16
h ARTES, LETRAS E IDEIAS POESIA CHINESA DE MACAU AS MARCAS DA TERRA PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2567. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE FOTOGRAFIA DE PENG YU (DETALHE)

h - Suplemento do Hoje Macau #37

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Suplemento h - Parte integrante da edição de 9 de Fevereiro de 2012

Citation preview

Page 1: h - Suplemento do Hoje Macau #37

hAR

TE

S, L

ET

RA

S E

IDE

IAS

POESIA CHINESA DE MACAUAS MARCAS DA TERRA

PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2567. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTEFO

TOGR

AFIA

DE P

ENG

YU (D

ETAL

HE)

Page 2: h - Suplemento do Hoje Macau #37

I D E I A S F O R T E Sh29

3 20

12

Yao Feng

1. EM NOME DE MACAUOrganizada pelo professor reformado da Universidade de Macau Li Guanding, a  Antologia de Poesia Contemporânea de Macau  foi editada pela Fundação de Macau em 2007. Dividida em dois vo-lumes e editada em chinês, a antologia reúne, no total, 130 poemas da autoria de 32 poetas, entre os quais não figura,

POESIA CONTEMPORÂNEAporém, nenhum poeta macaense ou por-tuguês que resida em Macau. Na intro-dução assinada pelo organizador, não foi esclarecido o critério de selecção dos po-etas nem a razão de omissão dos poetas macaenses e portugueses.Lembre-se que, em 1996, a Fundação de Macau havia editado a Antologia de No-vos Poemas de Macau, organizada pelo poeta Zheng Weiming. Esta antologia, embora organizada em nome de Macau,

ignorou igualmente os poetas portugue-ses. No entanto, na introdução o organi-zador, para além de fazer uma retrospec-tiva sobre o desenvolvimento da poesia de expressão chinesa desde a década de vinte até à de noventa, explicou o con-ceito de Nova Poesia com que titulou a antologia: 1) Poemas de estilo moderno escritos em chinês por pessoas de Macau; 2) Tem Macau como temática[1].  Foi uma selecta virada exclusivamente para os po-

etas que escrevem em chinês. Contudo, Zheng Weiming fez uma definição sobre “ a pessoa de Macau” desde a perspecti-va dos estudos literários, adiantando que qualquer pessoa, caso tenha vivido em Macau durante algum tempo, já se con-sidera “pessoa de Macau”[2]. É um critério bastante tolerante que serve da base para a sua definição da literatura de Macau:“1. Quaisquer obras dos naturais de Ma-cau; as chamadas obras dos naturais de

Os poetas chineses de Macau

MIO PANG FEI

Page 3: h - Suplemento do Hoje Macau #37

I D E I A S F O R T E S h3

9 3

2012

Macau. Implicam os trabalhos de auto-res que nasçam, cresçam, e residam per-manente em Macau, isto é, as obras dos escritores titulares dos documentos de identidade tidos em Macau, ou melhor dizendo, as obras produzidas em Macau pelos autores acima referidos.2. Todas as obras que falem de Macau ou tenham por temas a realidade de Macau, seja quem for o seu autor.”[3]

Esta definição, embora seja abrangente, especialmente no segundo ponto,  corre o risco de não definir nada ou  “optando--se assim pelo critério cumulativo”[4], nas palavras de Ana Paula Laborinho. Existe uma literatura de Macau e uma literatu-ra sobre Macau mas o critério de Zheng Weiming tornou a literatura de Macau demasiado aberta que poderia integrar muitos nomes, tais com como W. H. Au-den, Miguel Torga, Agustina Bessa Luís ou João Aguiar, pelas suas obras que têm Macau como tema.A hibridez de diferentes culturas tor-nou difícil a definição da literatura de Macau. Ao meu ver, não interessa como definir esta literatura visto que cultural-mente Macau não é uma terra autónoma nem independente, sendo a sua cultura sempre de matriz chinesa ou  portugue-sa.  Pode considerar-se que autores que nasçam, cresçam, e residam permanente em Macau como escritores de Macau conforme a definição geográfica,  mas no fundo eles são escritores chineses, portu-gueses, ingleses ou franceses dependente da sua pertença cultural. Em função desta definição, Henrique de Senna Fernandes pode ser classificado em vários níveis: escritor de Macau a nível geográfico, es-critor macaense a nível antropológico e escritor português a nível cultural.Do exposto, podemos ver que para iden-tificar um escritor é necessário conside-rar a sua pertença cultural. Assim sendo, muitos escritores possuem duplos estatu-tos: são considerados escritores de Ma-cau mas, simultaneamente portugueses ou chineses, tendo em conta a sua per-tença cultural. Não é justificável e torna--se absurdo integrar, de modo linear, nos escritores de Macau os nomes tais como Miguel Torga ou João Aguiar apesar das suas obras se basearem na temática de Macau.Três anos depois da publicação da anto-logia organizada por Zheng Weiming, saiu a público a Antologia de Poetas de Macau, cuja selecção e organização esteve a cargo de Jorge Arrimar e Yao Jingming, dois poetas não nativos. Sen-do uma edição em bilingue da respon-sabilidade de três instituições (Instituto Camões, Instituto Cultural de Macau e Instituto Português do Oriente), esta antologia, também redigida em nome de Macau, reúne vinte poetas de cada lín-gua - a chinesa e a portuguesa. No que diz respeito ao critério de selecção, os organizadores defendem que  “um dos critérios seguidos na selecção dos poetas foi a da residência em Macau. Entendeu--se que um dos factores que identifica um poeta com sendo de Macau, tinha a ver com a sua permanência nesta terra, por, pelos menos, alguns anos. Não foram ti-dos em conta, poetas que, pese embora

terem produzido poesia de boa quali-dade, apenas haviam passados por aqui de forma fugaz.”[5]. À luz do espírito de abertura e tolerância, este trabalho não ignorou os poetas que eles achavam qua-lificados, tanto chineses como portugue-ses, contribuindo para o aprofundamento do conhecimento mútuo dos poetas chi-neses e portugueses. Até ao presente, é a única antologia verdadeiramente feita em nome de Macau.Nas actividades de promoção cultural ou turística, diz-se sempre que se Macau caracteriza pela fusão de diferentes cul-turas, o que se tornou uma etiqueta mais atraente desta cidade. No entanto, as culturas, embora convivam basicamente em harmonia e sem  violentos conflitos, nunca conheceram uma convergência essencial e profunda . Esta situação de desentendimento parece bem descrita por um provérbio cantonense: o pato não se entende com a galinha. Mesmo hoje em dia, não é exagerado dizer que Macau continua a ser uma cidade dentro das “duas cidades distintas mas que não são fáceis de separar e que correspon-dem a duas almas, a duas vidas, a duas civilizações - a de Portugal e a da Chi-na”,[6] como descreve o escritor Jorge de Inso sobre Macau do século XIX.

Provavelmente era esta vontade morna de conhecer o outro que levou o orga-nizador da Antologia de Poesia Contem-porânea de Macau  a ignorar os poetas que escrevem em português. No entanto, é igualmente justo indicar que depois da transferência da soberania de Macau para a China, muitos portugueses regressaram a Portugal, deixando uma grande lacuna na criação literária em português.

2. ESQUECER OU MEMORIZAR,NUM GESTO DE DESPEDIDANo processo de descolonização no mun-do, o caso de Hong Kong e de Macau constitui um exemplo excepcional uma vez que o princípio de “Um país dois sis-temas ” garante manter intactos o sistema social e o modo da vida destes territórios. A passagem do poder ocorreu em confor-midade com os acordos assinados pelas duas partes sem provocar lutas ou confli-tos sangrento, que não pouparam outras colónias. Estes são, pois  casos únicos no âmbito mundial. Entretanto, mesmo com as garantias previstas na Lei Básica, tanto em Hong Kong como em Macau reina-va um ambiente de incerteza em relação ao futuro durante o período de transi-ção. Diferentemente de Hong Kong, em Macau era a comunidade macaense que

traduzia esta incerteza face a um futuro incógnito, com receio de perder os privi-légios étnicos de que gozavam durante a administração portuguesa, enquanto que os chineses, que na sua absoluta maioria se encontravam em condição marginal, aguardavam por esse momento histórico com esperança.Mas nem todos os chineses o aguardam com um patriotismo superficial. É curioso verificar que os dois poetas na antologia optaram pelo mesmo tempo e pelo mes-mo espaço para se despedirem da página histórica a ser virada. O Hotel Bela Vista, lugar carregado do forte valor metafórico e simbólico, não foi escolhido por acaso como uma referência poética. No seu po-ema intitulado Uma tarde no Hotel Bela Vista, Huang Wenhui, poeta distinguido da geração dos poetas que surgiram nos anos noventa, expressou, num discurso irónico, um complexo sentimento. Fazen-do um resumo da história em que Macau é personalizada como uma mulher de idade com “os seios murchos” ,  não se esquece de avivar a memória da humilhação:

E as marcas dos dentes, rentes aos seus seios murchostais como um complexo mapa mundial do século XIXonde as cicatrizes sangrentasdelimitam as fronteiras [7]

De facto, a história de Macau como colónia serve do tema constante para a expressão poética em chinês na qual é lugar-comum comparar Macau a um filho humilhado e afastado do berço da Pátria--mãe. Huang Wenhui não escapou a este lugar-comum, embora a imagem da mu-lher com os seios murchos seja original. Então, não há outra forma de lidar com essa história desagradável senão esquecê--la. O acto de esquecer significa um ges-to de despedida,  com receio do destino de “outro copo vazio”:

Tempo para a despedidaTempo para o esquecimento Pergunte se as facas deitadas na toalha brancaainda guardam impressões digitais de alguémse a cinza na grandiosa lareira ainda se lembrade uma paixão acesaos suspiro, soltados  à altura da despedidanão passam de  arrotes a nutrir o esquecimentoTemos que tomar conta do palpitar bêbadoque se destina a outro copo vazio

Então acenamos a toalha surpreendida no pescoçocomo uma despedida do fim do século vinteda pós-colonizaçãoda pós-transiçãodesta vista que deixa de ser Bela Vistae depois esquecemos tudoe depois  limpamos espuma restante no canto da bocaerguendo o copo para um brindepara receber o novo banquete do povono novo século[8]

Ao lado de Wang Wenhui, Lin Yu-feng  escolheu igualmente o Hotel Bela Vista para despedir-se do passado mas prefere “guardar esta noite”. No poema intitulado  Última Noite no Hotel Bela Vista, encenou uma cena em que um par clandestino fez um jantar para se despe-direm e decidiu fazer amor para memori-zarem a noite de despedida:

RUI CALÇADA BASTOS

Page 4: h - Suplemento do Hoje Macau #37

I D E I A S F O R T E Sh49

3 20

12

Não há hoje nem amanhãNão há lágrimas nem é preciso dizer adeuse a vida tem que começar pelo fado a tremer no ban-quete de despedidaQuando a canção ainda não  chegou ao fimo par clandestino já tinha esgotado o vinho no copotrocando um olhar vermelhoPara guardar esta noitetemos de fazer amor debaixo do oleandrocomo se fosse uma cena do velho filme sobre amor e guerraA história pode realizar-se assimtal como um ciclo infindável de invasão e evacuação

Assim, foram retiradas a seriedade e a solenidade a um momento histórico re-duzindo os meandros da história ao na-morisco inconsequente dum par clandes-tino. E a consciência de “não há hoje nem amanhã”tornou o tempo numa dimensão intemporal ou condenou tanto o passado e como o futuro a um nada. No fundo nada é alterável porque tudo é fatídico. Mesmo a história, cheia de cenas medí-ocres do amor, não deixa de pertencer a um ciclo infindável.  Mas a história foi sempre impulsionada pela vontade insa-ciável do ser humano, cujos truques não escapam aos olhos do Velho da História:

Vim duma cidade como estaQuando vimo século XX está a findarna cidade profundaCom flash e objectiva, a insaciável vontadeencena uma cena trás outra em que lágrimas se despe-dem de lágrimasSó o farol não diz nada com o único olho arregaladoporque já sabe tudotudo não passa de truques para eles ganharem a vida[9]

3. NADA DE SÉRIOPODERÁ AQUI ACONTECER?Na criação literária em expressão chine-sa, a poesia e a crónica são as duas mo-dalidades mais dinâmicas em compara-ção com outras. Depois da transferência, alguns dos poetas foram desaparecendo do horizonte, sendo que uns emigraram para o estrangeiro e outros deixaram de escrever devido a diversos factores, espe-cialmente esgotados na inspiração. Entre esses poetas da velha geração, apenas Yi Ling continua activa e dinâmica apesar da atitude reservadora face à vida social. Trata-se de uma das vozes mais corajosas moldando o seu discurso poético com uma profunda consciência de interven-ção social. Como cidadã residente em Macau e portadora do bilhete de identi-dade de Hong Kong, Yin Lin já expressou no livro de poesia  Ilha Móvel, editado em 1990, a dificuldade de identificar-se com uma terra dentro da terra própria. Neste perplexidade, a relação entre eu e o país é mediada mais por aqueles valo-res universais do que pela cegueira do pa-triotismo. Como chinesa, não lhe custa identificar-se com a cultura chinesa mas ela não consegue identificar-se com um regime ainda menos democrático, o que lhe atribuiu uma postura dissidente que subsiste sob muita pressão numa socieda-de conservadora como Macau. Então o que é aquele lugar a que poderá perten-cer de corpo e de alma? Escreve ela:

Percebes o que é o destino de repouso?É onde a vida começa e acabaÉ onde se nutrem o pensamento e o sentimentoÉ onde se guardam o desejo e a gratidãoÉ um lugar inexistente no mapa frio mas sim é guardado quente no fundo da tua cora-ção[10]

A transferência da soberania de Macau para a China deu aos chineses a sensação de serem senhores desta terra. Eles aguar-davam com confiança e esperança um fu-turo novo à luz do princípio de “Um país dois sistemas” e de “Macau é governada pela gente de Macau”. Entretanto, uma série de escândalos levou a população a ficar profundamente desiludida com o governo da RAEM, tendo provocado incessantes protestos e manifestações. Não se duvida que em Macau há mais espaço para a liberdade de expressão em comparação com outras partes da China continental, mas ainda não foi constitu-ída uma sociedade cívica amadurecida, habituada e tolerável à oposição e à voz crítica. Daí que às questões de interesse

público, muita gente prefere cair no si-lêncio em vez de tomar uma atitude acti-va e interveniente, como refere Lu Aolei neste poema:

O que pensa da situação actual, por favor?Não tenho nada a dizerQual é sua opinião sobre a prevenção da epidemia, por favor?Óptimo! Não aponte a câmara para mimOnde é que vamos, por favor? Silêncio! Distribua cartas!Como é Macau de agora?Chegue ao balcão 2 para apostarPor favor, não se importa de……Ora bolas, não active o pensamento! Não ilumine o escuro com flashDeixemo-nos andar calados Para evitar chaticesnada  perguntemos [11]

Este estrofe do poema intitulado  “Uma entrevista na rua” descreve uma faceta do contexto social de Macau. Nesta cidade tão pequena que quase todos os rostos são familiares, a relação social é mais re-

gida pelo familiarismo, e em virtude dis-so há louvor fácil, silêncio cúmplice, mas ao mesmo tempo o medo de dizer e o medo de existir.Lembre-se que o poeta inglês  W. H. Au-den viajou em 1938 para a China e fez uma visita a Macau tendo ficado  mesmo instalado no Hotel Bela Vista. No seu po-ema sob o título de Macao, o poeta cha-ma à cidade “uma excentricidade de Por-tugal e da China”, descrevendo que “Igre-jas ao longo de bordéis testemunham que a fé pode perdoar o comportamento natural.” Ao longo dos anos, uma das ca-racterísticas mais referidas de Macau é a sua indústria do jogo, sinónimo de vício, perdição e crime para uns, e ainda sinó-nimo de gozo e simples diversão para ou-tros. De um lado igrejas, do outro casi-nos e bordéis, contratam-se mutuamente, sendo esta singularidade cultural e moral que fez de Macau uma cidade onde os vícios infantis se contrapõem às virtudes inferiores, onde “nada de sério poderá aqui acontecer”[12] Provavelmente, o que Auden pretendia dizer é que “a violência ideológica e a fúria política que caracte-rizam a sua época não parecem perturbar Macau, cujos cidadãos estão mais pre-ocupados com o negócio”.  [13]  Desde a publicação do poema do poeta inglês até ao presente, esta característica de Macau mantém-se inalterável, mas uma série de acontecimentos graves, entre os quais se destaca o caso de corrupção de Ao Man Long, fizeram negativamente de Macau mais conhecida a nível mundial. Yi Lin, sempre atenta à realidade, tinha coragem de denunciá-la:

O jogo é a maior indústria de MacauO governo é a maior accionista dela (nem é preciso fazer registo comercial)A sociedade é a maior banqueiro (em nome do pa-triotismo)As seitas são donos dos salões do casino (têm numero-sos negócios filiados)Nós é que somos a maior ficha emprestada para ser apostada[14]

São poemas imediatos que nascem na vontade de censurar a realidade, que se declina cada vez mais a beneficiar a gen-te de poder. As transformações radicais que Macau tem conhecido não lhe satis-fizeram à esperança  demandando-a para participar na vida social tendo a poesia como farpa. Sinceramente, esta maneira de intervenção social parece insignifican-te, dado que teve raramente eco na praça pública, mas pelo menos é posta à prova a relação da poetisa com a realidade, que não é passiva nem subordinada, embora desde a perspectiva poética, muitos dos poemas deste género ainda sejam precá-rios

4. NO EXÍLIO, EM BUSCA DO HABITÁVELTradicionalmente Macau foi sempre um destino do exílio que acolheu muitos escritores, desde Camões, Camilo Pes-sanha passando pelo poeta chinês Qu Dayou ou dramaturgo Tang Xianzu. O exílio, separação da pessoa e da ter-ra onde vive, sempre caracteriza a vida do ser humano. O exílio implica a des-locação dum sítio para outro em busca

MIO PANG FEI

Page 5: h - Suplemento do Hoje Macau #37

I D E I A S F O R T E S h5

9 3

2012

do vida mais habitável. Mas também há outros exílios: o de fora para dentro, isto é, a abstenção ou fuga às circunstâncias exteriores à procura de uma terra utópica ou espiritual. Enfim, pode dizer-se que o poeta está sempre a caminho do exílio, do retorno a uma terra onde repousar o seu corpo e alma. Em Macau, cidade de imigração e emigração, se os poetas imi-grantes da década de oitenta vieram para cá em busca duma vida melhor, os poe-tas jovens, dos anos setenta e oitenta já não se preocupam com a questão do pão do dia-a-dia,  mas sim com a busca duma terra onde possam lançar a raiz. Eles nas-ceram e cresceram nesta terra mas per-deram a capacidade de fazer comunhão com ela:

Onde é a terra natalQuem sabe?Nostalgia da terra, terra da nostalgia……Aquém das avenidas prósperasquem  prefere ser caminhante solitário?Actuo à vontadee olho para longealinão sou quem retornarmas sim passageiroQue chata a vidaÉ preciso ter razão para se enraizar[15]

Ser passageiro numa cidade onde se nas-ceu e cresceu significa exilar-se dentro da sua terra própria, de maneira a traduzir uma renúncia à vivência estruturada nes-ta terra. De facto, para os poetas jovens integrados na antologia, a monotonia re-

petida, o vazio, o tédio e a solidão que lhes alimentam a vida quotidiana consti-tuem os temas constantes no seu discurso poético. Si Luosha, uma jovem nascida em 1985, fica cansada prematuramente da época próspera e pacífica, sentindo necessidade de procurar uma vida pura e limpa:

Esta épocaconsidera-se próspera Na cidade não há mais revolta, epidemia e exército revolucionáriamas precisamos de nos exilar como a ovelhaá procura dumas ervas sem agritóxico[16]

A par desta busca da vida purificada em duplo sentido, o amor passou a ser um lugar de abrigo. Em vez do amor român-tico, fogoso, intenso e beijado pelas pa-lavras doces, aspira-se um amor simples e caracterizado pela vida ordinária, que talvez seja mais consistente e menos vul-nerável:

Apenas quero ter-te como parceiroa ter de passar uma vida comumbocejando juntos[17]

Na realidade, cabe o amor dar o senti-do a uma vida solitária a ser desenrola-da no sertão da multidão. Namorando como se fosse o seu ofício quotidia-no, o jovem poeta He Lingsheng tem produzido uma grande quantidade de poemas amorosos em que registou um trajecto afectivo, inscrito por momen-tos sucessivos de alegria, exaltação, desilusão, angústia, enfim, todos os

ingredientes do amor e do desamor, enquanto que  Huang Wenhui, por sua vez,  tem   uma percepção pessimista sobre o amor, mergulhando-se numa impotência de amar:

Meu amoro amor é uma múmiaé um corpo vazio sobreposto de várias camadas de conservantebem embrulhado e atadopara ser enterrado no fundo da cela Depois é exorcismoDepois é mistérioE depois é o esquecimento[18]

Assim, o amor tornou-se um corpo seco, condenado à morte no túmulo do esque-cimento e sendo privado da possibilida-de de chegar à fusão das almas, porque há medo do longo caminho das sauda-des, do abismo do vazio, do incurável da ferida. Um fim previsto faz com que o amor fique sem força para acção.Hoje em dia a poesia está um bocado marginalizada tanto em Macau como em qualquer parte do mundo, mas a voz do poeta, enquanto expressão da alma, não deve nem pode ser apagada. Numa cida-de como Macau, há uma realidade fecun-da com fonte de inspiração e promissória para o surgimento de poetas comparáveis a Baudelaire, autor de Flores do Mal, uma vez que no jardim da cidade, as flores estão a desabrochar: tanto as do bem e como as do mal.

[1] Zheng Werming, Antologia de Novos Poe-mas de Macau(澳門新詩選),  Fundação de

Macau,  1995, p. 1[2] Zheng Werming, ibidem.[3] Zheng Weiming, Literatura Chinesa de Ma-cau entre os Anos Oitenta e os Princípios da Década de Noventa, in  Administração, nº29, vol,VII, 3º, p.503[4] Ana Paula Laborinho, Por uma Literatura de Macau, in Antologia de Poetas de Macau, IC,ICM e IPOR, 1999, p.19.[5] Jorge Arrimar e Yao Jingming,  Antologia de Po-etas de Macau, IC,ICM e IPOR, 1999, p.28.[6] Jaime do Inso,  O caminho do Oriente, Macau, Instituto Cultural de Macau,  p.75[7] Huang Wenhui, Uma Tarde no Hotel Bela Vis-ta, in Antologia de Poesia Contemporânea de Ma-cau(澳門現代詩選), Fundação de Macau, 2007,  p.333.[8] Huang Wenhui,Ibidem, p.334.[9] Agens  Lam, Vim duma Cidade como Esta, Ibi-dem, p.175.[10]Yi Ling, Macau, Macau, , Ibidem, p.524.[11]  Lu Aolei,  Uma Entrevista na Rua, Ibidem, p.245.[12]  Elizabeth D. Baker e Donald C.Baker,W.H. Audem,Um Grande Poeta Inglês que escreveu sobre a China, Hong Kong e Macau, in Revista de Ma-cau, Nº25 (II Série) , Outubro/Dezembro de 1996, p. 289-298.[13] Elizabeth D. Baker e Donald C.Baker, Ibidem, p.289,[14] Yi Ling, Oito Sectores da Indústria de Macau, in  Antologia de Poesia Contemporânea de Macau, p. 527.[15] Luo Jiayi, Pensamento no Silêncio da Noite, Ibidem, p. 481.[16] Si Luosha, Exílio Metafísica na Época Pacífi-ca, Ibidem, p.268.[17] Si Luosha, Escutar os Lótus,  Ibidem, p.272.[18] Huang Wenhui, Meu Amor,  Ibidem, p.362.

RUI CALÇADA BASTOS

Page 6: h - Suplemento do Hoje Macau #37

O SOL, A LUAE A VIA DO FIO DE SEDA

Fernanda DiasU m a l e i t u r a d o

YI JING

LIVROS DO MEIO

O mais clássico dos clássicos chineses.O livro que estabelece o correr dos dias e a distribuição das energias.

PARA LER, USAR E ABUSAR

Page 7: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h7

9 3

2012

Régis Bonvicino* in Sibila

Registo  “Words & the world”, editado pelo principal poeta chinês vivo, Bei Dao, e lançado pela editora da Chinese University, de Hong Kong. O título “As pala-vras e o mundo”  explica-o: é produto do segundo en-contro de poetas realizado na cidade de Hong Kong, na China. O livro traz textos de vinte autores nas suas línguas originais, em inglês e em mandarim. Há vários dialectos falados na China (o cantonês, o sichuanês e o hakka, por exemplo), entretanto, o mandarim foi adop-tado como idioma oficial pelo governo. O chinês, no seu conjunto, é falado por um sexto dos habitantes do mundo, embora não tenha o poder do inglês e a difu-são do espanhol. Nestes termos, assemelha-se ao hindi (Índia), que, com 565 milhões de falantes nativos, é o segundo idioma do globo. Participei desse encontro, ao lado de alguns es-trangeiros. O japonês Shuntaro Tanikawa e o russo Arkadii Dragomoshenko são dois dos destaques do volume, que se torna atraente pela presença de poe-tas de Taiwan, Hong Kong, Macau e, sobretudo, da China continental. Há diferenças de compreensão do conceito de poesia e de poema entre os chine-ses e os ocidentais. Ao contrário do que se imagina, há vários poemas duros, registando uma experiência imediata. Os chineses são, ao mesmo tempo, literais e indiretos, no sentido metafórico. Um dos poetas constantes do volume é Xi Chuan, de Beijing. No poema “Agosto”, por exemplo, tra-balha com os traços acima descritos. Para falar das enchentes do verão, diz: “O mês de Agosto são os olhos dos peixes / mortos na terra depois de uma inundação”; para falar dos insectos: “O mês de Agos-to é um mosquito / que voa abastecido de nosso san-gue”. Um dos poetas mais interessantes é Yu Jian. A con-trariar as expectativas ocidentais sobre a poesia chi-nesa, escreve, na peça intitulada “A respeito da rosa”: “e também quero ofertar germes à rosa, imundície à ave”. Listo alguns dos nomes que compõem o livro, além dos já citados: Lo Chih Cheng, Chen Ko Hua e Ling

Yu, de Taiwan, Yu Chiang e Yo Xiang, do continen-te, além de Yao Feng, de Macau, e Yip Fai e Wong Leung Wo, de Hong Kong. Esta, embora conhecida como a cidade do luxo no Oriente, tem um museu de arte com 15 mil trabalhos e tem políticas de edu-cação formal superiores hoje às de vários países eu-ropeus. Os tópicos da democracia e da liberdade de expressão estão presentes em vários autores. Entretanto, quero registar um fenómeno novo da cultura chinesa. A partir de Deng Xiao Ping (1989), com a abertura da China ao mundo, os poetas chine-ses começaram a trocar, em parte, os seus modelos tradicionais por modelos do Ocidente, sobretudo anglo-americanos e europeus, como T. S. Eliot. Essa invasão ocidental faz Charles Baudelaire ser lido ao mesmo tempo que o sueco Tomas Tranströmer, que recebeu o Prémio Nobel no ano passado. Cronolo-gicamente, ambos são contemporâneos. É também já um dos efeitos da internet, que cria – para todas as literaturas – uma “destradição”, uma não tradição, baralhando a dureza da história real. O crítico literário Paulo Franchetti definiu, com acerto, a influência da internet na actual poesia bra-sileira, o que vale, sob certos ângulos, para a chine-sa: “Agora, a tradição é um simulacro. O conheci-mento dos topoi está morto ou não é compartilhado pelo leitor disponível. Ao mesmo tempo, a internet altera a forma da produção e da leitura, multiplican-do as referências intertextuais colhidas no Google, ao sabor da bolsa de valores da cultura”. No entanto, na China, ao contrário do Brasil, as lei-turas simultâneas de poetas ocidentais de períodos distintos se dão menos como complacência e mais como desafio. Bei Dao, que esteve exilado por dez anos do seu país, resume a situação, no prefácio: “É preciso indagar de novo o que é poesia e o que ela pode oferecer, num mundo tomado pela linguagem da internet e do entretenimento, tomado por lixo linguístico, numa era de perda de valores culturais”. Algumas possibilidades de resposta à questão po-dem ser lidas nesse livro surpreendente. 

* Poeta, autor, entre outros de “Até agora”, e directorda revista Sibila http://sibila.com.br

CHINA INDAGA O QUE É POESIA

Bei Dao

I D E I A S F O R T E S

Page 8: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h8 C H I N A C R Ó N I C A9

3 20

12

ANTÓ

NIO

GRAÇ

A DE

ABR

EU

António GrAçA de Abreu

EM PEQUIM, em quase toda a China, o Ou-tono é a mais perfeita das estações do ano.Depois dos calores do Estio que também bate forte nestas regiões do norte do impé-rio, o Outono chega, no início de Setem-bro, transparente, claro, suave. As árvores transmutam as cores, misturam-se verdes, castanhos, amarelos e dourados, o verme-lhão seco. As folhas demoram a cair, talvez receando serem feitas em nada pelo Inver-no frio que aí vem.No Outono é um prazer fugir da convulsão e confusão da grande metrópole e, longe dos quinze milhões de pessoas que a povo-am, afastado do bulício e labor de Pequim, procurar a serenidade estável e bonita que, surpreendentemente, se encontra mesmo ao lado da cidade. É só saber caminhar ao seu encontro. Gosto de passear pelos campos nos arre-dores de Pequim, de ir até à ponte de Lu-gouqiao ou Marco Polo, do século XII, com os seus 365 leõezinhos de pedra, todos diferentes, empoleirados na sequência das guardas da ponte, de costas voltadas para o rio Yongding. Gosto de subir pelas colinas, passar o Palácio de Verão, acolher-me no templo do Buda Deitado, com crisântemos multicolorindo os canteiros dos jardins e

a alegria do vermelhão viçoso dos velhos pavilhões recentemente pintados. Vou con-versar com um ou dois dos quinhentos luo-han, as estátuas dos discípulos de Buda em tamanho natural que descansam no pavi-lhão do templo das Nuvens Azuis, em ple-na Colina Perfumada. Dois desses luohan, dizem-me, são excelentes cópias do que terão sido em vida os grandes imperado-res Kangxi e Qianglong, no século XVIII. Que galardão e prazer visitar a casa humil-de rodeada de flores e vegetação onde fa-leceu Cao Xueqin (1715-1763), deixando inacabado sobre a sua mesa de trabalho o manuscrito com os oitenta capítulos do 红楼梦 Hong Lou Meng, O Sonho do Pavilhão Vermelho, o mais famoso romance de toda a literatura chinesa... Depois, acompanhar o pequeno regato e diluir-me pelo vale das Cerejeiras. As colinas ainda verdes, a ter-ra, atapetada a urze e erva brava, as árvo-res, sequóias pequenas perfurando o vazio, bambus oscilando, o ribeiro cantando no musgo e nas pedras, por cima mais rasgões aveludados de céu azul, tudo limpo, num ar macio e translúcido. Pedaços de sol cain-do gota a gota encharcando os montes de um calor tardio, e de paz. Pequim lá longe, com os arranha-céus esbatidos na bruma e na poluição da cidade e as multidões aben-çoadamente distantes…Há sempre mais Pequim para me embeber e

desaparecer. Regresso à quase harmonia da vetustez do burgo imperial, agora quando o Outono desce, outra vez, sobre casas e gentes. Pego na motorizada, venho de Haidian, faço quilómetros por avenidas, o trânsito confuso, depois os atalhos e entro por ruelas e becos nos velhos houtong. O Gulou da dinastia Ming (1368-1644), a torre do Sino, a torre do Tam-bor, os lagos pequenos de Shichahai, as casas cinzentas e térreas, a vida ignorada e exposta das gentes de Pequim, abrindo-se, fechando--se ao mundo. Ao amanhecer, dar com as pequenas surpre-sas. Os anciãos nos parques fazendo taichi-quan, o boxe das sombras, a tentar agarrar o mundo e fazer, desfazer energias no ritmo do espairecer do corpo. Mãos, braços, per-nas, tudo voando em gestos lentos e pau-sados.Ao anoitecer, os namorados passeando de mão dada na penumbra do parque Beihai, palácio de Inverno dos imperadores de an-tanho, escondendo-se depois por detrás de uma sebe, diante do pequeno lago, ainda com lótus em flor.Outono em Pequim. Na distância do ar ra-refeito e puro, os montes do Oeste debrua-dos por montanhas de nuvens.E lágrimas rolando devagar, em olhos amendoados e corações magoados, sob os salgueiros numa despedida, nas margens doces do lago dos Bambus Violeta.

OUTONO EM PEQUIM

Page 9: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h9C H I N A C R Ó N I C A

9 3

2012

Os anciãos nos parques fazendo taichiquan, o boxe das sombras, a tentar agarrar o mundo e fazer, desfazer energias no ritmo do espairecer do corpo

Page 10: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h109

3 20

12

luz de inverno Boi Luxo

Que me interessa que este não seja um dos grandes filmes de Ray quando con-tém algumas cenas que são tão inesque-cíveis que o colocam num lugar à parte? Cenas que são como uma imensa surpre-sa ao virar de uma esquina. Cenas que são como se um rio se revelasse, turbulento e inesperado, por trás de um pequeno monte? Já aqui se falou, a propósito de outro filme asiático (japonês) do poder individual de algumas cenas. Neste filme passa-se o mes-mo, há uma cena (ou duas) em que parece preparar-se uma revolução, uma cena que promete que o mundo irá mudar e essa cena passa-se numa casa de banho. Mas voltemos à hesitação que impe-diu que estas considerações se tivessem concluído apenas numa instalação e se tenham estendido por este texto, como uma torrente de lava. Falar de um filme de Ray leva-nos inevitavelmente a mui-tos outros.Talvez fosse mais sensato preferir a este filme um outro, Charulata, de 1964, por-ventura mais perverso, quase perfeito como filme, um dos preferidos do pró-prio autor. Ou, cedendo ainda à tentação doce de falar de um filme que é o retrato de uma emancipação de uma mulher, es-colher o exemplo mais óbvio e lembrar a resolução estridente de Bimala, a mulher de Ghare-Baire (A Casa e o Mundo, 1984) em conhecer o mundo.É que os filmes de Ray, como outros fil-mes indianos, bengali ou não, têm este poder fluvial de nos fazer divagar e de não nos deixar ater a certezas.

MAHANAGAR (THE BIG CITY)

Este é um dos filmes mais profundamente urbanos de Ray. Ou talvez não. Poderá, ao invés, ser profundamente provinciano no olhar que estende sobre a cidade. Há outros que sobre ela até mais programa-ticamente se debruçam. É o caso dos 3 filmes que compõem a chamada Trilogia de Calcutá: Pratidwandi, Seemabadda e Jana Aranya (todos dos anos 70), todos eles, no entanto, centrados em figuras masculinas.Mas a cidade é aqui, neste filme, o lugar onde a determinação pode acontecer. A cidade é o lugar da emancipação e da inovação, o lugar que permite e promo-ve a coragem de reordenar uma situação social.São muitos os filmes que falam da cora-gem de uma mulher. Nada disto é novo nem o era em 1963. Mas são poucos os realizadores que conseguem rodear as suas personagens de uma aura que é de início banal e natural mas que se transfor-ma, aos poucos, numa aura de um brilho universal, uma aura exemplar e admirá-vel. Quase apetece dizer bem dos acto-res.Acontece uma coisa nos filmes de Satyajit Ray que é quase impossível de reprodu-zir. É algo que se dá imperceptivelmente, algo que só nos atinge quando já não há retorno possível. Aos poucos, à medida que se começa a adensar a trama, cada gesto começa a aparecer investido de um sentido cada vez mais importante e so-lene. Cada virar de cabeça, cada olhar, cada passo, ganha uma solenidade e uma precisão temíveis. Isto acontece em fil-

mes em que tudo parece, ao início, ser de uma banalidade inultrapassável. Neste também assim é. O transporte que este movimento nos obriga a fazer (repito, de modo imperceptível) cria em nós um ine-vitável impulso.As cenas em que a mulher, Arati, regressa a casa depois de receber o seu primeiro salário, são de uma justeza insuportável. São como as cenas do começo do amor entre Apu e Aparna na terceira instala-ção da Trilogia de Apu. E como tantas outras no cinema de Ray. Que perfume é este com que ele envolve algumas das suas figuras, um perfume que transfor-ma personagens banais em personagens que ascendem a um lugar paradigmático, quase estatuário, impossíveis de ignorar? É isto que ele lhes faz, transforma-as em estátuas e torna-as imortais, peças de um imenso templo.Em Mahanagar, a mulher da casa, contra o preconceito e a hostilidade de grande parte da família, decide empregar-se para ajudar a equilibrar o orçamento familiar. Não é um empreendimento fácil no in-terior de um conjunto conservador. Esta mulher de sari, lançada no mundo do trabalho, faz lembrar outras, japonesas, de quimono, cujo tradicionalismo ves-tuário esconde uma vontade indomável. Nos dois cinemas vemos estas figuras contrastantes: as mulheres de sari ou de quimono, à partida mais tradicionais, e as mulheres de traje ocidental, de quem se espera um comportamento mais tole-rante à novidade. Uma das figuras deste filme, uma mulher anglo-indiana que se

prende de amizades com Arati, traja-da sempre de um modo ocidental que completa uma atitude arrogante oposta à atitude contida da mulher Bengali tradi-cional, serve para sublinhar o abismo que existe entre a coragem de Arati e o que tradicionalmente se espera dela.Quando menos se espera, o marido de Arati perde o emprego e esta assume su-bitamente o papel daquele como garante da sobrevivência do conjunto familiar. Mas que me interessa tudo isto?Há uma cena do filme em que se opera uma subtil transformação. Trata-se da cena em que Arati entra na casa de ba-nho da empresa onde trabalha com um envelope com o seu primeiro salário. Será talvez preciso lembrar que Ray tem um profundo sentido musical. A banda sonora deste filme é da sua autoria. Ape-nas assim se explica este engenho, apenas assim se explica que um realizador de ci-nema possa, em poucos planos, sem diá-logo, apenas com um ou dois travellings, transportar o filme a estas alturas e mos-trar tanto com tão pouco.Curiosamente, no mesmo lugar, na mes-ma casa de banho, acontece, um pouco mais tarde, algo de semelhante. Edith Simmons, a rapariga anglo-indiana, apli-ca com um cuidado de amiga extremosa um pouco de baton nos lábios de Ara-ti. Como se exibe um programa social apenas com quatro ou cinco planos? Sa-bendo aplicar um sentido musical a um programa de imagens. É este o perfume inconfundível que se desprende deste e de outros filmes de Ray.

P R I M E I R O B A L C Ã O

SATYAJIT RAY, 1963

Page 11: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h11

9 3

2012T E R C E I R O O U V I D O

NUMA FEIRA SEMPRE POP“We western pop-makers are like the Brothers Grimm. We scribbled a few fairy stories a long time ago. And now they’re there, transmuted, misunderstood and built in stone at Tokyo Disneyland, and we’re wandering around the theme park in our frock coats murmuring aloud in wonder ‘Did we really start this?’”

Momus, “Shibuya-kei Is Dead”

Na década de 1990, enquanto no Ocidente meio mundo andava entretido a ressacar do “grunge” ou a delirar com a “brit-pop”, no Ja-pão, a história da música Pop era transformada num interminável conto de fadas. Shibuya, o “shopping district” por excelência de Tóquio, é o epicentro da fábula que passou a ser conhecida como “Shibuya-kei”, o “estilo Shibuya”. Além das inúmeras lojas que penduravam as últimas tendências da roupa nas suas montras, Shibuya albergava algumas das lojas de discos com os melhores catálogos do mundo. O paraíso consumista era habitado por jo-vens ávidos das importações que chegavam do Ocidente. Não se tratava de coleccionismo se-lectivo; o objectivo era mesmo comprar tudo o que o dinheiro pudesse, o que no caso de uma boa parte dos japoneses em questão era

bastante, devido à generosidade de papás que acumularam pequenas fortunas nos bancos ao longo de uma vida pacata só agitada, aqui e ali, por bonançosos ciclos de prosperidade econó-mica (as crises estavam, ainda, por vir).Foi, pois, sem preconceitos e de mente aberta que muitos destes coleccionadores se torna-ram músicos e vice-versa.Em Shibuya, como recorda Nick Currie, mú-sico, escritor e artista britânico conhecido por Momus, recente residente de Osaka, a moda deixava de o ser a cada 5 minutos e no pre-ciso momento em que um novo estilo nascia era logo revivido e parodiado. “Lojas e museus são a mesma coisa, e comprar ou ser curador de uma exposição são actividades ao mesmo nível de produzir arte”, escreve Momus, num pequeno ensaio sobre o fenómeno “Shibuya--kei”, por volta de 1997.De facto, bandas e nomes como Pizzicato Five, Flipper’s Guitar, Towa Tei, Cornelius, Cibo Matto, Takeshi Nakatsuka, Fantastic Plastic Machine, Takako Minekawa, Yoshi-nori Sunahara e tantos outros têm todos em comum o método que passa por coleccionar, ‘samplar’, copiar, colar, editar e sintetizar o imenso arquivo Pop ocidental, do presente e do passado, dos franceses anos “yé-yé” ao House de Chicago, passando pela Bossa Nova,

pelo “lounge” luxuoso de Burt Bacharach, pelo Jazz e por tudo o mais que fosse “cool” e ven-dido nas discotecas de Shibuya.Há que concordar com Momus: “Cultural objects are often so much more interesting when taken out of context, misunderstood, or fetishised.” No fundo, é este o grande legado do “Shibuya-kei” e do seu enorme espelho dis-torcido apontado, em contra luz, ao Ocidente. A imagem reflectida foi convenientemente captada na outra extremidade do mundo e ar-tistas como Dimitri From Paris, Le Hammond Inferno ou o inevitável Momus, e editoras como a Bungalow, em Berlim, ou a Matador, nos Estados Unidos, souberam converter em energia a nova vaga japonesa.Mas, como esperado, foi no Japão que se sen-tiu com mais impacto o efeito “Sibuya-kei”, catalisador de uma verdadeira reestruturação da indústria musical, até então dominada pela chamada “J Pop”, música exclusivamente can-tada em japonês para consumo interno, de valor artístico altamente discutível ou simples-mente inaudível, consoante o humor. Tudo isso mudou a partir da zona oeste de Tóquio, na década de 1990. O tempo pode já ter passado, o “Shibuya-kei” pode ter acabado, mas não morreu. Anda por aí. Afinal, sempre andou e, parece, sempre andará.

próximo oriente Hugo Pinto

Page 12: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h129

3 20

12 C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis Tiago Quadros*

O CABANON DE SOU FUJIMOTO“EU QUERIA CRIAR UMA

ARQUITECTURA DE MADEIRA DEFINITIVA. PENSEI QUE, COM ESTA CABANA, QUE PODERIA SER CONSIDERADA UMA CASA, PEQUENA E PRIMITIVA, SERIA POSSÍVEL CRIAR UMA PROPOSTA ARQUITECTÓNICA SIMULTANEAMENTE NOVA E ORIGINAL.Uma secção quadrada de ma-deira de cedro, de 35 cm de lado é empilhada sem fim. No final do processo aparece um lu-gar prototípico, um lugar ante-rior à arquitectura se tornar ar-quitectura.”1 É deste modo que Sou Fujimoto apresenta a casa de madeira definitiva. Construí-do em 2008, em Kumamoto no Japão, o projecto recorre à in-crível versatilidade da madeira.

A madeira é utilizada na ar-quitectura convencional para, de modo intencional, se dife-renciar. Não só em estruturas como pilares e vigas, mas tam-bém em elementos como as fundações, paredes exteriores, divisórias interiores, tectos, pavimentos, isolamentos, mó-veis, escadas e janelas. O que Fujimoto propõe é que sendo a madeira tão multifacetada, de modo inverso deveria ser pos-sível criar uma arquitetura que satisfizesse todas as funções mediante um único processo e um único método para usar di-ferentes tipos de madeira.

Trata-se de uma inversão da versatilidade. A partir dela sur-ge uma nova arquitectura que mantém a condição indiferen-ciada de um todo harmonioso, anterior à divisão de funções e papéis. A secção quadrada de madeira de cedro, de 35 cm de lado, produz um impacto surpreendente. Com efeito, ela transcende o que costumamos designar de “madeira” e torna--se numa “existência”, num material completamente dife-rente. As suas dimensões tes-temunham de modo adequado a sua materialidade enquanto madeira, mas a dimensão de 35 cm está também relacionada com o corpo humano. Assim, o espaço tridimensional criado é formado por incrementos de 35 cm. Este tipo de espaço em camadas tem a capacidade de gerar uma espécie de relativida-

de espacial e um novo sentido de distâncias.

Neste projecto não há cate-gorização de pisos, paredes ou tectos. O que parece solo tor-na-se cadeira, tecto ou parede, dependendo, literalmente, da perspectiva. Os pisos tornam--se relativos e as pessoas rein-terpretam a espacialidade de acordo com o sítio onde estão. As pessoas são distribuídas tri-dimensionalmente no espaço e experimentam novas sensações de profundidade. Os espaços não são divididos, mas antes gerados, por acaso, em elemen-tos que se fundem. Os habitan-tes descobrem diferentes fun-ções por entre essas variações. É um lugar que se aproxima de uma paisagem nebulosa. Seja como metodologia construtiva ou experiência espacial, esta é uma arquitectura síntese da fusão de vários elementos in-diferenciados. Nesta cabana, as regras convencionais da arqui-tectura são anuladas. Não exis-te planta, nem sequer pontos de referência. E no entanto, o cabanon de Sou Fujimoto nasce simplesmente da versatilidade da madeira.

Sou Fujimoto (Hokkaido, Japão, 1971) licenciou-se na Universidade de Tóquio, Fa-culdade de Engenharia, Depar-tamento de Arquitectura em 1994. Estabeleceu o seu próprio atelier em Tóquio, Sou Fujimo-to Architects, em 2000. A sua experiência no ensino foi de-senvolvida enquanto professor da Tokyo University of Scien-ce (desde 2001), da Universi-ty of Tokyo (2004), da Showa Women’s University (desde 2004) e da Kyoto University (desde 2007). Sou Fujimoto também tem dado aulas em vá-rias universidades no estrangei-ro, como o Departamento de Arquitectura do Massachusetts Institute of Technology, Cam-bridge (Massachusetts, 2006), o Royal Institute of British Ar-chitects, em Londres (2007) e a London Metropolitan Univer-sity (2007).

Sou Fujimoto pertence à jovem geração de arquitectos japoneses, mas a sua obra al-cançou já o mundo todo. Isto porque, mesmo com os seus pequenos projectos, que vão cabendo na palma da sua mão,

o seu trabalho indaga repeti-damente o significado essen-cial da arquitectura: o que é a arquitectura? Como deve a arquitectura relacionar-se com a natureza? Para o arquitecto japonês, falar sobre a arqui-tectura é falar sobre o mundo. As obras da nova geração de arquitectos japoneses apre-sentam-se geralmente brancas, abstractas, contendo o míni-mo de informação possível. Parecem perseguir o mundo de espaços abstractos implíci-to no “menos é mais” de Mies, esperando ser valorizados na sua esbelteza minimalista. No entanto, a maioria destes tra-balhos deve ser compreendida como o resultado de uma pes-quisa relacionada mais com ca-pacidades tecnológicas do que como resultado de uma procu-ra contemplativa.

Aparentemente, a arquitec-tura de Sou Fujimoto procura, também, a tradição do cubo branco puro, e parece aproxi-mar-se da abstracção minima-lista. No entanto, a experiência vivida nas suas obras demonstra que estas prosseguem uma di-recção completamente diferen-te. Fujimoto procura investigar como a arquitetura deve recu-perar a sensibilidade da vida humana. Poder-se-ia dizer que as suas experiências são dirigi-das para a recuperação das inte-racções humanas e das relações primitivas entre as pessoas e a natureza.

O cabanon de Sou Fujimoto não pertence ao universo da arquitectura de madeira. Se a arquitectura feita de madeira deve ser considerada arquitec-tura de madeira, então o cabanon de Sou Fujimoto é a madeira em si, que neste caso transcende as convenções arquitectónicas para se converter num lugar para o Homem. Ecos de uma existência primordial anteriores à arquitectura, em busca de um novo conceito, de uma nova existência.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

1 - FUJIMOTO, Sou (Outubro de 2009). “Final Wooden House, Kumamoto” in 2G-Sou Fujimoto - nº 50, p. 60.

Page 13: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h13

9 3

2012C I D A D E S I N V I S Í V E I S

José simões moraisJOSÉ SIM

ÕES MORAISEM 1888, UMA EPIDEMIA DE

PESTE ASSOLOU MACAU E SÓ TERÁ SIDO DEBELADA APÓS OS HABITANTES TEREM IDO A FOSHAN E TRAZIDO UMA ESTÁTUA DO DEUS PAU KONG (BAO GONG EM MANDARIM).Crendo no poder que este deus tinha contra os maus espíritos, que provocaram a epidemia, os residentes de Macau de-cidiram construir na Rua da Figueira um templo a Pau Kong. Assim este foi edifi-cado logo no ano seguinte, 1889, na zona denominada por essa altura de bairro das Portas do Campo de S. António.

Com um custo de um pouco mais de 1600 patacas, era preciso angariar di-nheiro e para isso, além dos peditórios realizados entre os habitantes de Macau, organizaram-se diferentes comissões que abriram subscrições para esse fim.

“Assim Lao-chec e 10 associados an-gariaram cento e tantas patacas por subs-crição”, como nos conta o padre Manuel Teixeira e os membros da comissão orga-nizadora para a construção do Pau-Kong Miu encabeçada entre outros por Chiang--chan-hin conseguiram mais de 1200 pa-tacas, tendo ainda contraído um emprés-timo para pagar o que faltava. O resto da história é contada pelos Boletins Oficiais.

No Boletim Oficial n.º 31 de 1 de Agos-to do ano de 1896 é publicado um aviso de Lao-chec, Lao-chon-ky e outros chineses dizendo “que o pagode Pao-cong-mio foi construído com o fundo que eles entre si formaram e que só os indivíduos do bairro das Portas do Campo de Santo António têm direito a administrar o mesmo pago-de, não podendo ninguém doutro bairro ingerir-se na sua administração”.

Já no Boletim Oficial n.º 45 do ano de 1896, com a tradução de José Vicente Jor-ge, dá-se conta de um contencioso aberto por Chiang-chan-hin, Vong-iong, Ly--cheng, Chan-pat e outros moradores no bairro das portas do Campo de Santo An-tónio e membros da comissão organizada para a construir o pagode Pao-công-mio que diz ser o aviso publicado no B.O. em 1 de Agosto altamente injusto pelas se-guintes razões:

“1.ª O terreno em que se acha constru-ído o pagode era um terreno baldio e foi concedido livre de foro pelo governo por-tuguês expressamente para tal fim. A con-cessão feita pelo governo foi um benefício que devia aproveitar a todos os habitantes de Macau em geral; mas Lao-chec e ou-tros querem agora que o pagode fique só para eles. São muito injustos.

“2.ª Quando um pagode é construído com o dinheiro de subscrição feita entre

A CONSTRUÇÃO DO TEMPLO PAU KONG

muitas pessoas, deve esse pagode ser ad-ministrado por todas essas pessoas que concorreram para a sua construção. O pagode Pao-công-mio foi construído com donativos feitos por todos os habitantes de Macau e, mesmo depois de construí-do, são também os habitantes e lojistas de Macau os que têm dado anualmente dinheiro para pagar as despesas das festas e ofícios religiosos. Isto por sete anos su-cessivos. Lao-chec e outros querem agora transgredir os antigos preceitos, entregan-do a administração do pagode única e ex-clusivamente aos habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António.

“3.ª O pagode Pao-công mio não foi construído unicamente com o dinheiro de Lao-chec e seus companheiros, mas com o de todos os habitantes de Macau. Exa-minando a lápida que existe no pagode vê-se que a construção deste custou mais de mil e seiscentas patacas. Lao-chec e mais dez associados fizeram subscrições com as quais obtiveram cento e tantas patacas, ao passo que as subscrições que Chiang-chan-hin, Lam-mui-sao e outros fizeram circular de porta em porta pela cidade de Macau, produziram mais de mil e duzentas patacas – mais do decuplo da importância reunida por Lao-chec e seus companheiros. Por este motivo todo o habitante de Macau deve ter direito a ad-ministrar o pagode. Como podem, pois, Lao-chec e outros considerar seu o pago-de? Entregar a administração do pagode,

como eles disseram no seu aviso, unica-mente aos habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António é injusto.

“4.ª Quando o pagode estava ainda em construção, era o abaixo-assinado Chiang-chan-hin quem estava encarrega-do de receber o dinheiro das subscrições e de pagar as despesas.

Como a importância das subscrições não chegasse para as despesas, havendo cinquenta e tantas patacas por pagar, os abaixo assinados Chiang-chan-hin e Lam--mui-sao, conseguiram contrair um em-préstimo e pagaram a diferença. Lao-chec e outros, nada fizeram. São pois injustos, vindo agora dizer que só eles trabalharam para a construção do pagode.

“5.ª A maior parte dos habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António são carregadores ou vendilhões ambulantes. Não há naquele bairro outras lojas senão as de Lao-chec e seus compa-nheiros, as quais são umas lojas pequenas. Se se estabelecer que só os habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo An-tónio podem eleger directores para o pa-gode, com certeza todos os anos ficarão eleitos Lao chec ou seus companheiros, os quais, no bairro, fazem o que querem sem consultarem pessoa alguma, e ninguém se atreve a contrariá-los. Dizerem eles no seu aviso que nenhuma pessoa doutro bairro poderá ingerir-se na administração do pa-gode não é quererem usurpar o pagode que é dos habitantes de Macau?

“6.ª É regra estabelecida em todos os pontos do império chinês que para admi-nistradores de fundos públicos devem ser eleitos lojistas, donos de casas de penhor ou proprietários abastados para que, no caso de haver algum desfalque nos fundos a eles confiados, possa este desfalque ser por eles pago; que os donos de lojas de pouco valor e as pessoas que não possuem propriedades, ainda que sejam íntegros e dotados de inteligência, quando eleitos para administrar fundos públicos, devem apresentar pessoas idóneas para os afian-çar; por se recear que, se houver algum desfalque, eles não tenham dinheiro para pagar e o prejuízo não possa ser reme-diado, ainda que a questão seja levada a tribunal. Ora, Lao-chec e outros possuem apenas umas pequenas lojas em que fazem o negócio de ferros velhos e não têm fia-dores. Eles, que não foram eleitos directo-res do pagode pelos habitantes de Macau, querem ficar para sempre com a sua ad-ministração e não permitem que ninguém que não seja do seu bairro tome conta da administração de pagode. Isto mostra qual a sua intenção.

“Os abaixo assinados, Chiang-chan--hin e outros, não contendem com Lao--chec e seus companheiros com o fim de ficarem com a administração do pagode, mas unicamente para salvaguardarem os seus fundos para que estes possam durar para sempre. Os abaixo assinados reque-reram à autoridade competente, pedindo se dignasse ordenar que o pagode fosse considerado pertencente aos habitantes de Macau em geral e que, segundo a praxe estabelecida, fossem os administradores dos fundos do mesmo pagode eleitos en-tre os donos de casas de penhor, sendo, além disso, nomeados um certo número de indivíduos de diferentes bairros para examinarem anualmente as contas de ad-ministração, ficando estes indivíduos tam-bém encarregados da celebração de festas e ofícios religiosos.

Para constar se publica o presente. 28 da 9.ª lua do ano 22 de Kuong-su.”

Convêm dizer que na Rua da Figueira, para além do templo de Pau Kong existem mais três pagodes, sendo este o que está situado junto à rua da Entena. Dentro está dividido em quatro salas, estando o altar de Pau Kong na sala da entrada do templo.

Os 100 anos de existência do templo a Pau Kong aconteceram em 1989 e o ani-versário dos mil anos de Pau Kong foi as-sinalado em 1999. A partir daí nunca mais foi celebrada nenhuma festa neste templo, ao contrário do que o boletim do turismo refere sobre as celebrações para este ano. No entanto, na quarta-feira passada foi o aniversário de Pau Kong e muitas foram as pessoas que aí bateram cabeça ao justo deus imparcial e incorrupto.

Page 14: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h149

3 20

12

gente sagrada José simões morais

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

Um costume antigo, que se perpetua até aos nossos dias, so-bretudo nas aldeias chinesas, é colar na porta de entrada das ca-sas dois cartazes, cada um com uma imagem de um guerreiro. Tal acontece também nas grandes portadas dos templos por toda a China onde estão pintados os Deuses das Portas (Menshen, 门神). Estas duas imagens nem sempre correspondem às mesmas personagens e pelo número de diferentes representações levan-tam-nos uma série de questões. Nomeadamente, a razão de aí es-tarem e quem são.

Conta uma lenda muito antiga que, na montanha Dushuo, havia um pomar de pessegueiros. O rei desses domínios, como os pêssegos eram deliciosos e tinham o poder de tornar imortal quem os comesse, aí colocou dois irmãos, Shen Tu (神荼) e Yu Lei (郁垒), que para além de serem homens de uma grande honestidade, eram muito fortes e corajosos.

Para além de fazerem fren-te aos animais selvagens, que ao redor viviam e até então depra-vavam os frutos, guardavam-nos ainda da cobiça de um rei vizinho, que vivia louco por conseguir deitar mão ao precioso elixir da imortalidade. Este rei, um déspota que matava as pessoas só para lhes beber o sangue, um dia enviou um dos seus homens para que lhe trouxessem alguns pêssegos, mas os dois irmãos recusaram. Então o rei, reunindo um grande exér-cito, avançou até aos terrenos do pomar. Os dois irmãos, que se ti-nham tornado amigos dos tigres e contavam já com a ajuda deles, conseguiram desfeitear as forças do demoníaco rei.

Retornando ao seu domínio sem conseguir o intento desejado, o rei criou um novo plano. As-sim, convocando alguns dos mais poderosos espíritos malévolos e aproveitando a escuridão da noi-te aí voltou. Apanhados a dormir, os dois irmãos foram despertados por um ruído e rapidamente fo-ram ao pomar onde um, com um ramo de pessegueiro e o outro, com uma chibata, confrontaram os demónios que um a um foram desfeiteados e dados a comer aos tigres.

Rapidamente a notícia se espa-lhou pelas redondezas e as pesso-as vieram em multidão agradecer aos dois irmãos, que se tornaram heróis. A sua fama foi-se alastran-do e quando eles morreram tor-naram-se imortais, vivendo como guardiões das Portas no Palácio do Céu. As pessoas, acreditando que os ramos de pessegueiros ti-nham poderes mágicos para afu-gentar os maus espíritos e trazer paz à família, passaram a colocar nas portas dois destes ramos, gra-vando em cada um o nome de um dos dois irmãos, Shen Tu e Yu Lei. Com a invenção do papel, passou a ser usado esse suporte para es-crever os seus nomes ou pintadas as suas imagens.

Com o passar dos tempos e após milénios, já a memória ti-nha perdido em quase todos os lugares estas duas personagens quando, na China, chega ao po-der a dinastia Tang (618-907). O segundo imperador, Tai Zong (626-649), fruto da sua consciên-cia pesada pelas mortes durante a guerra para colocar a dinastia no poder, frequentemente tinha pe-sadelos durante o sono. Sentia-se doente e os fantasmas não o lar-gavam. Então, dois dos seus mais bravos generais, Qin Shubao (秦叔宝) e Weichi Gong (尉迟恭) colocaram-se de guarda à porta do seu quarto, para lhe garantir um bom repouso. Então, o impe-rador começou a dormir tranquilo não sendo mais incomodado por nenhuma alma penada. Os dias e meses foram passando e o impe-rador resolveu, para livrar os seus generais protectores de tão árduo e penoso trabalho, mandar que lhes fossem feitos os seus retratos e assim os substituiu. O povo ao saber dos bons resultados alcan-çados pelas imagens dos generais contra os espíritos malignos e do-enças, resolveu também colocá--los nas portas dos seus lares.

Com o passar dos séculos e dinastias, outros generais foram tomando o lugar dos anteriores e assim, por vezes, aparecem nas portas de entrada duas imagens do exorcista Zhong Kui (钟馗), ou Guan Yu (关羽) com Zhang Fei (张飞). É na celebração do Ano Novo que todos os anos es-sas imagens são mudadas.

OS DEUSES DAS PORTAS

门神

Page 15: h - Suplemento do Hoje Macau #37

h15

9 3

2012L E T R A S S Í N I C A S

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença ta-oista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conte-údo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Clas-sics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda uti-lizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

Se usares o caos para atacar a desordem de outrem, tal equivale a responder ao fogo com fogo.

CAPÍTULO 180

Lao Tzu disse: Governa países com polí-ticas sensatas, usa as armas com tácticas de surpresa. Trata de criar políticas go-vernamentais insuperáveis antes de ten-tares prevalecer sobre os teus oponen-tes. Se usares o caos para atacar a desor-dem de outrem , tal equivale a responder ao fogo com fogo, ou a uma inundação com água, e, do mesmo modo, será im-possível estabelecer a ordem.Algo diferente é usado enquanto táctica de surpresa. A calma é uma surpresa para os agitados; a ordem é uma surpresa para os confusos; a abastança é uma surpre-

sa para os famintos; o descanso é uma surpresa para os exaustos. Se souberes responder a estas coisas correctamente, como num suplantar sucessivo de uma série de elementos, poderás chegar a toda a parte com sucesso. Quando as suas virtudes são iguais, o partido maior triunfa sobre o mais pe-queno. Quando o seu poder é compa-rável, o partido mais sábio vence o mais tolo. Quando a sua inteligência é a mes-ma, o partido que dispõe de uma estra-tégia captura o partido sem estratégia.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Page 16: h - Suplemento do Hoje Macau #37

Poeta da dinastia Tang. Entre o taoísmo e o zen, Han Shan fala da vacuidade e do silêncio, do interior dos homens e do encontro com a Natureza.Feito monge, ria-se do mundo, da pressa, das ambições humanas e, sobretudo, ria-se de si próprio.Contemporâneo e imperdível.