Fundamentos Do Estado Constitucional

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TEORIA DO ESTADO E CINCIA POLTICAProfessor MSc. ALUSIO CALDAS

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FUNDAMENTOS DO ESTADO CONSTITUCIONAL E PODER CONSTITUINTE CONCEITO DE CONSTITUIO o conjunto de regras escritas ou costumeiras, inspiradas na realidade scio-poltica e destinadas ordenao jurdica do Estado, nas quais so estabelecidos os poderes governamentais e proclamados os direitos e as garantias dos indivduos. (Aderson de Menezes) No sentido do Direito Pblico afirma De Plcido e Silva1, o termo constituio designa o conjunto de regras e preceitos, que se dizem fundamentais, estabelecidos pela soberania de um povo, para servir de base sua organizao poltica e firmar os direitos e deveres de cada um de seus componentes. (...) Dessa forma, a Constituio estabelece todas as formas necessrias para delimitar a competncia dos poderes pblicos, impondo regras de ao das instituies pblicas, e as restries que devem ser adotadas para garantia dos direitos individuais. , assim, o mandamento jurdico, em que se exaram todos os princpios fundamentais para instituio de todas as demais regras ou normas a serem estabelecidas. a lei das leis. E, desse modo, apresenta-se como a lei suprema outorgada Nao pela prpria vontade soberana do povo, por meio de seus delegados ou representantes escolhidos ou aclamados entre ele, enfeixando, em seu complexo, normas que se dizem fundamentais e absolutas, quer em relao ao tempo, quer em relao ao espao. O conceito ideal de constituio, ditado pelo movimento constitucional do incio do sculo XIX, no dizer de Canotilho2, identificase fundamentalmente com os postulados polticos-liberais, considerando como elementos materiais caracterizadores e distintivos os seguintes: (a) a Constituio deve consagrar um sistema de garantias da liberdade (esta essencialmente concebida no sentido do reconhecimento de direitos individuais e da participao dos cidados nos actos do poder legislativo atravs do parlamento); (b) a Constituio contm o princpio da diviso1 2

SILVA, De Plcido e. Vocabulrio Jurdico. 16a. ed. 2a. tir. Rio de Janeiro: Forense, 1999. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, pp. 62-63.

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de poderes, no sentido de garantia orgnica contra os abusos dos poderes estaduais; (c) a Constituio deve ser escrita (documento escrito). O Professor Manoel Gonalves Ferreira Filho3 afirma que Constituio, em sentido tcnico-jurdico, deve significar, segundo a lio de Kelsen, o conjunto das normas positivas que regem a produo do direito. Isto significa, mais explicitamente, o conjunto de regras concernentes forma do Estado, forma do governo, ao modo de aquisio e exerccio do poder, ao estabelecimento de seus rgos, aos limites de sua ao. Todavia, as constituies evoluram de uma concepo ideolgica clssica liberal (de prevalncia dos interesses individuais sobre os sociais estabelecida na Revoluo Francesa), a uma ideologia de acepo social (de supremacia dos interesses sociais sobre os individuais advinda da crise do regime liberal) marcada pela Constituio de Weimar de 1934. Em outras palavras, num primeiro momento, com a consolidao do regime constitucional que surgiu em oposio ao absolutismo da realeza e da aristocracia, a ordem jurdica absorveu os princpios bsicos da ideologia burguesa, dando ensejo a textos liberais, indiferentes s relaes sociais, disciplinadores de sociedade de indivduos, e no de grupos, formando uma conscincia anticoletivista, realidade essa refletida em textos constitucionais disciplinadores somente do poder estatal e dos direitos individuais (civis e polticos). Passando o tempo, a eficcia das normas liberais foi sendo questionada, mormente porque o regime constitucional liberal se apresentava alheio ao fruto das relaes sociais, tais como as relaes de produo, do trabalho, da educao, da cultura e da previdncia. A crise do Estado Liberal permitia o crescimento do Estado Social que surgia no incio do sculo XX, colocando os direitos sociais ao lado do poder estatal e dos direitos individuais como alvos da regulamentao constitucional. Essa evoluo explica o conceito poltico atribudo s constituies como documentos que retratam a vida orgnica da sociedade, e nenhuma delas foge ao impacto das foras sociais e histricas agindo sobre a organizao do Estado. Assim, as constituies, alm do significado jurdico, possuem significado poltico, a legitimar ou pr em crise a respectiva eficcia.

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In opus cit. p. 11.

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CONSTITUIO FORMAL E MATERIAL Ainda dentro dessa abordagem conceitual, necessrio identificarmos o que vem a ser Constituio material e Constituio substancial e Constituio formal. Do ponto de vista material, a Constituio no se resume ao texto escrito em uma folha de papel, mas traduz-se no conjunto de normas bsicas, quais sejam, aquelas tradicionais, referentes organizao do Poder, distribuio das competncias, ao exerccio da autoridade, forma de governo e aos direitos da pessoa, tanto individuais como sociais, encontradas nas relaes fticas reinantes de poder num Estado. o conjunto das foras polticas, econmicas, ideolgicas, etc., que conforma a realidade social de um determinado Estado, configurando a sua particular maneira de ser. Embora mantenha relaes com o ordenamento jurdico a ela aplicvel, esta realidade com ele no se confunde. Ela do universo do ser, e no do dever ser, do qual o direito faz parte. Ela se desvenda atravs de cincias prprias, tais como a sociologia, a economia, a poltica, que formulam regras ou princpios acerca do que existe, e no acerca do que deve existir como se d com o direito.4 A Constituio em sentido substancial definida pela anlise do contedo das normas jurdicas, escritas ou no. Se a norma jurdica tiver por objeto a regulamentao de um aspecto fundamental da comunidade poltica, indispensvel sua concepo ou sua permanncia, se tratar da distribuio do poder dentro da sociedade, se versar sobre algo que, uma vez alterado, abalaria as prprias vigas mestras do ente poltico, ser, ento, uma norma constitucional. Caso contrrio, a norma jurdica no far parte da Constituio porque no se apresenta substancialmente constitucional. Por Constituio, sob esta tica, entende-se o conjunto de princpios e normas jurdicas fundamentais, escritas ou no, que do suporte estrutural ao Estado, definem as competncias de seus rgos e estabelecem limites ao estatal com uma afirmao mnima de garantias individuais.

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In BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20a. ed. atual. So Paulo: Saraiva, 1999, pp. 42-43.

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Sob o prisma formal5, por fim, so normas constitucionais todas aquelas que foram introduzidas na Carta Constitucional, mesmo que no digam respeito aos elementos bsicos, institucionais, antes mencionados, que historicamente constituem um texto jurdico-poltico constitucional. Em outras palavras, so as leis hierarquicamente superiores que do suporte de validade e de fundamento para todo o restante do ordenamento jurdico de um Estado, razo porque a tarefa de identificar se todas as normas assim declaradas constitucionais tambm o so sob o prisma substancial, um esforo intil6. , a Constituio formal, uma realidade eminentemente normativa, um conjunto de normas jurdicas oriundas de um processo legislativo mais dificultoso do que aquele reservado s normas noconstitucionais. As normas formalmente constitucionais, por fim, no descrevem a real maneira de ser das coisas, mas sim instituem a maneira pela qual as coisas devem ser, ou seja, ainda que a norma no se apresente substancialmente constitucional, uma vez inserida no texto da Constituio ela se apresenta formalmente constitucional, pelo que obtm aquela tutela especial e tpica reservada somente s normas constitucionais.

CLASSIFICAO DAS CONSTITUIES As constituies so classificadas com base em diferentes critrios adotados para o seu estudo. O mais antigo desses critrios distingue as constituies pela forma como se apresentam, escritas ou no. O jus non scriptum se manifesta pelo costume, mas encontra crtica doutrinria quanto ao aspecto com que essas constituies verdadeiramente se manifestam, pois sempre ser possvel identificar algum elemento de uso apenas costumeiro em qualquer Constituio escrita, assim como sempre se haver de confirmar a existncia de estatutos que renem alguns costumes e precedentes de carter obrigatrio. Uma vez verificada a forma como se apresenta a Constituio, a pesquisa passa a considerar o modo como ela se originou, ou seja, a que espcie de poder constituinte se deve a sua criao para, em passo seguinte, examinar o seu contedo ideolgico e, por fim,5

Dentre todas as conceituaes de Constituio, a mais relevante para o direito aquela calcada no critrio formal. (Conf. Celso Ribeiro Bastos, in opus cit., p. 48) 6 Da Constituio em sentido material deve distinguir-se a Constituio em sentido formal, isto , a legislao, e tambm normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e, alm disso, a preceitos por fora dos quais normas contidas neste documento, a lei constitucional, no podem ser revogadas ou alteradas pela mesma forma que as leis simples, mas somente atravs de processo especial submetido a requisitos mais severos. Estas determinaes representam a forma da Constituio, que, como forma, pode assumir qualquer contedo e que, em primeira linha, serve para a estabilizao das normas que aqui so designadas como Constituio material e que so o fundamento de direito positivo de qualquer ordem jurdica estadual (Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 3. ed., Coimbra, Armnio Amado Ed., p. 310 e 311. Apud Celso Ribeiro Bastos in opus cit., p. 46)

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observar o seu processo de reforma em relao s leis ordinrias. Conhecidos os critrios, conheamos as classificaes: Escrita (orgnica, positiva ou dogmtica7) Quanto forma (por que se apresentam) No escrita (inorgnica, costumeira, consuetudinria ou histrica8)

Histrica9 Quanto origem (ou procedncia) Promulgada (democrtica ou popular10) Outorgada (imposta ao povo11) Cesarista12

Ortodoxa(adotainformadora)

uma

s

ideologia

Quanto ao seu Contedo ideolgico Ecltica(procuraconciliar as ideologias verificadas em seu texto) diversas

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A Constituio dogmtica se apresenta como produto escrito e sistematizado por um rgo constituinte, a partir de princpios e idias fundamentais da teoria poltica e do direito dominante. 8 A Constituio no escrita importa um conjunto de regras, umas escritas (leis constitucionais) e outras no escritas, verificadas no lento evoluir dos costumes, das tradies e fatos scio-polticos, alm das jurisprudncias e convenes verificadas ao longo de um processo histrico e que fixam a organizao fundamental do Estado. 9 So de tipo histrico, to somente, as constituies consuetudinrias, quando vistas sob o ngulo de sua gnese, porque se formam lentamente, atravs de longo tempo, em que se amalgamam usos e costumes incorporados afinal vida estatal.(Aderson de Menezes) 10 So promulgadas as Constituies que derivam do trabalho de uma Assemblia Nacional Constituinte composta de representantes do povo, eleitos com a finalidade de sua elaborao, da porque so tambm chamadas de democrticas ou populares. 11 Outorgadas so as constituies elaboradas e estabelecidas sem a participao popular, atravs da imposio do poder vigente. 12 Cesarista a Constituio classificada quanto sua origem porque, aps a sua elaborao por um agente qualquer do poder constituinte, submete-se consulta popular, de cuja aprovao depende a sua vigncia. Consiste numa variao do mtodo bonapartista de manifestao do poder constituinte.

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Quanto ao processo de reforma (estabilidade)

Imutvel13 (art. 60 1 C.R.) Rgida (art. 60 C.R.) Semi-rgida (semi-flexvel) Flexvel (plstica)

Alm dessas classificaes bsicas, h outras que assim apresentam as constituies: Material ou substancial14(verifica a existncia de regras materialmente constitucionais em vrios documentos esparsos)

Quanto localizao de suas regras Formal ou sistemtica15(um s Cdigo bsico e sistemtico estabelecido pelo poder constituinte)

Analtica ou dirigente16com normas programticas)

(texto amplo e

Quanto sua abrangncia ou finalidade Sinttica17 (texto restrito s normas gerais eprincpios de regncia do Estado)

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Imutveis so as constituies que probem, de forma expressa, em seus textos, a possibilidade de qualquer alterao. Na prtica, o que se verifica so circunstncias que inibem, ou mesmo probem, a manifestao do poder reformador no curso dessas circunstncias. 14 Constituio material o conjunto de regras materialmente constitucionais (vrios documentos esparsos), pertencentes ou no Constituio, vista esta como um nico documento codificado. 15 Constituio formal (ou sistemtica) importa na idia de Constituio escrita revelada atravs de um documento solene estabelecido pelo poder constituinte (um s Cdigo bsico e sistemtico). 16 Analticas porque procedem por anlise, examinando e regulamentando a todos os assuntos que entendam relevantes formao, destinao e funcionamento do Estado, definindo fins e programas como planos para dirigir uma evoluo poltica com aes futuras, o que as define, por derradeiro, como Constituies-dirigentes. A Constituio-dirigente se caracteriza em conseqncia da existncia de normas programticas em seu texto, ou seja, quando no houver norma editada para a realizao de um valor que ela preveja, ela mesma possibilita o reconhecimento da denominada inconstitucionalidade por omisso. 17 As Constituies sintticas so aquelas que apresentam um texto restrito s normas gerais e aos princpios de regncia do Estado, organizando-o e limitando o seu poder, atravs do estabelecimento de direitos e garantias fundamentais.

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Garantia (reestrutura o Estado e estabeleceas garantias dos indivduos, contendo o poder)

Quanto sua funo

Balano (representa o balano da evoluo estatal, quanto s foras sociais que estruturam o poder, refletindo a realidade social = O SER) Dirigente(organiza o poder e preordena a atuao governamental atravs de programas vinculantes presentes no texto constitucional ou nos Estatutos partidrios)

Normativa (a dinmica do poder se submetede forma efetiva regulamentao normativa)

Quanto relao com a realidade poltica

Nominalista (o poder se manifesta sem uma integral obedincia ao texto constitucional) Semntica(o autoritarismo do Estado no considera os regramentos constitucionais de sua atuao, cujo texto precisa existir para disfarar aquele perfil)

Outras classificaes so encontradas na doutrina, como a trplice classificao de Lowenstein, citada pelo Professor Pinto Ferreira, que considera as Constituies normativas, como as que disciplinam o processo de exerccio e manuteno do poder de forma tal a subordinar, s determinaes do seu contedo e do se controle procedimental, as relaes polticas e os agentes do poder; as Constituies nominalistas, as quais contm disposies de limitao e controle de dominao poltica, sem ressonncia na sistemtica de processo real de poder e com insuficiente concretizao constitucional; e, por ltimo, as Constituies semnticas ou instrumentais, que se apresentam como simples reflexos da realidade poltica, servindo como mero instrumento dos donos do poder e das elites polticas, sem limitao do seu contedo.

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INTERPRETAO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS Alm das regras gerais de interpretao das leis infraconstitucionais, a norma constitucional reclama regras outras, prprias e identificadas com a sua suprema natureza constitucional. Sendo os preceitos normativos, abstenes da realidade, a interpretao deve fazer sempre o caminho inverso daquele feito pelo legislador, procurando extrair o exato significado da norma. Por outro lado, como as Constituies contm muitos preceitos, a significao destes no obtenvel pela compreenso isolada de cada um, mas sim pela realidade sistmica que eles estabelecem medida em que se interpenetram uns aos outros. Exatamente porque so revestidas de um carter inaugurador e fundamentador do ordenamento jurdico, as normas constitucionais s podem ser interpretadas no seu mbito interno, no seu prprio plano normativo e principiolgico. Por isso, h alguns princpios que devem ser, obrigatoriamente, observados na interpretao constitucional. As normas constitucionais, como as demais normas, so abstraes da realidade (que mais rica). A Constituio uma realidade sistmica de preceitos e princpios18. Com base nessas duas razes acima, a interpretao das normas constitucionais deve considerar: a) A unidade constitucional as normas constitucionais s podem ser interpretadas no seu mbito interno, no seu prprio plano normativo e principiolgico (porque revestidas de um carter inaugurador e fundamentador do ordenamento jurdico), com vistas a evitar as contradies, antagonismos e antinomias que possam se apresentar em virtude da diversidade ideolgica presente na manifestao do poder constituinte. O contedo poltico da Constituio embora se verifiquem regras de contedo poltico no texto

b)

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O choque de leis se resolve pela hierarquia ou pela supervenincia de lei equivalente, prtica essa que na seara constitucional deve considerar o carter analtico e/ou ecltico do texto maior sob um prisma sistmico a fim de evitar trazer as contradies polticas para o universo jurdico, mormente porque a interpretao uma atividade puramente jurdica.

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constitucional, a eficcia jurdica imediata edio da Constituio. c) O contedo teleolgico a cada preceito constitucional correspondem princpios diversos que o fundamentam nessa ordem sistmica. A relevncia das normas estruturais a insero, no texto constitucional, de conceitos provenientes de outros ramos do direito, impe-lhes novo fundamento e maior fora normativa.

d)

Afora os vetores interpretativos acima abordados, a doutrina costuma enumerar outros que, a rigor, so corolrios desse pequeno rol. Por outro lado, diante dos textos constitucionais contemporneos, defendemos que a estrutura da linguagem constitucional deveria se caracterizar pela sntese e coloquialidade, ou seja, como Carta Poltica que a Constituio, deveria, ela, usar de uma linguagem cotidiana para estabelecer o conjunto de princpios que identificam os valores encontrados na sociedade, deixando o rigorismo tcnico para os operadores do direito.

APLICABILIDADE DA NORMA CONSTITUCIONAL Aplicabilidade, para Jos Afonso da Silva, a qualidade daquilo que aplicvel, pelo que restam aplicveis todas as normas constitucionais, eis que dotadas de aptido para a produo de efeitos na ordem jurdica (eficcia jurdica19). Conforme a produo desses efeitos determine um maior ou menor impacto na ordem jurdica (graus de eficcia), a doutrina estabelece a seguinte classificao aplicabilidade das normas constitucionais:19

Michel Temer lembra que essa eficcia jurdica no se confunde com a eficcia social dizendo que algumas normas constitucionais so dotadas de eficcia jurdica e eficcia social, enquanto que outras possuem apenas eficcia jurdica. A eficcia social apontada pelo festejado autor, refere-se ao grau de aceitao e produo de efeitos da norma junto ao corpo social destinatrio, o que, diante da supremacia que se encerra na Constituio, raramente se verifica com clareza em tese de norma constitucional. Por seu turno, a eficcia jurdica se encontra em todas as normas, mormente a constitucional, posto que a sua simples edio importa revogao de todas as normas anteriores que com ela se apresentam conflitantes. Ainda que no verificada a sua aplicao em casos concretos, a sua aplicabilidade jurdica decorre da negao que a sua edio impe vigncia das normas anteriores com ela conflitantes, ou seja, caa o poder normativo das contrrias disposies legais anteriores. Essa eficcia jurdica, ento, classifica as normas constitucionais como de eficcia plena, de eficcia contida e de eficcia limitada.

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Normas constitucionais de eficcia plena so aquelas que no dependem de norma regulamentadora para a produo dos efeitos nelas contemplados (art. 5 1 C.R.), pelo que so auto-aplicveis desde a sua edio. Por isso, considera-se inconstitucional, por excesso de ao do Poder Legislativo, toda e qualquer supervenincia de atividade que vise regulament-las (art. 1, pargrafo nico, arts. 2; 14, 2; 17, 4; 21; 22; 37, III; 69, 153, 155, dentre outros da C.R.). Normas constitucionais de eficcia contida so as que, embora editadas com eficcia plena, podero vir a ter reduzida a sua aplicabilidade em conseqncia de superveniente atividade legislativa infraconstitucional. So de eficcia plena ou auto-aplicveis at que sobrevenham leis que lhes estabeleam a reduo de eficcia ou restrio de alcance. Michel Temer as define como normas de eficcia redutvel ou restringvel pelo legislador infraconstitucional. (art. 5, VIII, XII, XIII, XV, XVIII, XXIV, XXVIII, LVIII, LX, LXI, e arts. 14, 184, dentre outros da C.R.). Normas constitucionais de eficcia limitada20 essas normas constitucionais possuem eficcia imediata no que diz respeito revogao da legislao anterior que com elas se apresenta incompatvel. Por outro lado, dependem de norma regulamentadora para que venham a operar efeitos outros na ordem jurdica que inauguram (art. 192, 3 da C.R.). Dividem-se elas em normas de princpio institutivo e normas de princpio programtico, conforme estabeleam, respectivamente, esquemas genricos da instituio de um rgo ou entidade, restando ao legislador ordinrio a sua estruturao definitiva (arts. 17, IV; 18, 3; 25, 3; 43 1, I e II; 98, pargrafo nico; 127, 2; 148, I e II; 165, 9, todos da C.R.), e compromissos estatais, metas a atingir, programas de ao de qualquer dos poderes a serem desenvolvidos mediante legislao integrativa (arts. 3; 21, IX; 23; 40, 2; 170; 196; 205; 211; 215; 218 dentre outros da C.R.) . ESTRUTURA NORMATIVA DA CONSTITUIO Normas orgnicas ou organizacionais organizam o estado e os poderes constitudos.20

As normas constitucionais de eficcia limitada so aquelas que no possuem requisitos para a sua aplicao imediata (seno em relao revogao da legislao anterior que com elas se apresente incompatvel), mas possui aplicao mediata, eis que dependem de norma posterior que lhes desenvolva a eficcia necessria ao exerccio dos direitos nelas consagrados.

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Normas limitativas limitam o poder ao tempo em que asseguram direitos e garantias fundamentais. Normas scio-ideolgicas so princpios da ordem econmica e social. Normas de estabilizao constitucional asseguram a supremacia da CF (controle de constitucionalidade) e a soluo de conflitos constitucionais. Normas formais de aplicabilidade so regras que dizem respeito aplicabilidade de outras regras (ex. prembulo, disposies transitrias).

O PODER CONSTITUINTE21 TITULARIDADE E EXERCCIO Na Antigidade e Idade Mdia predominava o pensamento de que Deus detinha a titularidade do poder soberano e que Ele escolhia as pessoas, ou famlias (os agentes do poder constituinte) para o exerccio do poder poltico. Era a poca em que se verificava a ocorrncia das teorias do direito divino sobrenatural e do direito divino providencial. Com a consagrao do Iluminismo no campo poltico, o pensamento teocrtico da origem do poder soberano foi superado por doutrinas racionalistas de cunho democrtico, as quais defendem que a titularidade da soberania ou est na nao (teoria da soberania nacional), ou est no povo (teoria da soberania popular). A identificao da titularidade do poder constituinte importa na localizao da sede desse poder, a partir do que ser verificado o grau de legitimidade de que ele se reveste. O pensamento contemporneo dominante aponta que o povo se apresenta como o titular do poder constituinte, afirmando essa posio na maioria dos textos constitucionais existentes. Assim estabelece, v.g., a Constituio da Repblica Federativa do Brasil no pargrafo nico do artigo 1, in verbis: Todo o poder emana21

Celso Bastos afirma que o jurista no pode trabalhar com a noo de poder constituinte porque ela metajurdica. Identifica-la como a competncia das competncias no resolve o problema, uma vez que o jurista no reconhece competncia exterior ordem jurdica. O poder constituinte uma fora social e poltica, passvel de estudo nas cincias sociais e na filosofia do direito. Assim, tambm a sua titularidade exorbita o campo dos estudos jurdicos.(In opus cit., p. 31)

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do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio. Mas o exerccio desse poder constituinte, consideradas as complexidades de toda ordem verificadas no fenmeno estatal moderno, tem sido, em regra, atribudo a representantes do povo que o fazem em nome deste. A Constituio do Brasil fruto do exerccio representativo do poder constituinte, conforme se verifica de seu prembulo: Ns, representantes do povo brasileiro, reunidos em AssembliaNacional Constituinte para instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus, a seguinte CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

O que importante fixar a idia de que a titularidade do poder constituinte no se confunde com o seu exerccio. Titular do poder constituinte Agente do poder constituinte O POVO. AQUELE(S) QUE O EXERCE(M) EM NOME DO POVO.

Explicando as caractersticas do pensamento de Sieys, o professor Antonio Raimundo Barros de Carvalho22, cujos ensinamentos em muito influenciaram essa pequena abordagem, assim se manifesta: Para Sieys o titular do poder constituinte a nao seguidor da doutrina da soberania nacional compreendida como o conjunto de interesses de uma determinada comunidade. Sendo a nao a origem de tudo, sempre que houvesse necessidade de estabelecer uma Constituio, o poder constituinte manifestar-se-ia. Assim, concluda a sua obra, o poder constituinte dissolve-se. Todavia, no desaparece. Sempre que se fizer necessrio a elaborao de nova Constituio, instalar-se-. Da ser considerado permanente. Afirma Feu Rosa23 que: Sendo a Constituio a Carta Poltica, o documento bsico de toda ordem jurdica, consubstanciando, segundo as palavras de Rousseau o contrato social, ou pacto social, integrando toda a nao, o poder constituinte pertence ao povo. Pertence ao povo, porque na Constituio produz-se o direito originrio, de onde emanam todos os demais direitos. Por isso, o poder constituinte , antes de mais nada,22

CARVALHO, Antonio Raimundo Barros de. Apostila de Direito Constitucional. Distribuda aos alunos do Curso da Escola Superior da Magistratura do Estado do Amazonas, 1999. 23 ROSA, Antonio Jos/Miguel Feu. Direito Constitucional. So Paulo: Saraiva, 1998, p. 177.

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soberano, porque representa a soberania popular. No recebe poderes de ningum, mas, ao contrrio, uma fonte geradora de poderes. (...) Geralmente o poder constituinte se forma quando h transformao na sociedade, alterando-se o pacto social, e ento a nova classe dominante, ou os novos grupos vitoriosos, renem-se na chamada conveno constitucionalpara a ordenao ou reordenao da vida do Estado. Embora a ideologia democrtica globalizada reclame a titularidade do poder constituinte para o povo, fato que a experincia hodierna demonstra que o seu exerccio, visto na vida poltica da maioria dos Estados, tem ficado restrito a alguns indivduos ou grupos autocrticos que invocam a teoria democrtica para respaldar seus autoritarismos usando de tcnica constitucional adequada manuteno desses vcios de representatividade. A titularidade do poder constituinte, assevera-se, no se confunde com o seu exerccio, mas este no pode manifestar-se seno em nome do titular do poder constituinte, sob pena de caracterizar-se com o flagrante vcio de ilegitimidade. ESPCIES E CARACTERSTICAS DO PODER CONSTITUINTEOriginrio (ou de 1 Grau) Inaugura a ordem jurdica verificada na sociedade poltica e se encerra com a edio da Constituio Poder de Reforma de Reviso PODER CONSTITUINTE Derivado24 (Reformador ou de 2 Grau) Altera os dispositivos constitucionais originrios. Poder de Ordinria Reforma

Decorrente (ou de 3 Grau) Poder de concepo das Constituies dos Estados-Membros da Federao.

Para Carl Schmitt, somente o originrio poder constituinte, pois somente ele tem carter inicial e ilimitado, ao passo que o poder24

Ao classificar as espcies de poder constituinte, alguns doutrinadores adotam apenas duas, a saber: o originrio e o derivado, bifurcando-se este em derivado de reviso ou de reforma e derivado decorrente. Sem prejuzo de contedo, mas por questo didtica, sugerimos essa trplice classificao, segundo a qual os poderes constituintes, institudos pela manifestao do poder constituinte originrio, devem ser entendidos distintamente, posto que um, o denominado derivado, destina-se alterao do Texto Maior, enquanto que outro, o designado decorrente, refere-se capacidade que os entes federativos dispem para se auto-organizarem politicamente, editando suas prprias constituies, com estrita observncia aos limites estabelecidos pelo poder constituinte originrio ou derivado. Embora o Municpio no disponha de uma Constituio, em sentido formal, a Lei Orgnica apresenta-se como uma verdadeira Constituio material, eis que visa disciplinar a organizao jurdica e poltica desse ente federativo brasileiro.

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reformador retira sua fora prpria da Constituio, estando limitado pelo direito. (...) Outros autores, seguindo a doutrina clssica de Sieys, afirmam que o poder constituinte tanto cria quanto modifica, no todo ou em parte, a Constituio. Em ambos os casos, trata-se de um poder essencialmente diverso dos poderes constitudos.25 Na seara do Direito Constitucional, o que importa ao jurista verificar a existncia de uma Constituio com rgos e competncias nela institudos para, com base no ordenamento jurdico, opinar sobre a possibilidade jurdica de uma determinada reforma do texto constitucional, sobre a competncia de quem a realiza e, em ltima instncia, demandar em face de inconstitucionalidade verificada no texto da emenda realizada. Assim, convm classificar o poder constituinte como originrio, institudo e decorrente. Poder Constituinte Originrio ao qual compete a funo de instaurar o Estado e inaugurar a ordem jurdica da sociedade poltica, reveste-se das seguintes caractersticas:1. inicial, pois inicia a ordem jurdica. Alguns o

denominam, conforme a natureza atribuda a ele, de extra-jurdico (porque anterior ordem jurdica que vai criar) ou pr e suprajurdico (oriundo da norma fundamental).2. ilimitado em face do Direito positivo (no caso, a

Constituio vigente at a sua manifestao). Nesse aspecto os positivistas o denominam de soberano, uma vez que no h outro direito que no seja o positivo e neste no encontra limites. J os adeptos do jusnaturalismo o chamam de autnomo, para sublinhar que, no limitado pelo direito positivo, o poder constituinte deve sujeitar-se ao Direito natural, o que lhe nega o carter absoluto.3. incondicionado, porquanto no se sujeita a

condies nem a frmulas jurdicas para a sua manifestao.

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In BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20a. ed. atual. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 30.

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Poder Constituinte Institudo26 Provm do poder constituinte originrio que, no texto da Constituio, previu a sua existncia para a adaptao do texto constitucional a novos tempos e novas exigncias, a novas realidades fticas. Por isso, reveste-se das seguintes caractersticas:1. subordinado, porque vincula-se de forma hierrquica

logo abaixo ao poder constituinte originrio, de modo que limitado por este.2. limitado, porque sujeito a limites de ordem formal,

circunstancial, temporal e material (art. 60, 1 C.R.).3. condicionado, j que o seu exerccio se verifica dentro

dos limites e condies estabelecidos na prpria Constituio para a sua manifestao (art. 60 C.R.). Poder Constituinte Decorrente tambm institudo pelo poder constituinte originrio no texto constitucional, este poder defere autonomia aos entes federados para que eles se auto-organizem atravs da26

Diferentemente do originrio, que poder de fato, o poder de reforma constitucional jurdico. E exatamente por provir do poder constituinte originrio , por isso, conhecido como poder de reforma da Constituio ou poder constituinte derivado. subordinado, porque vincula-se de forma hierrquica logo abaixo ao poder constituinte originrio, de modo que limitado por este. , tambm, condicionado, j que o seu exerccio se verifica dentro de limites e condies estabelecidos na prpria Constituio. Diante dessas limitaes ao poder de reforma, denominadas pela doutrina de clusulas ptreas (v. art. 60, 4 CRFB), alguns juristas negam a sua natureza constituinte, eis que essa qualidade no conhece, ou pelo menos, no deveria conhecer limites. O poder constituinte derivado se manifesta como poder de reviso ou de mera alterao ao texto constitucional, podendo reformar a Constituio mediante a aprovao de Emendas, adaptando-a a novos tempos e a novas exigncias, ou seja, a novas realidades fticas. A Emenda Constituio, como espcie do poder reformador, representa um mecanismo ordinrio de reforma do texto constitucional em face de imperfeies que reclamam a sua correo. Essa atividade, contudo, submete-se a limitaes impostas pela manifestao constitucional prvia. No artigo 60 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, verificamos trs limitaes de ordem procedimental, material e circunstancial. A de ordem procedimental quer definir o procedimento de elaborao da Emenda Constituio, previsto nos 2 e 3 do artigo 60; a de ordem material exclui a possibilidade de reforma de determinadas matrias, conforme dispe o 4, incisos I a IV e o 5 daquele mesmo artigo 60; por fim, a limitao circunstancial prevista no 1 do artigo 60, impe que no poder haver reforma ao texto constitucional durante instantes de conturbao nacional, dada a relevncia da matria constitucional cuja anlise exige equilbrio do legislador constituinte. A par dessas limitaes, no difcil concluir que a Emenda Constituio possui contedo pontual, vale dizer, especfico ou restrito a determinada matria. A Reviso da Constituio, por sua vez, refere-se a um mecanismo extraordinrio de reforma ao texto constitucional, distinguindo-se da Emenda Constituio pelo fato de possuir, por vezes, contedo mais abrangente do que esta ltima e, principalmente, pelo fato de que a manifestao do poder constituinte de reviso, nem sempre importa em alterao do texto constitucional, fruto do poder constituinte originrio, o qual traz, de forma explcita, as hipteses de manifestao desse poder constituinte institudo.

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concepo de suas prprias constituies, respeitados os limites impostos pelo poder constituinte originrio (art. 25 a 32 da C.R.).

A NATUREZA JURDICA DO PODER CONSTITUINTE O Direito positivo (posto pelo Estado) est subordinado Constituio, o que importa dizer que o fundamento desta o fundamento de todo o Direito positivo. A Constituio , portanto, o fundamento de todo o Direito positivo. Mas, qual o fundamento do Poder Constituinte que elabora a Constituio? Os positivistas afirmam que o Direito s Direito quando positivo, sendo o Poder Constituinte um poder de fato posto que a sua manifestao no se baseia em regra jurdica anterior, mas em si mesmo encontra o seu fundamento. Os jusnaturalistas admitem a existncia de um Direito natural anterior e superior ao Direito positivo, do qual decorre a liberdade do homem estabelecer as instituies sob as quais h de ser governado. D-se, assim, ao Poder Constituinte, a natureza de um poder de direito. O professor Pinto Ferreira27, comentando o pensamento do abade francs Emmanuel Joseph Sieys manifestado na obra Quest-ce que le tiers tat? (O que o terceiro Estado) publicada pouco antes de deflagrar a revoluo francesa e na qual estabeleceu a distino entre poder constituinte e poder constitudo, afirma que: O poder constituinte um poder de direito, que no tem limites no direito positivo anterior, porm apenas no direito natural, existente antes da nao e acima dela. O poder constituinte inalienvel, permanente, incondicionado e ilimitado, pois a nao no pode perder o seu poder de querer e de mudar o seu querer ou a sua vontade. Em contrapartida, os poderes constitudos so limitados e condicionados. Os tericos do poder constituinte, como poder de direito, diz Kildare28, admitem a existncia de um poder natural, de que resultam regras de Direito Natural, anteriores ao Direito Positivo, decorrentes da27

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 8a. ed. ampl. e atual. de acordo com as Emendas Constitucionais e a Reviso Constitucional. So Paulo: Saraiva, 1996, p. 18. 28 CARVALHO, Kildare Gonalves. Direito Constitucional Didtico. 6a. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 135.

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natureza humana e da prpria idia de justia. Afirma, por outro lado, esse mesmo autor que: Como poder de fato, o poder constituinte se funda em si mesmo, no se baseia em regra de direito anterior, pois se entende por Direito apenas o Positivo, isto , aquele posto pelo Estado. Copiando o pensamento do citado autor, podemos dizer que no obstante essa discusso, se o poder constituinte um poder de fato ou um poder de direito, fato que ele, o poder constituinte, essencialmente soberano porque possui a capacidade de estabelecer, de forma originria e livre, a configurao jurdico-poltica do Estado e de sua Constituio. Todavia, no o absoluto, eis que se acha vinculado idia de legitimidade revelada pelas estruturas polticas, econmicas e sociais, dentre outras, dominantes na sociedade, bem como pelos valores e princpios historicamente localizados, os quais devero influir na sua obra originria, a Constituio, e que portanto constituem os seus limites materiais. Da falar-se em poder constituinte material e poder constituinte formal. O poder constituinte material precede o formal, eis que a idia de direito que determina o contedo da Constituio, precede a regra de direito que a prpria Constituio. Traduz-se na fora poltica ou social, na idia de Direito inauguradora da nova era constitucional. Por outro lado, o poder constituinte formal se revela na entidade (grupo constituinte) que formaliza em normas jurdicas a idia de Direito consentida num determinado momento histrico, conferindo estabilidade e permanncia nova situao, ou, em outras palavras, o poder constituinte formal um poder de decretao de normas com a forma e fora jurdicas prprias das normas constitucionais. O AGENTE E O VECULO (expresso da legitimidade) DO PODER CONSTITUINTE Como j ficou demonstrado, o agente do poder constituinte aquele que o exerce em nome de seu titular. o ente encarregado de elaborar a Constituio em nome do titular do poder constituinte. Nas democracias, o povo o titular e a Assemblia Nacional Constituinte o agente. Concluda a obra, o poder constituinte do agente se esgota, enquanto que o poder constituinte do titular permanece. H casos, entretanto, em que o titular do poder constituinte se identifica com o seu agente, ao que a doutrina denomina de revoluo vitoriosa. Por veculo do poder constituinte deve-se entender a legitimidade que reveste a sua manifestao, ou seja, o consentimento popular para o

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exerccio desse poder soberano (consensus), que se apresenta de forma expressa ou tcita, prvia ou posterior edio da nova Carta, consolidando-se com o estabelecimento das mudanas determinadas pelo novo texto constitucional proveniente do exerccio legtimo do poder constituinte originrio. O poder s se estabiliza quando fundado na aceitao dos que vo ser por ele governados, pois da vinculao com as aspiraes da sociedade que vem o seu reconhecimento, a sua autoridade, a sua estabilidade e, por conseguinte, a sua legitimidade. Veculo do Poder Constituinte , em outras palavras, a revoluo determinada pela aceitao (pelos titulares do poder constituinte originrio) das regras estabelecidas pela nova Constituio fruto da manifestao do poder constituinte originrio. A perda da eficcia da Constituio (anterior) com a (nova) manifestao do poder constituinte originrio, estabelece o vazio sobre o qual este poder vai estabelecer a nova ordem constitucional, a qual somente ser assim reconhecida quando ganhar eficcia. extremamente difcil imaginar e muito menos possvel visualizar, no mundo dos fatos, o estabelecimento de uma Constituio em um espao jurdico vazio. O Poder Constituinte originrio, assim, manifesta-se onde j existem instituies polticas, Constituies estabelecidas, editando nova Constituio. O que se verifica o fato de que o Poder Constituinte originrio, ao estabelecer a nova Constituio, impe a perda da eficcia da Constituio (anterior), criando o vazio propcio eficcia da nova ordem constitucional. Essa perda de eficcia traduz um efeito revolucionrio, qual seja, a quebra das estruturas que serviam de alicerce Constituio abrogada pela nova manifestao do Poder Constituinte originrio. Essa revoluo jurdica que a nova Constituio proporciona atravs de um expresso ou tcito consentimento popular (que o necessrio liame subjetivo de legitimidade, ou, consensus), o veculo do Poder Constituinte originrio. Revoluo, como define Burdeau, a substituio de uma idia de direito por outra, enquanto princpio diretor da atividade social. Logo, a revoluo autntica um fenmeno sociolgico, que encontra a sua justificao na realidade dos fatos e no propriamente no mundo jurdico. Por isso, ao lado da revoluo jurdica, o direito de revoluo com o emprego da fora contra a lei positiva e em nome da liberdade do povo, a chamada revoluo vitoriosa que identifica o titular do Poder Constituinte com o agente que o exerce, justifica-se, por vezes, como legtimo veculo de expresso do Poder Constituinte originrio.

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FORMAS DE MANIFESTAO DO PODER CONSTITUINTE A expresso forma de manifestao do poder constituinte originrio significa o processo usado para positivar a Constituio, ou seja, a outorga, o mtodo bonapartista, o referendum e o mtodo da Assemblia Nacional Constituinte. A outorga caracterizada pelo agente do Poder Constituinte (seja ele qual for) que, em determinado momento, impe ao povo (titular do Poder Constituinte) uma nova Constituio sem que este participe direta ou indiretamente do seu processo de elaborao. A legitimao in casu s poder ser percebida a posteriori com o consensus do titular do Poder Constituinte que em nada se identifica com o seu agente. O mtodo bonapartista (porque usado por Napoleo Bonaparte), consiste na formulao de uma consulta ao povo (titular do Poder Constituinte) em bases vagamente referidas, por meio de plebiscito, para que este consinta, ou no, em que uma pessoa ou grupo (agente do Poder Constituinte) outorgue ou promulgue, em seu nome, uma nova Constituio. Como variao do mtodo bonapartista, o referendum aparece como um mecanismo pelo qual a Constituio, aps elaborada por um agente qualquer do Poder Constituinte, submetida consulta popular, cuja aprovao, alm de legitim-la, apresenta-se como condio de sua vigncia. Vista quanto sua origem, essa Constituio classifica-se como cesarista. A convocao de Assemblia Nacional Constituinte consiste num mtodo de manifestao do Poder Constituinte que traz consigo de forma prvia e expressa, a aquiescncia do titular desse Poder, o que o legitima para a discusso, votao e promulgao de uma nova Constituio. A rigor, essa Assemblia deve ser convocada por meio de consulta popular (plebiscito) para o fim especfico de elaborar a nova ordem constitucional, a fim de que no se confunda com o Poder Legislativo, uma vez que o Poder Constituinte originrio no deve ser exercido pelo mesmo organismo institucional responsvel pelo denominado Poder reformador.

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LIMITAES AO PODER DE REFORMA Em virtude de haver sido institudo pelo texto constitucional oriundo da manifestao do poder constituinte originrio, o poder de reforma constitucional sujeita-se s limitaes previstas na prpria Constituio. A doutrina costuma classificar as limitaes ao poder de reforma constitucional em quatro tipos fundamentais, quais sejam, as limitaes formais, as temporais, as limitaes circunstanciais e as limitaes materiais. As primeiras, as formais, ou procedimentais, esto relacionadas com o processo legislativo ordinrio previsto pelo poder constituinte originrio para a alterao da Constituio, pelo que cobram rigorosa observncia: legitimidade de iniciativa (art. 60, I, II e III); ao quorum para discusso e aprovao (art. 60, 2); propositura de emenda pela casa iniciadora do processo legislativo(art. 64); ao rgo promulgador (art. 60, 3); e proibio de reelaborao e apresentao de projeto na mesma sesso legislativa em que tenha sido rejeitado (art. 60, 5). A inobservncia dessas regras procedimentais importar a decretao do vcio pelo sistema de controle de constitucionalidade, ao qual se sujeita o poder de reforma. As limitaes temporais dizem respeito s vedaes impostas alterao de certas normas do texto constitucional por determinado tempo, ou, por outro lado, so igualmente limitaes temporais as normas que prevem datas especficas e espaadas para alteraes da Constituio. Vedam, durante certo tempo, sua alterao. o caso da Constituio francesa de 1791 (Ttulo VII, art. 3); da nossa Constituio do Imprio (1824) ao estabelecer que s aps quatro anos de sua vigncia, poderia ser reformada (art. 174); ou da Constituio de Portugal, quando declara que pode ser revista desde que decorridos cinco anos sobre a data da publicao de qualquer lei de reviso. O art. 3 do ADCT da vigente Constituio brasileira no revela limitao temporal, eis que nada impedia a realizao anterior de emendas constitucionais com base no processo estabelecido no artigo 60. As restries circunstanciais importam na vedao da manifestao do poder de reforma durante determinadas circunstncias, sob o argumento de que os membros do poder constituinte reformador no podem se

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encontrar sob qualquer espcie de coao, violenta emoo ou sob a influncia de quaisquer outras circunstncias exgenas que venham a influenciar na manifestao livre e independente dos rgos incumbidos da reforma. (art. 60, 1) As limitaes materiais (ou substanciais), por fim, probem que o poder reformador alcance certas matrias de fundamental importncia para o Estado, as quais so chamadas de clusulas ptreas29, intocveis, irreformveis ou eternas, explcita ou implicitamente previstas no texto constitucional30. (explcita: art. 60, 4; implcita: a inadmissibilidade de emenda tendente a abolir o art. 60, 2, 3 e 4)31. Esse poder de alterao do texto constitucional se manifesta atravs da aprovao de emendas Constituio, bem como pelo desenvolvimento progressivo da jurisprudncia e pelo surgimento de usos e costumes. A REVISO CONSTITUCIONAL A Reviso um procedimento preventivo que no implica necessariamente alterao do texto. Quando, entretanto, ocorre alterao do texto, esta se materializa por uma Emenda Constituio denominada Emenda Revisional ou Emenda Constitucional de Reviso, com nmero de ordem prprio. A Reviso , em outras palavras, um processo de atualizao e adaptao da Constituio, aparando as arestas, preenchendo as lacunas e revogando as imperfeies do texto constitucional. Esse processo implica num perodo de facilitao de mudanas constitucionais e no qual o Congresso Nacional se rene em sesses unicamerais e vota, em um nico29

Conforme Jos Afonso da Silva, mesmo sendo a Repblica um dos princpios constitucionais do Estado brasileiro, a ser observado e assegurado (art, 34, VII, a), a Constituio Federal no veda, nas chamadas clusulas ptreas, a possibilidade de emenda tendente a abolir esse regime poltico. (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 9a. ed., p. 61). 30 Sem embargo de serem as clusulas ptreas freqentemente inseridas no Texto Constitucional, muitos publicistas as combatem, tachando-as de inteis e at contraproducentes. (Conf. Celso Bastos, in opus cit., p. 36). Nesse sentido, Feu Rosa em seu Direito Constitucional, p. 238, afirma que a inutilidade desses preceitos salta vista, porque toda e qualquer mudana na Constituio ou do regime constitucional depende to s e exclusivamente de : autoridade e poder. Maurice Duverger, citado por Feu Rosa, diz que as clusulas ptreas politicamente no significam nada, mas a obrigao de recorrer revoluo para modificar as disposies proclamadas imutveis no momento do estabelecimento da Constituio. 31 As limitaes expressas so aquelas previstas textualmente pela Constituio Federal, enquanto que as limitaes implcitas so deduzidas da necessidade de assegurar a integridade da Constituio com a proibio de reforma ou supresso de determinadas clusulas estruturais do modelo de Estado adotado.

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turno, os projetos de emenda revisional, respeitando, apenas, um quorum de maioria absoluta. A MUTAO CONSTITUCIONAL Para o glossarista De Plcido e Silva, mutao constitucional a reforma da Constituio, a qual ocorre por via formal (emenda ou reviso) ou por via informal (a mudana de interpretao da norma operada pela jurisprudncia ou por novas prticas polticas e sociais). A Constituio, portanto, alm da manifestao direta do poder constituinte, sofre um processo de mutao de seu contedo a partir da verificao de uma atividade interpretativa desenvolvida pelos Tribunais sobre o texto constitucional.

EFEITOS DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

FENMENO DA REVOGAO A nova manifestao do poder constituinte originrio importa imediata ab-rogao tanto do texto constitucional anterior, quanto das normas infraconstitucionais incompatveis com a nova Constituio. FENMENO DA RECEPO O fato de haver uma nova Constituio em vigncia, no importa na afirmao de que todo o ordenamento jurdico em vigncia antes de sua promulgao (ou outorga) estar revogado. Embora a legislao infraconstitucional anterior perca o suporte de validade com o advento de uma nova Constituio, essas mesmas normas infraconstitucionais que no se apresentarem conflitantes com a nova Constituio, so, por esta, recepcionadas, recebendo assim novo suporte de validade. A Constituio nova recebe, em outras palavras, alberga a ordem normativa que vigia sob o imprio da Constituio anterior, contudo, com novo fundamento de validade e, muitas vezes, com diverso grau hierrquico legislativo. A isto chama-se de recepo normativa. FENMENO DA REPRISTINAO Por outro lado, a nova ordem no restaura a eficcia de normas revogadas pela Constituio anterior. Se a Constituio nova restaurasse a eficcia da legislao infraconstitucional revogada pelo texto constitucional anterior, estar-se-ia

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admitindo a ocorrncia de um fenmeno jurdico que a doutrina denomina de repristinao, ressuscitao ou revigoramento de norma infraconstitucional revogada por disposio constitucional anterior, o que viria a ameaar a segurana jurdica e a estabilidade das relaes sociais. Entretanto, segundo se depreende do artigo 2, 3 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil, a repristinao ser efetiva quando expressa for a clusula de revigoramento do texto revogado pela Constituio anterior. FENMENO DA DESCONSTITUCIONALIZAO Celso Ribeiro Bastos aponta a existncia de autores que admitem uma sobrevida de algumas normas da Constituio anterior que no estejam em contrariedade com a nova, desde que o novo texto assim o preveja de forma expressa. Essa recepo do texto constitucional antigo pelo novo, entretanto, h de considerar o texto anterior como norma subconstitucional. Trata-se do instituto da desconstitucionalizao, o qual se contrape regra de que a nova Constituio revoga a totalidade do texto constitucional anterior. As disposies da Constituio anterior persistem vigentes, porm sob status de normas ordinrias. FENMENO DA PERDA DA QUALIDADE CONSTITUCIONAL DE DIPOSITIVO SUBTRADO DO TEXTO MAIOR H situaes em que a norma antes presente no Texto Maior afastada da seara constitucional por fora de uma Emenda Constituio, editada com fundamento no poder reformador. Nesses casos, onde as normas formalmente constitucionais, em regra, deixam de usufruir dessa prerrogativa, parece-nos bem adequado falar em perda da qualidade constitucional do dispositivo subtrado, respeitados sempre os direitos adquiridos durante a vigncia daquela norma antes havida como constitucional.