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Pituxa, a vira-lata guia para pais Pituxa, a vir a-lata Walcyr Carrasco A menina Alice adora exibir tudo o que possui. Seu maior orgulho é o casal de pastores- -alemães Sissi e Ludovico. Quando Clara, a mãe da garota, resolve adotar a vira-lata Pituxa, Alice não gosta nem um pouco da ideia: como assim, uma cachorrinha que vivia na rua se misturando com seus cachorros de pedigree ? Mas Pituxa acaba conquistando o coração da menina, mostrando a ela que ser ou não de raça não é importante. Este guia em forma de perguntas e r espostas foi elaborado pelo psicólogo social Fernando Braga da Costa, dout or pela Universidade de São Paulo e autor de Homens invisíveis: r elato de uma humilhação social. Nesse livro, baseado em uma pesquisa acadêmica, ele r elata sua expe- riência como gari na universidade. Duas vezes por semana, dur ante dez anos, Fernando varria ruas, limpava fossas, enfr entava chuva e sol f orte e o pr econceito de colegas e prof essores, que simplesment e o ignoravam quando ele estava usando o uniforme da equipe de limpeza. Aqui, ele explica par a os pais os mecanismos de formação do preconceito e como evitá-lo. Guia par a pais il u s tr a ç õ e s S i m o n e M a t i a s Existe uma idade certa para eu tratar do tema do preconceito com meu filho? Essa questão pode ser trabalhada desde os pri- meiros meses de vida da criança. A expressão do senso comum “ninguém nasce sabendo” é verdadei- ra: precisamos aprender tudo, desde que nascemos. Mesmo as reações que parecem um “reflexo natur al” dos bebês exigem aprendizado: sabe-se, por exemplo, que muitos recém-nascidos precisam ser ensinados até a mamar no seio da mãe. O aprendizado é uma tentativa de adaptação ao mundo. O bebê e a criança o veem como algo muito complexo e assustador. Fatos e objetos são sempre enigmáticos à primeira vista e podem causar assom- bro e até dificuldade de agir ou pensar a respeito do que acontece. Diante do desconhecido, é comum ha- ver uma compreensão limitada das coisas. Nesses momentos, a presença de quem exe- cuta o papel materno é fundamental. A mãe, o pai ou o cuidador deve passar tranquilidade e atenção à criança, dando a ela a sensação de que é possível lidar com o diferente, evitando um estreitamento precoce do olhar para o mundo. 1 série TOdoS JUNtoS

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Pituxa, a vira-lata guia para pais

Pituxa, a vira-lataWalcyr Carrasco

A menina Alice adora exibir tudo o que possui. Seu maior orgulho é o casal de pastores- -alemães Sissi e Ludovico. Quando Clara, a mãe da garota, resolve adotar a vira-lata Pituxa, Alice não gosta nem um pouco da ideia: como assim, uma cachorrinha que vivia na rua se misturando com seus cachorros de pedigree ? Mas Pituxa acaba conquistando o coração da menina, mostrando a ela que ser ou não de raça não é importante.

Este guia em forma de perguntas e respostas foi elaborado pelo psicólogo social Fernando Braga da Costa, doutor pela Universidade de São Paulo e autor de Homens invisíveis: relato de uma humilhação social. Nesse livro, baseado em uma pesquisa acadêmica, ele relata sua expe-riência como gari na universidade. Duas vezes por semana, durante dez anos, Fernando varria ruas, limpava fossas, enfrentava chuva e sol forte e o preconceito de colegas e professores, que simplesmente o ignoravam quando ele estava usando o uniforme da equipe de limpeza. Aqui, ele explica para os pais os mecanismos de formação do preconceito e como evitá-lo.

Guia para pais

ilustrações Simone Matias

Existe uma idade certa para eu tratar do tema do preconceito com meu filho?Essa questão pode ser trabalhada desde os pri-

meiros meses de vida da criança. A expressão do senso comum “ninguém nasce sabendo” é verdadei-ra: precisamos aprender tudo, desde que nascemos. Mesmo as reações que parecem um “reflexo natural” dos bebês exigem aprendizado: sabe-se, por exemplo, que muitos recém-nascidos precisam ser ensinados até a mamar no seio da mãe.

O aprendizado é uma tentativa de adaptação ao mundo. O bebê e a criança o veem como algo muito complexo e assustador. Fatos e objetos são sempre enigmáticos à primeira vista e podem causar assom-bro e até dificuldade de agir ou pensar a respeito do que acontece. Diante do desconhecido, é comum ha-ver uma compreensão limitada das coisas.

Nesses momentos, a presença de quem exe-cuta o papel materno é fundamental. A mãe, o pai ou o cuidador deve passar tranquilidade e atenção à criança, dando a ela a sensação de que é possível lidar com o diferente, evitando um estreitamento precoce do olhar para o mundo.

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É ruim eu querer selecionar as companhias do meu filho?

Sem dúvida. Limitar os vínculos sociais das crianças ou dos adolescentes os faz, paulatinamente, tornarem-se inseguros e pouco abertos a compartilhar experiências com os outros. Além disso, o efeito pode ser justamente o contrário do esperado, isto é, criar curiosidade acerca dessas restrições e fazer a criança procurar o que é consi-derado “proibido”.

Não obstante, uma conversa aberta e democrática acerca deste ou daquele comportamento que venha a preocupar os pais é sempre bem-vinda.

Não devemos esquecer que os comportamentos individuais em geral estão associados às dinâmicas dos grupos, ou seja, não é raro um jovem ter uma atitude que ele não teria em outro ambiente porque, na verdade, é resultado de uma série de expectativas de seus pares.

Meu filho não demonstra muito interesse por crianças que não tenham os mesmos brinquedos e condições que ele. Isso pode ser considerado preconceito?

Não. Isso constitui, na verdade, a insegurança tí-pica de uma fase do desenvolvimento, fato que pode perdurar algum tempo, como a “aliança” entre meni-nos “contra” as meninas. trata-se de um período que serve à criança como fortalecimento de sua identidade por meio daquilo que é dela e pode ser reconhecido nos outros, como a escolha do time de futebol.

No entanto, é muito salutar que se observe esse momento como uma “passagem”. Se esse tipo de com-portamento persistir às portas da adolescência, é bom procurar um especialista para auxiliar na retomada do amadurecimento. Caso contrário, podemos esperar um jovem com dificuldades de relacionamento e grande ten-dência a desenvolver comportamentos preconceituosos.

Como agir quando meu filho disser algo preconcei-tuoso de forma espontânea?

Não são raras as vezes em que os pais são pegos de surpresa por questionamentos desconcertantes. o adul-to deve mostrar para a criança que não possui respostas prontas sempre, estimulando sua curiosidade e incenti-vando a ampliação dos limites de seu conhecimento.

Certa vez, em um restaurante, minha filha primo-gênita (que, naquela época, tinha 2 anos) abordou-me diante do cozinheiro com a seguinte pergunta: “Papai, quem é que pintou esse moço de preto?”. Ainda de per-nas bambas, respondi: “Provavelmente, a mesma pessoa que te pintou de branco. As pessoas são de várias cores, minha filha... Sua mãe, por exemplo, é mais clara do que eu e você”.

Mas há momentos em que não conseguimos nos safar dessas “armadilhas”. Nesses casos, o melhor é devolver a pergunta à criança e estimulá-la a tirar suas próprias conclusões. Se, ainda assim, sentirmos necessi-dade de algum comentário, jamais devemos decretar que ela está certa ou errada. Isso seria um desastre.

Acolher o que elas dizem e refletir a partir de seu ponto de vista, amparando seus raciocínios e ilusões, vai fazê-las mais abertas aos nossos ensinamentos — e nós mesmos aos ensinamentos dela.

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Meu filho contou que, na escola, algumas crian-ças zombam dele, chamando-o de “pobre”. O que posso dizer a ele? Devo entrar em contato com a escola?

Entrar em contato com a escola é algo a ser feito sempre com certo cuidado, uma vez que ações mui-to intensas por parte da instituição podem acentuar o problema. Por isso a escolha da escola dos filhos é tão importante: nesses momentos, os pais precisam ter con-fiança na escola, para poder discutir o assunto de manei-ra a não causar constrangimentos à criança.

Se, de fato, existe um desnível socioeconômico, é bom que os pais conversem com a criança antes de procurar a instituição, explicando que essa diferença de condições jamais é devida exclusivamente ao bom desempenho de uns em contrapartida à incapacidade de outros.

Essa é uma ótima oportunidade para explicar que a desigualdade é uma condição humana construída histo-ricamente, que pode ser transformada.

Vale também mostrar para a criança que esse tipo de zombaria sempre tem origem na insegurança de al-guns colegas que se valem da posse de bens materiais para tentar (sem sucesso) compensar esse mal-estar.

Com essa conversa, os pais podem preparar a crian-ça para outras experiências deste tipo, fatos que se repe-tem na sociedade, mesmo entre adultos.

Se meu filho apresenta um comportamento precon-ceituoso, isso significa que ele tem um problema psicológico?

Não exatamente. Ainda que se trate de um fenô-meno psicológico, aquilo que leva alguém a ser precon-ceituoso ou não deve ser encarado como um processo de adaptação ao meio social. As manifestações de pre-conceito ou discriminação são individuais e têm a ver com as dificuldades inconscientes de cada pessoa.

Entram em erupção justamente nos processos de in-tegração à sociedade, como se fossem um efeito colateral daquilo que é sentido como conflitante ou ameaçador.

O preconceito e a discriminação devem ser asso-ciados muito mais ao sujeito que os profere do que aos “objetos” por ele discriminados. Isso equivale a dizer que o preconceito revela mais sobre o preconceituoso do que sobre o alvo desse preconceito.

Dizer, por exemplo, que “nordestinos são pregui-çosos” ou “negros e mulatos em geral são pobres, pois são inferiores a outras raças” é uma forma — precária — de explicar rápida e superficialmente situações so-ciais de alta complexidade histórica.

O preconceito é resultado de uma combinação de fatores sociais e psicológicos. É um engessamento do raciocínio e da atenção que privilegia concepções estanques em detrimento da observação e, principal-mente, da sensibilidade.

O amor também é algo que o ser humano preci-sa aprender. Crianças inseguras, que não se sentiram amadas, tornam-se, não raramente, adultos inseguros. Ambos acabam se valendo de um raciocínio raso e ge-neralizante para se adaptar ao mundo que os cerca. Na verdade, têm medo. E o medo, de forma geral, reduz a capacidade de o ser humano compreender o mundo. O preconceito é resultado desse medo que faz desconhe-cer. Representa, portanto, manter-se na ignorância.

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Nunca ninguém da minha família sofreu precon-ceito. Ainda assim, devo me preocupar com essa questão?

Sim, porque em geral não percebemos que as divi-sões sociais aprisionam pobres e ricos, negros e brancos, assalariados e executivos, patrões e empregados. É cla-ro que, em cada momento histórico, pode haver uma parte da sociedade com certas regalias materiais. Não obstante, esse distanciamento em relação àqueles que consideramos estar “abaixo” de nós prejudica a todos. Ficamos todos impedidos de reconhecer a igualdade na pluralidade, de aprender com aqueles que são diferentes de nós. O contrário também é verdadeiro.

O preconceito é uma forma de insensibilidade, de não amar, uma insensibilidade para perceber o mundo que re-sulta em pensamentos limitados.

O primeiro passo para mudar essa situação é conver-sar e, para isso, precisamos partir da igualdade, deixando para trás conceitos falsos como o de que o tom de pele pode definir o caráter de alguém ou que apenas determi-nado tipo de pessoa pode ser considerado humano.

O que eu posso fazer para combater o preconceito?Na sociedade em que vivemos, o preconceito de

classe é muito maior e mais velado do que o de raça (que também é um grande mal). A divisão social em classes, bem como a desigualdade entre as pessoas, não representa a natureza humana, mas a condição huma-na. ou seja: nem sempre as relações entre as pessoas foram dessa maneira, o que equivale a dizer que os pre-conceitos e as limitações de hoje não precisam existir para sempre.

Dizer “bom dia”, “muito obrigado”, “por favor” a quem realiza tarefas braçais, em vez de encará-los como meras ferramentas a quem se dá ordens, é o pri-meiro passo para romper com o preconceito social.

Devemos ensinar isso às crianças desde cedo. o trabalho manual é uma boa maneira de mostrar isso a elas. As crianças que ajudam na manutenção e na limpeza da casa aprendem mais profundamente o sen-tido da cidadania e também se tornam muito mais hábeis para resolver problemas cotidianos inesperados e desenvolver a criatividade e a cooperação. Devemos dividir o serviço doméstico com nossos filhos e incenti-vá-los a ter prazer por conservarem suas coisas limpas e em ordem. Dessa forma, aprendem a não encarar as pessoas que realizam tarefas braçais como “inferiores”, uma vez que seus pais, seus irmãos e eles próprios aju-dam a cumpri-las.