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8/6/2019 Histria Do Tempo Presente
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HISTRIA DO TEMPO PRESENTE: DESAFIOS
Marieta de Moraes Ferreira
A proposta deste trabalho analisar os problemas relativos afirmao da
noo de histria do tempo presente e ao uso, pelos historiadores, de testemunhos
diretos.
preciso lembrar que a histria dos fatos recentes nem sempre foi vista como
problemtica. Na Antiguidade clssica, muito ao contrrio, a histria recente era ofoco central da preocupao dos historiadores. Para Herdoto e Tucdides, a histria
era um repositrio de exemplos que deveriam ser preservados, e o trabalho do
historiador era expor os fatos recentes atestados por testemunhos diretos. No havia
portanto nenhuma interdio ao estudo dos fatos recentes, e as testemunhas oculares
eram fontes privilegiadas para a pesquisa.
O que alterou esse quadro? Por que, no sculo XIX, a histria recente, ento
chamada de contempornea, tornou-se um objeto problemtico? O ponto de partidapara entender esse processo a constatao do triunfo de uma determinada definio
de histria a partir da institucionalizao da prpria histria como disciplina
universitria. Essa definio, fundada sobre uma ruptura entre o passado e presente,
atribua histria a interpretao do passado e sustentava que s os indivduos
possuidores de uma formao especializada poderiam executar corretamente essa
tarefa.
Iremos examinar aqui como o uso dos testemunhos diretos, valorizado pelahistoriografia da Antiguidade clssica, foi desqualificado pela historiografia na
segunda metade do sculo XIX e restaurado neste sculo pelos historiadores que
defendem a validade do estudo do tempo presente. Esse processo ocorreu em
numerosos pases, mas iremos nos concentrar sobre o caso francs.
Iremos ainda discutir os problemas metodolgicos colocados pelos
testemunhos diretos para os historiadores dos perodos recentes e as alternativas
possveis para enfrent-los.
FERREIRA, Marieta de Moraes. Histria do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrpolis, v.94,n 3, p.111-124, maio/jun., 2000.
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1. O nascimento do mtier de historiador e a emergncia da viso retrospectiva
At 1880, a histria, na Frana, era uma disciplina sem real autonomia,
dominada pela literatura e pela filosofia e subordinada ao jogo poltico das
conjunturas. A pesquisa histrica estava sob o controle dos eruditos tradicionais,
hostis Repblica, e no havia um ensino especializado de histria. A ausncia de
formao para a pesquisa histrica explica a grande heterogeneidade de normas para
a prtica cientfica (Noiriel, 1990).
Gabriel Monod, fundador daRevue Historique (1876), declarava no primeiro
nmero dessa revista que quase todos os seus predecessores eram autodidatas. Dois
tipos de pessoas se destacavam como autores dos livros de histria. Nas cidades,
eram os profissionais liberais, notadamente os advogados, que faziam o papel de
historiadores; no mundo rural, eram os quadros da sociedade tradicional, membros da
Igreja e da nobreza, que dominavam o campo (Carbonell, 1976). Esses historiadores
amadores eram muito numerosos e organizados, e inseriam-se nas socits savantes
que se consagravam escrita e ao estudo da histria, sendo subvencionados pelo
Comit des Travaux Historiques e pela Socit dHistorie de France, fundada por
Guizot. A histria era igualmente valorizada pelas mais venerveis instncias da
cultura francesa, que eram a Acadmie des Inscriptions et Belles Lettres e a
Acadmie Franaise, notadamente por todos os prmios que elas atribuam aos
melhores livros de histria.
Foi somente no comeo da III Repblica, nos anos 1870, que o lugar da
histria na sociedade francesa se alterou, e as regras e prticas do mtier foram
fixadas, num imenso esforo coletivo para romper com o antigo estado de coisas.
Preocupadas com a utilizao poltica que os conservadores faziam da histria, as
novas elites republicanas se empenharam desde sua chegada ao poder em assumir ocontrole das instncias de produo da memria coletiva do pas. Para atingir tal
objetivo, elas precisavam se apoiar no grupo de intelectuais que at ento lhes tinha
sido mais favorvel: o dos professores universitrios sados da cole Normale
Suprieure. Mas, contraditoriamente, para conquistar a confiana desses professores,
a Repblica devia aceitar sua aspirao autonomia profissional (Charle, 1998).
De 1870 1914 ocorreu uma brutal institucionalizao da universidade
literria e cientfica, o que ilustrava a vontade dos governantes republicanos dereforar o controle do Estado sobre o ensino superior, num momento em que os
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projetos universitrios catlicos se multiplicavam. Para estimular e consolidar os
futuros profissionais, o governo republicano instituiu um sistema de bolsas que
oferecia a vantagem de transformar profundamente a natureza do pblico
universitrio. Assim, a histria passou a ocupar um espao decisivo na nova poltica
universitria colocada em curso pela III Repblica desde o fim dos anos 1870. A
promoo fulgurante da nova gerao de historiadores normalistas, tradicionais
rivais dos arquivistas de cole de Chartres, encontrava sua razo poltica. A.
Rambaud, condiscpulo de Monod na cole Normale Suprieure, foi conselheiro de
Jules Ferry para reformas educacionais; Ernest Lavisse, diretor do ensino superior,
foi o idealizador da Reforma da Agrgation; Charles Seignobos foi a eminncia
parda dos programas escolares de 1902 (Keylor, 1975).
Foi nesse quadro de afirmao dos historiadores profissionais que se colocou
uma condio indispensvel para se fazer uma histria cientfica a viso
retrospectiva. O que, exatamente, queria dizer isso?
A afirmao da concepo da histria como uma disciplina que possua um
mtodo de estudo de textos que lhe era prprio, que tinha uma prtica regular de
decifrar documentos, implicou a concepo da objetividade como uma tomada de
distncia em relao aos problemas do presente. Assim, s o recuo no tempo poderia
garantir uma distncia crtica. Se se acreditava que a competncia do historiador
devia-se ao fato de que somente ele podia interpretar os traos materiais do passado,
seu trabalho no podia comear verdadeiramente seno quando no mais existissem
testemunhos vivos dos mundos estudados. Para que os traos pudessem ser
interpretados, era necessrio que tivessem sido arquivados. Desde que um evento era
produzido ele pertencia a histria, mas, para que se tornasse um elemento do
conhecimento histrico erudito, era necessrio esperar vrios anos, para que os traos
do passado pudessem ser arquivados e catalogados (Noiriel, 1998).Antonie Seignobos, co-autor, junto com C. Langlois, de Introduction aux
tudes historiques, manual publicado em 1897 definindo as regras de escrita da
histria, pretendia divulgar os procedimentos e princpios da prtica da histria
cientfica entre os jovens estudantes e historiadores. Na sua definio, a histria tinha
como objetivo descrever por meio de documentos as sociedades passadas e suas
metamorfoses. O documento e sua crtica eram assim essenciais para distinguir a
histria cientfica da histria literria (praticada pela gerao precedente), ou seja, osprofissionais dos ensastas.
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Para Seignobos, a prtica cientfica da histria deveria ficar restrita ao ensino
superior e aos perodos recuados. Na sua concepo, para escrever a histria
contempornea, as regras da mthode historique seriam impraticveis (Prost, 1994).
Os historiadores de profisso deveriam portanto rejeitar os estudos sobre o mundo
contemporneo, uma vez que nesse campo seria impossvel afastar os amadores.
A separao entre passado e presente colocada dessa forma radical e as
competncias eruditas exigidas para trabalhar com os perodos recuados garantiram
praticamente o monoplio do saber histrico aos especialistas. Assim, os
historiadores recrutados pelas universidades no sculo XIX eram especializados na
Antiguidade e na Idade Mdia, perodos que exigiam o domnio de um conjunto de
procedimentos eruditos. Com isso pretendia-se impor critrios rgidos que
permitissem separar os verdadeiros historiadores dos amadores.
O desprezo dos historiadores universitrios pela histria recente explica
tambm o porqu da desqualificao dos testemunhos diretos. Esse campo dos
estudos histricos acabou transformando-se em monoplio dos historiadores
amadores. A explicao para essa situao deve-se ao fato de que o perodo recente
no exigia uma farta cultura clssica, nem o controle dos procedimentos eruditos do
mtodo histrico. Os que se interessavam pelo contemporneo na verdade concebiam
a pesquisa histrica como um meio de ao poltica.
Algumas iniciativas foram feitas no sentido de romper essa barreira e ampliar
o espao temporal dos estudos histricos. Em 1898, por exemplo, foi criada a
Association dHistoire Moderne et Contemporaine. Mas, em grande medida, a
interdio dos estudos dos perodos recentes foi mantida.
Essa diviso de trabalho colocou no entanto alguns problemas para os
historiadores profissionais partidrios das idias republicanas. Com sua postura de
rejeio do presente, a preservao da memria nacional francesa ficava a cargo dosconservadores anti-republicanos que, atravs de manuais escolares e de obras de
vulgarizao, naturalmente difundiam uma verso contrria ao novo regime.
Para enfrentar tal situao foram criadas na Sorbonne, no final do sculo,
cadeiras dedicadas histria contempornea cujo objetivo principal era difundir
junto a um pblico amplo uma viso do perodo recente favorvel aos republicanos.
Professores como Alfred Rambaud, Ernest Lavisse, Alphonse Aulard, no foram
escolhidos para chefiar essas cadeiras apenas por sua competncia no domnioconsiderado, mas porque eram os mais zelosos sustentculos do novo regime.
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A histria contempornea passou a ter um carter essencialmente pedaggico,
mas sua prtica escapava s regras bsicas do mtodo histrico cientfico. Os
historiadores profissionais republicanos diziam que a histria contempornea tratava
de eventos muito prximos e no era possvel separ-la da poltica.
Mas como justificar que historiadores profissionais como o prprio Seignobos
e Lavisse escrevessem livros sobre o perodo recente? A resposta fornecida era que
tratava-se de obras de vulgarizao produzidas para o ensino secundrio, que tinham
carter pedaggico e deviam formar cidados. Seu objetivo no era produzir fatos
novos, mas divulgar interpretaes novas de fatos j conhecidos. A esse argumento
acrescentavam ainda esses autores que a histria contempornea, essencialmente
poltica, se baseava em fontes oficiais. Como essas fontes eram consideradas
autnticas, a crtica das fontes, prpria do mtodo histrico aplicado ao passado,
podia ser dispensvel (Prost, 1994).
Mais uma vez o exemplo de Seignobos interessante. Embora fosse o
principal historiador francs a se preocupar com as questes tericas e metodolgicas
de sua disciplina, a produo de Seignobos no estava voltada para a academia e
tampouco seguiu as regras por ele mesmo definidas. Sua trajetria foi a de um
ativista poltico republicano e socialista cuja principal tarefa era, atravs de seus
inmeros manuais escolares e obras de vulgarizao, fornecer uma imagem coerente
do devenir recente da Frana e da Europa na busca do sentido de valores
republicanos e democrticos (Charle, 1998).
A despeito da predominncia da concepo de histria como estudo do
passado, alguns historiadores franceses como Henri Hauser iriam tentar integrar a
histria recente no campo da cincia histrica, buscando aplicar-lhe as regras do
mtodo histrico. Mas o sucesso dessas iniciativas foi bastante reduzido, e assim a
histria contempornea tornou-se uma histria sem objeto, sem estatuto e semdefinio. No essencial, ela era apenas uma matria de um programa de ensino que
deveria formar cidados defensores da Repblica.
Essa maneira de pensar a histria em geral, e o contemporneo em particular,
foi alvo de intensos debates na virada do sculo entre historiadores e socilogos
(Reberiaux, ....). Os socilogos ligados Durkheim, em particular Simiand, fizeram
pesadas crticas a Seignobos e ao mtodo de pesquisa por ele concebido para garantir
a objetividade. Na sua viso, o recuo no tempo no garantia a objetividade dahistria, pois todo historiador tributrio da sua poca.
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Os sucessores de Seignobos tentaram mostrar que era possvel usar o mtodo
histrico para o estudo da poca contempornea. Foram Louis Halphen, Alphonse
Aulard e Pierre Renouvin os autores que promoveram as primeiras experincias de
pesquisa universitria sobre a Frana contempornea. Essas iniciativas dos
historiadores profissionais pretendiam retirar a histria recente das mos dos
historiadores amadores, mas a desconfiana sobre o tempo recente permaneceu.
2. Histria social, histria sem testemunhos
Depois de ter desfrutado de amplo prestgio, a concepo de histria baseada
nos pressupostos da mthode historique formulados pelos historiadores na segunda
metade do sculo XIX entrou em processo de declnio.
A fundao na Frana da revista Annales, em l929, e da cole Pratique des
Hautes tudes, em 1948, iria dar impulso a um profundo movimento de
transformao no campo da histria. Em nome de uma histria total, uma nova
gerao de historiadores, conhecida como cole des Annales, passou a questionar a
hegemonia da histria poltica, imputando-lhe um nmero infindvel de defeitos
era uma histria elitista, anedtica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante.
Em contrapartida, esse grupo defendia uma nova concepo, em que o econmico e o
social ocupavam lugar privilegiado.
Essa nova histria sustentava que as estruturas durveis so mais reais e
determinantes do que os acidentes de conjuntura. Seus pressupostos eram que os
fenmenos inscritos em uma longa durao so mais significativos do que os
movimentos de fraca amplitude, e que os comportamentos coletivos tm mais
importncia sobre o curso da histria do que as iniciativas individuais. As realidades
do trabalho e da produo, e no mais os regimes polticos e os eventos, deveriam serobjeto da ateno dos historiadores. O fundamental era o estudo das estruturas, em
que assume a primazia no mais o que manifesto, o que se v, mas o que est por
trs do manifesto. O que importa identificar as relaes que, independentemente
das percepes e das intenes dos indivduos, comandam os mecanismos
econmicos, organizam as relaes sociais, engendram as formas do discurso. Da a
afirmao de uma separao radical entre o objeto do conhecimento histrico
propriamente dito e a conscincia subjetiva dos atores.
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Essa nova maneira de fazer histria no alterou contudo a postura anterior no
que diz respeito ao perodo de interesse e s fontes. Da mesma forma que na histria
dita vnementielle, os perodos que receberam maior ateno e se tornaram alvo dos
estudos renovadores foram prioritariamente o medieval e o moderno. O sculo XX
recebeu o estigma de objeto de estudo problemtico, e a legitimidade de sua
abordagem pela histria foi constantemente questionada. A impossibilidade de recuo
no tempo, aliada dificuldade de apreciar a importncia e a dimenso a longo prazo
dos fenmenos, bem como o risco de cair no puro relato jornalstico, foram mais uma
vez colocados como empecilhos para a histria do sculo XX. E ainda que Jacques
Le Goff tenha apontado a conquista da histria contempornea pela nova histria
como uma tarefa urgente, pouco foi feito nesse sentido. O contemporneo podia ser
matria das cincias sociais em geral, mas no da histria. Com isso, a histria do
sculo XX tornou-se uma histria sem historiadores.
A imensa transformao que se operou no campo da histria a partir da
Frana, e que se difundiu para outros pases, tampouco questionou a desqualificao
do papel dos historiadores. Ao contrrio, reafirmou-a. Ao valorizar o estudo das
estruturas, dos processos de longa durao, a nova histria atribuiu s fontes seriais e
s tcnicas de quantificao uma importncia fundamental. Em contrapartida, ao
desvalorizar a anlise do papel do indivduo, das conjunturas, dos aspectos culturais
e polticos, tambm desqualificou o uso dos relatos pessoais, das histrias de vida,
das autobiografias. Condenava-se a sua subjetividade, levantavam-se dvidas sobre
as vises distorcidas que apresentavam, enfatizava-se a dificuldade de se obter
relatos fidedignos. Alegava-se tambm que os testemunhos no podiam ser
considerados representativos de uma poca ou de um grupo, pois a experincia
individual expressava uma viso particular que no permitia generalizaes. No
preciso dizer que os historiadores identificados com a tradio dos Annalesexcluram a possibilidade de valorizao dos testemunhos.
Ancorada em princpios que sustentavam a necessidade do distanciamento
temporal do pesquisador frente ao seu objeto, atravs do que os historiadores
costumam chamar de viso retrospectiva, ou seja, a possibilidade de trabalhar com
processos histricos cujo desfecho j se conhece, a histria criava limitaes para o
trabalho com a proximidade temporal, por temer que a objetividade da pesquisa
pudesse ser comprometida. Mesmo reconhecendo, como faz Vital Naquet (1993),que todo o trabalho do historiador engajado, e que mesmo os livros de histria
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antiga estavam marcados por posicionamentos polticos, acreditava-se que o
distanciamento do objeto d mais segurana no sentido de preservar o historiador das
paixes polticas atuais. Eric Hobsbawm (1993) explicava suas dificuldades de
trabalhar com os objetos contemporneos, pois certamente teria de se insurgir contra
certas orientaes do Partido Comunista, ao qual estava vinculado.
Entrtanto, na ltima dcada, registraram-se transformaes importantes nos
diferentes campos da pesquisa histrica. Revalorizou-se a anlise qualitativa e
resgatou-se a importncia das experincias individuais, ou seja, deslocou-se o
interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posies para as situaes
vividas, das normas coletivas para as situaes singulares. Paralelamente, ganhou
novo impulso a histria cultural, ocorreu um renascimento do estudo do poltico e
incorporou-se o estudo do contemporneo.
O aprofundamento das discusses acerca das relaes entre passado e
presente na histria, e o rompimento com a idia que identificava objeto histrico e
passado, definido como algo totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em
funo do presente, abriram novos caminhos para o estudo da histria do sculo XX.
Por sua vez, a expanso dos debates acerca da memria e de suas relaes com a
histria pode oferecer chaves para uma nova intelegibilidade do passado (Rousso,
1993).
Essa perspectiva que explora as relaes entre memria e histria, ao romper
com uma viso determinista que elimina a liberdade dos homens, coloca em
evidncia a construo dos atores de sua prpria identidade e reequaciona as relaes
entre passado e presente, reconhecendo que o passado construdo segundo as
necessidades do presente e chamando a ateno para os usos polticos do passado.
Essa abordagem possibilitou uma abertura para a aceitao do valor dos
testemunhos diretos, ao neutralizar as tradicionais crticas e reconhecer que asubjetividade, as distores dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada
podem ser encaradas de uma nova maneira, no como uma desqualificao, mas
como uma fonte adicional para a pesquisa (Pollak, 1993).
Essas transformaes ocorridas na pesquisa histrica (em especial na Frana)
trouxeram um grande dinamismo e renovao para o campo disciplinar da histria,
traduzidos numa grande vitalidade do movimento editorial, numa renovao dos
cursos de ps-graduao, com aumento expressivo do nmero de pesquisadores eprofessores, e num interesse crescente da sociedade em geral pelos temas histricos.
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Por outro lado, a sociedade de modo geral tambm tem demonstrado interesse
na recuperao da memria coletiva e individual. um fenmeno facilmente
detectvel a valorizao das biografias e a demanda das empresas em registrar o
depoimento de seus fundadores como meio de preservar sua memria.
Se, por um lado, essas transformaes no campo da histria podem ser
avaliadas como positivas, na medida em que permitem uma reflexo histrica menos
segura dela mesma mas mais viva, diagnsticos recentes de especialistas renomados
chamam a ateno para a crise epistemolgica que acompanha o abalo das antigas
certezas dos historiadores.
O questionamento da crena num passado fixo e determinvel, a perda de
confiana na quantificao, o abandono de certos objetos histricos ou o
questionamento de noes como mentalidade, de categorias como classes sociais, de
classificaes scio-profissionais e de modelos de interpretao (estruturalista,
marxista, demogrfico) fizeram a histria, no dizer de Roger Chartier (1993), perder
a sua posio de disciplina confederadora das cincias sociais. Por sua vez, o refluxo
dos grandes modelos explicativos levou a uma grande disperso, fazendo com que as
principais tradies historiogrficas perdessem sua unidade, explodindo em
proposies mltiplas e, por vezes, contraditrias.
Todas essas mudanas criaram um espao novo para o estudo dos perodos
recentes, abalando de vez as antigas resistncias.
3. O estudo do sculo XX e a emergncia da noo de histria do tempo presente
Segundo Hartmut Kaelble (1993), as expresses histoire du temps prsent,
contemporary history, Zeitgeschichte entraram no vocabulrio corrente dos
historiadores mais especialmente aps a Segunda Guerra Mundial, quando assistimos convergncia de escolas histricas na Europa.
Naquele momento no s essas expresses eram novas, como anunciavam
que os historiadores pretendiam explorar as rupturas e as transies recentes da
histria, mais do que havia sido feito at ento. Na verdade, a histria do sculo XX
j se mostrava cheia de turbulncias e indicava que profundas mudanas estavam por
ocorrer. Toda essa intensificao dos ritmos da histria nas ltimas dcadas, trazida
pelas grandes guerras e pela ecloso da Revoluo Sovitica, estimulou odesenvolvimento do estudo do tempo presente.
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A despeito desse crescente e permanente interesse no presente, e da afirmao
desse novo campo de trabalho, a histria do tempo presente encontrou dificuldades
para se legitimar por no ter uma definio mais precisa de seu objeto, de suas
metodologias e dos limites de sua investigao. Que denominao utilizar, que
recortes cronolgicos selecionar?
Embora at hoje no se tenha firmado plenamente uma definio consensual,
a denominao formulada por Franois Bdarida, histoire du temps prsent, a que
parece melhor preencher os requisitos. Mas que cronologia, que evento-chave e
reconhecido deve ser adotado como marco inicial da histria do tempo presente?
Para alguns trata-se do perodo que remonta ltima grande ruptura; para outros
trata-se da poca em que vivemos e de que temos lembranas, ou da poca cujas
testemunhas so vivas e podem supervisionar o historiador e coloc-lo em cheque
(Voldman, 1993). Ou ainda, como afirma Hobsbawm, o tempo presente o perodo
durante o qual se produzem eventos que pressionam o historiador a revisar a
significao que ele d ao passado, a rever as perspectivas, a redefinir as
periodizaes, isto , a olhar, em funo do resultado de hoje, para um passado que
somente sob essa luz adquire significao (apud Bernstein, 1993).
Na Alemanha, ainda segundo Kaelble, o ano de 1917 foi considerado um
ponto de partida, pois essa data marcava o fim da longa supremacia europia e
anunciava o incio da era americana em virtude da entrada dos Estados Unidos na
Primeira Guerra; alm disso, era o ano da Revoluo Sovitica, que apontava para a
emergncia de um novo poder mundial. Nas dcadas seguintes outros eventos
fundadores foram propostos como marco inicial, tais como a crise econmica dos
anos 30, a Segunda Guerra Mundial; mais recentemente, o ano de 1989 e a queda do
mundo comunista se colocam como um novo ponto de partida para a histria do
tempo presente.A despeito da expanso e da legitimao dos estudos do tempo presente,
ainda permanecem muitas resistncias sua incorporao como objeto da histria.
Foi na Alemanha, e especialmente na Frana, que esse novo campo da histria se
desenvolveu mais amplamente, privilegiando os estudos do ps-guerra. O estudo do
sculo XX ganhou maior legitimidade na Frana a partir da Segunda Guerra, quando
foi criado o Comit de Histria da Segunda Guerra Mundial, destinado a promover
iniciativas na rea de documentao e pesquisa sobre o tema. Nos anos seguintesesse interesse ampliou-se, levando os poderes pblicos a tomar a deciso de criar no
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CNRS um laboratrio que teria por objetivo estudar o tempo presente. Nascia assim
em 1978, sob a liderana de Franois Bedarida, o Institut d Histoire du Temps
Prsent em Paris.
Na Inglaterra, ainda que a histria recente tenha encontrado mais resistncia
para se firmar, acabou recebendo o veredicto definitivo de Eric Hobsbawn (1998):
A despeito de todos os problemas estruturais da histria do tempo presente,
necessrio faz-la. No h escolha. necessrio realizar as pesquisas com os
mesmos cuidados, com os mesmos critrios que para os outros tempos, ainda que
seja para salvar do esquecimento, e talvez da destruio, as fontes que sero
indispensveis aos historiadores do terceiro milnio.
Trs grandes temas tm ocupado os estudiosos europeus do tempo presente: a
histria da construo da Comunidade Europia, a emergncia do Estado providncia
(LEtat-Providence) e a histria dos eventos-chave, no somente nos planos
nacionais, mas no conjunto da Europa.
A demanda social pelo estudo da histria recente tem assim levado a
comunidade dos historiadores a rever suas posies. Mesmo que a busca da verdade
histrica permanea a regra de ouro dos historiadores (e mesmo que se saiba que
jamais se chegar a ela), e que a denncia das falsificaes deva ser preocupao
constante, isso no significa a retomada de certos pressupostos to caros aos
historiadores do passado, tais como a necessidade da famosa viso retrospectiva para
se conquistar maior objetividade, ou a desqualificao das fontes orais, consideradas
subjetivas e distorcidas (Bdarida, 1993).
Rompendo com a concepo que defendia a necessidade do distanciamento
para a realizao da anlise histrica, Roger Chartier (1993) sustenta argumento
contrrio, ao afirmar que, na histria do tempo presente, o pesquisador
contemporneo de seu objeto e divide com os que fazem a histria, seus atores, asmesmas categorias e referncias. Assim, a falta de distncia, ao invs de um
inconveniente, pode ser um instrumento de auxlio importante para um maior
entendimento da realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade
fundamental, que ordinariamente separa o instrumental intelectual, afetivo e psquico
do historiador e aqueles que fazem a histria. Por outro lado, o estudo da presena
do passado incorporada ao presente das sociedades, iniciado pelos historiadores do
tempo presente, abre novas temticas e abordagens para pesquisadores de outrosperodos da histria.
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Ainda segundo Chartier, a histria do tempo presente permite uma acuidade
particular para equacionar o entendimento das relaes entre a ao voluntria e a
conscincia dos homens e constrangimentos desconhecidos que a encerram e a
limitam. Melhor dizendo, a histria do tempo presente pode permitir com mais
facilidade a necessria articulao entre a descrio das determinaes e das
interdependncias desconhecidas que tecem os laos sociais. Assim, a histria do
tempo presente constitui um lugar privilegiado para uma reflexo sobre as
modalidades e os mecanismos de incorporao do social pelos indivduos de uma
mesma formao social. Do exposto, fica bvia a contribuio da histria oral para
atingir esses objetivos.
Deve ser mencionado ainda que a preocupao com as denncias das
falsificaes, desvios e ocultaes, como princpios bsicos da tradio disciplinar da
histria, no leva desvalorizao dos testemunhos considerados por alguns como
subjetivos e distorcidos, mas pode reincorpor-los atravs do estudo do porqu das
falsificaes e dos usos polticos do passado e do presente. Pode-se tambm obter
depoimentos orais fidedignos atravs de procedimentos de contraprova.
4. Concluso
A incorporao, hoje, do tempo presente e dos testemunhos ao campo da
pesquisa histrica recoloca no entanto alguns problemas do comeo do sculo.
Novamente os historiadores confrontam-se com a competio dos amadores e com o
crescimento do interesse pela histria poltica e pedaggica. Os desafios e dilemas
que Seignobos enfrentou na virada do sculo, ao querer preservar a escrita da histria
para os especialistas que dominavam a mthode historique, ou seja, as regras do
mtier, e ao mesmo tempo atender s demandas polticas que sua militnciarepublicana e laica exigiam, e assim produzir manuais de vulgarizao para o grande
pblico e para a escola secundria, recolocam-se hoje com toda fora para os
historiadores (Charle, 1998).
Como fazer valer as regras para a escrita da histria cientfica das teses e
monografias eruditas e pass-las ao manual de ensino superior e depois s snteses
para o grande pblico? A prtica cientfica da histria s possvel no ensino
superior? Como transformar as novas aquisies inovadoras produzidas pelaacademia para estend-las ao grande pblico? Como produzir uma histria seguindo
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as regras cientficas e ao mesmo tempo produzir manuais necessrios formao
poltica e cvica dos cidados das sociedades modernas? So estas as perguntas que
hoje estamos sendo convidados a responder.
Referncias bibliogrficas
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