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D a influência, no Direito Civil, do movimento socializador do Direito (Lição inaugural proferida na solenidade da abertura dos cursos jurídicos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 27 de março de 1939). Alvino Lima Atravessamos, sem dúvida, no momento atual, um dos períodos mais agitados da história da evolução do direito. A influência dos dados econômicos e sociais, nas suas múltiplas manifestações, através das transformações decor- rentes das grandes indústrias, de múltiplas invenções e das idéias políticas e filosóficas, veiu imprimir, sobremaneira, nos vários institutos jurídicos, diretrizes novas, feições di- versas e efeitos múltiplos e imprevistos. As novas doutrinas se enfeixaram contra os princípios do Código de Napoleão, proclamando a revolta dos fatos con- tra a lei (1), a decadência da autonomia da vontade e do contrato (2), a impotência e a inutilidade da norma jurí- dica na solução das relações jurídicas (3), num desejo in- contido de tudo rever, reformar e alicerçar sobre novos fundamentos. E a tal culminância se ergueram as novas concepções, que o grande RIPERT afirmou que é preciso mais coragem, na nossa época, para defender as regras da moral tradicional, do que para avançar as proposições mais aven- turadas.

Da Influência No Direito Civil Do Movimento Socializador Do Direito - Alvino Lima

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Da Influência No Direito Civil Do Movimento Socializador Do Direito - Alvino Lima

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  • D a influncia, no Direito Civil, do movimento socializador do Direito (Lio inaugural proferida na

    solenidade da abertura dos cursos jurdicos da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, em 27 de maro de 1939).

    Alvino Lima

    Atravessamos, sem dvida, no momento atual, um dos perodos mais agitados da histria da evoluo do direito.

    A influncia dos dados econmicos e sociais, nas suas mltiplas manifestaes, atravs das transformaes decor-rentes das grandes indstrias, de mltiplas invenes e das idias polticas e filosficas, veiu imprimir, sobremaneira, nos vrios institutos jurdicos, diretrizes novas, feies di-versas e efeitos mltiplos e imprevistos.

    As novas doutrinas se enfeixaram contra os princpios do Cdigo de Napoleo, proclamando a revolta dos fatos con-tra a lei (1), a decadncia da autonomia da vontade e do contrato (2), a impotncia e a inutilidade da norma jur-dica na soluo das relaes jurdicas (3), num desejo in-contido de tudo rever, reformar e alicerar sobre novos fundamentos. E a tal culminncia se ergueram as novas concepes, que o grande RIPERT afirmou que preciso mais coragem, na nossa poca, para defender as regras da moral tradicional, do que para avanar as proposies mais aven-turadas.

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    No possvel, porm, negar a realidade do movimen-to, nem possvel seria deter-lhe a marcha. Cumpre, pois, fixar a sua feio, traando os seus princpios bsicos.

    Para assim proceder verifiquemos, primeiramente, quais os princpios fundamentais que o Cdigo Civil de Napoleo nos legou, consubstanciando, na sua filosofia, os princpios fundamentais do direito civil, e inspirando a legis-lao moderna de todos os povos (4), visto como, contra as suas concepes que se forjam os novos conceitos, que se constri, como diz BONNECASE (5), o mundo jurdico do momento contra o mundo do Cdigo de Napoleo.

    A absorpo do indivduo pelo grupo social, sufocan-do-o, deprimindo-o, escravizando-o, como feio caraters-tica da organizao social do sculo XVIII, deveria encon-trar na concepo individualista mais radical, a fonte inex-aurvel da proclamao dos direitos subjetivos, sob a gide de liberdade e da igualdade. Sob o dogma da igualdade perante a lei, como vontade geral e no como vontade do prncipe, surge a nova concepo jurdica, proclamando o absolutismo no exerccio dos direitos. O direito um poder ou que promana da lei, como expresso da vontade geral, ou que dimana da vontade particular nas suas mltiplas manifestaes em atos jurdicos. Exerc-lo, em toda a sua amplitude, ainda que se cause leso a terceiros, uma prer-rogativa amparada na lei.

    O princpio da autonomia da vontade a chave do sis-tema individualista; o contrato a chave da coeso social (6). Como conseqncia do princpio da liberdade, surge o libe-ralismo econmico, que proscreve a interveno e funda a liberdade do interesse pessoal.

    A sociedade a soma dos indivduos juxtapostos, e a pro-teo da pessoa forma o contedo da noo do direito (7).

    O direito civil se alicerava, portanto, na concepo ato-mstica da sociedade, reconhecendo e protegendo-se apenas

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    indivduos abstratos, isolados, sujeitos jurdicos iguais pe-rante a lei.

    Eis o aspecto geral da concepo individualista e me-tafsica do direito civil, que nos legou o Cdigo de Napo-leo, muito embora tenhamos de reconhecer a consagrao de normas excepcionais, impostas pr necessidades econ-micas, sociais, e morais, proclamando a influncia do meio social e atenuando, aqui ou acol, a rigidez do absolutismo referido.

    E' certo, porm, que esta feio individualista e absolu-tista o trao caraterstico, fundamental, que assinala todos os institutos jurdicos.

    * * *

    Contra esta concepo individualista e absolutista do direito, um sem nmero de doutrinas anti-individualistas se construram atravs das mltiplas variantes do socialismo, do positivismo de COMTE, do realismo de LEON DUGUIT, do idealismo sociolgico de GEORGES D A V Y e de tantas outras (8). Ao lado de um direito individual proclama-se a exis-tncia de um direito social, direito de integrao, inorgani-zado, que promana das massas, impondo-se ao direito posi-tivo, como pretendem ensinar GRVITCH (9), L E F R (10) e outros.

    No nosso intento descrever doutrinas e nem as mes-mas seriam pertinentes nossa exposio. Falamos de socializao do direito, que coisa diversa de socialismo jurdico ou de direito social (11); referimo-nos a uma con-cepo social do direito em oposio a uma concepo indi-vidualista. Fixemos, pois, o seu Conceito e as suas carate-rsticas.

    A concepo social do direito, tomando como ponto primacial a sociedade, os seus interesses, fixa o indivduo como ser social, unidade componente do todo e cujos direi-tos se realizam em funo da sua prpria misso. Contra o absolutismo dos direitos, da concepo individualista, ope

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    a sua relatividade; contra o direito poder o direito-fun-o. Os direitos so, pois, conferidos tendo como razo l-tima ou primeira, como diz JOSSERAND (12), a ordem e a utilidade social; eles so meios que devem tender para estes fins exteriores.

    O papel do direito no reside apenas em delimitar, separar e assegurar a independncia de cada um, mas sal-vaguardar a necessria e relativa liberdade, de que tm necessidade todos os indivduos para cumprirem a sua mis-so, convergindo suas atividades para fins comuns e orga-nizando o jogo das solidariedades sociais, de maneira tal que o direito seja, para todos, a maior fonte do bem e a menor fonte do mal (13).

    A corrente individualista, assegurando uma igualdade formal, criou o abismo mais profundo entre os homens, por-que se esqueceu que a igualdade legal no corrige as desi-gualdades sociais e econmicas reveladas na vida. O prin-cpio da igualdade, to nobremente alado como dogma fundamental da concepo individualista, destruu-se ante o egosmo humano, que encontrou, na prpria lei, o amparo para a explorao do mais fraco social e economicamente. A liberdade contratual tornou-se, na realidade social, a li-berdade da ditadura do que socialmente poderoso e a escravido do que socialmente fraco.

    A concepo socialista do direito, ao invs de se arqui-tetar sobre este princpio de igualdade formal, que as con-tigncias sociais, as influncias econmicas e a maldade humana destrem, fazendo surgir a prepotncia de poucos sobre a maioria dos fracos e pobres, funda-se na idia de equao, procurando, por mltiplos processos, restabelecer o equilbrio dos interesses em choque; ao invs de uma jus-tia comunicativa da concepo individualista, uma justia distributiva.

    Encarar sob o mesmo p de igualdade, partes social-mente desiguais; fortificar os fracos, conseguindo juridica-mente extirpar ou pelo menos atenuar as desigualdades

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    sociais; compensar com uma superioridade jurdica a infe-rioridade econmica dos pobres, como diz GALLART-FOLCK (14); criar, em uma palavra, o que ROMAGNOSI (15) chama "o direito igualdade", como corretivo liberdade sem igualdade, eis o que devemos entender por concepo socia-lizadora do direito, tal como a conceberam L. RADBRUCH (16), J. G. ALBERU (17), ORLANDO G O M E S (18), GEORGES RADU-LESCO (19), SILVIO TRETEN (20) e outros.

    Tal concepo socializadora no a negao do direito individual, mas, a contrrio, a sua exaltao dentro dos princpios da igualdade, no mbito de uma comunho leg-tima e sincera de fins comuns, para combater o que TRETIN (21) chama o egotismo, isto , estas doutrinas que definem o indivduo como limitado em si mesmo, que negam sua submisso a todo princpio superior e que fazem repousar o cumprimento de seu destino unicamente nas foras que encerra em si mesmo.

    Fixado, desta forma, em linhas gerais, o que devemos entender por movimento socializador do direito, vejamos a sua influncia no direito civil.

    * * *

    No era possvel que trouxssemos, para esta modesta lio, um estudo completo e exaustivo de todos os institutos jurdicos do direito civil, marcando a influncia da concep-o social do direito. Isto posto, abordemos, sumariamente, as mutaes mais acentuadas nos principais institutos jur-dicos.

    1. De incio, como assunto mais amplo, mais debatido e mais vasto na sua expanso, porque abrange quasi todos os institutos jurdicos, faamos referncias teoria do abuso do direito.

    A teoria da relatividade dos direitos fere de frente a concepo absolutista que nos legou o Cdigo de Napoleo. O absolutismo, radical a princpio, proclamando a irrespon-

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    Habilidade no exerccio dos direitos, mesmo agindo-se com inteno de prejudicar, como ensinavam DEMOLOMBE, H U C , MUTEAU, atenua-se para admitir esta restrio, com funda-mento na teoria do ato emulativo. Fora desta concepo, os direitos subjetivos permanecem intangveis, podendo o seu titular exerc-los como lhe aprouver, no lhe advindo responsabilidade alguma pelo dano por ventura causado a terceiro, quando no exerccio de um direito.

    Mas a teoria do abuso do direito, sob a influncia da concepo social exposta, no se ateve doutrina da emu-latio e numa ascenso, cada vez mais crescente, condena o exerccio de um direito causador de dano, desde que o seu titular no tenha legtimo interesse na sua ao, desviando o direito de sua finalidade social e econmica (22).

    E' inegvel que a teoria do abuso do direito, acolhida nos Cdigos e pela jurisprudncia, com a extenso que lhe tm dado os doutrinadores modernos, o golpe mais pro-fundo desferido contra a concepo dos direitos absolutos, delimitando o seu exerccio e impondo ao direito-poder as restries da concepo do direito-funo.

    2. A teoria das obrigaes considerada, a princpio, como reduto inacessvel s transformaes do direito, em virtude da crena de que o seu contenudo se enfeixava em u m sistema completo, lgico e definitivo, foi, sem dvida alguma, a mais atingida pela concepo socializadora do direito.

    Para demonstr-lo basta realarmos as transformaes profundas operadas pela influncia dos dados econmicos, influncias que vieram atingir em cheio a decantada liber-dade de contratar e a autonomia da vontade.

    Bastaria lembrar todo este movimento edificador de preceitos que integram a chamada legislao social ou obreira, para se verificar quo profundas e radicais foram as transformaes operadas nas relaes decorrentes de vrias modalidades de contratos.

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    A autonomia da vontade, na acepo que lhe empres-tara o legislador napolenico e seus comentadores, como princpio fundamental, como expresso da liberdade, est completamente fora de debate, assim como a livre discusso das condies contratuais (23). Neste sentido suficiente citarem-se as chamadas convenes coletivas do trabalho e os contratos de adeso, nos quais o elemento vontade e sua autonomia tm uma participao muito relativa e sob as-pecto muito diverso do que nos d notcia a concepo indi-vidualista do direito.

    Todo este movimento social se funda no desejo de esta-belecer o equilbrio entre as partes, consagrando o direito igualdade, que o contrato civil no poderia manter, ante a m f, o egosmo ou interesses descomedidos do mais forte ou do mais astuto.

    Os novos dados econmicos tornaram insuficiente o contrato livre e individual; a igualdade formal preparara a iniqidade, o esbulho, a preponderncia do forte e o esma-gamento do fraco; rompia-se o equilbrio de igualdade que a lei procurava proteger. Para recomp-lo, ops-se fora patronal a coletividade do trabalho; a princpio, como orga-nizao particular, impondo mais tarde a sua consagrao legal, sob forma permanente de associao profissional (24).

    3. Mas no foi somente se destacando do campo do direito civil, como legislao autnoma, que o regime con-tratual sofreu e vem sofrendo a influncia da concepo social do direito. Mesmo no limite das normas do direito civil, a influncia se manifesta, vindo em socorro do con-tratante, que, embora tenha manifestado a sua vontade, ou pelo menos assim se infere da forma contratual, se v espo-liado ou esmagado pela outra parte, como vtima da astcia, da preponderncia ou de fatores externos.

    Contra a ao deletria e nefasta da usura, da espe-culao ou da concorrncia, inmeros so os preceitos jur-dicos que pem termo decantada liberdade de contratar,

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    como lei entre as partes, procurando assegurar o direito de igualdade real entre os contratantes, ao invs desta igual-dade formal por si s incapaz de assegurar a justa equiva-lncia das prestaes.

    O conceito de ordem pblica se estende cada vez mais, no sentido de acautelar interesses individuais expostos especulao, ganncia e prepotncia, cerceando o poder da liberdade individual por meio de leis de proteo, leis de estabilidade econmica, leis de higiene fsica e de moral. Ao lado desta legislao protetora, que no hesita, como diz PIERRE DE HARVEN (25), sacrificar os efeitos da vontade in-dividual e os princpios morais mais adequados a conservar a confiana necessria ao comrcio jurdico, a extenso da teoria da causa das obrigaes vai-se infiltrando na interpre-tao do contrato, afim de anul-lo ou rescindi-lo, com o intuito de proteger o contratante prejudicado. Expande-se o conceito de causa, abrangendo o fim (CAPITANT), de molde a se ampliar o conceito do ilcito ou do imoral na defesa dos interesses individuais no assegurados pela autonomia da vontade; confere-se ao Julgador o exame psicolgico das intenes para se perquirir da causa da obrigao.

    A teoria da impreviso, rebuscando os ensinamentos que nos legou o direito cannico com a clusula "rebus sic stantibus", renova-se e amplia-se em virtude das profundas transformaes econmicas da nossa poca, atingindo, na sua essncia, o prprio contrato. Os principios de segu-rana e de equilbrio das prestaes, que devem amparar ambas as partes contratantes, sofrem absoluto desmentido, quando, na execuo das obrigaes contratuais, por fora dos dados econmicos que transformam as situaes de fato, uma das partes se v completamente arruinada.

    Rompe-se a estabilidade dos contratos que , como diz CAPITANT, uma das bases da ordem social; e para assegurar o direito da igualdade entre as partes, uma das quais foi to rudemente ferida por este "imperativo econmico" e destruidor, o direito se socorre da teoria da impreviso, pro-

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    clamando como no devida a prestao to desigual, impre-vista e imprevisvel.

    Embora o debate doutrinrio em torno da doutrina no se esmorea, a sua consagrao no direito positivo uma realidade. U m a copiosa legislao, aps a Grande Guerra, teve necessidade de amparar os contratantes vitimas das situaes econmicas criadas pelo cataclismo europeu. Mas no to somente em face de situaes de carter grave, que a encontramos aplicada; as variaes cambiais, como fato perfeitamente previsvel, tm suscitado a confeco de leis que derruem o principio da autonomia da vontade, anu-lando as clusulas de converso da moeda, para impor ao credor o recebimento em moeda nacional, de molde a esta-belecer o princpio do equilbrio das prestaes entre as partes, sempre em face do direito igualdade real, que a igualdade da lei no realiza (26).

    Ainda no terreno do direito das obrigaes e como ex-presso talvez mais acentuada do movimento socializador do direito, encontramos na responsabilidade extra-contra-tual as mais graves restries concepo individualista do direito.

    A responsabilidade extra-contratual, decorrente do dolo ou culpa, a consagrao do princpio da liberdade, da au-tonomia da vontade. Sem ao dolosa ou culposa, impu-tavel ao agente, no ha responsabilidade; o elemento subje-tivo primacial para a fixao desta responsabilidade.

    "A idia de culpa subjetiva repousa sobre uma base individualista de segurana esttica", ensina-nos D E M O -GUE (27).

    Mas a multiplicidade de causas determinantes dos da-nos, ante a febril atividade do mundo moderno, desmons-trou que a culpa por si s no bastaria para manter o equi-lbrio dos direitos, a segurana pessoal de cada um. As grandes empresas, criando para o operrio uma fonte assus-tadora de leses de direitos e redundando para o patro em uma fonte de riqueza, fazem surgir a idia de que o ris-

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    co, como elemento na organizao econmica, deve ser su-portado pelo seu criador.

    O movimento de aceitao da teoria objetiva da respon-sabilidade se inicia pelas leis de acidentes de trabalho e tem ganho, pouco e pouco, os favores das novas legislaes.

    O processo tcnico das presunes jris et de jure con-sagrado nos dispositivos de todos os Cdigos Civis, a mas-cara da teoria da culpa (28).

    A objetivao do conceito de culpa, pondo margem a pesquisa da conduta moral, na teoria da culpa da guarda, assim como a responsabilidade dos alienados, pela aceita-o de uma culpa anterior, sem relao alguma com o ato lesivo do direito; a aceitao da responsabilidade objetiva nos acidentes de aeronaves, em minas, em estradas de ferro e em outros casos especiais, demonstram, sobejamente, que no podem residir somente na deliberao da vontade, na sua autonomia, no seu poder, os fundamentos da norma ju-rdica, todas as vezes que se sacrificam os interesses sociais ou aquele direito de igualdade, na comunho social.

    4. Se passarmos do direito das obrigaes ao direito das coisas, verificaremos que as limitaes ao direito de propriedade se acentuam, sobremaneira, no direito moder-no. sua feio de direito absoluto que nos legaram, em sua maioria, os comentadores do Cdigo de Napoleo, se ope a doutrina da propriedade como funo social.

    Considerado, em seu princpio, como um direito abso-luto, que deve realizar-se pessoalmente, o direito de pro-priedade passou no seu uso, na sua utilizao, a ser uma funo social; a atividade exterior do seu titular se mani-festando, como diz COSTE FLORET (29), necessariamente no seio da sociedade, a realizao de um direito de proprie-dade, no seu uso, nas suas manifestaes externas, deve ser uma realizao social.

    A propriedade, no representando somente um bem particular, mas constituindo uma riqueza nacional, no

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    poderia a solidariedade nacional, como diz LUCIEN BROCARD (30), deixar de faz-la ao mesmo tempo um direito indivi-dual e uma funo social, cujo exerccio, mais ou menos imperfeito, aproveita a toda coletividade.

    As limitaes diretas ao exerccio da propriedade sur-gem no somente visando interesses coletivos, como inte-resses propriamente particulares. Bastaria citar, como exemplos das primeiras, as codificaes especializadas das minas e das foras hidrulicas, constituindo profundas der-rogaes aos direitos dos proprietrios; todas as leis que regulam as plantaes, as produes e a venda de produtos, como as que impe restries nas locaes de coisas e nas construes urbanas, alm de um sem nmero de outras normas jurdicas relativas matria, so restries impos-tas ao exerccio do direito de propriedade, vindo de encon-tro aos princpios de concepo individualista do direito.

    Alm destas restries de carter geral, outras so im-postas ao exerccio do direito de propriedade, com o fim de resguardar interesses particulares, ampliando-se cada vez mais os chamados direitos decorrentes da vizinhana, de maneira que o mau uso da propriedade no venha preju-dicar os direitos de terceiros. E' principalmente no campo do exerccio dos direitos de propriedade que a teoria do abuso do direito tem encontrado a sua mais ampla aplica-o, restringindo aquele direito absoluto de usar e gosar da coisa, para proclam-lo como o mais relativo dos direi-tos (31).

    5. No direito de famlia a orientao se manifesta no mesmo sentido de restrio dos direitos subjetivos, quer visando o interesse da coletividade, como sejam as preo-cupaes referentes eugenia e " proteo do capital bio-lgico", o exame pr-nupcial, a esterilizao dos criminosos e psicopatas, quer no interesse particular, como sejam as restries do ptrio poder em benefcio do menor, a inter-veno vigilante do poder pblico no caso de tutela e o reconhecimento dos filhos adulterinos (32).

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    O prprio conceito do casamento se vai deslocando da concepo contratual, para a concepo istitucional. Nesta concepo, embora o casamento provenha de ato jurdico, dele se difere, porque existe um conjunto de regras de di-reito essencialmente imperativas, cujo fim dar unio dos sexos, ou seja famlia, como diz BONNECASE, uma organi-zao social e moral correspondente, ao mesmo tempo, s inspiraes do momento e natureza permanente do ho-m e m (33).

    # * *

    Do que acabamos de expor, se conclue, em sntese, que a concepo social do direito triunfa, delimitando os direi-tos subjetivos nas suas mltiplas manifestaes, no no sen-tido de aniquilar o indivduo ou os seus direitos, concen-trando o poder nas mos da coletividade. Ao contrrio. Procurando resguardar interesses coletivos, na verdade se defendem os direitos de cada um na comunho social; pro-curando restringir os direitos subjetivos amparados na igual-dade formal, que o apangio dos mais fortes, no sentido de se defender a verdadeira igualdade, a concepo socia-lizadora do direito faz obra do mais nobre e elevado indivi-dualismo. No deste individualismo artificial, meramente potencial, estribado em princpios dogmticos que a reali-dade social e econmica destroe, fazendo os homens desi-guais; no deste individualismo que coloca a liberdade de contratar, como diz MENGER, ao lado da guilhotina, liber-dade de ditadura do que socialmente poderoso, como acentua RADBRUCH. No deste individualismo que isola o homem do meio social, para consider-lo como a nica fora propulsora das idias e das conquistas humanas, es-quecendo-se do esforo comum, desta co-operao de ener-gias, deste patrimnio comum que nos legaram as geraes passadas e sobre o qual construmos, num momento hist-rico, o que devemos transmitir s geraes porvindoiras. Mas deste individualismo que, no olvidando o interesse coletivo ou a solidariedade social, traa as normas jurdicas

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    procurando, tanto quanto possvel, expungir do direito as desigualdades econmicas e sociais, com o supremo fim, per-passado de u m idealismo sagrado, de reconhecer a todos o maior numero de direitos, alargando as suas garantias e assegurando o seu exerccio.

    o individualismo da igualdade e da fraternidade na liberdade, como o denomina E. CAYRET (34), profundamente humano, e cuja evoluo fatal e irresistvel dever consubs-tanciar-se, no futuro, e para a satisfao dos que o querem com o corao ardente, neste fim, que j se nos antolha: "uma constituio social mais justa, que no conhece se-nhores e vassalos no trabalho, mas cidados da luta pela vida, colaboradores, hombro a hombro, na misso comum" (35), construtores de um direito humano, justo, que poder ser u m sonho na sua realizao integral, mas que dissemi-nar benefcios incalculveis, tornando melhor e mais digna a vida em comum.

    BIBLIOGRAFIA

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    (6) GEORGES RADULESCO, "Abus des droits et matire contra-ctuelle", Paris, 1935, pag. 82.

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    (8) L. DUGUIT, "Las transformaciones generales dei derecho pri-vado", tr. hesp. de POSADA, pags. 17 e segs.

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    9) GURVITCH, "Llde du droit social., Paris 1932, e "Le temps prsent et l'ide du droit social", Paris, 1931.

    (10) LE FUR, "Droit individuel et droit social", em "Archives de ph. du droit et de soe. juridique", 1931, 3, 4, pags. 279 e segs.

    (11) JOS E. GONZALEZ ALBERU, "Las nuevas orientaciones dei derecho", Madrid, 1935, pags. 23 e segs.; J. BONNECASE, "La-pense juridique fr. de 1804 1'heure presente" vol. II, pags. 122 e segs.

    (12) L. JOSSERAND, "De 1'esprit des droits et de leur relativit", Paris, 1927, n. 237.

    (13) GONOT, "Autonomie de Ia volont", pag. 394. (14) E m O. GOMES, "A democracia e o direito operrio", na Rev.

    Forense, vol. 75, pag. 482. (15) E m F- CONSENTINL, "La reforme de Ia lgislation civile",

    pag. 280. (16) G. RADBRUCH, "Du droit individualiste au droit social", era

    "Archives de ph. du droit et soe. juridique", 1931, 3, 4, pags. 387 e segs.

    (17) J. E. ALBER, obr. cit., pags. 27 e segs. (18) O. GOMES, art. cit., pag. 481. (19) RADULESCO, obr. cit., pags. 118 e segs. (20) S. TRETIN, "Le crise du droit et de 1'tat", pag. 361. (21) S. TRETIN, obr. cit., pag. 363. (22) JOSSERAND, obr. cit., ns. 287 e segs.; e CAMPION, "La thorie

    de 1'abus des droits", ns. 427 e segs. (23) V. VENIAMIN, "Essais sur les donnes conomiques dans

    Tobligation civile", Paris, 1931, pags. 270 e segs. (24) V. VENIAMIN, obr. cit., pags. 218 e segs. (25) PIERRE HARVEN, "Mouvements gnraux du droit civ. belge

    contemporain", Bruxellas - Paris, 1928, pag. 211. (26) PAUL DURAND, "Le droit des obligations dans les jurispru-

    dences franaise et belge" ns. 13 e segs. e 56 e segs. (27) R. DEMOGUE, "Trait des obl. en general", vol. III, n. 223. (28) JEAN DABIN, "La philosophie de Pordre juridique positif",

    Paris, 1929, pag. 548, nota 1.; JOSSERAND, "Cours de droit civ. fr.", vol. II, n. 513.

    (29) COSTE-FLORET, "La nature juridique de propriet", pags. 236 e segs.

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    (30) LUCIEN BROCARD, "Proprit prive et conomie nationale" em "Recueil d'tudes sur les sources de droit en 'honneur de Franois Geny", vol. III, pag. 145.

    (31) CAMPION, obr. cit., ns. 42 e segs. (32) OROZIMBO NONATO, "Aspectos do modernismo jurdico e

    o elemento moral na culpa objectiva", em "Pandectas brasi-leiras", vol. VIII, l.a parte, pags. 137 e segs. Art. 250 do novo Cod. civ. italiano.

    (33) BONNECASE, "O en est le droit civil?"; COSTE-FLORET, "La nature juridique du mariage", pags. 199 e segs.

    (34) E. CAYRET, "Le procs de 1'individualisme juridique", (35) RADBRUCH, art. cit.