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A CRÓNICA 8 A crónica como prática narrativa da cidade: entre conservação e acção Ana Filipa Prata CEC - Universidade de Lisboa PALAVRAS‑CHAVE: CRÓNICA, GENOLOGIA, CIDADE. KEYWORDS: CHRONICLE, GENRE CRITICISM, CITY. Cidade. é mais fácil promover a decadência de uma cidade do que a sua conservação, O Avesso das coisas – Aforismos. 1. AS ORIGENS URBANAS DA CRÓNICA MODERNA No livro Cidades invisíveis, Italo Calvino sugere que a cidade não deve ser confundida com os discursos que a descrevem, defendendo contudo (e também demonstrando na construção da sua obra) que há uma forte relação entre os dois 1 . De facto, são os discur- sos, de vários tipos, que dão uma forma à cidade e que a transformam em lugar humano, i.e., em espaço habitado. Estes discursos que (d)escrevem a cidade são também, por isso, instrumentos de produção do espaço, o que quer dizer que este território, enquanto lugar antropológico, exige uma construção de relações identitárias entre o espaço e os seus 1 “Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. E contudo há entre eles uma relação” (Calvino, 2003: 63). forma breve (2010) 23-41

Cronica-Cidade

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  • A CRNICA

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    A crnica como prtica narrativa da cidade: entre conservao e aco

    Ana Filipa Prata

    cec - Universidade de Lisboa

    PAlAvRAs ChAve: CRNICA, GENOLOGIA, CIDADE.

    KeywoRdS: CHRONICLE, GENRE CRItICISM, CIty.

    Cidade. mais fcil promover a decadncia de uma

    cidade do que a sua conservao, o avesso das

    coisas aforismos.

    1. AS ORIGeNS uRBANAS DA CRNICA MODeRNA

    No livro Cidades invisveis, Italo Calvino sugere que a cidade no deve ser confundida

    com os discursos que a descrevem, defendendo contudo (e tambm demonstrando na

    construo da sua obra) que h uma forte relao entre os dois1. De facto, so os discur-

    sos, de vrios tipos, que do uma forma cidade e que a transformam em lugar humano,

    i.e., em espao habitado. Estes discursos que (d)escrevem a cidade so tambm, por isso,

    instrumentos de produo do espao, o que quer dizer que este territrio, enquanto lugar

    antropolgico, exige uma construo de relaes identitrias entre o espao e os seus

    1 Ningum sabe melhor do que tu, sbio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a

    descreve. E contudo h entre eles uma relao (Calvino, 2003: 63).

    forma breve (2010) 23-41

  • ANA FILIPA PRATA

    habitantes, como sublinham socilogos e urbanistas, desde os trabalhos de Henri Lefebvre,

    Michel de Certeau ou Marc Aug.

    A sociologia urbana apresenta a cidade como um territrio definido pelas prticas

    dos cidados: das prticas cheminatoires2, ancoradas na vida quotidiana, como sugere

    Michel de Certeau, at s prticas discursivas que incluem tanto a linguagem publicitria

    como a da imprensa ou da literatura. Esta concepo do espao urbano enquanto resultado

    de uma praxis humana transforma a cidade num lugar onde tempo e espao se equilibram

    segundo o princpio da meta-estabilidade, ou seja, numa constante negociao entre as

    vrias camadas temporais e espaciais que a compem.

    Na verdade, a conscincia da forma da cidade como espao fragmentado, estilha-

    ado e mltiplo, tanto a nvel espacial como a nvel temporal, desenvolveu-se na poca

    moderna com a revoluo industrial e o consequente aumento da populao urbana. A

    cidade, simbolicamente associada a um centro protegido, onde habitantes e comercian-

    tes podiam levar a cabo as suas tarefas dirias num ambiente privilegiado, d lugar a um

    espao urbano potencialmente tentacular que estende os seus limites at s aldeias mais

    prximas e que, aumentando a sua dimenso, acolhe tambm a figura do estranho ou do

    estrangeiro aquele que marginal e no contemplado na ordem social urbana. Eviden-

    temente, na cidade sempre existiram personagens marginais, mas, muitas vezes, a cidade

    torna-se ela prpria um elemento estranho em relao aos seus habitantes. A capacidade

    de renovao do espao urbano sobrepe-se ideia de uma cidade enquanto realidade

    estvel e segura, passando por isso a ser uma ameaa, na medida em que j no com-

    preensvel e interpretvel segundo os mesmos princpios simblicos.

    Em o pintor da vida moderna3, Baudelaire sugere esta mudana epistemolgica e

    desenvolve, nomeadamente nos poemas em prosa publicados em le spleen de paris aquela

    que considera ser uma nova potica das formas artsticas capaz de reproduzir a disperso

    da realidade espacial e temporal da cidade moderna. O territrio urbano transforma-se,

    no fim do sculo XIX, num lugar onde a sobreposio de tempos se torna especialmente

    visvel, devido rapidez e efemeridade dos gestos associados nova era capitalista, em

    2 (De Certeau, 2004).3 No texto O esboo de costumes, Baudelaire refere as novas tcnicas de execuo artstica em relao

    velocidade da vida quotidiana. trata-se, para ele [o artista], de retirar da moda aquilo que ela pode conter

    de potico no histrico, de extrair o eterno do transitrio (Baudelaire, 2002:21). Este elemento transit-

    rio, fugitivo, cujas metamorfoses so to frequentes, no tendes o direito de o desprezar ou de o dispensar

    (ibid.: 22).

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  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    que a mquina e a tcnica mudam a qualidade dos objectos e da arte, como explicou

    Walter Benjamin no seu ensaio a obra de arte na era da reproduo tcnica. Sabemos que

    Benjamin associa esta fragmentao temporal e espacial a uma perda da aura ligada

    criao artstica.4 O que quer dizer que, com o desenvolvimento da tcnica e da reproduo

    mecnica, os objectos deixam de conter em si mesmos uma singularidade e unidade abso-

    lutas, desfazendo-se assim o valor simblico e ritual associado sua produo, substitudo

    pela a presena dos traos ou vestgios.

    Pode dizer-se tambm da cidade moderna, enquanto construo simblica e agluti-

    nadora de sentidos e valores sociais, polticos e econmicos, que perdeu a aura. Repro-

    duzindo-se nos discursos que ela prpria gera, a cidade ganha uma dimenso plural e que

    a faz crescer no s enquanto territrio fsico. Esta multiplicidade discursiva, associada a

    uma nova ideia de velocidade (termo que Paul virilio utilizar mais tarde para falar da

    experincia urbana), conduz todavia o indivduo a um progressivo desconhecimento do

    lugar que habita. A cidade est constantemente exposta mudana, assim como as suas

    personagens e costumes. Impe-se, portanto, um novo discurso livre, gil e veloz como o

    tempo que passa, surgindo Baudelaire como o poeta deste novo universo moderno que

    gira em torno da cidade. No prefcio de le spleen de paris, Baudelaire revela que procura

    [] appliquer description de la vie moderne, ou plutt dune vie moderne et plus abstraite, []

    une prose potique, assez heurte pour sadapter aux mouvements lyriques de lme, aux ondu-

    lations de la rverie, aux soubresauts de la conscience. (Baudelaire, 1997: 22)

    E acrescenta, numa carta de 1866 dirigida a Jules troubaut, je suis assez content de

    mon spleen. En somme, cest encore les Fleurs du mal, mais avec beaucoup plus de libert

    et de dtail, et de raillerie (Baudelaire, 1997: 8). Os poemas em prosa traduzem portanto,

    para o seu autor, uma nova forma de discursividade do quotidiano, na sua liberdade formal,

    no seu carcter fragmentrio e na sua relao com objectos, situaes e personagens. A

    prosa ganha terreno ao verso para se adaptar melhor s mltiplas configuraes da cidade

    que se traduz, por exemplo, na figura do estrangeiro e da multido5. O prprio trabalho

    de Walter Benjamin, que dedicou a Baudelaire trs importantes ensaios, atesta um novo

    procedimento discursivo baseado num estudo materialista, i.e., partindo dos dados regis-

    4 Even the most perfect reproduction of a work of art is lacking in one element: its presence in time and space,

    its unique existence at the place where it happens to be (Benjamin, 1988: 220).5 (Baudelaire, 1997: 23; 45).

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  • ANA FILIPA PRATA

    tados, cuja organizao traduz uma compreenso caleidoscpica do mundo: no esquea-

    mos que juntar traos e citaes a metodologia que serve de base ao seu grande livro

    inacabado sobre a cidade, paris, capitale du xixme sicle.

    Considerando uma ideia de exploso formal e da reconquista da narratividade, che-

    gamos crnica moderna que nos interessa no apenas enquanto gnero literrio, mas

    como uma prtica discursiva e interpretativa da cidade. Como Helena Buescu sublinha a

    propsito de outra forma hbrida que o ensaio, fazendo referncia a Slvio Lima,6 a cr-

    nica como atitude ou mtodo de escrita e de interpretao do quotidiano e da cidade

    que nos interessa considerar neste artigo.

    O gnero da crnica, tomando a expresso gnero na sua acepo referencial e con-

    vencional, continua a colocar muitos problemas relacionados com a sua definio, visto que

    se apresenta como uma forma marginal, oscilando constantemente entre vrios tipos de

    discurso: entre histria e literatura, entre jornalismo e literatura, e entre ensaio, poesia ou

    conto. Consequentemente, tentar definir a crnica segundo os critrios formais tradicionais

    atribudos aos gneros literrios leva-nos a uma mesma concluso: a crnica um gnero

    hbrido e impossvel de identificar com um paradigma genolgico, ocupando frequente-

    mente uma posio marginal no sistema literrio. Assim, propomos uma abordagem da

    crnica que, embora escape s convenes categricas dos gneros literrios, possa subli-

    nhar o seu papel na construo da experincia urbana, isto , a sua vertente performativa7

    e de prtica narrativa da cidade.

    A crnica, na sua formulao moderna, articula-se com o aparecimento de discursos

    com uma importante ligao vida quotidiana e ao desenvolvimento das grandes metr-

    poles. Se a obra de Baudelaire se apresenta como precursora da escrita da vida moderna,

    ainda no perodo romntico que se comea a desenvolver o interesse pelos discursos hbri-

    dos que vm a lume nos jornais parisienses sob a forma de folhetins, como demonstra o

    estudo pormenorizado de Ernesto Rodrigues sobre o gnero (Rodrigues 1998). A relao da

    crnica com a cidade de natureza intrnseca. Retomando s origens da crnica moderna,

    encontramos os principais elementos que ligam a sua escrita ao desenvolvimento da vida

    urbana. Referimo-nos, por exemplo, crnica-folhetim considerada por Camilo Castelo Branco

    como a essncia da literatura do sculo (apud Santana, 2003: 9), ou ao roman-feuilleton

    6 Embora reconhea desde logo a oscilao histrica entre o Ensaio como gnero e o Ensaio como atitude (a

    que mais tarde chamar mtodo), Lima considera que esta ltima que verdadeiramente define o ensaio

    [] (Buescu, 1995: 282).7 (De Certeau, 2004: XXXvIII-XXXIX).

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  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    to importante na literatura francesa da poca, cuja escrita foi protagonizada por nomes

    como Dumas ou Balzac nas pginas de rodap (rez-de-chausse) da imprensa. Grande

    parte da obra de Balzac foi, alis, publicada sob esta forma antes de ser publicada em livro,

    inspirando-se nos temas quotidianos, nos faits divers e anedotas contemporneas do seu

    pblico e que faziam as notcias do jornal, fidelizando assim os leitores. Enquanto forma

    discursiva que nasce no meio jornalstico, a crnica, tanto na forma portuguesa, brasileira,

    ou na forma da chronique francesa, partilha a mesma permeabilidade. Queremos com

    isto dizer que as crnicas so textos que vivem das situaes provenientes do meio que os

    rodeia e que, em geral, manifestam uma implicao social muito forte. No entanto, nem

    todas as crnicas assumem estes mesmos contornos. Sabemos que o termo crnica

    vago e pode apontar para diversos tipos de texto jornalstico, cuja qualidade e objectivos

    podem ser bastante variveis. Confundem-se nesta designao artigos de opinio, arti-

    gos polticos ou desportivos (Santana 1995). Mas a crnica pode tambm acolher textos

    que se distinguem pelo seu valor literrio, pelo seu interesse cultural e documental e

    por isso que, muitas vezes, estes sobrevivem efemeridade da folha de papel. Esta litera-

    tura ao rs-do-cho (Cndido, 1992) abrigava assim, na sua origem, artigos de crtica

    literria ou mesmo de disputas artsticas, para mais tarde dar lugar ao roman-feuilleton,

    composto por vrios captulos que vo surgindo periodicamente nos jornais, constituindo

    muitas vezes o sustento de grandes romancistas e assumindo a forma da chamada prosa

    alimentar8, a que Antnio Lobo Antunes ainda alude na actualidade, em referncia

    sua actividade de cronista.

    Porm, a crnica que conhecemos hoje no vive do mecanismo sequencial do romance-

    folhetim. As crnicas podem apenas ser consideradas como textos sequenciais, na medida

    em que aparecem com certa regularidade nos jornais, tornando-se a crnica num texto

    crnico, isto , passa a ser contedo permanente do jornal. Nas palavras de SantAnna,

    o prprio cronista crnico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu

    tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele (Romano de SantAnna, 1988). Apesar da sua

    8 O meu problema era que... eu no sabia o que havia de escrever, nunca tinha experimentado escrever textos

    pequenos, nunca os tinha escrito. E ento pensei, bom, isto para aparecer num suplemento de domingo

    de jornal, tem que ser umas coisas leves, que divirtam as pessoas ou que as distraiam. E comeou assim e

    portanto durante muitos anos no lhe dei mais importncia que isso uns textos puramente alimentares para

    aparecerem num suplemento de jornal. Excerto de uma entrevista televisiva conduzida por Ana Sousa Dias

    no programa Por outro Lado de 4 de Abril de 2006. http://www.ala.nletras.com/entrevistas/RtP040406.

    htm [Acedido em 04/09/2010].

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  • ANA FILIPA PRATA

    condio crnica, estes textos independentes e de carcter fragmentrio concentram-se,

    muitas vezes, num motivo ou tema precisos, inspirados pela actualidade, para levar a cabo

    uma reflexo individual do autor que pode frequentemente assumir contornos pedaggi-

    cos ou de teor poltico e de crtica social. Portanto, ao romance-folhetim, cuja dimenso

    ldica e mundana foi caracterizada por Ea de Queirs como conversa intima e indolente,

    desleixada [] [que se espalha] livremente pela natureza pela vida, pela literatura, pela

    cidade, associa-se o valor ideolgico que j em 1871 havia sido reivindicado pelas Farpas,

    publicadas em conjunto com Ramalho Ortigo (Santana, 2003:12).

    Outro factor importante relativamente ao estatuto da crnica a sua deslocao

    do universo jornalstico para o universo literrio. Um ponto essencial desta mudana a

    publicao da crnica em livro, frequentemente sob a forma de antologias organizadas

    pelo prprio autor ou por editores. Por isso, os elementos paratextuais que rodeiam a sua

    publicao, mais do que enquadrar a crnica num novo contexto e num novo suporte, so

    fundamentais para a anlise, compreenso e at sobrevivncia e instituio do gnero no

    seio do sistema literrio. Esses elementos so, por exemplo, o nmero de edies, a impor-

    tncia destes textos no conjunto da obra do autor e a sua contribuio para a sua consa-

    grao, bem como o lugar de destaque que lhes atribudo em encontros acadmicos ou

    em programas de ensino da literatura (Simon, 2004: 57). tais aspectos so fundamentais

    na legitimao do gnero no Brasil, onde a crnica assume uma posio de destaque em

    comparao com outros pases, com a excepo do universo latino-americano. Mas se

    Simon apresenta os casos de Drummond de Andrade9, Rubem Braga e Martha Medeiros

    9 No que diz respeito produo de Carlos Drummond de Andrade, temos uma situao ligeiramente diferente.

    Sua primeira publicao data de 1930, mas corresponde ao lanamento de um livro de poemas, gnero res-

    ponsvel at hoje pela sua grande projeo. Para se ter uma idia da proporo entre a representatividade

    da obra em versos e do conjunto de crnicas, possvel mencionar a organizao de um congresso realizado

    na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2002, por ocasio do centenrio de nascimento do autor. Na

    proposta do evento, havia um temrio com mais de vinte opes: uma delas era Drummond cronista;

    quase desnecessrio dizer que no havia a alternativa Drummond poeta. Se o livro de crnicas de estria

    do autor for mesmo considerado Fala, amendoeira, de 1957, h que se perceber um desequilbrio entre suas

    publicaes em cada gnero. Mesmo assim, o desempenho do cronista Drummond em livros deve ser visto

    como um grande xito a julgar pelos seguintes dados: Cadeira de balano est na 19 Edio; o poder ultra-

    jovem encontra-se na 17 Edio; Fala, amendoeira j atingiu a 14 Edio; a bolsa e a vida est na 13, e Boca

    de luar, lanado em 1984, j teve 9 edies. Se quisermos comparar com desempenho dos livros de poemas,

    no teremos diferenas to significativas: a rosa do povo, possivelmente a publicao mais conhecida, est

    na 24 Edio (Simon, 2004: 58).

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    como paradigmticos desta nova condio de leitura que atribuda crnica, no caso

    portugus a situao parece-nos menos clara.

    Com efeito, se no Brasil a crnica aceite no mbito literrio como um gnero con-

    siderado fundador da literatura brasileira e bastante trabalhado pela crtica, em Portugal

    a sua classificao mais complexa. Embora as suas origens derivem de um cruzamento

    entre jornalismo e literatura, apesar de ter sido cultivada no passado por figuras de relevo

    literrio como Ea ou Almeida Garrett, e ainda que no presente ela continue a ser uma

    forma prezada por grandes nomes da literatura, entre os quais podemos destacar Maria

    Judite de Carvalho, Jos Saramago, Antnio Lobo Antunes, Jos Cardoso Pires, a integrao

    da crnica no cnone literrio no pacfica. O trabalho crtico sobre o gnero da crnica

    esparso, em parte por ser um gnero limtrofe e aglutinador de vrias formas discursivas,

    muitas vezes relegada para o domnio da paraliteratura (Reis, 2005).

    Os trabalhos crticos sobre a crnica esto muitas vezes marcados por uma viso nacio-

    nal: a sua importncia, as suas caractersticas e funes alteram-se, sendo as diferentes

    tradies de escrita que concorrem para a sua universal caracterizao enquanto gnero

    hbrido e marginal: a crnica um gnero heterogneo que, tanto a nvel formal como

    a nvel discursivo, pode assumir vrios contornos e derivar de diferentes suportes. Mas, a

    nosso ver, inalienvel ao desenvolvimento do texto urbano que consideramos ser o ante-

    cedente da crnica, a figura baudelairiana do flneur.

    O acordar para o conhecimento (ou leitura) do texto urbano protagonizado desde a

    modernidade pelo flneur que, diletantemente e gozando os privilgios do cio burgus, tem

    aguado o sentido da viso e a capacidade de contemplao dos pormenores da tessitura da

    cidade, to reveladores do seu funcionamento. A materializao da experincia da flnerie faz-

    -se na escrita, na descrio do espao percorrido e dos objectos que retm a ateno do obser-

    vador. Ao jornalista do sculo XIX, sobretudo quele que se dedica ao fait-divers e ao feuilleton,

    associam-se assim as recm-criadas personagens do flneur e do detective. neste sentido que

    Walter Benjamin afirma que o jornalismo a base social da flnerie,10 pois para se reunir infor-

    10 La base sociale de la flnerie est le journalisme. Lhomme de lettres se rend au march, en tant que le fl-

    neur, pour se vendre. Cela est exact, mais npuise nullement laspect social de la flnerie. Le journaliste, en

    tant que flneur, se comporte comme si, lui aussi, le savait. Le temps du travail socialement ncessaire la

    production de sa force de travail spcifique est, de fait, relativement lev, mais en sattachant prsenter

    ses heures de loisir passes sur le boulevard comme une partie de ce temps, il laccrot encore et accrot ainsi

    la valeur de son propre travail. A ses yeux et, souvent aussi aux yeux de ses commanditaires, cette valeur

    acquiert quelque chose de fantastique. Les choses ne se passeraient pas ainsi, il est vrai, si le journaliste ne se

    trouvait pas dans la situation privilgie qui lui permet de montrer tous et publiquement le temps de travail

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  • ANA FILIPA PRATA

    maes e descodificar aquilo que se v e se experimenta necessrio um tempo ilimitado e de

    espera constante, o tempo de que apenas o flneur dispe. A ideia de cio aparece aqui ligada

    profisso do reprter, cuja actividade principal, a que lhe permite ter os dados para escrever a

    notcia, passa pela contemplao distrada do fluir da multido espera de um sinal:

    La collecte dinformations et loisivet. Le feuilletoniste, le reporter, le reporter photographe for-

    ment une gradation dans laquelle lattente le prts? qui prcde immdiatement le partez!

    occupe une place de plus en plus importante par rapport aux autres activits. (Benjamin, 2002: 799)

    A mesma leitura do quotidiano passa pelo acto de coleccionar, ou seja, pelo acto de

    reunir informaes e pelo gesto de evidenciar um determinado objecto ou situao, que

    num contexto inter pares assume uma funo especular, reunindo caractersticas comuns

    a outros objectos e situaes similares11. Quer isto dizer que, por exemplo, o jornalista-cro-

    nista, ao destacar uma situao ou pormenor do quotidiano, procura atribuir-lhe um valor

    ilustrativo e representativo de uma realidade mais vasta e das inter-relaes que a susten-

    tam, funcionando assim a crnica como smula de uma experincia urbana:

    Pour le vrai collectionneur, chaque chose particulire devient, dans ce systme, une encyclopdie

    rassemblant tout ce quon sait de lpoque, du paysage, de lindustrie, du propritaire dont elle

    provient. Le sortilge le plus profond du collectionneur consiste enfermer la chose particulire dans

    un cercle magique o elle se fige tandis quun dernier frisson la parcourt. (Benjamin, 2002: 222)

    A relao prxima entre a flnerie e o jornalismo baseia-se numa necessidade e numa

    prtica comum que consiste na leitura da cidade, ou seja, na compreenso do complexo

    sistema de redes sociais, polticas, urbansticas e arquitectnicas que a constituem. Ler a

    cidade passa tambm, e sobretudo, pelo acto da escrita, isto , pelo registo de uma expe-

    rincia de errncia e deambulao, que uma experincia marginal porque funciona fora

    dos circuitos da multido e das regras sociais institudas pelo poder.

    Se a heterogeneidade temtica contemplada na crnica, verificamos tambm que a

    marginalidade uma caracterstica dos objectos textuais resultantes da experincia urbana.

    A cidade escreve-se nas caricaturas, nos fait-divers e nos feuilletons publicados nos jornais,

    ncessaire la production de sa valeur dusage, en passant celui-ci sur le boulevard et donc, pour ainsi dire,

    en lexposant au vu et au su de tous (Benjamin, 2002: 463-64).11 (Buescu, 2009).

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  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    antes de o ser em romance ou em poemas. Ela apresentada de uma forma fragmentada

    e o interesse do jornalista, como o do flneur ou do detective, repousa sobre o detalhe onde

    cr residir a essncia do funcionamento do sistema urbano, sempre infinitamente mutvel

    e conjugvel, como o caleidoscpio, reflectindo a mesma imagem:

    La faon de prsenter les choses en les fragmentant attire lattention pour un instant, pour un

    geste bref, sur un lment, sur un aspect de la ville. Cest une forme de prsentation rsultant

    la fois dune perception disperse et dune perception qui se concentre dans cette dispersion, qui

    cre un kalidoscope de la ralit de la ville o le lecteur vit laventure de configurations toujours

    nouvelles. (Stierle, 2001: 92)

    A escrita da cidade nos jornais tem sempre um valor interpretativo e at mesmo axio-

    lgico. Pretendendo o cronista, muitas vezes, captar os traos inslitos de uma personagem

    ou de uma situao, as crnicas, nas palavras de Alain Gauthier, ganham uma dimenso

    vampiresca12 e, como as caricaturas, no so meras representaes de situaes do quoti-

    diano, so reflexes e manifestaes crticas marcadas tambm por uma preocupao est-

    tica. Quando o jornal, escrito na cidade e para a cidade, o suporte da escrita, inevitvel a

    relao directa com as situaes do quotidiano, por isso a crnica surge como uma prtica

    do espao urbano, implicando uma dimenso presencial e um confronto com a alteridade,

    comparvel performance lingustica.13 trata-se, pois, de uma apropriao subjectiva de

    um espao que evidencia uma comunicao com o Outro, neste caso o leitor da imprensa.

    A recepo textual, o meio cultural e contexto em que a crnica se desenvolve suge-

    rem, por isso, uma reviso das divises estabelecidas entre arte e no arte, entre literatura

    e paraliteratura ou entre cultura e cultura de massas. tal a questo levantada por Susana

    Rotker (1992), na sua anlise das crnicas enquanto objectos de renovao da prosa na

    Amrica Latina. A crnica, de carcter eminentemente urbano, , para a autora, um lugar

    de encontro entre comunicao e criao, sendo por isso um veculo artstico, alm de ser

    um veculo informativo o que justifica o interesse de importantes autores modernistas

    latino-americanos neste gnero. Acrescente-se ainda que a crnica no presente tambm

    considerada como um espao textual embrionrio (Reis 2005), na medida em que per-

    mite explorar com proximidade os temas do quotidiano que podero vir a ser objecto de

    12 tenir une chronique marque un penchant vampirique, cest vouloir absorber le vif dun personnage ou le

    sang dun vnement (Jeudy, 2004: 105).13 (De Certeau, 2004: XXXvIII).

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  • ANA FILIPA PRATA

    desenvolvimento em formas mais longas, como o romance, por exemplo. Da mesma forma,

    constituiu um espao privilegiado para o desenvolvimento da esttica modernista que pro-

    curava compreender melhor os ritmos contraditrios da nova sociedade industrializada:

    Qu mejor enseanza para estar donde las cosas suceden para una literatura como la moder-

    nista, que se quera capaz de seguir el ritmo de los cambios, que refleje en si misma las condicio-

    nes mltiples y confusas de esta poca, condensadas, desprosadas, ameduladas, informadas por

    un genio artstico? (Rotker, 1992: 108)

    O desenvolvimento da crnica testemunha a experincia da cidade moderna e da sua

    legibilidade e responsvel, desta forma, pela transformao do espao geomtrico,

    desde sempre caracterizador da metrpole, em espao antropolgico14 constitudo pelas

    infinitas redes de significados elaboradas pelos seus habitantes e que so impossveis de

    determinar ou contabilizar. trata-se na crnica de recuperar a presena e a imanncia dos

    elementos urbanos, atravs da criao discursiva, com vista documentao e conserva-

    o da prpria cidade.

    2. A CRNICA Como CIty text: o CAso de dRummoNd de ANdRAde

    Alexender Gelley destaca o carcter transformador do discurso na experincia urbana,

    apoiando-se nos estudos sobre a produo do espao de Henri Lefebvre e Michel de Cer-

    teau para propor o conceito de city text15. Segundo o autor, este tipo de texto ocupa-se da

    cidade, no como um tema ou uma paisagem, mas como interveno na construo da

    prpria ideia que ela contm.

    Na verdade, os discursos, e nomeadamente a crnica, tanto pela sua temtica como

    pelas suas caractersticas formais, assumem-se como importantes elementos de aco no

    mbito da vivncia do quotidiano de uma cidade. Atentemos nas palavras de Walter Benja-

    min, no incipit do seu livro rua de sentido nico, sobre esta dimenso da actuao literria

    14 Ces pratiques de lespace renvoient une forme spcifique doprations (des manires de faire), une

    autre spatialit (une exprience anthropologique, potique et mythique de lespace), et une mouvance

    opaque et aveugle de la ville habite. Une ville transhumante, ou mtaphorique, sinsinue ainsi dans le texte

    clair de la ville planifie et lisible (De Certeau, 2004: 142).15 the city text by its nature implies a constructive process [] [the authors of city texts] fashioning a discourse

    that is responsive to, but at the same time oriented toward an active intervention in, contemporary urban

    existence (Gelley, 1993: 256).

    32

  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    que, por via da linguagem imediata, deve procurar chegar comunidade e contribuir para

    o seu desenvolvimento:

    A actuao literria s pode ser significativa se emergir de uma rigorosa alternncia entre aco e

    escrita; ela tem de elaborar em folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes, as formas

    despretensiosas que correspondem melhor sua influncia sobre comunidades activas do que o

    ambicioso gesto universal do livro. (Benjamin, 2004: 37)

    Deste excerto, particularmente interessante para a reflexo sobre a crnica, destaca-

    mos a relao entre escrita e aco, apontada como uma necessidade da sociedade urbana

    em que circulam com grande frequncia inmeros jornais. A actuao literria deve ter uma

    influncia sobre as comunidades, segundo Benjamin. Que outro texto responde melhor a esta

    necessidade, se em particular tivermos em conta as comunidades urbanas, seno a crnica?

    Assim como as brochuras, os cartazes e as folhas volantes, a que faz referncia Benjamin, a

    escrita de crnicas no jornal, ancorada na realidade do quotidiano dos leitores, responde a este

    propsito. Ora, as crnicas que se apresentam como dilogos com o leitor so testemunhos,

    e de alguma forma pretextos (Saramago, 1997) para a reflexo sobre os temas de que se

    ocupam. Consequentemente, com um texto s aparentemente descomprometido, artifcio

    que reconhecido crnica, o seu autor visa provocar a reaco do leitor, funcionando esta

    como uma reflexo crtica sobre um determinado estado de coisas. No percamos de vista a

    observao dubitativa de Jos Saramago a propsito do gnero da crnica: so testemu-

    nhos ou so pretextos? As crnicas podem ser consideradas testemunhos na medida

    em que, por um lado, fixam a memria de uma poca precisa, datada. Por outro lado, so

    pretextos porque procuram agir sobre a realidade sobre a qual meditam. Esta actuao

    literria reveste por vezes um valor de militncia, pretendendo ser uma resposta combativa

    a uma vivncia alienada da cidade moderna e constituindo, desta forma, um reencontro

    com o espao urbano, sendo que aproxima os cidados da sua cidade atravs do relato ou

    ficcionalizao de pequenos episdios do seu quotidiano. Ao ler a crnica, seja no jornal

    ou em livro, o leitor poder partilhar o ponto de vista do cronista que, como o flneur, se

    move na multido, tendo contudo a capacidade de se elevar sobre o traado geomtrico

    da cidade e observ-lo sem barreiras. Se auscultao do flneur nada escapa, tambm

    o cronista tem treinado o sentido da viso, ao qual associa o da escrita. O cronista tem a

    capacidade de nos seus textos sublinhar os acontecimentos e as anedotas invisveis do quo-

    tidiano e, como caro, fazendo uso da imagem de Michel de Certeau, pode mover-se apesar

    das manhas do labirinto mvel e sem fim de Ddalo que a cidade (De Certeau, 2004:140).

    33

  • ANA FILIPA PRATA

    A crnica pode ser uma forma de conservao da cidade, no s pelo seu valor teste-

    munhal, mas tambm pela sua capacidade transformadora. A conservao implica, por-

    tanto, uma renovao do espao urbano. Se Baudelaire e W. Benjamin destacam a figura

    do coleccionador como uma das personagens centrais da cidade moderna, tendo em conta

    que o gesto de coleccionar prprio da esttica cronstica que procura reutilizar e reciclar o

    valor ou a aura dos objectos produzidos pela sociedade mercantil atravs do vestgio,

    o acto de arquivar ocupa um posio de destaque.

    Segundo Jacques Derrida, a forma grega da palavra que deu origem a arquivo contm

    dois significados importantes para a compreenso deste fenmeno que ganha cada vez mais

    importncia a partir da modernidade. A palavra arquivo (arhke) simultaneamente incio

    ou comeo e comando. Incio designa a sua natureza histrica e comando designa

    o poder, a lei que rege a sua organizao (Derrida, 1995: 11). O arquivo, na sua verso cls-

    sica, seria o monumento de uma tradio. O processo de conservao de que se trata na

    crnica procura justamente contrariar esta perspectiva monumental da histria da cidade,

    transformando-a numa viso documental, abarcando o peso dos gestos interpretativos.

    Carlos Drummond de Andrade afirma que o mais importante na cidade a sua con-

    servao, isso revela tambm que esta mesmo gesto se faz atravs de um exerccio de

    discursivizao da cidade, do seu espao e do seu tempo, afirmaes constantes das suas

    epgrafes, que poderemos ler como uma espcie de manual deste exerccio complexo de

    conservao. Alm de considerar a crnica na sua dimenso de jornal, o cronista desloca-a

    para o suporte mais perene do livro o que desdobra o processo interpretativo dos acon-

    tecimentos aos quais as crnicas fazem referncia. Na realidade, no suporte livro operam

    no s os registos do passado, como tambm os do presente e do futuro, segundo Derrida,

    que prope uma nova viso do processo de arquivamento.

    No livro, e sobretudo na forma antolgica de que se reveste, pode operar, portanto,

    o esquecimento, uma vez que so escolhidos certos textos, preterindo-se outros. Mas esta

    no deixa de ser evidentemente uma forma de conservao, pois no assiste crnica uma

    ideia de arquivo total, mas de arquivo dinmico, como o prprio espao-arquivo da cidade

    que se constri e reconstri sobre diversas camadas fsicas discursivas. A crnica representa,

    assim, o desejo de conservar a cidade atravs de um processo dinmico, implicando trans-

    formao e desconstruo do prprio conceito tradicional de arquivo. Como afirma Derrida:

    larchive travaille toujours et a priori contre elle-mme (Derrida, 1995: 27). Ou seja, o

    arquivo contm em si o seu avesso, o desejo de apagamento que Derrida nomeia de mal

    darchive (Derrida, 1995: 27). A crnica poderia constituir, desta forma, uma espcie de

    desdobramento do arquivo e de reverso da histria institucional da cidade, promovida pelas

    34

  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    instituies de poder. Mais uma vez, entramos no territrio das ruses, de que fala Certeau, e

    no domnio da marginalidade, que faz da crnica o suporte ideal para praticar a cidade.

    Assim, luz da viso do arquivo derridiano, a crnica seria um documento e um acto pela

    sua prpria natureza, isto , pela sua prpria possibilidade de transformao.

    Pelo que vimos afirmando, verificamos que arquivar encerra implicaes que transcendem

    o mero registo organizado de elementos ou acontecimentos que, de resto, so familiares

    forma antiga da crnica, isto , crnica do universo historiogrfico16. A crnica de que aqui

    nos ocupamos partilha esta mesma dimenso de compilao de acontecimentos e dados,

    porque se reporta tambm, por vezes, a factos reais, a notcias e faits-divers de poca, mas

    muito mais permevel do que a sua homnima medieval, constituindo-se como espao

    privilegiado de reflexo e de interpretao de elementos tangveis da realidade. A crnica

    moderna alcana uma dimenso de contra histria ou de contra notcia, pois procede

    a uma arqueologia dos factos, motivada e filtrada pelo crivo da subjectividade do seu autor.

    A histria faz-se de lembrana e esquecimento, mas faz-se tambm do avesso da histria,

    isto , da face menos ortodoxa da historiografia. A histria que a crnica produz, enquanto

    city-text, a histria do quotidiano e, se porventura deixa algum valor documental sobre os

    costumes de uma poca para leitores e investigadores futuros sobre a habitao urbana,

    sobretudo um agente de produo de sentido na cidade.

    Na realidade, a crnica centra-se mais na produo de uma memria do que na pro-

    duo de histria, frequentemente associada a uma fonte pouco fivel e perturbadora

    das claras guas da historiografia (Assmann, 2006: 263), na medida em que actua no

    domnio da memria e do arquivo, e na ligao destes dois conceitos com a subjectividade.

    Atendendo ainda lio de Derrida, constatamos que a natureza primordial dos arquivos

    privada, s mais tarde adquirindo uma dimenso pblica. Os arquivos so, em primeiro

    lugar, documentos privados, anotaes organizadas segundo uma ordem particular a

    ordem do arconte que detm o poder da sua interpretao (Derrida, 1995: 13). Esta ideia,

    explorada por Derrida, partindo da teoria freudiana da pulso de morte, segundo a qual

    o arquivo se alimenta da sua prpria capacidade de destruio e de renovao, havia j

    sido, segundo outros postulados tericos, abordada por Foucault, que define o arquivo

    como metodologia baseada num processo de escolha e classificao, segundo critrios

    estabelecidos pelo arquivista, regendo o aparecimento dos enunciados como aconteci-

    mentos singulares (Foucault, 1998: 177). No entanto, como veremos com a leitura de algu-

    16 (Santana, 1995).

    35

  • ANA FILIPA PRATA

    mas notas introdutrias s crnicas de Drummond de Andrade, no cabe crnica fazer

    Histria. Esta constitui um documento vlido dos acontecimentos e do funcionamento da

    cidade, analisada a partir do seu interior (Assmann, 2006: 264),17 o ponto de vista pelo

    qual nos interessamos, i.e., o ponto de vista dos discursos marginais sobre o quotidiano,

    que se opem a uma anlise panormica do fenmeno cidade. vejamos como, no caso

    concreto de Drummond de Andrade.

    O paratexto desempenha uma funo essencial na composio dos livros de crnicas

    de Drummond de Andrade. De passeios na ilha a Fala, amendoeira, o autor no hesita em

    escrever uma nota de apresentao para explicar a natureza destes textos, inicialmente

    publicados na imprensa. As notas iniciais dos seus livros de crnicas constituem, fundamen-

    talmente, um comentrio sobre o processo criativo, passando pela escrita na crnica do

    jornal at composio do livro, destacando a importncia do tempo, elemento central da

    temtica das crnicas reunidas, como factor indispensvel escrita dos seus textos. Eles so

    um exerccio meta-reflexivo que importa equacionar e ver em que medida ele central para

    a dimenso arquivstica aqui defendida. Assim, em passeios na ilha, Drummond refere-se

    ao nascimento do livro como um processo decorrente da sua escrita semanal no Correio

    da Manh, sublinhando a sua ausncia de pretenso, ou projecto:

    Este livro no o escrevi: foi-se escrevendo ao sabor dos domingos, no suplemento literrio do Correio

    da Manh. Sua ausncia de pretenso quase insolente. No prova nada, seno que continuamos

    vivendo; poucas iluses resistem, mas cabe ao homem descobrir e usar as suas razes de viver. Suas

    razes e no as que lhe sejam inculcadas como exemplares. (Drummond de Andrade, 2003:230)

    Esta nota, para alm de enunciar o programa, que coincide justamente com a ausn-

    cia de um projecto do cronista, investe os seus textos de uma dimenso aleatria: o livro

    escreve-se por si prprio, acompanhando o fluxo temporal ao sabor dos domingos. No

    provando nada, tambm no serve de exemplo acabado para nenhum homem. No

    visando inculcar aces exemplares, este discurso afasta-se muito das intenes pedag-

    gicas que podem ser atribudas crnica na sua forma original. Em vez de inscrever os seus

    textos num programa didctico, Drummond de Andrade concentra-se no acompanha-

    17 While memory is indispensable, as a view from the inside, to evaluating the events of the past and to crea-

    ting an ethical stance, history is needed, as a view from the outside, to scrutinize and verify the remembered

    events (Assmann, 2006: 264).

    36

  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    mento do tempo que engloba acontecimentos passados e sobretudo presentes e futuros,

    na medida em que no os isola para lhes atribuir um carcter exemplar.

    Como podemos verificar, as notas do cronista brasileiro ultrapassam a dimenso

    pragmtica do paratexto, para se tornarem trechos de prosa que apelam interpretao

    literria do leitor, pois para alm de enquadrarem os textos, servem sobretudo para dirigir

    a leitura da crnica que Drummond quer ociosa, qualidade que podemos ler na traduo

    do gerndio escrevendo. Esta escolha verbal inscreve tambm as suas crnicas no movi-

    mento e na incompletude das aces no finitas, lembrando que se as crnicas conser-

    vam e arquivam, tambm so agentes de renovao.

    Drummond de Andrade continua a sua arte potica da crnica acrescentando que

    se trata de pginas de

    [] convivncia literria [] divagaes e reaces do cronista, no seu exerccio sem mtodo, mis-

    turadas ao eco de obras alheias, recolhido com a necessria simpatia. E como este sentimento se

    vai tornando escasso, gostaria de transmiti-lo ao leitor. vale por um convite ilha no deserta,

    embora pouco povoada. (Drummond de Andrade, 2003)

    Se esta nota, e por metonmia as crnicas, vale por um convite em forma de revisitao ou

    de descoberta de espaos conhecidos ou novos para o leitor, tambm em Cadeira de balano

    Drummond faz uso do mesmo processo retrico: vamos sentar (Drummond de Andrade,

    1998b: 9). Da mesma forma, no trecho que acabmos de ler, o factor tempo desempenha um

    papel fundamental, na medida em que , simultaneamente, o tema das crnicas que introduz e

    o agente de aco na interpretao dos textos, pois modaliza as suas possibilidades, subtraindo

    crnica o seu carcter paradigmtico de exemplum. Em Fala, amendoeira, vamos encontrar,

    igualmente, mais uma reflexo sobre a sua relao com a escrita:

    Esse ofcio de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma ateno natureza

    essa natureza que no presta ateno em ns. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no

    firmamento, que seria de uma safira impecvel se no houvesse a longa barra de nvoa a toldar

    a linha entre o cu e o cho nvoa baixa e seca, hostil aos avies. Pousou a vista, depois, nas

    rvores que algum remoto prefeito deu rua, e que ainda ningum se lembrou de arrancar, tal-

    vez porque haja outras destruies mais urgentes. Estavam todas verdes menos uma. Uma que,

    precisamente, l estar plantada em frente porta, companheira mais chegada de um homem

    e sua vida, espcie de anjo vegetal proposto ao seu destino. (Drummond de Andrade, 1998a)

    37

  • ANA FILIPA PRATA

    Se as crnicas de passeios a ilha se vo escrevendo, as de Fala, amendoeira resul-

    tam de uma actividade de rabiscar, ou seja de escrita descomprometida e coloquial sobre

    a passagem do tempo que se reflecte na natureza, agora metaforizada no elemento

    rvore. Para alm de rabiscar, que implica evidentemente o carcter precrio da escrita

    e dos acontecimentos que regista, tambm o verbo reparar e pousar, associados ao

    domnio da observao, remetem para a contemplao dos pormenores reveladores da

    temporalidade da cidade e da iminncia da morte, pressagiada pela destruio adiada da

    rvore, anjo vegetal, companheira mais chegada do homem, e tambm da histria

    que nas suas folhas vai deixando marcas.

    Nesta zona paratextual de transio, que a nota introdutria deste volume de cr-

    nicas, opera-se desde logo uma estratgia contratual entre o cronista, aqui apresentado

    na terceira pessoa, e o leitor identificado atravs da categoria homem. Leitor, cronista e

    rvore so os trs elementos atravs dos quais se processa a interpretao da passagem do

    tempo, motivo central da crnica, esse bicho [] gnero literrio ou nmero de show,

    mescla de conto e testemunho, alienao ou radar (Drummond de Andrade, 2003: 536)

    que Drummond caracteriza assim em Caminhos de Joo Brando e apenas como hist-

    rias dilogos e divagaes num outro volume intitulado de notcias e no-notcias faz-se

    a crnica. histrias dilogos divagaes (Drummond de Andrade, 2003: 629). Neste

    subttulo, Drummond atesta a vertente testemunhal da crnica, mas no exclui a sua pos-

    sibilidade de sugesto e de renovao, operadas no discurso atravs do dilogo dos textos

    entre si e dos textos com o prprio leitor18. As crnicas so, portanto, divagaes descom-

    prometidas ou conversa quotidiana sobre as matizes coloridas das rvores, e espelham

    assim o tempo que passa.

    Complexificando o seu entendimento, Drummond, em o observador no escritrio,

    refere-se forma do dirio, na origem da publicao das suas crnicas:

    Ao lado de anotaes pessoais, registava nele, com frequncia irregular, fatos polticos e literrios

    que me interessassem. Uma seleco desses registos foi publicada no jornal do Brasil, em 1980-

    1981. Reunindo-os em livro, acrescentei-lhes outros, at agora inditos. Se os leitores encontrarem

    18 Dans le monceau de matriaux journalistiques, il choisit, fait le tri, calibre, essuie gangue et donne voir

    la ralit reconstruite; son fragment est une uvre, sa chronique, est signe, personnalise; le je est de

    rigueur, la complicit avec le lecteur recherche (do lutilisation de courriers dont on ne jurerait pas quils

    soient tous apocryphes); loin de vouloir rapporter lensemble des faits, le chroniqueur se veut prsent un

    dchiffreur du quotidien. (Poncioni, 2000: 24)

    38

  • A crnicA coMo PrticA nArrAtivA dA cidAde: entre conservAo e Aco

    nestas pginas o eco de um tempo abolido, terei resgatado a minha nostalgia e fornecido matria

    para conversa de pessoas velhas e novas. (Drummond de Andrade, 2003)

    Mais uma vez, o cronista aponta para uma forma de registo cronolgico do tempo, em

    que est presente a marca da subjectividade, mas que acolhe facilmente outros registos menos

    autobiogrficos que, seleccionados pelo autor, puderam cumprir a sua funo de resgate da

    nostalgia para o cronista e, simultaneamente, de matria de conversa para os leitores.

    O que se torna evidente nestas notas a liberdade que Drummond parece associar aos seus

    textos. Quer isto dizer que na base da sua criao se encontra a disponibilidade para observar

    e registar, sem limitaes formais ou estilsticas e, finalmente, a disponibilidade para dialogar.

    As suas crnicas podem, portanto, ser encaradas como ponto de encontro entre o cronista, os

    leitores e o seu tempo, desdobrando, por conseguinte, a sua vertente documental.

    Conduzindo a nossa anlise neste sentido, aproximamo-nos da definio de documento

    enunciada por Paul Ricoeur que prev, com Derrida e Foucault, a sua dimenso actuante:

    o documento deriva de um processo de coleco e no apenas o mero resultado de uma

    herana (Ricoeur, 2001: 215). Assim, enquanto documento, a crnica , sobretudo, pro-

    duto de anlise de uma determinada observao do tempo, constituindo uma interpre-

    tao na sua origem e sendo, posteriormente, potenciadora de reflexo para o leitor. Os

    vestgios, ou seja, as singularidades dos acontecimentos enunciados nas crnicas ganham

    o estatuto de entidades dinmicas, ao contrrio de outros que so deixados ao abandono

    (Ricoeur, 2001: 220). Ainda seguindo a reflexo de Ricoeur, um vestgio passa a ser ele-

    mento documental de um acontecimento quando interpretado, alis como para Walter

    Benjamin, como vimos. A conservao de um vestgio pela Histria j um passo em favor

    da sua condio de documento, porque o isola de outros vestgios, submetendo-o a uma

    organizao cronolgica, causal ou outra. Porm a sua interpretao tem o poder de ins-

    talar estas crnicas numa ordem afectiva, porque passa pelo crivo da subjectividade, ao

    contrrio do que acontecia na crnica historiogrfica, por exemplo. Se as duas formas da

    crnica proporcionam documentos que nos transportam ao passado, apenas a crnica de

    que nos ocupamos neste trabalho se instala na memria colectiva dos habitantes de uma

    cidade, justamente devido a essa dimenso individual da experincia feita Histria.

    A escolha dos episdios que servem de mote reflexo da crnica sempre de ordem

    subjectiva. O Rio de Janeiro evocado por Drummond de Andrade o prolongamento da

    sua experincia pessoal, que sabemos j no poder ser tida como exemplo paradigmtico

    e acabado da interpretao da cidade. Portanto, o gesto de conservar, conduz-nos a uma

    reflexo sobre outro tipo de viso histrica, contrria da crnica original. Neste caso, a

    39

  • ANA FILIPA PRATA

    histria feita a partir de um interesse subjectivo e intersubjectivo, ganhando assim impor-

    tncia o processo do testemunho que d conta de uma viso pessoal dos acontecimentos,

    revelando, entre outros aspectos, a precariedade da iseno dos dados histricos.

    Esta forma de fazer histria vai ao encontro da experincia do quotidiano enquanto

    prtica, na medida em que encerra uma aco do indivduo sobre o espao fsico e social

    da cidade. Esta aco individual d conta, mais uma vez, da dimenso polifnica da cidade,

    da sua natureza heterognea, que se insurge contra uma forma de habitao ou histria

    instituda no espao. A cidade feita de memrias individuais e , sobretudo, habitada

    pela singularidade, facto que a faz deslizar muitas vezes para o terreno da marginalidade.

    Contudo, estes espaos marginais so tambm o terreno da criatividade individual, onde

    esta pode expressar-se livremente, integrando os constrangimentos fsicos ou sociais sem-

    pre existentes no horizonte de reflexo da prpria matria da crnica. Este tipo de textos

    caracteriza-se no s pela sua permeabilidade formal e pela sua caracterizao marginal em

    relao a outras formas de discurso, mas tambm porque permite ao seu autor expressar-se

    livre e subjectivamente sobre a histria da sua cidade. A crnica portanto um instrumento

    particular da construo histrica, uma forma de habitar o espao, constituindo mais uma

    das praxis do quotidiano. Encerrando escrita e aco, cumprindo a sua funo de city text,

    a crnica elabora um outro discurso, um discurso permevel e imprescindvel compreen-

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    StIERLE, Karlheinz (2001). la capitale des signes. paris et son discours. Paris: Editions de la Maison des

    Sciences de lHomme.

    Resumo

    Neste ensaio, estudam-se as relaes entre a crnica a vida urbana.

    AbstRACt

    this article focuses on the relationship between chronicle and urban life.

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