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Heidegger e a Reforma Protestante * Heidegger and the Protestant Reformation Arsenio Ginzo Fernández ** Resumo: Desde o Iluminismo, a referência à Reforma constitui um dos sinais de identidade da filosofia alemã, especialmente do idea- lismo alemão. Também Heidegger vai se somar a essa tradição, sobre- tudo no seu período de juventude. O artigo analisa os aspectos fun- damentais da confrontação heideggeriana com a Reforma, ressaltando tanto sua inserção na história da filosofia alemã como sua relevância para a configuração da filosofia heideggeriana. Palavras-chave:Heidegger. protestantismo. Idealismo alemão. Cristi- anismo primitivo; fenomenologia. Abstract: Since the Enlightenment, the reference to the protestant Reformation is an important trait of German philosophy, specially of German Idealism. Heidegger too joins this tradition, specially during his youth. The article analyzes the main aspects of Heidegger·s con- frontation with the protestant Reformation, emphatizing as well his insertion in the German philosophy as his significance in the making of the heideggerian philosophy. Key words: Heidegger. protestantism. German Idealism. Early Ch- ristianity. phenomenology. A recepção da Reforma na filoso- fia alemã Gostaríamos de abordar nessas páginas o problema da relevância da Reforma para a filosofia de Hei- degger, especialmente para a do jo- vem Heidegger. Não nos interessa aqui o problema da filiação reli- giosa como tal, senão somente na medida em que ela tenha tido uma incidência na configuração do pen- samento do autor. Pensamos que se trata, segundo bastante assinalado, de uma refe- rência importante, sobretudo para as colocações filosóficas do jovem * Artigo publicado originalmente em espanhol na Revista de Filosofia, nº 62, 2009-2, pp.7-47 ISSN 0798-1171. Disponível em: http://produccioncientificaluz.org/index.php/filosofia/article/view/18180/18168 Traduzido ao português por Marcio Gimenes de Paula com a devida autorização do autor e da revista, aos quais agradecemos. O professor Arsenio Ginzo Fernández, inclusive, colaborou realizando uma cuidadosa leitura e revisão do texto já traduzido e nos forneceu preciosas correções. Assim, também por esse motivo, o agradecemos pela inestimável contribuição e generosidade. ** O autor é professor na Universidade de Alcalá (Espanha) Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 235-278 ISSN: 2317-9570 235

Heidegger e a Reforma Protestante Heidegger and the Protestant … · 2019. 11. 5. · ARSENIO GINZO FERNÁNDEZ Heidegger, tal como tornou-se pa-tente ao largo dos últimos anos me-diante

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  • Heidegger e a Reforma Protestante *

    Heidegger and the Protestant ReformationArsenio Ginzo Fernández**

    Resumo: Desde o Iluminismo, a referência à Reforma constitui umdos sinais de identidade da filosofia alemã, especialmente do idea-lismo alemão. Também Heidegger vai se somar a essa tradição, sobre-tudo no seu período de juventude. O artigo analisa os aspectos fun-damentais da confrontação heideggeriana com a Reforma, ressaltandotanto sua inserção na história da filosofia alemã como sua relevânciapara a configuração da filosofia heideggeriana.Palavras-chave:Heidegger. protestantismo. Idealismo alemão. Cristi-anismo primitivo; fenomenologia.

    Abstract: Since the Enlightenment, the reference to the protestantReformation is an important trait of German philosophy, specially ofGerman Idealism. Heidegger too joins this tradition, specially duringhis youth. The article analyzes the main aspects of Heidegger´s con-frontation with the protestant Reformation, emphatizing as well hisinsertion in the German philosophy as his significance in the makingof the heideggerian philosophy.Key words: Heidegger. protestantism. German Idealism. Early Ch-ristianity. phenomenology.

    A recepção da Reforma na filoso-fia alemã

    Gostaríamos de abordar nessaspáginas o problema da relevânciada Reforma para a filosofia de Hei-degger, especialmente para a do jo-vem Heidegger. Não nos interessaaqui o problema da filiação reli-

    giosa como tal, senão somente namedida em que ela tenha tido umaincidência na configuração do pen-samento do autor.

    Pensamos que se trata, segundobastante assinalado, de uma refe-rência importante, sobretudo paraas colocações filosóficas do jovem

    *Artigo publicado originalmente em espanhol na Revista de Filosofia, nº 62, 2009-2, pp.7-47 ISSN 0798-1171.Disponível em: http://produccioncientificaluz.org/index.php/filosofia/article/view/18180/18168Traduzido ao português por Marcio Gimenes de Paula com a devida autorização do autor e da revista, aos quaisagradecemos. O professor Arsenio Ginzo Fernández, inclusive, colaborou realizando uma cuidadosa leitura erevisão do texto já traduzido e nos forneceu preciosas correções. Assim, também por esse motivo, o agradecemospela inestimável contribuição e generosidade.**O autor é professor na Universidade de Alcalá (Espanha)

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    Heidegger, tal como tornou-se pa-tente ao largo dos últimos anos me-diante a publicação, no marco daGesamtausgabe, dos textos dos cur-sos ministrados no primeiro pe-ríodo de Friburgo e também emMarburgo.

    Com isso Heidegger vem a pro-longar toda uma linha de pensa-mento que caracteriza a filosofiaalemã desde o Iluminismo. Comefeito, o complexo teórico da filo-sofia alemã tem entre os seus si-nais de identidade a referência ex-pressa ou tácita ao legado espiri-tual da Reforma. Esta situação foia que levou Nietzsche a afirmar,de forma desenfadada, aquilo queo pároco protestante vinha a sero avô da filosofia alemã1. Comefeito, toda uma série de grandespensadores alemães como Leibniz,Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Feu-erbach, entre vários outros, nãosomente eram de filiação protes-tante como converteram a Reformaem uma das suas referências fi-losóficas. É neste marco que re-sulta compreensível que L. Feu-erbach não tenha duvidado emconceber-se a si mesmo como uma

    espécie de “Lutero II”, que vi-ria a prolongar com seu projetofilosófico-religioso o processo ini-ciado no século XVI pelo Luterohistórico2. Vários desses autoresforam, inclusive, antigos estudan-tes de Teologia protestante que ter-minaram passando à filosofia, massem que isso implicasse no desapa-recimento do legado protestante,senão que esse permanecia, me-lhor, transformado, num novo ní-vel.

    Desse modo, por paradoxal queisso possa parecer à primeira vista,cabe falar também de uma re-cepção filosófica da Reforma, es-pecialmente por parte da filoso-fia alemã. São, sem dúvida,bem conhecidas as investidas lu-teranas contra a filosofia, quehavia invadido abusivamente omundo da fé, racionalizando-o emundanizando-o na medida queo reformador não podia aceitar.Contudo, a relação de Lutero como mundo moderno, e também como universo filosófico, não é algounidimensional, mas algo bastanteambivalente. Sem dúvida entra emconflito a partir de distintas pers-

    1 Nietzsche, Fr. KSA VI, 176.2 Veja-se a esse respeito o documentado estudo de Arroyo, L.M. “Yo soy Lutero II”. La presencia de Lutero en la

    obra de L. Feuerbach. Publicaciones Universidad Pontíficia de Salamanca, Salamanca, 1991.

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    pectivas com o mundo moderno,mas também é certo, por sua vez,que, de forma consciente ou não,mostra sua convergência com vá-rios aspectos fundamentais dessemundo moderno. Isto também écerto no que se refere ao âmbitofilosófico. Junto com as conheci-das desqualificações do papel de-sempenhado pela filosofia, ressal-tava Lutero a relevância da cons-ciência, da subjetividade, do livre-exame, do indivíduo, etc. E issosupunha uma inegável aproxima-ção com o espírito da filosofia mo-derna.

    A princípio tais convergênciassomente numa medida limitadamostraram suas virtualidades, mascom a chegada do espírito secu-larista e racionalizante do Ilumi-nismo, a situação alcança um girodecisivo. São consideravelmentereduzidos os pontos conflitivos deLutero com o mundo moderno ese conecta abertamente, pelo con-trário, com aqueles aspectos nosquais Lutero, de uma ou outraforma, convergia com o espírito daIdade Moderna, de modo que oReformador começa a ser conside-rado como um dos pais do mundo

    moderno. Também no que dizrespeito ao âmbito filosófico, poisapesar dos assinalados desencon-tros luteranos com a filosofia, o queimporta a um “verdadeiro lute-rano”, tal como emblematicamenteescreve Lessing não são os escritosde Lutero, mas seu “espírito”3.

    Tal recepção vai adquirir umaespecial profundidade e complexi-dade na filosofia do Idealismo ale-mão. Se em linhas gerais esse mo-vimento filosófico constitui um pe-ríodo de particular plenitude e ri-queza conceituais, também o é na-quilo que se refere à recepção filo-sófica da Reforma. Apesar das di-ferenças que pode existir entre osdiversos representantes desse mo-vimento, havia acordo, contudo,naquilo que concerne à relevânciaconcedida, expressa ou tácita, aolegado espiritual da Reforma.

    Bons discípulos de Lessing, tam-bém a eles lhes preocupa mais o“espírito” de Lutero que seus escri-tos. Por outra parte, Fichte, Hegele Schelling foram, ademais, anti-gos estudantes de Teologia protes-tante, circunstância que lhes per-mitiu uma melhor familiarizaçãocom uma temática que depois terão

    3 Lessing, G.E. Werke III, Insel, Frankfurt a. Main, 1967, 449.

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    presente no âmbito filosófico. As-sim Fichte considera que a filoso-fia alemã vem a constituir uma es-pécie de prolongamento e ulteriordesenvolvimento do princípio crí-tico atuante na Reforma, de modoque não duvida em afirmar que “ofilósofo e o sábio modernos hão demostrar-se necessariamente como‘protestantes”’4.

    Não obstante, se tivesse que ele-ger um representante do Idealismoalemão como culminação da re-cepção filosófica da Reforma, esseseria indubitavelmente Hegel, queconverte a Reforma em um dos re-ferenciais fundamentais da Histó-ria Moderna. Também a filoso-fia moderna mostraria uma conver-gência profunda com o espírito daReforma, apesar de que em Lutero“o princípio religioso se separou dafilosofia”. No seguinte texto da Fi-losofia do Direito mostra com todanitidez a convergência que paraHegel existe entre a moderna filo-sofia e o espírito da Reforma: “Oque começou Lutero como fé nosentimento e no testemunho do es-pírito, é o mesmo que o espíritoulteriormente maduro se esforça

    por apreender mediante o conceitoe deste modo liberar-se na atuali-dade e assim encontrar-se nela a simesmo”5.

    A filosofia hegeliana viria a re-presentar, de uma forma especial,esse espírito “ulteriormente ma-duro” e por isso considera Hegelque frente ao processo de sub-jetivação e esvaziamento de con-teúdo que afligia a Teologia pro-testante coetânea, seria a filoso-fia a que poderia dar expressãoà verdadeira natureza do protes-tantismo. Viria a ser na filoso-fia onde seria possível restaurar deum “modo verdadeiro” o protes-tantismo. Eis aqui a ambivalênciada abordagem hegeliana ante o le-gado da Reforma: por uma parte sereconhece a grande relevância doprotestantismo para a constituiçãodo mundo moderno, mas por ou-tra em sua concepção o protestan-tismo parece tornar-se diluído emfilosofia, em uma cópia filosófica.

    Em Hegel a situação permane-cia, contudo, em um determinadohorizonte de ambiguidade, de as-sunção do legado protestante e desecularização e racionalização em

    4 Fichte, J.G. Werke VII (herausg. von I.H.Fichte), Walter de Gruyter, Berlin, 1971, 609.5 Hegel, G.W.F. Werke VII, Suhrkamp, Frankfurt a. Main 1971, p. 27.

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    âmbito filosófico. Mas esta situa-ção se vai radicalizar mais na ge-ração seguinte, o da esquerda he-geliana na qual vemos como todauma série de antigos estudantes deTeologia protestante desencadeiamum processo de “secularização ace-lerada”, mas desde uma ótica ima-nente, pretendendo com isso levara sua consumação a vontade ori-ginária da Reforma. O tema dasegunda Reforma flutua no ambi-ente, e nesse sentido já nos refe-rimos a como Feuerbach não vaci-lava em considerar-se uma espéciede segundo Lutero. Sem dúvida,estamos ante todo um processo quepraticava uma espécie de herme-nêutica violenta e seletiva sobreo legado protestante. Conectava-se com determinados elementosdesse legado mas, por sua vez, iaconvertendo o dito legado em umaespécie de cópia filosófica. Era ló-gico, portanto, que desde o protes-tantismo ortodoxo, ainda que nãosomente a partir dele, se eleva-ram críticas contra esse processode secularização e mundanizaçãoda tradição protestante. É su-ficiente recordar aqui um pensa-dor como Kierkegaard, tão estri-tamente vinculado com o pensa-mento alemão. Frente a todo o pro-

    cesso de secularização e racionali-zação do legado protestante levadoa cabo pela filosofia alemã desde oIluminismo, Kierkegaard, que vaise constituir numa referência im-portante para Heidegger em suaaproximação com a Reforma, se es-força por conectar de novo como espírito originário da mesma,em sua dimensão intempestiva quenos recordaria a verdadeira natu-reza do Cristianismo como “escân-dalo” para os judeus e “loucura”para os gregos, tal como assinalaSão Paulo na conhecida passagemda primeira Carta aos Coríntios.Com isso Kierkegaard queria seopor tanto a secularização do pro-testantismo operado pela filosofiaalemã como ao protestantismo ofi-cial representado pela Igreja lute-rana. Apesar das diferenças, emambos os casos o “escândalo” ea “loucura” teriam sido substituí-das pela “cultura”, dando lugar aoKulturprotestantismus. Com suasdenúncias do protestantismo mo-derno, Kierkegaard vai desempe-nhar um importante papel no reen-contro com a vocação originária daReforma que vão protagonizar noprimeiro terço do século XX tantoo jovem Heidegger como os repre-sentantes da chamada teologia dia-

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    lética.A aproximação à Reforma por

    parte da tradição filosófica não foi,desde então, isenta de tensões, se-gundo se tem insistido mais emuns aspectos do que em outros, talcomo mostram de forma paradig-mática Feuerbach e Kierkegaard,duas figuras coetâneas, com suasvisões contrapostas da Reforma.Mas a despeito disso parece ter ra-zão Nietzsche com sua afirmaçãode que o pároco protestante é oavô da filosofia alemã, na qual porcerto haveria que incluir-se o pró-prio Nietzsche, apesar de seus de-sencontros viscerais com a figurado Reformador.

    Sem dúvida, teria que detalhara frase nietzschiana acerca da as-cendência da filosofia alemã, evi-tando reducionismos improceden-tes em uma realidade tão com-plexa como essa filosofia. Mas emtodo caso se trata de uma referên-cia importante na moderna filoso-fia alemã, especialmente relevanteem alguns momentos como o Idea-lismo alemão. É uma situação queassinalou Habermas, um autor um

    tanto alheio a essa temática, queo espírito do protestantismo ha-via condicionado de tal maneira odecurso da filosofia alemã que oscatólicos para filosofar “quase de-vem tornar-se protestantes”6. Talé o que durante um tempo pa-rece haver ocorrido a Heidegger,autor de filiação católica mas quedurante um tempo vai encontrarem Lutero, sobretudo no jovem Lu-tero, um companheiro de buscanão apenas religiosa mas tambémfilosófica. Dessa forma, a referên-cia ao legado da Reforma seguemostrando, durante um tempo aomenos, sua relevância em um au-tor tão destacado como Heidegger.É uma problemática da qual vamostentar nos aproximar nas páginasseguintes. Heidegger vai tomarconsciência prontamente da rele-vância que o legado da Reformateve para a filosofia alemã e tomarápartido ante a ela, oferecendo umanova aproximação ao problema.

    O ponto de partida de Heidegger

    Como tantos representantesilustres da moderna filosofia

    6 Habermas, J. Philosophisch-politische Profile, Suhrkamp, Frankfurt a. Main, 1973, p. 156.Acerca desta temática permito-me remeter a meu livro: Protestantismo y filosofia. La recepción de la Reforma en

    la filosofia alemana, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Alcalá de Henares, 2000, no qual faço umaaproximação a este problema desde Lessing e Leibniz até Nietzsche.

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    alemã, Heidegger começa o seupercurso intelectual como estu-dante de Teologia, um estudo quetambém parece deixar nele umamarca profunda. Muitos anos maistarde, olhando para trás, vai con-fessar: “Sem essa procedência te-ológica não haveria acertado o ca-minho do pensamento. Mas a pro-cedência permanece futuro” (Her-kuntf aber bleibt stets Zukunft)7.Como resultado dessa profundaimpressão no pensamento heideg-geriano, caberia afirmar que, ape-sar de todos os conflitos e desen-contros com a Teologia que Hei-degger vai protagonizar ao largo desua vida, nenhum grande pensa-dor, desde os tempos de Hegel, iráexercer um impacto semelhante naTeologia – católica e protestante.

    Não obstante, a diferença doque costumava ocorrer na históriaanterior, Heidegger começa o seupercurso universitário estudandoTeologia católica. Com efeito, aformação primeira de Heidegger écatólica. Nascido no seio de umafamília profundamente católica,e em uma região predominante-mente católica, toda a formação

    de Heidegger até a Universidadetem um caráter marcadamente ca-tólico, de forma que o estudo daTeologia na Universidade, com vis-tas a fazer-se sacerdote, pareciauma opção de todo coerente coma situação. Heidegger vai estudarTeologia católica na Universidadede Friburgo durante quatro semes-tres, nos anos de 1909-1911. Mastambém Heidegger, como tantosdos seus antecessores, vai abando-nar o estudo de Teologia pelo deFilosofia. Inclusive durante os es-tudos teológicos, parte do temposerá dedicado à Filosofia, tal comovai prazerosamente ressaltar maistarde o próprio Heidegger e talcomo, por outra parte, estava pre-visto nos planos de estudo8. Desdemuito cedo Heidegger teve clarezade sua vocação filosófica a qual elese vai dedicar apaixonadamente.Mas, por sua vez, o âmbito do reli-gioso e do teológico, de uma formaou de outra, sempre se estará pre-sente na obra heideggeriana.

    Por outro lado, dado o propó-sito dessas páginas, procede recor-dar aqui que, junto com a inicialabertura à filosofia, já durante seus

    7 Heidegger, M. Unterwegs zur Sprache, Nesk, Pfullingen, 1982, 96.8 Heidegger, M. Zur Sache des Denkes, Max Niemeyer, Tübingen, 1982, 96.

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    estudos teológicos Heidegger entraem contato com a obra de Lutero.Com efeito, muitos anos mais tardeele vai confessar a O. Pöggeler quefoi precisamente no Seminário teo-lógico onde havia começado a lei-tura da obra do Reformador. Pre-cisamente em 1908, um ano antesda entrada de Heidegger no Semi-nário, se havia editado as lições dojovem Lutero sobre a Carta aos Ro-manos, um texto sem dúvida degrande relevância. Tal parece ser otexto com o qual o jovem estudantede Teologia inicia a sua familiariza-ção com a obra de Lutero9.

    Não obstante, Heidegger nãosomente começa a familiarizar-secedo com a obra do Reformar se-não também com a literatura te-ológica protestante mais recente.Tal como assinala o próprio Hei-degger, no intento de ir mais adi-ante no prescrito em seu planode estudos teológicos, viu-se in-duzido a familiarizar-se com asinvestigações protestantes acercada história dos dogmas. Um pa-pel decisivo teriam desempenhadopara ele as modernas investigações

    acerca da história das religiões le-vadas a cabo por importantes au-tores protestantes como Gunkel,Bousset, Wendeland e Reitzsen-tein, aos quais teria que incluir-se os trabalhos críticos de AlbertSchweitzer10. Com razão se tempodido assinalar que estamos anteuma série de importantes autoresprotestantes que se distanciam dasíntese harmonizadora entre lute-ranismo e a fé burguesa no pro-gresso que propunha seu mestre,o importante representante da es-cola teológica liberal do séculoXIX, A. Ritschl11. Frente a isso tra-tavam de buscar pelo contrário umnovo acesso ao Cristianismo pri-mitivo, como no âmbito, no qualse revelaria a verdadeira naturezado mesmo. Algo sem dúvida queiria deixar uma profunda marca nabusca filosófico-religiosa do jovemHeidegger. Ademais, caberia recor-dar da mesma forma que uma vezabandonados os estudos teológicoso jovem Heidegger assistiu as clas-ses de Reitzenstein e de Schwartz(sobre o Evangelho de São João)que até então lhe tinham sido proi-

    9 Cfr. Pöggeler, O. “Heideggers Luthers-Lektüre im Freiburger Theologenkonvikt”, en A. Denker, H.H.Gander,H. Zaborowski (eds), Heidegger und die Anfänge seines Denkens, Karl Alber, Freiburg-München 2004, 185 ss.

    10 Heidegger, M. Gesamtausgabe 16, Klotermann, Frankfurt a. Main 2000, 41 (Doravante GA).11 Schaber, J. “Martins Heideggers Herkunft im Spiegel der Theologie – und Kirchen-geschichte des 19. Und

    beginnenden 20. Jahrhunderts”, en A.Denker, H.-H. Gander, H. Zaborowski, op. cit., 180.

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    bidas. Vemos desse modo que agrande curiosidade intelectual quecaracteriza o jovem Heidegger seestende da mesma forma ao pensa-mento protestante, bem moderno,bem referente às fontes.

    Sem dúvida, a aproximação aoprotestantismo é um processo pau-latino, que necessitará vários anosde gestação, mas nos parece perti-nente recordar os primeiros conta-tos com a obra de Lutero e da tra-dição protestante em geral. A in-vestigação atual logrou traçar umadescrição bastante mais precisa edetalhada do que era possível nopassado. Isso foi devido tanto àpublicação dos novos textos do jo-vem Heidegger como ao pacientelabor de análise e documentaçãode toda uma série de investiga-dores: Th. Sheehan, Th. Kisiel,H.Ott, A. Denker, entre outros12.Para nosso propósito nessas pági-nas é suficiente aludir a alguns fei-tos relevantes na evolução espiri-tual do jovem Heidegger. Cabe-ria constatar como começa defen-dendo numa série de pequenos ar-tigos, aparecidos em distintas pu-blicações, as posições oficiais man-

    tidas pela Igreja católica, incluindoa posição mantida ante a crise mo-dernista. Não obstante, logo vaiexperimentar como demasiado es-treitas as margens tanto teológicascomo filosóficas nos quais ele foieducado, no horizonte da neoesco-lástica. Assim, por exemplo, emsua correspondência com o profes-sor H. Rickert já em 1913 mostraclaramente sua recusa de uma vi-são demasiado estreita da filosofiamoderna. Protesta contra a visãocaricaturesca dessa filosofia mo-derna que oferece círculos dema-siado fechados. Querendo ofere-cer um caso concreto, não vacilaem assinalar que em toda a litera-tura filosófica católica, não existi-ria um só livro que tivesse compre-endido corretamente a Kant, aindaquando não fosse mais que de umaforma aproximada13. Em troca, opanorama filosófico alemão corres-pondente ao período em que o jo-vem Heidegger realiza seus estu-dos na Universidade de Friburgo,está cheio de estímulos intelec-tuais, tal como reconhecerá maistarde o próprio Heidegger: a se-gunda edição aumentada da Von-

    12 Especial importância possui nesse sentido o volume editado por A.Denker. H.-H. Gander e H. Zaborowski,tanto no que se refere a publicação dos textos do jovem Heidegger como pelos estudos que compõe a obra.

    13 Heidegger, M; Rickert, H. Briefe 1912 bis 1933, Klostermann, Frankfurt a. Main, 2002, 11-12.

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    tade de potência de Nietzsche, a tra-dução das obras de Kierkegaard,um crescente interesse por Hegel eSchelling, a publicação das obrasde Dilthey14. Caberia acrescen-tar que um dos motivos pelo qualHeidegger ficará agradecido ao seuprofessor de Teologia dogmáticaC.Braig é por havê-lo remetido àsInvestigações lógicas de Husserl queiriam desempenhar um papel emseu processo formativo15.

    Pensamos que tem razão MaxMüller quando assinala que umadas tensões que dominam a vidade Heidegger consiste em que poruma parte aspira profundamentea ser um pensador independente,livre de amarras extra filosóficas,e por outra permanece um pensa-dor religiosamente arraigado. Essatensão não tarda em aflorar na evo-lução do jovem Heidegger e comefeito o leva a conduzir uma re-lação conflitiva com a Igreja cató-lica. Ainda quando sua atitude jáse vinha perfilando desde temposatrás, uma situação de claro desen-contro com as posições da Igrejacatólica se vai produzir quando o

    Papa Pio X promulga o motu pro-prio no qual se declarava Santo To-más a única autoridade doutrinalda Igreja católica. Ainda que nãofosse um teólogo católico, o jovemHeidegger se encontrava naquelemomento em clara dependênciada Igreja católica tanto pela bolsaSchaezler que estava disfrutandocomo pelas expectativas profissio-nais dentro do marco da filosofiacatólica na Universidade de Fri-burgo16. Daí sua irritação anteuma norma, umas diretrizes quecondicionavam e restringiam sualiberdade de pensamento. A cartaque escreve a esse respeito em 19de julho de 1914 a seu amigo e pro-tetor, o sábio sacerdote e teólogoE.Krebs, não deixa lugar para dú-vidas acerca do estado de ânimo dojovem Heidegger. Entre outras coi-sas, ele escreve a seu amigo: “já so-mente faltava o motu proprio sobrefilosofia! Talvez na sua qualidadede acadêmico poderia você proporum procedimento melhor: extirparo cérebro a todos aos quais ocorrepossuir um pensamento indepen-dente e substitui-lo por uma salada

    14 GA 1,56.15 GA, 16,38 e 41.16 Cfr. Ott, H. Martin Heidegger: En camino hacia sua biografia, Alianza, Madrid 1992, 93.17 Ott, H. op cit., 93; A.Denker, H-H. Gander, H.ZAborowski, op.cit., 62.

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    italiana”17. Precisamente o jovemHeidegger sente apaixonadamenteesse imperativo de um “pensa-mento independente”, o que nãodeixava de colocá-lo em uma situ-ação conflitiva a respeito da Igrejacatólica de quem sempre havia de-pendido e seguia dependendo, in-clusive no que se refere a suas ex-pectativas profissionais.

    Precisamente o jovem Heideg-ger vai realizar sua tese doutoralsob a direção do titular da Cátedrade filosofia católica, o professor A.Schneider. Com vista a sua promo-ção a esse campo, uma vez doutor,Heidegger empreende o trabalhode habilitação sobre a Escolásticatardia que concluirá com um traba-lho sobre a teoria das categorias edo significado em Duns Scotus, noqual, como assinalará mais adiantetratará de conciliar a independên-cia da investigação científica comum catolicismo concebido mais li-vremente (freier gefassten Katholi-zismus)18. Uma maior liberdade fi-losófica e religiosa que sem dúvidaresulta perceptível contrastando otexto da habilitação com escritos

    anteriores, mas que não constituíaa única manifestação da evoluçãodo seu pensamento19.

    Será suficiente para o nossopropósito observar aqui duas coi-sas concernentes ao trabalho de ha-bilitação. Por uma parte o fato deque o dito trabalho concluía comum significativo capítulo acercado conceito de tempo na ciênciada história20. O descobrimento dahistoricidade por parte do jovemHeidegger vai ter consequênciasimportantes para seu pensamentofilosófico-religioso. Opera-se a esserespeito um giro no pensamentoheideggeriano. Em um princípiomostrou sua preferência pelo mo-delo matemático com o qual ha-via entrado em contato no iníciodos seus estudos filosóficos. Con-tudo, esta espécie de aversão ini-cial até a história vai experimentaruma profunda mudança mediantea leitura de Fichte e Hegel, e domesmo modo mediante o influxode pensadores coetâneos: Rickerte Dilthey21. A isso teríamos queacrescentar, por sua vez, o influxoda teologia protestante coetânea,

    18 GA 16,42.19 Zaborowski, H. : “Herkunft aber bleibt stets Zukunft. Anmerkungen zur religiösen und theologischen Dimen-

    sion des Denkweges Martin Heidegger bis 1919”, em A.Denker, H.-H. Gander, H. Zaborowski, op.cit., 150-151.20 GA 1,415-433.21 GA 16,39.

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    a qual já nos aludimos anterior-mente.

    Mediante a nova valorização dahistoricidade se questionava a pre-tensão da neoescolástica de situar-se no plano atemporal e eterno,tal como havia pretendido o pró-prio Heidegger em suas primeiraspublicações. É compreensível por-tanto que a nova tomada de cons-ciência contribuía por sua vez aum ulterior distanciamento da or-todoxia católica, especialmente vi-gilante então a causa da crise mo-dernista. Por outro lado também épreciso aludir a uma intencionali-dade que estaria subjacente a ocu-pação heideggeriana durante umtempo com o pensamento tardomedieval, e que conduziria a seutrabalho de habilitação sobre DunsScotus. Tal como assinalará Hei-degger uns anos mais tarde, me-diante o estudo da escolástica tar-dia, pretendia alcançar uma baseampla e concreta para compreen-são cientifica da história do surgi-mento da Teologia protestante, ecom isso também para a compre-ensão de aspectos centrais do Idea-lismo alemão22. Se confirmava as-

    sim o interesse do jovem Heideggerpor compreender melhor a natu-reza e o surgimento do protestan-tismo, e por sua vez sua jovem to-mada de consciência acerca do vín-culo entre a Teologia protestantee a filosofia do Idealismo alemão,problema sobre o qual ele voltaráoutras vezes mais.

    Uma vez concluída a habili-tação, passou três semestres comencargos docentes provenientes doâmbito da filosofia católica e desti-nado aos estudantes de Teologia23,com o apoio e recomendação doseu amigo e protetor E. Krebs, atéque ocorreu a mobilização de Hei-degger para a causa da PrimeiraGuerra Mundial. Dentro do estadode confrontação interna em quese encontrava o jovem Heidegger,nos interessa aqui resenhar doisfatos, ainda que de natureza dis-tinta, ambos ocorridos em 1917.Por um lado o matrimônio com El-fride Petri, de confissão luterana,fato que sem dúvida desempenhouum papel importante no estado devacilação e ambiguidade que se en-contrava o jovem Heidegger. Poroutra parte sabemos que a inicio

    22 GA 16,42.23 Casper, B.: “Martin Heidegger und die Theologische Fakultät 1909-1923”, en Freiburger Diözesan-Archiv 100

    (1980), 534.

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    de agosto desse mesmo ano reali-zou em Friburgo, num círculo pri-vado, uma apaixonada exposiçãosobre os Discursos sobre a religiãode Schleiermacher, o pai da teolo-gia liberal do século XIX. Sabemos,com efeito, por testemunho de H.Ochsner que Heidegger desenvol-veu uma comunicação no dia 01de agosto acerca do problema re-ligioso em Schleiermaher. O pró-prio Ochsner escrevia significati-vamente três dias mais tarde umacarta: “É uma pena que você nãotenha podido escutar a exposiçãoque fez Heidegger sobre o pro-blema religioso. Eu me encontrodurante toda a semana sob a im-pressão que me produziu”24.

    Schleiermacher não somente ha-via projetado sua poderosa sombrasobre o protestantismo do séculoXIX senão que no começo do séculoXX tomou uma nova atualidadegraças aos estudos de Dilthey e R.Otto. Heidegger, ainda quando sesitua num horizonte convergentecom a teologia dialética, dedica-sedurante um tempo ao estudo deSchleiermacher25. Do grau de fa-miliarização com a obra de Schlei-

    ermacher e com a bibliografia exis-tente sobre ele, dá boa conta suacorrespondência com sua amiga E.Blochmann que lhe pede conselhosobre o filósofo e teólogo protes-tante26.

    Dessa forma, Schleiermacheraparece muito cedo no processo deaproximação de Heidegger ao uni-verso protestante. No esforço porelaborar uma fenomenologia doreligioso, que vai ocupar Heideg-ger durante um tempo, Schleier-macher se apresentava como umareferência destacada. A autonomiado religioso frente à metafísica eà moral, tão nitidamente assina-lada por Schleiermacher, se mos-trava convergente com a via queestava transitando o jovem Hei-degger. Sem dúvida, a interven-ção de 1917 resulta significativa aesse respeito. Ademais, a corres-pondência mantida nesse mesmoano como H. Rickert também é re-veladora da situação espiritual emque se encontrava o jovem Hei-degger. Ao misturar as possibli-dades de Heidegger aceder a umacátedra universitária, Rickhert se-gue dando por suposta uma nítida

    24 Cfr. Pöggeler, O.: “Heideggers Begegnung mil Dilthey”, en Dilthey-Jahrbuch IV (1986-87), 129.25 Patriarca, S.: “Heidegger und Schleiermacher”, en Heidegger-Studies 18 (2002), 129-156.26 Heidegger, M; Blochmann, E.: Briefwechsel 1918-1969, Deutsche Schillergeselschaft, Marbach am Neckar 1990.

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    identidade católica por parte do in-teressado, e nesse sentido lhe es-creve: “Você é também enquantofilósofo um católico convencido edeve permanecer de todas as for-mas em uma Universidade que te-nha uma faculdade de Teologia ca-tólica”27. Heidegger vai contestá-lo reafirmando sua independênciaintelectual: “Eu não compartilhoum estricto ponto de vista católico,de forma que tivesse orientado, ouque vá orientar, a concepção e so-lução dos problemas, de acordocom pontos de vista extra cientí-ficos de caráter tradicional ou deoutro tipo. Buscarei e ensinarei averdade conforme a livre convic-ção espiritual” 28. Como vemos,Heidegger segue considerando-secatólico, mas alheio a uma com-preensão demasiado ortodoxa quesupusesse uma armadilha para sualiberdade de investigação. A úl-tima frase do parágrafo não deixadúvida: quer buscar a verdade se-guindo as diretrizes da “livre con-vicção espiritual”. Uma frase que,entre outras coisas, não deixa deevocar a doutrina do livre exame

    da tradição protestante.Segue-se o que Th. Kisiel deno-

    mina o Interregno (1917-19), du-rante o qual Heidegger, uma vezque participa da Primeira GuerraMundial, submete-se a um pro-cesso de esclarecimento ideológico,tanto de ordem filosófica como re-ligiosa29. Desse processo de autoe-xame dá conta uma carta que Hei-degger escreve em 09.01.19 a seuamigo e protetor E. Krebs, na qualvemos, uma vez mais, o jovem Hei-degger lutando por libertar-se dasamarras que restringiram sua liber-dade de investigação. A carta co-meça aludindo ao processo de cla-rificação ao qual havia se subme-tido durante os últimos anos: “Osúltimos dois anos, nos quais me es-forcei por esclarecer desde a base aminha postura filosófica, deixandode lado toda a tarefa científica par-ticular, me levaram a uns resulta-dos que, dado que estou ligado porum vínculo alheio à filosofia, nãopoderia ensinar livremente e nemcom suficiente convicção”30.

    Nessa situação Heidegger nãopode seguir evitando pronunciar-

    27 Heidegger, M.; Rickhert, H.: op. cit., 40.28 Ibid, 42.29 Kisiel, Th.: The Genesis of Heidegger´s Being and Time, University of California Press, Berkeley, Los Angeles,

    London, 1993, 72 ss.30 Ott, H.: op.cit., 117-18; A. Denker, H.-H.Gander, H. Zaborowski, op.cit., 67.

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    se de uma forma clara acerca desua nova posição filosófica e re-ligiosa. Confessa-o abertamentea Krebs que o “sistema do catoli-cismo” lhe resulta “problemático einaceitável”, ainda quando tem in-teresse em matizar que não ocorreo mesmo com o “cristianismo” ecom a “metafísica”, se bem enten-dida essa em nova acepção. Esta-mos sem dúvida ante um ponto dereferência importante na evoluçãoespiritual do jovem Heidegger. Seno ano de 1909 o era, enquanto su-punha o começo dos estudos teo-lógicos, 1919, dez anos mais tarde,também o será enquanto rupturacom o catolicismo, ao menos com oque Heidegger denomina seu “sis-tema”.

    Nesse contexto resulta oportunorecordar que E. Krebs, que haviacasado o jovem casal, já tinha sidoinformado previamente pela es-posa de Heidegger da crise religi-osa que o afetava. De um modosignificativo, ela não tem dúvidasem situar a dita crise em uma pers-pectiva protestante: “agora nósdois pensamos mais ao estilo pro-testante, por assim dizer, cremossem amarras em um Deus pes-

    soal ao qual rezamos no espírito deCristo”31, distante, matiza, não so-mente uma ortodoxia católica mastambém protestante.

    Parece-nos adequada a expres-são “ao estilo protestante”, pois,não se tratava de que Heideggerhouvesse se tornado protestantesem mais, ainda que isso, comoveremos, era a impressão que im-perava em determinados meios.Mas se tratava de uma aproxima-ção manifesta ao espírito protes-tante, sobretudo do jovem Lutero.Voltando a carta de Heidegger aKrebs, podemos constatar que con-fessa haver chegado a convicção docaráter problemático e inaceitáveldo “sistema do catolicismo” me-diante a análise do conhecimentohistórico. Já nos encontramos ante-riormente com o problema do des-cobrimento da historicidade porparte do jovem Heidegger e a to-mada de contato com as correntesprotestantes da história dos dog-mas. Vimos como tal constataçãoencaixava mal na visão neoescolás-tica imperante na Igreja católica,com sua visão atemporal e eternados problemas. Vemos agora Hei-degger, no momento de distanciar-

    31 Ott, H.: op.cit., 120;

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    se abertamente da Igreja Católicareferir-se ao “sistema” do catoli-cismo, por assim dizer, a sua es-trutura dogmática e supratempo-ral. Heidegger considerava que osistematismo da Escolástica punhaem perigo a imediatez da vida re-ligiosa, sacrificando a religião à te-ologia e aos dogmas. Tais são ostermos com os quais se vai ma-nifestar um pouco mais tarde: “aEscolástica supõe uma forte ame-aça precisamente contra a imedia-tez da vida religiosa, com o conse-guinte esquecimento da religião àforça da teologia e dos dogmas”32.Frente à visão sistemática e dogmá-tica do catolicismo, o jovem Hei-degger, em sintonia com correntesprotestantes coetâneas, vai subli-nhar enfaticamente o valor refe-rencial do Cristianismo primitivo ea confrontação imediata com ele.

    Em respeito a essa questão ca-beria recordar que duas atitudesfundamentais recorrem à históriadas relações entre a fé e o pensa-mento filosófico através dos tem-pos33, e a duas, de algum modo,se remetem à figura central de SãoPaulo. Uma primeira se esforçou

    por conciliar fé e razão, por mos-trar o caráter racional da fé. Aeste respeito caberia remeter-se afamosa passagem da Carta aos Ro-manos 1,20, onde referindo-se apossibilidade do conhecimento dodivino assinala: “Pois o seu invi-sível, ou seja, sua força eterna esua divindade, é evidente à inteli-gência, desde a criação do mundo,por suas obras, de tal modo quesão indesculpáveis”. A partir daise vai elaborando a maior parte dopensamento medieval, guiando-sepelo lema: fides quaerens intellec-tum. Nesse plano teria que colocarnão somente a escolástica medie-val mas também a neoescolásticana qual havia se formado o jovemHeidegger, visto que ele a com-partilhou durante um tempo. Porsuposto, teria que incluir tambémaqui pensadores modernos comoHegel, que pretenderam levar a ra-cionalização do cristianismo muitomais adiante do que o fez a Esco-lástica ou a neoescolástica.

    Frente a isso, uma segunda linhade pensamento vai recorrer tam-bém a história das relações entreo Cristianismo e a filosofia acen-

    32 Heidegger, M: Estudios sobre mística medieval, Siruela, Madrid 1997, 227.33 Cfr. Zaborowski, H. op.cit., 136-137.

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    tuando sobretudo a transcendên-cia e o mistério divinos, a corrup-ção da natureza humana, o ca-ráter “escandaloso” da fé cristã,etc. Também nesse caso caberiaremeter-se a uma conhecida pas-sagem paulina, essa pertencendo aprimeira Carta aos Coríntios, ondese afirma: “Posto que os judeus pe-dem sinais e os gregos buscam sa-bedoria, nós, em troca, predicamosum Cristo crucificado, escândalopara os judeus e loucura para ospagãos” (1 Cor. 1,22). A partir daise vai perfilar toda uma linha in-terpretativa que vai olhar com des-confiança as conciliações irenistasentre a razão e a fé, para ressaltarem vez disso o caráter intempes-tivo da fé. Uma atitude que irá en-contrar logo uma formulação pa-radigmática em Tertuliano quandoperguntava enfaticamente: “o quetem a ver Atenas com Jerusalém, oque tem a ver a Academia com aIgreja?”.

    Mesmo sem chegar a esses ex-tremos tal vai ser a linha agostini-ana que vai deixar uma profundamarca na história do pensamento,da mística medieval, dos Reforma-

    dores protestantes, de Pascal e Ki-erkegaard. Também Heidegger sesentirá feudatário de toda essa li-nha, uma vez que se foi distanci-ando pouco a pouco do horizonteda neoescolástica na qual haviase formado inicialmente. Distan-ciamento que, como indicado, oirá conduzir, na altura de 1919, aromper com o “sistema do catoli-cismo”.

    Naquela época tampouco a Hus-serl lhe escapavam as mudançasoperadas no espírito do seu dis-cípulo. Naquela altura Husserl eHeidegger já se encontravam bas-tante familiarizados entre si nãosomente a nível filosófico senãotambém em nível pessoal. Hus-serl estava assim em condições deconstatar as transformações que ti-nham tido lugar em Heidegger anível religioso. Assim se deixa verna carta que escreve a R. Otto em05.03.19. Refere-se nela Husserl as“transformações radicais” que sehaviam operado no espírito de Hei-degger, naquilo que se refere a suasconvicções religiosas. Consideravaademais a Heidegger uma perso-nalidade realmente religiosa, por

    34 Cfr. Ochwadt, C und Tecklenborg, E. (eds), Das Mass der verborgenen. Heinrich Ochsner 1891-1970 zum Gedä-chtnis, Charis, Hannover 1981, 157.

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    mais que predominem nele inte-resses teóricos, filosóficos34. Hus-serl especifica um pouco mais adi-ante a Otto em que consistem astransformações radicais as quais sehavia referido. Tratar-se-ia da pas-sagem de Heidegger ao campo doprotestantismo, algo que o próprioHusserl não duvidava em saudarna sua condição de “cristão livre” ede “protestante não dogmático”35.

    Estes últimos qualificativos po-deriam sem dúvida ser aplicadosao próprio Heidegger, naquele mo-mento de sua evolução. Teria querecordar, não obstante, que porgrande que tenha sido sua proxi-midade ao universo protestante,Heidegger nunca se fez formal-mente protestante, nunca saiu daIgreja católica e nesse sentido se-guiu pagando seus impostos comocatólico ao largo de sua vida, man-teve múltiplos contatos com suasraízes católicas, como é o caso, porexemplo, de sua relação frequentecom a Abadia de Beuron, próximado seu lugar de nascimento, e porsuposto caberia mencionar a peti-ção feita a seu conterrâneo o pro-fessor e sacerdote católico B.Welte

    para que falasse em seu enterro,como assim ocorreu. Na própriacarta a Krebs de janeiro de 1919,Heidegger deseja matizar o sentidode sua ruptura com o sistema docatolicismo assinalando que a mu-dança em suas posições fundamen-tais não “o conduziram a substituiro juízo nobre e objetivo e a estimado mundo católico por uma polê-mica de apóstata, amarga e esté-ril”36. No marco dessa estima domundo católico se encontrava a ex-ploração mais a fundo dos tesourosdo pensamento e das místicas me-dievais, em cuja investigação con-siderava que havia pendente muitotrabalho por fazer.

    A referência à Reforma nos cursosde Friburgo: 1919-1923

    Os cursos dados na Universi-dade de Friburgo entre 1919 e osemestre de verão de 1923 corres-pondem a um período de grandecriatividade e busca intelectual porparte de Heidegger e também re-sultam particularmente relevantesnaquilo que se refere a temáticaque aqui nos ocupa. Na aberturade horizontes em que se move, na-

    35 Ibid., 159.36 Ott, H.: op. Cit, 118; A.Denker, H.-H. Gander, H. Zaborowski, op. cit., 67.

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    queles anos tão estimulantes que seseguiram à Primeira Guerra Mun-dial, Lutero e a Reforma consti-tuem uma referência constante nosseus cursos, podendo ver comoo Reformador é citado junto comaqueles autores que mencionamosanteriormente como constituindouma alternativa aquela represen-tada pela Escolástica medieval: SãoPaulo, Santo Agostinho, os místicosmedievais, Schleiermacher, Kier-kegaard37. O próprio Husserl olhacom complacência esse rumo dopensamento heideggeriano e o es-timula. Assim quando em 1921 re-cebe ajuda financeira de um amigocanadense, separa uma parte paraque Heidegger possa comprar aedição de Erlangen das obras deLutero.

    Ademais, esse período ao qualnos referimos coincide com o nas-cimento da teologia dialética coma qual Heidegger vai ter numero-sos pontos de convergência: a co-nexão com as abordagens de Ki-erkegaard, o redescobrimento doespírito originário da Reforma e,em definitivo, a aproximação ao

    Cristianismo primitivo. Basta re-cordar que o comentário de KarlBarth à Carta aos Romanos, o ver-dadeiro manifesto da nova teolo-gia, se publica nessa época: aprimeira edição em 1918 e a se-gunda em 1921. K. Löwith che-gou a escrever que este comentá-rio constituía para Heidegger umdos poucos sinais de nova vida es-piritual38. Mais adiante, no pe-ríodo de Marburgo, vai colaborarcom um dos representantes maisqualificados da nova corrente teo-lógica, R.Bultmann. Isso não querdizer, obviamente, que não hou-vesse por sua vez notáveis diferen-ças com os representantes da teo-logia dialética, como ocorre sobre-tudo com K. Barth.

    Em todo o caso, os represen-tantes da teologia dialética ha-viam percebido corretamente, naopinião de Heidegger, a relevân-cia e a originalidade da Reforma.Pelo contrário, não vai duvidar emopor-se a esse respeito a autorestão representativos do momentocomo Troeltsch e Dilthey. Heideg-ger considera que se os reprove

    37 Buren, J. van J: “Martin Heidegger, Martin Luther”, en Th. Kisiel and J. van Buren (eds), Reading Heideggerfrom the Start. Essays in his Earliest Thought, State University of New York, New York, 1994, 159.

    38 Cfr. Barash, J.A.. : Heidegger und der Historismus. Sinn der Geschichte und Geschichtlichkeit des Sinns,Königshausen & Neumann, Würzburg 1999, 153.

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    com razão uma vez que não ti-veram “compreensão alguma” noque concerne a Lutero. Teriamdeixado o Reformador excessiva-mente preso nas coordenadas daIdade Média sem ver suficiente-mente sua dimensão renovadora39.Com efeito, segundo Dilthey, Lu-tero teria de ser considerado maisum restaurador da antiga fé e dosvelhos dogmas do que um pre-cursor dos valores modernos, pormais que tenha lutado a partir dedentro das velhas estruturas paraabrir-se a um novo tipo de rela-ções com a Divindade40. Maisdecidido todavia se mostra nessesentido um autor como Troeltschpara quem o protestantismo origi-nário estaria ainda profundamenteestabelecido no universo medie-val, de forma que os séculos XVIe XVII já não pertenciam, certa-mente, a Idade Média mas tam-pouco a Moderna. Seriam melhorséculos de transição que corres-ponderiam a “época confessionalda história europeia”41. A IdadeModerna somente começaria pro-priamente com o Iluminismo.

    No juízo de Heidegger nem Tro-

    eltsch nem Dilthey souberam fa-zer a devida justiça a figura deLutero, a sua relevância e ao seucaráter inovador. Como veremos,para Heidegger a Reforma luteranaterá profundas implicações não so-mente para a compreensão do Cris-tianismo originário, senão tambémna hora de um desmonte da histó-ria da metafísica. Assinalaremosde momento que já para o jovemHeidegger existe uma espécie deparalelismo entre a obra de Luteroe a concepção filosófica de Descar-tes, o reconhecido fundador da fi-losofia moderna. Trata-se de umbinômio com o qual nos depara-mos com frequência na história dafilosofia alemã a partir do Ilumi-nismo, tal como é o caso de He-gel ou de Feuerbach, que veem aLutero e a Descartes como porta-vozes complementares da Moder-nidade. Também Heidegger o faz,desde seu próprio horizonte filo-sófico. Deixando ainda de lado oHeidegger maduro, caberia referir-mos agora ao curso de 1919 A ideiade filosofia e o problema da visão demundo no qual depois de referir-seas relações entre o princípio cien-

    39 GA 60,27.40 Dilthey, W. : Hombres y mundo en los siglos XVI e XVII, FCE, México 1967, 52.41 Troeltsch, E. : El protestantismo y el mundo moderno, FCE, México 1967, 52.

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    tífico e religioso no marco do pen-samento medieval, fala da divisãode ambos âmbitos no começo daModernidade: ainda que Descar-tes protagonize a concentração ra-dical do pensamento em si mesmo,Lutero daria expressão a nova si-tuação de consciência religiosa42.Desta forma, frente as vacilaçõese compromissos de autores comoDilthey e sobretudo Troeltsch, o jo-vem Heidegger não duvida em co-locar Lutero no horizonte da mo-dernidade.

    As referências heideggerianas aReforma acentuam a potenciaçãoda segunda linha que temos faladoao nos referirmos as relações en-tre fé e razão ao largo da história.Lutero viria a constituir um rele-vante capítulo na linha que subli-nha a impotência do homem antea transcendência e ao mistério di-vinos. Nesse sentido a referên-cia às teses paulinas na primeiraCarta aos Coríntios acaba se im-pondo à interpretação tradicionalda Carta aos Romanos 1,20. Hei-degger é bem consciente da rele-vância história desse último textoao largo do pensamento cristão,

    na elaboração da “filosofia” patrís-tica e na formulação da dogmá-tica cristã. O texto paulino foitomado como critério legitimadorda ascensão platônica do sensívelao suprassensível. Mas Heideg-ger considera que se produziu umamá intelecção do texto paulino eque teria sido Lutero “o primeiro aentendê-lo realmente”43.

    Teria sido Lutero quem teriavislumbrado uma nova compre-ensão do Cristianismo primitivo,um Cristianismo que durante umtempo vai empunhar um grandevalor referencial para Heideggernão somente de ordem religiosa,mas também filosófica. Mas, fa-lando inclusive de Lutero, Heideg-ger opta pelo jovem Lutero, poiscom o passar do tempo também opróprio Reformador havia se tor-nado vítima do peso da tradição ecolocou as bases da chamada esco-lástica protestante cuja influênciase fez sentir poderosamente na his-tória da filosofia alemã.

    Falando do jovem Lutero, Hei-degger se satisfaz em referir-se demodo especial a Disputatio de Hei-delberg de 1518. Nela encontra

    42 GA 56/57, 18.43 Heidegger, M.: Estudios sobre mística medieval, p. 187.

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    Heidegger uma distinção luteranada qual vai permanecer feudatárioo resto da sua vida, a hora de fun-damentar as relações entre a fé e opensamento filosófico. Das 40 te-ses que integram a Disputatio, Hei-degger destaca três: a 19, 21 e a22. Na 19 assinala o jovem Luteroque não é digno de ser chamado deteólogo aquele que trata de com-preender o invisível de Deus atra-vés das criaturas (Non ille digneTheologus dicitur, qui invisibiliaDei per ea, quae facta sunt, in-lellecta conspicit). A corrupçãoda natureza humana faria que issofosse assim. Tal estado de coisasdava condições a Lutero para esta-belecer a famosa distinção entre o“theologus gloriae” e o “theologuscrucis”. Ainda que o primeiro al-terasse a ordem das coisas, cha-mando bom o mau, o segundo,pelo contrário, consideraria as coi-sas como são (Theologus gloriae di-cit malum bonum et bonum ma-lum, Theologus crucis dicit quodrest est). Lutero optava decidida-mente pela Theologia crucis, peloescândalo e loucura do Cristo cru-cificado a que se referia a primeira

    Carta aos Coríntios. Pelo contrá-rio aquela sabedoria que trata decompreender o invisível de Deus apartir das obras “infla, obceca e en-durece”, segundo reza a tese 22 damencionada Disputatio (Sapientiailla, quae invisibilia Dei ex operi-bus intellecta conspicit, omnino in-flat, excaecat et indurat)44. Comoestá apontado, se trata dos fun-damentos que Heidegger tornaráseus, de modo que não sem razãoalgum autor irá falar de Philosophiacrucis, ao referir-se ao pensamentoheideggeriano dessa época45, so-bretudo a intepretação das cartasde São Paulo. Um pensamento quemesmo no caso de Lutero dialoganão somente com São Paulo, mastambém com Santo Agostinho, amística medieval, a Baixa Escolás-tica. Um diálogo que Heidegger,claro está, estende a outros muitosautores, entre eles ao próprio Re-formador e a Kiekegaard.

    A fé na visão luterana se revelavamais como fiducia, como confiança,ainda que o catolicismo, com seuenfoque dogmático e sistemático,se apresentava melhor como um“ter por verdadeiro”, o qual con-

    44 Ibid., 187-88.45 Cfr. Brejdak, J. Philosophia crucis. Heideggers Beschäftigung mit dem Apostel Paulus, Peter Lang, Frankfurt a.

    Main 1996.

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    duzia frequentemente a suplanta-ção da religiosidade pela teologia.Uma teologia que para Heidegger,seguindo a Lutero, vai em depen-dência constante da filosofia. Porisso, em sintonia com o espírito dojovem Lutero, não duvida em es-crever: “Até a data de hoje a te-ologia não encontrou uma posiçãobásica, de caráter teórico e originá-rio, acorde com a natureza originá-ria de seu objeto”46. A esse respeitoparece pertinente recordar umachamada expressiva que figura nacarta que lhe escreve Karl Löwithem 19 de agosto de 1921, segundoa qual Heidegger se consideraria asi mesmo como um “teólogo cris-tão”, sublinhando o “logo”47. Talcomo assinala Gadamer, com estafrase parece referir-se Heidegger aseus esforços por liberar-se da teo-logia imperante, na qual tinha sidoeducado, para poder converter-seem um cristão. O jovem Lutero vi-ria a ser uma espécie de guia parapoder abordar esta tarefa48, atra-

    vés de uma apropriação fenomeno-lógica.

    Esta relação com Lutero remeteHeidegger ao cristianismo primi-tivo, como experiência origináriaque chegou a fasciná-lo, sobre-tudo em sua versão paulina. Narealidade Heidegger parece obce-cado por buscar as experiênciasoriginárias, os autênticos começose origens que a tradição foi en-cobrindo e desfigurando paulati-namente. Isso valia tanto paraa teologia como para a filosofia,de forma que se pode afirmarque fosse qual fosse o tema abor-dado nos seus cursos, suas análi-ses sempre se teriam encaminhadopara por de manifesto as experi-ências mais originárias que sub-jaziam às formulações conceituaisque tinham se produzido ao largoda tradição49.

    Tal é o caso do Cristianismo pri-mitivo, com sua manifestação ori-ginária, que, a juízo de Heidegger,havia sido muito rapidamente in-

    46 GA 60,310.47 Cfr. Papenfuss, D. und Pöggeler, O. (eds), Zur philosophischen Aktualität Heideggers II, Klostermann, Frankfurt

    a. Main 1990, 29.48 Gadamer, H.G. “Die religiöse Dimension” em Gesammelte Werke III, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), Tubingen

    1987, 310. Tal com assinala na Fenomenologia da vida religiosa somente com a compreensão fenomenológica seabrirá um novo caminho para a Teologia. Este trabalho fenomenológico pretende abrir uma nova via de acesso àcompreensão do Novo Testamento, mas sem pretender uma compreensão última, que somente poderia ser alcan-çada mediante uma genuína experiência religiosa. (Cfr. GA 60,67).

    49 Gadamer, H.G. “Die Marburger Theologie”, en Gesammelte Werke III, 199.

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    vadida pela ciência antiga, especi-almente pela filosofia platônica earistotélica. Deste modo, formou-se ao largo da Escolástica uma The-ologia gloriae que havia perdido devista o sentido da relação do Cris-tianismo originário com a Theolo-gia crucis. No ambiente intelec-tual em que se desenvolve o jovemHeidegger estava o problema dahelenização do cristianismo. Bas-taria a respeito recordar o nomede A. von Harnack50. Heideggernos oferece a sua própria versãodo problema. A mensagem ori-ginária do Cristianismo primitivo,em sua independência da filosofiagrega, somente emergiria de tempoem tempo mediante “erupções vi-olentas”, tal como se deve no-tar em autores assinalados, comoSanto Agostinho, Lutero ou Kier-kegaard51, por mais que o Cristi-anismo no qual cria Santo Agosti-nho já estivesse muito afetado pelogrego. Seria por isso o jovem Lu-tero o que serviria de um modo es-pecial de guia a Heidegger na ta-refa de desconstrução da Theologiagloriae patrística e medieval, com

    a ajuda assinalada de Kierkegaard,em quem encontrou refletidos osseus próprios temas52. A meta as-sim que teria de encaminhar-se adesconstrução da Teologia era con-duzir até uma teologia originari-amente cristã, livre da intromis-são da ciência grega (griechentum-freie)53. Dai a atenção que o jovemHeidegger dedicou às cartas de SãoPaulo, os documentos mais antigosdo Novo Testamento.

    Esta volta, propiciada pelo jo-vem Lutero, à experiência originá-ria do Cristianismo, iria ter cla-ras implicações para Heidegger, namedida em que a desconstruçãoda teologia o era por sua vez adesconstrução da filosofia uma vezque essa havia invadido o âmbitoteológico. Tinha sido Lutero oque desde uma perspectiva teoló-gica havia começado o desmonteda tradição metafísica ocidental.Um propósito que convergia coma vontade de Heidegger de avan-çar, também desde o horizonte fi-losófico, mais além da conceitu-alidade proporcionada pela tradi-ção, em busca das experiências ori-

    50 Cfr. Zaccagnini, M. “Il Cristianesimo delle origini. Una linea di conexione tra Harnack e Heidegger?, en Teoria2 (1997), 51-66.

    51 GA 58, 205.52 Gadamer, H.G. “Die religiöse Dimension”, 314.53 GA 59,91.

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    ginárias. Nesse sentido, o jovemLutero vai constituir durante umtempo uma espécie de modelo ealiado para Heidegger, em seu ra-dicalismo filosófico. Dai a sig-nificativa confissão que figura nocurso Ontologia (hermenêutica dafacticidade) onde Heidegger assi-nala: “Companheiro na busca foio jovem Lutero e modelo Aristóte-les a quem aquele detestava. Re-cebi impulsos de Kierkegaard e osolhos me proporcionou Husserl”54.Uma confissão que sem dúvida re-flete bem a complexidade do uni-verso ideológico do jovem Heideg-ger. Ademais não era a única vezque Heidegger fazia convergir osnomes de Lutero e Aristóteles. As-sim, as Interpretações fenomenológi-cas sobre Aristóteles, ao abordar oproblema da “destruição” da histó-ria da ontologia, faz começar o pro-cesso com a quebra da tradição me-tafísica mediante a intervenção dojovem Lutero55. Por isso J. van Bu-ren não duvidou em escrever gra-ficamente que o jovem Heideggerviria a considerar-se a si mesmocomo uma espécie de “Lutero da

    metafísica ocidental”56.A esse respeito se há de ter pre-

    sente da mesma forma que a açãodesconstrutiva protagonizada porLutero vai ter outras implicaçõesfilosóficas para o jovem Heidegger.A abertura a uma nova compreen-são do Cristianismo primitivo pro-piciada pelo Reformador se mos-trará relevante para a compreen-são da fenomenologia que Heideg-ger cultiva durante esses anos nosquais se sentiu fascinado pela ex-periência da vida atuante na co-munidade cristã primitiva57. Aexperiência da vida dessa comu-nidade vem a constituir uma es-pécie de paradigma que o jovemHeidegger denominou bem como“facticidade histórica” ou “existên-cia fática” como objeto da aná-lise fenomenológica. Desta forma,ainda quando fora através de umrodeio, a intervenção luterana se-guia mostrando-se fecunda para oprojeto filosófico de Heidegger.

    Se o encontro com as colocaçõesdo jovem Lutero havia conduzidoà desconstrução da Theologia glo-riae até a que se havia deslizado

    54 GA 63,5.55 Heidegger, M. “Phänomenologische Interpretationen zu Aristóteles” en Dilthey-Jahrbuch 6 (1989), 235-74.56 Buren, J. van, “Martin Heidegger, Martin Luther”, 191; assim mesmo: The Young Heidegger. Rumor of the

    Hidden King, Indiana University Press, Bloomington and Indianopolis 1994, 167.57 Gadamer, H.G. “Die religiöse Dimension”, 310.

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    prontamente a história do Cristi-anismo, Heidegger opina, por ou-tra parte, que a recepção poste-rior do legado do jovem Lutero ha-via decaído rapidamente do nívelde percepção alcançado pelo Re-formador em sua primeira época.Já temos visto como segundo Hei-degger o próprio Lutero em suaidade madura não havia sido fielàs intuições de sua juventude. Pas-sando rapidamente a chamada Es-colástica protestante. Se um pri-meiro movimento havia sido dadopelo Lutero maduro, outro, de es-pecial relevância, havia sido reali-zado por Melanchton, o reforma-dor que protagonizou o diálogo en-tre a Reforma e o Humanismo, etornou a utilizar de motivos aris-totélicos para interpretar o Cristi-anismo. Sem dúvida na Escolásticaprotestante se assumiam e se de-senvolviam ulteriormente os mo-tivos luteranos, mas por sua vezse inibiam as colocações iniciaisdo Reformador58, de modo que so-mente de uma forma limitada sehavia alcançado “uma explicaçãogenuína da nova base religiosa fun-damental de Lutero e suas possi-

    bilidades imanentes”59, resultandoassim a condição de Lutero como“erupção violenta” na história doCristianismo, como um fenômenoque não tem fácil continuidade.

    Desde esta perspectiva, Heideg-ger sublinha que a dogmática pro-testante, unida a elementos aris-totélicos fundamentais, constitui osolo sobre o qual surgiu o Idea-lismo alemão. Segundo apareceindicado, Heidegger havia se pre-ocupado muito cedo com a cone-xão entre Reforma e o Idealismoalemão. Agora volta a ressaltartal vinculação. Trata-se de umacircunstância que afetaria a qua-tro grandes representantes do Ide-alismo. Assim, considera que senão se quer converter a Kant emum mero armador de um teóricoconhecimento, haveria de ser en-tendido “teologicamente”. De fatoestava então no ambiente da con-cepção de Kant como “filósofo doprotestantismo”. A esse respeitoo próprio Heidegger junto com J.Ebbinghaus, vai dirigir no semes-tre de verão de 1923 um Seminá-rio sobre “Os fundamentos teoló-gicos da Religião dentro dos limites

    58 GA 61, 7.59 Heidegger, M. “Phänomenologische Interpretationen zu Aristóteles” en Dilthey-Jahrbuch 6 (1989), 250.

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    da mera razão”, que explorava o in-fluxo de Lutero sobre Kant e o Ide-alismo alemão60.

    No que diz respeito a outros ide-alistas, Fichte, Hegel e Schelling,Heidegger vai recordar sua proce-dência da Teologia e a circunstân-cia de que recebem dela impul-sos fundamentais de sua especu-lação. Tal Teologia era teologiaprotestante emanada da Reformae convertida já em escolástica pro-testante, uma escolástica em quenão somente se haviam introdu-zido elementos aristotélicos senãoque se encontrava claramente in-fluenciada pelo espírito da Auf-klärung. Caberia dizer sem dú-vida que essa escolástica protes-tante veio a supor, também ela,uma determinada versão da The-ologia gloriae. Mas muito maiso vão a supor as construções fi-losóficas que os grandes idealis-tas irão elaborar como herdeirosdo legado protestante, se bem quenão em todos isso ocorre com igualintensidade. A Theologia crucisse transmuta em Theologia spiritus,em uma nova modalidade da Theo-

    logia gloriae, sem que tal afirmaçãotenha que supor uma visão reduci-onista e simplificadora de um mo-vimento filosófico tão rico e com-plexo.

    Se isso pode aplicar-se, em maiorou menor medida, a todos os gran-des representantes do Idealismoalemão, isso é certo de uma formaespecial naquilo que diz respeitoa Hegel, pois caberia assim dizerque sua filosofia vem a constituira máxima expressão de uma The-ologia gloriae, na medida em que,a diferença de todas as versões damesma no passado, pretende umacompreensão racional do Absoluto,sem que haja propriamente lugarpara a transcendência e para o mis-tério61. Prescindindo das nuan-ces, nas quais não podemos en-trar aqui, caberia afirmar que afilosofia hegeliana vem a consti-tuir uma espécie de parusia do Ab-soluto, nas antípodas da Theolo-gia crucis luterana, de modo, se-gundo aparece apontado, o legadoprotestante tende a ficar conver-tido, no marco da filosofia hegeli-ana, em uma transcrição filosófica,

    60 Buren, J. van, “Martin Heidegger, Martin Luther”, 159.61 Cfr. Riedel, M: “Reformation und deutscher Idealismus. Martin Heidegger zwischen Luther und Melanch-

    ton”, en H. Seubert (ed.), Heideggers Zwiegespräch mit dem deutschen Idealismus, Böhlau, Köln, Weimar, Wien 2003,15-24.

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    por muito presente que siga es-tando ela no espirito da Reforma. Ésuficiente acrescentar aqui o indi-cado começo quando Hegel na Filo-sofia do Direito descreve a compre-ensão filosófica como equivalentea “conhecer a razão com a cruzdo presente”62 e está aludindo comisso ao emblema com o qual Lu-tero quer simbolizar a sua visão doCristianismo, e constava entre ou-tros elementos, uma rosa branca euma cruz negra. A cruz negra sim-boliza a mortificação que se exigedo cristão, enquanto a rosa brancafaz referência a alegra da reden-ção. Para Hegel também a filo-sofia “redime” mas o faria conhe-cendo racionalmente a realidade.Nós nos encontraríamos então bemdistantes da Theologia crucis lute-rana. Caberia concluir por issoque se o jovem Heidegger se vê emnecessidade de confrontar-se com aTheologia gloriae para poder aces-sar a mensagem do Cristianismoprimitivo, também se via obrigadoa confrontar-se com o destino datradição protestante ao largo domundo moderno. Eis aqui umtema no qual, em concreto, assis-timos um contraste inequívoco en-

    tre Hegel e Heidegger, pois estevai permanecer fiel ao largo de suaobra a distinção luterana entre aTheologia gloriae e a Theologia cru-cis, identificando-se com os postu-lados dessa última. Seria com Kier-kegaard que melhor iria se identifi-car Heidegger nesse ponto, a buscade uma maior fidelidade ao espí-rito originário da Reforma.

    O período de Marburgo

    Pensamos que a etapa em que areferência a Lutero desempenhouuma maior relevância no pensa-mento heideggeriano foi aquela aqual acabamos de nos referir, en-tre 1919 e 1923. Não obstante, se-gue desempenhando um papel im-portante na etapa seguinte: 1923-28, correspondente à estância dofilósofo em Marburgo. É desdelogo a etapa na qual a referênciaao legado protestante por parte deHeidegger vai alcançar uma maiornotoriedade, a causa das interven-ções públicas que protagoniza, e deuma forma especial devido a suacolaboração com R. Bultmann. Es-tamos sem dúvida ante uma etapaambivalente a este respeito, mas

    62 Hegel, G.W. Fr.: op.cit., 26.

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    importante em todo caso.De novo nos encontramos com

    Husserl e sua valorização da re-levância que a referência protes-tante possuía para o jovem Hei-degger. Cabe referir-se nesse sen-tido a carta que em 1.02.22 ele es-creve a Natorp, avaliando a conve-niência de que Heidegger se mu-dara para a Universidade de Mar-burgo. Entre outras coisas, assi-nala nela que Heidegger não po-deria abordar adequadamente nacatólica Friburgo o relevante temade Lutero. Problema distinto se-ria se se mudasse para Marburgoonde poderia constituir um impor-tante vínculo entre a filosofia e ateologia protestante63. Husserlnão se equivocava em suas expec-tativas. Ainda quando o interlo-cutor principal com a Faculdadede Teologia protestante não foraR. Otto mas R. Bultmann, Heideg-ger vai se converter numa impor-tante referência para o diálogo – eo questionamento – com a Facul-dade de Teologia. Gadamer, queconhecia bem a situação, assinala

    a esse respeito: “Especialmente fe-cundo foi o impulso renovador queHeidegger supôs para a Faculdadede Teologia de Marburgo”64. Tam-bém a conhecia bem o discípulode Bultmann H. Schlier, e mesmoquando já era morto Heidegger, se-gue recordando todavia a impres-são que o filósofo havia produzidoem seus ouvintes, sublinhando deuma forma geral o conhecimentode Lutero que era ostentado emsuas intervenções65.

    R. Bultmann, a grande persona-lidade da Faculdade de Teologiacom a que Heidegger vai estabe-lecer uma estreita relação, provi-nha da teologia liberal e acabavade tomar contato com a teologia di-alética quando Heidegger chegoua Marburgo. É impressionante arapidez com que ambos os pensa-dores entraram em contato e esta-beleceram as bases para uma cola-boração que se prolongou até queHeidegger retorna a Friburgo parasuceder a Husserl. Quando issoocorre, Heidegger vai escrever aBultmann que “somente a relação

    63 Kisiel, Th.: “The Missing Link in the Early Heidegger”, em J. Kockelmans (ed.), Hermeneutic Phenomenology:Lectures and Essays, Center for Advanced Research in Phenomenology, Washington D.C., 1988, 7.

    64 Gadamer, H.G.: Mis años de aprendizaje, Herder, Barcelona, 1996, 42.65 Schlier, H.: “Denken im Nachdenken”, en G. Neske (ed.), Erinnerung an Martin Heidegger, Neske, Pfullingen

    1977, 219.66Cfr. Poggeler, O.: “Heidegger und Bultmann. Philosophie und Theologie”, en M. Happel (ed.). Heidegger – neu

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    pessoal” com ele havia tornado di-fícil tomar a decisão de retornar aFriburgo66.

    Também é significativo o motivoque acrescenta Bultmann para ex-plicar a rápida colaboração entreambos: a comum valorização deKierkegaard e do teólogo protes-tante Hermann67. A familiaridadede Heidegger com o mundo protes-tante desempenhou um papel im-portante desde o principio. Comoresultado disso, Heidegger vai par-ticipar, já no primeiro semestre desua estadia em Marburgo, o semes-tre de inverno 1923-24, no Semi-nário que dirigia Bultmann sobreo problema da ética em São Paulo.Heidegger vai intervir ele mesmocom duas comunicações que, deforma significativa, vão versar so-bre Lutero, mas concretamente so-bre o problema do pecado em Lu-tero.

    As comunicações de Heideg-ger tiveram lugar em fevereirode 1924, mas já em dezembro de1923 Bultmann escreveu entusias-ticamente acerca das contribuiçõesde Heidegger ao desenvolvimento

    do Seminário e da mesma formaacerca do seu “protestantismo”.Quiçá valha a pena reproduzir inextenso um fragmento devido a re-levância que possui: “O Seminárioé esta vez especialmente instrutivoporque participa o nosso novo filó-sofo Heidegger, um discípulo deHusserl. Provêm do catolicismomas é totalmente protestante, oque demonstrou recentemente nodebate que seguiu a conferência deHermelink sobre Lutero e a IdadeMédia. Não somente possui um co-nhecimento excelente sobre a Es-colástica senão também de Lutero,e colocou até certo ponto Herme-link em apuros: era manifesto quehavia apreendido o problema deuma forma mais profunda do queeste”68. Bultmann não acrescenta,ademais, que Heidegger estava fa-miliarizado com a moderna teolo-gia, incluída a nascente teologia di-alética.

    Bultmann não podia ocultar aimpressão que lhe produzia tantoo conhecimento que possuía Hei-degger acerca da Escolástica comoo da tradição protestante, come-

    gelesen, Königshausen & Neumann, Würzburg 1997, 41.67 Jaspert, B. (ed.), Rudolf Bultmann. Werke und Wirkung, Wissenschafliche Buchgesselschaft, Darmstadt 1984,

    71.68 Ibid., 202.

    264 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 235-278ISSN: 2317-9570

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    çando por Lutero. Hoje conhece-mos muito melhor as contribuiçõesde Heidegger durante a primeiraetapa em Friburgo e, nesse sen-tido, consideramos que a contri-buição ao Seminário é a que cabiaesperar dele, tendo em conta o queapontamos anteriormente. No quese refere a filiação protestante deHeidegger, as declarações de Bult-mann nos recordam sem dúvida asque previamente havia feito Hus-serl. Em ambos os casos requeremser matizadas mas em modo algumresultaram arbitrárias, devido a in-tensidade com que Heidegger estu-dou durante um tempo tudo o queera relativo ao mundo da Reformae ao grau de identificação experi-mentado com ela.

    No que se refere às comunica-ções desenvolvidas no Seminário,dispomos das atas (Protokolle) dasmesmas e dão fé do conhecimentoe familiaridade que Heidegger pos-suía da obra de Lutero, do jovemLutero sem dúvida, mas tambémdo Lutero maduro69. Para nossopropósito nessas páginas é sufi-ciente sublinhar que a figura deLutero aparece nos textos citados

    como uma “violenta erupção”, fa-zendo uso da expressão heideg-geriana com a qual nos encontra-mos anteriormente. A doutrinaluterana aparece como essa erup-ção tanto se a compararmos coma Escolástica como com a figuraaristotélica, magnitudes tão con-vergentes para Lutero. No que serefere à Escolástica, Lutero afirmaum grau de corrupção da naturezahumana muito mais radical que aEscolástica. Mas desse ponto devista vai depender a concepção doCristianismo como tal. Por outraparte, em sua análise da Disputa-tio contra scholasticam theologiamde 1517 não deixa de referir-se acontraposição entre Lutero e Aris-tóteles e toda a ontologia grega, deque modo que o Reformador re-sume seu pensamento afirmando:“Totus Aristoteles ad theologiamest tenebrae ad lucem”70. A teolo-gia fundamentada no texto bíblico,se compreende. Ademais, caberiaindicar como também nessa apro-ximação ao pensamento do jovemLutero ocupa um lugar destacadoa Disputatio de Heidelberg de 1518e sua conhecida contraposição en-

    69 Cfr. Jaspert, B.: Sachgemässe Exegese. Die Protokolle aus Rudolf Bultmanns Neutestamentlichen Seminaren 1921-1951, N.G. Elwert, Marburg 1996, 28 ss.

    70 Ibid., 30.

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    tre a Theologia gloriae e a Theologiacrucis. É preciso inverter a ordemseguida pela Escolástica, que co-meça determinando o ser de Deuse do mundo e somente depois tomaconhecimento de Cristo. Seria pre-ciso melhor começar pela cruz, an-tes de dizer em que consistem ascoisas. Como sabemos, Heideggerfará esse o seu ponto de vista.

    Uns anos mais tarde, em 1927,Heidegger vai intervir de novo emum Seminário de Bultmann, estavez dedicado ao primeiro comen-tário de Lutero à Carta aos Gála-tas, constituindo uma espécie deSeminário comum71. Heidegger es-tava preparado para isso pois, en-tre outras coisas, esta Carta já ha-via merecido sua atenção duranteseu período de Friburgo, ao abor-dar a problemática da fenomenolo-gia da vida religiosa. Já então assi-nala a importância que essa Carta,junto com a Carta aos Romanos,havia possuído para o jovem Lu-tero72. No que interessa ao períodode Marburgo, H. Schlier vai seguirrecordando muitos anos mais tardea impressão que lhe havia produ-zido a ele e a seus companheiros

    uma conferência de Heidegger so-bre a Carta aos Gálatas73. Final-mente, nesse marco da colaboraçãoentre Heidegger e Bultmann, teriaque mencionar também os encon-tros que celebraram nas tardes dossábados para ler e comentar juntoso Evangelho segundo São João, co-laborando assim Heidegger na ges-tação de uma obra tão destacadacomo é o comentário ao Evange-lho segundo São João de Bultmann.Há aqui três destacadas colabora-ções pontuais entre Heidegger eBultmann, em um marco geral noqual Heidegger costumava partici-par nos debates da Faculdade deTeologia, com seus questionamen-tos, suas dúvidas e colaboraçõespositivas.

    Sem dúvida, a colaboração deHeidegger com os representantesda Teologia protestante, e maisem concreto a preocupação e in-teresse heideggerianos por Lutero,se vai estender até o final do pe-ríodo de Marburgo. Mas tambémé certo que com o passar do tempocabe observar um maior distanci-amento e ambivalência por partede Heidegger. Um dos motivos de

    71 Cfr. Pöggeler, O.: “Heidegger und Bultmann”, 42.72 GA 60, 67-68.73 Schlier, H.: op cit., 219.

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    que isso havia sido assim se deveao ascendente que o historiadore teólogo protestante F. Overbeck,amigo de Nietzsche, vai exercer so-bre as posições de Heidegger74. Oascendente crescente de que che-gou a gozar Overbeck aos olhosde Heidegger, ao largo do períodode Marburgo, se deve a que haviaacertado ao dar expressão a umasérie de dúvidas que vão assal-tar o próprio Heidegger. Por issoeste não se inibe de remeter comfrequência, ante os teólogos pro-testantes, as posições de Overbeck,na convicção de que enquanto nãose rebatesse a esse autor “a teologiaprotestante estaria no ar”75. Porisso Heidegger chegava a afirmarante os mencionados teólogos queele ao menos celebrava o aniversá-rio de morte de Overbeck.

    Em sua obra de referência Überdie Christlichkeit unserer heutigenTheologie, ainda quando se dirigefundamentalmente contra a teolo-gia liberal coetânea e contra o oti-mismo do casamento entre Cristia-nismo e fé no progresso, Overbeck

    termina colocando abertamente oproblema da relação entre a fé e osaber, concluindo que se trata deum antagonismo insuperável. Aessência do Cristianismo somentese havia feito perceptível no Cris-tianismo primitivo enquanto fugae negação do mundo. Nessa fugaconsistiria a característica distin-tiva do Cristianismo76. Aparece as-sim dominado por uma esperançade futuro escatológica na qual sedá um antagonismo insuperável econstante entre a fé e o saber77,no qual em algum sentido viria aconvergir a convicção de Heideg-ger acerca da inadequação entre aconcepção grega do ser e a concep-ção escatológica do Cristianismoprimitivo.

    No intento de elaborar uma te-ologia científica havia conduzidorapidamente a uma “mundaniza-ção” do Cristianismo e havia im-plantado uma espécie de religiãode “sábios” em vez da fé autên-tica e viva. Em última instância,Overbeck termina perguntando-sese a teologia pretendeu alguma vez

    74 Acerca dessa questão pode se ver, entre outros, Kisiel, Th., The Genesis of Heidegger´s Being and Time, 111;Gadamer, H.G.: “Die reliöse Dimension”, 308.

    75 Löwith, K.; Mi vida en Alemania antes y después de 1933, Visor, Madrid 1992, 51.76 Overbeck, F.: Über die Christlichkeit unserer heutigen Theologie, Wissenchafliche Buchgesellschaft, Darmstadt

    1989, 85.77 Ibid., 22.

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    ser cristã ou se pelo contrário seapresentou desde o princípio comouma tarefa de caráter irreligioso78.Overbeck começou a exercer suainfluência na Alemanha nos anosseguintes à Primeira Guerra Mun-dial e, em alguns pontos, cabeconsiderá-lo como uma espécie deprecursor da teologia dialética que,em mais de um aspecto, convergiacom Kierkegaard. Heidegger tam-bém se encontrará depois desse du-plo influxo. Não obstante, as posi-ções de Overbeck se mostram maiscéticas a respeito da possibilidadenão somente de elaborar uma te-ologia senão de reviver o Cristia-nismo primitivo no seio do mundomoderno, devido ao contraste fun-damental que existe entre a fé noprogresso típica do mundo mo-derno e a fuga do mundo caracte-rística do Cristianismo primitivo, àespera do pronto retorno de Cristoe da passagem da atual figura domundo.

    O influxo da obra de Overbeckfez, efetivamente, que as posiçõesheideggerianas se fossem fazendomais céticas e ambíguas, em umautor que já é por si dado a um de-

    terminado coeficiente de ambigui-dade. Isso virá acompanhado pelofenômeno, frequentemente assina-lado pelos intérpretes, de que as re-ferências a Lutero se farão cada vezmais escassas. Destaca-se a esserespeito o que ocorre na opus mag-num: Ser e tempo, onde ao largoda extensa obra o nome de Luteroaparece duas vezes. A primeiratem lugar no começo da obra, nocontexto da análise da capacidadedas ciências para revisar seus con-ceitos fundamentais. Neste pro-cesso participa também a Teologia,e a esse respeito Heidegger aludeao papel que Lutero desempenhanele. A Teologia estaria na buscade uma compreensão mais originá-ria do ser do homem em sua rela-ção com Deus partindo da compre-ensão proporcionada pela fé, e quepermaneceria dentro da mesma.Ante esse processo Heidegger ob-serva que a Teologia “começa len-tamente a compreender de novoos fundamentos de Lutero”79, evi-tando fundamentações alheias àprópria fé. Segue presente em Hei-degger a convicção de que a histó-ria da Teologia está sob o influxo

    78 Ibid., 21 cfr Grossmann, A.: “Zwischen Phänomenologie und Theologie. Heidegger´s ‘Marburger Religions-gespräch’ mit Rudolf Bultmann”, en Zeitschrift fur Theologie und Kirche 95 (1998), 41.

    79 GA 2, 13-14.

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    da ciência grega, o que desfigurariaa mensagem originária do Cristia-nismo primitivo. Mantém-se firmeo rechaço à Theologia gloriae.

    Há uma segunda passagem emque reaparece o nome de Lutero,esta vez junto com o de Santo Agos-tinho e de Kierkegaard. Isso ocorreno horizonte da análise da angús-tia como chave para a compreensãodo Dasein. Heidegger faz uma re-ferência a presença da angústia edo temor na teologia cristã que te-ria lugar sempre quando se situeem primeiro lugar o problema doser do homem em sua relação comDeus, ocupando então um lugardestacado conceitos como “fé, pe-cado, amor e arrependimento”80.Com distintos matizes, os três au-tores mencionados haviam feitouma contribuição importante paraa exploração do Dasein, desde estaperspectiva.

    De uma forma significativa, osnomes de Santo Agostinho, Luteroe Kierkegaard voltam a aparecerjuntos quando nos finais de 1927Heidegger responde ao requeri-mento de Bultmann solicitando-

    lhe que lhe envie uma breve ex-posição com vistas à publicação doartigo “Heidegger” no DicionárioDie Religion in Geschichte und Ge-genwart. Entre outras coisas escre-via Heidegger que considerava que“Santo Agostinho, Lutero e Kier-kegaard eram filosoficamente essen-ciais para a compreensão do Da-sein81. Não somente Santo Agosti-nho e Kierkegaard seriam relevan-tes “filosoficamente”. Também oseria o próprio Lutero, por parado-xal que pudesse resultar.

    Apesar de tudo, seguem sendosignificativas as escassas mençõesde Lutero em uma obra como Sere tempo. A partir de tais mençõesapenas caberia suspeitar, tal comoassinala A. Grossmann, a relevân-cia que Lutero teria tido para ojovem Heidegger, segundo pode-mos constatar hoje através dos tex-tos publicados82. Sem dúvida estacircunstância é relevadora de mu-danças que se estão produzindo noseio do pensamento heideggeriano,na linha apontada anteriormente.Bem é verdade que a relevânciado legado teológico para uma obra

    80 GA 2, 252-53.

    81 Cfr. Kisiel, Th., The Genesis of Heidegger´s Being and Time, 452.82 Grossmann, A.: “Heidegger und Luther”, en AA.VV., Heidegger e i medievali, Brepols, Turnhout 2000, 193.194.

    Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 235-278ISSN: 2317-9570

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  • ARSENIO GINZO FERNÁNDEZ

    como Ser e tempo não cabe reduzi-la a menções explicitas senão que épreciso reconhecer toda uma pre-sença latente, tal como cedo assi-nalou, entre outros o próprio Bult-mann que vê na análise existencialdo Dasein uma exposição filosó-fica profana da visão da existênciahumana que nos oferece o NovoTestamento83. Toda uma série deconceitos que Heidegger analisa aolargo de sua obra nos apresenta umeco da tradição teológica, em cujacompreensão sabemos, desempe-nhou um papel muito importantea intervenção luterana84.

    Não obstante, apesar dessemaior ceticismo que invadirá oponto de vista heideggeriano, e deuma maior inibição na hora de no-mear o próprio Lutero, Heideg-ger todavia vai abordar, de umaforma explicita, antes de abando-nar Marburgo, o problema da re-lação entre fenomenologia e teo-logia. Referimo-nos, claro está, aconferência Fenomenologia e Teo-logia, pronunciada primeiramenteem Tubinga em 9.03.27e depois re-

    petida em Marburgo em 14.02.28,ainda que o texto tenha permane-cido sem ser publicado até 1970.

    Tomando como referência a dis-tinção luterana entre a Theologiagloriae e a Theologia crucis, Heideg-ger concebe a Teologia como umaciência positiva e por conseguintecomo “absolutamente diferente”da filosofia como ciência ontoló-gica85. A Teologia viria a consistirem um saber conceitual acerca da-quilo que constitui o Cristianismoem um “acontecimento originari-amente histórico”, algo que Hei-degger, seguindo a Overbeck, de-nomina “cristianidade” (Christli-chkeit). Esta “cristianidade” é o“dado” para a Teologia, que é apro-priado mediante a fé. O funda-mento da mesma seria o Cristo cru-cificado. Não estamos aqui anteuma constatação teórica de expe-riências internas mas sim de umafé, somente na fé se manifestaria osentido de tal acontecimento. Tal éa positividade que constitui o fun-damento da Teologia.

    Esta Teologia, na linha da Theo-

    83 Bultmann, R.: Kerygma und Mythos. Ein theologisches Gespräch, Herbertreich Evangelischer Verlag, Hamburg1951, 15.

    84 Veja-se, entre outros, o trabalho de MCgrath, Sean J: “Das verborgene theologische Anliegen von Sein und Zeit,em M. Enders und H. Zaborowski (eds), Phänomenologie der Religion Zugänge und Grunfragen, Karl Alber, Freiburg,München 2004, 271-78; também Pöggeler, O., “Philosophie und Theologie in Sein und Zeit”, en Id., Heidegger inseiner Zeit, Fink, München 1999, 265-276.

    85 Heidegger, M.: Phänomenologie und Theologie, Klostermann, Frankfurt a. Main 1970, 15.

    270 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 235-278ISSN: 2317-9570

  • HEIDEGGER E A REFORMA PROTESTANTE

    logia crucis, é a ciência da fé, a ciên-cia do desvelado na fé, e nesse sen-tido, baseada na positividade dafé, uma “ciência histórica”. Sendoisso assim, todos seus conceitos te-riam uma relação essencial com oacontecimento cristão como tal86.Chegados a esse ponto, Heideggerse pergunta pela relação da Teo-logia como ciência positiva coma filosofia. A fé não necessitariada filosofia mas sim a necessitariaa ciência da fé como ciência posi-tiva. Agora bem, não a necessita-ria para a fundamentação e des-cobrimento da sua positividade,a “cristianidade”. Somente a ne-cessitaria naquilo que se refere aoseu caráter científico. Heideggerrejeita totalmente a ideia de umafilosofia cristã, mas a filosofia, emtroca, poderia desempenhar frenteà teologia a função de um “corre-tivo ontológico” do conteúdo ón-tico, pré-cristão, dos conceitos teo-lógicos fundamentais87.

    Eis aqui, de uma forma sinté-tica, o conteúdo dessa intervençãode Heidegger, com a qual pratica-mente concluía a sua colaboraçãocom a Faculdade de Teologia de

    Marburgo. Nela havia procuradoater-se às exigências da Theologiacrucis luterana. Contudo, sabemospela correspondência mantida comE. Blochmann que Heidegger vai semostrar mais cético e ambivalentedo que deixa transparecer no textoda conferência. Assim em uma desuas cartas, depois de mencionar aslimitações do enfoque dad