Da Infância Para o Mundo - Maria Do Céu Pontes

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  • 7/26/2019 Da Infncia Para o Mundo - Maria Do Cu Pontes

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    Da infncia para o mundo:

    as leituras que educam para os valores e formam o carcter

    Maria do Cu Gomes Nogueira Pontes

    [email protected]

    Instituto Superior de Contabilidade e Administrao do Porto Instituto Politcnico do Porto

    Resumo:

    Neste artigo, pretende-se reflectir sobre a importncia da leitura de contos para o

    desenvolvimento moral e tico da e na infncia. A partir da confuso entre valores e opinies

    assim como das dificuldades em balizar uma educao para os valores, face proliferao, no

    mundo actual, de contravalores, comenta-se a relevncia da leitura enquanto trgua na

    agitao quotidiana e vector de emoo. Sugerem-se exemplos de contos que podem servir dencora formao do carcter, decisiva na infncia, inferindo, neste contexto, da importncia

    do ritual da histria hora de dormir e da Hora do Conto e focando o papel teraputico de

    alguns contos atravs das linguagens simblica e dos afectos. Defende-se que a reflexo e a

    consciencializao que advm da leitura permitem a aquisio de referncias slidas no mbito

    duma tica de salvaguarda: de si, dos outros, da natureza e do mundo. Finalmente, refere-se

    a existncia de alguns projectos no mbito da educao para os valores que visam o

    crescimento mais responsvel e mais feliz das crianas, no esquecendo que, para tornarmos

    real o mundo, temos de tornar possvel e perene a infncia.

    Palavras-chave:tica; Valores; Leitura de contos; Infncia.

    Confuses e ambiguidades

    H alguns anos, o ttulo apelativo de um artigo publicado na revista Nova Cidadania

    chamou imediatamente a nossa ateno. Em O que aconteceu s crianas?, Kay S.

    Hymowitz comea por referir o massacre de Columbine, sobre o qual escreve ter sido uma

    perda definitiva da inocncia1.A jornalista passa ento anlise de um documentrio e de um

    artigo da revista Time para reflectir sobre a ausncia de valores nas vidas destas crianas

    perdidas e sobre aquilo que diz ser uma tica de no-ajuizamento, que esvaziou [as famlias]

    de sentimentos e convices, apesar desta gerao conhecer uma fase de expanso

    econmica sem precedentes.

    Segundo Hymowitz, um surto de sfilis entre as crianas da localidade de Rockdale

    constituiu o sinal de alerta da solido e do vazio moral em que estes jovens, na sua maioria de

    famlias abastadas, viviam. Embora por vezes presentes fisicamente e at empenhados nas

    actividades escolares dos filhos, os pais, adultos a que a colunista chama fugidios, parecem

    ter-se demitido da tarefa que lhes incumbe: a de orientar as crianas e os jovens.Hymowitz cita ainda uma das mes entrevistadas que, a propsito do surto de sfilis,

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    afirma caber aos filhos a deciso de tomar drogas, ou de ter relaes sexuais, acrescentando:

    Posso dar a minha opinio, dizer o que eu sinto. Mas eles tm de decidir por si prprios .

    Oportunamente, a jornalista conclui: difcil de imaginar como que a partilha dos seus

    valores vai alguma vez fazer o que quer que seja pelo seu filho. No fundo, estes valores no

    tm seriedade nem verdade. So apenas a sua opinio2

    .Com efeito, deparamos, de forma crescente, com a confuso entre valores e opinies.

    Vivemos num tempo de relativismo moral, na poca do homem light 3, que tudo parece aceitar

    mas que carece de critrios slidos na sua conduta, demitindo-se por apatia, falta de convico

    ou mesmo indiferena. Receando ser acusados de prepotncia ou despotismo, os educadores

    sentem-se encurralados entre os limites daquilo que se impe como dever e do que se permite

    por laxismo. Agem por defeito ou por excesso e na dvida, no agemTal como acontece com

    a me acima referida, o medo de impormos limites e de assumirmos as nossas convices

    torna-nos refns da mentalidade comum que, em ltima anlise, nos deixa merc de

    modismos e pretende substituir-se conscincia.

    Mas quando falamos de educao, no podemos falar apenas de qualificaes e

    desempenho; falamos da transmisso e da partilha de uma ordem moral e intelectual coerente

    e de uma sabedoria que respeita as aspiraes e os limites da natureza humana. Educar

    ensinar a pensar, reflectir em conjunto, provendo as crianas com sensibilidade e coragem

    para que possam pensar e sentir a vida, sem tropearem inevitavelmente em experincias

    contra as quais no tm qualquer tipo de defesa e que acabaro por deix-las, no mnimo,

    confusas. No podemos evitar que tropecem, mas podemos dot-las de meios para lidar com

    os obstculos e para os ultrapassar, conferindo-lhes significado.

    Na verdade, vivemos numa sociedade ps-moralista4onde coexistem dois extremos: a

    vontade de libertao individual e colectiva, sem represses nem fundamentalismos, e a

    revivescncia da moral segundo uma tica fraca e minimalista, que estigmatiza a crise dos

    valores mas que lhes contrape uma moralidade la carte. Acontece que promovemos

    muitas vezes os direitos subjectivos e erigimos em absoluto as normas do bem-estar em lugar

    de procurarmos o Bem.

    Paul Valadier5comenta que, no contexto da discusso sobre os valores, corremos vrios

    riscos, nomeadamente o de usar os valores como libi para as nossas aces, tornando-as

    aceitveis e servindo apenas os nossos interesses. Podemos igualmente tomar tabus porvalores, depreciar os valores que no partilhamos, no honrar os valores que defendemos e,

    muito em particular, usar os valores como uma ementa a que se recorre de acordo com os

    apetites egostas e hedonsticos. No mbito da reflexo sobre os valores morais e ticos, o

    entusiasmo tico pode ter tanto de mrito quanto de subterfgio.

    A este propsito, Gilles Lipovetsky, filsofo francs, fala da tica indolor dos novos

    tempos democrticos, que no pressupe sacrifcio nem dever e se compraz em espectculos

    mediatizados de aces caritativas. Lipovetsky comenta o resultado de um inqurito no qual,

    quando questionadas sobre as coisas mais importantes que os pais lhes ensinam, a maioria

    das crianas menciona a necessidade de trabalhar para ter uma boa profisso e a capacidade

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    de se desenvencilhar sozinho na vida. Como diz o autor, valores como o altrusmo so pouco

    mencionados, porque

    O que perdeu legitimidade no foi o princpio que determina que se auxilie o outro,

    mas o que determina que se viva para o outro .[] Queremos ajudar os outros, mas semnos empenharmos muito, sem darmos muito de ns prprios. Generosidade, sim, na

    condio de ser fcil e distante, que no se faa acompanhar de uma qualquer renncia

    maior6.

    Mas se assim for, qual o fundamento de uma educao em que no existe fim para alm

    de si mesmo? E como se pode fornecer referncias slidas sem delimitar o Bem e o Mal, como

    se pode denunciar o mal sem uma ideia, que seja, do bem? Se os valores ticos, fruto de uma

    reflexo e de uma escolha conscientes, estiverem sujeitos aos humores e s convenincias do

    nosso individualismo, rapidamente nos sujeitaremos a flutuaes e inconsistncias de

    comportamentos e apreciaes.

    Pela sua natureza, o valor sempre algo que transcende os interesses e limitaes

    individuais e que encontra a sua expresso no domnio colectivo: no , nem pode ser, uma

    opinio! Mas o valor define-se tambm a partir do interior, da conscincia, no fruto de uma

    imposio, mas fruto de uma escolha esclarecida.

    Contudo, para que tal interiorizao ocorra e as crianas possam ter um

    desenvolvimento moral e tico balizado e ancorado de forma consistente e slida, precisam de

    ser educadas para os valores tais como a tolerncia, a justia, a generosidade, a pacincia, a

    coragem, a gratido, o cuidado em relao aos outros. Estes valores tm qualidades que lhes

    atribumos pela inteligncia, mas sobretudo pelos afectos, emoes e sentimentos que neles

    descobrimos. essa relao que torna algo valioso para ns, porque o valor no reside no

    objecto mas na relao que este estabelece com o sujeito: algo tem valor para alguma

    pessoa7.

    A inverso de valores

    Muitas crianas crescem hoje sem a presena de figuras tutelares que sejam pontos de

    referncia e lhes forneam exemplos para aprender a lidar com as suas aspiraes, os seussonhos, os conflitos e as limitaes da natureza humana. Desprovidas de uma companhia

    estvel, constante e amorosa, as crianas, que necessariamente a buscam e dela necessitam,

    viram-se para aquilo que mais apelativo e quase sempre mais fcil e menos exigente.

    A ausncia de princpios ticos deixa-nos a todos, mais novos e mais velhos,

    desorientados face ao materialismo que invade todos os domnios, face ao egosmo,

    ambio, vaidade. A inverso de valores perpassa todos os sectores de uma sociedade em

    que o economicismo se sobrepe tica e onde os jogos de poder so mais importantes do

    que a rectido e a justia.

    Tal inverso bem visvel num grande nmero de brinquedos, livros e filmes destinados

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    s crianas. A delicadeza deu lugar distoro, morbidez, monstruosidade. O que

    macabro atrai e, marcadas por uma cultura de violncia e de materialismo, as crianas no

    esto preparadas para resistir s presses do mundo exterior. Mesmo os aspectos

    humorsticos escondem, muitas vezes, exemplos de perversidade: traies, crueldade, dios

    que provam como o mundo da sombra atrai mas, sobretudo, como no estamos a preparar ascrianas para lidar com ele, para serem crticas em relao a tudo o que contribui para anular a

    conscincia. Sem querermos particularizar, sabemos que h vrios exemplos, na literatura e no

    cinema, de textos que, sob a escusa de descreverem a realidade actual, se limitam a debitar

    lugares comuns superficiais e horizontais, sem qualquer preocupao formativa ou

    verticalizante.

    Da mesma forma, no precisamos de estar hoje particularmente atentos para nos

    apercebermos da agitao das crianas que vivem imersas em rudos. J no so ensinadas a

    estarem em silncio e a usufrurem dele. Pelo contrrio, favorece-se tudo o que leva

    disperso, agitao. As crianas hiperactivas parecem cercar-nos mesmo quando o

    diagnstico exagerado assim como todo o tipo de rudos: os aparelhos de televiso em

    todas as dependncias, a msica nas lojas, nos elevadores, nos consultrios, nos parques, nas

    praias, nas escolas durante os intervalos das aulas

    Condicionadas por um pensamento pragmtico, as crianas no so ensinadas a

    valorizar a contemplao e o silncio e, por isso, no desenvolvem a sua vida interior. Numa

    cultura obcecada pelo desempenho e pelo sucesso, os educadores dirigem-se criana solar

    que dorme, come, trabalha, aprende e negligenciam a criana lunar que sonha, pensa e

    sofre8. Mas as crianas no esto ao abrigo de dvidas e inquietaes. Muito pelo contrrio

    A(s) Hora(s) do Conto

    No turbilho que a vida que muitos levam, o espao da leitura constitui um desafio mas

    tambm um poderoso antdoto. A leitura exige ateno e reflexo e assim convida ao serenar,

    pede silncio: o secretismo da iguaria que queremos saborear sozinhos ou, como escreve

    Daniel Pennac:

    A maior parte das vezes, guardamos no fundo do nosso cime o prazer do livro

    lido. Ou porque entendemos que no h matria para discursos ou porque, antes de nospronunciarmos, temos de esperar que o tempo cumpra o seu delicioso trabalho de

    destilao. Esse silncio a garantia da nossa intimidade9.

    Fazer silncio para ler e ler para fazer silncio, eis uma tarefa certamente rdua.

    Contudo, a experincia mostra-nos que, mesmo com os mais pequenos, proporcionar um

    tempo de silncio e de relaxamento antes de qualquer actividade tem efeitos determinantes

    para o sucesso dessa mesma actividade. E, se das primeiras vezes se revela difcil, nas vezes

    seguintes so eles prprios a solicitar essa pausa. De que outra forma podem escapar

    ditadura do rudo e escutar o prprio corao?

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    Da a importncia das histrias que se conta hora de ir para a cama, como um ritual

    que, aps o frenesim do dia, permite criar laos entre pais e filhos, falar sem interrogar

    despudoradamente e ouvir sem se intrometer. Depois das actividades intelectuais ou fsicas do

    dia, o conto hora de dormir uma trgua na agitao, um vector de emoo onde a criana

    ultrapassa as suas prprias fronteiras e vive a experincia do universal. Contrariamente aosermo ou ao discurso moralizador, a histria contada antes do interregno da noite

    estabelece pontes entre as crianas e aqueles que as contam, assim como entre elas e o

    mundo.

    A leitura de contos com valor tico e formativo serve de ncora formao do carcter,

    decisiva na infncia, e permite que se verifique no apenas a empatia com as personagens e

    os processos por que passam mas igualmente o alvio de muitos fardos que as crianas

    carregam. A distanciao do Era uma vez, longe no tempo e no espao, garante que a

    (des)identificao com as personagens dos contos e com os seus percursos de vida se faa de

    forma segura, ao mesmo tempo que convoca as emoes e lhes d voz(es).

    Sabemos que a emoo uma extraordinria chave de acesso s ideias, por isso, em

    vez de discorrermos sobre a virtude da tolerncia, da generosidade ou da compaixo, lemos A

    guerra10, O presente da costureira de colchas11 ou A Menina dos Fsforos12. A

    compreenso intelectual, mesmo quando possvel, no basta para lidar com ou eliminar um

    sentimento negativo, por exemplo. Os sentimentos no podem ser atacados pelo intelecto,

    porque no tm base intelectual ou racional; as suas razes mergulham na vida inconsciente.

    Da que a transformao requeira a reabilitao da sensibilidade. Como escreve Ruy Cezar do

    Esprito Santo:

    [A] recuperao da sensibilidade perdida tarefa inadivel, hoje, no processo

    educativo, em qualquer grau ou instncia. [] As emoes bloqueadas e, pior do que

    isso, orquestradas pelo intelecto, acabam por impedir o crescimento harmonioso do ser

    humano que, cerceado na sua sensibilidade, no consegue sair da ignorncia

    primeva13.

    A leitura pressupe uma compreenso de signos mas constitui, antes de mais, uma

    relao de ordem afectiva que convoca a sensibilidade. Atravs dela, as crianas e todos ns podem pensar e questionar as prprias aces e sentimentos e conhecer-se melhor. Como

    escreve Sophie Carquain, os contos podem ser as pedrinhas brancas que o Pequeno Polegar

    deixa pelo caminho decerto cheio de provas e dificuldades mas que nos podem guiar e

    assegurar uma boa jornada14.

    Justamente, os contos de Sophie Carquain, em Petites histoires pour devenir grand15,

    so belos exemplos de histrias com valor tico e formativo. Em As palavras cor-de-rosa e as

    palavras cinzentas, por exemplo, encontramos um mundo triste onde as palavras cinzentas

    (tais como: aselha, gordefas, desejo-te muito pouca sade) reinam. O Sol deixa de brilhar e

    tudo se torna glacial porque as palavras cor-de-rosa (tais como: obrigado, se faz favor,

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    desculpa, que bonito) j no so usadas na Terra. At que um menino inconformado faz uma

    viagem para reverter a situao, e consegue pr termo a esta greve dos coraes.

    Em A Grande Viagem de Natlia na Noite Branca, encontramos uma menina que tem

    muito medo da noite e, por isso, bebe copos de leite antes de ir para a cama, dorme num

    quarto branco, com lenis brancos fluorescentes e peluches brancos. Mas quando convidada pela noite para um passeio, aprende a conhecer essa noite escura que tanto a

    aterroriza e todos os que nela se mantm acordados e a mantm, afinal, viva.

    Laura e o rato desgosto e O grande segredo de Clarisse do voz ao abuso de

    crianas enquanto que O Lobito Alberto e os Matules remete para o problema do bullying.

    Os ratos da pera lida com o luto na famlia; O pap urso foi-se embora e As duas casas

    ou uma histria de cores, com a separao dos pais; O principezinho tirano e O pequeno rei

    Ego I com o despotismo das crianas mimadas.

    Tambm os livros de Brian Moses, por exemplo: Estou triste; Estou zangado, Tenho

    inveja; Tenho medo16, ajudam os mais novos a identificar sentimentos atravs de uma

    linguagem acessvel e de ilustraes muito eloquentes, levando-os a verbalizar a tristeza, a

    raiva, a inveja, o cime e as formas, nem sempre acertadas, de lidar com eles. Tal como os

    mais velhos, ao confrontarem-se com personagens cujo comportamento reprovam mas que

    igual ao delas, as crianas, mesmo sem o confessar, identificam traos de carcter e percebem

    que precisam de mudar.

    Em As dvidas de Celestina17 temos um comovente testemunho de uma ratinha que,

    repetidamente, quer saber como nasceu. Com receio e alguma dificuldade, o pai adoptivo

    acede a contar-lhe, mas o poder da verdade e a ternura com que lhe fala transformam uma

    realidade trgica numa experincia de gratido e deslumbramento. (Descobrimos que a ratinha

    veio, no da cegonha, mas de um contentor de lixo, onde foi encontrada pelo seu adorado pai

    adoptivo).

    Alguns dos exemplos de contos que aqui referimos tm-se revelado particularmente

    teis na Hora do Conto que tem sido dinamizada em algumas Instituies Particulares de

    Solidariedade Social, e onde as crianas, muitas vindas de famlias disfuncionais, precisam de

    encontrar instrumentos que vo de encontro aos seus anseios, aos seus medos e conflitos, s

    suas interrogaes. (Recordamos com particular carinho uma salva de palmas massiva e

    espontnea no final da leitura de A grande viagem de Natlia na noite branca e umcomentrio, em jeito de alvio: Agora j no vou ter medo da noite!).

    Embora nos ltimos tempos a Hora do Conto se tenha alargado a vrias escolas e

    bibliotecas, e se possa correr o risco de banalizar um momento que deve ser mgico e

    transformador (porque no, justamente, reunir as crianas em redor de um tapete mgico?),

    um facto que estamos hoje mais atentos e motivados para a necessidade de tornar o momento

    de contar um ritual. A Hora do Conto pode inculcar sentimentos de previsibilidade e

    continuidade a crianas que os no tm. O ritual, to importante para a vida das crianas, cria

    uma sensao de segurana porque introduz uma situao estvel em que as mesmas coisas

    se repetem vezes sem conta.

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    Temos testemunhado ainda a importncia de criar uma atmosfera de relaxamento e de

    silncio, sugerindo, por exemplo, antes da histria, que se coloque a mo no corao, que nos

    concentremos no bater do corao ou na respirao enquanto se ouve uma msica

    instrumental tranquila, assim como, depois do conto, que se exercite a imaginao desafiando

    as crianas a prosseguir a histria, a visualizar uma das situaes descritas ou a conversarcom uma das personagens. Assim se criam espaos de interioridade, de partilha e de

    comunho.

    Lemos contos s crianas no apenas para as entreter mas sobretudo para lhes dar voz,

    para lhes permitir falar e ouvir atravs das projeces que fazem sobre as personagens das

    histrias e para as prover com paradigmas de comportamentos e sentimentos que a sua

    conscincia reconhece como melhores do que os seus ou os dos outros.

    A terapia pela leitura de contos de fadas e no s

    Como sugere Bruno Bettelheim18, para que a criana encontre um sentido e uma

    coerncia na sua vida, a referncia dos pais ou de outras figuras tutelares significativas vital.

    No entanto, essa referncia pode ser coadjuvada pela herana cultural que os contos de fadas

    constituem.

    Sabemos que as personagens dos clssicos contos de fadas pelo menos daqueles

    que no sofreram adulteraes19 representam arqutipos da condio humana, paradigmas e

    smbolos de caractersticas e processos que todos os seres humanos possuem ou pelos quais

    passam, aspectos de luz e de sombra que em ns habitam. Quo reconfortante no , quando

    nos sentimos perdidos, rfos, indignos, podermos sentir que no estamos ss e que muitos

    outros o Pequeno Polegar, Hansel e Gretel, Pinquio, Cinderela comungam das mesmas

    incapacidades e vulnerabilidades!

    Marianne Runberg, psicloga clnica que trabalha h muitos anos com crianas com

    perturbaes emocionais, fala da oportunidade nica que os contos de fadas representam para

    o crescimento harmonioso da criana:

    O conto de fadas no nos fala de uma soluo feliz que se atingiu sem qualquer

    esforo. As mais variadas histrias falam todas de um certo problema que s se resolve

    quando o heri ou a herona se submetem a provas e a sofrimentos. Isto significa que acriana no ultrapassar a sua crise at estar pronta para evoluir por meio de um

    combate e at que seja capaz de reconhecer, de forma ampla, o seu problema, e tenha

    assim atingido a maturidade20.

    Sabemos igualmente como algumas crianas pedem que se lhes conte sempre a mesma

    histria e se identificam com este ou aquele conto por razes que muitas vezes no

    conseguem verbalizar, mas que lhes permitem apaziguar os seus conflitos internos e

    externos21.

    Runberg comenta o caso de Jeff, um rapaz muito instvel que fora separado da me por

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    esta ameaar fazer-lhe mal. Jeff tinha um conto favorito A Branca de Neve que pedia

    repetidamente que lhe lessem. Embora, a nvel consciente, no se recordasse de nada sobre a

    me nem sobre o que levara a que fosse retirado de casa, Jeff estabelecia, a nvel inconsciente

    e simblico, um paralelismo entre a sua situao e a da Branca de Neve, ambos vtimas de

    uma me/madrasta. Atravs do conto, Jeff no era obrigado a reconhecer qualquersemelhana com a sua prpria histria, o que lhe permitia no sentir nem ansiedade nem culpa

    em relao aos seus sentimentos. O conto termina com a punio da madrasta e com Branca

    de Neve a viver feliz at ao fim dos seus dias. Tal final no apenas desejvel mas tambm

    justo e restabelece a confiana e a esperana na vida.

    Os contos de fadas possuem assim smbolos poderosos das situaes vivenciais de

    todos ns e pelo carcter vital e perene do smbolo que a mensagem assimilada. Na

    medicina tradicional hindu, por exemplo, os mdicos curavam e curam ainda os seus

    doentes com a ajuda de contos que lhes davam para ler e meditar. O papel destes contos

    teraputico, justamente porque propem um caminho interno o caminho da individuao de

    que falam C. G. Jung e Marie-Louise von Franz que pode no ser igual para todos, mas que

    todos devem empreender, pois se trata da histria de ns mesmos a caminho de ns

    mesmos.

    Em A Logoterapia em Contos22, Claudio Garcia Pintos prope a utilizao dos livros

    como recurso teraputico, falando de biblioterapia e do processo de identificao, de

    tratamento e de cura atravs da leitura. O psiclogo argentino comenta vrios casos clnicos

    que seguiu, testemunhando o contedo transformador da leitura, tanto individual como

    colectivamente. Um dos exemplos mais curiosos que menciona prende-se com um grupo de

    atletas com baixo nvel de rendimento devido no a questes tcnicas, mas falta de auto-

    estima e ao medo de falhar, grupo esse que melhorou substancialmente o rendimento aps ter

    lido o conto do condor que nasce num bando de perus e que, apesar de admirar o voo dos

    condores que v nos cus, nunca ousa voar e cumprir, assim, o seu destino.

    H leituras que ajudam o pblico mais jovem no seu processo de auto e hetero-

    conhecimento e muitas destas leituras pertencem herana cultural da humanidade, como

    sejam os mitos e os contos de fadas. Mas outras so histrias actuais que lidam igualmente, de

    forma vertical, com situaes vivenciais arquetpicas e com os smbolos.

    Nunca ser demais atentarmos no papel transformador do verbo e da significao quenos acompanha na busca de respostas novas, prprias e significativas, para situaes de vida.

    Como escreve Garca Pintos:

    Esse objectivo , seguramente, o objectivo fundamental da psicoterapia, isto ,

    que o indivduo acabe por ser cada vez mais ele prprio.

    O livro no a nica alternativa para o conseguir, mas a biblioterapia oferece-se

    como espao nobre para que todas as pessoas possam acabar por fazer da sua biografia

    uma histria dotada de sentido23.

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    Recentemente, um dos exemplos mais tocantes que nos foi dado testemunhar prendeu-

    se com a leitura do conto A menina e o pssaro encantado 24de Rubem Alves, conto esse que

    fala da amizade entre uma menina e um pssaro que voa pelos stios mais distantes mas que

    sempre regressa para contar e partilhar os momentos inesquecveis que viveu. Quando a

    menina decide aprision-lo, para que no volte a partir, o pssaro perde o encanto literal efiguradamente e definha. A menina opta ento por lhe devolver a liberdade de ir e vir,

    aprendendo a lidar com a ausncia o que, afinal, refora os laos entre eles.

    Dada a existncia de um elevado nmero de crianas com pais separados, este conto

    parece til para gerir as emoes conflituantes da ausncia de um dos pais durante a maior

    parte do tempo. Tambm aqui se obteve uma reaco muito espontnea: uma salva de palmas

    no final provou o alvio que o conto veio trazer s crianas que o escutavam avidamente.

    Ainda a propsito de separao (mas desta vez dos pais), As duas casas ou uma

    histria de cores25de Sophie Carquain um conto que nos fala das mudanas da casa verde

    para casas de cores diferentes, a azul do pai e a amarela da me, onde Lus, muito contrariado,

    tem de passar a viver. Tal dificuldade apenas refora a sua vontade de nunca mudar de casa

    quando for mais velho: Mais tardedizia me hei-de morar numa casa verde, verde

    como a esperana. Nunca h-de haver separao, nunca. Uma s cor para toda a vida .

    Mesmo se no reflectimos sobre os motivos de recordarmos da nossa infncia este ou

    aquele conto em particular, sabemos que a leitura de determinados contos confere significado

    quilo que muitas vezes sentimos catico e disperso. A experincia com crianas desde a mais

    tenra idade permite confirmar que a leitura e a reflexo partilhadas podem ser elementos

    marcantes e transformadores, pois constituem um espao de resilincia face a um mundo

    deriva.

    Ao comentar a difcil infncia de Hans Christian Andersen, Boris Cyrulnik, reconhecido

    tologo e neuropsiquiatra, afirma que, apesar da orfandade e das grandes provaes, Andersen

    se viu rodeado por mulheres que o amaram e por homens que criaram em seu redor um

    ambiente cultural em que os contos permitiam metamorfosear os sapos em prncipes, a lama

    em ouro, o sofrimento em obra de arte.Por isso, o pequeno Hans voltou a ganhar gosto pela

    vida. Conviveu com os cisnes, escreveu contos, e fez leis para proteger outros patinhos feios26.

    Na verdade, se a resilincia revela ser o apego vida mesmo quando se passa pelas

    circunstncias mais dolorosas e terrveis, tambm a leitura de histrias que respondam snossas perguntas e aos nossos medos mais ntimos pode constituir um porto de abrigo das

    tempestades da vida.

    A leitura ensina a abrir-se ao outro, a comungar da sorte do mundo e dos seus dramas

    mas tambm da sua beleza. As experincias de leitura e o prazer que lhes deve ser associado

    podem comear bem cedo, quando o livro no passa de um brinquedo que se manuseia e

    desgasta. A intimidade com a leitura tem de ser fsica porque, afinal, como afirma Isabel Stilwell:

    Vivo pelos livros que li ou que me leram. [] Trouxeram-me a capacidade de

    acreditar no que vejo e naquilo que no vejo, o gozo de brincar com as ideias, sem medo

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    do absurdo, a felicidade de encontrar as minhas paixes e tristezas retratadas por um

    autor que eu nem conhecia como que ele sabia que eu me sentia assim?27

    Em The Invisible Child, Katherine Paterson conta-nos a histria de Walter, um rapaz que

    fora abandonado pelo pai e que, durante as frias, era enviado pela me para trabalhar numaquinta onde um severo patro o castigava vrias vezes, fechando-o num sto. Essa criana

    encontrou no sto livros antigos de Dickens, Austen, Twain e Stevenson que se tornaram

    companhias permanentes e desejadas. Walter fazia com que o patro o castigasse

    frequentemente, de forma a poder estar com os seus livros. Paterson escreve que h muitas

    crianas entre ns fechadas em stos que as aterrorizam.Os livros podem ser a chave que

    abre essas portas fechadas28.

    A boa leitura tem uma funo equilibradora e consciencializadora: leva a reflectir sobre os

    valores da conscincia, sobre as qualidades e os defeitos do indivduo e da sociedade, ajuda a

    transcender as vivncias individuais, indo ao encontro do(s) outro(s), sendo um desafio

    constante e um convite a transcender o egosmo do nosso pequeno mundo.

    Por extenso, transcender o egosmo pressupe uma atitude de cuidado, de ateno, de

    delicadeza e de gratido em relao ao mundo. E pressupe, sobretudo, responsabilidade

    perante a fragilidade visto que esta no apangio dos doentes, dos deficientes ou dos

    excludos, mas condio de todos ns e do mundo em que vivemos.

    Em grande parte, a indiferena de que enferma a sociedade vem de ensinarmos a

    cumprir tarefas e a realizar exames, mas de no falarmos das nossas fragilidades de adultos,

    ensinando assim a reconhecer e a lidar com as prprias fragilidades. No entanto, elas cercam-

    nos, traduzindo-se, por exemplo, nas trajectrias de vida cada vez mais caticas, abalroadas

    por acontecimentos perturbadores: a migrao, a ruptura familiar, a perda de emprego, o

    desenraizamento, a experincia da precariedade

    A tica da salvaguarda29

    Por isso, a atitude tica tem de ser, antes de mais a de uma tica da salvaguarda. Face

    destruio e negligncia, reveladoras do niilismo em que vivemos, impe-se que

    assumamos o papel de No e que, tal como ele fez no passado, conservemos a memria para

    prover as crianas de um futuro porque uma sociedade sem projecto tico uma sociedadecom um futuro hipotecado. Que livros levar ento para a Arca (de No)?

    Livros que incentivem a cuidar do mundo e de todos os seus habitantes, desde os seres

    humanos aos animais, s plantas, s guas, s pedras Livros que ensinem a cuidar de ns

    prprios, a respeitar os nossos corpos, mentes e espritos Livros que ajudem a cuidar dos

    mais desfavorecidos, dos excludos, a reabilitar a compaixo em conjunto com os outros e o

    mundo30

    Propomos, a respeito da salvaguarda da Terra, a leitura de A Voz da Terra 31de Antnio

    Botto, onde, para construir o seu palcio, um rei manda destruir a rvore mais bela da floresta,

    descobrindo enfim que nela mora um esprito de grandeza moral mpar. Em Escuta as vozes

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    da Terra32, o av ensina ao neto que todos os seres vivos participam da beleza do mundo e,

    muitos anos depois do av morrer, o neto perpetua a sua memria falando com a natureza e

    agradecendo a esta todas as bnos. Tambm Nem s de po33ou Txi34nos propem a

    ateno aos animais, respectivamente a uma pomba e a um co que se encontram

    esfomeados e/ou abandonados.Sabemos hoje quo vital a proteco da natureza e do meio ambiente para

    assegurarmos um futuro. Mas, muitas vezes falamos de ecologia natural e esquecemos a

    ecologia social. Atentemos pois em A cegueira do prncipe35, histria de um prncipe cuja

    cegueira ningum consegue curar at que um peregrino prope ao rei que parta com ele pelas

    ruas e campos miserveis do reino, enchendo uma taa de cristal com as lgrimas do seu

    povo, que depois usou para banhar os olhos do prncipe. Como conclui o narrador, a histria

    no conta se o rei, depois desta viagem, passou a cuidar melhor dos assuntos do reino nem se

    o prncipe, uma vez rei, foi bom e justo para o seu povo. A histria no conta, mas ns

    acreditamos que sim.

    Importa que as crianas se sintam implicadas no universo e no isoladas nos seus

    casulos egostas, enfiando a cabea na areia, como a avestruz, para no saber das coisas. A

    educao para os valores , antes de mais, uma educao holstica, atravs da qual se

    aprende e sente a interligao da vida, valorizando o que nos une e no o que nos divide.

    A propsito da salvaguarda do mundo e contra a violncia, ouamos Foge, lie!36,

    escrito sobre a Segunda Guerra Mundial,para todas as crianas escondidas e aquelas que no

    tiveram a sorte de o serou A bomba e o general37onde os tomos se revoltam e as bombas

    no rebentam, sendo transformadas em vasos de flores.

    Tambm a intolerncia e a discriminao podem ser contrariadas atravs de exemplos

    como Meninos de todas as cores38, A cor da pele39, hinos beleza e vitalidade da diferena

    ou Flora e o violino40, que fala de uma menina refugiada de guerra com um dom maravilhoso

    para tocar violino e, assim, tocar os coraes mais duros. Expomos assim as crianas

    necessidade do dilogo, do respeito mtuo e do respeito pela diferena, mostrando como estes

    tornam mais rica a vida.

    Para aprender a validar a sua diferena e a diferena dos outros, pode propor-se ainda

    A verdadeira e maravilhosa histria do drago Samuel41que nos conta como um dragozinho

    diferente dos outros lanava gua em vez de fogo! alvo de troa. Proscrito, vagueia pormuitos anos mas, finalmente, chamam-no de volta ao pas dos drages pois a terra secara e s

    ele os poderia salvar! Tambm O coelhinho de orelhas azuis42se sente desgraado por no

    ter orelhas como os outros. Decide fugir mas na sua longa e dura jornada, acaba por perceber

    que a culpa da sua infelicidade no eram as orelhas, mas sim o facto de ter sentido vergonha

    delas.

    Em jeito de concluso

    A educao fragmentada e pragmtica que se tem praticado dota as crianas de

    capacidades e tcnicas para lidar com esta ou aquela rea de especialidade mas no as educa

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    para encontrarem sentido para a sua vida. Muito do desvario a que hoje assistimos tem uma

    relao proporcionalmente directa com a falta de sentido global que, por sua vez, provm da

    falta de sentido interior. Como escreve ainda Ruy Cezar do Esprito Santo:

    Ou somos seres absurdos, que sofrem violncias injustificadas ou temossignificao. Por outras palavras, ou o ser humano termina, voltando matria

    orgnica pura e simples, como qualquer outro ser vivo quando morre, ou h uma

    transcendncia que revela um insuspeitado sentido presente na menor das nossas

    aces. este o desafio43.

    A recuperao do sentido , no fundo, a recuperao da significao de si mesmo e da

    prpria vida. Para que o mundo se torne real, ou seja, para que o futuro deixe de estar

    hipotecado, precisamos de tornar possvel e perene a infncia. E a infncia, sendo uma

    etapa da vida, , antes de mais, um estado interior: a infncia de corao que todos

    almejamos, a capacidade de encantamento, de confiana e de esperana que nos renova em

    cada dia Porque falamos em contos, no resistimos a partilhar uma lenda da tradio judaica

    intitulada O contador de histrias:

    Yacoub era pobre mas despreocupado, feliz, livre como um saltimbanco, sonhando

    sempre mais alto do que a sua fronte. Em boa verdade, estava apaixonado pelo mundo.

    Porm, o mundo sua volta parecia-lhe sombrio, brutal, seco de corao, de alma

    obscura, e sofria com isso. Como, perguntava-se, fazer com que seja melhor? Como

    trazer bondade estes tristes vivos que vo e vm sem olharem os seus semelhantes?

    Ruminava estas perguntas pelas ruas de Praga, a sua cidade, vagueando e saudando as

    pessoas, que no lhe respondiam.

    Ora, uma manh, quando atravessava uma praa cheia de sol, teve uma ideia. E

    se lhes contasse histrias?, pensou. Assim, eu, que conheo o sabor do amor e da

    beleza, lev-los-ia seguramente felicidade. Ps-se em cima de um banco e comeou

    a falar. Os velhotes, as mulheres, admirados, as crianas, pararam um momento a ouvi-

    lo, mas depois viraram-lhe as costas e prosseguiram caminho.

    Yacoub, achando que no podia mudar o mundo num dia, no perdeu a coragem.No dia seguinte voltou quele mesmo lugar e de novo lanou ao vento, com voz forte, as

    mais comoventes palavras. Outras pessoas pararam para o ouvir, mas em nmero

    menor do que na vspera. Alguns riram-se dele. Houve mesmo quem lhe chamasse

    louco, mas no quis ouvir. As palavras que semeio germinaro, pensou. Um dia

    entraro nos espritos e acord-los-o. Tenho de falar, falar mais.

    Teimou, pois, e dia aps dia voltou grande praa de Praga para falar ao mundo,

    contar maravilhas, oferecer aos seus semelhantes o amor que sentia. Todavia, os

    curiosos tornaram-se cada vez mais raros, desapareceram e em breve apenas falava

    para as nuvens, o vento e as silhuetas apressadas, que j s lhe lanavam uma olhadela

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    de espanto medida que passavam. No entanto, no desistiu.

    Descobriu que no sabia nem desejava fazer outra coisa que no fosse contar as

    suas histrias elucidativas, mesmo que no interessassem a ningum. Comeou a diz-

    las de olhos fechados, pela nica felicidade de as ouvir, sem se preocupar se era ouvido.

    Sentiu-se bem e a partir dali s falava assim: de olhos fechados. As pessoas, temendorelacionar-se com as suas extravagncias, deixaram-no s, com as suas histrias, e

    habituaram-se, assim que ouviam a sua voz ao vento, a evitar a esquina da praa onde

    se encontrava.

    Assim se passaram anos. Ora, numa noite de Inverno, enquanto contava um conto

    prodigioso ao crepsculo indiferente, sentiu que algum o puxava por uma manga. Abriu

    os olhos e viu uma criana, que, fazendo uma careta engraada, lhe disse, esticando-se

    nas pontas dos ps:

    No vs que ningum te ouve, nunca te ouviu, jamais te ouvir? Que diabo te

    empurrou a viveres assim a vida?

    Estava louco de amor pelos meus semelhantes respondeu Yacoub. Foi

    por isso que no tempo em que ainda no eras nascido me veio o desejo de os tornar

    felizes.

    O mido replicou:

    Pois bem, pobre louco, e eles so-no?

    No disse Yacoub, abanando a cabea.

    Por que razo teimas ento? perguntou ternamente a criana, tomada de

    repentina piedade.

    Yacoub reflectiu por instantes.

    Eu falo sempre, claro, e falarei at morrer disse. Dantes era para mudar

    o mundo.

    Calou-se; depois o seu olhar iluminou-se, e acrescentou:

    Hoje para que o mundo no me mude a mim.44

    Alguns projectos

    Por ltimo, aqui fica a referncia a alguns projectos que, atravs da promoo da leitura

    de pequenos contos e histrias e dos valores ticos que a eles subjazem, visam,fundamentalmente, o crescimento responsvel e feliz das nossas crianas. So tentativas que

    tm conhecido a adeso, o empenho e at o entusiasmo de pais e educadores. Para no falar

    das crianas:

    Projecto Abrir as portas ao sonho e reflexo do Clube de Contadores de Histrias

    da Escola Secundria com 3 ciclo Daniel Faria de Baltar. Este projecto, que comeou

    pela leitura e partilha de histrias na sala de aula e na biblioteca, inclui a visita de alunos

    a infantrios, ATLs e lares de idosos para contar histrias e engloba a passagem de

    testemunho para muitas escolas de lngua portuguesa, atravs do envio, por e-mail, dehistrias com contedo tico e formativo;

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    Elaborao de uma coleco de marcadores para crianas com alguns valores, a

    saber, Alegria, Amizade, Compaixo, Delicadeza, Esperana, Generosidade, Gratido,

    Humildade, etc. e histrias ilustrativas de cada virtude. A serem descarregados em

    http://www.prof2000.pt/users/historias/;

    Blogues com textos e histrias com fins pedaggicos no mbito da formao tica:

    Educar com Histrias

    http://verticalizar.wordpress.com/verticalizar-i/

    http://verticalizar.wordpress.com/verticalizar-ii/

    http://contadoresdestorias.wordpress.com/

    http://historiasparaosmaispequeninos.wordpress.com/

    http://caminhos-de-solidariedade.blogspot.com/

    http://tapetedesonhos.wordpress.com/

    http://espacohorizontes.wordpress.com/

    http://geracoes-em-dialogo.blogspot.com/.

    1Hymowitz, Kay S., O que aconteceu s crianas?, Nova CidadaniaII, Nmero 5, Julho/Setembro 2000, S. Joo doEstoril: Ed. Principia, p. 33.2art. cit., p. 36.3Ver Rojas, Enrique, O Homem Light. Uma vida sem valores . Coimbra: Grfica de Coimbra, 1994.4Cf. Lipovetsky, Gilles, O Crepsculo do Dever.Lisboa: D. Quixote, 1994, pp. 13-26.5Cf. Valadier, Paul, LAnarchie des Valeurs. Paris: Ed. Albin Michel, 1997, pp. 14-18.6op. cit., pp. 152-153.7Ver, a este propsito, Pereira, Henrique Manuel, Pequenos Grandes Valores: uma Provocao PsModernidade,Saber Educar. Revista da Escola Superior de Educao Paula Frassinetti, n 3, 1998, p. 110.8A este propsito, ver Carquain, Sophie, Petites histoires pour devenir grand. Paris: Albin Michel, 2003, p. 18 (traduonossa).9Pennac, Daniel, Como um romance. Porto: Ed. Asa, 2006, p. 79.10Vaugelade, Anas,A guerra.Porto: mbar, 2002.11Brumbeau, Jeff, The Quiltmakers Gift. New York: Orchard Books, 2000 (traduo nossa).12Andersen, Hans Christian,A menina dos fsforos. Lisboa: Ed. Verbo, s/d.13Esprito Santo, Ruy Cezar do, O Renascimento do Sagrado na Educao. So Paulo: Papirus Editora, 1998, p. 51 ep. 54.14Ao ler uma histria aos nossos filhos, fornecemos-lhes uma mo cheia de pedrinhas brancas que os pssaros nocomero. Lev-las-o consigo, ao longo do caminho, rumo floresta obscura. Perdidos no escuro, assolados deperguntas, dvidas e angstias, sabero desenvencilhar-se. E tirar proveito delas. (Carquain, op.cit. p. 21, traduonossa).15ibidem. Todos os contos de Sophie Carquain que aqui referimos so tradues nossas desta edio.16Lisboa: Ed. Caminho, 1994.17

    Vincent, Gabrielle, Les questions de Clestine. Paris: Casterman, 2005 (traduo nossa).18Bruno Bettelheim escreve ainda:A esmagadora maioria da literatura infantil tenta divertir ou informar, ou ambas ascoisas. Mas a maior parte destes livros so to frvolos de substncia que muito pouco de significativo se aprende comeles. A aquisio de habilidades, incluindo a capacidade de leitura, perde o valor quando o que se aprende noacrescenta nada de importante nossa vida. () [P]odemos aprender mais coisas com estes contos sobre os

    problemas interiores dos seres humanos e as solues acertadas para as suas exigncias, do que em qualquer outrotipo de histria que esteja dentro do mbito da compreenso das crianas . (Psicanlise dos Contos de Fadas. Lisboa:Bertrand Editora, 1991, pp. 11-12).19 Nos ltimos tempos tem-se assistido reescrita de vrios contos de fadas e at canonizao de versesadulteradas de alguns clssicos, que subvertem a verso original.20Runberg, Marianne, Fairy Tales in the Care and Treatment of Emotionally Deprived Children. In Brun, Birgitte et al.Symbols of the Soul. Therapy and Guidance through Fairy Tales. London: Jessica Kingsley Publishers, 1993, p. 51(traduo nossa).21A este propsito Marianne Rundberg refere: [M]uitas crianas conseguem referir um conto de fadas predilecto: aodepararmo-nos com este conto e ao identificarmos cuidadosamente os smbolos que so importantes para a criana,

    pode-se atingir uma compreenso das necessidades e sentimentos da criana. [] Da mesma forma, ao contar uma

    histria, a pessoa empenhada no bem-estar da criana poder-lhe- fornecer um colete de salvao se a criana deleprecisar. Esse colete pode ser fornecido por palavras ou pela proximidade fsica [no contacto entre a criana e o adulto](op. cit., p. 50, traduo nossa).

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    22 Claudio Garca Pintos um estudioso argentino, cujo ncleo de interesses se prende com a Logoterapia: umaterapia centrada no sentido, inaugurada pelo mdico vienense Viktor Emil Frankl (1905-1997). A partir sobretudo da

    palavra(escrita e/ou oral) do Logos, cada um de ns pode encontrar, nas narrativas, nos contos, nos poemas, nashistrias, dados fundamentais que nos levam ao encontro do verdadeiro sentido para as nossas vidas.23Pintos, Claudio Garca,A Logoterapia em Contos. So Paulo: Paulus, 1999, p. 42.24Alves, Rubem, A menina e o pssaro encantado in As mais belas histrias de Rubem Alves. Porto: Ed. Asa, 2003.25

    op. cit..26Cyrulnik, Boris, Le Murmure des Fantmes. Paris: ditions Odile Jacob, 2003, p. 20 (traduo nossa).27Stilwell, Isabel, Quando olho para uma floresta vejo gnomos Notcias Magazine,8 Setembro 2002.28Paterson, Katherine The Child in the Attic. In The Invisible Child. New York: Dutton Childrens Books, 2001, pp. 25-40.29 Sobre o conceito de tica da salvaguarda, ver Lacroix, Michel, O Princpio de No ou a tica da Salvaguarda.Lisboa: Instituto Piaget, 1999.30A propsito do cuidado, sugere-se a leitura de Boff, Leonardo, Saber cuidar. tica do humano compaixo pelaterra. Petrpolis: Ed. Vozes, 1999.31Botto, Antnio, Os Contos de Antnio Botto. Lisboa: Marginlia Editora, s/d.32Wood, Douglas, Escuta as vozes da Terra(traduo nossa). (No original: Grandads prayers of the earth. London:Walker Books, 2000).33Besch, Lutz, Nem s de po. in Jutta Modler (org.), Brcken Bauen. Wien: Herder, 1987 (traduo nossa).34Torrado, Antnio, http://www.historiadodia.pt/pt/historias/12/04.35Torrado, Antnio, http://www.historiadodia.pt/pt/historias/11/28.36Brami, lisabeth, Sauve-toi lie ! Paris: Seuil Jeunesse, 2003 (traduo nossa).37Eco, Umberto,A bomba e o general. Lisboa: Quetzal Editores, 1989.38Soares, Lusa Ducla, Meninos de todas as cores. In Conceio Dinis; Ftima Lima (orgs.) Aventura das Letras.Porto: Porto Editora, 2003.39Monnier-Murariu, Sandrine, A cor da pele. In AAVV, Histrias para sonhar. Porto: Civilizao, 2004.40Muller, Gerda, Quand Florica prend son violon. Paris: lcole des loisirs, 2001 (traduo nossa).41Fanha, Jos, A verdadeira e maravilhosa histria do drago Samuel. In A noite em que a noite no chegou. Porto:Campo das Letras, 2001.42Bolliger, Max, S Risefscht.Aarau: AT Verlag, 1990 (traduo nossa).43op. cit.p.130.44in Gougaud, Henri,A rvore dos Tesouros. Lisboa: Gradiva, 1988, pp. 331-332.

    Referncias bibliogrficas

    Bettelheim, Bruno (1991). Psicanlise dos Contos de Fadas. Lisboa: Bertrand Editora.

    Carquain, Sophie (2003). Petites histoires pour devenir grand. Paris: Albin Michel.

    Cyrulnik, Boris (2003). Le Murmure des Fantmes. Paris: ditions Odile Jacob.

    Esprito Santo, Ruy Cezar do (1998). O Renascimento do Sagrado na Educao. So Paulo:

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    Hymowitz, Kay S., O que aconteceu s crianas?, Nova Cidadania II, Nmero 5,

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    Lacroix, Michel (1999). O Princpio de No ou a tica da Salvaguarda. Lisboa: Instituto Piaget.

    Lipovetsky, Gilles (1994). O Crepsculo do Dever.Lisboa: D. Quixote.

    Paterson, Katherine (2001). The Child in the Attic In The Invisible Child. New York: DuttonChildrens Books, pp. 25-40.

    Pintos, Claudio Garcia (1999).A Logoterapia em Contos. So Paulo: Paulus.

    Runberg, Marianne (1993). Fairy Tales in the Care and Treatment of Emotionally Deprived

    Children, In Brun, Birgitte et al. Symbols of the Soul. Therapy and Guidance through Fairy

    Tales. London: Jessica Kingsley Publishers, pp. 47-61.

    Valadier, Paul (1997). LAnarchie des Valeurs. Paris: Ed. Albin Michel.