Histria Do Tempo Presente

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    HISTRIA DO TEMPO PRESENTE: DESAFIOS

    Marieta de Moraes Ferreira

    A proposta deste trabalho analisar os problemas relativos afirmao da

    noo de histria do tempo presente e ao uso, pelos historiadores, de testemunhos

    diretos.

    preciso lembrar que a histria dos fatos recentes nem sempre foi vista como

    problemtica. Na Antiguidade clssica, muito ao contrrio, a histria recente era ofoco central da preocupao dos historiadores. Para Herdoto e Tucdides, a histria

    era um repositrio de exemplos que deveriam ser preservados, e o trabalho do

    historiador era expor os fatos recentes atestados por testemunhos diretos. No havia

    portanto nenhuma interdio ao estudo dos fatos recentes, e as testemunhas oculares

    eram fontes privilegiadas para a pesquisa.

    O que alterou esse quadro? Por que, no sculo XIX, a histria recente, ento

    chamada de contempornea, tornou-se um objeto problemtico? O ponto de partidapara entender esse processo a constatao do triunfo de uma determinada definio

    de histria a partir da institucionalizao da prpria histria como disciplina

    universitria. Essa definio, fundada sobre uma ruptura entre o passado e presente,

    atribua histria a interpretao do passado e sustentava que s os indivduos

    possuidores de uma formao especializada poderiam executar corretamente essa

    tarefa.

    Iremos examinar aqui como o uso dos testemunhos diretos, valorizado pelahistoriografia da Antiguidade clssica, foi desqualificado pela historiografia na

    segunda metade do sculo XIX e restaurado neste sculo pelos historiadores que

    defendem a validade do estudo do tempo presente. Esse processo ocorreu em

    numerosos pases, mas iremos nos concentrar sobre o caso francs.

    Iremos ainda discutir os problemas metodolgicos colocados pelos

    testemunhos diretos para os historiadores dos perodos recentes e as alternativas

    possveis para enfrent-los.

    FERREIRA, Marieta de Moraes. Histria do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrpolis, v.94,n 3, p.111-124, maio/jun., 2000.

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    1. O nascimento do mtier de historiador e a emergncia da viso retrospectiva

    At 1880, a histria, na Frana, era uma disciplina sem real autonomia,

    dominada pela literatura e pela filosofia e subordinada ao jogo poltico das

    conjunturas. A pesquisa histrica estava sob o controle dos eruditos tradicionais,

    hostis Repblica, e no havia um ensino especializado de histria. A ausncia de

    formao para a pesquisa histrica explica a grande heterogeneidade de normas para

    a prtica cientfica (Noiriel, 1990).

    Gabriel Monod, fundador daRevue Historique (1876), declarava no primeiro

    nmero dessa revista que quase todos os seus predecessores eram autodidatas. Dois

    tipos de pessoas se destacavam como autores dos livros de histria. Nas cidades,

    eram os profissionais liberais, notadamente os advogados, que faziam o papel de

    historiadores; no mundo rural, eram os quadros da sociedade tradicional, membros da

    Igreja e da nobreza, que dominavam o campo (Carbonell, 1976). Esses historiadores

    amadores eram muito numerosos e organizados, e inseriam-se nas socits savantes

    que se consagravam escrita e ao estudo da histria, sendo subvencionados pelo

    Comit des Travaux Historiques e pela Socit dHistorie de France, fundada por

    Guizot. A histria era igualmente valorizada pelas mais venerveis instncias da

    cultura francesa, que eram a Acadmie des Inscriptions et Belles Lettres e a

    Acadmie Franaise, notadamente por todos os prmios que elas atribuam aos

    melhores livros de histria.

    Foi somente no comeo da III Repblica, nos anos 1870, que o lugar da

    histria na sociedade francesa se alterou, e as regras e prticas do mtier foram

    fixadas, num imenso esforo coletivo para romper com o antigo estado de coisas.

    Preocupadas com a utilizao poltica que os conservadores faziam da histria, as

    novas elites republicanas se empenharam desde sua chegada ao poder em assumir ocontrole das instncias de produo da memria coletiva do pas. Para atingir tal

    objetivo, elas precisavam se apoiar no grupo de intelectuais que at ento lhes tinha

    sido mais favorvel: o dos professores universitrios sados da cole Normale

    Suprieure. Mas, contraditoriamente, para conquistar a confiana desses professores,

    a Repblica devia aceitar sua aspirao autonomia profissional (Charle, 1998).

    De 1870 1914 ocorreu uma brutal institucionalizao da universidade

    literria e cientfica, o que ilustrava a vontade dos governantes republicanos dereforar o controle do Estado sobre o ensino superior, num momento em que os

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    projetos universitrios catlicos se multiplicavam. Para estimular e consolidar os

    futuros profissionais, o governo republicano instituiu um sistema de bolsas que

    oferecia a vantagem de transformar profundamente a natureza do pblico

    universitrio. Assim, a histria passou a ocupar um espao decisivo na nova poltica

    universitria colocada em curso pela III Repblica desde o fim dos anos 1870. A

    promoo fulgurante da nova gerao de historiadores normalistas, tradicionais

    rivais dos arquivistas de cole de Chartres, encontrava sua razo poltica. A.

    Rambaud, condiscpulo de Monod na cole Normale Suprieure, foi conselheiro de

    Jules Ferry para reformas educacionais; Ernest Lavisse, diretor do ensino superior,

    foi o idealizador da Reforma da Agrgation; Charles Seignobos foi a eminncia

    parda dos programas escolares de 1902 (Keylor, 1975).

    Foi nesse quadro de afirmao dos historiadores profissionais que se colocou

    uma condio indispensvel para se fazer uma histria cientfica a viso

    retrospectiva. O que, exatamente, queria dizer isso?

    A afirmao da concepo da histria como uma disciplina que possua um

    mtodo de estudo de textos que lhe era prprio, que tinha uma prtica regular de

    decifrar documentos, implicou a concepo da objetividade como uma tomada de

    distncia em relao aos problemas do presente. Assim, s o recuo no tempo poderia

    garantir uma distncia crtica. Se se acreditava que a competncia do historiador

    devia-se ao fato de que somente ele podia interpretar os traos materiais do passado,

    seu trabalho no podia comear verdadeiramente seno quando no mais existissem

    testemunhos vivos dos mundos estudados. Para que os traos pudessem ser

    interpretados, era necessrio que tivessem sido arquivados. Desde que um evento era

    produzido ele pertencia a histria, mas, para que se tornasse um elemento do

    conhecimento histrico erudito, era necessrio esperar vrios anos, para que os traos

    do passado pudessem ser arquivados e catalogados (Noiriel, 1998).Antonie Seignobos, co-autor, junto com C. Langlois, de Introduction aux

    tudes historiques, manual publicado em 1897 definindo as regras de escrita da

    histria, pretendia divulgar os procedimentos e princpios da prtica da histria

    cientfica entre os jovens estudantes e historiadores. Na sua definio, a histria tinha

    como objetivo descrever por meio de documentos as sociedades passadas e suas

    metamorfoses. O documento e sua crtica eram assim essenciais para distinguir a

    histria cientfica da histria literria (praticada pela gerao precedente), ou seja, osprofissionais dos ensastas.

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    Para Seignobos, a prtica cientfica da histria deveria ficar restrita ao ensino

    superior e aos perodos recuados. Na sua concepo, para escrever a histria

    contempornea, as regras da mthode historique seriam impraticveis (Prost, 1994).

    Os historiadores de profisso deveriam portanto rejeitar os estudos sobre o mundo

    contemporneo, uma vez que nesse campo seria impossvel afastar os amadores.

    A separao entre passado e presente colocada dessa forma radical e as

    competncias eruditas exigidas para trabalhar com os perodos recuados garantiram

    praticamente o monoplio do saber histrico aos especialistas. Assim, os

    historiadores recrutados pelas universidades no sculo XIX eram especializados na

    Antiguidade e na Idade Mdia, perodos que exigiam o domnio de um conjunto de

    procedimentos eruditos. Com isso pretendia-se impor critrios rgidos que

    permitissem separar os verdadeiros historiadores dos amadores.

    O desprezo dos historiadores universitrios pela histria recente explica

    tambm o porqu da desqualificao dos testemunhos diretos. Esse campo dos

    estudos histricos acabou transformando-se em monoplio dos historiadores

    amadores. A explicao para essa situao deve-se ao fato de que o perodo recente

    no exigia uma farta cultura clssica, nem o controle dos procedimentos eruditos do

    mtodo histrico. Os que se interessavam pelo contemporneo na verdade concebiam

    a pesquisa histrica como um meio de ao poltica.

    Algumas iniciativas foram feitas no sentido de romper essa barreira e ampliar

    o espao temporal dos estudos histricos. Em 1898, por exemplo, foi criada a

    Association dHistoire Moderne et Contemporaine. Mas, em grande medida, a

    interdio dos estudos dos perodos recentes foi mantida.

    Essa diviso de trabalho colocou no entanto alguns problemas para os

    historiadores profissionais partidrios das idias republicanas. Com sua postura de

    rejeio do presente, a preservao da memria nacional francesa ficava a cargo dosconservadores anti-republicanos que, atravs de manuais escolares e de obras de

    vulgarizao, naturalmente difundiam uma verso contrria ao novo regime.

    Para enfrentar tal situao foram criadas na Sorbonne, no final do sculo,

    cadeiras dedicadas histria contempornea cujo objetivo principal era difundir

    junto a um pblico amplo uma viso do perodo recente favorvel aos republicanos.

    Professores como Alfred Rambaud, Ernest Lavisse, Alphonse Aulard, no foram

    escolhidos para chefiar essas cadeiras apenas por sua competncia no domnioconsiderado, mas porque eram os mais zelosos sustentculos do novo regime.

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    A histria contempornea passou a ter um carter essencialmente pedaggico,

    mas sua prtica escapava s regras bsicas do mtodo histrico cientfico. Os

    historiadores profissionais republicanos diziam que a histria contempornea tratava

    de eventos muito prximos e no era possvel separ-la da poltica.

    Mas como justificar que historiadores profissionais como o prprio Seignobos

    e Lavisse escrevessem livros sobre o perodo recente? A resposta fornecida era que

    tratava-se de obras de vulgarizao produzidas para o ensino secundrio, que tinham

    carter pedaggico e deviam formar cidados. Seu objetivo no era produzir fatos

    novos, mas divulgar interpretaes novas de fatos j conhecidos. A esse argumento

    acrescentavam ainda esses autores que a histria contempornea, essencialmente

    poltica, se baseava em fontes oficiais. Como essas fontes eram consideradas

    autnticas, a crtica das fontes, prpria do mtodo histrico aplicado ao passado,

    podia ser dispensvel (Prost, 1994).

    Mais uma vez o exemplo de Seignobos interessante. Embora fosse o

    principal historiador francs a se preocupar com as questes tericas e metodolgicas

    de sua disciplina, a produo de Seignobos no estava voltada para a academia e

    tampouco seguiu as regras por ele mesmo definidas. Sua trajetria foi a de um

    ativista poltico republicano e socialista cuja principal tarefa era, atravs de seus

    inmeros manuais escolares e obras de vulgarizao, fornecer uma imagem coerente

    do devenir recente da Frana e da Europa na busca do sentido de valores

    republicanos e democrticos (Charle, 1998).

    A despeito da predominncia da concepo de histria como estudo do

    passado, alguns historiadores franceses como Henri Hauser iriam tentar integrar a

    histria recente no campo da cincia histrica, buscando aplicar-lhe as regras do

    mtodo histrico. Mas o sucesso dessas iniciativas foi bastante reduzido, e assim a

    histria contempornea tornou-se uma histria sem objeto, sem estatuto e semdefinio. No essencial, ela era apenas uma matria de um programa de ensino que

    deveria formar cidados defensores da Repblica.

    Essa maneira de pensar a histria em geral, e o contemporneo em particular,

    foi alvo de intensos debates na virada do sculo entre historiadores e socilogos

    (Reberiaux, ....). Os socilogos ligados Durkheim, em particular Simiand, fizeram

    pesadas crticas a Seignobos e ao mtodo de pesquisa por ele concebido para garantir

    a objetividade. Na sua viso, o recuo no tempo no garantia a objetividade dahistria, pois todo historiador tributrio da sua poca.

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    Os sucessores de Seignobos tentaram mostrar que era possvel usar o mtodo

    histrico para o estudo da poca contempornea. Foram Louis Halphen, Alphonse

    Aulard e Pierre Renouvin os autores que promoveram as primeiras experincias de

    pesquisa universitria sobre a Frana contempornea. Essas iniciativas dos

    historiadores profissionais pretendiam retirar a histria recente das mos dos

    historiadores amadores, mas a desconfiana sobre o tempo recente permaneceu.

    2. Histria social, histria sem testemunhos

    Depois de ter desfrutado de amplo prestgio, a concepo de histria baseada

    nos pressupostos da mthode historique formulados pelos historiadores na segunda

    metade do sculo XIX entrou em processo de declnio.

    A fundao na Frana da revista Annales, em l929, e da cole Pratique des

    Hautes tudes, em 1948, iria dar impulso a um profundo movimento de

    transformao no campo da histria. Em nome de uma histria total, uma nova

    gerao de historiadores, conhecida como cole des Annales, passou a questionar a

    hegemonia da histria poltica, imputando-lhe um nmero infindvel de defeitos

    era uma histria elitista, anedtica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante.

    Em contrapartida, esse grupo defendia uma nova concepo, em que o econmico e o

    social ocupavam lugar privilegiado.

    Essa nova histria sustentava que as estruturas durveis so mais reais e

    determinantes do que os acidentes de conjuntura. Seus pressupostos eram que os

    fenmenos inscritos em uma longa durao so mais significativos do que os

    movimentos de fraca amplitude, e que os comportamentos coletivos tm mais

    importncia sobre o curso da histria do que as iniciativas individuais. As realidades

    do trabalho e da produo, e no mais os regimes polticos e os eventos, deveriam serobjeto da ateno dos historiadores. O fundamental era o estudo das estruturas, em

    que assume a primazia no mais o que manifesto, o que se v, mas o que est por

    trs do manifesto. O que importa identificar as relaes que, independentemente

    das percepes e das intenes dos indivduos, comandam os mecanismos

    econmicos, organizam as relaes sociais, engendram as formas do discurso. Da a

    afirmao de uma separao radical entre o objeto do conhecimento histrico

    propriamente dito e a conscincia subjetiva dos atores.

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    Essa nova maneira de fazer histria no alterou contudo a postura anterior no

    que diz respeito ao perodo de interesse e s fontes. Da mesma forma que na histria

    dita vnementielle, os perodos que receberam maior ateno e se tornaram alvo dos

    estudos renovadores foram prioritariamente o medieval e o moderno. O sculo XX

    recebeu o estigma de objeto de estudo problemtico, e a legitimidade de sua

    abordagem pela histria foi constantemente questionada. A impossibilidade de recuo

    no tempo, aliada dificuldade de apreciar a importncia e a dimenso a longo prazo

    dos fenmenos, bem como o risco de cair no puro relato jornalstico, foram mais uma

    vez colocados como empecilhos para a histria do sculo XX. E ainda que Jacques

    Le Goff tenha apontado a conquista da histria contempornea pela nova histria

    como uma tarefa urgente, pouco foi feito nesse sentido. O contemporneo podia ser

    matria das cincias sociais em geral, mas no da histria. Com isso, a histria do

    sculo XX tornou-se uma histria sem historiadores.

    A imensa transformao que se operou no campo da histria a partir da

    Frana, e que se difundiu para outros pases, tampouco questionou a desqualificao

    do papel dos historiadores. Ao contrrio, reafirmou-a. Ao valorizar o estudo das

    estruturas, dos processos de longa durao, a nova histria atribuiu s fontes seriais e

    s tcnicas de quantificao uma importncia fundamental. Em contrapartida, ao

    desvalorizar a anlise do papel do indivduo, das conjunturas, dos aspectos culturais

    e polticos, tambm desqualificou o uso dos relatos pessoais, das histrias de vida,

    das autobiografias. Condenava-se a sua subjetividade, levantavam-se dvidas sobre

    as vises distorcidas que apresentavam, enfatizava-se a dificuldade de se obter

    relatos fidedignos. Alegava-se tambm que os testemunhos no podiam ser

    considerados representativos de uma poca ou de um grupo, pois a experincia

    individual expressava uma viso particular que no permitia generalizaes. No

    preciso dizer que os historiadores identificados com a tradio dos Annalesexcluram a possibilidade de valorizao dos testemunhos.

    Ancorada em princpios que sustentavam a necessidade do distanciamento

    temporal do pesquisador frente ao seu objeto, atravs do que os historiadores

    costumam chamar de viso retrospectiva, ou seja, a possibilidade de trabalhar com

    processos histricos cujo desfecho j se conhece, a histria criava limitaes para o

    trabalho com a proximidade temporal, por temer que a objetividade da pesquisa

    pudesse ser comprometida. Mesmo reconhecendo, como faz Vital Naquet (1993),que todo o trabalho do historiador engajado, e que mesmo os livros de histria

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    antiga estavam marcados por posicionamentos polticos, acreditava-se que o

    distanciamento do objeto d mais segurana no sentido de preservar o historiador das

    paixes polticas atuais. Eric Hobsbawm (1993) explicava suas dificuldades de

    trabalhar com os objetos contemporneos, pois certamente teria de se insurgir contra

    certas orientaes do Partido Comunista, ao qual estava vinculado.

    Entrtanto, na ltima dcada, registraram-se transformaes importantes nos

    diferentes campos da pesquisa histrica. Revalorizou-se a anlise qualitativa e

    resgatou-se a importncia das experincias individuais, ou seja, deslocou-se o

    interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posies para as situaes

    vividas, das normas coletivas para as situaes singulares. Paralelamente, ganhou

    novo impulso a histria cultural, ocorreu um renascimento do estudo do poltico e

    incorporou-se o estudo do contemporneo.

    O aprofundamento das discusses acerca das relaes entre passado e

    presente na histria, e o rompimento com a idia que identificava objeto histrico e

    passado, definido como algo totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em

    funo do presente, abriram novos caminhos para o estudo da histria do sculo XX.

    Por sua vez, a expanso dos debates acerca da memria e de suas relaes com a

    histria pode oferecer chaves para uma nova intelegibilidade do passado (Rousso,

    1993).

    Essa perspectiva que explora as relaes entre memria e histria, ao romper

    com uma viso determinista que elimina a liberdade dos homens, coloca em

    evidncia a construo dos atores de sua prpria identidade e reequaciona as relaes

    entre passado e presente, reconhecendo que o passado construdo segundo as

    necessidades do presente e chamando a ateno para os usos polticos do passado.

    Essa abordagem possibilitou uma abertura para a aceitao do valor dos

    testemunhos diretos, ao neutralizar as tradicionais crticas e reconhecer que asubjetividade, as distores dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada

    podem ser encaradas de uma nova maneira, no como uma desqualificao, mas

    como uma fonte adicional para a pesquisa (Pollak, 1993).

    Essas transformaes ocorridas na pesquisa histrica (em especial na Frana)

    trouxeram um grande dinamismo e renovao para o campo disciplinar da histria,

    traduzidos numa grande vitalidade do movimento editorial, numa renovao dos

    cursos de ps-graduao, com aumento expressivo do nmero de pesquisadores eprofessores, e num interesse crescente da sociedade em geral pelos temas histricos.

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    Por outro lado, a sociedade de modo geral tambm tem demonstrado interesse

    na recuperao da memria coletiva e individual. um fenmeno facilmente

    detectvel a valorizao das biografias e a demanda das empresas em registrar o

    depoimento de seus fundadores como meio de preservar sua memria.

    Se, por um lado, essas transformaes no campo da histria podem ser

    avaliadas como positivas, na medida em que permitem uma reflexo histrica menos

    segura dela mesma mas mais viva, diagnsticos recentes de especialistas renomados

    chamam a ateno para a crise epistemolgica que acompanha o abalo das antigas

    certezas dos historiadores.

    O questionamento da crena num passado fixo e determinvel, a perda de

    confiana na quantificao, o abandono de certos objetos histricos ou o

    questionamento de noes como mentalidade, de categorias como classes sociais, de

    classificaes scio-profissionais e de modelos de interpretao (estruturalista,

    marxista, demogrfico) fizeram a histria, no dizer de Roger Chartier (1993), perder

    a sua posio de disciplina confederadora das cincias sociais. Por sua vez, o refluxo

    dos grandes modelos explicativos levou a uma grande disperso, fazendo com que as

    principais tradies historiogrficas perdessem sua unidade, explodindo em

    proposies mltiplas e, por vezes, contraditrias.

    Todas essas mudanas criaram um espao novo para o estudo dos perodos

    recentes, abalando de vez as antigas resistncias.

    3. O estudo do sculo XX e a emergncia da noo de histria do tempo presente

    Segundo Hartmut Kaelble (1993), as expresses histoire du temps prsent,

    contemporary history, Zeitgeschichte entraram no vocabulrio corrente dos

    historiadores mais especialmente aps a Segunda Guerra Mundial, quando assistimos convergncia de escolas histricas na Europa.

    Naquele momento no s essas expresses eram novas, como anunciavam

    que os historiadores pretendiam explorar as rupturas e as transies recentes da

    histria, mais do que havia sido feito at ento. Na verdade, a histria do sculo XX

    j se mostrava cheia de turbulncias e indicava que profundas mudanas estavam por

    ocorrer. Toda essa intensificao dos ritmos da histria nas ltimas dcadas, trazida

    pelas grandes guerras e pela ecloso da Revoluo Sovitica, estimulou odesenvolvimento do estudo do tempo presente.

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    A despeito desse crescente e permanente interesse no presente, e da afirmao

    desse novo campo de trabalho, a histria do tempo presente encontrou dificuldades

    para se legitimar por no ter uma definio mais precisa de seu objeto, de suas

    metodologias e dos limites de sua investigao. Que denominao utilizar, que

    recortes cronolgicos selecionar?

    Embora at hoje no se tenha firmado plenamente uma definio consensual,

    a denominao formulada por Franois Bdarida, histoire du temps prsent, a que

    parece melhor preencher os requisitos. Mas que cronologia, que evento-chave e

    reconhecido deve ser adotado como marco inicial da histria do tempo presente?

    Para alguns trata-se do perodo que remonta ltima grande ruptura; para outros

    trata-se da poca em que vivemos e de que temos lembranas, ou da poca cujas

    testemunhas so vivas e podem supervisionar o historiador e coloc-lo em cheque

    (Voldman, 1993). Ou ainda, como afirma Hobsbawm, o tempo presente o perodo

    durante o qual se produzem eventos que pressionam o historiador a revisar a

    significao que ele d ao passado, a rever as perspectivas, a redefinir as

    periodizaes, isto , a olhar, em funo do resultado de hoje, para um passado que

    somente sob essa luz adquire significao (apud Bernstein, 1993).

    Na Alemanha, ainda segundo Kaelble, o ano de 1917 foi considerado um

    ponto de partida, pois essa data marcava o fim da longa supremacia europia e

    anunciava o incio da era americana em virtude da entrada dos Estados Unidos na

    Primeira Guerra; alm disso, era o ano da Revoluo Sovitica, que apontava para a

    emergncia de um novo poder mundial. Nas dcadas seguintes outros eventos

    fundadores foram propostos como marco inicial, tais como a crise econmica dos

    anos 30, a Segunda Guerra Mundial; mais recentemente, o ano de 1989 e a queda do

    mundo comunista se colocam como um novo ponto de partida para a histria do

    tempo presente.A despeito da expanso e da legitimao dos estudos do tempo presente,

    ainda permanecem muitas resistncias sua incorporao como objeto da histria.

    Foi na Alemanha, e especialmente na Frana, que esse novo campo da histria se

    desenvolveu mais amplamente, privilegiando os estudos do ps-guerra. O estudo do

    sculo XX ganhou maior legitimidade na Frana a partir da Segunda Guerra, quando

    foi criado o Comit de Histria da Segunda Guerra Mundial, destinado a promover

    iniciativas na rea de documentao e pesquisa sobre o tema. Nos anos seguintesesse interesse ampliou-se, levando os poderes pblicos a tomar a deciso de criar no

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    CNRS um laboratrio que teria por objetivo estudar o tempo presente. Nascia assim

    em 1978, sob a liderana de Franois Bedarida, o Institut d Histoire du Temps

    Prsent em Paris.

    Na Inglaterra, ainda que a histria recente tenha encontrado mais resistncia

    para se firmar, acabou recebendo o veredicto definitivo de Eric Hobsbawn (1998):

    A despeito de todos os problemas estruturais da histria do tempo presente,

    necessrio faz-la. No h escolha. necessrio realizar as pesquisas com os

    mesmos cuidados, com os mesmos critrios que para os outros tempos, ainda que

    seja para salvar do esquecimento, e talvez da destruio, as fontes que sero

    indispensveis aos historiadores do terceiro milnio.

    Trs grandes temas tm ocupado os estudiosos europeus do tempo presente: a

    histria da construo da Comunidade Europia, a emergncia do Estado providncia

    (LEtat-Providence) e a histria dos eventos-chave, no somente nos planos

    nacionais, mas no conjunto da Europa.

    A demanda social pelo estudo da histria recente tem assim levado a

    comunidade dos historiadores a rever suas posies. Mesmo que a busca da verdade

    histrica permanea a regra de ouro dos historiadores (e mesmo que se saiba que

    jamais se chegar a ela), e que a denncia das falsificaes deva ser preocupao

    constante, isso no significa a retomada de certos pressupostos to caros aos

    historiadores do passado, tais como a necessidade da famosa viso retrospectiva para

    se conquistar maior objetividade, ou a desqualificao das fontes orais, consideradas

    subjetivas e distorcidas (Bdarida, 1993).

    Rompendo com a concepo que defendia a necessidade do distanciamento

    para a realizao da anlise histrica, Roger Chartier (1993) sustenta argumento

    contrrio, ao afirmar que, na histria do tempo presente, o pesquisador

    contemporneo de seu objeto e divide com os que fazem a histria, seus atores, asmesmas categorias e referncias. Assim, a falta de distncia, ao invs de um

    inconveniente, pode ser um instrumento de auxlio importante para um maior

    entendimento da realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade

    fundamental, que ordinariamente separa o instrumental intelectual, afetivo e psquico

    do historiador e aqueles que fazem a histria. Por outro lado, o estudo da presena

    do passado incorporada ao presente das sociedades, iniciado pelos historiadores do

    tempo presente, abre novas temticas e abordagens para pesquisadores de outrosperodos da histria.

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    Ainda segundo Chartier, a histria do tempo presente permite uma acuidade

    particular para equacionar o entendimento das relaes entre a ao voluntria e a

    conscincia dos homens e constrangimentos desconhecidos que a encerram e a

    limitam. Melhor dizendo, a histria do tempo presente pode permitir com mais

    facilidade a necessria articulao entre a descrio das determinaes e das

    interdependncias desconhecidas que tecem os laos sociais. Assim, a histria do

    tempo presente constitui um lugar privilegiado para uma reflexo sobre as

    modalidades e os mecanismos de incorporao do social pelos indivduos de uma

    mesma formao social. Do exposto, fica bvia a contribuio da histria oral para

    atingir esses objetivos.

    Deve ser mencionado ainda que a preocupao com as denncias das

    falsificaes, desvios e ocultaes, como princpios bsicos da tradio disciplinar da

    histria, no leva desvalorizao dos testemunhos considerados por alguns como

    subjetivos e distorcidos, mas pode reincorpor-los atravs do estudo do porqu das

    falsificaes e dos usos polticos do passado e do presente. Pode-se tambm obter

    depoimentos orais fidedignos atravs de procedimentos de contraprova.

    4. Concluso

    A incorporao, hoje, do tempo presente e dos testemunhos ao campo da

    pesquisa histrica recoloca no entanto alguns problemas do comeo do sculo.

    Novamente os historiadores confrontam-se com a competio dos amadores e com o

    crescimento do interesse pela histria poltica e pedaggica. Os desafios e dilemas

    que Seignobos enfrentou na virada do sculo, ao querer preservar a escrita da histria

    para os especialistas que dominavam a mthode historique, ou seja, as regras do

    mtier, e ao mesmo tempo atender s demandas polticas que sua militnciarepublicana e laica exigiam, e assim produzir manuais de vulgarizao para o grande

    pblico e para a escola secundria, recolocam-se hoje com toda fora para os

    historiadores (Charle, 1998).

    Como fazer valer as regras para a escrita da histria cientfica das teses e

    monografias eruditas e pass-las ao manual de ensino superior e depois s snteses

    para o grande pblico? A prtica cientfica da histria s possvel no ensino

    superior? Como transformar as novas aquisies inovadoras produzidas pelaacademia para estend-las ao grande pblico? Como produzir uma histria seguindo

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    as regras cientficas e ao mesmo tempo produzir manuais necessrios formao

    poltica e cvica dos cidados das sociedades modernas? So estas as perguntas que

    hoje estamos sendo convidados a responder.

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