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C.D.U. 869.0(81)-9592 (DOM VITAL) GILBERTO FREVRE E DOM VITAL Nilo Pereira Historiador A figura complexa e revolucionária de Dom Vital - imprevista no contexto religioso da sociedade brasileira em que ele viveu - só pode ser compreendida e explicada pelo conhecimento do seu tempo. Na década de 1870 o Brasil passava por uma transição político- social que não foi percebida pelo Imperador Pedro II. Essa transição assinala bem o conflito das idéias. No Recife os deba- tes pela imprensa começaram pela negação em chão sagrado da sepultura do general Abreu e Lima. Ainda hoje persiste a dúvida sobre o ato do bispo Car- doso Ayres: - ele teria agido com um sentimento ultramontano ou reacio- nário, segundo os liberais da época. Essa questão foi aprofundada recente- mente pelo Monsenhor Severino Nogueira e pelo Padre Theodoro Hukel- mann, em estudos e conferências da mais alta valia histórica. O bispo Cardoso Ayres - é bom que se diga mais uma vez - agiu em função de leis civis e canônicas, uma vez que, pelo art. 5o. da Constituição do Império, o Catolicismo era a religião oficial do Estado. Tal a rigidez desse ordenamento que se exigia para os candidatos à representação popular a con- dição indispensável de ser católico. O que mostra que a união entre o poder espiritual e o temporal chegava a exageros que, só na aparência, eram a prote- ção oficial da religião adotada. Ci. & Tvdp., Recife, 6(7): 707-120,/en./1 1un. 1978

Gilberto Freyre e Dom Vital

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Gilberto Freyre e Dom Vital

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  • C.D.U. 869.0(81)-9592 (DOM VITAL)

    GILBERTO FREVRE E DOM VITALNilo PereiraHistoriador

    A figura complexa e revolucionria de Dom Vital - imprevista nocontexto religioso da sociedade brasileira em que ele viveu - s pode sercompreendida e explicada pelo conhecimento do seu tempo.

    Na dcada de 1870 o Brasil passava por uma transio poltico-social que no foi percebida pelo Imperador Pedro II.

    Essa transio assinala bem o conflito das idias. No Recife os deba-tes pela imprensa comearam pela negao em cho sagrado da sepultura dogeneral Abreu e Lima. Ainda hoje persiste a dvida sobre o ato do bispo Car-doso Ayres: - ele teria agido com um sentimento ultramontano ou reacio-nrio, segundo os liberais da poca. Essa questo foi aprofundada recente-mente pelo Monsenhor Severino Nogueira e pelo Padre Theodoro Hukel-mann, em estudos e conferncias da mais alta valia histrica.

    O bispo Cardoso Ayres - bom que se diga mais uma vez - agiu emfuno de leis civis e cannicas, uma vez que, pelo art. 5o. da Constituiodo Imprio, o Catolicismo era a religio oficial do Estado. Tal a rigidez desseordenamento que se exigia para os candidatos representao popular a con-dio indispensvel de ser catlico. O que mostra que a unio entre o poderespiritual e o temporal chegava a exageros que, s na aparncia, eram a prote-o oficial da religio adotada.

    Ci. & Tvdp., Recife, 6(7): 707-120,/en./11un. 1978

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    A Constituio do Imprio criou com esse artif (cio a imagem de umImperador paternalista, protetor da F, incentivador da prpria vida religio-sa, fazendo da cngrua uma vinculao financeira - at certo ponto humi-lhante - entre bispos, governadores de Bispados e vigrios, uns como quefuncionrios do Estado.

    Est-se a ver que havia nisso um erro de fatais conseqncias: - o go-verno imperial eriou-se em tutor da Igreja, intervindo por vezes abusivamen-te nos negcios, espirituais. O famoso Aviso de Nabuco de Arajo a respeitoda entrada de novios nos conventos e nos mosteiros redundou quase que nofechamento desses estabelecimentos religiosos. Pode-se dizer que, a ttulode salvaguardar a pureza da vida religiosa, o governo olhava pelo buraco dafechadura, espiando os desregramentos de frades e padres, enquanto que di-tava soberanamente, como rbitro do ensino religioso, os compndios a se-rem adotados nos Seminrios. No era possvel maior absoro do podertemporal em face das coisas e dos interesses da formao espiritual.

    Dom Vital Maria Gonalves de Oliveira veio encontrar o Recife dadcada de 70 convulsionado pelas lutas ideolgicas e jornalsticas entreultramontanos e liberais, ou, se quiserem, entre jesutas e maons.

    verdade que o bispo Cardoso Ayres, num ato de caridade crist,visitou o general Abreu e Lima j muito enfermo para saber se, no limiar damorte, aceitava ou no os dogmas da Igreja. O general, ainda lcido, afirmouou reafirmou as suas convices, no aceitando esses dogmas, de acordo coma sua doutrinao e a sua polmica com o Monsenhor Pinto de Campos. Suatendncia era para uma espcie de socialismo cristo, expresso essa que oPapa Pio XI viria a condenar mais tarde na Encclica "Quadragsimo Ano",na qual comentou com grande lucidez a Enc(clica "Rerum Novarum", deLeo XIII.

    Nada disso comoveu nem distraiu os espi'ritos liberais, que viam emtudo a sombra aterradora do SYLLABUS, de Pio IX, que condenou os errosdo Liberalismo.

    Ora, numa poca de fanatismo liberal, que se avizinhava j do repu-blicanismo, e quando Apr(gio Guimares, lente de Direito Eclesistico naFaculdade de Direito do Recife, dizia que o Recife era "A Capital do Jesui-tismo" - era muito difcil convencer a reao manico-liberal das boas in-tenes de um Bispo rosminiano, apontado como obscurantista e ultramon-tano.

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    Nesse ambiente sacudido pelas novas idias, das quais sairia da apouco a Escola do Recife, de Tobias Barreto, Dom Vital viria encontrar umadesenfreada luta pela imprensa e em manifestaes populares e comcios depraa pblica, muitos dos quais comandados por Jos Mariano, tipo romn-tico de agitador e de bomio, que no poucas vezes levou o povo a desordensde rua.

    Convm lembrar que o ano de 1870 trazia grandes decises interna-cionais e nacionais.

    Foi o ano em que se formou pela Faculdade de Direito do Recifeo j tribuno abolicionista e advogado de escravos, o festejado orador e pen-sador poltico Joaquim Nabuco.

    Foi o ano do "Manifesto Republicano" que abalava de algum modoas estruturas polticas do Imprio.

    Foi o ano do Conclio Ecumnico Vaticano 1, do qual saiu a procla-mao do dogma da Imaculada Conceio e da infalibilidade dos Papas.

    fcil imaginar o impacto causado nos liberais por essa infalibilidade,que oferecia a Pio IX a couraa com que se defendia perante o sculo e mes-mo perante a Igreja de tudo quanto emanasse da sua autoridade, falando"ex-cathed ra".

    A resistncia a esse princpio, pelo qual os jesutas se bateram inces-santemente, teria de ser um ponto de partida contra o "munus" episcopal.

    Saliente-se que um falso padroado governamental no se sentiriatranqilo na sua maneira de ser proteo Igreja com esse dom privile-giado que o Conclio outorgava ao Sumo Pontfice. Dir-se-ia que a tutela doEstado, de fundo majesttico e pombalino, no estaria vontade para asintervenes descabidas que, antes mesmo da chamada Questo Religiosa,levaram o bispo do Par, Dom Antnio Macedo Costa, a dizer ao Imperador,em famoso memorial: - "Majestade: a Igreja no alfndega do Estado".

    A expresso, parecendo ousada, continha uma grande verdade. Comefeito, a Igreja s fez sofrer na sua autoridade e na sua ao religiosa com es-sa falsa unio, que, nos dias de Pedro II, teve algo da tradio pombalinano que concerne sujeio do poder espiritual pelo poder temporal.

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    O Imperador cinzento

    Ningum interpretou melhor a figura de Pedro II do que GilbertoFreyre, quando foi comemorado, no Recife, em 1925, o centenrio do nasci-mento do Imperador.'

    Em conferncia pronunciada na Biblioteca Pblica do Estado Gilber-to Freyre inovou o estudo bio-psicolgico do segundo Imperador do Brasil,analisando em profundidade a sua personalidade de menino sem infncia, es-pcie de adolescente l de cartola, enquanto no lhe vinha cabea a coroaimperial, antecipada pela proclamao da Maioridade.

    Que interpretao se pode dar figura de Dom Pedro II em face des-sa atmosfera cinzenta da sua infncia, da sua adolescncia e da sua prpriavida?

    O Imperador teve sempre uma noo regalista da sua autoridade. Pa-rece no ter sido to apegado sua prpria condio de monarca, dizendocerta vez que se no fosse Imperador, preferia ser professor. Certo ar douto-ral ou magisterial do seu governo vinha naturalmente do seu gosto livrescopelas coisas do esprito.

    Gilberto Freyre nos traa esse perfil do Imperador, retratando a ma-neira como ele era visto pelos seus contemporneos, pelos jornalistas e pe-los crticos, dentre os quais Ramalho Ortigo e Ea de Queiroz:

    "Dom Pedro II foi o primeiro a desdenhar da coroa; e a apresentar-sede sobrecasaca e de cartola preta aos olhos do seu povo, desejoso deum governo no s paternal como majestoso. E festa da monarquiabrasileira, igreja manuelina a pedir missas solenes mais do que ser-mes moralistas, ele nos d esta idia melanclica: a de um pastorprotestante a oficiar em catedral catlica. Na verdade ele no oficia;o litrgico lhe parece desprezvel. Apenas sermoniza, moraliza, prega- tudo isso mediocremente".

    No se pense que esse carter democrtico do nosso segundo Impe-rador - representado antes pela cartola preta do que pela coroa, antes pelasobrecasaca do que pelo manto de tucano - tenha feito de Pedro II um go-vernante um tanto despojado das prerrogativas imperiais do seu governo ma-jesttico.

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    Na Questo Religiosa o princpio de autoridade, que ele consideroudesafiado e quase ultrajado pelos Bispos, seu autoritarismo o fez agir antescom a coroa do que com a cartola.

    Imperador europeizado pela cultura livresca, ele nem sempre enten-deu certos caminhos brasileiros que se abriram no seu tempo e que no fixa-ram bem a sua ateno e a sua sensibilidade. Da( escrever Gilberto Freyre naconferncia que estamos citando:

    "A Dom Pedro II faltou mais de uma vez a noo das necessidadesde ser brasileiramente tradicionalista contra os excessos burgues-mente progressistas da poca. A Dom Pedro, e aos seus estadistas.E por isto que as suas casacas todas se acinzentam quando no meiodelas aparece - com seus exageros de padre educado na Europa mastambm com seus modos de filho de senhor-de-engenho - D. FreiVital Maria Gonalves de Oliveira - esse sim, com alguma coisa deImperador do Divino para os olhos do povo. Em volta do roxo de suamura, titulares e conselheiros do Imprio ficam por um instantequase do tamanho de titulares e conselheiros de Ea. Antes de setornar brasileiramente mrtir, seu vulto o de um heri. Um DomQuixote vestido de capuchinho".

    A imagem realmente perfeita: medem-se durante a Questo Religio-sa dois Imperadores que encarnam duas religies - a religio do Estado, napessoa de Dom Pedro II, e a religio do povo, a devoo simples e tradicio-nal, que est na formao do povo brasileiro, desde a catequese jesutica,representada por Dom Frei Vital.

    No foi ao acaso que alguns juristas ou canonistas do Conselho deEstado chegaram a afirmar que os Bispos de Olinda e do Par representa-vam uma soberania estrangeira, a do Vaticano.

    Essa tese foi esposada pelos liberais e pelos maons, todos eles em-penhados em demonstrar por um falso casuismo que o Brasil, como Naosoberana, estava sendo invadido por uma potncia religiosa, que perturbaas relaes entre a Igreja e o Estado. Como se essas relaes tivessem sidosempre harmoniosas e pacficas!

    O caso de Dom Vital tpico de um estremecimento de relaes que,s na aparncia, eram boas e eficazes.

    Com a sua mura roxa contribua para acinzentar as cores oficiais do

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    governo imperial, pois que o Prelado afirmava com a sua forte tonalidadepessoal uma autoridade que no estava disposta a ceder diante do abuso deoutra autoridade excedida no em zelos de guardio da f, mas em fiscaliza-o descabida e intromisso indbita nos negcios puramente espirituais.

    Na sua famosa conferncia sobre Dom Pedro II, Gilberto Freyre tra-ou novas diretrizes compreenso do Bispo de Olinda e da sua ao ortodo-xamente catlica.

    Geralmente, o que ento se repetia na historiografia nacional ou eramos aplausos sistemticos ao Imperador, vindos das fileiras manicas e libe-rais, ou a exaltao dos Prelados, que ousaram mostrar ao governo que eleestava errado quando transpunha os limites da sua competncia constitucio-nal.

    A simbologia da cor cinzenta, invocada por Gilberto Freyre, mostrabem a espcie de claro-escuro em que se movia o governo, tendo como chaveda estrutura poltica o Poder Moderador. Um Poder que suscitou tantas in-terpretaes polmicas, tais como as de Tobias Barreto, Zacarias de Goes eBraz Florentino, entre outros. Poder que estava acima do prprio PoderExecutivo, como fiel de balana da sistemtica constitucional.

    Em tais circunstncias, o difcil era a prpria limitao constitucio-nal das esferas de competncia, no funcionamento harmnico dos Poderes- o espiritual e o temporal.

    O Imprio cinzento confundia as duas jurisdies, em proveito, j sev, da autoridade civil que se constituiu em medida da harmonia aparente,uma vez que a Religio passou a ser quase que um departamento do Estado.

    O Marqus de So Vicente dizia, categrico: - "O sacerdote deveser subordinado ao Poder Temporal".

    Por sua vez Souza Franco doutrinava: - "H uma grande ameaade invaso eclesistica sobre o poder temporal" 2

    Era assim que, na maioria dos casos, se pensava e era assim que seagia no Conselho de Estado.

    De resto, isso representa o pensamento do prprio Monarca, conside-rado liberal - e, de fato, o era com relao liberdade de imprensa, que tan-to respeitou - mas autoritrio naquilo que pensava ser o resguardo e o pres-

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    tgio do seu poder, respaldado por uma tradio pombalina que, em O. PedroII, se amaciava em aparncias de liberalismo e de tolerncia religiosa.

    Era natural, at certo ponto, a confuso dos prprios catlicos,quando os Bispos de Olinda e do Par se levantaram em desobedincia aoConselho de Estado, para respeitar a ortodoxia da Igreja e a doutrina ponti-f (cia.

    O clima de acomodao no permitia essa espcie de rebeldia eclesis-tica. Rebeldia que no era insubmisso ao governo, cuja autoridade civil ja-mais pretenderam atingir.

    Nos dias de Pedro II o manto de tucano dava a impresso, perante opovo ingnuo, de uma capa de Cardeal, que protegesse ao mesmo tempo oEstado e a Igreja. Puro engano visual, pois que a Igreja nunca esteve em con-dies de igualdade com a Coroa, nem os Cabidos eclesisticos nunca foramseguidos e obedecidos como o Conselho de Estado, que refletia o pensamen-to ecltico do Imperador.

    Retrato perfeito e acabado

    Teremos sempre de recorrer a Gilberto Freyre toda vez que quiser-mos compreender a figura e a psicologia de D. Pedro II, o Imperador voltai-riano, segundo o senador Barbosa Lima em notvel pronunciamento sobreDom Vital, que lhe mereceu a mais viva admirao.

    Escreve Gilberto Freyr&

    "A sobrecasaca preta, as botinas pretas, as cartolas pretas, as carrua-gens pretas enegreceram nossa vida quase de repente; fizeram do ves-turio, nas cidades do Imprio, quase um luto fechado. Esse perodode europeizao da nossa paisagem pelo preto e pelo cinzento - co-res civilizadas, urbanas, burguesas, em oposio s rsticas, s orien-tais, s africanas, s plebias, - comeou com Dom Joo VI; masacentuou-se com Dom Pedro II. O segundo imperador do Brasil,ainda meninote de quinze anos, j vestia e pensava como velho; aosvinte e poucos era o monarca "mais triste do mundo", na opinio deum viajante europeu. Parece que s se sentia bem dentro do seucrois e de sua cartola preta; e mal, ridculo, desajeitado, sob o papode tucano, o manto de rei, a coroa de imperador".

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    Gilberto Frvyre e Dom Vital

    bom sempre repetir essa pincelada com que Gilberto Freyre nosmostra o imperador sem infncia, mas muito cioso da sua velhice precoce,traduzida em atos de autoridade majesttica.

    Foi justamente desse ambiente carregado, quase sombrio, to anti-Pedro 1 que ele tirou as sombras com que acinzentou, ou mesmo enegreceuem rebeldia insanvel, a Questo Religiosa, que feriu de Dom Vital no umcontestador, mas um ortodoxo da Religio que representava e que no era -repita-se - a religio do trono.

    O trono s estava aproximado do altar naquilo que parecia ornamen-tal como um enfeite brilhante, alm de ser uma proteo julgada necessria,pelo menos at ento, por aqueles que se acomodaram com um regime deequilbrio. Mas, um equilbrio falso.

    O 'modelo ideal

    Durante muito tempo Dom Vital foi o modelo ideal do sacerdote ca-tlico. Era forte, viril, destemoroso. Possua as qualidades mestras de um reli-gioso capaz de tudo sofrer pela sua F.

    Sua figura fsica, alm dos atributos morais, impunha-se pela deciso,pela coragem pernambucana de afirmar, pelo desprendimento.

    Desde a juventude, conforme o testemunho de Carneiro Vilela, seucolega de colgio e, mais tarde, seu tenaz adversrio, Antnio Gonalves, ofuturo Dom Vital, manifestava a sua intensa vocao religiosa atravs de umapiedade e de uma circunspeco raras na sua idade. Estava destinado a serno apenas o frade capuchinho, mas o lutador da Igreja diante do Estado.Como j ficou dito, os desentendimentos entre os dois poderes vinham delonge. A ele coube o papel singular de dividir em fronteiras intransponveisa jurisdio do poder espiritual, que era o dele. Nisso est a importncia dasua luta e a ousadia da sua atitude, considerada ultramontana e jesutica,uma vez que ele voltava da Europa profundamente marcado pelo laicismoe pelo liberalismo,

    O Papa Pio IX se levantou contra essas duas correntes, que chegaramao Brasil com todo o mpeto de uma deciso irrecorrvel.

    medida que o tempo passou, a figura do Bispo de Olinda projetou-se na memria das geraes. As antigas famlias sempre pretenderam ter um

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    padre como representante da sua f e como uma prova da sua fidelidade. Opadre e o bacharel eram os mais representativos de uma famlia patriarcal: -um era a Igreja, o outro era a Lei, o Direito, a jurisprudncia, a garantia doequilbrio social.

    Depois da morte de Dom Vital, o padre ideal era ele. Esse o temada seminovela de Gilberto Freyre - Dona Sinh e o Filho Padre - segundaedio, Livraria Jos Olympio Editora.

    Todo o desejo de Dona Sinh era que o seu filho Jos Maria fossesacerdote. Mas um padre como Dom Vital. Um padre assim impressionantepela firmeza e pela grandeza do seu ideal. Que honrasse as melhores tradiesda Igreja militante.

    Escreve Gilberto Freyre pg. 64:

    "Foi interessado, talvez por deformao profissional, no assunto, queprocurei, noutra conversa com Joo Gaspar, voltar ao problema doseu modo de ser catlico; e saber dele o que pensava da Maonaria,de Dom Vital, da Questo dos Bispos: acontecimentos que estavamainda quentes na memria dos brasileiros quando nasceu Jos Maria.Tanto que quase se chamou Vital Maria. Afinal decidiu-se que sechamaria Jos - o nome do Pai paraense; e Maria em honra da Vir-gem Santssima e tambm de Dom Vital: Vital Maria".

    Essa citao diz tudo. O menino teria sido Vital Maria do mesmomodo como foi Jos Maria: num caso como no outro, sempre Dom Vital,sempre o modelo ideal.

    Modelo, diga-se de passagem, tambm popular ou popularizado pelabravura do Bispo, na Questo Religiosa, que o envolveu todo inteiro: At emmaos de cigarro aparecia o seu nome. Como aparece hoje para batizar em-presas rodovirias. E mesmo para dar nome a outras coisas, ligadas ao povo,uma vez que ele foi - apesar de homem de elite - homem do povo, andandoa p, sozinho, pelas ruas do Recife, passando quase diariamente pela casa dopai de Oliveira Lima, que hoje sede do Conselho Estadual de Cultura dePernambuco.

    A caricatura, tanto n' O Diabo a Quatro quanto n'A Amrica Ilustra-da, no chegou a ridculos de traos, como que poupando a grande figurade algo mais desprimoroso.

    CL & Trp, Recife, 6(1): 107-120,jen.A1'un. 1978

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    A campanha teve momentos cruciais. Mas nunca faltou a Dom Vitalo respeito do povo.

    Assinala Gilberto Freyre na seminovela citada:

    "Porque, segundo o irmo de Dona Sinh, Dom Vital, criado emengenho de Pernambuco e nascido num lugar chamado Pedra de Fo-go, da Para(ba, tanto tinha de pedra numas coisas como de fogo nou-tras.

    Essa opinio a do prprio Gilberto Freyre transferida para o irmode Dona Sinh. Na verdade. Dom Vital foi pedra angular da Igreja no seu so-erguimento diante da tutela do Estado; e fogo na sua maneira de agir, de deli-berar, de enfrentar o poder majesttico.

    Curioso que registra ainda Gilberto Freyre, servindo-se do seupersonagem Joo Gaspar: - os membros efetivos das lojas manicas, quese extremaram no combate a Dom Vital, no passavam de 572. havendo 319avulsos e 14 honorrios. "Isto - continua Gilberto Freyre - para uma popu-lao Catlica, como, em 1870 a do Recife, de 100.000".

    Acontece que a minoria manica era ativista e combateu o Bispo depeito aberto. Alm disso, como acentua Vamireh Chacon, era u'a maonariapalaciana, isto , poderosa, acobertada pelo Visconde do Rio Branco, cuja

    interferncia na Questo Religiosa no teria chegado ao ponto que chegou seno fora o regalismo de Dom Pedro II.

    Referindo-se s expresses usadas pela Maonaria contra Dom Vital(pg. 69), escreve Gilberto Freyre:

    "Essas expresses ostensivas do Anticatolicismo, da parte das lojasmanicas no Brasil, s se tornaram sistemticas na imprensa do Im-prio na dcada 70-80. At ento a Maonaria trabalhara com outrosmodos e com outras palavras. Fazendo-se at de aliada da Igreja. Ga-nhando a confiana dos sacerdotes mais inocentes em suas atitudes;porm que lhe seriam teis, deixando-se incluir entre os membros deuma sociedade dedicada to inofensivamente caridade crist. Re-cordou-o o prprio Dom Vital num seu escrito, hoje raro - umexemplar do qual encontrei tambm na estante de jacarand daquelevelho que me permitiu que copiasse dele o que entendesse: "At1872 tinha a Maonaria no Brasil permanecido secreta, nffo dandoares de malquerena f Catlica; e chegara at, sob a capa de reli-

    ci. & Trp Recife, 6W: 101- 720, jen.4un 7918

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    gio, a introduzir-se no Clero, nos seminrios, conventos, cabidos econfrarias religiosas. Quando, porm, teve ela seu Grifo-Mestre testa do governo nacional, e sentiu-se com foras para a luta, julgouoportuno de~scarar-se e de viseira levantada atacar a Igreja..

    A verdade que o conflito entre a Maonaria e o Bispo no excede aQuesto porque ela tem razes internacionais; e so essas razes que, ultima-mente, mais tem servido de pesquisas e observaes.

    O romance de Gilberto Freyre se desenrola em torno dessa temtica:- um seminarista que entrava no Seminrio por uma devoo toda especialda me e devia ser um padre como Dom Vital. Isso significava que, receben-do mais adiante a influncia das idias europias, portadoras de um liberalis-mo um tanto fantico, devia reagir contra esse mesmo liberalismo com todaa fora da fidelidade Igreja.

    Para Joo Gaspar, Dom Vital seria um "amarelo de Goiana", dequem no se esperam grandes coisas, mas que terminam sendo o imprevistoheri de uma luta histrica, criada pela unio entre a Igreja e o Estado.

    Publicistas catlicos e tomistas, tais como Soriano de Souza, PedroAutran da Mana e Albuquerque e Tarquinio Brulio de Souza Amarantho,alm de Braz Florentino, muito se bateram por essa unio, certamente espe-ranosos de que, ao influxo da religio catlica, as prprias Instituies paU-ticas pudessem melhorar no sentido de defender e preservar os direitos dapessoa humana e as exigncias do bem-comum.

    Foi uma luta incessante, que a Repblica venceu, separando a Igrejado Estado. Era essa a doutrina de Ruy Barbosa, ao que se diz apoiado porDom Macedo Costa, companheiro de lutas e de priso de Dom Vital, que sen-tiu na prpria pele a falsidade do preceito constitucional, que fez do Catoli-cismo a religio oficial do Imprio.

    Longe de ser uma derrota da Igreja, foi uma vitria. A ausncia datutela do poder temporal deu-lhe liberdade de ao.

    Pernambucaniciade

    Sente-se que a admirao de Gilberto Freyre por Dom Vital assentabasicamente no sentimento pernambucano da luta.

    ct & Trp.. Recife, 6(7): 701-120, jan.4un. 1978

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    Com efeito, essa luta foi gloriosa e intrpida. O Bispo de Olinda reu-niu todas as foras para o combate provocado por ataques e desafios na im-prensa manico-liberal da poca. A dcada de 70-80 foi rica nesses debates.De ambos os lados a Perna mbucanidade se revelou extremadamente ortodo-xa do ponto de vista das nossas tradies de liberdade.

    No era propsito do Bispo de Olinda, um jovem de 28 anos de ida-de, terar armas aos adversrios que esperava encontrar. Para isso bastavalembrar o episcopado de Dom Francisco Cardoso Ayres, enfrentando inimi-gos poderosos, que dispunham de quase todos os jornais recifenses, enquantoo Prelado tinha apenas o Catlico, dirigido por Pedro Autran.

    Os adeptos do general Abreu e Lima se enfileiraram numa luta encar-niada contra o Bispo rosminiano e contra os jesu (tas.

    No Conclio Ecumnico Vaticano 1 a infalibilidade do Papa, ex-cathedra, despertou a reao liberal que ardia como uma fogueira na Itliae na Alemanha, principalmente.

    Dir-se-ia que, com isso, o Papa se acastelava num privilgio especial,que lhe dava tambm poderes excepcionais.

    No jornal O Catlico, vrios editoriais, atribudos a Pedro Autran e aSoriano de Souza, defendiam o poder temporal dos Papas e a soberania pon-tifcia perante os Estados.

    Dizia-se que a infalibilidade era uma resposta perda do poder tem-poral dos Papas. E como essa tese - a do Papa infalvel - partiu dos jesuitasdesde o Conclio de Trento, que ofereceu toda a sua resistncia reforma lu-terana, o Jesuitismo passou a ser considerado sinnimo de ultramontanismoe, por conseguinte, antnimo de Liberalismo.

    A luta contra os jesuitas no Recife da Questo Religiosa - um Recifeto perna mbucanamente rebelde - assumiu aspectos os mais variados: atJos Mariano comandou motins populares, que assumiram propores deagressividade pessoal.

    O Colgio So Francisco Xavier, onde havia apenas sete ou oitojesutas, foi invadido e depredado, o mesmo acontecendo com o rgocatlico A Unio, que tomou a defesa de Dom Vital, ficando muitas vezessozinho numa luta desigual, sem nunca recuar dos seus propsitos e sem

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    agredir os adversrios com palavras mais rudes e mais ferinas, tal como se usa-va em editoriais polmicos e em caricaturas satricas.

    Esse perodo, to contagiante pela efervescncia das idias, po podiadeixar de contagiar uma obra eminentemente regional, alm de regionalista,de Gilberto Freyre.

    Diga-se a bem da verdade que a sua posio de simpatia por Dom Vi-tal - simpatia quase adeso - no representa, a meu ver, aquela nostalgia daIgreja, de que falou Alvaro Lins. Representa a admirao por um Bispo queno se envergonhou de ser Bispo. E que, ao assumir o papel histrico que lhecoube, no hesitou em ser o fiel representante de Roma num Recife to anti-Roma, to cheio de impulsos liberais contra o que se considerava o reaciona-rismo religioso do Vaticano.

    Aprgio Guimares, como j foi salientado, lente de Direito Eclesis-tico na Faculdade de Direito do Recife, tomou posio decidida contra oBispo de Olinda e contra a infalibilidade pontifcia. V-se por arque haviacontradies nos excessos do Liberalismo dominante. No era de estranhar,pois, que nas Irmandades e Confrarias houvesse muitos maons e padresmaons, que acreditavam ser a Maonaria uma entidade que, embora secreta,no atentava contra a Igreja nem fazia mal aos cristos.

    Na Cmara Temporria, o deputado Tarqunio Brulio de SouzaAmarantho dizia, incisivamente, que se ser catlico, fiel ao Papa, e s Enc-clicas, era ser ultramontano - ento ele se confessava ultramontano, semreceio de afirmar as suas convices, fossem quais fossem as crticas que issosuscitasse.

    Na anlise superficial que acabamos de fazer da obra de GilbertoFreyre, em relao a Dom Vital, s houve um intuito: mostrar que o autor deCasa Grande & Senzala sensvel ao problema religioso como tal e ao vigo-roso lutador da F como personalidade autntica, que saiu da acomodaoreinante e das aparncias de um falso equilbrio de poderes para a claridadetropical das atitudes fortes, que definem um homem e uma poca.

    Todas as vezes que Dom Vital aparece na obra de Gilberto Freyre para ser exaltado; nunca diminudo. Nunca satirizado. Nunca tomado comoum frade "estouvado", como pareceu, a princpio, a Machado de Assis, que,depois de o ver entrar no Tribunal que o julgou, tomou-se de grande admira-o pelo capuchinho enrgico, impressionante pela firmeza das suas atitudes

    Ci. & Trp., Recife, 6(7): 107-120, jan./jun. 1978

  • 120 Gilberto Freyre e Dom Vital

    e pela superioridade com que enfrentou juzes que no tinham o poder dejulg-lo, uma vez que, tratando-se de uma Questo Religiosa, foram despreza-dos trmites legais, tais como a audincia do Primaz da Bahia. O processo erainjusto e ilegal.

    Gilberto Freyre viu sempre numa tica admirvel de iseno e deadmirao o grande Bispo. Sua obra o testemunho da imparcialidade hist-rica ajudada pela viso sociolgica do problema.

    NOTAS DE REFERNCIAS

    1 - F R EVA E, Gilberto. Dom Pedro II, imperador cinzento de uma terra de sol tropical.Recife, Conselho Estadual de cultura de Pernambuco, 1925.

    2 LEITE, Beatriz Westin de Cerqueira. O Senado nos anos finais do Imprio. Braslia,Senado Federal, 1978. p. 132.

    3 FREVRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. 4 ed. Aio de Janeiro. J. Olympio, v.1 p.312.

    4 - FREVRE, Gilberto. Dona sinh e o filho Padre. 2.ed. Rio de Janeiro, J. Olympio,p. 64, 69.

    Ci. & Trp., Recife, 6W: 107-120,/an,4un. 1978

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