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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2857. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE EDUCAçãO OU BARBáRIE

h - Suplemento do Hoje Macau #87

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 24 de Maio de 2013

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2857. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

educação ou barbárie

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O que caracteriza a sociedade nestes primeiros anos do terceiro milénio e qual papel desempenhado pela arte?Vivemos uma crise de proporções globais que transcende a economia. Não é apenas financeira ou política ou apenas social, nem começou ontem. O terceiro milénio chegou carregado de medos e não podemos excluir que, no fu-turo, alguns historiadores falem de Crise dos Cem Anos referindo-se a este período. A escala da vida é agora pla-netária, mas apenas em alguns aspectos, porque a socie-dade não é planetária mas sim a tecnologia e a economia. Essa diferença, que provoca grandes medos, é o que hoje mostra a arte. A arte deve ser capaz de expressar a socie-dade, o mundo em que vivemos. O grande desafio está em manter uma distância em relação a um estado da socieda-de que, no entanto, deve expressar para que seja compre-endido. As formas de arte contemporânea, ao propor-nos o que vemos todos os dias, perturbam-nos; transformam objectos quotidianos e familiares em objectos de reflexão e, portanto, longe de sublimar o real, subvertem-na.

Que novos rostos adopta hoje a cultura em França?Detecto uma forte vitalidade da cultura e acho que os ar-tistas estão a desempenhar um papel importante no qual fazem muitas perguntas e dão poucas respostas. Costumo ir a exposições de arte contemporânea, especialmente de jovens artistas, e ver como eles se estão a tornar cons-cientes das contradições, dos aspectos problemáticos do mundo contemporâneo e como tentam de o explicar à sua maneira. Também me chama a atenção o facto de no teatro se fazerem mais performances que obras no sen-tido clássico da palavra. Em geral, as artes estão colocar em cena os novas medias e a interrogar-se sobre eles. Alguns artistas desconcertam, surpreendem, não trazem uma mensagem, não oferecem respostas, só propõem perguntas e, para mais, de forma indirecta. Eles são um pouco como os etnólogos, surpreendem-se, observam.

Como influenciam os novos formatos as características culturais no novo milénio, na sociedade da informação?Por um lado, os meios tecnológicos fazem-nos crer que vivemos numa época em que são possíveis a ubiquida-de e instantaneidade. São ferramentas muito podero-sas, uma magnífica criação mas, por outro lado, podem suscitar ilusões... ensinar coisas a quem já as sabe. Não são um instrumento pedagógico nem é possível que o sejam por isso são uma fonte de ilusão. Além disso são instrumentos de identidade passiva e o pior é que nos fazem perder a dimensão do tempo e do espaço. Como diz Paul Virilio, a instantaneidade do tempo está a matar o espaço, em tempo real, o tempo real das transmissões em directo devora espaço, a geografia. Em certo sentido, são uma negação do espaço e do tempo.

Quais são as consequências dessa negação?É crucial para a identidade, seja individual ou colecti-va, nacional ou de qualquer outro género. A questão é importante porque estamos num mundo global para as identidades colectivas e num mundo onde a individua-lidade é expressa através do consumo. Qualquer identi-dade é criada através de uma negociação perpétua com a alteridade. Temos pais, parentes, origens, amizades,

Mónica andrade

Marc augéeducação e utopia

“FuturO” é O títulO dO livrO

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etc., e tudo isso nos constitui, mas, através do que cha-mamos de redes sociais, não estabelecemos relações de verdade mas de comunicação, factos de comunicação. realmente, mas estabelecer relações eventos de comu-nicação de comunicação. Ora uma relação é construída no tempo e no espaço. A prova disso é que mesmo os grandes líderes do mundo, apesar de todos os meios tecnológicos disponíveis, precisam de se ver e de se reunir de vez em quando. Têm a intuição de que isso significa outra coisa.

Estamos a dar demasiado poder a essas redes sociais?Estamos a dar poderes que não elas têm. Estes meios de comunicação são meios. não são uma finalidade, não criam um mundo por si mesmos. Não há que condená--las, mas entender o que se pode esperar delas. Não te fazem mais sábio, nem tomar mais consciência sobre a tua própria vida. A verdade é que a identidade se cons-trói através da alteridade e que as relações são hoje mais importantes, porque temos de construir um mundo, um mundo planetário que ainda não o é e que está por construir através da história, que afinal não terminou e nunca foi uma coisa simples, nem tranquila nem pacífica. Por isso, temos que construir relações ao nível local, na-cional e internacional e precisamos de usar esses meios como aquilo que são: meios.

Como se constrói esse mundo, com que ferramentas?Essa construção só pode ser realizada através de uma po-lítica sistemática de educação. É o que eu chamo de uto-pia da educação. O nosso objectivo deve ser que cada um estude o que quiser e por tanto tempo quanto possível. Eu sei que o modelo que proponho é muito caro, mas se não o fizermos, pelo menos parcialmente, é provável que nos deparemos com uma catástrofe. Na Europa, muitas vezes é dito que a universidade tem que preparar para o trabalho. Não é assim. A universidade deve ser um lugar de formação, reflexão, sem qualquer interesse concreto. Claro que entendo que os jovens têm que trabalhar, mas o trabalho deve ser uma consequência, não uma finalidade imediata. A faculdade não é o lugar para aprender uma profissão. Para isso existem as escolas profissionalizantes e essas estão reservadas para as classes mais pobres com uma orientação cada vez mais precoce. Esta é a desigual-dade fundamental e por isso proponho este tipo de utopia em que as pessoas podem estudar o que quiserem por um longo tempo. Eu entendo que alguém me diga que não é realista, mas poderia ser real e dar lugar a uma realidade mais justa, plural e plena para todos... uma utopia.

Na França, o presidente François Hollande fez da educação o eixo central da sua campanha e já anun-ciou a contratação de milhares de professores ...

Sim, é verdade, mas isso não é suficiente. É verdade que se pode começar com pequenas iniciativas, mas eu falo de educação no sentido de conhecimento. Detecto uma progressão terrível da ignorância, mesmo em países alta-mente desenvolvidos, como os Estados Unidos. Alguns estudos têm demonstrado uma enorme ignorância en-tre amplas camadas da população. Essa ignorância é o que leva à superstição, um fenómeno que se desenvolve à medida que passam os ensinamentos da filosofia, da literatura, da cultura clássica...

Provocam também a simplificação das mensagens po-líticas?Eu não tenho certeza de que os políticos façam isso de propósito. Creio que é uma expressão do seu tem-po. Estou impressionado com o baixo nível do debate político nos Estados Unidos antes das eleições pre-sidenciais. Trata-se de escolher o chefe do mundo e, francamente, é assustador. Por outro lado, acho que a tendência para acreditar que todo o poder de um país ou de uma região está nas mãos de uma pessoa é algo pueril. Há algo antidemocrático neste fenómeno.

Em “Futuro” fala sobre os novos medos que caracte-rizam a nossa sociedade.Sim, desapareceu o medo de uma guerra convencional,

mas outros apareceram. Medos económicos, de desas-tres ambientais, terrorismo informático... Além disso, o fosso social entre ricos e pobres aumenta todos os dias, tanto em países emergentes e nos chamados desenvolvi-dos e as classes médias têm medo de perder sua posição e entrarem na terceira classe. Esta é uma das faces mais visíveis da contemporaneidade.

Uma outra consequência da crise económica ...Concedemos o poder à especulação financeira. Por detrás dos mercados, tão frágeis e susceptíveis, há uma realidade que é a especulação. A economia real não é o que domina o mercado, mas sim as finanças, a sua dimensão especu-lativa. Há 30 anos existia uma realidade mais visível da economia real e creio que há uma relação entre essa tec-nologia e a especulação financeira. Eu li que é possível especular não apenas instantaneamente, mas de antemão, vender alguma coisa antes de comprá-la... Compras e ven-des por meio de computadores e, ocasionalmente, uma catástrofe ocorre. Estas práticas são ultrajantes, causam catástrofes sociais e não têm nada a ver com a produção.

Propõe a ciência como um modelo para a vida polí-tica e social.É o único domínio a propósito do qual podemos falar de progresso, de progresso no conhecimento. As pessoas

às vezes falam de cientificismo, mas isso não é a ciên-cia. A ciência é um modelo de modéstia face a muitas demonstrações de orgulho. A história da ciência é a do deslocamento gradual das fronteiras do desconhecido, com correcções e rectificações. A única área de activi-dade humana onde a noção de progresso, no sentido de acumulação de conhecimentos, deriva da evidência, é também aquela que constantemente questiona as noções de certeza, verdade e totalidade. Funciona um pouco como no existencialismo, quando a existência precede a essência. Poderíamos usar este modelo na vida política e projectar um modelo forma mais empírica e científica a partir de princípios e, em seguida, medir a progressão.

Quais devem ser esses princípios?A igualdade dos indivíduos e o conhecimento. Dar prioridade ao conhecimento, que é algo que agora não fazemos. Quando falamos em desenvolvimento, muitas vezes referimo-nos à investigação nas empresas e esta não é a investigação fundamental, mas algo que tem a ver com a inovação, com a melhoria dos produtos para fazer aumentar o consumo. Desde logo, não vai responder às nossas perguntas sobre a nossa presença e actividade no mundo. Fizemos um grande progresso no conhecimento do universo mas, como dizia Pascal, o infinito silêncio desses espaços infinitos assusta-me.

Por onde passa hoje o verdadeiro conhecimento?Passa pela unificação de todos os saberes, incluindo a ciência. Não devemos opor a literatura à filosofia, à ciên-cia. Estou certo de que os grandes cientistas também são filósofos. Devemo-nos mover em direcção a uma socie-dade em que o conhecimento seja a meta e a prosperida-de uma consequência. A ciência avança tão rápido que não podemos imaginar o estado de nosso conhecimento daqui a 50 anos, mas certo é que vamos progredir em duas direcções: o conhecimento sobre o universo e so-bre a natureza dos seres humanos. O facto humano per-manecerá, independentemente do progresso da ciência. O que é a vida? O que é a consciência? É uma aventura fascinante e falaremos dela daqui a uns séculos.

Como vê o futuro da Europa?Espero que da crise nasça uma Europa mais forte. Não posso imaginar um retrocesso, seria uma coisa terrível, um fracasso. Agora todos os desafios são planetários e a Europa poderia desempenhar um papel importante no planeta, mas com a condição de que continua a existir como tal. O problema da Europa é que se engrandeceu antes de saber o que seria. A construção faz-se lenta-mente, a Europa deve pensar a sua unidade. Um século não é nada na escala da história, sendo tudo na escala de um indivíduo.

Fizemos um grande

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dizia pascal, o inFinito

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O que há de peculiar na forma na poesia chinesa,1 que leva Demiéville2 a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alu-são à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imi-tam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais. Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entan-to, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.”3

Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articu-la as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, duran-te a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua te-oria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa.Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, prin-cipalmente as do seminário XVIII. No presente traba-lho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicana-lista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (....) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocês podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analí-tica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chi-neses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia....seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever...”4

A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filo-sóficos, particularmente taoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bas-tante assimiladas na cultura chinesa. Nguyen indica ain-da os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força des-tas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e polí-tica da China. O artigo em questão destaca três grandes

M. Ângela andrade

Poesia chinesa e Psicanálise

poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Esco-lhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei.

Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio No coração do monte, um som de sino; vindo de onde? À tarde, sobre o lago deserto, meditando, Alguém aprisiona o dragão venenoso.

Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à in-terferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são:

1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferên-cia: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tan-tas outras indicações desta interferência da ressonância.”

2. A relação com o real. Essa segunda interferência as-senta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge

como realidade derradeira, sinónimo de Tao. Já a psica-nálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmolo-gia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração taoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquan-to ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).”§

3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favo-rece a maleabilidade de espírito. Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, eva-nescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa. O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético.

Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de La-can chinês. Diz ele: “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao for-mular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim. Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a par-tir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afecto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.”

NOTAS1 “La métis des mots: le poète et le Saint”- Albert Nguyen. BARCA! N. 8. 1997 2 Os interlocutores de Lacan foram inicialmente o sinó-logo e tradutor Paul Demiéville, que durante anos diri-giu a École Pratique des Hautes Études, e mais tarde, o escritor e chefe dos trabalhos no Centro de Lingüística Chinesa da mesma École, François Cheng, com quem leu textos clássicos em chinês.3 Ibid. pg 122 4 Lacan. L’insu. pg 129

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Jacques Lacan por Jerry Bauer

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- Noam Chomsky, Professor Emérito do Instituto Tecnológico de Massachusetts;- Edward Herman, Professor Emérito de Finanças na Wharton School, Universidade da Pensilvânia;- Greg Grandin, Professor de História na Universidade de Nova York;- Sujatha Fernandes, Professor de Sociologia no Queen College e do Centro Graduado da Universidade de Nova York;- Corey Robin, Professor de Ciências Políticas, Brooklyn College;- Adrienne Pine, Professor de Antropologia na American University;- Mark Weisbrot, Doutor em Filosofia e codiretor do Centro para o Estudo da Política e Economia;- Miguel Tinker Salas, Professor de História e Estudos latino-americanos no Porma College;- Katherine Hite, Professora de Ciências Políticas no Vassar College;- Steve Ellner, Professor de Assuntos Internacionais e Públicos na Universidade de Columbia e na Universidade do Oriente;- George Ciccariello-Maher, Professor de Ciências Políticas - Universidade de Drexel;- Daniel Kovalik, Professor de Direitos Humanos Internacionais da Faculdade de Direito na Universidade de Pittsburgh;- Gregory Wilpert, Doutor em Filosofia, autor de “Cambiar a Venezuela tomando el poder”;- Joseph Nevins, Professor de Geografia no Vassar College;- Zazih Richani, Diretor de Estudos da América Latina, Universidade de Kean;- Steven Volk, Professor de História no Oberlin College;- Aviva Chomsky, Professora de História na Salem State University;- Keane Bhatt, Congresso norte-americano para a América Latina;- Chris Spannos, analista do New York Times;- Michael Albert, Znet.”

AO LADO DE OU-TROS INTELECTU-AIS, O LINGUISTA

NORTE-AMERICANO NOAM CHOMSKY

ENVIOU UMA CAR-TA A MARGARET

SULLIVAN, EDITORA NO ‘THE NEW YORK TIMES’, PARA QUE O

SEU JORNAL REVE-

Chomsky alerta Ny times para difereNça de tratameNto

eNtre VeNezuela e hoNduras

JA O TRATAMENTO SOBRE VENEZUELA E HONDURAS: CHá-VEZ, APESAR DAS VI-TóRIAS ELEITORAIS, é NORMALMENTE CI-TADO COMO ‘DITA-DOR’, E MICHELETTI, QUE SUCEDEU ZE-LAYA, é PRESIDENTE INTERINO.

14 de maio de 2013

Estimada Margaret Sullivan,Numa coluna recente (12/4/2013) escreveu:“Embora as palavras e frases por si mesmas não te-nham a importância que merecem pelo grande flu-xo diário que se cria, a linguagem importa. Quan-do as organizações de notícias aceitam a maneira de expressar dos governos, elas parecem aceitar a forma de pensar destes governos. No ‘Times’, estas decisões têm mais peso.”À luz desses comentários, exortamo-la a comparar a caracterização do New York Times à liderança do desaparecido Hugo Chávez na Venezuela com aquela a Roberto Micheletti y Porfirio Lobo nas Honduras.Nos últimos quatro anos, o ‘Times’ tem caracteri-zado Chávez como ditador, déspota, líder autori-tário, e “caudilho” nas suas coberturas noticiosas. Se incluirmos os artigos de opinião, o ‘Times’ pu-blicou pelo menos quinze trabalhos empregando tal linguagem, descrevendo Chávez como “dita-dor”, o “homem forte”. No mesmo período - desde o golpe militar que derrubou o hondurenho Ma-nuel Zelaya no dia 28 de junho de 2009 - nenhum colaborador do ‘Times’ utilizou esses termos para referir-se a Micheletti, que presidiu às Honduras depois do golpe, ou Porfirio Lobo, que o substi-tuiu. Ao invés disso, o jornal descreve-os como “interino”, “de facto”, e “novo”.Porfirio Lobo assumiu a presidência depois de ga-nhar as eleições que tiveram lugar sob o mandato do governo golpista de Micheletti. As ditas elei-ções foram marcadas pela repressão e pela censura e os observadores internacionais, como o Centro Carter, boicotaram-nas. Desde o golpe de estado, as forças militares e policiais hondurenhas assassi-naram civis com assiduidade.Nos últimos 14 anos, a Venezuela realizou 16 eleições ou referendos. Jimmy Carter elogiou as eleições na Venezuela, entre as 92 eleições que o Centro Carter monitorizou, e descreveu-as como “um magnífico sistema de votação”. Ele concluiu que “o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo”. Enquanto alguns grupos de direitos humanos criticam o governo de Chávez, as forças de ordem na Venezuela não têm indícios de haver assassinado civis, como aconteceu em Honduras.Qualquer coisa que se pense sobre as credenciais democráticas da presidência de Chávez - e acha-mos que algumas pessoas responsáveis podem não estar de acordo com isto - não há nada registado, ao compará-lo com a sua contraparte nas Hondu-ras, que justifique as discrepâncias nas coberturas do ‘Times’ em ambos governos.

Convidamo-la a examinar essa diferença nas co-berturas e o uso da linguagem, em particular aquela que possa fazer ver aos seus leitores a parcialização na posição do governo dos EUA com respeito ao seu par nas Honduras (ao que apoia), e o governo venezuelano (ao que se opõe) - precisamente a sín-drome sobra a qual escreve e avisa na sua coluna. Sinceramente,

Michael dal Cerro, Peasants for plutocracy

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DIZER NÃO

Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbi-trário dos outros.  Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.  Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a or-dem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres huma-no em toda a tua plenitude.  Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá--lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to nega-rem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.  Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.  Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela.  Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Por-que a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.  Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promo-ção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é orde-nanmo-nos em gado sob o comando de um pastor.  Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fra-tricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.  Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.  E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade. 

Vergílio Ferreira in Conta-Corrente I

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Passados que foram os tempos da exaustiva dis-cussão acerca da escrita feminina do «Eu» poético e das múltiplas interpretações existenciais da escrita tenho sempre a sensação de um falso debate que só com uma incontida má-fé se poderá tirar delas conclusões que sustentem uma tese confiável. A escrita, como todo o fenómeno do pensamento, encontra-se profundamente unida à capacidade onírica que cada ser transporta, é lá que residem os arquétipos, os “tijolos”, que hão-de dar forma ao modelo evolutivo desse labirinto. A cultura milenar, onde estamos inseridos, imprimiu para sempre e indelevelmente um ambientalismo muito próprio a cada um dos géneros, que têm a ver com causas natu-rais e históricas, mais que com qualquer programa de subvalorização de algum dos componentes. No entan-to, há que salientar o facto dos grandes hiatos de tem-po em que a produção feminina foi escassa. No Sul de França em pleno século XII, por exemplo, as mulheres eram altamente letradas beneficiando do apoio incondicional dos “Homens Bons” e sendo as grandes fazedoras dos textos trovadorescos, mas o seu papel não era só o da dinâmica do Verbo, elas eram as suas inspiradoras: grande parte desta Poesia era-lhes dedicada com o respeito e o dom de Cavalaria que os homens fortemente exerciam para as elevar. O ser-se inspirador de um trabalho engloba em si muito da pro-dução das obras e dir-se-ia que a Mulher tem aqui um estatuto altamente dinâmico, não sendo hoje jamais enaltecido no espaço da acção. Da Literatura enquan-to modelo evolutivo não podem jamais ser abolidas as componentes fantásticas e maravilhosas, sob pena de se fazerem coisas como exercício literário e não como exaltação da leitura. No século vinte os Surrealistas optaram por um espa-ço de quimera muito interessante: dormir. Dormindo, sonhando, registariam melhor a quimera de um tempo perdido numa rotatividade psíquica que faria a grande Roda da Fortuna e aquela frase que lhe está associa-da «Tudo vai, tudo volta, tortuosos são os caminhos da eternidade» e então, para o mundo desventrado, os nossos surrealistas resolveram apostar nos sonhos como matéria literária de alta tensão. Breton faz seu Manifesto sonhado e sonhando… Outros mais cronis-tas, os que viriam a dar uma vaga de romancistas e de ensaístas, resolvem vaguear, andar pelo Mundo, reco-lher experiência, muitos até deportados dos seus locais de origem. O feminino mais atávico sempre foi ficando no local das origens, delineando portanto outros horizontes de escrita. Por isso, está viciada a discussão acerca destas duas escritas, porque elas encerram modelos vivenciais diferentes. Vejamos Safo, nascida em Lesbos. A poeta grega estava confinada ao seu Gineceu, bem como os homens ao Androceu, e mais, à prática da guerra, tiran-do Esparta, que não deu a nenhum dos dois relevância literária, a vida das sociedades era assim. A noção de Modelo Único só se impõe nas sociedades guerreiras e mesmo assim com tarefas bem definidas. Vamos en-contrar nos diálogos femininos clássicos outro tipo de diálogo e de formação do pensamento verbal, o que é

LITERATURA FEMININO-MASCULINO

benéfico e absolutamente natural, vamos encontrar em Píndaro outro registo, e noutros tantos poetas greco--romanos os frutos das suas vivências. No que diz respeito à matéria de uma secundarização por parte da mulher neste plano, também não é ver-dade, visto pelo prisma que hoje lhe imprimimos. A Língua é um legado feminino, as crianças aprendem a falar com as mães muito antes de pronunciarem a pri-meira palavra na sua já ressonância pré-natal. Daí que nenhuma língua no Mundo seja designada por Língua Paterna mas sim Materna. A linguagem desenvolve-se a partir da sedentarização por intermédio em parte do elemento feminino, a Poesia, bem no fundo dos pri-meiros alvores da chamada Antiguidade Clássica, de-senvolve-se como arte de adivinhação praticada sobre-tudo por Pitonisas. O “ Phatos” masculino falava a sua história, componha as leis do raciocínio, delimitava as suas abordagens, mas vai pegar nesta filiação sem dúvida exemplar. Em plena Revolução Francesa, um pouco antes e de-pois, os grandes centros de cultura quotidiana eram os Salões das Damas, os chamados Salões Literários, onde se reuniam todos os de saber da época, um pouco à Marquesa de Alorna entre nós, e que muito contribuiu para a produção literária. Mais tarde é também pelas mãos de Lou Salomé e da sua inteligência brilhante que se congregam cinco homens que fizeram mudar a face do futuro que estava para acontecer. Com um maravi-lhoso pormenor: ela inspirada, era também inspiradora e não deixa de ser surpreendente que elegeu Rilke nes-te conjunto de dotados. Elegeu afinal o Poeta a quem protegeu como um segredo. Talvez porque os Poetas superem bem essa lacuna do género, esse desiderato da componente sexista, talvez sejam mais inteiros e reú-nam algo de andrógino, o que os distancia sem dúvida do dilema.

O que restou desta discussão e análise foi talvez uma interpretação pouco feliz da era da “guerra dos sexos” onde era exigido não definir padrões mas alterar os có-digos. Ora nada mais errático e erróneo na medida em que é na laboriosa actividade de ambos que se solidifica a Obra. Entre um género e outro há de facto um espaço e um tempo que não convém ser medido em factor distância, ter espaço não é o mesmo que ter tempo, o Tempo é uma medida muito da era Capitalista, em que se imple-mentou como sendo sinal de dinheiro, o espaço é outra coisa mais ampla, mais própria, mesmo programável e muito mais durável. Vejamos a ficção feminina actual, sobretudo a nacio-nal, muito mergulhada em perfis psicológicos passados e tramas de uma saturada complexidade emocional que nada dizem do momento hoje, como se não tivesse dele uma nítida memória, como se não encontrasse o seu lugar na contemporaneidade do agora. Um pres-tigioso exercício de caracter técnico sem dúvida, mas que nada informa do seu instante habitado, muito me-nos do tempo vindouro, como se a literatura fosse um útero, um conforto para os tempos agrestes, aquilo que porventura são alguns dos seus tesouros. Os homens continuam pioneiros das novelas do tempo, criam e re-criam a partir dos factuais elementos, compõem a sua acção, mas nem sempre com a graça e o talento devi-dos para merecerem um interesse prolongado. Não sei, dir-se-ia que algo de portentoso falhou na capacidade de comunicar, está certo, mas não chega. Então o que falta para falarmos de Literatura? Acho que no fundo faltam Homens e Mulheres. Que não discutam jamais a matéria dos seus géneros mas que se completem na definição das suas realidades. Se com eles fizermos toda uma Literatura epistolar, ve-remos da razão: que melhor diálogo literário que Abe-lardo e Eloísa, Juan de La Cruz e Santa Teresa D´Avila, Salomé e Rilke, Mariana Alcoforado e seu amante fran-cês, à arte dialogal do Cântico dos Cânticos num en-trelaçado onde nenhum dos dois pode reendivicar para si a supremacia do Verbo! São estes testemunhos e ou-tros, que me fazem pensar na desordem programática de um tal assunto. “O meu deus saúda o deus que há em ti” e é a partir desta simples premissa que se constroem os diálogos que se hão-de registar em forma de lingua-gem, mas de linguagem que valha a pena ser escutada. A Poesia felizmente que fica num roteiro mais amplo, muitas das vezes como acontece com Pessoa, existe mesmo um travestir de factos: «O último sortilégio» a voz toda ela é feminina, porém é um homem que a escreve. A Luxúria de um Mário de Sá-Carneiro… o envolto manto deste prazer, o terceiro sexo de Rim-baud. Maria Zambrano analisa muito bem a temática poética de todo o resto, essa discípula que foi de Or-tega e Gasset. Mas o eu poético exercido como um implante da psi-que, teve por vezes um certo maneirismo dialogal sem forma, que tentava explicar por metodologias várias algo que me parece sem sentido. Afinal ele está onde sempre esteve, no poeta. E quem é ele? Quando res-pondermos a isso deixarão de haver poetas. Como a Literatura não fará mais sentido no tempo da telepatia das coisas reveladas.

AméliA VieirASapho em Pompeia

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EntrE as utopias renascentistas mais notáveis, encontra-se a Cidade do Sol, escrita em 1623 por Tommaso Campanella (1568-1639), que foi preso por se ter insurgido contra o regime despótico espanhol, e mais tarde também caiu nas malhas da Inquisi-ção em Itália por se revoltar contra a ordem estabelecida. Da vontade de escapar às au-toridades terrenas do seu tempo, nasceu a Cidade do Sol, governada pelos princípios ideais da Potência, Sapiência e Amor, en-carnados nos três chefes Pon, Sin e Mor, que obedeciam às ordens de um senhor único, o supremo sacerdote Hoh, cujo nome significa metafísico. Neste livro o autor descreve uma socieda-de perfeita, orientada por ideais, onde as gentes vivem de um modo simples e natu-ralista, num comunismo religioso, portanto sem propriedade privada. A cidade é des-crita por um almirante genovês, em diálogo com o Grão-Mestre dos Hospitalários, que desembarcou perto da Taprobana e se ema-ranhou numa floresta até ser conduzido por um grupo de mulheres e homens armados à cidade ideal. Na cidade do Sol reina o Bem à maneira da República platónica.Aqueles tempos renascentistas eram difí-ceis e para os suportar os filósofos construí-am castelos no ar. Mas já antes, nos tempos antigos, os gregos tinham feito o mesmo através da pena e do muito penar de Platão. Dos antigos aos humanistas percorre uma idêntica vontade de amor, sapiência e po-tência ao serviço da comunidade. Os fi-lósofos não gostavam de assistir às crises por que eram fustigados e imaginavam um mundo melhor, mais bem organizado, como sucedeu ainda a Sir Thomas More, que foi martirizado devido aos seus ideais católicos (1478-1535), numa Inglaterra pronta a tornar-se anglicana.Para More as pessoas viviam mal desneces-sariamente. Uns trabalhavam demais, ou-tros de menos, outros ainda nada, como as mulheres da sua época. Por isso preconizou uma ordem onde as mulheres pudessem ser educadas e contribuir para a sociedade em que se integravam. Além disso, propôs uma divisão mais justa do trabalho que devia recair sobre todos. Leia-se o que nos diz em Utopia, obra redigida em 1516. Nesta um viajante, Rafael Hythlodeaus, encon-tra uma ilha, o país da Utopia, um escape imaginário contra a instabilidade política

e social da época. Na ilha todos vivem sa-tisfeitos, porque obedecem a um governo organizado e justo, onde se verifica a parti-lha comunitária dos bens, num comunismo monástico inspirado pelos Actos dos Apósto-los. Quanto ao trabalho, ele deve ser realizado com conta, peso e todas as medidas:

“Apenas trabalhavam seis horas por dia e poder-se-ia pensar que daí resultaria a falta de bens essenciais. De facto as horas de tra-balho deles eram suficientes para produzir abundância, ou mesmo superabundância, de modo a satisfazer todas as necessidades e conveniências da vida.”

Comunismos monásticos à parte, estes utópicos abordam questões essenciais do ponto de vista ecológico, já que o excesso de produção e produtividade é um veneno para o equilíbrio do ecossistema. Além dis-so, o nosso tipo de sociedades suscita uma séria desordem afectiva, que leva a confun-dir consumismo com prazer, alegria e bem--estar. Os utópicos são grandes defensores da na-tureza e dos ritmos naturais. Vejamos como

More, que viria a ser canonizado pelo Papa Pio XI em 1935, define a felicidade:

“Os utópicos não acreditam que exista fe-licidade em todos os prazeres, mas apenas em prazeres bons e honestos. Definem a virtude como vivendo de acordo com a na-tureza e concluem que a própria natureza prescreve uma vida de alegria (quer dizer, de prazer) a título de finalidade para a exis-tência terrena.”

Os utópicos ocidentais têm em comum a defesa de um modelo social organizado, regido por valores e ideais filosóficos e até religiosos, já que tanto Campanella como More propõem espaços ligados ao sagrado, mas nunca afastados da natureza. Apresen-tam cenários frugais e simples, onde todos têm a possibilidade de satisfazer não apenas as necessidades, como ainda os prazeres, o que auxilia a desenvolver gente alegre, des-preocupada e em comunhão natural.Os orientais, mais especificamente, os chi-neses também têm utopias? A resposta é afirmativa, sendo uma das mais antigas a do Registo da Fonte dos Pessegueiros em Flor 《桃花源記》da autoria de Tao Yuan Ming (陶

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桃花源記

Tao Yuan Ming

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Ecos naturalistas AnA CristinA Alves*

淵明), que viveu entre 365 e 427 dC, nos finais da dinastia Jin do Leste (東晉). Foi um grande poeta e letrado, que se recusou a colaborar numa sociedade na qual as pesso-as se vergavam por um pedaço de arroz (五斗米折腰). Trocou os jogos de poder e in-fluência pela lavoura. Celebrizou-se como cantor de cenas campestres e deixou-nos a descrição de um mundo ideal em ambiente rural, afastado do bulício citadino. O seu sonho de um mundo ideal, a salvo da agitação política e do labirinto de fama e proveito em que as pessoas se emaranham, seria condensado numa expressão prover-bial familiar aos chineses: “Viver sem conheci-mento da existência da dinastia Han, e ainda menos das Wei e Jin, num lugar inacessível aos forasteiros” (不知有漢,無論晉魏:不足為外人道). A expressão proverbial aponta para os ma-lefícios das organizações sociais e políticas, tendo nascido num contexto de forte divi-são e instabilidade, aquele em que o poeta da dinastia Jin do Leste viveu, suspirando por um espaço sem lugar concreto no mun-do de então, impossível de ser descoberto, a menos que alguém se aventurasse nos ca-minhos da imaginação. Foi isso que sucedeu ao personagem prin-

cipal, um pescador de Wulin (武陵), actual Changde (常德), localidade situada na pro-víncia de Hunan (湖南). Entregue à sua faina remou no barquinho ao longo dum pequeno riacho. E foi remando, remando até encontrar uma floresta de pessegueiros. As margens eram bordadas por magníficos pessegueiros, que cobriam a terra de flores aromáticas. Tal cenário extasiou o pescador que continuou a remar à procura da nas-cente do pequeno curso de água.Foi então que chegou à entrada de uma gruta, banhada por uma luz indistinta. Aí resolveu desembarcar. Caminhou a partir da entrada da gruta e à medida que avan-çava, o caminho inicialmente estreito, ia alargando, até que chegou à Fonte das Flo-res de Pessegueiro. O lugar é descrito do seguinte modo:“As casas estavam muito limpas e bem or-ganizadas, os terrenos eram férteis e os la-gos transparentes e belos. Também havia amoreiras e bambuais. As ruas cruzavam-se e comunicavam, (nas aldeias) ouviam-se os cães a ladrar e os galos a cantar. Era grande a azáfama dos aldeões que se dedicavam à lavoura e as pessoas vestiam-se tal e qual como no resto do mundo. Velhos e novos

O RegistO da FOnte dOs PessegueiROs em FlOR

桃花源記

eram felizes e estavam satisfeitos consigo próprios.”

(房屋整齊,有肥沃的土地,清麗的池塘,還有桑樹竹林之類。田間小路交錯相通, (村落間)能互相聽到雞犬的叫聲。村裏面,人們來來往往耕種勞作,男男女女的衣者裝束完全和桃花源外的人一樣,老人和小孩子都高高興興,自得其樂。)

Após o que o pescador prossegue, narran-do que o receberam muito bem. Preparam um banquete com vinho e até mataram uma galinha para o agraciar (as práticas ve-getarianas ainda não eram frequentes). Os habitantes da Fonte dos Pessegueiros em Flor encheram o nosso homem de pergun-tas sobre o mundo de que se mantinham separados desde que os antepassados rom-peram com a dinastia Qin. Num contexto de reiteração do desejo de continuarem re-colhidos, surgiu então a famosa frase que havia de se tornar proverbial: pois se não conheciam a dinastia Han, quanto mais as Wei e Jin… Quanto o pescador mostrou vontade de partir, solicitaram-lhe que não revelasse o lugar a ninguém.

O homem esqueceu o pedido e de regresso à sua terra revelou ao mandarim a existência de um lugar perfeito, escondido numa floresta de pessegueiros. Este apressou-se a enviar emis-sários que nunca descobriram o tal paraíso.Quais foram as razões que levaram Tao Yuan Ming a descrever a Fonte dos Pesse-gueiros em Flor como um lugar ideal?Primeiro a descrição paisagística: os pes-segueiros e suas flores têm um lugar muito próprio na cultura chinesa, simbolizam a longevidade e imortalidade, propiciando uma vivência bucólica de grande beleza.Depois, e não menos importante, o facto de os aldeões na Fonte dos Pessegueiros em Flor estarem ao abrigo da humana “desor-ganização” social e política. Todos eram fe-lizes, porque apenas trabalhavam sem que tivessem quem mandasse neles. Recorde-se que os antepassados tinham escapado à cri-se provocada pela mão férrea do primeiro imperador Qin (Qin Shihuang秦始皇).O que têm todas as utopias em comum? A vontade de convivência num espaço natu-ral muito belo, onde as pessoas se organi-zam de modo a serem apenas regidas pelas ideias de Beleza, Bondade, Justiça, à ma-neira platónica, à qual se vem somar a de Amor, nos tempos cristãos. Os aldeões de todas estas utopias vivem bem e, por isso, são naturalmente alegres.Voltando à Fonte dos Pessegueiros em Flor de Tao Yuan Ming, imagine-se um qualquer poeta ou filósofo chinês que queira escrever uma utopia em pleno século XXI. Este, além de fazer profissão de fé de uma sociedade comunitária e feliz, regida apenas pelo valor do trabalho, terá uma séria dificuldade em encontrar um cenário paisagístico que lhe inspire a utopia, sobretudo se viver numa grande cidade chinesa e pretender escapar para o campo. Onde poderá ele encontrar os pessegueiros, as amoreiras e os bambuais?

Bibliografia e Webgrafia梁衡(編)2013《影響中國歷史的十篇美文》香港:商務印書館Excertos da Utopia de Sir Thomas More:http://apps.sfhs.com/teachers/lemuller/AP_Euro/Ren/utopia.pdfExcertos da Cidade do Sol de Tommaso Campanellahttp://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/cidadesol.pdf * A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau

Thomas More Tommaso Campanella

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d e p r o f u n d i s

Pedro Lystmanna revolta do emir

Sábado de Primavera. Lo-bby do Hotel Mandarin. Caril de galinha e um pu erh velhinho, daqueles que amaciam quando a infusão ganha maturida-de. Triumph of the City, de Edward Glaeser, é o li-vro escolhido para com-plementar a degustação luxuosa e solitária do ga-lináceo cozinhado em es-tilo malaio.Ter-se-ão de desculpar, ao longo da sua leitura, alguns traços mentais ob-sessivamente neoliberalis-tas que a poderão tornar mais incomodativa. Uma das suas teses fundamen-tais, a de que uma elevada concentração populacio-nal baseada na construção em altura é a opção mais verde que se coloca hoje aos governos, ao reduzir o uso do carro e outros hábitos poluidores ine-rentes à habitação de ca-sas maiores nos subúrbios, interessa-nos menos.Por outro lado, e esta será a sua perspectiva mais empolgante, mesmo que não inovadora, lê-se confortavelmente como um elogio sentido e efusivo à capacidade urbana de inovação e criatividade de que já aqui fa-láramos a propósito de Hong Kong. Este dinamismo cria-se, segundo Glaeser, entre outras razões, porque o intercâm-bio intelectual é muito mais intenso nas grandes cidades que no campo ou nos subúrbios.Em torno desta dinâmica cria-se mais riqueza. As pessoas que vivem nas cida-des geram mais riqueza e ganham mais porque existe esta energia mas também porque esta energia intelectual estimula a produtividade. As diversidades que a grande urbe ofe-rece criam um ambiente que promo-ve o trabalho. Estas atraem o talento e as ideias e aquele mistura-se numa rede densa e intensa de relacionamentos. É obrigação de uma cidade descobrir ta-lentos que num outro ambiente menos cosmopolita e mais provinciano se não desenvolveriam. Um dos pontos em que Glaeser mais in-siste é no da proximidade. A proximida-de física em que as pessoas vivem faz com que as ideias se espalhem como infec-ções. Este processo dá-se em locais onde a uma vida profissional intensa se juntou, como acontece em tantas aglomerações urbanas modernas, um sentido da impor-

tância do lazer. Estas são cidades onde há muitas casas de espectáculo, discotecas, museus, cafés, bares e esplanadas.A população de Macau, por seu lado, continua teimosamente a exibir uma resistência conservadora ao convívio espontâneo nos bares e nos cafés. É in-finitamente mais fácil chegar à troca de ideias com um estranho em Hong Kong, em Tóquio ou em Kuala Lumpur do que em Macau. Muitos são os habitantes lo-cais que demonstram uma dificuldade ex-trema em estabelecer uma conversa com alguém que não conhecem, mesmo que esta inibição esconda, tantas vezes de modo óbvio, apenas uma incapacidade e não um indesejo. É tanto mais estranho quanto a popula-ção de Macau é relativamente misturada – um fenómeno que fomenta a interacção e a produtividade. Em Nova Iorque (que não funciona aqui sequer como compara-ção, apenas como referência) 36% da sua população é oriunda de outros lugares e 48% da mesma fala, em casa, uma outra língua que não o inglês (dados de 2008 hoje porventura já inflacionados). Macau é uma cidade pequena mas no interior dessa pequenez exibe um nível elevado de mistura. Dessa mistura não pode sair senão um ímpeto criativo e ousado, e a contínua admissão de imigrantes qualifi-cados é uma necessidade premente.

A falta de dinheiro não é também descul-pa para que as pessoas se sintam afasta-das deste tipo de convívio. Uma percen-tagem significativa da população local não teria dificuldade em gastar 2 ou 3% do seu rendimento mensal a beber uns copos num bar. Uma cidade tornar-se-á tanto mais atraente quanto mais prazer proporcionar aos seus habitantes, o que, paralelamente, promoverá um clima pro-pício à troca de ideias e à criatividade. Se, por um lado, Macau foi punida com os políticos mais aborrecidos e mais mal vestidos da região, parece estar a vir ao de cima uma classe média jovem cada vez mais educada, independente, ousada e, espera-se, mais divertida e com mais ideias e desejos acrescidos de as partilhar. Glaeser aponta que numa grande cidade a possibilidade de uma pessoa ir a um concerto pop ou rock é 19% mais alta que numa zona pouco urbanizada. É também 44% mais possível visitar um museu ou 26% mais possível ir a um bar. O autor de Triumph of the City também não deixa de apontar que o dinamismo de uma cidade não é um dado adquirido. A vida de uma cidade baseia-se, essencial-mente, nas energias que a sua população consegue criar. Nos anos 70 Nova Iorque estava à beira da ruína, hoje é uma me-gacidade com uma vibração inigualável. Basta uma sucessão de pequenos erros

de planeamento, como a fixação numa só área de rendimento, para se cor-tejar o desastre.Berlim Ocidental era, não há muito tempo, uma pequena cidade, a parte Oriental quase des-conhecida. Hoje é cada vez mais difícil lembrar a sua bizarra história re-cente.As cidades são, além de tudo o mais, lugares mais divertidos do que o cam-po ou a suburbia. A ofer-ta cultural e recreativa é muito mais elevada do que no mundo rural, e muito mais democrática. A oferta de cultura e en-tretenimento é cada vez maior. Se é nas cidades que se encontram produ-tos de alta qualidade ou de luxo, é também cada vez mais na cidade que existem estruturas de la-zer ao alcance de todos, grátis ou de baixo custo, como melhores jardins, bibliotecas, piscinas, ga-lerias de arte, vias pedo-

nais e para bicicletas, esplanadas, museus de arte ou ciência, situadas em ambientes cada vez mais verdes e mais saudáveis e integradas em peças de arquitectura cada vez mais atraentes e cada vez mais bem ligadas por sistemas de transportes pú-blicos acessíveis. Singapura, Fukuoka, Quioto, várias cidades da Oceânia (Mel-bourne), Europa (Zurique) e Américas (Portland) são exemplos brilhantes. Macau não é um exemplo nada brilhante mas poderia facilmente brilhar um pouco mais. Hong Kong está a caminho de o ser, e a sua transformação de cidade cinzenta e excessivamente economicista em uma cidade que faz acompanhar a sua obsessão empresarial de uma poderosa indústria do lazer e da cultura é tanto mais impressio-nante quanto se deu num espaço muito curto de tempo (menos de 10 anos). O autor de Triumph of the City cita um ur-banista que aponta como razões impor-tantes para a atracção e fixação de resi-dentes com um elevado nível de escola-ridade a dedicação às artes, a tolerância para com estilos de vida alternativos e uma propensão para a diversão e para a organização de eventos.O que Gleaser publicita em subtítulo é uma verdade incontornável - que a nossa maior invenção (a cidade) nos fez mais ricos, mais espertos, mais verdes, mais saudáveis e mais felizes.

Triunfo da Cidade

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t e r c e i r o o u v i d o

Não foi uma noite como as outras. Perto das oito, subi à Fortaleza do Monte. No cimo, escolhi uma cadeira da plateia virada para o palco e sentei-me. Outubro. Céu deserto e azul. Escuro. A brisa amansa o calor e o co-ração. Uma paz. Dentro de momentos, Ryui-chi Sakamoto há-de sentar-se ao piano e Alva Noto (Carsten Nicolai) haverá de assumir os comandos da maquinaria que agora está quieta e silenciosa. Ainda não se ouviu qualquer som mas, na minha cabeça, desde que a dupla foi anunciada no cartaz do Festival Internacional de Música de 2006 não ouço outra coisa: músi-cas com nomes misteriosos (“Uoon I”, “Trioon II”) e timidamente poéticos (“Logic Moon”). Escrevi então a propósito deste concerto: “A música dos dois é humilde, recatada. Parca. Voa ora rasante, ora rasteira, mas guarda sem-pre a devida distância. (...) Do lado de Alva Noto, o frio das máquinas, o digital; do de Sakamoto, o calor humano. Um ser vivo. O racional e o emocional, a electrónica e a acús-tica. (...) É notável como as forças em jogo não se subjugam, como dialogam sem desconver-sar. (...) Piano melancólico e partículas electró-nicas em suspensão, trabalhadas numa filigra-na paciente. Sakamoto empresta alma, mas os mais atentos talvez se surpreendam com a hu-manidade e a gravidade das arritmias com que Alva Noto vai marcando as frases do piano.”

Ryuichi Sakamoto, uma das poucas estrelas japonesas com dimensão global, nunca foi es-tranho a colaborações, tendo um historial lon-go que o emparelhou com músicos de jazz, da bossa nova, da pop, do rock ou da electrónica, mas, com o holandês Alva Noto, abriu-se um novo trilho na electrónica experimental, que, apesar da originalidade, foi acatado com na-turalidade pelos seguidores de ambos os mú-sicos. Também não surpreendeu, pouco tempo depois, a notícia de que o japonês iria traba-

próximo oriente Hugo Pinto

lhar com o austríaco Christian Fennesz, um dos mais respeitados nomes da nova música experimental. E, diga-se ainda, também não surpreendeu que dali saíssem discos (três, até agora) simplesmente magníficos.

O primeiro, “Sala Santa Cecília”, de 2005, consiste apenas numa peça: 19 minutos de ruídos na beira do “noise” levitando sob um tapete ambiental que, a espaços, confere tra-vos orientais e místicos a sons crus, elevando a música que a partir daí se vai decompondo lentamente até ao ponto em que Sakamoto e Fennesz pegam para arrancar “Cendre”.

No primeiro álbum de longa-duração, edi-tado em 2007, ao longo de 11 temas os dois remetem-se a posições bem definidas: Saka-moto senta-se ao piano, Fennesz pega na gui-tarra e manuseia computadores. Entre 2004 e 2006 ambos trocaram ficheiros à distância, partes de músicas que iam sendo completadas na volta do correio. “Cendre”, o resultado, não sugere, de todo, o processo fragmentado, dando antes a sensação de que os dois músi-cos são colaboradores antigos, tal é a fluidez com que improvisação e composição se vão conjugando.

O característico piano de Sakamoto, evocativo dos franceses suaves do início do século passado, Satie e Debussy, divaga nas nuvens da guitarra difusa e das electrónicas vaporosas de Fennesz. Ouvimos “Haru” ou “Mono” e imediatamente conjuramos hori-zontes impossíveis que queremos atravessar de olhos fechados.

Há ideias que esta música nos dita, mas tudo reside mais na aparência e no poder de sugestão, nos espaços intermédios, nas varia-ções subtis – na tristeza que passa a melanco-lia, na surpresa que se suspende na apreensão, na quietude que se transforma em paralisia, no dia que entardece, na noite que fica escura.

Sakamoto e Fennesz parecem procurar com perseverança todas as possibilidades que notas soltas, estáticas variadas e silêncios avul-sos podem querer dizer-nos. E dizem, mesmo quando apenas nos miram, nos contemplam como observadores impassíveis.

Esse reino imaginário das possibilidades voltou a ser explorado no disco seguinte, “Flu-mina”, de 2011, o mais ascético dos trabalhos da dupla até à data. É também o mais longo. No total, 24 temas baseados em improvisos ao piano que Sakamoto gravou durante uma digressão pelo Japão. Cada uma das peças era tocada num tom diferente no início de cada concerto daquela “tournée”, sempre com o pensamento na colaboração com o austríaco, explicou Sakamoto. Os 24 temas representam as 24 escalas maiores e menores da música oci-dental, e têm títulos como “0318” ou “0319”. Na maior parte das vezes só os distinguimos porque há uma pausa entre eles.

Depois, voltamos a olhar para a imagem da capa: um plano apertado do mar, em que vemos os pequenos cumes da água, ondula-ções tímidas e efémeras. Um mar que parece todo igual se o avistamos de longe, sendo im-possível perceber que se divide em gotas, uma noção que desafia o nosso entendimento, não só do espaço e da dimensão, do volume, mas também do tempo que tal tarefa nos levaria.

A música “ambient” privilegia a distensão infinita, as peças com dezenas de minutos que acabam como começam, parecendo que exis-tiram desde sempre, sem princípio nem fim, como se tivessem sido colhidas da eternidade. Imagino um deus recostado entre cúmulos de nuvens a estender o braço e a agarrar com a mão cheia um pedaço de céu. Com a sua mú-sica atmosférica, Sakamoto e Fennesz não nos dão o céu, na verdade, mas prometem. Isso que baste.

Da atmosfera

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metrópolisperspectivas Jorge rodrigues simão

A grAnde maioria da população do mundo não goza do direito de retirar qual-quer benefício das oportunidades econó-micas que a globalização criou. Os estudos feitos pelas organizações internacionais multiplicam-se anualmente, tentando dar uma resposta plausível para a existência de imensa desigualdade no mundo e de quais as soluções possíveis para a resolver.

Tais estudos, em geral, apresentam uma falha capital, que é a minuciosa aná-lise da dinâmica histórica das sociedades, tornando necessário mergulhar no passa-do para entender a realidade do presente. O mundo árabe tem sido assolado desde 2011 por fortes revoltas sociais, que tive-ram início na Tunísia, passaram pelo Egip-to, Bahrain, Iémen, Líbia e terminam na Síria por enquanto, que sofre uma guerra civil devastadora, cruel e sangrenta, que urge a imediata intervenção da comunida-de internacional de forma eficaz.

Analisando a situação da crise social e política acontecida no Egipto, logo se conclui que o Reino Unido, potência ocupante de 1882 a 1922, é muito mais rico e deve-se ao facto de em 1688, te-rem passado por uma revolução que o transformou política e economicamente. Os ingleses lutaram e conquistaram mais direitos políticos que usaram para alargar as suas oportunidades económicas.

O resultado foi um percurso político e económico radicalmente diferente que culminou com a “Revolução Industrial”. A revolução que se deu na Inglaterra e as tecnologias associadas não se estende-ram ao Egipto, uma vez que estava sobre o controlo do Império Otomano, que o geriu da mesma forma que a família do ex-presidente Hosni Mubarak o fez de 1981 a 25 de Janeiro de 2011.

O domínio otomano foi derruba-do por Napoleão Bonaparte em 1798, e depois de um longo período de guerras civis, é ocupado pelos ingleses para pro-teger os seus interesses financeiros e eco-nómicas, nomeadamente os relacionados com o Canal de Suez. Os ingleses tal como os otomanos tiveram pouco inte-resse em criar a prosperidade do Egipto.

O povo egípcio oscilou entre os im-périos Otomano e Britânico e, em 1952, derrubou a monarquia, e proclamou a Re-pública em 18 de Junho de 1953. As crises pelas quais o Egipto passou, não têm nada

A dinâmicA históricA dAs sociedAdes

em comum com a revolução na Inglaterra, que ao invés de transformarem fundamen-talmente as estruturas políticas do país, permitiram que ascendesse ao poder uma outra elite, igualmente, desinteressada em alcançar o desenvolvimento e trazer pros-peridade aos egípcios, tal como o tinham feito otomanos e ingleses.

A consequência foi permanecer a estru-tura base da sociedade sem alteração e con-tinuar o Egipto a ser um país pobre. É mui-to importante conhecer a forma como tais modelos se reproduzem ao longo da histó-ria e por vezes são alterados, como aconte-ceu na Inglaterra em 1688 e na França com a revolução de 1789, permitindo entender se a situação no Egipto actualmente mudou, e se a revolução que fez Hosni Mubarak re-nunciar ao mandato presidencial, conduz a um novo caminho que refaça as instituições e as torne capazes de trazer prosperidade ao povo egípcio.

O Egipto passou por momentos revo-lucionários no passado, que nunca muda-ram a “situação existente”, porque quem organizou as revoluções, assumia depois, o controlo do poder detido pelos derru-bados e recriava um sistema semelhante. O facto mais difícil na história das revo-luções, é o do cidadão adquirir o poder político real de alterar a forma de funcio-namento da sociedade.

É difícil, mas não impossível e tal aconteceu na Inglaterra, França, Esta-dos Unidos, Japão, Botswana e Brasil. É necessária uma transformação política desta natureza para que uma sociedade pobre se torne rica. Existem evidências de que pode estar a acontecer no Egipto, e um desses sinais foi proferido por um dos manifestantes de Tahrir Square, no Cairo, ao referir que “Agora os cristãos e muçulmanos estão juntos, bem como os jovens e os idosos, todos desejando o mesmo”, podendo-se concluir que um amplo movimento na sociedade foi uma parte fundamental do que aconteceu no Egipto, e em outras transformações polí-ticas ocorridas durante a história.

Se compreendermos quando e quais as razões porque tais transições ocorrem, é possível avaliar se os movimentos de re-volta falham como aconteceram inúmeras vezes no passado ou esperar pelo seu su-cesso e melhoria das condições de vida de milhões de pessoas. Vivemos num mundo desigual. As diferenças de riqueza entre os países são enormes e agravam-se.

As pessoas com as devidas excepções e adaptações nos países ricos são mais saudáveis, vivem mais tempo e tem me-lhor educação. Têm acesso a uma varie-dade de actividades lúdico-recreativo e de condições de vida, desde férias pagas a

planos de reforma que as pessoas sonham nos países pobres. A população dos paí-ses ricos pode conduzir em estradas sem buracos, (com as devidas reticências) e desfrutar de casas de banho, electricida-de e água corrente nas suas casas.

Os governos dos países ricos não pra-ticam detenções arbitrárias ou tortura das pessoas, pelo contrário, prestam serviços, como a educação, saúde, estradas, cons-trução e manutenção de vias rodoviárias, segurança pública e justiça, entre mui-tos outras. Os cidadãos dos países ricos têm direitos políticos, como o de vota-rem em eleições livres e democráticas e participarem nas grandes decisões polí-ticas. (tal não acontece nas democracias dos Estados-membros do Sul da Europa em recessão e intervencionados ou não, como a Grécia, Portugal, Chipre e Espa-nha, por culpa dos famigerados “critérios de convergência de Maastricht”, que têm moldado as políticas macroeconómicas da União Europeia. Tudo podia ser pre-visto e criados mecanismos apropriados, se na primavera de 1998, tivesse havido um debate decisivo sobre as políticas de convergência para a moeda única)

As grandes diferenças em termos de desigualdade mundial são evidentes para todas as pessoas, mesmo para as que vivem em países pobres, ainda que uma grande maioria não tenha acesso a televisão ou a Internet. É a percepção e a realidade dessas diferenças que levam as pessoas atravessar, por exemplo, o Rio Grande na fronteira entre os Estados Unidos e o México, ou o Mediterrâneo de forma ilegal, para ter a sorte de co-nhecer as oportunidades e os padrões de vida dos países ricos.

A desigualdade não só tem conse-quências para a vida das pessoas nos pa-íses pobres, mas também para os países ricos que as alojam, pois são fontes ge-radoras de queixas e ressentimentos, de enorme efeito político como acontece nos Estados Unidos e em outros países. Entender a razão da existência dessas di-ferenças não deve ser apenas um fim, mas o primeiro passo de como criar ideias

mais claras que permitam encontrar so-luções para a imigração ilegal e melhoria de vida de muitas centenas de milhões de pessoas que ainda vivem na pobreza.

O funcionamento de cada socieda-de faz-se por meio de um conjunto de regras económicas e políticas criadas e executadas pelo Estado e cidadãos co-lectivamente. As instituições económicas regulam os incentivos económicos, como os relativos à educação, poupança, inves-timento, inovação, adopção de novas tecnologias, etc.

É o processo político que determina quais as instituições económicas às quais as pessoas se encontram vinculadas, dan-do assim importância à economia social e que têm por objectivo a criação de maior riqueza e a diminuição da pobreza. As instituições políticas têm a responsabili-dade de determinar o funcionamento de todo esse processo.

As instituições políticas, como no caso dos Estados Unidos, são quem de-terminam a capacidade dos cidadãos para controlar os políticos e influenciar o seu comportamento, e por sua vez, determi-nar se os políticos representam os cida-dãos, conquanto de forma imperfeita, ou se são capazes de abusar do poder que lhes foi confiado, ou o usurparem para fazer ou acumular fortuna e defender os seus interesses, em detrimento dos inte-resses dos mesmos cidadãos.

As instituições políticas incluem, mas não estão limitadas às constituições escritas se a sociedade é democrática, devendo ser regidas pelos princípios da igualdade, liberdade, participação e jus-tiça e incluem o poder e a capacidade do Estado de regular e governar a sociedade. É necessário, considerar de forma mais alargada os factores que determinam a forma como o poder político é distribu-ído na sociedade, em particular a capa-cidade de diferentes grupos trabalharem colectivamente na prossecução dos seus objectivos, evitando que outras pessoas desenvolvam actividades na mesma área de actuação.

O ponto fulcral do sucesso ou insucesso dos países é determinado pelas instituições que influenciam o comportamento e os in-centivos na vida real. As matérias relativas ao talento individual das pessoas em todos os níveis da sociedade, necessitam de um quadro institucional que as regule e trans-forme em energia positiva. As pessoas de grande talento e ambição da Indústria de Tecnologia da Informação e Comunicação, como Bill Gates, Steve Jobs, Sergey Brinn e muitas outras lendárias personalidades, finalmente acabaram por responder aos in-centivos.

“The openness of a society, its willingness to permit creative destruction, and the rule of law appear to be decisive for economic development.”

Kenneth J. Arrow, Nobel laureate in economics, 1972Lives of the Laureates: Twenty-three Nobel Economist

William Breit and Barry T. Hirsch

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metrópolis Tiago Quadros*

A exposição Arqueologia do Digital, recentemente inaugurada no Canadian Centre for Architecture (CCA), recupera os passados digitais dos arquitectos Pe-ter Eisenman, Shoei Yoh, Frank Gehry e Chuck Hoberman. Em Arqueologia do Di-gital são exploradas as histórias particula-res de quatro projectos e a forma como a utilização do computador modificou de forma radical a arquitectura. A título de exemplo, refira-se o Centre for Land Use and Built Studies (LUBFS), fundado em 1967 no departamento de Arquitectura da Universidade de Cambridge por Lio-nel March, debaixo da direcção de Leslie Martin. March tinha chegado a Cam-bridge para estudar matemática, com uma recomendação do cientista de com-putadores e descodificador Alan Turing, mas cedo transferiu-se para um módulo de matemáticas e arquitectura. Sean Keller, autor do livro Semi-Automatic: Motivating Architecture After Modernism, de-fendia que a abordagem às matemáticas e arquitectura fizesse parte de um processo que incluísse a integração das escolas de arquitectura em universidades do Rei-no Unido com introdução de requisitos de nível superior para o estudo das ma-temáticas. Keller acabará por sugerir a Martin que comprove que a arquitectura era tão rigorosa nos seus requisitos téc-nicos quanto a engenharia. Encoragado por Martin, March decide explorar de que forma os avanços na matemática, em particular associada aos computadores e à inteligência artificial, poderiam in-formar o trabalho do arquitecto. Lionel March acabará por desenvolver um con-junto relativamente alargado de estudos, em áreas semelhantes às dos interesses dos Novos Brutalistas, tal como utilizar gráficos para testar novas combinações de aposentos numa casa; modelar fluxos pedestres; gerar relações inesperadas em organizações espaciais domésticas; e rea-lizar mapas de distribuição populacional em áreas urbanas, desenhadas a partir de probabilidades estudadas em pequenas amostras.Na introdução do número da Architec-tural Design de Maio de 1975, dedicado ao trabalho do LUBFS, March escreveu: ‘Nós não consideramos os gráficos com-putacionais muito importantes: apesar das valências que estes podem represen-tar para o trabalho do arquitecto. Fazer com que os computadores realizem hoje o trabalho dos arquitectos é como usar uma estrutura metálica para suportar um edifício gótico. Os computadores não modificarão os métodos de desenho, en-quanto que a teoria sim’. Apesar do nú-mero da Architectural Design, dedicado ao trabalho do LUBFS, ter sido profusa-mente ilustrado com fórmulas e diagra-

ArqueologiA do digitAl i

mas, em vez de plantas e cortes trans-critos a partir da análise computacional, March seria claro a enfatizar o papel do arquitecto como principal interlocutor no diálogo com a importância da esté-tica. Para este grupo de arquitectos, não era o aspecto dos edifícios desenhados a computador que interessava mas antes a aptidão do computador para analisar al-ternativas espaciais, bem como fluxos e

tráfegos gerados, e com isso auxiliar a arquitectura. A modesta premissa da exposição Arqueo-logia do Digital no CCA é analisar a forma como os computadores foram incorpora-dos nos processos de desenho de quatro projectos; mas a ambição maior é mostrar como este processo modificou, para sem-pre, o computador e o desenho em arqui-tectura. A primeira preocupação, com vis-

ta à exposição, foi preservar digitalmente a arquitectura nativa para uma audiência mais abrangente; extrair a informação criada em discos duros praticamente abandonados; armazenar a informação; e finalmente pensar em como apresentá-la. Contudo, este processo técnico de esca-vação, também ocorre num momento em que existe uma maior necessidade cultural em aceitar a realidade do desenho digital: entendê-lo como uma realidade cultural em vez de uma promessa vazia de utopia.De acordo com Greg Lynn, o curador da exposição, ‘Agora é o momento a partir do qual nós podemos deixar de ter dis-cussões a propósito de tecnologia digital que comecem com “no futuro”… O que está em exbição no CCA procura antes afirmar, “No passado, a tecnologia digi-tal fez isto”.’ Decididamente, uma grande transformação ocorreu no decurso da evo-lução da arquitectura e do uso dos com-putadores, entre o tempo de March e o momento a partir do qual os arquitectos começaram a usar o computador de modo regular no apoio ao trabalho de projecto (o período de estudo do CCA). Na época de March, não se considerava possível que os computadores viessem a ser utilizados pela generalidade dos arquitectos. A con-tribuição inicial britânica à teoria compu-tacional associada à arquitectura está fora da exposição Arqueologia do Digital. Não foi antes de meados da década de 80, que os arquitectos começaram a trabalhar com computadores e essa é a principal razão pela qual o CCA coligiu trabalhos aparen-temente tão díspares como os de Peter Ei-senman, Frank Gehry, Shoei Yoh e Chuck Hoberman.Por esta altura, as implicações teóricas computacionais inicialmente avançadas por March e Martin, tinham de facto, discretamente, representado um impac-to no modo como a arquitectura era de-senhada e concebida. O crescente uso dos diagramas de tipologias, a partir de meados da década de 70, testemunha de modo inequívoco a mudança de paradig-ma metodológico. Eisenman tinha estu-dado em Cambridge antes da fundação do LUBFS, mas sob a direcção de Martin. Mais tarde, o arquitecto americano argu-mentará que o digital acabou por provo-car uma revisão da perspectiva. A inven-ção de Brunelleschi, que corresponde ao momento em que se passa de um olhar teológico e teocêntrico, para um olhar antropomórfico e antropocêntrico sobre o mundo. Arqueologia do Digital pode ser vista no CCA, em Montreal, até ao dia 13 de Outubro.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitecturapela Faculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa

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gente sagrada José simões morais

Já aqui fizemos referência a Wen Chang, o deus dos Letra-dos e da Literatura, e seguimos agora falando sobre o seu auxi-liar, grande mestre da compo-sição e patrono dos que faziam os exames imperiais, deus co-nhecido em mandarim por Kui Xing e em cantonense por Fui--Seng. Kui (魁) significa o primeiro, o número um, e para Xing (星) divindade estelar e quando se apresentam em conjunto魁星, Kui Xing representa o Mapa do Carro, que corresponde a quatro das sete estrelas mais brilhantes da constelação Ursa Maior (conhecida em chinês por Bei Dou).Este Kui (魁), como tem um bom e auspicioso significado, foi o escolhido para substituir o carácter Kui (奎), que significa talento literário, mas como era usado pelo imperador quando escrevia (um artigo, documen-to, ou uma carta) denominado Kui Shu (奎 书), sendo o se-cretariado do imperador co-nhecido por Kui Fu (奎 府), o carácter (奎) não podia ser utilizado pelo comum dos mor-tais, pois era reservado ao im-perador.O carácter Kui 奎 está na di-vindade estelar Kui Xing (奎星), uma das 28 constelação (xiu) que se posiciona no qua-drante Oeste (白虎) BaiHu, o Branco Tigre. As 28 constela-ções estão divididas em grupos de sete pelos quatro quadran-tes, sendo Kui Xing (奎星), o Passo Largo, a primeira dessas sete constelações do Oeste.Kui Xing (奎星) é a divindade estelar que domina o talento literário, mas como o Impera-dor o usava, não podia ser este carácter usado por outros. Por isso teve que ser substituído por um outro carácter, homó-fono (com a mesma pronún-cia), e assim foi substituído por 魁 que significa, o primeiro, o número um. O carácter 魁 desdobra-se em duas partes, Gui (鬼) que signi-fica diabo, fantasma e Dou (斗) colher, concha, abóbada, caba-ça, referente à imagem formada

pelas quatro estrelas da Ursa Maior.Nos exames imperais, os da ca-pital, que dava o título de Ju-ren, o candidato que ficava em primeiro lugar obtinha o título de KuiJie (魁解). Já para os exames do Palácio, que confe-ria o título de Jinshi e eram re-alizados pelo imperador, o exa-minando colocado em primeiro lugar, o número um, ficava com o título de KuiJia (魁甲).Quando em presença do impe-rador, o candidato, que obtinha o primeiro lugar no exame era chamado, colocava-se sobre a cabeça do Ao (鳌), tartaruga mitológica, e aí recebia o título.A imagem com um ar terrífico do deus dos exames está baseada no desenho deste carácter e por isso o vemos retratado com o pé direito na cabeça de uma tarta-ruga e segurando na mão direita um pincel de caligrafia usado para apontar o número um. Na outra mão, um instrumento de medida de capacidade equiva-lente a uma quarta e com o pé esquerdo levantado tal como o radical se apresenta. KuiXing-DianDou DuZhanAoTou, signi-fica que Kui Xing aponta a Ursa Maior, para isolado se colocar sobre a cabeça da tartaruga e isto quer dizer que Kui Xing in-dica quem vai ser o número um.Durante os exames, os candi-datos levavam a estátua de Kui Xing para dentro da grande sala onde, nos primeiros tempos du-rante as dinastias Sui e Tang, eram realizados os exames, ou para os compartimentos indi-viduais em que mais tarde estes passaram a ser feitos.Durante o período em que os exames Imperiais foram reali-zados, eram muitos os templos em honra de Kui Xing. Esta imagem nunca teve represen-tação humana mas há quem a ligue a Zhang Kui (aqui já foi tratado).Em Macau, apesar de não exis-tir nenhum templo dedicado a Kui Xing, ele está representado em dois templos, no entanto, quando voltamos à procura das imagens estas não quiseram que de novo as visualizássemos.

Kui Xingdeus dos exames

魁星

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Huai NaN Zi 淮南子 O LivrO dOs Mestres de Huainan

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L e t r a s s í n i c a s

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destila-ram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já exis-tente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Prín-cipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Pro-fessor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Clas-sics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Socie-dade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Quando a terra se acumula, nela crescem bestas canibais.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 47

A etiqueta é um embelezamento da substancialidade; a humanidade é um efeito da graciosidade. Como tal, a etiqueta depende dos sentimentos humanos embora para eles desenhe embelezamentos à medida. Por seu lado, a humanidade manifesta-se na forma como as pessoas se parecem. Quando a etiqueta não excede a substancialidade, e a humanidade não significa dar demasiado, essa é a via de uma sociedade ordeira.

* * *

Agir de acordo com a Natureza é chamado a Via, atingir a natureza celestial é chamado virtude. Quando a natureza se perde, valoriza-se o humanitarismo; quando a Via se

perde, valoriza-se o dever. Como tal, quando humanita-rismo e dever são estabelecidos, a Via e a sua virtude já mudaram; quando o ritual e a música a adornam, a pura simplicidade se perde. Quando se formula o bem e o mal, os camponeses são cegos; quando se dá valor a pérolas e jades, todos competem.

* * *

Quando a água se acumula, nela crescem peixes predatórios. Quando a terra se acumula, nela crescem bestas canibais. Quando os ritos e deveres se tornam decorativos, a partir deles crescem pessoas artificiais e hipócritas.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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