Filmar o Real

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    i

    _ . 1

    / ._ [

    ;69

    Copyright 2008, Consuelo Lins e Cludia Mesquita

    Copyright desta edio 2008:

    Jorge

    Zahar

    Editor Ltda.

    rua Mxico

    31

    sobreloja

    ?0031-144 Rio de Janeiro,

    RJ

    tel.: 21) 2108-0808

    fax:

    21) 2108-0800

    e-mail: [email protected]

    site: www.zahar.com.br

    Todos

    os

    direitos reservados.

    A reproduo no-autorizada desta publicao,

    no

    todo

    ou em

    parte, constitui violao

    ele

    direitos autorais. Lei 9.610198)

    Capa:

    Miriam Lerner

    CIP-Brasil.

    Cata

    logao-na-fonte

    Sindicato Naciona l dos Editores ele Livros, Rj.

    Lins, Consuelo

    I 73

    J

    Filmar o real: sobre o clocument

  • 7/24/2019 Filmar o Real

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    umrio

    Em

    busca

    do

    real 7

    Anos 9 : o documentrio ganha visibilidade 1 O

    Tendncias do documentrio contemporneo

    14

    Contrapontos

    com

    o documentrio moderno

    2

    Presena

    da

    entrevista

    27

    A observao e o tempo 3

    Documentrio

    e auto-representao 38

    Documentrio e mdia: confrontos

    dilogos

    44

    Documentrio

    subjetivo e ensaio flmico

    5

    Dispositivos

    documentais

    dispositivos artsticos 56

    Dispositivos e novas formas audiovisuais 62

    Imagem e

    crena

    69

    Anexo:

    Filmes documentais brasileiros

    lanados

    no cinema de 1996 a 2007 83

    Notas

    87

    Referncias bibliogrficas 9

    Crditos

    iconogrficos

    93

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    mental' do(a) oulro(a)

    t i l l l \ l

    da convivncia com s ' IS oh

    jetos pessoais e seu univ 1 ~ 0

    domiciliar".

    25

    Ao final, dari

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    60

    1Cie111e (2006), de

    Cao

    GHimares e Pablo Lobato, tra-

    l o

    realizado

    no

    contexto do programa

    DOCTV (e

    poste

    riormente ampliado para 35mm

    numa

    verso mais longa para

    o cinema),

    tambm

    resultou da criao de um dispositivo .

    O documentrio no parte de

    um

    tema, assunto

    ou

    situao

    concreta preexistente, mas

    ela

    criao de um poema compos

    to a partir ele nomes ele 20 cidades mineiras - nomes selecio

    naclos na internet, sem qualquer conhecimento prvio elos ci

    neastas a respeito

    elas

    cidades.

    s

    eshofes

    elo poema

    forneceram

    o mapa para a viagem ele realizao.

    Na

    ausncia de temtica

    anterior

    ou

    questo norteaclora, o dispositivo coloca uma espcie

    ele aleatoriedade desejada (ou acidente programado), na escolha

    e aproximao das cidades visitadas.

    O dispositivo-poema adquire, assim,

    um

    certo poder sobre

    os

    cineastas. Decide por eles

    onde

    vo filmar; retira deles o di

    reito ele recusar uma cidade caso no gostassem dela, porque a

    o

    poema

    deixaria

    ele

    funcionar. Reduz o excesso

    ele

    intencionali

    dade. Por outro lado, a partir dessa imposio inicial, ele

    pouco

    obriga, para alm

    ela

    visita a cada cidade elo poema -

    em

    cada

    lugar,

    os

    realizadores esto livres para eleger assuntos, motivos,

    abordagens, movimentos. Talvez por

    isso,

    relacionados a esta

    ' ' O DOCTV, Programa ele

    Fomento

    Produo

    e Teleclifuso

    elo

    Do

    cumentrio

    Brasileiro, levado a ca bo

    por

    Secretaria

    elo

    Audiovisual do Mi

    nistrio ela Cu ltura,

    Fundao

    Padre

    Anchieta(IV Cultura

    e Associao Bra

    sileira elas Emissoras

    Pblicas,

    E

    ducativ

    as e

    Culturais

    (Abepcc), re

    pr

    ese nta

    um

    esforo indito na histria

    elo

    audiovisual brasileiro ele re

    i

    c

    ionam

    e

    nto

    continuado entre a TV aberta e a

    produo

    ind

    epe

    ndente. Tem viabilizado

    a

    produo

    regional

    de documentrios

    (em 27 estados) e sua veiculao

    em

    rede

    nacional , horrio

    nobre,

    sem a obedincia a

    mod

    elos

    ou

    formatos

    prvios (afora o padro

    de durao,

    el

    e

    52

    minutos, divididos em trs blocos,

    e o

    tempo

    para realizao, ele 150 dias). At o

    momento

    foram

    produzido

    s

    114

    docum

    ent

    rios , alguns

    com

    res

    ultado

    s estticos

    muito

    significativos.

    A poltica

    pblica

    criada pelo programa

    no

    Brasil tornou-se

    n-.ocl

    elo e teve

    como desdobr

    am

    ento

    o proj eto do DOCTV

    Ib

    ero-A

    mrica,

    que

    produziu

    e

    veiculou

    documentrios em 13

    pases, na sua primeira edi

    o

    .

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    imensa liberclaclc prod\ll'.idd

    pt l.

    i

    olll l

    li

    cia

    ele

    temtica norl

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    ispositivos e novas

    form s

    audiovisuais

    A

    busca de

    uma

    dimenso mais plstica e uma certa aten-

    o aos parmetros da imagem (em especial

    s

    texturas,

    cores, formatos

    ele

    captao) so traos marcantes em parte

    da recente produo mineira, na qual se notam cruzamen-

    tos com a videoarte e com s artes plsticas.

    6

    Elas se somam

    a um desejo de

    conhecimento

    e apreenso

    el

    experincia

    do outro , mais prpria tradio elo documentrio ( atua-

    lizacla anualmente na capital do estado pelo forumdoc.bh

    -Festival

    elo

    Filme Documentrio

    e Etnogrfico de Belo Ho-

    rizonte , realizado desde 1997). Tanto O fzm do sem fzm (Beta

    Magalhes, Cao Guimares e Lucas Bambozzi, 2001) e Do

    outro lado do

    rio (Lucas Bambozzi, 2004)

    quanto

    A

    alma do

    osso

    Cao

    Guimares, 2004), boio (Marlia Rocha, 2005),

    recho (Clarissa Campolina e Helvcio Marins Jr. 2006) e

    ndarilho

    Cao

    Guimares, 2006) parecem se produzir na

    encruzilhada desses dois movimentos, tendncias ou desejos:

    a experimentao formal e ele linguagem (em convergncia

    com procedimentos

    el s

    artes contemporneas) e

    os

    desafios

    postos pelo relacionamento com o outro (mais prprios

    62 tradio documental).

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    boio

    melhor

    dot'IIIIH ' Iil,lllll l i o l ~ i i 1 o 110

    festival

    Tudo V rdndl' 1

    {){) .

    ccp11itlllol

    bem

    os

    dois movim

    l l [ O A

    ddt

    lc 1 1 ~ . 1 dei'. lli111t

    ''

    ele

    dispositivo

    ele

    que

    l n l l i i i i i O

    1

    ,

    l'lllt

    de

    um tema: o canto

    elo

    aboio,

    usudo p01 ' li'''

    11m

    ele certas regies do pas para lang r o g:1do, c 11

    motivo que orienta

    uma

    viagem aos s

    I I O l ~ d

    Minas, Bahia e Pernambuco. Em Aboio '

    d

    I 'I

    minante o encontro com

    os

    vaqueiros, suas

    h

    i

    s-

    trias, gestos e performances, o relacionamcnlo

    da equipe

    com os

    personagens reais, de quem o

    filme

    depende

    fortemente para se realizar. H

    uso

    abundante

    elas narrativas e cantos, mas eles

    nem

    sempre so montados segundo o sistema

    ele entrevistas - muitas vezes, correspondem

    parte sonora

    ele

    ensaios audiovisuais que no se

    limitam cena elo depoimento, trabalhando com

    vigor imagens

    elo

    ambiente. Nota-se

    uma

    tnica

    de explorao

    ele

    detalhes, de perscrutar

    as

    lo

    calidades

    como

    textura, para

    alm ela

    contextualizao mais naturalista e

    do plano geral fixo. Valendo-se, entre

    outros procedimentos, de travellings

    no meio

    ela

    caatinga, entre troncos

    e galhos secos, no ritmo

    elo

    cavalo e

    na cadncia

    ele

    quem

    v

    de dentro ,

    Marlia Rocha cria

    uma

    paisagem

    transfigurada , subjetivada, vivida.

    A busca ele formas plasticamente in

    teressantes se relaciona, portanto, a

    um esforo

    ele

    apresentar o ambiente

    como experincia;

    ele

    criar

    uma

    pai

    sagem de acordo

    com

    a vivncia e o

    imaginrio dos vaqueiros.

    lnt wio M,

    11lli,

    R h,r pr IH

    ur.1

    , pr

    nt

    ,

    r

    o ambiente

    natur

    a l tal como

    experimentado

    por

    seus personagens:

    uso de travellings

    na

    caatinga

    no

    ritmo do cavalo,

    para

    recriar a

    paisagem de

    acordo

    com

    a vivncia e

    o imaginrio

    dos

    vaqueiros.

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    Andarilho de Cao

    Guimares,

    tambm

    busca a perspectiva

    dos

    personagens:

    planos-seqncias

    longos e fixos

    e enquadramentos

    fotogrficos precisos

    que aos poucos

    se

    transformam,

    adquirindo

    uma estranha

    subjetividade e um

    carter a

    lu

    cinatrio.

    64

    Andarilho

    filme mais rcccnlc de

    Cao Guimares, cuja exibio abriu a

    7a

    Bienal de So Paulo (2006), tam

    bm parece almejar

    uma

    representa

    o contaminada , no plano da ima

    gem, pela perspectiva

    ele

    seus persona

    gens: trs andarilhos que

    perambulam

    por estradas brasileiras. O filme opera

    uma

    radicalizao de procedimentos

    j

    presentes

    em

    O fim do

    sem fim

    A

    alma

    do

    osso

    e

    Acidente

    com

    a pre

    sena marcante de longos e fixos pla

    nos-seqncias, enquadramentos foto

    grficos precisos nos quais se insufla

    tempo. Atravs deles,

    Cao

    extrai

    elas

    estradas

    onde

    vagam

    os

    andarilhos efetivas vises: imagens expli

    citamente objetivas - capturadas

    com

    a cmera

    fixa

    em

    um

    trip - transformam-se

    pouco

    a pouco,

    ganhando

    uma

    estranha subjetividade, a ponto

    ele

    adquirirem

    um

    carter alucinatrio

    que

    dissolve

    distines. Objetivo e subjetivo, real e imaginrio,

    fico e

    documentrio perdem

    o sentido

    em

    ima

    gens

    beira

    ela

    abstrao:

    caminhes

    e motos afun

    dando

    na imagem, plantas evanescentes, estradas

    fumegantes, seres em dissoluo Y

    Esse esforo para se acercar ele uma tem

    tica

    no

    apenas atravs

    elo

    discurso verbal e da

    interao

    com

    os personagens, mas

    por

    meio de

    ensaios audiovisuais, faz-se

    notar tambm

    na pro

    duo contempornea elo

    Cear o caso de As

    vilas

    volantes- O verbo contra o vento (Alexandre

    Veras, 2005),

    documentrio

    realizado

    na

    segunda

    edio do programa

    DOCTV. Como em Aboio

    e

    Andarilho no

    se trata da

    criao

    ele

    um

    clispositi-

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    vo que deflag

    ra

    o

    p t t e ~ ~ o d1

    H

    di

    i' olt.

    .ln ,

    111:1'

    dt um esforo

    (a

    princpio

    mais lrndi r

    io11

    :d ) dt

    d u ~ t t l t t

    ,, , . Jll ' ttl' lll'ia

    ele

    um

    grupo el

    e incli

    vfduo

    s, lltot :tdllll

    ' ' d1

    'd ,

    pt

    \tjlll 'lt ,

    mhetlns

    pela areia no litora l

    noto

    ~ l l

    do

    (

    ;,.,

    \

    l.tt '

    dn

    qltt ' tltlllttlin

    no, a representao proposl

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    dl dita

    mais

    tempo

    - um velho senhor, tratado no terceiro

    loco atravs de imagens de

    um

    cotidiano mido toma

    das

    em

    seu

    pedao de

    terra, associadas a falas fragmenta

    das trabalhadas

    sobretudo como

    narrao over. No mais

    das vezes,

    entretanto,

    o filme explora cenas cotidianas

    em

    um

    posto de gasolina e

    no entorno. Cada segmento

    ou se

    qncia

    elege um recorte

    ou

    priso espacial,

    uma

    moldu-

    ra para o olhar: o posto, o cemitrio, a feira urbana. Essa

    escolha

    reduz

    a apreenso do lugar qui lo

    que

    se d

    vista, a

    uma

    superfcie visvel

    que

    a cmera

    capta com

    paci

    ncia,

    investindo

    no

    mosaico,

    sem

    formar

    com

    essas peas,

    didaticamente, uma imagem

    de conjunto.

    Em

    contraste

    com

    os planos quase

    sempre

    fixos e longos das locaes

    abordadas,

    h

    segmentos compostos de imagens tomadas

    do interior

    de

    caminhes

    que

    atravessam a estrada, suge

    rindo a perspectiva

    de quem

    passa pela localidade, sem

    experimentar

    o seu

    tempo.

    Entre

    pontuaes

    e

    pequenas

    cenas

    elo lugar,

    aparece

    um serto em

    que

    convivem velhas

    tradies rurais e o irresistvel fluxo das mercadorias

    (como

    nas

    imagens

    em que cabras e caminhes dividem a estra

    da);

    um

    serto de passagem , no mais

    gueto

    isolado, mas'

    extenso do pas, precariamente

    urbanizado,

    cada vez mais

    parecido

    com

    as periferias das grandes cidades.

    m

    trao recorrente nos

    documentrios

    mencionados

    nes

    ta seo a utilizao indireta das falas dos personagens .

    Nota-se

    uma

    tendncia explorao dos depoimentos

    como

    vozes over,

    sem reproduzir

    a

    cena

    da entrevista.

    No

    plano

    sonoro, portanto,

    as

    falas dos personagens so usadas

    como

    narrao , atravs da montagem de fragmentos de narrati

    vas No plano

    da

    imagem,

    temos ensaios visuais que elabo

    ram a experincia dos moradores das localidades, valendo-se

    de

    um

    corpo-a-corpo com imagens de ambientes e do coti-

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    diano, segundo

    parfi1n t i ) . ~ p l . t t i c

    m dccLdHllil(, iiO c compo

    sio (imagens captada

    s,

    1 1 1 1 1 1 t : 1

    ,,.,n, c111 dilcu 11tl s forma

    tos-

    super-8, digital,

    1ll

    llll , 1 111 1 ,. l'll '

    tll ,. llliiiH

    'O, sem

    purismo

    ).

    Imagem c som

    ll

    i

    iO

    St'

    S

    ltlHIIdlllollll

    ,

    1 1 1 1

    cll.tllll::tlll,

    sugerindo rela

    es

    intrigan tes,

    pt>ll(

    'o oh\

    loiS,

    De

    um modo geral, so lilm

    s tjlll'

    l1d : 1111111

    ~ 1 1 1 1

    dc

    forma cuidadosa e enftica . O som dircto

    r

    l':ipl.tdo

    111111

    I'S

    mero e utilizado na montagem com autoiiOIIIIil, ' I I I 11111ito

    apego sincronia com

    as

    imagens.

    Aboo ~

    vi

    o s u l a u / ( . ~ ,

    Uma

    encruzilhada

    apra

    zvel

    e

    Andarilho

    cnlr out10s,

    r

    criam

    os

    ambientes visitados, na montagem

    tamb

    ' lll atra

    vs ela

    trilha sonora, trabalhando com detalhes, fragmentos

    ele

    sons, ruclos.

    28

    Em alguns casos, no apenas evita-se a

    palavra, substituindo-a por uma atmosfera sonora, como evi

    ta-se o sentido , conforme escreveu Clber Eduardo sobre

    Uma encruzilhada aprazvel.

    29

    No mpeto experimentalista, buscando novas formas;

    no rigor

    elo

    recorte ou

    elo

    dispositivo, impondo-se limites;

    e

    numa

    certa insurreio contra a relevncia temtica,

    atendo-se ao insignificante e mido

    ele

    ambientes ordin

    rios, filmes

    como

    Acidente

    e

    Uma encruzilhada aprazvel

    fazem frente a abordagens convencionais (elo ponto ele vista

    ela

    forma , com variaes

    elo

    sistema

    ele

    entrevistas ) sobre

    temas urgentes (chacinas, acidentes areos, movimento

    elos

    sem terra etc.), to fregentes nas reportagens

    ele

    TV.

    Outra

    caracterstica

    comum

    ele fundo, a fragmentao: as se

    gncias

    elos

    filmes correspondem a trechos autnomos,

    que guardam

    independncia

    uns

    elos

    outros.

    Acidente em

    particular, no realiza uma construo narrativa ou retrica

    que

    crie um

    acmulo

    e

    uma

    relao

    ele

    interdependncia

    entre as partes (apesar ela moldura elo poema) . Fragmentos

    ele

    histrias, fragmentos

    ele

    ciclacles, fragmentos

    ele

    temas,

    '

    ;;;

    J

    '

    ;;

    .2

    u

    J

    rd

    'd

    '

    o

    c

    cu

    '

    .::;

    v;

    o

    o

    67

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    12/46

    68

    II llllados

    num estrutura fragmentria . Talvez pudssemos

    f l r

    cm poes ia do insignificante

    ,

    mas

    t mb

    m em es tti-

    ca do fragmento , para caracterizar alguns dos docum ent-

    rios recentes

    que

    bord mos aqui. *

    Pode r mos contudo ver

    limit

    es justo onde vemos virtudes: esses mesmos

    documentrios, sintomati came

    nt

    e, leve m em vontade le atua

    licl

    ale , em

    enfre

    nt

    amento le processos socia is e situ

    es pr

    ese

    nt

    es, c rti cas,

    ur

    ge

    nt

    es

    c

    rac tersti cas, ali s, extensiv

    as

    a p rte significa tiva le produo contem-

    pornea.

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    13/46

    O deslocamento de ca111po socia l trouxe para o cinema de

    Coutinho, entre

    outras muda tH;ns, t

    ttll

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    14/46

    lm m

    uatro

    filmes

    recentes

    nos permitem

    concluir

    sem pre

    tenso

    ele

    esgotamento

    nossa breve reflexo sobre a re

    e produo documental brasileira. So eles

    uzo

    2007),

    ele

    Maria

    Augusta

    Ramos

    ,

    Serras

    da

    desordem

    2006), de An

    clrea

    Tbnacci

    antiago - Uma reflexo sobre

    o

    material bru-

    to

    2007),

    ele

    Joo Salles, e ogo

    de

    cena 2007),

    ele Eduardo

    Coutinho. Apesar

    ele grandes

    diferenas

    temticas

    e formais e

    elas

    particularidades

    ele

    cada

    um

    dos

    quatro

    filmes, so obras

    que

    dissolvem clistin_)es

    traclicio_ }.a..5 entre

    fico e docume

    . l:.

    trio e

    amp

    li

    am as

    possibilidades criativas

    do cinema

    brasilei

    ro,

    problematizando

    uma questo

    muito

    pouco discutida

    na

    criao

    audiovisual

    contempornea:

    a crena elo espectador

    diante

    elas

    imagens do

    mundo.

    uzo

    uzo

    parte

    elos depoimentos de meninos

    infratores

    no Tribu-

    nal

    ela infncia

    e ela Juv

    entude elo

    Rio ele Janeiro

    em

    audi

    ncias

    que

    desenham pouco a pouco

    um

    retrato desolador

    ele uma questo crucial elo Brasil contemporneo: o

    nmero

    69

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    15/46

    Juzo

    de Maria

    Augusta Ramos,

    mescla imagens reais

    dos infratores com a

    encenao

    de jovens

    atores, e o fato de

    muitas vezes nos

    esquecermos disso

    revela o alto risco

    desses se tornarem

    personagens reais

    do

    filme. Na foto infe

    rior, a juza Luciana

    Fiala, que

    diante

    das

    cmeras intensifica

    seu papel no tribunal.

    de meninos pobres que opla pelo cri

    me na falta de qualquer outra pers

    pectiva de vida. Adolescentes

    que

    mal conseguem se expressar, fora da

    escola

    ou

    repetentes, grandes demais

    para as sries em que estudam, alguns

    j

    com filhos. Acusados

    ele

    assalto a

    mo armada, trfico

    ele

    drogas, roubo

    e homicdio, eles aguardam o julga

    mento

    no Instituto Padre Severino.

    O filme segue o princpio

    elo

    cinema

    clireto, registrando situaes e perso

    nagens sem quaisquer intervenes

    da equipe, nos moldes

    elos

    filmes

    anteriores ele Maria Augusta Ramos.

    e

    certo modo, situaes

    elos

    mais

    diversos tipos

    em

    tribunais (pequenos

    delitos, violncia domstica, crimes)

    so particularmente interessantes ele

    serem filmadas segundo a metodolo

    gia ela observao.

    Os

    documentrios

    ele

    Freclerick

    Wiseman

    e Raymond

    Deparclon nos mostram

    isso

    juzes, promotores, ,

    defensores pblicos, acusados e familiares esto

    to concentrados no que ocorre

    em

    cena que

    es-

    quecem

    parcialmente a filmagem -

    embora uma

    elas protagonistas ele

    uzo

    contrarie esta afirma

    o. Trata-se

    ele

    uma jovem juza que intensifica,

    diante

    elas

    cmeras,

    um

    papel que

    certamente

    o

    dela naquele tribunal: o ele me repressiva e au

    toritria mas preocupada com

    os

    destinos desses

    menores desajuizados, dirigindo-se a eles

    em

    uma

    linguagem que ela

    cr

    mais prxima deles e quase

    imprpria ao cargo que ocupa.

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    16/46

    O que foge regra

    do (

    l l l l

    l l l l

    d111'1o

    ' ' ''filme o fato

    de a diretora ter u ado at01 . 11m dl'polllll 'lllm para repetir

    falas

    que foram dit

    as

    por

    lll

    ' IIOi l'., ld111oldo

    de

    1

    '

    dmante

    as

    audincias. O filme nos

    adv

    d

    d1

    lo1

    :

    110

    11111111

    A

    lei

    brasileira probe a exposio da idvlltid,tdt di' .ulolnlc'llll's

    infratores. Nesse filme, eles fora111 suh llltndm p111

    '

    '

    '

    1k

    trs comunidades do Rio ele Jan iro hnhllt1.1do., IIH

    ' \111,1\

    circunstncias ele risco soc

    ial.

    Porla11to, ut n ,utu L

    11 :1

    montagem planos elos menino reais filmndm d to: .1:1\ ro111

    contraplanos ficcion ais

    ele

    jov

    ens qu

    faln111

    pnra

    n

    t'lt lll

    m;

    contraplanos encenados, interpretado

    s,

    di1 ig

    ido

    s. Ma1

    ia

    Au

    gusta Ramos fez questo

    el

    e no usar alorcs j om alguma

    experincia ou formao, tais como os que participam de gru

    pos, como

    Ns

    do Morro ou

    Ns

    do cinem

    -

    organizaes

    que trabalham com jovens

    ele

    comunidades pobres

    elas

    peri

    ferias e favelas

    elo

    Rio

    ele

    Janeiro,

    aos

    quais

    as

    produes

    elo

    cinema brasileiro contemporneo tm recorrido na busca ele

    atores que encarnem com mais realismo personagens com o

    mesmo perfil social.

    O que muito perturbador nessa escolha o fato de que

    esquecemos em muitos momentos a informao ele que

    os

    rostos que vemos na imagem no so

    os

    elos

    infratores- infor

    mao que, no entanto, est bem clara nos crditos iniciais-

    em funo

    elo

    efeito de real que tais imagens carregam.

    Mesmo os planos desses atores filmados fora do Tribunal,

    nas dependncias

    elo

    Instituto Padre Severino ou nas comuni

    dades onde os acusados moram, no final

    elo

    filme, adquirem

    uma verdade rara nesse tipo

    ele

    procedimento. Em

    ustia

    (2004, ela mesma cliretora), por exemplo, o filme funciona

    muito bem em todas as seqncias filmadas durante

    as

    au

    dincias, mas perde fora quando encena, mesmo com perso

    nagens reais, situaes em outros locais registrados pelo filme.

    Ou seja, a cliretora no faz uso de atares em ustia e mesmo

    assim

    as

    cenas

    fora

    elo

    Tribunal esto longe de ter o impacto

    E

    '

    71

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    17/46

    72

    que c ~ s

    opo

    possui

    em Juzo

    mesmo difcil usar a palavra

    ator

    para falar dessas intervenes, tamanha a possibilidade

    de

    esses jovens estarem no lugar elos acusados. Trata-se

    elo

    mesmo horizonte social e cultural,

    ele uma

    dificuldade

    ele

    sobreviver

    semelhante,

    ele

    uma

    incapacidade

    ele

    se expressar

    comum a todos eles.

    A reversibilidade

    ele

    papis

    faz

    nossa

    percepo

    vacilar e

    imprime ao filme uma camada suplementar de sentido. No

    se trata em absoluto

    ele um

    procedimento visando apenas

    atender a um voyeurismo

    elo

    espectador que quer

    sempre

    ver

    mais,

    ou

    de

    uma

    facilidade para a

    compreenso

    do filme. Ma

    ria Augusta Ramos consegue transformar

    um

    recurso

    ele

    mise

    en-scene inerente s condies

    ele

    produo

    elo

    filme , em

    uma

    opo reveladora de um risco real que ameaa a maioria

    elos jovens pobres

    elas

    grandes cidades brasileiras.

    erras

    d

    desordem

    J Serras

    da

    desordem (melhor filme , com Anfos do Sol no

    34

    2

    Festival ele

    Gramado,

    em 2006) pe em cena a trajetria

    ele Carapiru,

    ndio

    nmade ela

    tribo w Guaj (do norte do

    Maranho), sobrevivente

    ele

    um massacre contra seu grupo

    familiar promovido

    em

    1978

    por

    jagunos contratados

    por

    fa-

    zendeiros- provavelmente interessados em explorar uma das

    maiores reservas

    ele

    recursos naturais

    ela

    Amaznia legal. Du

    rante dez anos, Carapiru

    perambula

    pelos confins elo Brasil

    central,

    sendo

    descoberto pelo

    Incra

    e pela

    Funai

    em 1988,

    num

    lugarejo no oeste

    ela

    Bahia, distante dois mil quilme

    tros

    ele

    seu

    ponto

    ele

    origem. levado para Braslia,

    onde

    seu

    a

    parecimento

    provoca

    comoo

    nacional e cobertura me

    lodramtica da imprensa, intensificada pelo episdio que se

    seguiu: o ndio jovem trazido

    elo

    Maranho

    como

    intrprete

    seu filho,

    tambm sobrevivente

    do

    massacre, criado

    duran

    te alguns anos pelos mesmos fazendeiros que ordenaram a

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    18/46

    matana . e

    ssa hi

    sl

    >lin

    dt

    l.11

    11 1 j 1l1o q

    Andrea Tonacci se propo n t'1111l.11 , 1111111 1 lu

    c,.lll

    document

    al que cobr

    qu us

    \llltlo

    tll

    '

    111111' li l \oltl '

    dot tlllll 'lll ,\ri , fruto

    d,t

    ntre

    r os do presente

    n naes

    do pa ssado.

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    19/46

    r

    o

    r

    E

    Li

    74

    ara contar a histria de Carapiru, e a partir dela proclu

    t il

    111ltiplas

    conexes,

    Serras

    da

    desordem

    mobiliza uma he

    terogeneidade significativa

    ele

    materiais e procedimentos: um

    vasto arquivo

    ele

    filmes

    que

    inclui matrias telejornalsticas,

    filmes

    ele

    fico e

    documentais

    (co

    mo

    Iracema

    um

    transa

    m znic

    (197 4),

    ele

    Jorge Bodanzky e Orlando Sen na, e A

    cabra

    na

    regio

    semi-rida

    (1966), de Rucker Vieira); entrevis

    tas sobre o passado e sobretudo encenaes, tendo o prprio

    Carapiru e pessoas que conheceu no percurso como atares,

    fazendo

    os

    prprios papis 20 anos antes; alm

    ele

    cenas que

    documentam

    o presente

    ela

    aldeia aw guaj,

    onde

    vive Cara

    piru . Misturam-se texturas, qualidades ele

    imagem,

    cor e pre

    to-e-branco . Mais elo

    que

    isso,

    os

    diferentes estilos

    ele

    co

    ntar

    mobilizados pela narrao,

    no

    curso do filme, endossam uma

    atitude ele no-cliclatismo, propondo ao espectador que monte

    as

    peas ele uma histria que envolve tempos e espaos diver

    sos,

    medida que a assiste.

    3

    Muitos aspectos desconcertam neste filme singular, mas

    destacaremos apenas um deles.

    Serras da

    desordem ence-

    nado pelos protagonistas ela histria real, o que provoca

    uma

    permanente ambigidade entre documentao do presente e

    reconstituio elo passado, uma instigante contaminao fic

    o-documentrio, derivada sobretudo dessa

    conv

    ivncia e

    temporalidades ,

    como

    afirmou em entrevista Ismail Xavier.

    3

    J

    que Carapiru, protagonista da histria real, interpreta seu

    prprio papel

    no

    passado, duas camadas

    constantemente

    in

    teragem: Carapiru ator, agente ela fico (nas encenaes

    elo passado), e ele mesmo , objeto elo olhar documental elo

    filme (

    no

    presente).

    Cada uma

    elas

    cenas

    ele

    reconstituio

    implica tambm

    um

    reencontro (bem presente) com aqueles

    que Carapiru

    conheceu

    20 anos antes, em sua jornada pelo

    Brasil central.

    Em

    cada situao,

    portanto,

    no serto

    ela

    Bahia

    ou em Braslia, estamos sempre a ajustar o canal: em que

    regime ele atuao se encontram Carapiru e as pessoas com

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    20/46

    que ele interage? A a111bigilid.ull 1 11111

    jll \\11;1

    t personagem

    parece reforar a allcridnd

    d,

    ( :;

    11.1p1111

    .

    c

    IIHh'\a,,ahilidade

    de sua experincia, mm a 1

    w l.ul.t 1111

    l \\,111.1

    pm

    inlciro.

    Como

    bem apontou lsmai l i

    i\ it

    ' l

    ()

    1111:11

    cll

    l l i l 1 1 1 1 1 p ~ n v s ,

    o vai-e-vem de Tonacci nos CO ilvid.c ,1 \1\1 1

    .1

    III'LIIIIIHI.uk

    das imagens, a indeciso. Mesmo tp1a1ulo n q111lll.c c

    ,

    dH'

    a comea a se resolver no nvel

    prag11l:llll

    o

    d,1

    lno)'lilllil, ;I

    poeira j levantada em seu cinema-pro sso

    ; I

    t'lilll,l

    ;llc

    o ln11

    o campo

    elas

    incertezas, o que h ele la 'llll i

    ll

    , llllt

    'l '

    llti:ll, 11:1

    cena vis vel.

    32

    antiago

    Em Santiago Joo Salles coloca

    em

    prtica uma idia que vi-

    nha defendendo com afinco nos ltimos anos: a produo

    ele

    documentrios no Brasil

    eleve

    se voltar para temas prximos

    viela

    elos

    diretores, evitando-se filmar apenas o outro . Salles

    talvez se referisse, indiretamente, ao filme iniciado por ele em

    1992, e no concludo, sobre o mordomo que trabalhou com

    a famlia Moreira Salles por quase trinta anos.'' Em agosto

    de 2005, decide se confrontar com as nove horas do material

    filmado e finaliza

    Santiago

    que adquire

    um

    subttulo-

    ma

    reflexo sobre o material ruto e uma outra densidade.

    um

    filme que contm muitas histrias:

    um

    documentrio sobre

    * Embora no corresponda ao Outro clssico (moraram inclusive, por

    anos, na mesma casa), Santiago no deixa de ser outro ( outro ntimo ,

    talvez) o documentarista. Talvez possamos dizer, com Ilana Feldman,

    que Salles assume nesse filme que todo documentrio sobre o outro um

    documentrio sobre si, assim como se costuma dizer que toda crtica

    uma

    autobiografia . No texto Santiago sob suspeita , ela desenvolve considera

    es

    ele

    grande intere

    sse

    sobre

    as

    camadas de Santiago, sobre suas reve

    laes e enganos .

    E

    QJ

    O. l

    '

    75

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    21/46

    r

    o

    r

    E

    i L

    76

    1110rclomo mas tambm uma carta filmada elo elirctor

    eli-

    igida aos irmos compartilhando memrias, um ensaio flmi

    co sobre como fazer (ou no fazer) um documentrio e uma

    homenagem pstuma ao personagem.

    Santiago de fato

    um

    personagem e tanto.

    Conjuga

    ha

    bilidade narrativa com histrias incomuns de vida: nascido na

    Argentina,

    comeou

    a trabalhar

    com

    uma famlia aristocrti

    ca

    em Buenos Aires, contraindo desde

    ento

    uma paixo

    por

    tudo o que dissesse respeito

    viela ele reis e rainhas, a nobreza

    em

    geral, real

    ou

    imaginria, pouco importava . com fasc

    nio

    por

    esse

    mundo

    que

    ele conta

    as

    histrias ,

    clos

    grandes jan

    tares e festas na manso

    ela

    famlia Moreira Salles na Gvea,

    as

    tarefas que envolviam a arrumao

    ela

    casa,

    as

    mesas,

    as

    flores, a orquestra,

    os

    nobres e distintos

    que as

    freqentavam.

    So pequenas narrativas que desvelam aqui e ali a dureza elo

    trabalho contnuo a clificulclacle ele

    uma viela

    privada, a sub

    misso

    elo

    mordomo

    a

    uma

    ordem

    estabelecida.

    O documentrio , contudo est longe ele ser s isso. Sal

    les decide

    tambm

    expor

    no

    filme, implacave

    lmente

    o que

    percebeu ao rever o material

    ele

    1992: o

    quanto

    se

    manteve

    distante de Santiago ao longo dos cinco dias ele filmagem, o

    quanto

    imps a ele

    uma

    idia prvia ele filme, o quanto no

    entendeu

    o

    que de

    fato importava

    naquele

    reencontro.

    Uma

    compreenso que se deu de certa maneira, tarde demais.

    Santiago

    morreu

    poucos anos depois elas gravaes, e o que

    foi filmado no poderia ser mudado.

    Mas dessa sensao ele tarde demais que Salles extrai as

    condies para finalizar o filme . Retoma erros, mal-entendidos

    e incompreenses cometidas

    por

    ele ao longo

    ela

    filmagem

    ele

    1992 e os evidencia, sem meias palavras, sem subterfgios. Exi

    be

    truques e manipulaes efetuadas 13 anos antes e afirma na

    narrao: difcil saber at onde amos

    em

    busca

    elo

    quadro

    perfeito,

    ela

    fala perfeita. Desmonta imagens e sons e adverte o

    espectador: desconfiem do que seus olhos vem.

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    22/46

    Deparamo

    -nos

    on1

    11111

    di l"'

    por vezes ds pol'l, in i Indo, :1p11 .

    sacio, incapaz de cslab

    l l 11111 , 1

    efetiva

    int

    e

    ra

    o com Santiago,

    qllt

    '

    tenta a seu modo acer lar

    aquilo que o diretor que r. "San iago,

    vai de novo, no olha para a g nl

    no . No olha " diz Salles uma

    das seqncias,

    ou

    ainda: " Fala logo

    que

    estamos

    com um pouco

    el

    e pr

    s-

    sa." Raras vezes na histria do do u

    mentrio um cineasta explicitou d

    tal maneira segredos que ficam , na

    maior parte elos

    casos, perdidos no

    material no usado

    elos

    filmes.

    A

    montagem extremamente

    h

    bil insere vrias repeties ele

    uma

    mesma fala elo mordomo, mantendo

    hesitaes e silncios, intensificando

    o desconforto tanto elo personagem

    quanto elo

    espectador. So momen-

    tos

    em

    que

    opresses vividas pelo

    mordomo

    ao longo

    ela

    viela

    parecem se manifestar

    ele forma mais contundente, e isso que Salles

    constata ao dizer, perto do final do filme:

    Duran-

    te os cinco dias ele filmagem eu nunca deixei de

    ser o filho elo clono ela casa e ele

    nunca

    deixou ele

    ser o nosso

    mordomo.

    Mas o filme tampouco se limita a essa dimen-

    so confessional. Joo Salles

    vai

    gradualmente

    ao

    encontro

    ele Santiago e rev o que na poca no

    o havia interessado:

    as 30

    mil pginas

    ele

    histrias

    ela nobreza

    ele

    todos

    os

    tempos pesquisadas em bi

    bliotecas e transcritas pelo

    mordomo

    ao longo

    ele

    Santiago de Joo

    Salles, uma reAexo

    sobre a realizao

    de documentrios

    e uma corajosa

    autocrtica, que

    desmonta

    imagens

    e sons e adverte

    o espectador:

    desconfie

    do que

    seus olhos vem.

    77

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    23/46

    78

    rnai de

    meio sculo.

    Uma

    tentativa quase insana de impedir

    qu

    aquelas vidas desaparecessem ela

    memria.

    O cliretor traz

    para o filme fragmentos desses escritos, assim

    como comen-

    trios pessoais de Santiago encontrados em meio aos textos.

    Refaz, a seu

    modo

    o gesto elo ex-mordomo e retira Santiago

    do

    esquecimento

    a

    que

    as imagens de 1992 o haviam con

    denado.

    antiago

    , acima ele tudo, a narrativa perturbadora

    e comovente ele um aprendizado e de uma transformao

    de um cineasta no confronto com ele mesmo em

    um

    outro

    momento

    da vida. Transformao sutil e sem alarde ,

    como

    diz Salles

    no

    final do filme, e que ficou clara

    no reencontro

    com

    as imagens ele Santiago.

    ogo de

    cena

    Podemo

    pensar

    inicialmente

    que a experincia

    elo

    especta

    dor ele ogo de cena bastante prxima daquela produzida

    por outros documentrios de

    Eduardo

    Coutinho.

    Afinal, o

    essencial no parece ter mudado. O filme nos coloca no

    vamente diante de pessoas contando histrias ele

    viela

    ao

    cineasta,

    no

    estilo minimalista

    que

    marca a obra de Cou-

    tinho

    desde

    anto

    forte

    (

    1999

    .

    S que, dessa vez, so todas

    mulheres, e o que as

    une

    o fato de terem atendido a

    um

    anncio nos classificados ele

    um

    jornal carioca convidando

    as a participar de

    um documentrio.

    Por

    que

    s mulheres?

    Porque falam

    com

    mais facilidade das suas dores e alegrias,

    diz

    Coutinho;

    e

    tambm

    porque

    para ele,

    mulheres

    s o

    o

    que ele no , o outro que busca em seus filmes.

    Con-

    versam

    com

    o diretor

    em

    um

    palco

    ele teatro, e no mais

    em uma

    locao real -

    nem

    favela

    nem

    prdio. Falam ele

    trabalho, cotidiano, relaes afetivas e especialmente elos fi-

    lhos. Histrias ele amor cuidado e dificuldades, perda, dor

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    24/46

    r

    50

    so var iadas, mas h, de todo modo, uma valorizao da sub

    jetividade do homem

    comum.

    Muitos filmes se relacionam

    com experincias socialmente demarcadas (moradores de

    uma localidade, por exemplo , evitando o ensaio que pode

    ria, a partir de caractersticas transversais

    ou

    generalizaes,

    relacionar tais experincias quelas de outros indivduos

    ou

    grupos, pela via da interpretao ou

    elo

    diagnstico.

    s expe rincias so, de um modo geral, tratadas como irre

    dutveis.

    Nem

    tpicas,

    nem

    exemplares,

    tampouco

    extraordin

    rias. Ao contrrio: nicas, singulares. O valor, aparentemente,

    est no registro e no trato respeitoso

    com

    elas, expondo suas

    particularidades e no no olho que

    v

    mais longe, relacionan

    do-as

    conjuntura e a outras experincias,

    ou

    estrutura so-

    cial, com suas potencialidades e problemas. So raros tanto

    os

    trabalhos que buscam explicaes previamente estabelecidas,

    como

    era freqente nos documentrios

    elos

    anos 60, quanto

    os

    filmes investigativos que constroem e expem interpretaes a

    partir do desenrolar de um processo ou percurso otcias de

    uma

    guerra p r t ~ c u l r

    e nibus

    74

    aparecem como excees.

    Como

    bem

    observou em entrevista Ismail Xavier:

    A vontade agora

    explorar mais os suje itos no que tm de

    singular. Evitam-se generalizaes, a busca dos porqus.

    Con-

    centra-se na apresentao de

    um

    inventrio dos

    imaginrios-

    enfim outra fenomenologia mais regrada sem se deter no pro

    blema

    da relao

    entre

    eles e as condies materiais ele existn

    cia, sem saltos da experincia imediata para suas implicaes

    sociais e pol ticas.

    9

    brasileiro contemporneo e a micro-histria (2004)

    tendncia

    que ela

    compara metodologia da micro-histria,

    em

    oposio

    s

    macroanlises,

    no campo de estudo da histria. Evitando estruturar seu discurso na forma

    do diagnstico, a micro-histria buscaria seus temas a partir da abordagem

    de situaes singulares, indivduos ou pequenos grupos.

    ccsr

    Diviso de Bibliotecas

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    25/46

    e sofrimento, mas lalllb III d1 l l l l i t l l l . l l l l l l l lo c

    recuperao moral ; hisl l l i : d1 ldl11 t 11.1dm, .1

    maioria

    deles sem pai s 101

    p t l ln .

    t tpl t ' s

    tes

    que lembram

    aquc l

    s

    d

    l uclu

    811

    /ltl

    '

    ' '

    me, de Pedro Almodvar.

    Ofilmetemmuitascamadas ~ ~ i l t l l l l l l l l t

    11 1

    delas. O ttulo Jogo de cena ug rc oul1 .

    :

    nt i l l l d

    1 1

    convidou atrizes para

    inter

    pretar mui h

    res com quem j havia conversado ' raz

    uma

    articulao inesperada

    cnlr

    ss

    s

    vrios depoimento

    s

    Dis olve clislin s

    entre o que encenado c o que

    real c

    produz mudanas, ao longo elo filme, na

    forma

    ele

    o espectador se relacionar com

    as imagens e sons. Se diante elas atrizes

    conhecidas

    somos tentados, inicialmen

    te , a julgar seu desempenho, Jogo de

    cena

    nos retira desse lugar e propicia um

    outro

    tipo de experincia: a ele comparti

    lhar com atrizes talentosas e reconheci-

    elas

    angstias e dificuldades inerentes

    encenao

    ele

    personagens reais. Andra

    Beltro provoca em

    muito

    s momentos

    um curto-circuito comovente entre suas

    sensaes e as ela personagem. Fernan-

    da Torres interrompe algumas vezes

    sua atuao, diz a

    Coutinho

    que pare

    ce estar

    mentindo

    e explicita a

    dureza

    de interpretar uma

    personagem

    real: A

    realidade esfrega na sua cara onde voc

    poderia estar e

    no

    chegou. Marlia

    Pra interpreta uma personagem extre

    mamente

    emotiva, mas esbarra numa

    atuao

    distanciada.

    Jogo

    de

    cena

    exibe

    Um filme de muitas

    camadas, desde

    o

    lftulo:)ogo de cena,

    de

    I

    ~ r d o

    Coutinho,

    ; tH1 erta, comove

    ;

    1

    IIIVOll:cllcler a arte ele representar como algo instvel, inseguro e

    exposto a riscos - extremamente prximo do documentrio,

    tal como concebe Eduardo Coutinho.

    Em

    relao

    s

    atrizes e personagens desconhecidas,

    s

    questes so outras. Mulheres annimas narrando

    momentos

    ntimos de vida para a

    cmera

    de Coutinho adquirem, a nos

    sos olhos, a fora

    el

    verdade, reafirmando de imediato nossa

    crena na imagem

    documental.

    Mas pedaos

    ele

    histrias

    j

    narradas

    comeam

    a voltar em uma frase, em

    um

    rap, em

    um

    relato, instilando-nos pouco a pouco a dvida a respeito elo

    que vemos no filme: uma pessoa real relatando sua histria

    ou

    uma atriz clesconhecicla representando?

    Autntico , verdadeiro , espontneo , acljetivos que

    sempre acompanharam a recepo elos documentrios elo

    diretor,

    mesmo

    que revelia de Coutinho (que sempre en

    fatizou a dimenso ele fabulao e encenao de si contida

    nos depoimentos ele personagens reais), so estilhaados

    um

    a um. A incerteza se espraia pelo filme todo, atinge famosos

    e annimos, e no sabemos ao final a quem pertencem

    s

    he

    sitaes e os s_ilncios ele Anclra Beltro e Fernanda Torres-

    se

    s

    atrizes

    ou

    s

    personagens que reinterpretam. Perdemos

    o controle sobre o que ou

    no encenado,

    e os indcios ele

    que o filme est nos

    enganando

    nos fazem entrar, parado

    xalmente, ainda mais

    no

    jogo proposto. Nos emocionamos

    duas vezes com o

    mesmo

    caso, j sem querer saber qual das

    mulheres a verdadeira clona

    da

    histria. At porque no h

    garantia possvel:

    s

    duas

    podem

    ser falsas , atrizes fazendo o

    papel ele uma terceira pessoa

    que

    no est no filme. Assomam

    s

    narrativas

    como

    foco

    ele

    interesse elo filme, lugar

    ele

    drama

    tizao e organizao

    elo

    vivido, de

    produo ele

    verdades ,

    ditos e episdios exemplares.

    Um

    filme sobre histrias, pode

    ramos dizer, mais elo

    que sobre personagens.

  • 7/24/2019 Filmar o Real

    27/46

    que esses quatro dot'HIIIt ' ld.tdc lc 111 c lll cOlllllm , e que

    praticamente in dito ll il

    l)lodtt