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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2834. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE O REGRESSO DO SUJEITO FERNANDO PINTO DO AMARAL PEREGRINAçãO AO OESTE: A FáBULA SEM FIM

h - Suplemento do Hoje Macau #82

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 19 de Abril de 2013

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2834. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

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É a segunda que vem até este território. O que lhe desperta mais interesse em Macau?O que me desperta mais interesse é essa mistura que existe aqui, pelo menos desde que nós portugueses cá estamos há cerca de quatro séculos. Esta presença significa uma união, que não é só uma união em que o todo é igual à soma das partes. Isso é que é interes-sante aqui. Isto não é apenas uma mistura de Portugal mais a China.

Então é o quê?É qualquer outra coisa que se foi criando e que não é nem Portugal, nem China. Quando estou aqui não sinto obviamente que estou em Portugal, mas também não é a China, nem o que aqui existe é meramente uma cultura chinesa. É uma cultura de Macau, cons-tituída por alguma coisa que tem a ver com artes, le-tras... visões... é uma visão do mundo até, mais do que artes e letras. Uma visão do mundo que passa por ser de Macau, ter vivido em Macau e perceber o mundo a partir de Macau.

E que não tem propriamente a ver com etnias?Não! Não depende das etnias. Pode haver pessoas de etnia chinesa que sintam isto, outras de etnia ociden-tal, portuguesa, que também já o sintam porque estão cá há muito tempo, ou porque já tiveram cá família e portanto percebem Macau. Esse perceber é o funda-mental. Não é, evidentemente, alguém como eu que estive cá há seis anos durante uma semana e agora durante quatro ou cinco dias que pode entender isso de um momento para o outro. Mas apesar de tudo já posso captar alguns sinais disso. E sinto esses sinais que fazem de Macau, nesse sentido, um sítio único no mundo.

Não existe outro igual, ou semelhante?Não. Não há mais nenhum sítio onde os portugueses tenham tido esta... aquilo que existe aqui em Macau. Porque em Goa é diferente. Goa é um outro género. Na religião, por exemplo. Em Goa houve conversões religiosas muito mais fortes do que aqui. Em Macau não houve uma adesão brutal ao cristianismo e em Goa houve. Quando lá vamos e vemos os motoristas de táxi... toda a gente... completamente indianos, mas que usam o crucifixo. São católicos. Aqui não me parece ser isso, portanto a parte religiosa não entrou tanto, mas entrou outra coisa...

O quê?Algo que eu não sei definir, evidentemente, nem quero

estar a arriscar definir, porque seria até muita prosápia da minha parte, conhecendo o território como conhe-ço. Mas que para mim é especificamente de Macau. E é de Macau sem ser exactamente China. Não é a China que nós encontramos aqui a dois passos, no continente. É outra coisa, de facto.

E acha que Portugal deveria ter um interesse maior por aquilo que se passa aqui?Sem dúvida. Isso, sem dúvida. Acho que Macau hoje em dia devia investir no modo como Portugal pode relacionar-se com Macau. Penso que nós estaríamos abertos a isso, mas também é verdade que o investi-mento tem ser feito dos dois lados. E os portugueses, infelizmente, e eu como português também falo a partir da experiência dos meus amigos lá... embora tenham alguma curiosidade, sinto que deveria haver um interesse maior...

Ainda existe um grande desconhecimento?Sim, há um grande desconhecimento. Como nós cos-tumamos dizer, pode parecer um lugar comum mas é muito verdade nesta situação, não podemos amar nem podemos gostar daquilo que não se conhece. É como as crianças quando dizem que não gostam de um pra-to porque não querem experimentar. Não se gosta se não se conhecer. E quando se conhece bem começa-se a gostar, essa é que é a verdade! Em relação a Macau sinto isso. Agora, por exemplo, vou levar de Macau um determinado tipo de memó-rias, de vivências e de experiências, o que já é dife-rente do que quando aqui estive pela primeira vez e ainda será diferente numa terceira e assim continuará a ser. Isto significa conhecimento e o conhecimento é para o bem e para o mal...posso até conhecer me-lhor aquelas pequenas coisas que existem em todo o lado, nestes microcosmos, aquelas pequenas tricas, os pequenos grupos... mas isso também significa amor porque é conhecimento. Como se costuma dizer, só dizemos mal dos que estão mais perto, dos outros não sabemos nada.

E o que sentiu quando viu aqueles jovens chineses a recitar poemas dos nossos poetas?Emocionei-me imenso. Acho que foi o momento em que mais me emocionei durante a vigem toda, muito sinceramente.

Estava à espera?Não, não estava. Não esperava que tivessem a capa-cidade que demonstraram. Até vou ser muito sincero.

não se pode amar aquilo que não se conhece. O escritOr e pOeta pOrtuguês Fernando pinto do amaral esteve recentemente em macau para presidir aO júri dO “viii cOncursO de declamaçãO de pOesia em pOrtuguês dO ipm.” nascidO em lisbOa, em 1960, é também críticO literáriO e tradutOr.

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Estava à espera de ir encontrar uma pronúncia e um modo de dizer poesia que me pudessem quase arrepiar no mau sentido, que fosse degradável. E, pelo contrá-rio, não foi nada disso que aconteceu. Foi um sinal de que eles já convivem com alguma regularidade com os nossos textos, senão não os interpretavam daquela maneira. Demonstra que eles têm uma grande vontade de aprender português. Para mim foi emocionante ouvi-los a dizer poesia.

Quais serão as motivações por detrás dessa vontade?Não sei... por um lado eles sentem-se diferentes do resto dos chineses por causa da história de Macau. Por outro lado também percebi, e eles explicaram, que há grupos que vêm de fora de Macau, de Pequim e doutras cidades da China, que aprendem aqui o português, já não pela ligação com Macau, mas por outra razão, que é perfeitamente legítima, por opor-tunidades de trabalho. O português é hoje falado em

vários continentes. No Brasil, 200 milhões, África... em Angola onde há muitas oportunidades de trabalho. A China também precisa de pessoas que falem portu-guês. Com o mandarim, o inglês e o português...e se gostarem de línguas, depois de aprender a falar bem o português facilmente aprendem espanhol e movimen-tam-se pelo mundo inteiro.

É interessante ver os nossos valores estéticos e civilizacionais ditos por pessoas com uma cultura radicalmente da nossa. Mas talvez exista uma sensi-bilidade chinesa capaz de se ligar à nossa... Daí que o Livro do Desassossego (de Bernardo Soares) seja um sucesso na China, não acha?Sim, acho isso notável. A visão que eu tenho da China é optimista. No futuro do mundo a China, a ter algum papel, será de moderação e de algum bom senso. Não tenho aquela visão apocalíptica de algumas pessoas no Ocidente. A China vai ter sempre alguma moderação no modo como vê outras culturas, outras religiões. Vou-lhe dar um exemplo muito simples. Ontem, uma das peças que fiz para a TDM foi no templo de Kun Iam, um templo budista, mas também com elementos taoistas. O repórter entrou no templo onde havia al-gumas pessoas a prestar culto. Era uma ocasião séria. Entrámos, andámos por ali à vontade e ninguém nos incomodou. Numa mesquita, num país islâmico, seria impossível. Mesmo numa igreja, se entrassem dois chineses e começassem a filmar, não sei até que ponto é que isso seria possível.

Portanto não será pela China que o destino do mun-do está em perigo?Os chineses são muito tolerantes do ponto de vista re-ligioso. Se a China mantiver esta atitude de abertura e tolerância, não me parece que o facto de ter um peso económico inegável, seja um factor assim tão negati-vo. Evidentemente que temos culturas diferentes, mas o que nasce de positivo vem da junção dessas culturas. Como é o caso aqui de Macau. Alguns autores como o Camilo Pessanha ou o Wenceslau de Moraes, ou ou-tros que passaram por aqui, representam a capacidade de poder criar alguma coisa que é mais específica e que é única. Não é português, nem chinês. Portanto não tenho uma visão da China como sendo...

Uma ameaça?Pois, não tenho essa visão de que os chineses vão es-magar tudo e obrigar toda a gente a fazer como eles fazem. Não me parece que isso seja assim.

O Agostinho da Silva disse a algumas pessoas que vieram para Macau que durante o tempo dos desco-brimentos nós trouxemos os valores ocidentais para o Oriente e que seria talvez a altura de trazer, e aí os portugueses poderiam ter algum papel, valores do Oriente para o Ocidente. Como é que comenta-ria isto?Concordo. Estou de acordo. Acho que é importante, primeiro entender melhor, porque sem os captar na sua essência é difícil entendê-los. Temos de os conhe-cer, e essa tarefa está a ser feita, mas ainda está um bocadinho por fazer...

Muito por fazer...Sim, muito. Em Portugal e não só. Em Espanha, Fran-ça, na Europa. Temos de conhecer melhor alguns valores do Oriente e da China em particular. Quando isso estiver feito vai haver muita gente que se vai reco-nhecer nesses valores.

Ainda existe um pouco aquela ideia dos anos 60, do Oriente como algo espiritualista, o yoga, etc, que não corresponde nada à realidade.Pois não.

Não existe povo mais pragmático de que o Chinês. Parece que o que falta ao Ocidente neste momento é compreender o Oriente real.Sim, compreender o Oriente naquilo que ele tem e naquilo que é hoje a cultura chinesa que é muito rica. É, de facto, muito diferente da nossa, mas em alguns pontos até se pode conjugar. Mas não há nada como compreender e depois de o fazer, essa tarefa de trazer alguns desses valores para a nossa sociedade, como falava o Agostinho da Silva, que acho que era impor-tante fazer...

Como a solidariedade familiar, por exemplo.Sim, ainda há pouco falei disso. Do modo como as famílias cuidam dos mais velhos. Esta atitude era algo que nós poderíamos aprender com a China. É um exemplo simples mas que vai ao encontro disso.

Já que estamos a falar do Ocidente, e mudando um pouco a linha da conversa, podíamos falar de Por-tugal. Não do ponto de vista político, nem da crise actual, nem da crise económica...Sim, mas é uma crise muito profunda! Posso falar da crise!

Está bem, vamos então falar da crise de valores.Quando se fala só de crise financeira... claro que foi por aí que começou...

Será que foi? Não haveria já uma crise de valores?Exactamente! A crise financeira está ligada a uma crise de valores. Porque há 30, 40 ou 50 anos, e quero dizer isto com sentido de justiça, não vale a pena demonizar o sector da banca em geral... nessa altura os bancos e os banqueiros tinham uma ética e um comportamento, digamos de valores, que depois deixaram de ter. Essa é que é a questão! Houve determinados negócios que se fizeram que os banqueiros desse tempo não teriam fei-to. Depois houve uma altura, não sei bem quando, nos anos 80, 90, no final do século, em que alguns desses valores se terão perdido. Há uma nova geração de pessoas, ligadas à especulação bolsista, a várias áreas do sector financeiro, que perdeu completamente a no-ção de ética. Entraram em tudo aquilo que desse lucro e especulação imediata. Mesmo com prejuízo próprio, como se viu. Mas, fosse como fosse, isso radica na tal crise de valores. Se tivessem valores firmes nunca te-riam embarcado nesse tipo de aventuras e nunca tería-mos tido a crise financeira que tivemos. As duas coisas estão ligadas. As pessoas que estão à frente do sector da banca têm de ter um comportamento ético e moral acima de toda a prova.

Mas como vê agora a situação em Portugal? Está optimista?A questão é que os governos em Portugal têm muito pouco poder neste momento. A situação na Europa, é que os problemas ou se resolvem a nível europeu, como se viu agora no caso de Chipre, ou então ne-nhum país isoladamente os consegue resolver. A questão é civilizacional e não de nações?É. É civilizacional e também económica e financeira. é uma crise europeia que tem de ser resolvida pela União Europeia.

Podemos então partir do princípio que existe um bloco civilizacional. Visto daqui, como dizia há pou-co, a visão de Macau do mundo, visto daqui é muito óbvio que existe uma questão civilizacional. Visto daqui, de Macau ou da China em geral, temos a noção da perda de importância da Europa. Quando vemos as notícias de aqui ou de Hong Kong, a Eu-ropa aparece como algo que está muito longe, que é periférico. Quem é periférico é a Europa! A Europa

às vezes há um

pouco a ilusão

de que temos de

ser universais,

sendo

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e falando de

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que estava no centro do mundo, hoje em dia está na periferia!

Daí que Portugal seja novamente um finisterra...Sim, sim, é verdade!

O que nos dá um outro papel que pode ser nova-mente muito interessante. No mapa que nós aqui vemos, a China está no meio, os Estados Unidos do lado direito, e Portugal é o último país do mundo...Gosta de mapas, não é verdade?Gosto, gosto, adoro! Os mapas que nós nos ha-bituámos a ver tinham sempre a Europa no meio! Portugal está na mesma hora do meridiano de Greenwich, como se estivéssemos no centro do mundo...

Mas não estamos, pois não?Não, não estamos. Basta sairmos da Europa para per-ceber que não estamos...

Há quem diga hoje que a Europa é uma península da Ásia...(risos) Aquele bocadinho que sobra depois daquela Ásia enorme...

por aquilo que é especificamente português. E o que é especificamente português?Para lhe dar um exemplo: a Agustina Bessa-Luís. É uma autora é muito portuguesa. É da região do Douro e, à primeira vista, quando se lêem os livros parece que só fala dessa região. Mas os seus romances, no fundo, falam de questões humanas em geral. Da ques-tão do poder, da questão do amor... e aquelas histórias podem ser compreendidas por outras pessoas que não apenas da região do Douro. Isto é só um exemplo. Não vejo que haja algum problema se as histórias fo-rem centradas em Portugal. Nós falamos melhor – e isto tem a ver com o princípio da conversa sobre co-nhecer o Oriente – daquilo que conhecemos bem. Por exemplo, se eu vier a escrever, como é possível que o venha a fazer, sobre Macau, teria de o fazer ao fim de algum tempo de aqui estar.

Falando agora de si. Sabemos que traduziu Jorge Luís Borges.Sim, sim, e gostei muito de o fazer. Gosto muito do Borges.

Borges e Pessoa são talvez aqueles que melhor in-

depois integra-se também nos ciclos do próprio cos-mos. Nesse sentido gosto muito da poesia e da litera-tura do Borges.

Mas não há uma certa melancolia em Borges?Há sim, mas é uma melancolia com a qual se pode vi-ver. Porque é a melancolia dos clássicos.

Aquela frase dele “o acto estético é a iminência de uma revelação que não se produz”, para mim, é o cume dessa melancolia, a revelação que não se pro-duz...Não se produz porque não é um acto mítico, religio-so. Para dar o outro passo teria de ser religioso e não é. Porque a arte é aquilo que pode de algum modo substituir a religião. Para aquelas pessoas que têm ne-cessidade de mais alguma coisa, que não se satisfazem com a vida pragmática, quotidiana, mesquinha, dos bens materiais, têm dois caminhos. Ou vão por uma via religiosa ou, se sentirem que por qualquer motivo não têm aptidão para seguir essa via, a arte vai preen-cher a necessidade que as pessoas têm de...

De infinito?

Hoje em dia temos essa noção. Quem tem uma visão um pouco mais essa ampla já tem essa noção.

E qual é o papel da literatura no meio disto tudo? Nomeadamente a literatura portuguesa.Em Portugal sempre tivemos uma literatura muito especí-fica. Embora houvesse muita influência francesa no final do século XIX, início do século XX, e depois ao longo do século XX tivemos outras influências diferentes...

Nietszche que influenciou os pensadores portugue-ses no princípio do século XX...Sim, a influência de pensadores alemães, e nos últimos 30 ou 40 anos, desde a abertura, digamos assim, desde os anos 70, a influência anglo-americana é evidente. Os jovens escritores falam inglês, já não falam francês. Lêem os escritores americanos, é muito evidente... e até espanhol, hispano-americanos, que era algo que pouco existia e que agora já temos. A literatura por-tuguesa já não é tão afrancesada como já foi. Houve uma evolução.

E quanto aos conteúdos?Quanto aos grandes temas dos autores mais importantes, às vezes há um pouco a ilusão de que temos de ser uni-versais, sendo desenraizados e falando de questões que já não estão centradas em Portugal. Acho que isso é uma ilusão e um pouco de provincianismo. Porque se nós nos centrarmos naquilo que é a realidade portuguesa, se isso for bem feito, acaba por interessar a todo o mundo. Pode haver curiosidade na Ásia e noutros pontos do mundo

carnam o século XX, ou pelo menos a primeira me-tade do século, mas também na segunda metade, no sentido da fragmentação. Sim, no caso do Pessoa muito... o problema da perso-nalidade. Mas mais na primeira metade do século. É nessa altura que isso vem mais ao de cima, que é novo. Na segunda metade já está mais integrado...

Na segunda metade é o povo que fragmenta a sua personalidade... Exactamente, tem razão. Duma certa maneira sim, a própria psicanálise... um certo tipo de conhecimentos que na altura eram um pouco estranhos, o acesso a certas drogas que eram só para uma elite e que depois passaram a ser massificadas...

Mas como é que foi essa experiência de traduzir Borges?Para mim foi muito bonito. Mergulhar completa-mente num mundo que não é nada agressivo. Um mundo acolhedor, pacífico, onde me senti bem, não foi angustiante. Foi o contrário de quando traduzi Baudelaire. Baudelaire e Verlaine são autores franceses de que eu gosto muito também, mas são autores... o Baudelaire em particular... muito mais intensos porque põem em causa toda a nossa alma, todo o nosso ser. O Borges tem um modo sempre muito clássico, de olhar para o mundo e para a vida duma maneira clássica e de ver que tudo aquilo que fazemos é efémero, que um dia nos vamos transformar em poeira. Este tipo de consciência à partida seria triste, mas não é. Porque

De infinito, exactamente, ou de sublime. E a arte re-presenta isso. Um bom filme, uma música, um bom livro leva-nos a um ponto que é muito próximo de uma experiência de revelação, como diria o Borges.

Mas que não se produz...O Borges é um bom exemplo disso. Não se produz mas fica no limiar. Esse limiar já é um grande passo. E também não está ao alcance de todos.

E não será que a poesia que se evola da música, da escrita, etc., não será a contemplação dessa ânsia, dessa distância, entre o desejo de infinito e...E a capacidade de o conseguir alcançar. Não o con-seguimos mas ficamos lá muito próximo. Porque nós ao ouvirmos música, independentemente de termos ou não fé religiosa, quando ouvimos uma música sa-cra, uma música de Bach, de Haendel ou de outros grandes compositores sentimo-nos penetrados por um sentimento... do tal infinito. Acho que essa é mesmo a palavra. E esse infinito não está só em nós. Sentimos que há qualquer coisa para lá da materialidade. Não estamos aqui na Terra para vivermos, ir para o traba-lho, vir para casa, ganhar dinheiro, cuidar dos filhos e depois morrer. Não. Há sempre outra dimensão. E essa dimensão é que vale a pena.

Está a falar de um dever, de um dever que temos en-quanto seres humanos?Num certo sentido, sim. Para mim é um dever! Mas isso é uma questão muito pessoal. Não quero fazer

SentimoS que há qualquer coiSa para lá da

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ganhar dinheiro, cuidar doS filhoS e depoiS

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o papel de “maître à penser”, de ordenar as pessoas... se isso não for um dever para as pessoas, quem sou eu para estar a obrigá-las a isso.

O Leonardo Coimbra dizia isso. Que por sermos racionais e sensíveis temos um dever enquanto seres humanos.Eu também entendo isso assim. E sou assim com os meus alunos, com os meus amigos e com as pessoas com quem me dou. E seria estranho que essas pessoas não o entendessem também. Mas, infelizmente, há muita gente que não entende isso assim...

Mas não será esse “dever” um produtor de angústia?É... é... pessoalmente acho que sim. Claro que é. Exis-te um determinado tipo de textos que eu escrevo sem necessitar dessa angústia. Mas também digo com toda a sinceridade – e estou a falar completamente de alma e coração – que não conseguiria escrever se não esti-vesse, por qualquer motivo da minha vida, sob o efei-to dessa angústia. Há um determinado tipo de poemas que passo muito tempo sem escrever. Por outro lado, em certas crises que atravesso, se calhar escrevo muito mais. E isso está dependente dessa angústia. Seja por perda de alguém, por questões amorosas ou outras. Depois de passarem essas crises, posso escrever outros textos, mas não assim tão fortes.

Voltamos a Baudelaire, que era um homem que vivia intensamente essa necessidade, essa sede de infinito. Sim, sinto muito isso. Agora é qualquer coisa que não depende só de mim mas das circunstâncias à volta da minha vida. Porque sinto isso quando as circunstân-cias à minha volta o proporcionam. E se isso acontece temos de saber acolhê-las. Temos de viver as coisas. A vida é para ser vivida intensamente. Quando sinto isso vou até ao fundo. Mas também não vou criar as circunstâncias artificialmente. Dando um exemplo concreto: se calhar, consigo escrever poemas de amor mais pungentes e dilacerantes se estiver apaixonado. É evidente que se estiver muito apaixonado e isso me acontecer, não o recuso. Mas também não faço uma coisa que do meu ponto de vista é condenável, que é estar bem, mas porque preciso de escrever uns poe-mas, tentar apaixonar-me. Nunca o faria.

Não cria um inferno artificial...Pois. Não crio condições para isso só por uma questão artística. Porque a arte assim já não iria sair de uma forma tão espontânea. A arte tem de corresponder a qualquer coisa de muito profundo. E essa profundida-de vem da vida.

É também uma questão ética?Sim e essa ética vem da vida.

E não será que essa angústia que se sente em deter-minados momentos se transforma num fundo cons-tante?Não lhe posso dizer mais nada se não que sim. É mes-mo isso. Acho que acaba por ser uma angústia quase civilizacional. É uma civilização que, de algum modo, está doente. E isso depois acaba por se sentir em mui-tas áreas. Na literatura, nas artes, enfim...

Mudando um pouco de assunto, é capaz de fazer distinção entre escrita e literatura?Sim, claramente. Literatura é outra coisa. Literatura não é só escrita.

Actualmente há muito mais escrita do que literatura, não acha?Sim, cada vez há mais. Hoje em dia chegámos a um extremo em que qualquer pessoa que aparece na tele-visão, com grande popularidade, sejam políticos, fu-

tebolistas, apresentadores, actores, etc., pode escrever um livro. Mas isso não é literatura.

Falando de alguns escritores consagrados pelo mo-mento, não lhe parece que os conteúdos dos seus livros também são mais escrita e menos literatura?A tendência em Portugal é para isso aumentar um pouco mais ainda. No resto da Europa acho que es-tabilizou. Porque em Portugal as coisas mudaram nos últimos 30 anos. Antigamente, no tempo dos nossos pais e dos nossos avós, havia uma elite que lia, mas a grande maioria das pessoas não o fazia, porque nem sequer sabia ler. Depois com a massificação e com a democratização, com o acesso à cultura e à comunica-ção social passou a haver uma série de pessoas da classe média e classe média baixa, com acesso à leitura, o que em si não é mau, é bom, é sempre positivo, mas que vão procurar esse género de livros e de autores. Realmente é verdade que há mais escrita e menos literatura, aquela escrita “trash”, de aeroporto, essa escrita já existia na Europa e nos Estados Unidos há 40, 50 anos. Em Por-tugal é um fenómeno mais recente. A minha esperança, apesar de tudo, é que nas escolas e nas bibliotecas, a pouco e pouco, e por aí fora, a situação se altere e que as próximas gerações já tenham outras exigências.

E acha que o romance como forma literária ainda faz sentido?Um bom romance que seja bem urdido e com uma estru-tura original e que dê um ângulo original sobre as coisas, sobre os grandes temas de sempre, o amor, a morte...

E isso existe?Às vezes existe. Estou a ler um agora, que recomen-do, em português, que é um livro do espanhol Javier Marias que se chama “Os Enamoramentos”. É um romance fantástico, uma reflexão sobre o amor muito interessante.

É um romance?Não é um romance tradicional como os do Balzac ou do Eça de Queiroz, mas não deixa de ser um romance. O romance clássico tradicional tem o seu tempo.

É que hoje em dia existem outros meios para contar histórias. É isso que se pode por em questão.Mas aí, calma. Eu defendo que o ângulo como um escritor conta a história é muito importante. Não é só a história, é a história e a maneira como ele olha para ela. E se for um bom escritor dá uma perspectiva sobre as personagens que é única. E isso é muito diferente do que uma história contada por um repórter de tele-visão. A literatura aí tem um papel.

E o cinema?Mesmo o cinema é diferente. São meios diferentes. A sua história ou a minha história podem ser muito inte-ressantes: se for o cinema a contá-las é uma coisa, com imagens , depoimentos, etc., pode até ser um bom documentário; se for um escritor a pegar nelas vai resultar numa coisa completamente diferente. E se for um escritor muito bom, se calhar até já é mais a vida dele do que as nossas vidas.

O génio está no estilo... outra vez?Uma boa biografia feita por um bom escritor... quando a Agustina faz a biografia da Florbela Espanca, a certa altura nós já não queremos saber se o que lá está cor-responde à verdade histórica: o que passa a interessar é a perspectiva do autor. Isso é que é fundamental.

Então temos o regresso do sujeito ao texto?É verdade. O sujeito está lá sempre. Pode-se tentar tirar mas depois ele volta de outra maneira. Por mais que se enterre o sujeito, ele renasce sempre.

SEgrEdO

Esta noite morri muitas vezes, à espera de um sonho que viesse de repentee às escuras dançasse com a minha almaenquanto fosses tu a conduziro seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,toda a espiral das horas que se erguessemno poço dos sentidos. Quem és tu,promessa imaginária que me ensinaa decifrar as intenções do vento, a música da chuva nas janelas sob o frio de fevereiro? O amor ofereceu-me o teu rosto absoluto,projectou os teus olhos no meu céue segreda-me agora uma palavra:o teu nome - essa última fala da últimaestrela quase a morrerpouco a pouco embebida no meu próprio sanguee o meu sangue à procura do teu coração.

Fernando Pinto do Amaralin Às Cegas

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Manaus e BreMenComo corolário do inquérito que lhe foi movido, na sua estadia em Cantão, em virtude do envolvimento com a jovem Lídia, fosse por ter sido considerado culpado, fosse para de qualquer maneira aplacar a ira da poderosa família portu-guesa de Hong Kong, o cônsul António Patrício é afastada da Ásia-Pacífico e des-locado para Manaus, no Nordeste Brasi-leiro.Por pouco tempo uma vez que, já em Abril de 1914, no advento da I Guerra Mundial, Patrício estava colocado em Bremen, assumindo o lugar consular seis meses mais tarde e aí ficando, inexpli-cavelmente, retido, quando, em 1916, a Alemanha e Portugal declararam guerra reciprocamente. Aí ficou até Fevereiro de 1917, como representante de uma nação hostil num país beligerante, situação de que responsabilizou Sidónio Pais, que fora Ministro Plenipotenciário em Ber-lim no início da Guerra e o terá deixado intencionalmente em Bremen. Só, então, um ano depois da declaração de guerra e do abandono da Embaixada em Berlim,

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ANTÓNIO PATRÍCIODA CONSCIÊNCIA DA MORTE AO SENTIDO DA VIDA -IV

Patrício logrou regressar a Portugal.Registe-se no entanto, que no período inicial da sua estadia em Bremen, por volta de Agosto de 1914, Patrício escre-veu uma peça de teatro, que ficaria para sempre inacabada, “O Rei de Sempre - Tragédia Nossa”, de que seria publicado postumamente um extracto, em torno da mitosofia do sebastianismo, presente um pouco, sub-repticiamente, em alusões poéticas e em alguns aforismos. Também vários dos seus poemas tem a marca in-delével de terem sido lavrados na cidade alemã.É voz corrente que Patrício – estas coisas dificilmente ficam escritas mas, no caso, nada fica de implausível – mal regressou do exílio forçado de dois anos e meio na Alemanha, em plena guerra, terá irrom-pido pelo gabinete de Sidónio Pais no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que fora embaixador em Berlim aquando da declaração de guerra, responsável pois pelo seu abandono em Bremem, e tê-lo-á esbofeteado generosamente. Esta expres-são do seu “temperamento enérgico, por natureza incapaz de atitudes de renúncia,

de fraqueza ou de covardia”, como o ca-racterizou o amigo João de Barros, atra-vés do par de chapadas considerado ade-quado ao facies do execrando, nos tem-pos em que a expressão dum pundonor aviltado ainda se impunha ao servilismo da conveniência de carreira, iria marcar--lhe o futuro próximo. A ponto de logo, nos primeiros meses de 1918, ser afastado da diplomacia, pelo então Ministro dos Negócios Estrangei-ros que era agora, sem tirar nem pôr... Sidónio Pais. No entanto, esta personalidade irreve-rente onde o sarcasmo jorrava com o desdém de forma espontânea, o que lhe granjeou o ódio de muitos, também lhe trouxe o companheirismo incondicional dos de maior craveira e permitiu-lhe, como alguém já alvitrou, criar uma más-cara pública para encobrir a verdade da sua personalidade extremamente sensível e impressionável, como adeja normal-mente em um poeta… como em um pa-lhaço, de resto…Porque em todos estes anos, durante a escrita de “O Fim” e de “Serão inquieto”,

Pedro Baptista

Ópera de Manaus

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e a seguir, na senda da estreia com “Oceano”, An-tónio Patrício continuou a escrever e a publicar poesia…

“Poesias” e “DisPersos”

Uma parte em “A Águia”, “Atlântida” e “Límia”, entre 1911 e 1916, a maior parte não datada, co-ligida e publicada apenas em 1942, já postuma-mente, sob o título de “Poesias”, não sendo, no entanto, difícil, cotejar os dados cronológicos do percurso biográfico de Patrício com as referên-cias geográficas que explicita na maioria destas suas poesias.Não será por acaso que os meios intelectuais por-tuenses, que mais de perto o conheciam, o con-tinuaram sempre a tratar por poeta, quer se refe-rissem aos poemas, aos contos, aos dramas, quer se referissem às atitudes do dia a dia que corriam mundo também em forma de conto, provavelmen-te a que se ia sempre acrescentando um ponto…Porque ser poeta fá-lo sê-lo das mais variadas for-mas…O mais gritante neste volume de “Poesias”, bem como nos “Dispersos” que agrupam os referidos poemas publicados em revistas na década de 10 é, a nosso ver, em primeiro lugar, a continuida-de dos temas e da linha iniciada em 1905 com “Oceanos”, sobretudo a verve maritimista que coloca, na espuma, o “murmúrio dos deuses/ perdidos na bruma”, em segundo lugar, a per-sistência da centralidade, como que obsidian-te, dos temas presentes na escrita em Cantão de “Pedro, o Cru”, que ele próprio nominou de “tragédia da saudade”: “no rolar das vagas”, “O Espírito do Mar!(…) a assunção da morte (…) nupcial(…) que beija as velas/ a naufragar”; “o cadáver dum Deus, dum rei, dum pescador,/ o cadáver duma águia, os cadáveres dos pobres,/ viajam sobre o Mar num bárbaro esplendor”.Mas enquanto em “Oceano”, o jovem António se cingia ao olhar infinito sobre as águas leovegil-denses, agora o Cônsul, quase permanentemente (comprazendo-se?) a atravessar os mares, escreve poemas, métrica e estilisticamente semelhantes aos do livro de estreia, a sulcar os oceanos en-contrando, talvez em Londres, “ao fundo jardim, o Mar do Norte”, vê na caminhada para a morte do seu galgo branco a de Suze “tu tão longe, mi-nha pobre amiga!...”, recorda com saudades Eyúb, a partir de Constantinopla, ou seja de Istambul, onde “havia um ar de além narcotizando tudo: os vivos que passavam como mortos” ou, em frente, em Prínkipo, sob “o lindo acorde de asas que vinha do Mar Negro”, quando ela a si se colou dando-lhe “o seu terror: era a Morte a passar por sobre o nos-so amor”, “Muito tempo passou. – Onde estás tu agora? –“, provavelmente, quase certamente, ainda Suzy, talvez ainda a jovem Lídia, talvez outro amor real, imaginário, sonhado ou memorado na sau-dade, mas verdadeiramente sentido em qualquer caso, mais do que certo ser Suzy porque é mor-ta e por isso mais presente na erotíade do poeta; ou ainda no golfo de Corinto onde “pusemo-nos

então a entristecer calados./Como dois mármores: um Tristão e uma sereia/ que o golfo adormecia em soluções velados”; ou em oração: “Vem sentar-te à minha mesa,/ sonha ao canto da lareira,/ só por ela a noite inteira/a candeia fica acesa./ Que eu já não tenho surpresa/ quando ela vem, doce morta,/ sem bater à minha porta./É clara também a presença do próprio trágico au-tobiográfico…Mesmo nos momentos mais perfumados, mesmo nos mais ternos poemas como no decassilábico de rima de início pareada, depois cruzada, “As mãos do vento Sul que traz a chuva/ são mornas mãos de amante ou de viúva” para fechar dizendo que “são como a alma dalgum morto amigo/ mãos de saudade que no ar voejam…”. Assim como em “A doçura/ a frescura/ da chuva da manhã no meu jardim!...”, um e outro dos poemas a cheirarem aos eflúvios dos jardins românticos das moradias da Foz do Douro, ao ladinho de Raúl Brandão, do lugar onde se tinha ido António Nobre, e de onde Pascoaes, descia, amiúde, em visita, ser-vem para que “os olhos meus” “possam chorar” “sob este elísio céu em velatura” espargidos pelos perfumes dos lírios… É na verdade o poeta do amor e da morte, tanto quando eleva à cena, o Pedro e a Inês, como nas poesias, surtidas sub--repticiamente nos quatro cantos deste mundo e de outro mundo que é o mesmo verso e reverso duma moeda sem forma, sem textura, sem ducti-lidade, vogante apenas, existente, sente, ente, em que, repetindo-nos, (mas apetece-nos repetirmo--nos, excitamo-nos a repetirmo-nos sobre Patrí-cio não tanto, nem com o mesmo ritmo, como ele se repetiu sobre todos nós) da dramaturgia é lançada em cena, é lançada ao mundo, aos mun-dos, pelas vozes dos heteronómicos personagens nos desenhos do palco onde se movem os “pés pequeninos do meu desejo” ,“”pequena infanta de porte etéreo” - “( como cabiam na minha mão)” os “seios tão pequeninos”- “velasqueana”, nascida em Hamburgo, “Ilse…Ilselein”, “toda de negro, como andorinha…” “(É já na Morte que ela ca-minha)”. “Vamos gozar ainda sob os ramos/ a vo-lúpia de sermos espetrais”, feerias nupciais! Tam-bém ali por Bremen, escreveu para a “Atlântida”: “a princesa não vem… Decerto é morta/ Toda a feeria foi sepultada em neve.” Para rematar: “A Morte pode vir. A terra é pura./ A neve já não baila pelo ar./ Lá abrem nesta mística brancura/ as silenciosas fontes do luar”. É também o poeta da interrogação de Deus e da Morte! Se por vezes a foice da morte parece movida pela mão de Deus, como em “O Precoce” na crença da mãe aflita, em outros momentos surge a estupefacção e a in-terrogação em torno do paradoxo: “Eu e Deus/ quantas vezes nos olhamos/ e caíamos a chorar……”(…)”Nem a morte soube nunca/ porque vive para matar,/ nem Deus também, folhas secas,/ porque é eterno a criar…”. Por aqui se encerram os “Dispersos”. Também o poeta da Alegria e da Dor!Por vezes, nos poemas, Patrício ensaia o teatro, as próprias peças que está a escrever ou tem em

mente, nada de estranho de tal forma o seu te-atro são poemas geralmente sem rima mas com rítmica em cena proferidos pelos diversos hete-rónimos que são os personagens. A tal ponto, que talvez houvesse mais, nesta vertente, uma proximidade precursora da heteroníma pes-soana, do que na criação do personagem C.F.. “Teatro mesmo de Dyonisos”, diz ele próprio, enquanto percebe, estendido na areia, que “As nuvens pelo céu, num vago escorço,/ eram na-vios sem ninguém, sem rumo”, uma vez que, em toda a sua obra dramática, como na poética propriamente dita, o móbil, a energia, a dinâ-mica, o vulcão é o dionisíaco, Apolo não passa da apresentação formal, do embrulho de Natal, explosivo quando retirados os papeis lustrosos e as sedosas fitas ornamentais… De um Dyoni-sos telúrico, demiúrgico, mas também, cósmico pois “Não quero outro teatro: - juro, juro/que mesmo os pobres dramas que escrever, /quan-do os não vir dentro de mim, no escuro/ é só nas nuvens que os desejo ver”. Porque além da osmose da carne com o espírito, da vida com a morte, temos em Patrício, pressuposta uma me-tafísica mas sem a sua explicitação discursiva, ao gosto dos poetas, a unidade de uma realidade empírica com a onírica, a clareza a surgir e a crescer no leite da escuridão da introspecção, ou no mais vasto e núbilo imaginário do sonho, ou ainda, simultaneamente, nos dois extremos da realidade do espaço poético.Apetece citar Schopenhauer, a propósito de Dan-te, e emprestado por Amorim de Carvalho, o gran-de metrificador também sediado, uns anos depois, na mesma berma marítima que tanto fascinou Pa-trício: “A grandeza de Dante vem de ele possuir a verdade do sonho, enquanto que outro poetas não possuem senão a verdade do mundo real”Vindo de Bremen, recolhido à Foz do Douro, na situação de licença sem vencimento, não tendo sido longo o futuro do seu inimigo político figadal – Sidónio, António Patrício retomaria a carreira no ano seguinte, com uma nomeação para Cons-tantinopla, posto diplomático que se viu impossi-bilitado de assumir de imediato, sendo-lhe atribu-ída, entretanto, uma missão em Atenas.Por aí, na primavera de 1918, no mesmo ano em que se publica “Pedro, o Cru”, na situação de licença sem vencimento que lhe foi impos-ta pelo Ditador, escreve meia-dúzia de páginas para “Judas”, que deixa inacabada, e escreve, ou mais provavelmente termina, “Dinis e Isabel”, uma longa peça em cinco atos, publicada em 1919, ou seja em cima da publicação de “Pedro, o Cru”, que se não foi de imediato um sucesso operático ou teatral, terá tido bom acolhimento no meio literário. A aposta nos enredos temáticos da portucali-dade, na tragédia, mantém-se como em grande parte da dramaturgia que completou. Os eixos do seu pensamento trágico também se mantêm no essencial, nas mais variegadas expressões, com as variações ínsitas na evolução para a ma-turidade cada vez mais avançada. (continua)

O mais gritante neste vOlume de “POesias” é, sObretudO, a

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Porco ou Macaco?A Peregrinação ao Oeste (西游记) foi redigi-da por Wu Cheng´en (吴承恩) em 1570. A novela desenrola-se em dois mundos, o sagrado e o profano, e narra-nos a de-manda das escrituras sagradas à Índia por parte dos chineses, durante a grande dinas-tia Tang (唐). A missão, a nível telúrico, é encomendada pelo imperador Taizong (太宗) ao grande monge e tradutor budis-ta Xuanzang [ 玄奘(m. 664)]. Contudo, a inspiração desta peregrinação é de origem divina. O Buda Histórico notou na sua es-fera celestial, a Oeste, no Pico do Abutre, no Mosteiro do Trovão, que «há muitas criaturas gananciosas e malvadas no Leste, que se comprazem em provocar sofrimento aos outros, matando e lutando sem parar.» (1994: 58). Por isso, Buda quis distribuir as escrituras pelo mundo chinês. A Bodhisattva Guanyin (觀音) foi incum-bida por Buda da missão de encontrar com-panheiros para o monge Xuanzang. Ela, sempre atenta à salvação da humanidade e à libertação do sofrimento e do mal, aceita feliz a missão. Disse a Bodhisattva a Buda: «a sua pouco talentosa discípula quer ir ao Este procurar o homem que virá buscar as escrituras» (1994:59).Guanyin subjugará 4 monstros no cami-nho, que vão ser os companheiros de pere-grinação e discípulos do Monge Xuanzang, também conhecido por Sanzang (三藏), o Monge dos Três Tesouros. A Bodhisat-tva leva consigo uma sotaina bordada e um anel de nove voltas para entregar ao monge Xuanzang. Este último, se cumprir eficaz-mente a sua missão de 14 anos, escapa à roda da reincarnação (1994:60), e os seus discípulos, forças divinas desobedientes em queda no mundo humano, poderão regres-sar ao Céu, onde voltarão a ocupar cargos

divinos. Guanyin leva ainda consigo uma banda, que provoca terríveis dores de cabe-ça ao desobediente Rei Macaco (1994;60). A Bodhisattva da Compaixão na conversão dos monstros terá ainda a companhia do noviço Hui’an, também chamado Príncipe Moksa. O primeiro ser celestial em queda a ser libertado é um ogre, escondido nas águas do Rio das Areias Flutuantes. Foi castigado por ter sido um general celestial distraído. Pagou a distracção com o castigo de 800 chicotadas, tendo sido exilado para a terra, onde passou a devorar viajantes. Guanyin liberta-o, baptizando-o com o apelido de «Areia» [Sha (沙)] , e o nome budista de Wujing (牾净), que significa «Desperto para a Pureza». Deverá ficar a aguardar nesse mesmo rio a passagem do monge Sanzang em direcção à Índia, para incor-porar o séquito dos peregrinos. O segundo monstro a ser subjugado por Guanyin e pelo príncipe Moksa é o Mare-chal Tian Peng (天篷) da Via Láctea. Este, por ter procurado seduzir a Divindade da Lua, foi punido pelo Imperador de Jade com duzentas machadadas e ao exílio na terra. A Bodhisattva baptizou-o com o apelido de Zhu (猪), que significa «Porco» e deu-lhe o nome budista de Zhu Wuneng (猪悟能), ou seja, «Porco Desperto para o Poder» (1994:63). Obrigou-o a largar as práticas carnívoras de comer ganso selvagem, cão, peixe, e os cinco vegetais picantes. A fim de travar os seus instintos carnais, fica li-mitado a uma dieta vegetariana. (1994:63)A Bodhisattva e o seu discípulo continuam à procura de reunir o grupo certo até en-contrarem um dragão de Jade, filho do Rei Dragão do Mar do Oeste, que por ter quei-mado as pérolas brilhantes do palácio foi Stephen Chow, Journey To The West

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Ecos naturalistas AnA CristinA Alves*

Porco ou Macaco?denunciado como rebelde pelo pai à corte celestial. O imperador de Jade castigou-o, suspendendo-o no ar. Deu-lhe, ainda, 300 chicotadas para que depois fosse executa-do. O dragão é liberto para se transformar no Cavalo Branco do monge Xuanzang, ou como é conhecido em chinês, no Dragão Cavalo Branco, (Bai Long Ma 白龙马). Guanyin também libertará o Rei Macaco, prisioneiro na Montanha dos Cinco Ele-mentos (Wuxing Shan五行山), estando preso porque as suas desobediências não têm conta. Ele é movimento e transforma-ção, a inteligência viva, incapaz de suportar protocolos ou hierarquias, sem quaisquer preocupações com a sua conduta ético-mo-ral. Por isso, se lhe apetece roubar, rouba; se quer matar, mata; enfim, age o mais es-pontaneamente possível, sem qualquer res-peito pelo mundo humano ou divino. Foi ele quem roubou os pêssegos imortais do pomar celestial, que guardava e, também, roubou as pílulas da imortalidade a Laozi (老子); lutou com os deuses e quando lhe foi dado o título de Protector dos Cavalos Celestiais, considerando-o pequeno, esco-lheu um outro: Grande Sábio que Equivale ao Céu (Qi Tian Da Sheng齐天大圣).O macaco e o porco são as duas grandes fi-guras opostas na novela, são ainda animais complementares do ponto de vista das suas características físicas. O porco é o representante do reino ma-terial, o macaco da esfera intelectual. Esta última, quando devidamente cultivada, po-derá conduzir o macaco à sabedoria espiri-tual máxima, que é vazia.O porco é cheio e telúrico; o macaco é o vazio e espiritual. Há vários ditos prover-biais relativos a este par complementar, que ilustram bem as características de ambos.

Relativos ao macaco, encontramos as Se-tenta e Duas transformações do Rei Macaco (qi shi er bian七十二變), ou ainda, Infindáveis Mutações (qian bian wan hua千變万化) , di-tos aplicados a situações que requerem in-teligência, métodos diversificados e grande flexibilidade. As confusões e furtos provocados pela in-teligência activa do Rei Macaco são apre-sentados em provérbios como (da nao tian gong大閙天宮), traduzido à letra por Grande Confusão no Palácio Celestial.O Rei Macaco é ainda o grande espanta demónios e monstros de todas as espécies e categorias, conquistando mais espaço es-piritual para o mundo (shentong- guangda 神通廣大), devido aos seus Infinitos Poderes Mágicos.Porque é mágico, Aparece e Desaparece Mis-teriosamente (shenchu-guimo 神出鬼沒). Só nesta qualidade consegue vencer as forças demoníacas, já que lhes conhece todos os truques. Zhu Bajie, o Porco das Oito Abstinências, é a antítese proverbial do Rei Macaco. Até atingir a iluminação final e ser transforma-do novamente em ser celestial, faz figuras muito tristes. Não é bom companheiro e morre de ciúmes de Sun Wukong. O dito Zhu Bajie Falha e Nunca Assume as suas Respon-sabilidades (Zhu Bajie Shang Chen豬八戒上陳) aplica-se aos que gostam de sacudir a água do capote.Julga-se bonito, quando é imensamente feio, por isso se aperalta. Dizem os chine-ses para casos onde se retoca o impossível: Zhu Bajie Enfeita-se com Flores (Zhu Bajie Dai Hua 豬八戒戴花).Afirma-se de alguém egocêntrico ou dando mostras de falta de compostura: Zhu Bajie vê-se ao Espelho (Zhu Bajie kan Jingzi豬

八戒看鏡子). Também aos que deixam o mundo de uma forma feia, se declara que Zhu Bajie Partiu de Avião (Zhu Bajie zuo feiji 豬八戒坐飛機).Concluindo, nem o porco, nem o macaco são bonitos, enquanto representantes em bruto das esferas naturais da inteligência e da materialidade. Logo, só depois de poli-dos pela espiritualidade religiosa, merecem ascender ao panteão divino. No entanto, ao encarnarem características e tendências comportamentais humanas, tornam-se cómicos e muitíssimo pedagógi-cos. Quem quer ser desobediente e ladrão como o macaco ou glutão e lúbrico como o porco?

Bibliografia

Wu Cheng’en. 1994. Journey to the West. «西遊記». Hong Kong: The Commercial PressHistórias Proverbiais relativas a Zhu Bajie:《描写猪八

戒的成语》http://wenwen.soso.com/z/q314030363.htmHistórias Proverbiais relativas a Sun Wukong: 《关于孙悟空的成语》http://zhidao.baidu.com/question/95335747.html

* A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau

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Vários realizadores asiáticos têm feito, ultimamente, filmes no ocidente, usando actores ocidentais - alguns dos quais de alguma ou muita fama.É o caso de Tsai Ming-liang, com Visage, talvez o menos interessante dos seus fil-mes recentes (mas que tem o mérito de ser filmado em Paris e não querer ser um filme francês); Wong Kar-wai, Blueberry Nights (penoso - quando é que os autores deixam de se mostrar com inocência para começar apenas a vender os seus clichés?); Hou Hsiao-hsien, Le Voyage du Ballon Rouge, e, muito recentemente, Park Wook-chan, Stoker. Os resultados não são encorajado-res. O último filme de Park, filmado na América, não chega sequer a sugerir as promessas que os seus outros filmes desde o início propõem. É como se estes realiza-dores não entendessem bem o que estão a fazer ou no que se foram meter.Abbas Kiarostami fez em 2012 um filme chamado Certified Copy que é uma doloro-sa sucessão de lugares comuns afrance-sados. Faz lembrar a assustadora Europa que Woody Allen consegue imaginar e representar. A França parece ser, infeliz-mente, um dos alvos preferidos destas aventuras. Outro é, inevitavelmente, a América, a eterna atraente América de europeus e asiáticos. A maioria destes fil-mes são como cemitérios de ilusões e mal entendidos.

Há, contudo, um outro filme que supe-ra todos estes no modo como integra os dois universos e os enquadra credivel-mente, um filme que se transporta impe-cavelmente de França para a China, assim como mostra um domínio perfeito dos dois registos, o europeu e o chinês. É Love and Bruises, de Lou Ye, um realizador que tem recebido, ao longo da sua não muito longa carreira de 7 longas metragens, vá-rios louvores e tem junto um público fiel onde me não incluo. O seu último filme, Mistery, acabou de ser lançado.Os seus filmes são certamente diversos nos seus conteúdos e cenários. Depois de Spring Fever (de 2009), que não tem de-feitos ou qualidades que o tornem ines-quecível, poder-se-ia pensar que Lou Ye se imobilizara num lugar obscuro, mas Love and Bruises cria uma confiança nova nas suas capacidades criativas, ao mesmo tempo que confirma a sua enorme sen-sibilidade para o retrato dos lugares que envolvem as suas histórias.Resolve com muita eficácia a cons-trução do aspecto dos seus momentos europeus e chineses. É preciso ver este filme para perceber como outros que se propõem ousadias semelhantes se movem tão timidamente, tão pouco à vontade, e com resultados tão desas-trosos. Igualmente louvável é que se te-nha libertado da tentação de continuar

a repetir algumas das matérias típicas interpretadas pelos realizadores da sua geração - uma que está ainda longe de ter encontrado um rosto próprio ou fil-mes verdadeiramente marcantes para lá de alguns de Jia Zhangke – mesmo que formalmente não se tenha libertado de certos tiques próprios e outros que foi buscar directamente a um autor, Wong Kar-wai, que até 2046 os soube utilizar com deleitosos resultados.Todo este movimento para o exterior re-sulta de um exercício paralelo. Todos es-tes realizadores viram cinema americano e europeu. Que por eles passe um desejo de fazer parte deste universo é mais do que compreensível. Lou Ye fá-lo violen-tamente bem. O seu interesse baseia-se essencialmen-te na mestria que demonstra no domínio dos tons, um interesse acrescido para um público baseado na Ásia. Assim, torna-se numa história que se vê e admira pela pre-cisão de um certo tipo de realismo.Paralelamente, no entanto, Love and Bruises segue a fórmula de outros dos seus filmes no retrato de relações humanas onde se insere com frequência a violência e o ex-cesso e a recusa da exibição de um cená-rio aprazível. A França é tão feia como a China. O que é anormal é que o faça em França, com actores franceses e uma actriz chine-

sa, como se o fizesse na China, liberto de qualquer constrangimento e estrangeiris-mo e, mais anormal ainda, liberto de qual-quer sentimento admirativo provinciano. E, para além disso, sem ter (talvez o mais difícil) sucumbido a tentações turísticas como o não fizeram Kiarostami ou Wong Kar-wai (este verdadeiramente insupor-tável em Blueberry Nights do primeiro ao último minuto, um prazer masoquista in-superável, momento paradigmático inul-trapassável do cool piroso). Se aqui se fala tanto de Blueberry Nights é porque este é tudo aquilo que Love and Bruises, felizmen-te, não é.Não é, ao mesmo tempo, um cinema de imitação, mas um cinema de sensibilida-de. Lou Ye filma Paris como filmara Xan-gai em Suzhou River (que continua a ser a grande referência) com o mesmo tipo de planos e uma montagem semelhante. E fá-lo igualmente nas cenas de Love and Bruises filmadas em Pequim. Seguindo si-tuações paralelas (por exemplo uma saída nocturna em Paris e em Pequim) as dife-renças acabam por se esbater e as nacio-nalidades deixam de fazer sentido.Mas mais saboroso será deixarmo-nos enganar por esta suspeita da semelhança entre os dois lugares, ou deixarmo-nos enganar pela suposta capacidade de um filme (que nem é grande filme) em no-lo fazer acreditar.

luz de inverno Boi Luxo

Love and Bruises, Lou Ye, 2011.

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A pouco e pouco, a série sobre a diáspora asiática espalhada por esse “underground” fora vai sendo alargada. Depois de Onra e Vihn (Triad God), as boas vindas sejam dadas a Alex Zhang Hungtai, o músico nascido em Taipé, Taiwan, que é mais conhecido por Dirty Be-aches.

Dos frutos da emigração oriental que já pas-saram por estas páginas e de outros que hão--de passar pode dizer-se que, na música que fazem, uns são mais devedores do que outros da herança oriental que carregam. No entanto, um traço atravessa todos: a procura das raízes enquanto missão (mais ou menos) espiritual.

No caso de Alex Zhang Hungtai, radicado no Canadá depois de uma infância e adoles-cência nómadas, a epifania é recente e deve--se a uma digressão que o trouxe, em Fevereiro deste ano, a Hong Kong, Japão, Coreia do Sul e Austrália. A impressão perdurou fortemente, como o próprio reconheceu, em Março, no seu blogue: “Esta viagem fez com que percebesse que, independentemente do quão longe me deixei arrastar à deriva, lá bem no fundo serei sempre um filho do Oceano Pacífico.”

Assim dito pelo próprio, preto no branco, torna-se fácil e evidente perceber a conotação extremamente oriental da música de Dirty Be-aches, mas nas dezenas de gravações que Alex Zhang Hungtai vem publicando desde 2007 encontramos essa ligação umbilical intacta al-gures na miríade de referências que parecem conter tantas luzes reflectidas como um espe-lho partido virado para o céu nocturno de um deserto.

Com Alex Zhang Hungtai, tudo aponta para algum lado. Tudo, na música e na ima-gem, é pensado e cuidado como alusão.

No centro de tudo, a ideia de viagem. No espaço e no tempo. O passado é o destino, mas a ele regressamos através de uma reconstrução pessoalíssima que tem por coordenadas blues, rock’n’roll, Elvis, Suicide, máquinas fantasma-góricas, néon, estradas perdidas, restauran-tes desertos, brilhantina, casacos de cabedal, olhos semicerrados, cigarros no canto da boca, sombras solitárias, noite, noite e noite.

Nestes anos 1950 imaginados, desembarca-mos numa praia que podia ser nas Filipinas. Es-tamos no pós-guerra. O sonho e o optimismo hão-de varrer a Ásia e o Pacífico. A influência norte-americana faz-se sentir como nunca. A música conquista tudo e todos, transformados em heróis e heroínas de sonho e chita.

“Badlands”, disco de 2011 que catapultou Dirty Beaches do obscurantismo das edições de autor, cristalizou o personagem que vive animado por todas as influências reclamadas por Alex Zhang Hungtai. É o rebelde sem cau-sa e sem amor à maneira de Leslie Cheung em “Days of Being Wild”, de Wong Kar-wai, dis-posto a ir longe para nada.

Numa entrevista recente ao Pitchfork.com,

próximo oriente Hugo Pinto

o homem por detrás do nome Dirty Beaches confessa-se empenhado em fugir da “constru-ção” de “Badlands”, onde procurou criar “um universo que não existe”.

A fuga levou-o ao disco mais recente, o duplo “Drifters/Love Is The Devil”, apresen-tado como “mais pessoal” e um testemunho dos últimos dois anos da vida de Alex Zhang Hungtai, marcados por uma separação amo-rosa (que de “amorosa” nada teve). “Love is the Devil”, o tema que empresta o título à se-gunda parte do álbum, serve de amostra: uma marcha funesta instrumental que se arrasta com pesar e a custo deixa que assome uma melodia que parece reminiscente das parti-turas que Angelo Badalamenti escreveu para “Twin Peaks”, de David Lynch. Por momen-tos, levita-se.

Inicialmente pensado como um disco de cariz mais experimental, “Drifters/Love Is The Devil”, sobretudo a primeira parte, é no entan-to mais acessível que outros trabalhos de Dirty Beaches. As influências, na maioria, repetem--se, mas numa sonoridade ligeiramente mais limpa, menos rugosa e abrasiva. Os ritmos, que em “Badlands” eram industriais, minimais e repetitivos, são agora de cadências menos frenéticas. Por vezes, o “groove” aparece, tí-mido (em “Mirage Hall” até há “slap bass”). Tal com no disco anterior, continuamos “on the road”, mas aqui o itinerário é mais oci-dental – há passagens pelo “Casino Lisboa”, o quarto tema do alinhamento de “Drifters”, ou “Belgrade”, e diz-se “Au Revoir Mon Visage”.

De sítio para sítio, e por mais âncoras que lance, Alex Zhang Hungtai parece condena-do à deriva, a dizer adeus, a esquecer e a re-descobrir que a areia preta da praia é feita, afinal, das cinzas do que no passado ardeu e só no passado renascerá.

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perspectivas Jorge rodrigues simão

A recente crise financeira global e a re-cessão que vivem os países desenvolvidos numa economia globalizada constituem uma severa chamada de atenção sobre as consequências de se consumir bens por in-corporação de recursos naturais não renová-veis. A possibilidade da recessão económi-ca atingir todo o mundo é uma realidade e empalidece face à iminente crise do crédito ecológico. Viver numa floresta ou no centro de uma cidade, não alteram os nossos meios de subsistência, bem como não muda o fac-to da vida da espécie humana depender dos serviços proporcionados pelos sistemas na-turais da “Terra”.

O “Planeta” através dos cada vez mais frequentes e intensos fenómenos naturais, tem vindo a advertir a espécie humana que está a consumir os recursos que sustentam esses serviços de forma demasiado rápida – a uma velocidade maior que o tempo neces-sário para os recompor.

O consumo desmedido, está a criar uma recessão sem precedentes, e a forma irresponsável que assume, está a esgotar o capital natural do “Planeta”, ao ponto de pôr em perigo a nossa futura prosperidade, senão mesmo a existência. Só nos últimos 35 anos, perdemos quase um terço da vida silvestre da “Terra”. No entanto, a nossa procura por bens de toda a ordem continua a aumentar, resultado do implacável cresci-mento não só da população humana, mas também do consumo individual.

A nossa pegada ecológica global exce-de em quase 30 por cento a capacidade do “Planeta” de se recuperar. Se o consumo e a procura por bens continuarem a este rit-mo, em meados da década de 2030, serão necessários o equivalente a dois planetas para manter o nosso estilo de vida actual. O impacto sobre o “Planeta”, revela-se desde logo no consumo dos recursos hídricos, e na vulnerabilidade da espécie humana fazer face à escassez de água em muitas regiões do globo.

Estas tendências gerais têm consequên-cias muito concretas, e em 2007, ano do início da crise sistémica global, encheu os cabeçalhos dos meios de comunicação so-cial. No mesmo ano, o preço mundial de muitos bens alimentares atingiu níveis re-

Os pilaresda sustentabilidade

cordes, em grande parte devido à crescente procura de biocombustíveis e de alimentos para consumo humano e animal, bem como ficou demonstrado que em algumas regiões do “Planeta” existe uma escassa disponibili-dade de água.

A história documentada do nosso plane-ta, revelou que em 2008, pela primeira vez, o gelo árctico ficou rodeado de águas der-retidas devido ao impacto da nossa pegada de carbono. A crise do crédito ecológico é um desafio mundial. Mais de três quartas partes da população mundial vivem em paí-ses que são devedores ecológicos, ou seja, o seu consumo nacional ultrapassou a “bioca-pacidade” do seu país. A maioria das pessoas continua a manter o mesmo estilo de vida e o crescimento económico das famílias e dos países é feita com base da extracção, cada vez mais excessiva do capital ecológico do “Planeta”.

A boa notícia talvez não passe da te-oria, e em termos muito optimistas, dis-pomos de meios para reverter a crise do crédito ecológico. Não é demasiado tarde para evitar o aparecimento de uma reces-são ecológica irreversível. Estão fixadas as áreas nas quais devemos transformar os nossos estilos de vida e as economias, e está determinada a rota mais sustentável a seguir. Na falta de determinação po-lítica, decide a sociedade civil global se melhorar o seu índice de entendimento e responsabilidade. Está na moda ser ecolo-gista ou ambientalista. Parece dar um cer-to “status social”, como há uns anos dava em alguns países em desenvolvimento ser “missionário ou evangelista”.

As Organizações não governamentais (ONGs) reconhecidas pelos Estados e pela ONU são muito reduzidas. O ambientalis-mo não é uma corrente política, com um determinado de estilo de vida, ao qual se adere pela reunião de alguns e constituição de uma associação que tem por escopo de-fender a natureza, porque passaram a gostar da cor verde, de proteger os animaizinhos e plantinhas, mas que não alteraram o seu es-tilo de pensar e de vida, para um compatível com o seu discurso.

Quando o homem entender que é uma espécie igual às demais e faz parte do meio ambiente e que deve cuidar como sua casa, poderá declarar-se ecologicamente adapta-do. Até lá, terá de estudar muito acerca do “Planeta”, de si e da sua interacção com o mesmo, mudando a sua mentalidade e o das sociedades onde vive.

A enormidade do desafio parece por vezes assustadora, pelo que se introduziu o conceito de “pilares da sustentabilida-de” (forças motoras) para fazer face ao excesso ecológico em diferentes sectores

da vida económica. A análise dos pilares da sustentabilidade permite fazer uma decomposição dos diversos factores que contribuem para o excesso de consumo de recursos e propor diferentes soluções para a sua redução.

O desafio mais importante é do fazer face às “Mudanças Climáticas”. Torna-se necessário criar um “Modelo de Soluções Climáticas” que algumas (ONGs) têm apresentado, e que deve passar pela análise das ditas forças motoras, demonstrando a possibilidade de fazer face com sucesso ao crescimento previsto da procura de serviços energéticos mundiais em 2050, ao mesmo tempo, que se vão conseguindo reduções significativas das emissões de gases de efei-to de estufa em todo mundo.

Tal modelo destacaria a necessidade de tomar medidas imediatas para travar a ameaça das “Mudança Climáticas”. À me-dida que formos reduzindo a nossa pegada e impacto nos serviços da “Terra”, também devemos melhorar a forma de gerir os ecos-sistemas que prestam os ditos serviços. É possível o sucesso, desde que se adminis-trem os recursos naturais nos termos e na escala ordenada pela natureza. Isto signifi-ca, que as decisões a tomar para cada sector económico, como a agricultura ou a pesca, por exemplo, devem ter em conta as conse-quências ecológicas no futuro.

Significa que a comunidade internacio-nal, deve encontrar urgentemente, formas de gerir a situação além das fronteiras na-cionais dos países, cruzando os limites da propriedade privada e das fronteiras políti-cas, para cuidar o ecossistema na sua totali-dade. O célebre “Amanhecer da Terra” foto-grafado pelos astronautas da nave espacial “Apolo 8”, deu-se há quarenta e quatro anos e proporcionou a primeira panorâmica, ja-mais contemplada do “Planeta”.

O mundo passou do crédito ao deficit ecológico, em duas gerações, após essa data. A espécie humana tem antecedentes notáveis de criatividade e de capacidade para resolver os problemas. Esse espírito que transportou o homem à lua deve ser aproveitado para libertar as gerações futuras de uma dívida ecológica sufocante. A cor-recção da nossa posição a bordo da grande nave espacial, o “Planeta Terra”, deve come-çar pelo reconhecimento de que a abun-dância dos recursos naturais imediatamente consumíveis, inevitavelmente desejáveis ou absolutamente essenciais, até ao presente, foi suficiente para permitir que continuás-semos a nossa viagem, apesar da nossa ig-norância.

Tais recursos, em última instância esgo-táveis e dilapidáveis, foram adequados até este momento crítico. Aparentemente, essa

espécie de amortecedor dos erros de so-brevivência e crescimento da humanidade foi alimentado, até ao presente, da mesma forma que um pássaro dentro do ovo se alimenta do líquido envoltório, necessário para uma etapa do seu desenvolvimento, apenas até certo ponto.

O primeiro satélite artificial lançado pela ex-União Soviética, na órbita da “Terra”, a 4 de Outubro de 1957, foi o “Sputnik 1”. Ofe-recia-nos uma posição privilegiada, a partir da qual podíamos olhar para nós mesmos e assinalar o início de uma nova consciência global, uma mudança dramática no nosso relacionamento com o “Planeta”. Vista do espaço, a beleza da nossa biosfera é fantás-tica – mas é fantástica também a sua fragili-dade. As manchas da poluição, as feridas da desflorestação, as cicatrizes da industrializa-ção e a expansão caótica das nossas cidades são evidências de que, na nossa procura por riqueza, estamos sistematicamente a espo-liar todos os aspectos do sistema de apoio à vida do “Planeta”.

O comércio justo ou “fair trade”, é um dos grandes desafios postos à globalização, senão mesmo das maiores batalhas da “Or-ganização Mundial de Comércio (OMC)”, para o implementar, podendo ser consi-derado também, como um dos pilares da sustentabilidade económica e ecológica. O comércio mundial que se pretende justo procura o estabelecimento de preços justos, bem como o de modelos sociais e ambien-tais equilibrados no ciclo da produção no encontro da oferta responsável com a pro-cura ética.

A especulação financeira e imobiliária causadora da crise que o mundo Ocidental vive é uma desvirtuação ao comércio justo. Todo o tipo de especulação é uma conduta lesiva dos valores fundamentais de qualquer ordenamento socioeconómico. As regras do mercado são fraudulentamente altera-das, sendo o preço normal e justo substitu-ído por outros resultantes da inadequação do uso da propriedade urbana no desrespei-to das regras normais de mercado e da sua função social.

Ao Estado compete intervir na forma-ção e controlo dos preços a fim de com-bater práticas especulativas, adequando o preço aos objectivos da política social. Sen-do a especulação uma actividade delituosa anti-económica, é o seu comportamento passível de prevenção e repressão. Muitos países têm criado legislação de combate a tais actividades delituosas contra a econo-mia, considerada como legislação penal se-cundária.

Os Estados dentro do princípio da uni-dade do sistema jurídico têm princípios de aplicação imediata e correctiva a tais práticas mesmo na ausência de legislação especial sobre a matéria. As decisões judi-ciais, na apreciação de casos correlatos, não têm infelizmente reservado a importância que merece e que altera profundamente os valores fundamentais socioeconómicos e desarticulando o pilar da sustentabilidade económica e ecológica.

“When the economy is not giving us the messages that we want to hear, we tend to think of it as broken, unfair, and maybe even a little malicious. Someone ought to step in and fix it or adjust it, just like the government has tried to do now and again. But if the economy is actually a self-sustaining social ecosystem, the same way our physical ecosystem is, perhaps it is better-suited to take care of itself, and our tinkering with it might disrupt instead of help it.”

The EconosphereCraig Thomas

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SATURNO NA ARTE

ConheCe-se desde tem-pos imemoriais um modelo simbólico civilizacional mui-to específico orientado pelos fados, as fúrias e as visitações, em maior grau que todos os outros, que é a arte da “poe-sis”, o que veio a dar e definir o estilo poético, uma presença mítica mais íntima que todas as outras. Nas Odes de Vergílio, na Odisseia de Homero, nal-guns registos e cantos Satur-nais, e em todas as polifonias e registos melódicos, há um ele-mento que criou, criando-se, a raiz do mito poético: falamos de Saturno.

Se numa abordagem apenas sensível e pictórica, podemos reconhecer em Dante, no seu perfil aquilino a presença satur-nina, na sua vida os elementos abundam: o seu exílio, o amor idealizado, um labor impressio-nante na busca de uma hierar-quia onde no topo, tal como no mito da montanha, se retorna ao ser amado, fruto de uma profun-da tenacidade e inquebrantável amor. «Vida Nova» tem exac-tamente esta dimensão quando num instante exclama “não há vida melhor que o tempo feliz na miséria”. Morrerá descarna-do na ausência de todos e sobre-tudo da sua pátria bem-amada.

Camões e os eu Sábado! « O dia em que nasci morra e pe-reça…. a mãe ao próprio filho não conheça…… », uma bela inspiração do Livro de Jó, sem dúvida, mas o mais importante é a alusão ao sábado dia regido por Saturno. A sua vida tantas vezes visitada por exílios, a sua verve clara, o seu aprumar de estilo a cada nova derrocada, as tempestades, a perda, a perda sempre.

Na «Rua de sentido único ou infância em Berlim» Walter Benjamin dá-nos uma maravi-lhoso descrição acerca desta natureza, chegando mesmo a afirmar como uma nostalgia de felicidade, que não há nada que segure mais a liberdade de al-guém que o ter fugido aos pais durante a juventude. Ele sente como todo o Saturnino o peso imenso de não ser livre, daquela coisa chamada destino, missão, estar ao serviço de...

Verlaine, o autor de «Sa-turnais», esse livro de poesia tão bonito e cuja natureza viria a ser destituída por abra-çar com estranha paixão o ser do seu infortúnio e do seu próprio destino: Rimbaud! Apaixonamo-nos por aquele que nos há-de derrotar. Só que eles equiparam-se em gé-nio e desgraça. Rimbaud sai ferido, Verlaine perder-se-á entre álcool e irascibilidade mas ainda tem fôlego para lhe compilar a obra. Fôlego e um imenso respeito por aquele que o suplantou.

Fernando Pessoa sabe-se que amava profundamente o poeta Gomes Leal. Nascidos no mesmo dia, Leal tinha es-crito acerca da presença fria de Saturno o que leva a que Pessoa se inspire para aque-le poema «…a sua herança: fome, miséria, tristeza, os seus anéis transportam esta “dádi-va” e acrescenta: nada mais! Se perscrutarmos a sua poe-sia ele fala-nos amiúde da sua presença, a do “astro baço” e utiliza muito em versos, que penso se terem retirado ila-ções outras, porque é neces-sário saber nele esta presença. Camões, enquanto saturnino, tinha no entanto exaltada a componente venusiana, a líri-ca amorosa, a estética ao vín-culo do outro, o amor sobre todas as formas. Pessoa tinha exaltada a parte Lunar, o des-dobramento da personalida-de, as metamorfoses constan-tes da sua anatomia, os escon-derijos dissonantes de tantos seres num fabuloso jogo de espelhos. Todos, porém, com o mesmo rigor, a boa mestria da linguagem, a firme e sólida boa preparação que implanta a condição.

E, porque um só texto não permite abordar toda a complexidade deste tema, direi talvez que o último po-eta saturnino português foi Al Berto, expressado no seu « Medo».

Pessoa não terá apenas estes singulares caracteres montados pela sua índole sa-turnina. Evidentemente, há que nunca esquecer a função comparativa e a influência das «máscaras de Browing» (a sua mulher dedicaria a Portugal

um livro muito bonito « Sone-tos Portugueses») que relevam ainda para Pound e Machado. E outra coisa importante: a sua herança de cristão-novo, e o disfarce, que fica nos genes.

Na pintura ele está tão presente como na literatura e lembro-me de Durer, como neoplatónico florentino con-sidera a «bílis negra”, o hu-mor saturnino, o que o inspira para uma das suas obras mais emblemáticas: «Melancolia», 1514. Goya – que nunca teve de facto a vida facilitada: sabe--se da sua luta com a Inquisi-ção e a sua surdez alucinativa – representou, afinal, a voraz saciedade de Saturno, numa obra que estremece e choca, «Saturno comendo o filho». Também William Blake, na gravura ímpia “The book of Urizen”, 1794, retrata-o na sua frieza.

Sendo um elemento que perpassa em todos que o gé-nio toca, não sei como situar a tragédia presente. Não exis-tem, talvez, os mesmos para-digmas e os grandes alvores dos “astros baços” ou não, des-pediram-se de nós. Ficámos com uma matéria moldável a cargo, mas que nada diz da amplitude da dor imensa que é transportá-la. Ou da virtude e suprema clarividência.

Os autores, os fazedores querem-se agora seres da su-plantação de coisas inquie-tantes, também… que su-plantamos nós se ainda por nós, não nos transcendemos e recriámos? «Cuidado pois em Saturno esconde-se um deus».

Não faço ideia do futuro simbólico das coisas e do Ver-bo, talvez se reverbere, mas na actual sociedade portuguesa não há mais este Poeta. Os poetas são agora gente muito socialmente virtuosos. Por ou-tro lado, não têm a amplidão das desgraças, nem o autismo dos grandes perturbados. En-tre o serem poetas ou qualquer outra acção social cognitiva ou linguística não há diferença nenhuma. Talvez já não sejam mais poetas mas fazedores de Poesia. Bem feita sempre, que é para duvidarmos ainda mais, do tema em debandada. Mas, pensando bem, este tempo não é feito para nada.

Amélia Vieira

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gente sagrada José simões morais

关帝 Em macau, a maior parte dos estabelecimentos comerciais têm a imagem de Kuan Tai (Guan Di em mandarim), que se apresenta com um corpo forte, cara verme-lha, longa barba preta e vestindo como oficial militar, a segurar na mão direita uma lança.Como pessoa é conhecido por Guan Yu e está relacionado com a queda da dinastia Han e às lutas para o estabelecimento do reino Shu, no período que antecedeu os Três Reinos. Com o nome de Chang Sheng (长生) nasceu em Xiezhou (hoje Yuncheng, pro-víncia de Shanxi), no dia 24 do sexto mês lunar dos anos 60 do século II. Como episódio da sua juventude conta-se que certo dia um fidalgo quis à força possuir uma rapariga e Guan Yu, indignado, matou--o. Perseguido pelas autorida-des teve que fugir e segundo a lenda, para não ser reconhecido Guanyin (conhecida em Macau por Kun Iam) transfigurou-lhe a cor da cara para vermelho.Outra história refere que um pro-prietário rural com muito poder, para obrigar toda a gente a com-prar-lhe água, conspurcava as outras fontes da região. Saturado com tamanha infâmia, Guan Yu um dia matou-o e teve que fugir da cidade. Nessa fuga, para pas-sar a fronteira (guan), tomou o nome de Guan Yu. Nos finais da dinastia Han do Leste (25-220), a decadente cor-te em Luoyang era dominada por eunucos e generais. Guan Yu vagueava como vendedor ambulante na municipalidade de Zhuo, (hoje província de He-bei), quando se encontrou com Liu Bei e Zhang Fei. Os três fize-ram um juramento no jardim dos Pessegueiros tornando-se irmãos de armas, com o voto de Guan Yu e Zhang Fei ajudarem Liu Bei, ligado à casa real dos Han, na sua sublevação armada para estabele-cer o reino Shu-Han.Por essa altura havia outras duas diferentes facções que dividiam o país e assim no Norte, dominava o exército Wei liderado por Cao Cao, no Leste e Sul as forças Wu e a Oeste, os Shu. Eram constan-tes as batalhas entre elas.

Guan Yu, um ávido leitor do Clássico “Anais da Primavera--Outono” (Chunqiu jing), que o acompanhava sempre, comanda-va a guarnição Shu em Jingzhou há 10 anos. No ano 219/220, estando ocupado numa batalha fora da muralha contra as forças Wei, foi apanhado por um ataque surpresa do exército Wu, que era mais ou menos aliado dos Shu. Os Wu conquistaram a cidade e mataram Guan Yu, decepando--lhe a cabeça para, como prova de amizade, a entregarem a Cao Cao. A meio caminho souberam que os Wei tinham feito um acor-do de paz com os Shu e por isso, a cabeça foi abandonada junto a Luoyang.O processo da sua deificação foi longo. Apesar de só ter sido Deus da Guerra durante o perío-do Ming, quando em 1578 o im-perador Wan Li lhe deu o título de Imperador Guan (Guan Di), já na dinastia Sui tinha um templo a si dedicado no local onde foi sepultado, sendo os títulos dados por todas as seguintes dinastias.Durante a vida, Guan Yu tinha a posição de Oficial Militar (Hou). Na dinastia Song tomou o lugar de Rei (Wang). Pela sua lealdade, honestidade, piedade, benevolência, sentido de justiça e coragem, tornou-se muito po-pular devido ao livro San Guo Yan Yi, escrito no início da dinastia Ming. Foi nessa dinastia promo-vido a Imperador (Di) e depois, em 1614, a Sábio (Sheng) ou Santo Militar (Wu Di). Como Ser tão perfeito, todas as profis-sões o querem como patrono e assim é venerado como Deus da Guerra, da Literatura, da Riqueza e patrono das Artes Marciais.Em Macau, Guan Di é conheci-do por Kuan Tai e o templo Sam Kai Wui Kun, situado na rua Sul do mercado de S. Domingos, é--lhe dedicado. Aí, a imagem do Deus é toda dourada, não tendo objectos nas mãos e está acom-panhado à sua esquerda por Chau Chong e do outro lado por Kuan Peng. O seu aniversário acontece no dia 24 do sexto mês lunar apesar de não se realizarem oficialmente nenhumas festivida-des em sua honra.

Guan Dideus da Guerra

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Huai NaN Zi 淮南子 O LivrO dOs Mestres de Huainan

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L e t r a s s í n i c a s

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a par-tir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Quando gostas [de algo ou alguém] em excesso tornas-te indulgente; se fores indulgente, faltar-te-á autoridade.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 43

Descobre a fonte do destino, domina os factores men-tais, traz à razão as preferências, ajusta os sentimentos e o temperamento de modo apropriado e, assim, atingirás a Via do governo.Ao descobrires a fonte do destino, calamidade e for-tuna não mais te confundirão. Ao dominares os teus factores mentais, alegria ou ira não mais te possuirão ao acaso. Ao controlares as preferências pela razão, não mais desejarás aquilo que é inútil. Ao ajustares os teus sentimentos e temperamento de modo adequado, os teus desejos deixarão de ser excessivos.Quando a calamidade e fortuna deixam de te confun-dir, as tuas acções e o teu estado de repouso seguem a razão. Quando deixas de sentir alegria ou ira ao acaso, as recompensas e as punições não são distorcidas. Quando não anseias por aquilo que é inútil, não cau-sas dano à tua natureza por causa do desejo. Quando os teus desejos não são excessivos, desenvolves a tua natureza e a tua satisfação. Estas quatro coisas não podem ser encontradas ex-ternamente, nem obtidas de outrem. São atingidas dentro de nós.

* * *

Quando a benevolência é aplicada em excesso torna-se em fraqueza; se fores fraco, faltar-te-á dignidade. Quando a severidade é aplicada em excesso torna-se ferocidade; se fores feroz, faltar-te-á gentileza. Quando gostas [de algo ou alguém] em excesso tornas-te indulgente; se fores indulgente, faltar-te-á autoridade. Quando as punições são aplicadas em excesso, tornam-se em crueldade; se fores cruel, faltar-te-ão amigos.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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