelho não estava embaçado. A cozinha sem o
cheirinho de café. Não conseguiu achar a geléia
de uva na geladeira. A falta do rádio a todo o
volume. Tomou café instantâneo, comeu pão
com maionese – o dia inteiro com um ranço na
língua – e trabalhou de cabeça baixa. Pensando
que só queria um pouco de silêncio.
50
Quem diria?
– Sério que você vai casar?
– Vamos morar juntos... ah, é um
casamento.
– Logo você. Como é aquele negócio que
você dizia do escorpião?
– “Dizer eu te amo é engolir um escorpião
vivo”.
– Que piada, bicho.
– Cara, sabia que ela é de escorpião? Não
que eu acredite nessas coisas.
– Puta merda, heim, cara. E você não tem
medo que não dê certo? Quantos casais você
conhece que continuaram juntos depois de um
tempo?
– Eu tenho medo é de não ficar com ela.
51
Toda manhã
Tocou o despertador e ela não quis acordar
o marido.
– Dorme mais um pouco, querido, vou fazer
café pra você.
Escolheu ela mesma a roupa dele, passou.
Preparou duas torradas, com geléia de uva, ele
adora.
Levantou, tomou banho, se vestiu.
– Hum, delícia de torrada.
A gravata torta, ela arrumou. Já no horário
de ir, beijinhos rápidos. Um carinho sutil.
Ele sai. Ela pega o telefone.
– Oi, já pode vir.
52
Ocupado?
Entediado, o dia inteiro vendo tevê. Odeio
férias. O telefone toca.
– Alô.
– Oi, sabe quem tá falando?
– Nossa, há quanto tempo... que saudade.
– Tá ocupado aí?
53
Por uma hora e quarenta e cinco
Roupas novas, perfume, cabelo cortado,
barba feita, sapato engraxado, palavras
ensaiadas, flores. Assim ele espera.
55
Amor cão
–... na alegria tristeza?
– Sim.
–... na saúde e na doença?
– Aceito.
Pronto, casal de cachorros grudadinhos ali
na esquina.
56
Com os olhos
– Foi tão bom saber que me espiavam
enquanto tomava banho.
–... era eu.
– Você é um porco mesmo.
59
Fim da relação
– Olha, acho que não dá mais...
– Como assim, o que aconteceu?
–
– Você tá estressado, precisa de um tempo
mesmo...
– Não, o que eu preciso é de um orgasmo.
62
No fim da carta
P. S.
E vê se deixa a porra da aliança em cima
da mesa. Sabe quanto custa esse negócio?
63
Apelo apaixonado
Encontrou a carta na mesa.
Me desculpe, mais você pensa que indo
embora me ajuda engano teu. Não esqueça que
mesmo sofrendo amo voce mais que tudo
Bjos
E corrigiu os erros.
64
Expectativas
Saía do trabalho direto ao bar, de frente
para a casa dela. Esperava que ela saísse para
que pudesse falar. Quantas ressacas não sofreu?
Mal sabia ele que, atrás da cortina, ela
observava. Na esperança que ele tomasse
coragem para tocar a campainha.
65
Peçonha
Com a sensação de ter um escorpião
dentro da boca. Desajeitado, tentou cuspi-lo...
– É, acho que te amo.
... mas acabou engolindo. Agora, sempre
esperando uma ferroada nas entranhas.
67
4
– Pai, o Toio tá babo.
Nem escolhemos um nome, o menino é
pequeno e não fala direito. Para ele, cachorro é
toio, fica por isso mesmo.
Vejo o coitadinho, meio filhote ainda, uma
espuma amarela escorrendo pelo queixo, rosna
para mim, se me morde também fico doente. As
fezes são um pudim de sangue. Fedor horrível.
Esse já era.
68
1
Lembro que eu era pequeno. Meu cãozinho
sempre alegre, um dia tristinho, babava espuma.
Matou quatro, cinco galinhas, quase mordeu o
cavalo. O pai amarrou o bichinho, entrou no paiol,
e levou para a roça. Ouvi um foguete de São
João. Depois soube que era um tiro.
70
5
Vou à garagem pego a marreta e uma
corda. Aperto bem no pescoço e levo para o
parque. Atrás de um arbusto, tenta me morder,
piso na garganta, miro e faço. Pronto. É um ovo
que cai no chão.
71
3
Meu amigo devia ter sete anos, eu era um
pouco mais velho. A irmã dele me avisou do
velório, ele pegou uma peste de cachorro. No
caixão usava luvas, uma espuminha amarela no
canto da boca. Depois a menina me contou: os
dedos, ele mesmo mordeu. O pai preso.
Amarrado em uma viga da casa, o menino tentou
morder a mãe, o pai acertou-lhe um tiro no peito.
Homem de coragem.
72
2
Quando meu pai voltou da roça, guardou as
coisas no paiol. Pegou as galinhas mortas e
ateou fogo. Jogou creolina nas cinzas e enterrou.
Lembro até hoje do cheiro. Minha mãe achou um
desperdício, família grande, podia fazer um
ensopado. Ele se irritou, se pegasse a peste não
tinha cura. Brigaram aos berros. Um dia, ele me
viu brincando naquela terra e me surrou com
vara de amorinha.
73
6
Volto do parque, limpo o canil, desinfeto
com creolina e enxofre. Tomo um banho e penso
no que dizer pro pequeno. Ele vai sentir falta do
Toio. Criança se apega fácil aos bichos. Encontro
o menino no quarto, cochilando. A espuma
amarela escorre da boca.
75
1
Elvira ainda não tem dezoito anos, tão
pouco tem este nome, mas é assim que gosta de
ser chamada. Obcecada por velhos filmes
macabros. A garota conhece um rapaz,
charmoso como Bela Lugosi, ela não resiste à
dentada do Drácula. Como bom vampiro, depois
que suga o sangue da virgem, ele some na
neblina.
76
2
Mordida de vampiro transforma o corpo.
Perde a vida e a alma. Em alguns meses a
criatura se contorce dentro do ventre, o alien
rasga o hospedeiro e sai.
A mãe olha para o monstrinho, untado de
sangue, o cordão umbilical balança.
– Meu bebê de Rosemary.
77
3
A casa na beira do lago. O grupo de jovens
que sai de férias. O velho maluco que avisa do
perigo. O casal que faz amor na floresta. Seios
fartos à mostra. O vilão deformado. A sombra do
machado na parede. O close na pupila dilatada.
O sangue que para deleite do telespectador
espirra na tela. Assistindo a filmes, Elvira se
diverte com a criança no colo.
78
4
De tanto a mãe insistir, logo o filho diz a
primeira palavra.
– Vai monstrinho, fala como a mamãe
ensinou.
–
– Ah, fala vai.
– Dácula.
79
5
Filme que faz sucesso tem continuação. E o
enredo ainda é sempre parecido:
A mocinha semivirgem reencontra seu
Drácula, é vampirizida e gera novo monstrinho.
80
6
– Mãezinha, que isso na tua baíga?
– Um monstrinho, igual você.
– Você comeu o monsto?
– Não, querido, tá crescendo aqui dentro.
– Vai ficá gandão?
– Vai. Daí o médico pega uma faca, igual
do Jason, corta a barriga da mamãe e tira o
monstrinho.
– Uma faca?
– É, uma faca bem afiada.
– Mãezinha, você dexa eu tilá o monsto?
82
8
A mãe sai um instante para comprar pão e
deixa o garoto cuidar da irmãzinha. Ao voltar,
ouve da porta uma sinfonia de horror. Entra na
sala e vê a menina sozinha no sofá. Se cai, bate
a cabeça? Na tv, o vampiro se torna dezenas de
ratos e desaparece.
Elvira procura o filho e encontra o garotinho
no banheiro, a tesoura na mão, os cabelos na pia,
uns poucos tufos na nuca. Ele queria ficar igual
ao ídolo, Nosferatu.
83
9
A irmãzinha dorme no quarto com o garoto.
Sempre a luz apagada. Elvira reclama com o filho.
– Deixa a luz acesa, monstrinho. O escuro
é cheio de diabinhos.
– Não mãe, apaga. Eu quelo vê diabinho.
84
10
Na madrugada ele acorda.
– Mãezinha...
– Hum... monstrinho, é tarde, vai pra cama.
– Mãezinha, acoida.
– Que você quer, monstrinho?
– A neném vilo monsto, tava fazendo bauío.
– Ela tava roncando?
– Um bauío feio, igual lobisome.
– Eu já vou lá ver.
– Num pecisa, eu peguei o abajui...
– Que abajui?
– Aquele negocinho de luz.
– Ah, o abajur...
– Daí eu bati no monsto, ele fico bem
quietinho.
86
Tuberculose
Tossia e cuspia sangue.
– Daqui pra frente só piora, mais seis
meses no máximo.
Matou o cachorro da vizinha, a noite inteira
latindo. Gastou metade do salário no bordel. Uma
semana comendo em churrascaria, adeus ao
regime. Enviou flores, declarou seu amor à
atendente de telemarketing, vozinha mais linda.
Feliz um tempo.
O médico disse que era gengivite, tomasse
um xarope para tosse. Pronto, infeliz para
sempre.
87
Amante coletiva
Quase um mês que fico olhando para essa
mulher. Toda manhã pegamos o mesmo ônibus,
a sacana só fica olhando o meu reflexo no vidro.
Ah, ingrata. Mulher, quando sabe que é bonita, é
assim mesmo. Hoje entrei no ônibus, ela tava de
pé, fiquei bem na frente dela, impávido. Acho que
dava até para sentir meu hálito. Olhei bem no
fundo dos olhos, queria ver seus pensamentos –
vai que eram por mim –, mas eu não falei nada,
Não é ela a tal? Pois me disse até oi.
88
Alívio
Com um calor escaldante, vem uma brisa
no fim da tarde: alívio momentâneo. Pronto,
estava resfriado.
90
Amigo estimado
Acordei bem cedinho, um calor, fui abrir a
janela. Não é que tinha um beija-flor na laranjeira,
bem ali na frente. Dizem que ele come muito,
podia ficar ali, a laranjeira toda em flor. Dá até
para sentir o cheirinho do quarto.
91
Na veia
Pego a seringa, puxo. Enrolo o elástico no
braço. Dois tapinhas, a veia pula. A agulha entra,
nem sinto mais a ferroada. Agora é só alegria.
92
Ambições precoces
Nem trinta anos e já um velho. Todo
incomodado com o som do vizinho, o sucesso
das futilidades, o preço do pão, a conversa com
estranho, a multidão, o escarcéu de pombos na
rua, o maniqueísmo na notícia de jornal, o café
melado, o erro de pontuação. Fazia protestos
exaltados para ele mesmo, todos acostumados,
nem prestavam atenção mais. Calou-se, agora
aceita sozinho sua condição de ranzinza. Suas
únicas ambições: pegar um peixe grande e
descansar, sonhando com leões.
93
Fuga
- Não aguento mais viver, toda essa solidão.
Ela me deixou, não atende minhas ligações, não
existo para ela. Vou embora. Por favor, me leve
daqui.
- É um e noventa a passagem.
94
Fobia
Abriu a janela, olhou para fora, saiu. Foi até
a esquina, voltou. Mesmo debaixo de um sol
insuportável tinha medo do escuro.
96
Absolutamente todas as coisas
interessantes que aconteceram na vida – em
seus mais variados aspectos – de um
funcionário da Biblioteca Pública Estadual, ao
longo do período em que trabalhou atendendo
às solicitações dos empenhados na prática da
leitura
Pediram-lhe o livro “Doncas morra”, de
Quincas Borba. E o tempo passou.
98
Carta ao leitor
Venho, por meio desta, lhe informar que
você somente a leu devido seu título.
Grato.
99
Desafio
– Consegue escrever um conto com três
palavras?
– Só três? Hum… escrevo: “Inferno,
purgatório, paraíso”.
101
© Copyright Rodrigo Araujo, 2008. Todos os direitos reservados. Ilustrações de Rodrigo Araujo. [email protected]