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Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

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Page 1: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Grandes Clubes do Futebol Brasileiroa

e seus Maiores Idolos

...

Coração CorinthianoLourenço Diaféria

Fundação Nestlé de Cultura

Page 2: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

L o u re n ço D ia fé ria

Coração Corinthiano

G ran d es C lu b es d o F u te b o l B ra sile iro

e Seu s M aiores íd o lo s

V o lu m e II — C orin th ian s

Fundação Nestlé de Cultura

1992

Page 3: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Coração CorinthianoCopyright 1992 by Lourenço Diaféria

Coordenação gráfica: Rogério RamosEdição de texto e preparação de originais: Rogério RamosRevisão: João Lopes do Amaral, Maria Carolina de Araujo e

Vera Sílvia de Oliveira RoselliCapa: Eduardo MenezesFotos: Antônio Carlos Carreiro, Carlos Namba, Emy Miranda, Gil Passarelli,

Hilton Ribeiro, José Pinto, Lemyr Martins (capa), Manoel Motta,Nélson Coelho, Rodolfo Machado, Ronaldo Kotscho, Sérgio Berezovsky,Abril Imagens, Museu da Imagem e do Som (MIS), arquivos Antônio Del Nery, Chico Mendes, família DÁvila, Sport Club Corinthians Paulista, revista Veja, jornais Diário Populäre O Estado de S. Paulo.

Diagramaçâo e arte-final: Folio design e produção gráficaFotolitos: Paper Express S/C Ltda.

Typelaser Desenvolvimento Editorial Ltda.Impressão: Gráfica Editora Bisordi Ltda.

Mostraram-se infrutíferas as tentativas de localizar algumas pessoas que aparecem em fotografias desta obra, em edição fora do comércio, para que autorizassem expressamente a reprodução de suas imagens. Não obstante, ao reproduzir essas fotografias, objetiva a Fundação Nestlé de Cultura prestar-lhes uma homenagem pessoal, preservando e avivando a memória do futebol brasileiro.

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Todo time tem uma torcida. O Corinthians é uma torcida que tem um time.

José Roberto de Aquino

Ser corinthiano é definição de bom caráter.Américo Mendes

Que agora comece a marcha da participação de um povo, onde todas as bandeiras do Corinthians se fundem numa só bandeira. Esta serã a bandeira nacional verdadeiro símbolo do povo.

Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, em 1977.

Tucurucutu!Já-jã! Tucurutu!fã-jã!Hurrah!Hurrah! Corinthians!Grito de guerra mosqueteiro, registrado por Antônio de Alcântara

Machado, in Cavaquinho e Saxofone.

2afeira: arroz avecfeijão mitgulasch; 3~ feira: salada de batatas com salsicha; 4-feira: eisbein and chucrut com feijão branco; 5afeira: parafuso com brachola; 6afeira: bacalhau com grão de bico; sábado: appetit-happchen avec bolinhos; domingo? O Corinthians joga!

Cardápio oficial do Bar Leo, na rua Aurora, em São Paulo.

Caxias fo i bom de briga, Ruy Barbosa, bom baiano, Maspra ser bom esportista

Tem que ser corinthiano. Quadrinha popular, autor anônimo.

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Um minuto de gratidão

1 E mbora este livro seja assinado por uma única pessoa, sobre a qual deve recair com absoluta justiça a responsabilidade das falhas e omissões nele contidas, o autor faz questão de deixar claro que sem o apoio, o incentivo e a colaboração de um número muito grande de almas generosas ele não teria saído nem do primeiro capítulo. Gostaria de citar, um a um, todos os colaboradores que me ajudaram, mas é impossível. Materialmente impossível. Teria que ser elaborado um pequeno opúsculo. Mas houve pessoas que, se me tivessem fechado a porta de sua compreensão — e de pastas muitas vezes amareladas pelo tempo — teriam feito aluir o projeto.

Mas não houve isso. A boa vontade foi geral e comovente. A começar pelo Antoninho de Almeida e a seguir por Nailson Gondim, Aroldo Chiorino, o Dr. Sérgio Gracini, o palestrino Gil Passarelli, o esfuziante Chico Mendes, o Tadeu Paiva e o Ernesto, dos Gaviões, o Miro, padroeiro da noite paulistana com seu farol de luz às margens da Amaral Gurgel, a doce e amável família do imortal Teleco, a cordialidade do Luisinho Pequeno Polegar, eternamente em nossos corações, a eficiência técnica do pessoal da Abril, a paciente Dona Cida, que controla a entrada e a bisbilhotice dos que tudo querem saber nas ante-salas da presidência do Corinthians, quanta gente fina a citar obriga a gratidão! Mas já que não se pode citar todos, registrem-se ao menos os nomes de Cláudio Casella, o tira-dúvidas que, ainda que consultado de madrugada, presto punha os pingos nos is e despachava a bola de letra e de cabeça. Santa memória corinthiana! Grato, também, a Jorge Augusto Ferreira, da Livraria Papel Velho, um sebo de Santana onde descobri, de favor, o mais antigo livro falando do time do Bom Retiro. E um beijo e um abraço de irmão para Olga da Cunha e Regina Fernandes, que me ensinaram o caminho das taças e troféus e me mostraram o nicho onde repousam nossos fantasmas, nossos heróis e os padroeiros da mística corinthiana. São elas que tomam conta das copas de mil batalhas.

L. D.

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Sumário

Apresentação..........................................................................................................................................9y I. Tudo começou no ano em que o mundo ia acab ar...................................................................11II. O primeiro presidente: um alfaiate que sabia das co isa s......................................................... 14

III. O distinto delegado de polícia que deu uma mãozinha ......................................................... 23IV. Barba, cabelo, bigode e lavanda.....................................................................................................27V. Chegou o team inglês com nome que só grego entendia......................................... ............. 28

VI. Um grito de guerra.............................................................................................................................. 32VII. “Alto e forte como uma montanha e tem um sangue rico.. .............. ................................ 34

VIII. A “torcida” que nasceu antes do team ......................................................................................... 40IX. “Sport Club Corinthians Paulista”! Quem é a favor, levante o b ra ço .....................................42X. A data da fundação. O primeiro estatuto. Poliesportivo e com biblioteca ......................... 44

XI. Onze ídolos entram em campo. Uma derrota gloriosa ............................................................54XII. As raízes da mística corinthiana: o povo .................. .................................... ............................. 59

XIII. Três atletas conquistam a primeira taça ....................................................................................... 62XIV. O clube com a cara (e a coragem) do Brasil .............................................................................. 65XV. O grande salto: do Lenheiro ao Velódrom o................................................................................ 69

XVI. Adeus, ó várzea!...................................................................................................................................74XVII. Per aspera ad astra . . . ......................................................................................................................80

XVIII. A primeira bola morreu de velha (e de em o çõ e s).....................................................................85XIX. O bom humor que atravessa os tem pos....................................................................................... 89

XX. O galo depenado.................................................................................................................................92XXI. A bola de entrega das fa ix a s ............................................................................................................94

XXII. Uma tradição: a “virada” ...................................................................................................................95XXIII. O nascimento do “Mosqueteiro” ..................................................................................................... 99XXIV. A bola da noite ilum inada.............................................................................................................. 102XXV. Uma bola e sp e cia l............................................................................................................................103

XXVI. A bola do Centenário....................................................................................................................... 105XXVII. A bola do gol sem g o le iro ............................................................................................................ .107

XXVIII. A bola da p a z ..................................................................................................................................... 109»XXIX. O distintivo: todo ele um símbolo .............................................................................................. 114

XXX. Do captain Perrone a Guido, o técnico que foi presidente...................................................120XXXI. Desde as primeiras atas, um clube forjado nas lutas .............................................................. 127

XXXII. O fim dos anos cruciais. O Corinthians se faz Corinthians .................................................. 155XXXIII. Alfredo Schurig .................................................................................................................................163XXXIV. O primeiro campo oficial: 1 9 1 7 ..................................................................................................... 178XXXV. O Corinthians arrumava o team treinando com os “reis do futebol” ................................ 182

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• XXXVI. Acredite, se quiser: Corinthians e Palestra já formaram combinados ................................ 183XXXVII. Corinthians vence os palestrinos e ganha a taça dos portugueses .....................................186

XXXVIII. Neco. O jogador-símbolo do Corinthians Paulista...................................................................188XXXIX. Bravos heróis da Ponte Grande e da Fazendinha .................................................................. 195

XL. Zap, pimba! 29 segundos de jogo. Estava inaugurado o estádio! .......................................211XLI. Campeão dos Cam peões................................................................................................................ 213

XLII. A intervenção. E mais um campeonato para o Corinthians! ................................................ 215XTitt. O mosqueteiro na guerra do futebol ......................................................................................... 228XLIV. Marketing & futebol beneficente valiam taças e troféus..................................... .................... 230

XLV. O terceiro tricampeonato: o polêmico gol de Carlito, o T u r c o ............................................234XLVI. O jogador Brandão ..........................................................................................................................242

XLVII. O bailarino Servi lio ..........................................................................................................................244XLVIII. Teleco fala de T e leco ................................................................................................................. 245

XLIX. Um clube com vocação poliesportiva......................................................................................... 250L. Cântico dos cânticos ao som dos tamborins.............................................................................. 256

LI. Quem não tem bom humor, é melhor torcer para outro c lu b e ............................................260• LII. O gol: aqui o Corinthians já teve onça, girafa e até um satanás ......................................... 275LIII. O charuto: até quem não fumava aderiu ...................................................................................279LIV. Carbone, o cavador..................................................................................... ....................................281LV. Luisinho, o Pequeno Polegar ................................................ ...................................................... 284

LVI. Cláudio: o Gerente, o Baixinho, o Maestro .............................................................................. 288LVII. Baltazar, o Cabecinha de O u ro ..................................................................................................... 297

LVIII. “O mais querido do Brasil” .................................. .........................................................................301LIX. Elisa, Tantã, Chico Mendes: o torcedor .....................................................................................302LX. A cam isa .............................................................................................................................................. 309

LXI. A “Taça dos Invictos” ................................................................................................................... 311LXII. Com a camisa da seleção brasileira.............................................................................................. 312

LXIII. Os Gaviões da Fiel: torrente de paixão, emoção diferente................................ ............... .314LXIV. Os campeonatos do Sport Club Corinthians Paulista.............................................................. 318LXV. Um título internacional que custou 142 minutos de garra e categoria ..............................329

LXVI. A Democracia Corinthiana ( I ) ....................................................................................................... 332LXVII Dois hinos. E mil ca n çõ e s ....................................................................................... ...................... 337

LXVIII. O dia em que o Corinthian inglês veio matar saudades.......................................................... 349LXIX. Campeão Brasileiro. À la Corinthians! ....................................................................................... 353

LXX. Os heróis do título brasileiro......................................................................................................... 356LXXI. A campanha do Campeão do Brasil ............................................................................................358

LXXII. O Parque São Jorge. Contrastes e uma lição1 cle otim ismo.....................................................369LXXIII. A vida colorida em branco e p r e to ..............................................................................................380LXXIV. Notícias corinthianas.............................................................. .........................................................394

• LXXV. Sem este homem, a história do Corinthians seria como folhas ao vento ......................... 405LXXVI. A Democracia Corinthiana (II): um fenômeno sociológico que virou tese universitária 409

Referências bibliográficas efontes consultadas....................................................................... 412

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Apresentação

C oração Corinthiano, do cronista Lourenço Diaféria. dá seqüência à nossa coleção “Grandes Clubes do Futebol Brasileiro e seus Maiores ídolos’', iniciada com Nação Rubro-Negra, do contista Edilberto Coutinho. Escritores que aliam o excelente estilo

literário ao conhecimento das coisas de seus clubes (o Clube de Regatas do Flamengo e o Sport Club Corinthians Paulista, respectivamente), temperados com a paixão que nutrem pelo futebol.

Este projeto da Fundação Nestlé de Cultura tem, acima de tudo, cunho documental. Visa preencher um vazio na historiografia desse esporte, a partir da trajetória de nossas maiores agremiações. O futebol ocupa, diariamente, grande espaço nos meios de comunicação e tem inspirado as mais diversas manifestações artísticas. Esperamos que a série “Grandes Clubes do Futebol Brasileiro e seus Maiores ídolos” extrapole seu caráter documental e contribua, de alguma forma, para a compreensão dos fatores que tornam o futebol um fenômeno de massas e talvez a maior paixão do povo brasileiro.

Este enfoque, importante sob o ponto de vista do estudioso, assume ainda maior ênfase quando se trata do público em geral, do torcedor em especial. Certamente, o aficcionado do futebol deseja saber, e muitas vezes relembrar, as gloriosas jornadas dos seus clubes, o destino que tiveram os jogadores responsáveis por essas conquistas e que, por isso, mereceram o seu aplauso, provocaram emoção ao longo dos anos.

Por que o Flamengo? Por que o Corinthians?Essa ordem é resposta à pesquisa que indica o Flamengo como o clube brasileiro

de maior torcida, secundado pelo Corinthians. Além de mobilizar e eletrizar uma verdadeira multidão de fiéis adeptos, as conquistas e a história desses clubes certamente fazem, e sempre farão, parte da cultura nacional.

O Corinthians ilustra com perfeição o culto do brasileiro ao futebol. Todos nós temos algum sentimento em relação ao clube. Inspirador e alvo de um sentimento misto de amor e ódio, reúne fanáticos aliados e adversários mortais das mais diversas proce­dências no Estado de São Paulo.

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São Paulo que, em seus limites territoriais, abriga as esperanças de pessoas de todos os estados da nação, é um universo pluricultural com personalidade própria. Certamen­te, a alma corinthiana — marcada pela vibração, garra e perseverança — confunde-se com o espírito paulista. Não se pode ignorar a importância do futebol no dia-a-dia do povo brasileiro.

Alguns se distanciam, mas não são insensíveis. A grande maioria torce e muitos praticam. O futebol não exclui ninguém, democraticamente contamina do mais humilde ao mais abastado, do mais simples ao mais intelectualizado. Todos são mestres no assunto. Dificilmente se pode encontrar um brasileiro que não seja capaz de formar uma seleção. A sua própria seleção. O brasileiro é, acima de tudo, técnico de futebol.

Nascido na Suíça, há 22 anos radicado no Brasil, por cuja nacionalidade optei, absorvi, com alegria e justificado orgulho, os hábitos brasileiros. Com o gosto pelo futebol não foi diferente. Embora não tenha preferência por nenhum clube, torço e me emociono com a seleção brasileira. Essa alegria e esse orgulho se renovam agora, ao, em nome da Nestlé e da Fundação Nestlé de Cultura, trazer a público este Coração Corinthiano, por estarmos prestigiando e, de certa forma, contribuindo com a preser­vação da memória da cultura popular.

Felix Romeo Braun

Diretor-Presidente da Nestlé Industrial e Comercial Ltda. e Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Nestlé de Cultura

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ITudo começou no ano em que

o mundo ia acabar

No ano de 1910 os 6 mil e poucos habitantes do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, andavam com a pulga atrás da orelha. Estavam acontecendo coisas fora

do comum.

Em primeiro lugar, o cometa.

Naquele ano, o cometa Halley, que levava o nome do astrônomo inglês que o descobrira, atravessava os céus com brilho extraordinário, como jamais se havia antes visto. Desde tempos imemoriais os cometas tinham reputação ambígua. Deles diziam-se coisas contraditórias. Quando um cometa aparecia nos céus, o povo imaginava que algo muito importante estava para acontecer, fosse para o bem ou para o mal. Podia ser uma grande tragédia ou uma grande alegria.

Com o Halley não foi diferente: ele atraía e encantava as pessoas, ao mesmo tempo que as atemorizava. Seu núcleo, feito de gelo, refulgia como uma tocha e arrastava atrás de si uma deslumbrante cauda. “O mundo vai acabar!”, diziam uns. “Quando o cometa chegar bem perto da Terra, vai voar tudo pelos ares, não vai sobrar ninguém para contar a história!”

A idéia de morrer num bairro chamado Bom Retiro, sob o impacto de um cometa luminoso, chegava a ser romântica e até servia de inspiração a poetas populares, como o famoso Juó Bananere, que fazia versos parodiando o sotaque da italianada do bairro.

Ai chi mi dera Chi o meu úrtimo sospiro Fosse lá no B ó RitiroI o meu túmbolo tambê.F icá p r ’a sempre Giunto das intalianigna Cada q u ar mais bunitigna Maise bó n on p od i a v ê 1 ...

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O Bom Retiro misturava sotaques e destinos. Com baús de madeira e malas de papelão reforçado com tiras de aço, aportavam ali imigrantes vindos de várias partes do mundo, especialmente italianos, espanhóis e portugueses, aos quais foram se juntando também polacos e alemães. Traziam na bagagem pouco dinheiro mas uma enorme disposição de trabalho, peculiaridades de língua e de costumes e a expectativa de realizar fortuna, formar um sólido pé-de-meia e se fixar em definitivo no país.

Desembarcados no porto de Santos, os imigrantes transpunham a serra do Mar graças à ousada ferrovia que os ingleses haviam construído e faziam funcionar com pontualidade e precisão, a São Paulo Railway.

Já na capital paulista, os recém-chegados eram encaminhados para triagem e exames médicos na Hospedaria dos Imigrantes — uma repartição do governo, que ocupava espaçoso prédio no bairro do Brás — , e dali a maioria tomava o rumo das lavouras, principalmente as fazendas de café, no interior do Estado .

Muitos imigrantes que tinham conhecimentos profissionais especializados deci­diam permanecer na capital, onde arranjavam um emprego ou se instalavam por conta própria, abrindo pequenas oficinas, fabriquetas de fundo de quintal ou “portinhas” de comércio.

O Bom Retiro foi escolhido por muitos desses artesãos, por ficar perto do centro da cidade, oferecer certas comodidades — como bonde elétrico — e ter clima gostoso. Na verdade, o Bom Retiro tinha esse nome porque era um retiro bom para quem gostava de sossego e de pescar traíras, mandis, bagres e lambaris nas águas límpidas do rio Tietê.

>Havia na região muitas chácaras de veraneio, entre elas a da família Dulley, muito bem cuidada, que tinha até campo de futebol com traves de imbuia, onde jogavam rapazes de famílias ricas e funcionários de empresas estrangeiras.

Contudo, de novembro a março o rio fazia suas besteiras: transbordava violenta­mente com as chuvas e cobria os terrenos de suas margens. A várzea era isso: o território fluvial que em determinados períodos do ano pertencia exclusivamente aos caprichos do rio. Ninguém era doido de construir ali qualquer coisa que lembrasse uma habitação.

Quando a água do rio refluía novamente para seu leito, o mato ou a turfa recobriam os terrenos antes alagados — uma espécie de terra de ninguém. Cabras, cavalos e vacas se encarregavam de tosar o excesso de vegetação. Brotavam assim, como cogumelos naturais nos terrenos ribeirinhos, os campos de futebol que acolheram os times de várzea, o primeiro dos quais consta ter sido o Alliança, que tempos depois passou a denominar-se Argentino3.

Com o recuo das águas dos rios, também apareciam mosquitos e febres. Para combater os primeiros e prevenir os sintomas das segundas, funcionava no Bom Retiro um “desinfectório”, que se encarregava de fumigar as casas que se vagavam, antes de serem novamente alugadas. Nessa época, o Bom Retiro era também conhecido por centralizar, talvez, o mais completo serviço pioneiro e organizado de assistência à saúde pública na cidade de São Paulo. Isso ajudava a fazê-lo um bairro movimentado.

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Como o Tietê, ao refluir, também deixava atrás de si fofas camadas de areia, formou-se num baixadão do bairro o areão de Santana, onde de dia as crianças jogavam “pelada" com laranja-da-baía imitando bola de meia4.

Em maio de 1910, quando o cometa Halley atingiu seu ponto mais próximo do sol e se tornou espetacularmente fulgurante, causando admiração no mundo inteiro, era comum, à noite, centenas de pessoas se reunirem nesse areão do Bom Retiro para observar o astro.

Uma antiga versão sobre o nascimento do Corinthians admite que foi ali, numa noite fria de maio, sob a luz do cometa, que cinco rapazes operários imaginaram organizar um time de futebol que pudesse brilhar tanto quanto o Halley e nunca mais ser esquecido. Os rapazes chamavam-se Antônio Pereira. Joaquim Ambrósio, Anselmo Correia, Carlos da Silva e Rafael Perrone.

Com o passar das semanas, como se a mão invisível de um apagador de lampiões o abafasse, o clarão do cometa foi se atenuando lentamente, num delicado adeus, até que se extinguiu por completo no firmamento.

O mundo não acabou. E as noites do Bom Retiro voltaram a ser iluminadas apenas pela lua, pelas estrelas, pelos vagalumes e pelos lampiões de gás, ao pé dos quais se reuniam os cinco jovens operários.

Notas

1. Juó Bananere era o pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, autor de A Divina Increnca. Nascido em Pindamonhangaba, viveu em São Paulo e, com linguagem típica, descreveu e satirizou amavelmente usos e costumes dos bairros paulistanos. Em 1910, tinha 18 anos. Morreu com 41.

2. Nesse antigo prédio, tombado pelo Patrimônio Histórico, funciona hoje o Museu da Imigração.

3- A menção ao que teria sido o primeiro time varzeano de São Paulo consta do Alm anaque Esportivo, ano 4, edição de 1931, de Thomaz Mazzoni.

4. Vem daí o nome da rua Areal, uma das mais tradicionais do Bom Retiro.

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IIO primeiro presidente: um alfaiate

que sabia das coisas

Uma das peculiaridades do bairro do Bom Retiro era que as notícias e novidades dos quatro cantos da cidade chegavam ali rápidas como relâmpago.

Boatos, fuxicos e comentários nascidos nas mesas do Café Brandão — um concor­rido estabelecimento na esquina da rua São Bento com a antiga ladeira do Acu , sempre lotado de homens de colete e palheta, fumando charuto ou tendo na ponta das piteiras cigarros “Mimi e Musette, o sucesso do século XX”, como diziam os reclames — em poucas horas se espalhavam pelo bairro, levados pelo bonde elétrico, pelos estudantes da Escola Politécnica e pelo pessoal da Escola de Farmácia, que em 1910 já funcionavam no bairro.

Esses importantes e pioneiros estabelecimentos de ensino reuniam cabeças brilhan­tes e geravam uma agitação estudantil que não se via em outros bairros da cidade. Também era grande o número de meninas de uniforme impecável e ar recatado, que estudavam no internato feminino do Colégio Santa Inês, mantido no bairro pelas freiras salesianas.

O bairro era movimentado e alegre.Embora os palacetes imponentes ocupassem as zonas elegantes da cidade —

Campos Elíseos, Santa Ifigênia, Vila Buarque — e já estivesse nítida a tendência de ocupação imobiliária da antiga mata do Caaguaçu, onde o urbanista uruguaio Joaquim Eugênio de Lima rasgara o traçado de uma avenida moderna, nos moldes europeus, que hoje é a avenida Paulista, foi ali, no Bom Retiro, bairro proletário de imigrantes e dos operários que cuidavam da manutenção da Ferrovia dos Ingleses, que nasceu “o primeiro campus universitário de São Paulo”, a partir do funcionamento da Escola Politécnica num prédio construído por Ramos de Azevedo e inaugurado em 1899-

Ramos de Azevedo, engenheiro arquiteto que ao longo de sua vida projetou e construiu obras marcantes na cidade de São Paulo2, tinha entre os artesãos de sua equipe de mão-de-obra um jovem chamado Antônio Pereira, que desde garoto começara a ganhar a vida como ajudante de pintor de paredes. Dedicado ao ofício, Antônio Pereira logo se fez um profissional de mão cheia, muito requisitado, e conseguiu juntar um

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capital; mais tarde montou sua própria empresa e se tomou empreiteiro de pinturas de residências e edifícios públicos.

A Escola Politécnica, da qual Ramos de Azevedo foi professor e diretor, na época tinha fama pelos esaidos que realizava para substituir por concreto armado as estruturas metálicas (importadas!) que se utilizavam na construção de edifícios do começo do século, como era exemplo a Estação da Luz'.

Como a previdência social ainda não estava sequer organizada, era também na direção do Bom Retiro que acorriam as levas de trabalhadores e suas famílias, vindos de bairros distantes como a Freguesia do Ó e Penha de França, em busca de atendimento médico e remédios, gratuitos, oferecidos pela Escola de Farmácia, serviço ampliado mais tarde também para o tratamento dos dentes, quando no mesmo local passou a funcionar a primeira escola de Odontologia de São Paulo.

Nas aulas dessas escolas de ensino superior, freqüentadas por filhos de famílias abastadas, era obrigatório temo completo, com gravata. Muitas fatiotas de professores e alunos da Farmácia e da Politécnica eram confeccionadas por Miguel Bataglia, um alfaiate muito conhecido e estimado no bairro.

Miguel Bataglia era um artista da tesoura e da agulha. Tinha orgulho de sua profissão. Nas fotografias, aparecia sempre em "uniforme de trabalho'", camisa de manga comprida, a fita métrica em volta do pescoço descendo pelo peito, no qual se aninhava uma tosse renitente. Seu atelier ocupava um cômodo na casa com porão habitável, como era comum em boa parte das residências do Bom Retiro e de outros bairros da cidade.

Magro, elegante, Miguel Bataglia, sempre que as encomendas de roupa lhe davam folga, gostava de assistir a jogos de futebol e corridas de bicicleta. Freqüentava a pista e o campo do Velódromo, e também conhecia os bons teams da várzea. Mas jamais dera um chute numa bola de capotão. Era um antiatleta. Franzino de corpo, não agüentaria um tranco do menor dos brutamontes que praticavam aquele esporte ríspido, levantando poeira e lama no tropel dos cascos de couro com bico duro e travas de metal na sola. Miguel Bataglia não tinha fôlego para o futebol.

O atelier do Miguel Bataglia era um centro de reuniões onde se jogava conversa fora, mas também se cmzavam muitas informações em primeira mão.

Certos fregueses iam à alfaiataria do Bataglia transportados no tílburi de seu grande amigo Alexandre Magnani, um cocheiro que tinha ponto na Estação da Luz. O tílburi, puxado a cavalos, correspondia ao serviço de táxi atual. Alexandre era dono de seu próprio nariz, uma espécie de chofer de luxo. Não vivia mal.

Era Alexandre Magnani quem levava ao amigo Bataglia muitas novidades e rumores ouvidos diretamente da boca de freqüentadores do Café Brandão e do Girondino — também este um café famoso, ponto de encontro de prósperos fazendeiros e banqueiros, situado na esquina da rua XV de Novembro com praça da Sé4.

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Numa tarde, descansando um pouco enquanto o cavalo do seu tílburi comia a alfafa contida num saco de algodão preso ao focinho, Alexandre Magnani confirmou a Bataglia a vinda ao Brasil de um famoso team inglês á e football que era uma espécie de oitava maravilha do mundo. Os homens jogavam de ouvido! Alexandre Magnani também gostava de football, e antecipadamente sabia que não iria perder uma partida desse fantástico esquadrão, mesmo que ele jogasse em dia útil da semana. Alexandre fazia seu horário de trabalho, tinha autonomia, não tinha patrão. Mas era um perna-de-pau. Bom mesmo era um outro Magnani, seu parente, o Hugo, Hugo Magnani, todos diziam, “tem um jogo inteligente, distribui com calma e chuta com direção e firmeza”. Hugo Magnani jogava na várzea, era bem mais novo que Alexandre. Em 1910, Hugo Magnani tinha 13 anos.

Assunto era o que não faltava na alfaiataria do Bataglia. Sabia-se de tudo um pouco. Todo fim de tarde e à boquinha da noite o mundo era passado a limpo enquanto os nambus piavam lá fora. Após as aulas na Politécnica e o fim do atendimento ao povo na Escola de Farmácia, liberados do colarinho engomado e do jaleco branco, alunos e professores chutavam para o alto as questões de hidráulica e de farmacologia e o papo rolava ao rés do cotidiano: namoricos, bailes, porres, sonetos, caçadas de perdizes e paturis nos charcos da Água Branca, política, foo tba ll— a vida.

Naquele ano do cometa, Rui Barbosa — o bom, o resto é prosa — havia dançado nas eleições presidenciais realizadas em março: perdera nas urnas (devassáveis e sujeitas a toda sorte de “maracutaias”) para o marechal Hermes da Fonseca, eleito presidente da República com pouco mais de 403 mil votos. Nesse tempo, a população do Brasil ia pouco além de 23 milhões de pessoas; quase 70% delas viviam no campo, nas lavouras. Quem votava era a ínfima minoria.

Embora o conde Matarazzo ainda não fosse conde, já tinha montado seu formidável império industrial, o maior da América Latina, com o soberbo capital de 8 mil contos de réis!

Os operários principiavam a organizar-se em associações. Aqui e acolá pipocavam greves, no geral resolvidas a porretadas: esguichava sangue na areia e nos paralelepípe­dos das ruas. Mas o filme nacional que fazia maior sucesso se chamava Paz e Amor. No teatro Colombo, que fora antes um mercadão de carnes, Temperani, o homem-bala, provocava frisson e o palhaço Piolim fazia a platéia gargalhar até arrebentar o cós das calças\

Cada um trazia seu diz-que-diz. Várias semanas antes de o jornal O Estado de S. Paulo publicar um anúncio bem grande a respeito, chegara à alfaiataria a informação de que o senhor Arthur da Rocha Azevedo e sua família estavam de partida para a Europa, “em viagem de recreio”, por isso seriam vendidos em leilão, na mansão da avenida Paulista nQ 90, seu automóvel doublePhaeton, de 12 cavalos, quase novo, fabricado pela Panard Le Vassaur, bem como um magnífico “gramophone Pathé com diframma de

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safira”. Naquela alfaiataria do Bom Retiro se fazia todos os dias o jornal falado da cidade e do mundo.

Mas Miguel Bataglia era discreto. Mais ouvia que falava. Enquanto tirava as medidas de um freguês — cava, cintura, cavalo, barra, manga e ombros — , inteirava-se até de segredinhos ingênuos: um janota da turma estava arrastando a asa por uma donzela da rua Tabatinguera e não tinha o necessário sangue-frio para encarar de peito aberto as barbas austeras do futuro sogro.

O alfaiate Bataglia fazia então de conta que não estava nem ouvindo os preparativos que os moços combinavam para a serenata da noite seguinte, com violões e violino, sob o coral dos latidos dos vira-latas baldios, na tentativa romântica de amolecer o coração da amada e o mau humor do pai dela, que ressonavam atrás das venezianas cerradas.

Dias depois, o pai da virgem da rua Tabatinguera aparecia na alfaiataria para encomendar um elegante jaquetão de casimira inglesa. E cochichava que um gajo da Poli estava a rondar seu sobrado fazia dias. “tirando linha” com a menina. O homem ia ter uma conversa com o rapaz, que parecia ter as melhores intenções. Para um assunto assim, uma ocasião dessas, ia bem um jaquetão novo. com três botões e tampa nos bolsos.

Em momentos assim, o alfaiate Miguel apenas sorria por dentro. Continuava riscando o pano com giz, mantinha cativos nos lábios os alfinetinhos de cabeça. Passava um zíper na boca. Não dava palpite. Apenas o brilho de seus olhos revelava a satisfação íntima de ter sido um dos primeiros a saber a história daquele amor tímido,"que agora se desatava.

As pessoas confiavam no Miguel Bataglia.

Isso não impedia que às vezes o tempo esquentasse na alfaiataria. Era quando a conversa desembocava naquela horda de gente fina que se digladiava como bárbaros atrás de uma bola, atraindo as atenções de senhores respeitáveis de bengala encastoada e de damas elegantes com éch a ip e de seda francesa no pescoço e camafeu de marfim no peito arfante.

Em tais horas voavam perdigotos e palavras nada gentis. O manual de boas maneiras era mandado às favas. Havia torcidas ferrenhas. O fo o tb a ll já apaixonava. Mas ainda não era o esporte das multidões.

Até 1906, o fo o tb a ll era levado em alto nível, como se diria hoje. O sotaque do esporte era inglês sofisticado, porém não evitava queixas, reclamações, fúrias, bate-bo­cas. A coitada da mãe do juiz já era xingada.

Torcedores do Paulistano, do Mackenzie e do Internacional reclamavam com freqüência de seu team ter sido esbulhado em campo, punham a culpa no árbitro para explicar a derrota. Lembram daquela partida em 1903? O Paulistano deixou de ser beneficiado com um “penalty indiscutível”, não marcado pelo juiz, o qual se fez de cego.

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Por cúmulo da sem-vergonhice, o homem-de-preto ainda terminou o jogo sete minutos antes do tempo regulamentar! Isso é que era “juiz ladrão”!

Outra ocasião, num jogo entre o São Paulo Athletic Club e o Mackenzie, este último já estava com a vitória garantida, no papo. A torcida até já festejava. Pois o árbitro, um gato, deixou a partida prosseguir indefinidamente, parecia que tinha engolido o relógio de bolso. No sexto minuto da prorrogação caprichosa do árbitro, o São Paulo Athletic Club marcou o gol do empate. Aí o juiz fez prrrrrr! E encerrou o match.

Por essas e outras, embora na várzea o pau quebrasse com maior freqüência e entusiàsmo redobrado, também nem sempre o manual de boas maneiras era observado pelos chamados clubes da elite. Em decorrência de uma briga iniciada no campo e que acabou envolvendo os “cartolas” no Velódromo, a famosa Taça “Penteado” — gentil­mente oferecida pelo doutor Antônio Álvares Penteado — acabou sendo atirada nas águas então cristalinas e caudalosas do rio Tietê, onde desapareceu para sempre6. ..

Contudo, pior do que atirar taça no rio fazia o Botafogo, um sanhudo clube de várzea que reinava absoluto ali para os lados da rua Paula Sousa. O Botafogo era famoso pelos craques que conseguira reunir no team , gente de fino football, um esquadrão jóia. Mas era uma turminha marruda. Adversário que ousasse ganhar o jogo em cima do Botafogo quase sempre era obrigado a atravessar o rio Tamanduateí a nado.

O Botafogo era team de suar a camisa até o último minuto, tinha uma garra incomum. Curtido em refregas, bom de briga, seu temperamento descambava com facilidade para a arruaça, e as comemorações das suas vitórias geralmente acabavam perturbando o sono e a paciência dos cidadãos sensatos e pacíficos que iam dormir cedo.

Muita gente ia reclamar na delegacia.

O Botafogo, porém, resistia e prosseguia deixando marcas bem visíveis na reputa­ção de outros teams, o Piemonte, o Norte-América, o Lyra, o Roma, o Cruzeiro do Sul, o Minerva, o Pary, o Belo Horizonte, o Jaceguay. Muitas equipes, como a organizada pelo português Joaquim Rodrigues, o Vaca Brava, também briosa e valente, preferia evitar confronto com o Botafogo para não ter dores de cabeça. Consta que certa feita o Botafogo mandou ofício em papel almaço à diretoria do Heróis das Chamas, team do Corpo de Bombeiros, convidando para uma partida amistosa na várzea do Carmo. Pelos “soldados do fogo” até que haveria jogo, eram gente de valor e denodo, enfrentavam incêndios com equipamento precário, na época nem hidrantes havia, o encanamento das águas era incipiente. Mas o chefe da corporação ponderou bem, achou melhor evitar riscos desnecessários e desautorizou a pugna, alegando razões de segurança interna.

Esse era o Botafogo — rei daquela antiga baixada onde hoje o rio Tamanduateí faz a curva do Mercadão da Cantareira.

Esse era o Botafogo, cujas partidas eram acompanhadas com admiração e entusias­mo pelos jovens Joaquim Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone, Anselmo Correia e Antônio Pereira.

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A várzea não era uma coisa única. Na verdade, ela se desdobrava em “várzeas”, espalhando-se pelos rios e córregos, assumindo o caráter dos bairros onde se situavam. O fo o tb a lldas várzeas ia criando seus “reis” particulares. Thomaz Mazzoni contava que o goleiro Antenor, que atuava no Alliança, gozou de mais fama na várzea do que “qualquer outro craque do Velódromo. Era um verdadeiro gato selvagem”. Certos embates varzeanos, como os jogos entre o Alliança e o Domitila, seu maior rival, ainda que não ocupassem uma linha sequer nos jornais da época, mexiam com a cidade. Jogadores como Alziro Veridiano, Zé Cabeludo, Menotti. Peru. tinham seus 90 minutos de glória e aplausos todas as semanas.

No campo do Velódromo, nem pensar em entrar preto nos teams. O 11 foo tb a ll grã-fino” tinha preconceito de cor, mas a bola. não. A bola se afeiçoara aos pés dos negros, e estes sabiam tratá-la com um carinho surpreendente. O Paraíso, o Diamantino e o Onze de Agosto eram team s de negros. O Botafogo era café-com-leite. Jogava lá, e bem, Davi, um dos primeiros “escurinhos” a tingir com a cor de sua arte o esporte branquicela. Os cinco rapazes operários queriam que o novo clubàa. cidade fosse assim: branco-e-preto. Se soubesse jogar, não importava a cor da pele.

A maioria dos teams da várzea tinha vida efêmera. Os “laços” — aliciamento do jogador de uma para outra equipe — dizimavam as agremiações que se formavam quase sempre por impulsos passageiros e entusiasmos ocasionais. O próprio Botafogo, apesar de ter um team competente, que atraía excelentes jogadores, talvez não fosse longe, muita gente não simpatizava com ele por causa da marrudice de alguns de seus elementos.

De modo que quando o alfaiate Miguel Bataglia ouviu dizer, pela primeira vez, ali por volta de meados de julho de 1910, que cinco operários estavam organizando um novo team de futebol no bairro — e para tanto estavam se reunindo todas as noites sob a luz dos lampiões da rua dos Imigrantes — , ele sorriu e pensou com seus botões e agulhas que o “timinho” não duraria mais que um inverno, que castigava São Paulo com um frio úmido e penetrante.

Alexandre Magnani, o cocheiro, foi quem levou a notícia à alfaiataria:“Não é ‘timinho’, Miguel. Eles querem formar um club de verdade.”“Têm sede?”“Não.”“Jogo de camisa?”“Não custa comprar.”“Têm bola?”“É o de menos.”“Têm campo?”“Estão de olho no terrenào nos fundos do 'Lenheiro'.”“E jogador? Onde é que vão laçar' jogador?”

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“O Botafogo tem gente boa que está enjoada de brigar no campo. A polícia já está de olho neles.”

“Eu acho que esses mocinhos estão é mais procurando sarna para se coçar.”O “Lenheiro” era um sujeito que vendia toras de lenha para os fornos das padarias

e para os fogões de lenha das residências. Todas as casas tinham o seu fogão de lenha, geralmente revestido de cimento alisado ao qual tinha sido adicionado pigmento vermelhão. A comida era feita em fogão de lenha, que custava mais para acender mas em compensação mantinha a panela quente por horas. Não passava pela cabeça de ninguém cozinhar feijão em panela de pressão ou no gás. O gás encanado chegava apenas aos lampiões das ruas, mesmo assim não a todas as 17 ruas do Bom Retiro. A ma dos Imigrantes tinha alguns lampiões de gás. Um deles ficava bem na esquina de uma ruela que terminava num paredão, confinando com a ferrovia da São Paulo Railway. Um beco. A rua iria chamar-se um dia Cônego Martins. Quando o trem passava, espirrando vapor e fumaça preta, a esquina tremia e o barulho não deixava ouvir o que os cinco rapazes estavam conversando.

De gorro na cabeça, para enfrentar a garoa, à luz daquele lampião de luz azulada, os operários estavam acertando como seria o novo club. Não escolheram o signo do lampião de gás por serem românticos. Simplesmente, não tinham sede. Não tinham o dinheiro do Minas Gerais, um outro clube recém-criado em maio daquele ano e que dispunha de sede, mesa, cadeiras, livro de atas e diretoria completa.

Os cinco operários tinham apenas a rua e os lampiões de gás. O campo dependia de conversarem com o “Lenheiro”. Era um terreno grande, dava sossegado para um campo de futebol e sobrava muito espaço para a torcida ficar em volta, vendo o jogo e chupando laranja e tangerina. A área se estendia entre as atuais ruas Prates, Ribeiro de Lima e José Paulino. Um lugar ideal. Perto dos Dulleys, perto da estrada de ferro e perto do ponto final do Bonde 15 Bom Retiro.

O aluguel do terrenão ficava em 30 mil réis por mês.Um olhou para a cara do outro e todos pensaram a mesma coisa:“Vamos falar com o Miguel Bataglia.”Foi assim que, sem nem lhe passar pela cabeça, o alfaiate Miguel Bataglia estava

sendo escolhido, por antecipação, para ser o futuro presidente daquele modesto team que hoje é o timão.

Notas

1. A ladeira do Acu correspondia ao local onde hoje é a praça Antônio Prado.

2. Francisco de Paula Ramos de Azevedo, nascido em São Paulo em 1851, notabilizou-se também pela construção das seguintes obras, entre outras: Teatro Municipal de São Paulo, Belvedere do Trianon, Escola Normal da Praça — mais tarde denominada Escola Caetano de Campos e atualmente sede da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo — , Palácio das Indústrias — que depois passou a ser

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Palácio Nove de Julho, abrigando a Assembléia Legislativa, e posteriormente transformado em reparti­ção da Polícia Civil — e o conjunto da Penitenciária do Estado.

3. A Estação da Luz foi construída numa área de 7.520 metros quadrados. Todo o seu material — vigas, plantas, as duas pontes de passagem que atravessam os trilhos, até mesmo os pregos — veio da Inglaterra. Nem mesmo os tijolos foram adquiridos no Brasil. Na época da fundação do Sport Club Corinthians Paulista, o edifício da estação era um símbolo do esplendor ferroviário em São Paulo. História e Tradição de São Paulo, de Emani da Silva Bruno, citado in Memória Paulistana, edição do MIS.

4. O Café Girondino era tradicional, existia pelo menos desde 1894 e ficava num ponto estratégico — onde hoje começam a rua Direita e a rua XV de Novembro, junto à praça da Sé. Tinha ao lado uma boa charutaria. Diz o historiador Emani da Silva Bruno que a cidade passara a ter “cafés, bares, confeitarias e cervejarias mais confortáveis e cafés até com gabinetes reservados para famílias e outros já servidos por caixeiras amáveis”. Parte da vida social era feita nesses estabelecimentos.

5. Abelardo Pinto, o futuro palhaço Piolim, começou a carreira cedo. Em 1910, tinha 13 anos e exibia-se como ciclista acrobático, com o apelido de Careca.

6. A “Taça Penteado” desapareceu em 1906.

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Ponto de tílburis no centro da cidade de São Paulo. Alexandre Magnani, que seria o segundo presidente do clube do povo. era proprietário e cocheiro de um desses veículos, que podiam ser puxados por um ou dois cavalos. (Foto Museu da Ima­gem e do Som)

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No Bonde 15 Bom Retiro viajaram os corinthianos para comprar a primeira bola de capotào. O veículo tinha limpa-trilhos, uma proteção de metal que ajudava a evitar mortes de pessoas distraídas que marcavam bobeira nos trilhos do elétrico. (Foto Museu da Imagem e do Som)

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III

O distinto delegado de polícia que deu uma mãozinha

Na tarde do dia 3 de setembro de 1910. a 5a Delegacia de Polícia, no Brás. registrou um caso de atropelamento pouco comum. O sapateiro Antônio Casa, que morava

na rua do Gasómetro ns 39. estava atravessando calmamente a rua. dando a mão para sua filha Letícia, de 14 anos. quando um automóvel do Corpo de Bombeiros, dirigido pelo ch au ffeu rCaetano Rocco. o atingiu com violência. O sapateiro foi atirado ao chão com ferimentos no peito. Quem atendeu à ocorrência e encaminhou a vítima à Central de Polícia, com a guia para atendimento médico, abrindo inquérito a respeito, foi um dos mais eficientes delegados de polícia da época, o doutor Franklin de Toledo Piza, oriundo de uma tradicional "família de quatrocentos anos".

O doutor Franklin fez uma bonita carreira, chegou a ser diretor da Guarda Civil e mais tarde assumiu a direção da Penitenciária do Estado, onde fez uma administração exemplar. No tempo do doutor Franklin. a Penitenciária de São Paulo era considerada modelar e visitantes estrangeiros faziam questão de conhecê-la quando vinham ao Brasil. Os presos cultivavam verduras e legumes numa enorme horta, e parte dos produtos era consumida diariamente nas refeições dos detentos. O que sobrava era distribuído de graça para orfanatos, creches e famílias necessitadas. A plantação de mandioca da Penitenciária chegou a impressionar um jurista alemão, que se empolgou com a fa­cilidade com que o tubérculo se reproduzia e com a variedade de receitas como era servido nas refeições. "Se a Alemanha tivesse mandioca, não teria perdido a guerra de 1914”, chegou a dizer o alemão cheio de entusiasmo.

Mas em 1910, o doutor Franklin de Toledo Piza nem de longe imaginava dirigir um dia a exemplar Penitenciária do Estado. Cumpria suas funções de delegado de carreira, em cujo gabinete iam parar, às vezes, queixas de moradores das redondezas contra aquele clube de arrabalde, o Botafogo, metido a "galo da várzea", e que mais de uma vez tivera alguns de seus simpatizantes recolhidos pela "viúva-alegre", ou "tintureiro”, apelidos eufemísticos dados ao camburão de presos.

O delegado Franklin era um homem fino, gentil, duro quando devia ser duro, mas humano. Longe dele ser prepotente. Tinha dois filhos. Alarico e Wladimir. Em 1910,

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Wladimir, que havia nascido no dia de Natal, tinha apenas 5 anos, e duas décadas depois desempenharia um papel importante na vida do club que então estava nascendo. O delegado Franklin, apesar de nascido numa família de tradições centenárias, com formação aristocrática, sabia entender a gente do povo. Quando seus filhos tiveram de ir para a escola, ele os matriculou no Grupo Escolar do Brás — eram dos poucos “brasileiros” naquela imensa turma de “italianinhos” e “espanholitos” sentados lado a lado e às vezes se estranhando. Havia rixas homéricas, especialmente entre a “italianada” e a “espanholada” da rua Caetano Pinto e da rua Carneiro Leão. “Carcamano!”, xingava um. “Carvoeiro!”, xingava outro. E logo começava um vapt-vupt, alvoroçando os fundos dos cortiços e dos porões. Era uma farra e tanto!

Essas briguinhas iam parar na mesa do delegado Franklin, que nâo tirava a piteira da boca e procurava botar água fria na fervura. O cenho carregado, o rosto duro como pedra, por fora ele parecia a estátua do rigor e da ordem. Mas por dentro até que se ria: “Ah, que turminha mais do arco-da-velha!”

Tinha matriculado os dois filhos com os garotos e as meninas — lindas! — daquela gente de mãos ásperas, gente sofrida, gente que não levava desaforo para casa, mas que se trocava, por cima do muro do quintal, xícaras de açúcar, vasilhas de farinha de trigo, punhados de sal, roscas e pãezinhos de lingüiça, como prova de amizade. “Não quero ter filhos com brasão”, dissera o delegado ao tomar a decisão de matricular seus dois garotos na escola pública. Ali eles iriam estudar com os filhos de balconistas da Ao Paraíso das Andorinhas — onde se vendiam camisas finas para madames a 4 mil e 500 réis cada — e dos tecelões da fábrica do Anhaia (uma das primeiras indústrias montadas lá no Bom Retiro).

O doutor Franklin de Toledo Piza conhecia os grandes teams que jogavam no Velódromo, acompanhava o football, que era um bom lazer e principiava a ser a coqueluche da cidade, e, evidentemente, conhecia de perto o Botafogo. Sabia que o team cra valentão mas tinha também jogadores de qualidade inigualável. Aquela “garra” toda não merecia ser domada pelo “carro-tintureiro” da polícia. A “alma” do Botafogo precisava apenas ser transmudada para um club que unisse a paixão a um mínimo de organização. Um club que tivesse coração e também cérebro.

Na metade do mês de agosto do ano do cometa, o cocheiro Alexandre já tinha batido um longo papo com o alfaiate Miguel Bataglia a respeito do novo club do Bom Retiro. Joaquim Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone e Anselmo Correia trabalhavam nas oficinas mecânicas da São Paulo Railway, no bairro da Lapa, onde pontificava o União da Lapa, um team na sua maior parte formado por ingleses da ferrovia. Os quatro rapazinhos saíam do serviço e iam assuntar os jogadores do Botafogo, do Tiradentes — que jogava no bairro da Luz — e do Lusitano, que era comandado pelo português Vaca Brava. O Argentino, campeão da várzea, não deu bola para os quatro ferroviários. Mas estes continuavam convidando jogadores de outros teams para se unirem a eles. Esse trabalho de formiguinha era feito depois do expediente. De qualquer forma, na própria

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São Paulo Railway, tanto nas oficinas na zona Oeste da cidade, como nos escritórios, cuja inglesada também era chegada a bater uma bola de capotão. a notícia de que o novo club estava em formação corria solta. Naturalmente os "gringos ' tinham a mais absoluta certeza de que essa agremiação seria mais uma como tantas outras, duraria um ou dois anos, jamais se ombrearia com uma fortaleza do tipo do São Paulo Athletic Club — onde eles se reuniam para jogar, beber, rir e namorar — ou mesmo com o União da Lapa, que tinha um timaço formado por executivos e técnicos da ferrovia.

Mas a idéia do novo "clubeco" era simpática e vinha sendo bem recebida na Ferrovia Inglesa.

Os “operários fundadores" deixavam recados em todos os cantos da cidade e eles iam se espalhando pelas várzeas. Tais recados precisavam de um ponto de referência para o retorno, e essa referência continuava sendo um simples lampião de gás, dos 8 mil e tantos que bruxuleavam à noite na cidade — os lampiões elétricos não chegavam a 600 em toda São Paulo!

Era necessário arrumar uma sede. nem que fosse provisória. Um cantinho qualquer.Além da sede. Antônio Pereira, que era um sujeito prático, sabia que eles necessi­

tavam de bufunfa para dar o pontapé inicial. Pereira também corria os amigos. Nem tirava o macacão sujo da tinta de pintar paredes. As manchas coloridas de têmpera — uma mistura de água. pigmento, um pouco de óleo e cola para fixar as cores — lhe davam um alegre ar de moleque de circo. Todavia ele era o mais sério e compenetrado de todos. Pereira sonhava com um clube que fosse mais organizado e tão audaz quanto o Botafogo da várzea, e que se estruturasse de tal forma que um dia. talvez, pudesse jogar no Velódromo de igual para igual com o estupendo Paulistano.

Um clube que fizesse vibrar pelas cores do mesmo team os marmanjos que amassavam o barro da várzea na olaria do Manfredo Mayer — a primeira da cidade de São Paulo e a única do Bom Retiro — . o pessoal dos escritórios da Companhia de Gás, os balconistas da Ao Paraíso das Andorinhas, e as "intalianignas" que faziam piquenique na Estação da Luz e nas matas da Cantareira.

Entre seus amigos do peito Antônio Pereira falara com o seu colega pintor de paredes José Gonzalez, um filho de imigrantes espanhóis que morava no Brás e que tinha um irmão, na época com 8 anos. que fazia o curso primário no Grupo Escolar da Mooca. O menino chamava-se Francisco. José Gonzalez, operário de macacão e gorri- nho de papel de jornal, enfiou a mão no bolso magro e entregou ao Pereira parte do pouco que lhe sobrava das economias semanais. Também ele queria colaborar com o “club dos' operários”.

À noite, ao chegar em casa, contou a história. Francisco ouviu com atenção. Quatro anos depois — em 1914 — . quando o clube que estava sendo fundado seria pela primeira vez campeão paulista, e invicto, o garoto Francisco dividia seu tempo como aprendiz de pintor de paredes e como entregador de encomendas numa chapelaria da ladeira de São João. E quando calhava de levar a marmita do almoço para o irmão, encontrou-se

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várias vezes com Antônio Pereira. Um dia, no futuro, Francisco Gonzalez irá ser famoso como pintor e como futebolista. Com o nome de Rebolo.

Quando o delegado Franklin soube que vários jogadores do terrível Botafogo tinham concordado em mudar de clube, respirou aliviado. O Botafogo ia acabar numa boa, sem porrada. “Tomara que dê certo!”, ele comentou com o escrivão da 5a Delegacia, o qual tomava um capilé no bar da esquina.

Nisso o bom homem se enganou. Não era bem assim. Na verdade, os jogadores do Botafogo tinham feito trato de boca. Eles topavam jogar no novo club para ajudar, mas continuariam também no Botafogo. Jogariam em dobro. Que fôlego de sete gatos! “O team que for o mais forte, o mais bamba, com esse a gente fica para sempre. Por ele a gente dará a vida, o sangue e a canela, se for preciso!” Quem falou essa frase — que não ficou escrita em nenhum documento oficial — era um pirralho de 15 anos, chamado Manuel. Manuel Nunes. Manuel tinha um irmão chamado César, que também jogava bola, mas menos que ele, um sujeito nervoso, bravo, um baita dum muque, meio criador de caso. César Nunes tinha sido convidado para participar das reuniões de fundação do novo club. Mas dos dois Nunes, Manuel é que era o bom. Tinha dois apelidos. Fora do campo, era Português. No campo, era o Neco. Jogava um bolão e era do Botafogo, junto com outros cracões como Amílcar Barbuy e Aparício Delgado, que curiosamente era conhecido como José.

O delegado Franklin nunca mandou prender nenhum jogador ou simpatizante do Botafogo, embora às vezes fosse o caso de fazê-lo. Por isso o pessoal do “club do povo”— que não tinha nem sede e nem mesmo nome! — gostava demais do doutor Franklin.

Um homem de autoridade e coragem pessoal, porém sem brutalidade, compreen­sivo, paciente, diplomático e correto. Ponta firme. Amigâo. Um delegado de truz!

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Barba, cabelo, bigode e lavanda

IV

O ditado diz que é conversando que a gente se entende. Antônio Pereira conversou com o Alexandre Magnani. o Alexandre falou com o Miguel Bataglia — que a

essa altura já tinha sido sondado se aceitava ser presidente do futuro “clubinho’' do Bom Retiro. Miguel desconversou, disse “não tenho tempo, estou por aqui de encomenda de ternos, é melhor procurar outra pessoa, tal e coisa, em todo caso, se não houver outro... ”, mas no final dos papos pelo menos um problema sério ficou resolvido: o pessoal conseguiu descolar um local mais confortável para as reuniões preparatórias do grupo de rapazes — uma barbearia!

Enquanto Miguel Bataglia cortava tecido. Salvador, irmão dele, cortava cabelo, aparava barbas e acertava o bigodinho da moçada. O barbeiro Salvador Bataglia tinha o salão na esquina da rua dos Italianos com a rua Júlio Conceição. "Podem vir fazer as reuniões aqui mas vê se não faz bagunça, viu!", ele advertiu, mandando o ajudante passar uma vassoura no chão e recolher com a pazinha os montes de cabelo que tinham rolado da cabeça dos fregueses. Era um salão bem montadinho, com cheiro de lavanda, espelhos de cristal legítimo, navalhas espanholas, pedra-pomes, vidros de loção pós- barba, potes de brilhantina perfumada e sem perfume, máquinas manuais de corte, um armário com gavetas para toalhas limpas e um cilindro de latão para as toalhas usadas. Num canto alto do salão, em nicho de madeira pintada, havia uma imagem de Santa Rita de Cássia, “a santa das causas impossíveis”, que tinha ao lado uma lamparina acesa dia e noite com pavio-de-bóia num copo com óleo. Foi na alfaiataria do Salvador Bataglia que o novo club começou a nascer de verdade.

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VChegou o team inglês com nome

que só grego entendia

E stavam as coisas nesse pé — os operários discutindo a fundação de um “timinho” na barbearia do Salvador Bataglia, no Bom Retiro — e eis que outra notícia mais

empolgante ofusca e açambarca todas as atenções da cidade: os jogadores do Corinthian Football Club da Inglaterra estavam viajando para o Brasil no navio Aragón, de bandeira espanhola. Tinham saído da cidade de Southampton no dia 5 de agosto, estavam há 17 dias no mar, treinavam no tombadilho do navio. “Cáspite! E a bola não cai riágua?” “Eles têm precisão britânica, seu marmota!” No dia 22 de agosto1 chegaram ao Rio, a convite do Fluminense, para uma série de partidas amistosas. O Corinthian Football Club era uma agremiação singular, a começar pelo nome, que nunca teve o 5 que a imprensa da época lhe pespegou, talvez por justificado esnobismo. Embora tivesse categoria e qualidades para tanto, o Corinthian Football Club desprezou sempre a idéia de profis- sionalizar-se. Preferiu ser a vida inteira — até hoje — um clube amador, de gente que gosta de futebol e se fez embaixador desse esporte. Era um clube antigo. Fundado numa quinta-feira do mês de outubro de 1882, quando veio ao Brasil pela primeira vez, naquele agosto de 1910, a agremiação já tinha 18 anos de existência. Na verdade, o Corinthian Football Club inglês era 6 anos mais velho que o próprio São Paulo Athletic Club, que foi o primeiro a desenvolver a prática do football no Brasil e que começara como club de cricket a partir da reunião de meia dúzia de ingleses num bar da rua São Bento .

Acontece que a experiência do Corinthian Football Club em viagens pelo mundo era imensa. Antes de vir em 1910 ao Brasil, o team já jogara três vezes na África do Sul, uma vez na Hungria, na Escandinávia, no Canadá, nos Estados Unidos, na França, na Checoslováquia e na Argentina.

O Corinthian Football Club prestou tantos serviços ao “nobre esporte bretão”, que acabou recebendo da Coroa britânica um brasão próprio, coisa que não é para qualquer um.

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É evidente que o Corinthian Football Club não vinha ao Brasil passar vexame. Ao contrário, ele chegou disposto a dar algumas exibições de sua arte, e para isso trouxe jogadores como Morgan-Owen, Day, Timmis, Braddell, Thew, Rogers, Page, Tuff, Tetley, Snell, Brishley, Coleby, Vidal, Howell-Jones e Kerry.

O fo o tb a ll brasileiro também estava cheio de nomes estrangeiros lá para os lados do Velódromo, das Palmeiras e da chácara Dulley.

A viagem do Corinthian Football Club não se limitou a ser um magnífico e inesquecível acontecimento esportivo. Foi também um luminoso evento social e políti­co, uma coisa assim para dar faniquito nas mulheres elegantes e alvoroçar toda a fin esse dos ambientes mais requintados. Os rapazes ingleses foram tratados a pão-de-ló e a licor-feito-em-casa. Antes das partidas, eles recebiam buquês de flores, quais ilustres prima-donas da “pátria-màe do fo o tb a l l". E massacravam o adversário.

O primeiro jogo dos “ingleses” foi contra o team do anfitrião Fluminense, o qual, para espanto geral inclusive da própria equipe carioca, marcou um g oa l logo no primeiro minuto do jogo. O resultado final foi 10 a 1 para os ingleses.

No dia seguinte, para espairecer da goleada, os visitantes ingleses foram dar uma esticada no Corcovado, no famoso bondinho elétrico, onde tiveram oportunidade de se deslumbrar, como qualquer turista, com a admirável paisagem da Cidade Maravilhosa.

Ao descerem, porém, outra vez ao nível do mar, trataram de arrasar, pela contagem de 8 a 2, um combinado de clubes do Rio. Só tiveram alguma dificuldade na partida derradeira, contra um “selecionado brasileiro”, ao qual derrotaram pelo sóbrio placar de 5 a 2, encerrando assim a espetacular temporada carioca, não sem antes serem home­nageados com discursos e um jantar de gala oferecido pelo Fluminense.

Vinte e três goals em três partidas, tomando apenas cinco — sendo que um por mero descuido — , tinham mesmo de polir a fama da equipe, quando ela viajou para São Paulo no trem noturno de luxo da Central do Brasil. Os ingleses chegaram na manhã do dia 30 de agosto, um pouco moídos pela viagem, mas em condições de receber homenagens e saudações somente devidas aos grandes heróis. A bem dizer foram carregados em triunfo e instalados condignamente no Hotel Majestic, depois de acolhi­dos com fidalguia e mil gentilezas pela diretoria da Liga Paulista, representantes dos grandes clubes e centenas de sportsmen, que acorreram à Estação da Luz.

Na tarde do dia seguinte, uma quarta-feira abafada, 31 de agosto, houve quem dissesse que tanta gente nas ruas, caminhando na direção do Velódromo, só no dia em que Rui Barbosa em carne e osso viera a São Paulo para fazer passeata e comício na Campanha Civilista. Era gente a dar com pau. Tílburis transitavam para lá e para cá trazendo passageiros. Havia também automóveis particulares, que refulgiam de prospe­ridade. Palhetas, fon-fons, perfumes franceses no ar. Um acontecimento chiquérrimo, aquela primeira partida do Corinthian Football Club em terras paulistanas. Freqüentar fo o tb a ll era in pra caramba. Ai de quem se atrevesse a bulir ou falar palavrão perto

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daquelas damas vaporosas de vestidos longos, chapeuzinhos que eram uma graça e sombrinhas importadas de Paris.

Estavam marcados para São Paulo três jogos: o primeiro ia ser contra uma “seleção” formada por José Rubião, que tinha sido no começo beque do Paulistano e do qual se afastara para ir dar sua contribuição esportiva e o prestígio de seu nome à Associação Athletica das Palmeiras, que, bem dizia o nome, situava-se na região das Palmeiras — onde hoje está o bairro de Santa Cecília, cortado pela rua das Palmeiras.

O Corinthian Football Club estava escalado com Rogers no gol, Page e Timmis, Tuff, Morgan-Owen e Braddell, Snell, Day, Vidal, Brishley e Kerry.

O team das Palmeiras, com camisa branca e faixa preta no peito e calção branco, alinhava Orlando no gol, Urbano e José Rubião na zaga, Egydio, Rubens e Gullo, Godinho, Eurico Mendes, Irineu, Egydio II e Dedé.

Seja porque os ingleses estivessem exaustos, seja porque os rapazes das Palmeiras pusessem todo seu brio e orgulho no bico das chancas, a verdade é que os britânicos venceram por 2 a 0, mas não deitaram e rolaram como haviam feito no Rio de Janeiro.

Porém foi uma partida sensacional como ninguém tinha visto antes. “Um dos mais belos matches até então realizados!”, era o que se comentava. A imprensa jogava confetes e elogios a mancheias. “O ataque dos ingleses era feito com calma admirável, os halves e forw ardscombinavam em esplêndidos passes rasteiros, raramente vendo-se um passe alto”, comentavam os jornais. “Que maravilha!”

Após o jogo, na noite desse 31 de agosto, a diretoria da Associação Athletica das Palmeiras ofereceu aos futebolistas ingleses um jantar íntimo, quando foram saudados por Urbano de Moraes — que jogara de zagueiro ao lado de Zé Rubião — , tendo respondido ao discurso, em nome dos visitantes, o center h a lf Morgan-Owen.

Bem que os operários das oficinas da São Paulo Railway na Lapa se moeram de raiva e ansiedade, mas esse primeiro jogo eles não puderam ver, nem o jogo seguinte, na sexta-feira, dia 2 de setembro, contra o team Paulista, montado por Fernando Macedo Soares.

Foi com os olhos brilhando de emoção que Joaquim Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone e Anselmo Correia ouviram, boquiabertos, a descrição dos lances daquela partida de futebol, na barbearia do Salvador Bataglia. Era como se estivesse sendo narrada uma epopéia, uma aventura num outro planeta além da imaginação. Cada testemunha fazia questão de aumentar um ponto, acrescentar um pormenor à realidade. Alexandre Magnani, Antônio Pereira, Miguel e Salvador Bataglia tinham ido ao Velódro- mo e visto o “fenômeno inglês”. Não tinham capataz nem contramestre aos quais devessem dar satisfação, e tinham nos bolsos os 4 mil réis das arquibancadas ou os 2 mil réis das gerais, que eram os preços dos ingressos naqueles jogos extraordinários, na primeira praça de esportes ao ar livre de São Paulo — o Velódromo! “E o juiz?” O árbitro na primeira partida tinha sido Hermann Friese, um craque patoludo, um armário de

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força, famoso jogador do Germânia. “O juiz foi imparcial”, respondeu Antônio Pereira, com conhecimento de causa. Ele também apitava jogos no campo da várzea.

Enquanto os operários do Bom Retiro agarravam o batente, o Corinthian Football Club acertava as contas com o Paulista, que jogou com as cores do Paulistano, camisa branca com faixa vermelha, calção branco com lista vermelha. O Paulista também era um “combinado” de jogadores. No primeiro h a lft im e— os primeiros 45 minutos — , os jogadores de São Paulo agüentaram o rojão, perdiam apenas de 1 a 0. No segundo tempo afrouxaram de vez: derrota de 5 a 0. Era o próprio Paulistano que se curvava à força e à categoria insofismável do team inglês. O juiz foi Hutchinson, que jogava pelo Sport Club Internacional, e sua atuação não recebeu tantos elogios. O público reclamou que os ingleses deram muitas cbarges, jogaram mais pesado que na primeira partida, isso pegou um pouco mal na torcida. Mas também o Paulista não soube aproveitar as oportunidades que teve: em certo momento, Octávio Bicudo, meia-esquerda do team de São Paulo, ia chutar a bola quando o/w// back inglês Page “lhe aplicou uma formidável charge pelas costas. O juiz Hutchinson considerou a charge como f o u le determinou um pen altyk ick contra os ingleses”.

A torcida brasileira vibra, algumas palhetas são arremessadas para o alto. O back Tommy, do Paulista, vai bater. Percebe-se que o rapaz está nervoso. Meio pálido. As pernas endurecem. Ele corre, pimba! “Com seiscentos demônios!” O goleiro inglês Rogers quase nem se mexe, e com um toque da mão direita bota a c o m e r !

Da Lapa ao Pary, do Brás ao Catumby, lá longe onde o rio Tietê espumava de saúde nas pedras onde lavadeiras ensaboavam roupas, nos lados da Floresta, nos cochos da Ponte Grande, nas matas do Caaguaçu, nos becos e vielas, nos fundões do rio Pinheiros, nas ruas buliçosas do Triângulo, nas escadarias da Igreja de São Gonçalo, o Corinthian Football Club tinha aspergido a magia de seu nome estranho, como um chuvisco fino sobre a cabeça das pessoas. “Corinthian! Que diabo quer dizer isso?”

Notas

1. Há divergência quanto ao dia da chegada do Corinthian ao Rio: 21 ou 22. John Robert Mills, repre­sentante do clube inglês no Brasil, faz constar o dia 22 na sua sucinta História do Corinthian Football Club, de Londres.

2. O São Paulo Athletic Club foi fundado no dia 13 de maio de 1888.

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VIUm grito de guerra

E bastante provável que o nome “Corinthian” dos futebolistas ingleses tenha sido, no princípio, um mero grito de guerra, inspirado nas tradições olímpicas da antiga

Grécia. O Corinthian Football Club teve sua base inicial formada por estudantes univer­sitários de Cambridge e Oxford, os quais — por que não? — influenciados pelos ideais helénicos do “físico bem cuidado” pela prática sadia do esporte, se teriam entusiasmado pelas leituras a respeito de uma cidade grega chamada Corinto, a qual se situava no extremo nordeste do Peloponeso, tinha porto e era importante na ligação entre o Oriente e o Ocidente. Destruída 146 anos antes de Cristo, pelos romanos, e reconstruída cem anos depois por ordem do imperador Júlio César, Corinto — que os ingleses dizem Corinth — retomou sua antiga prosperidade. Consta que, em escavações feitas em seu território, foram encontrados vestígios de taças e troféus, possivelmente prêmios ofere­cidos em competições atléticas. Quanto aos costumes propriamente ditos, Corinto era o que se pode chamar de barra pesada. A depravação corria solta e cultivava-se oficialmente a prostituição das mulheres, num templo dedicado a Afrodite.

Não é à toa que o apóstolo São Paulo dedicou à comunidade cristã daquela cidade grega algumas cartas vigorosas, que constam do Novo Testamento como documentos de grande valor catequético.

Parece evidente, contudo, que os estudantes ingleses, e especialmente um tal de H. A. Swepstone — que sugeriu o nome Corinthian para o cln b—, viram nessa antiga cidade apenas um referencial esportivo, uma lembrança grega, o que era comum entre os esportistas da Inglaterra.

Dessa forma inusual, mas de explicação relativamente simples, a agremiação inglesa ficou sendo Corinthian Football Club, o que seria, a grosso modo, Clube de Futebol Corintiano — , ainda que o nascido na Corinto grega não era conhecido por “corintiano” e sim por coríntio.

Atualmente a antiga Corinto grega tem o nome de Gorto. Mas o Brasil tem uma cidade chamada Corinto. Fica em Minas Gerais, bucolicamente localizada no centro

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geográfico daquele montanhoso Estado, com uma população pacífica e ordeira que, pelo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, não chegava a 60 mil habitantes. A curiosidade peculiar desse município é que todos os que nele têm a honra e orgulho de nascer podem ser torcedores do Cruzeiro, do Atlético Mineiro, do América ou do Monlevade, mas por lei, e por merecimento, são sempre, até à morte, corintianos— com certidão do cartório!

Quando o Corinthian Football Club jogava, seus torcedores gritavam, “Vai, corin- thian!”.

E foi desta forma que a imprensa brasileira, ao referir-se ao team inglês, achou por bem supor que Corinthian não era exatamente o nome do club , e sim qualificativo do jogador. Nas páginas de esportes, os jornais publicavam “Corinthians Teairi\ Ou, ainda mais simplesmente, os Corinthians! O 5 a mais no nome do club ficou creditado aos arroubos da crônica especializada da época, que chegou a dar à equipe inglesa fotografias em quatro colunas no alto da página!

De fato, o Corinthian Football Club era o máximo!

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VII“Alto e forte como uma montanha

e tem um sangue rico ...”

A passagem do Corinthian Football Club por São Paulo superou todos os limites do entusiasmo e da admiração popular e nisso foi estimulada pelo tom com que

a imprensa tratou o acontecimento.Como escrevia o repórter do jornal O Estado de S. Paulo na seção “Sport” no dia 3

de setembro de 1910, o Velódromo tivera “um aspecto opulento de festa, àgran de tenite, festa em que todo recinto parecia dizer a história de seu enthusiasmo, desde os aficionados gesticulantes gritadores às bizarras bandeiras, agitadas por leve aragem. As archibancadas resplandeciam. Já antes das três horas as mais lindas moças, de riquíssi­mas toilletes, formavam uma onda humana encachoeirada, ondulante, luminosa. Vinha dalli um murmúrio que enchia o ar, já cheio das vozes dos moços que inquietos, de um lado para o outro, seguiam na pelouse os ensaios da gente do scracht brasileiro. Para cá da renque de pinheiros e à volta de toda a pista, havia uma multidão irriquieta, nervosa e faladora... E quando os dois team sentraram no campo, o enthusiasmo transformou-se em delírio. As archibancadas mandaram aos lutadores as mais carinhosas palmas, indistinctamente, e a esses aplausos do espírito gentil das senhoras e senhoritas junta- ram-se os dos aficionados, resultando uma ovação que se prolongou por alguns minutos.

O jornal assim ressalta a disparidade física das equipes: “Serenada a tempestade de aplausos, os teams tomam posições. Todos os olhos descobrem o frisante contraste que elles offerecem. No campo dos inglezes há dois ou três exemplares de homens que dão na vista. Um é alto e forte como uma montanha e tem um sangue rico que lhe desce da raiz do cabello aos primeiros contornos do peito. Quanto aos nossos, a mediania da altura fal-os quasi todos parecidos uns com os outros. Há, não há dúvida, corpos de rapazes que o sport desenvolveu e tornou fortes. Mas a disparidade é flagrantíssima e dos espectadores muitos não acreditam que elles possam medir forças com esses titans que alli estão, vindos do mar do Norte..

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O tempo também contribuiu, muito propício para a prática do esporte bretão, como revela o meticuloso repórter: “Graças sejam dadas ao bom Deus do Azul e do Sol pela encantadora tarde que nos proporcionou hontem. Se os céus se associaram ou não à festa sportiva dos Corinthians (s/c) contra brasileiros, não é da nossa competência dizel-o. O que podemos, entanto, affirmar é que raramente se tem apresentado uma tarde de luz tão calma, tão doce e tão ridente, uma luz que descia ao fundo das almas, as saturava de um sentimento vivaz e as arrastava para fora de casa, mergulhando-as num mundo de sensações.”

E que torcida!

“E com que sentimento o público acompanhou os differentes lances do jogo! Só um analysta de almas nos poderia dar a psychologia dessa multidão nervosa e interessada, que tem chispas no olhar quando a bola enviada pelos inglezes põe em perigo o g oa l adversário e fulgurações de allegria quando ella parece ir assignalar a victória dos nacionaes... Há espectadores que se põem nos bicos dos pés, gritando, gesticulando. Há outros que enfiam a cabeça e fazem “Oh! Oh!” a um cochilo dos patrícios, e outros ainda — esses são os doutores do sport— que mostram o murro fechado e ululam de raiva se o lance não foi de bon ne chan ce... Nas senhoras, o mesmo phenomeno psychológico. Com a differença de que. nellas, há a compostura própria do seu sexo — o que não impede que se associem a todas as manifestações, a todos os enthusiasmos, a todas as homenagens...”

O fo o tb a ll disciplinado versus o fo o tba ll descontraído: “No Velódromo jogavam rapazes rebeldes ao trainingcontra. homens escravos da disciplina e cuidadosos de sua boa forma sportiva; discípulos contra mestres consummados; vencedores acclamados universalmente contra modestos desconhecidos...”

As folhas de esportes dos jornais passavam de mão em mão na barbearia do Salvador Bataglia e nas oficinas da São Paulo Railway.

Os dois primeiros jogos do Corinthian Football Club em São Paulo, realizados no dia 31 de agosto e no dia 2 de setembro, respectivamente uma quarta e uma sexta-feira, dificilmente poderiam ter sido vistos, no próprio Velódromo, pelos operários Joaquim Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone e Anselmo Correia.

Mas era tamanha a repercussão das exibições dos jogadores ingleses, nos bares, nas esquinas, nos pontos de tílburis, no Bonde 15 Bom Retiro, e mesmo na linha Barra Funda, enfim, em toda a cidade, que para aqueles quatro rapazes se entusiasmarem nem teria sido necessária a descrição pormenorizada de Antônio Pereira da maravilha que tinham sido as duas partidas. E não era exagero do pintor de paredes. Embora o acontecimento teatral do mês de setembro fosse a estréia da “espirituosa satyra” Le Roi, dirigida pelo ator Alfredo Brasseur no Teatro São José, e também tivessem sido concorridas as sessões

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do Bijou Theatre, onde se passavam emocionantes novidades “cinematographicas”, o povo lotou mesmo foi o Radium, onde — o que é o progresso! — algumas horas depois da exibição do Corinthian inglês, o público pôde assistir aos “melhores lances da pugna” na tela daquela casa de espetáculos.

Eis a notícia do retumbante feito, na seção de “Variedades” de O Estado de S. Paulo-, “As sessões realizadas hontem, neste elegante theatrinho Radium, tiveram selecta e extraordinária concorrência. Foi isso devido quasi que esclusivamente ao facto de figurar no programa a esplêndida fita Corinthians versus Brasileiros — , e que foi o grande sucesso da noite. A fita é uma das melhores que se tem tirado nesta capital, não só pela nitidez, como por ter apanhado as melhores phases do emocionante match, ante-hon- tem jogado, dando assim lugar a que, de vez em quando, a enorme assistência prorrom­pesse em aplausos. Hoje, na segunda sessão, será novamente exhibida a magnífica fita Corinthians versus Brasileiros, além de outras muito interessantes. A empresa do Radium fará tirar uma fita apanhando os lances mais interessantes do match que hoje vae ser disputado...”1

À noite, os cinco jovens operários foram ao Radium ver o filme do Corinthian — que agora todos diziam Corinthians. E aplaudiram as melhores jogadas...

Entre um jogo e outro, a decisão estava tomada: o club do povo não podia continuar sendo um sonho. Agora ia ser uma realidade, e isso ficou combinado, preto no branco, naquela noite quente do dia 1Q de setembro, ali por volta das 20 horas e 30 minutos, na rua dos Imigrantes nQ 34, bem na esquina da rua-beco Cônego Martins, onde havia um lampião e o bar e confeitaria do Afonso Desidério, que era cunhado do João Batista Maurício, um dos que tinham aderido à fundação do novo club.

Os rapazes operários não eram mais apenas cinco sonhadores. À porta da confei­taria do Desidério estava estacionado o tílburi de Alexandre Magnani, e o cocheiro estava entre o grupo, todo animadão: “Já falei com o Miguel Bataglia. Ele topa ficar na presidência, mas só até organizar o club’.

Sim, o clube precisava ter um presidente, como um clube de verdade, não um ajuntamento de rapazinhos. O novo clube teria de ser grande, como o São Paulo Athletic, como o Internacional, como o Paulistano, como o Ypiranga, como o Germânia, como o Corinthian Football Club, que ia fazer o jogo de despedida no domingo, dia 4 de setembro.

O jogo final ia ser contra um scratch estrangeiro, um combinado de jogadores que tinha por base o team do São Paulo Athletic Club e fora ajustado pelo Charles Miller. O team inglês teria Rogers no goal, Morgan-Owen, que era uma espécie de líder do grupo e orador da delegação, jogando de centro-médio, e Snell de centro-a vante, basicamente o mesmo team das outras partidas. O “selecionado estrangeiro” de São Paulo ia jogar com Morrow de goleiro, Steward de centro-avante e o próprio Charles Miller de meia-direita.

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Esse jogaço a turminha do Bom Retiro não iria perder de jeito nenhum no domingo ensolarado.

Rogers, Timmis, Coleby, Snell e os demais craques do Corinthian Football Club não tinham um minuto de sossego. A programação era intensa, alvo de dezenas de home­nagens. No sábado foram passear na fazenda Santa Gertmdes, do conde Prates, que os recepcionou com galhardia e mostrou-lhes como se processava o plantio do café, o ouro verde, que tantas divisas trazia ao Brasil quanto enriquecia seus produtores e exporta­dores.

Nos banquetes a que eram convidados, corria champanhe francês. E até o cardápio, do qual constavam Roballo à la Majestic, Sauces M ouneline e à Vinagrette, Poulet à la Broche, Parfait à la Paulista, abria espaço a uma homenagem culinária especial, com o Coeur d e Filet d e B o eu f à la “Corinthians”! Por sua vez, os ingleses também se desmanchavam em gentilezas. Num dos muitos e cálidos discursos trocados entre anfitriões e visitantes, com erguimento de brindes por ambas as partes, Morgan-Owen afirmou, britanicamente emocionado, que por todos os lugares por onde já haviam passado os jogadores do Corinthian — África, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França e vários outros países — em nenhum haviam visto tanto carinho e estima, tão fidalgo acolhimento e tão calorosas gentilezas. E isso se manifestava em tudo, como bem disse o captain do team inglês, sensibilizado até mesmo com a Companhia Paulista, que para a visita ã fazenda do conde Prates colocara à disposição dos ingleses um vagão especialpullm an, confortabilíssimo, oferecendo-lhes também durante a viagem de trem um elegante almoço.

Mais ainda: os jogadores do Corinthian receberam presentes como suvenir daquela viagem que ficaria nos anais do futebol brasileiro. Morgan-Owen ganhou um canivete cravejado de rubis. Timmis recebeu um alfinete de ouro para gravata, também ornado com as mesmas pedras, e assim por diante. Uma grande festa.

Quanto à qualidade dos jogadores de São Paulo, não havia dúvida: era excelente. Os ingleses disseram que nunca haviam visto, na América, elementos de tão elevado padrão de jogo. Resistência, velocidade, total conhecimento das regras do esporte, eram o que mais os admiravam. Havia apenas um senão, a mencionar: o field . Os ingleses haviam achado o campo do Velódromo pequeno demais, devia ser ampliado em suas medidas. E o chão era exageradamente duro. Isso impedira que o espetáculo dos visitantes tivesse sido ainda melhor do que o apresentado ao distinto público.

Naturalmente o orador Owen, em seu discurso, não fez nenhuma alusão ao pequeno incidente — até porque irrelevante e mínimo — acontecido no segundo jogo do Velódromo. A bola batera na trave e, na volta, um jogador do Corinthian fizera o gol, obviamente validado pelo árbitro. Um moleque que assistia à partida, revoltado, invadiu o campo e correu na direção do zagueiro Timmis, desferindo-lhe, felizmente descalço, um certeiro pontapé no chamado baixo-ventre. A compleição de Timmis — como, aliás, de todo o conjunto inglês — e seus bons reflexos evitaram que a pancada fosse mais

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séria e contundente, e o fato foi encarado como acidente de percurso. Tão rápido como entrou no campo, o moleque se escafedeu. O público riu a bandeiras despregadas, Timmis recebeu o golpe com fleugma e o jogo prosseguiu em clima de grande cavalheirismo...

Apesar do fie ld duro e pequeno, os ingleses deram no último jogo em São Paulo outra soberba exibição no Velódromo, vencendo o scracbtestrangeiro de São Paulo por 8 tentos a 2.

Saíram de campo como estrelas de primeira grandeza. Antônio Pereira, Miguel Bataglia, Magnani e os operários da São Paulo Railway estavam roucos de tanto gritar. Que jogo! Que jogo! Que team !

À noite, um grande banquete no Majestic.No dia seguinte, às 11 horas da noite, em carro especial reservado, ligado à

composição do noturno da Central, despedem-se os ingleses, ainda com discursos, apertos de mão, abraços, lenços acenando à luz amarelenta da gare. “Adeus, amigos! Adeus, Corinthians!” (Não havia meio de o pessoal dizer o nome certo...)

No dia 7 de setembro, o navio Astúrias saía do Rio de Janeiro levando a delegação de amadores do Corinthian Football Club de retorno à Inglaterra.

Nota

1. O nome Corinthians prevalecia em todo tipo de noticiário e, como se vê, até no título da programação cinematográfica.

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O espaço enorme dado pelo jornal O Estado deS. Paulo às fotografias dos teams inglês e Pau­lista — que tinha por base a equipe do Paulis­tano, nesta foto — , por sua raridade, revela a importância que a cida­de inteira deu aos jogos no Velódromo, na visita do Corinthian Football Club. (Foto O Estado deS. Paulo)

Além de patoludos, os craques ingleses tratavam de proteger as pernas com equipamento de guerra — caneleiras reforçadas e até joelheiras. Mas eram gente fina. Na foto, o “onze” visitante aparece com apenas dez elementos, talvez por descuido ou pressa de registrar a presença deles para a posteridade. Aí também o Corinthian Football Club é denominado de os Corinthians, o que acabaria por levar o clube do Bom Retiro a adotar a voz da torcida na escolha do seu nome. (Foto O Estado de S. Paulo)

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VIIIA “torcida” que nasceu

antes do team

O novo clube do Bom Retiro tinha os cinco fundadores e um grupo de simpati­zantes, que a partir do dia I s de setembro passaram a se reunir ora na barbearia

do Salvador Bataglia, ora na confeitaria do Desidério. Nâo se pode dizer que ambos os locais fossem exatamente uma sede. Eram pontos de encontro da “torcida do team", antes mesmo de existir o team. Mas os jogadores estavam mais que “conversados”; viriam principalmente do Botafogo, do Tiradentes, do Domitila e de outros varzeanos menores. Na verdade, a regra básica para jogar no novo team era simples e objetiva: quem fosse bom de bola e não afinasse nas divididas tinha vaga na equipe.

Craques havia em toda parte: no Flor cio Ypiranga, no Campos Elyseos, no Fluminense, na Escola Americana, no Submarino, no Cruzeiro do Sul, podia-se escolher à vontade. Flavia moleques de oito, nove anos, que jogavam nos teams dos grupos escolares do Arouche, no Macedo Soares, no Sport Club São José, isso sem falar nos alunos do Colégio São Bento — daí iria surgir o clube com esse nome que toparia paradas futuras com a equipe do Bom Retiro — , do Colégio São Luís, dos padres jesuítas, em Itu, e do próprio Colégio Coração de Jesus, dos salesianos, onde estudava e jogava César Nunes, irmão de Neco. César Nunes freqüentava as reuniões na confeitaria do Afonso Desidério.

No geral, os jogadores eram muito jovens, molecotes. Começavam no terceiro, segundo time, e iam subindo.

A precariedade das instalações da “sede” e as condições em que se reuniam são fáceis de avaliar e justificam a versão, geralmente aceita, de que, embora tivesse sua fundação decidida em definitivo no primeiro dia do mês de setembro de 1910, o “clube do povo” levaria mais de uma semana para acertar os pormenores de sua organização. A coincidência de dois feriados seguidos no mês, o do Dia da Pátria, 7 de setembro, e o do dia 8, festa religiosa consagrada à Natividade de Nossa Senhora — e que o povo guardava com devoção em São Paulo — , facilitou o encontro da turma de operários. O problema da diretoria ficou resolvido. Miguel Bataglia ficou sendo o presidente. Alexan­dre Magnani, o do tílburi da Estação da Luz, assumiu a vice-presidência. Quanto aos

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demais cargos, pairam dúvidas. Antoninho de Almeida cita Salvador Lopomo como secretário, Jorge Campbell como tesoureiro, Felipe Aversa Valente como procurador, João Morino como cobrador, e João da Silva, Antônio Nunes e Carlos da Silva como membros da diretoria, mas sem cargos especificados. O jornalista Thomaz Mazzoni, na História do Futebol no Brasil, dá Carlos da Silva como primeiro-secretário, Antônio Alves Nunes como segundo-secretário, João da Silva como primeiro-tesoureiro e Salvador Lopomo como segundo-tesoureiro.

A primeira ata, como todas as demais dos primórdios do novo clube do Bom Retiro, perdeu-se nos desvãos do tempo, dando margem a que sugestivas “lendas” ocupassem o espaço dos documentos desaparecidos. Ninguém sabe onde teria ido parar a “palheta” de João Morino, que a emprestou para nela serem apoiadas as folhas de papel almaço onde Aristides de Oliveira — com tinta Pelikan e pena-mosquito? — teria traçado as primeira linhas da história do clube então nascente.

Seria real a “história” singela das velas de sebo. que o cocheiro Magnani pedira a Morino para comprar no armazém de secos e molhados do bairro, e que um vento apagara naquela noite de 5 de setembro, suspendendo a reunião?

Bem, o que importa é que o “clube do povo” precisava ter um nome e estatutos. Consta que as primeiras atas foram escritas numa linguagem em que se misturava o “brasileiro” com os italianismos que se ouviam com freqüência nas ruas, atas com sotaque típico daquele Bom Retiro reduto de imigrantes.

Mas o nome do clube — ah. isso era necessário que fosse escolhido com cuidado, um nome é um nome! O Minas Gerais, de recente fundação, em maio daquele ano, clube metidinho a besta, havia se dado o nome do porta-aviões brasileiro que estava estreando no mar cor de anil.

Sim, o clube do Bom Retiro, o clube dos operários, tinha que ter um nome — urgentemente. E também os estatutos, bem feitos, não podiam faltar. Afinal de contas, os estatutos eram como a bússola do clube na sua caminhada para a glória, para o futuro... Era preciso que todos soubessem que aquele não era um “timinho de várzea”.

A primeira diretoria tinha sido escolhida a dedo. Os mais capazes foram indicados para os cargos. Dos cinco operários que tinham tido a idéia inicial de fundar o clube, somente um, Carlos da Silva, assumira cargo na diretoria. Os demais eram sócios, como os simpatizantes que iam chegando aos poucos e aderiam ao grupo. O clube não nascia sob o signo da vaidade pessoal. Era um clube de trabalhadores, de gente disposta a trabalhar pela agremiação independente de cargo ou posição de comando.

Junto de Joaquim Ambrósio, Antônio Pereira, Anselmo Correia, Carlos da Silva e Rafael Perrone estavam, a partir de então, João da Silva, Salvador Lopomo, Miguel Bataglia, Salvador Bataglia, Alfredo Teixeira. Felipe Aversa Valente, Alexandre Magnani, César Nunes, Miguel Sottile. João Morino, Emílio Lotito, Jorge Campbell, Antônio Alves Nunes, Antônio Vizzone e Aristides de Oliveira.Esses rapazes iam escolher o nome do clube. Todo mundo podia dar palpite.

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IX“Sport Club Corinthians Paulista”!

Quem é a favor, levante o braço

A primeira proposta foi que o novo clube se denominasse “Santos Dumont”, numa patriótica homenagem ao brasileiro Alberto Santos Dumont, aeronauta e inventor,

cognominado o Pai da Aviação, nascido em Minas Gerais e cuja fama e prestígio na época estavam no auge. Em outubro de 1909 — todos estavam lembrados — , Santos Dumont batera um recorde extraordinário voando a distância de oito quilômetros em cinco minutos, naquele que seria seu último vôo como piloto!

Pensando bem, “Santos Dumont Football Club” era uma boa sugestão, até porque o clube dos rapazes do Bom Retiro pretendia também alçar vôos altos e gloriosos.

Mas Antônio Pereira tinha outra idéia, enaltecendo da mesma forma um brasileiro ilustre, o campineiro Carlos Gomes, imortal compositor, autor de O Guarany, de Lo Schiavo, da Fosca, soberbas óperas que enlevavam o coração e a alma, além de belas modinhas românticas que eram verdadeiras “coqueluches” e faziam parte do repertório obrigatório de saraus e tertúlias lítero-musicais. Quantas vezes, nas sessões da Sociedade Dramática e Musical Luso-brasileira, na rua da Graça, não se tinham apresentado gentis senhorinhas cantando Foi meu Amor um Consolo, Suspiros d Alma, e, com mais freqüência, a conhecidíssima Quem Sabe?, que emocionavam a platéia!

Então por que a agremiação do Bom Retiro não podia chamar-se “Carlos Gomes Sport Club”, ou coisa parecida?

O nome de Carlos Gomes soava bem, era uma proposta sagazmente sacada pelo Pereira, que talvez pretendesse com ela fixar ainda mais o apoio da “italianada” do bairro ao clube que nascia. Carlos Gomes se fixara na Itália, era brasileiro, porém escrevia as letras das óperas em italiano, o que era perfeitamente normal e comum. Mas recebia críticas por isso. Muitos o acusavam de ser um autor... “italianizante”! A “italianada” curtia Carlos Gomes. Talvez o nome de “Carlos Gomes Football Club” pegasse, se nesse mesmo instante Joaquim Ambrósio não houvesse pedido a palavra e um minuto de atenção: “Pessoal! Quero dar minha sugestão.”

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Joaquim Ambrósio foi direto. Relembrou com emoção as imagens deslumbrantes, e ainda bem nítidas na lembrança de todos, do team inglês que acabara de passar por São Paulo, dando verdadeiras exibições de categoria futebolística. Relembrou as lições de cavalheirismo que haviam deixado indelevelmente no Velódromo. Citou as goleadas. Que goleadas! Quinze goals em três partidas, isso em São Paulo, sem falar nas goleadas no Rio de Janeiro! Aquilo não era um team. Aquilo era um “fenômeno” atlético! “Nosso clube”, bradou Joaquim Ambrósio, suando por todos os poros do rosto afogueado, “tem que ser igual aos Corinthians. Ou isso, ou nada!”

Ambrósio fez uma pausa, sob o silêncio dos companheiros. Tirou do bolso um papelzinho, onde havia feito algumas anotações, e deu o xeque-mate:

“Pessoal, tem mais um fato que acho importante de dizer... O Corinthians inglês também foi fundado debaixo da luz dum lampião de gás!”

Um sopro de emoção arrepiou os pelos dos braços da moçada. Dava para ouvir as asas das mariposas rodando em volta da luz azulada no recinto.

Esse pormenor da vida do clube inglês não era papo furado. De fato, numa saleta menor que a barbearia do Salvador Bataglia, um comodozinho acanhado, num prédio em Patemoster Row, apenas uma mesinha, nem havia cadeiras para todos, os ingleses sentavam-se em caixas de cerveja, num lugar assim de Londres nascera o Corinthian Football Club inglês, e naquela primeira reunião também um lampião de gás iluminava a sala.

Um lampião de gás!Joaquim Ambrósio passou o lenço xadrez na testa. E arrematou:“Eu sugiro que nosso clube se chame Sport Club Corinthians Paulista. Esta é a minha

sugestão. Este é meu pensamento. Quem estiver de acordo, levante o braço!”Ouviram-se aplausos. Depois, contaminadas pela mesma concordância, levanta­

ram-se as mãos para o alto, num gesto de júbilo e apoio.Menos Antônio Pereira. Antônio Pereira continuava contra. Continuava sendo, por

fora, “Carlos Gomes”. Permaneceu de mãos abaixadas, como se estivessem engessadas. Mas por dentro dele também já batia um coração corinthiano.

Prevaleceu a vontade da maioria. Assim nasceu o Sport Club Corinthians Paulista, com o 5 a mais que ficaria para sempre. Então Antônio Pereira sorriu — e também ele aplaudiu o nome escolhido. Daí a pouco ele pediu licença, precisava sair. Tinha que ter uma conversa com um empregado que trabalhava na casa do doutor José Rubião. Rubião, o zagueiro, que tinha sido do Paulistano e agora estava jogando e ajudando a dirigir a Associação Athletica das Palmeiras.

Antônio Pereira ia cuidar dos estatutos do Sport Club Corinthians Paulista.

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XA data da fundação. O primeiro estatuto.

Poliesportivo e com biblioteca

O mais antigo texto de estatutos do Sport Club Corinthians Paulista que se conhece data de 1913 e foi aprovado numa assembléia geral no dia 11 de julho daquele

ano. Esse documento — que obviamente foi exigido para que o clube pudesse se filiar à Liga Paulista de Futebol — dirime qualquer dúvida sobre a data oficial da fundação do Corinthians. Ele estabelece o dia “l s de setembro de 1910” como o da fundação do “Sport Club Corinthians Paulista, com número ilimitado de sócios, que tem por fim a educação physica e a propaganda do football, ping-pong, etc.”.

Vê-se que os fundadores e os primeiros dirigentes da agremiação conhecida como “clubdos operários” não pretenderam simplesmente organizar um time de futebol, como já havia tantos, inclusive formados pelos “petizes” de colégios e grupos escolares, a exemplo do Barão de Tatuhy, do Collégio João de Deus, das Escolas 7 de Setembro, que disputavam o campeonato da Liga Gymnasial e onde se revelavam craques de primeira linha, como o franzino e lépido Aphrodísio Camargo Xavier, que por sua agilidade espantosa seria conhecido nos gramados como o melhor ponta-direita de sua época, atuando com o apelido de Formiga.

O Sport Club Corinthians Paulista não tinha em vista apenas o futebol. A “educação physica” era um objetivo estatutário. O Corinthians nasceu com vocação poliesportiva. Não foi à toa nem por acaso que a primeira taça conquistada pelo clube não foi erguida num campo de futebol, e sim ao fim de uma corrida de pedestrianismo na qual foram vencedores três “athletas corinthianos”!

Mais que isso: os estatutos de julho de 1913 já estabeleciam que “de acordo com o estado financeiro, o club terá uma biblioteca, aceitando donativos dos associados, e organizará, quando possível, matchs, pic-nics e saraus”. Esportes, educação física, saraus, biblioteca! O “club dos operários” tinha horizontes largos.

Segundo os estatutos, podiam se associar ao clube “indivíduos de bons costumes, não se observando nacionalidade, religião ou política. Todo sócio effetivo pagará

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adiantadamente a mensalidade de 3S000; o sócio aceito pagará, além da mensalidade, uma jóia de 5$000. O sócio admitido anualmente dois meses antes de começar o campeonato será dispensado do pagamento da jóia. É dever dos associados não ofender com palavras, gestos ou manifestações, em campo ou na sede, os consócios. Fora do ambiente do clube é vedado ao associado ofender a moral pública, prejudicando o nome da agremiação. Os sócios que se ausentam da cidade de São Paulo devem comunicar o fato à diretoria do clube, para que as mensalidades sejam suspensas enquanto os associados estiverem ausentes. No seu regresso, comunicada a diretoria, continuam a gozar de seus direitos sociais”.

A diretoria do clube era formada por um presidente, um vice-presidente, um primeiro e um segundo secretários, um primeiro e um segundo tesoureiros, três fiscais, três diretores esportivos e um procurador. O mandato da diretoria era de um ano e todos os cargos de diretor exercidos sem nenhuma espécie de remuneração.

As arrecadações do clube eram recolhidas a um estabelecimento bancário. A tesouraria mantinha em seu poder a quantia de 200 mil réis para pagamento de despesas urgentes. Nenhum pagamento superior a 100 mil réis podia ser feito pelo tesoureiro sem prévia autorização da diretoria.

Podiam ser suspensos por tempo indeterminado, e até mesmo expulsos, os sócios que “directa ou indirectamente, porém conscientemente, prejudicarem o club moral ou pecuniariamente, os que promoverem desharmonia entre os sócios ou procurarem afastá-los do club...". O sócio diretor perdia seu cargo se deixasse de comparecer, sem causa justificada, a duas sessões consecutivas da diretoria. Duas vezes por ano realizavam-se assembléias gerais ordinárias, sendo os associados convocados por circulares.

As eleições da diretoria eram feitas sob a supervisão de quatro escrutinadores, estranhos a ela, com cédulas impressas ou manuscritas, somente podendo votar os sócios que tivessem assinado o livro de presença.

Competia aos diretores esportivos acatar toda reclamação do captain ou dos jogadores e resolvê-las segundo as circunstâncias.

Havia nos estatutos um capítulo especial, que versava sobre as funções do captain. “Os captain sdos team sserão nomeados ou dispensados pelos jogadores dos respectivos teams, em reunião convocada pela diretoria para esse fim. Os captains farão parte da diretoria. Aos captains compete: comparecer pontualmente aos trainings e matchs e dirigir os jogos. Avisar com três dias de antecedência os jogadores que tiverem de tomar parte em matchs . Fiscalizar o procedimento dos jogadores, admoestá-los ou suspendê- los quando assim exigir a conduta dos mesmos, participando incontinenti à diretoria as ocorrências, por escrito. Organizar os teams, cumprir as ordens da diretoria, não permitir discussões em campo, ficando bem patente que eles são os únicos responsáveis e os únicos senhores dos teams quando em cam po...”

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O estabelecimento oficial da data de “l 2 de setembro de 1910” nesse antigo estatuto de julho de 1913, ano em que o Sport Club Corinthians Paulista passava a disputar um lugar entre os “grandes do futebol”, não é aleatório".

É evidente que a data de “l s de setembro de 1910” poderia ser contestada — como ocorreu algumas vezes — se se admitisse que o nascimento do Sport Club Corinthians Paulista teria ocorrido “por inspiração da vinda do Corinthian Football Club” — o Corinthians Team, como os jornais da época publicavam — para disputar jogos no Rio e em São Paulo. De fato, nada mais improvável que cinco operários, reunidos numa esquina da rua dos Imigrantes, sem quaisquer recursos, tivessem fundado o clube do Bom Retiro “em cima” da chegada, em fins de agosto, da equipe britânica.

A data de 1Q de setembro de 1910 vale se se admitirem os fatos como eles devem ter ocorrido, sem nenhuma dúvida: o “clube dos operários” era uma idéia, um projeto, um sonho que vinha sendo gestado fazia vários meses. Estava em ebulição na cabeça dos rapazes do Bom Retiro bem antes da chegada do Corinthian Football Club inglês. Conversavam a respeito, trocavam idéias, consultavam amigos e conhecidos, assunta­vam o pessoal que jogava no Botafogo da várzea do Tamanduateí e nos demais clubes de outras várzeas da cidade. Hoje parece bastante claro que o primeiro team armado pelo Sport Club Corinthians Paulista não foi feito de afogadilho, até porque os moços desafiaram logo na primeira partida um “leão” da várzea, um “bicho-papào” da zona oeste da cidade de São Paulo.

É fácil concluir que, independente da passagem do Corinthian inglês por São Paulo, independente de sua vinda ao Brasil, o “club dos operários” ia ser fundado no dia 1Q de setembro de 1910, como foi de fato, lá no Bom Retiro, à luz dos lampiões, ou de velas, ou de lamparinas, ou de um simples palito de fósforo que fosse. Se o Corinthian Football Club não tivesse emocionado tanto os rapazes do bairro, talvez o nome do novo clube outro fosse... Mas no ano do cometa Halley alguma coisa havia decidido, e as circun- tâncias imponderáveis determinaram, que o “mais brasileiro” dos clubes brasileiros teria um nome inglês — cujo significado não era fundamental saber e nem importava tanto— e a escolha desse nome, feita democraticamente na primeira noite daquele mês de setembro, era também a opção que assumia como modelo uma equipe inglesa valente, simpática, que deslumbrara os ricos almofadinhas e os pobres de mãos ásperas, levando alegria às arquibancadas e às gerais da cidade.

Os fatos se encaixam assim: fundado no dia 1Q de setembro — o dia da decisão definitiva dos cinco operários — o clube viveu nos dias subseqüentes, inclusive apro­veitando dois feriados seguidos (7, Dia cla Pátria, e 8, Natividade de Nossa Senhora, feriado religioso na cidade), os acertos e ajustes típicos das pequenas agremiações de várzea: o training, a “peneira”, para avaliar quem ia jogar no primeiro quadro, quem ia jogar no segundo, quem ia jogar no terceiro; talvez a primeira “disputa cordial” entre os captains Lepre e Anselmo, a escolha da cor das camisas (branca, com as golas e os punhos das mangas pretos), a corrida para mandar fazer os calções (os primeiros deles,

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também brancos) de sacos de farinha vazios arrumados com os “saqueiros” espanhóis das beiradas do Mercadão, a “vaquinha” e a compra da primeira bola de capotào, o acerto do aluguel do campo do Lenheiro, a capina do mato no terreno, as traves de bambu, e, finalmente, o orgulhoso “onze” caminhando a pé pelas ruas da cidade, seguido pelo povinho-miúdo com o coração na boca, operários fortes, crianças de pé no chão, o tílburi do Magnani carregando na frente o saco das camisas, a caixa de cânfora e beladona, alguns caronas, e o Miguel Bataglia, magrinho, mas de peito estufado, o primeiro presidente, e uns estudantes da Poli, e uns enfermeiros da Escola de Pharmacia de folga naquela tarde, e aquelas “intalianignas disgraçada de bonita que tinham duas rosa na face cor-de-rosa espiando nas carçada”, e os “carvoeiros” e os “costuradores de sacos furados” da zona do Mercado, a “espanholada de sangue quente”, aquela gentinha “pimenta-malagueta” da rua Caetano Pinto e da rua Carneiro Leão, e a “portuguesada” que transportava couve-flor, nabos, brócolis e “murinhanas” nos bondes “caradura”, aquele infinito mundo de pessoas com roupa cheirando a tanque com sabão de cinza, olhando com os olhos surpresos o “onze de meninotes” pomposamente chamado Sport Club Corinthians Paulista — presunção e água benta é que não faltam! — varando as ruas de São Paulo para encarar de frente, para o que desse e viesse, o traquejado, o valoroso, o empombado União da Lapa.

Uma das grandes modificações dos estatutos do Sport Club Corinthians Paulista ocorreu e foi aprovada em assembléia geral extraordinária no dia 12 de fevereiro de 1916, O clube aperfeiçoava sua organização e preparava-se para seu grande destino. Definia mais claramente suas finalidades e mantinha o projeto de uma biblioteca para os sócios: “O Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1Q de setembro de 1910, com sede nesta Capital, será regido pelos presentes Estatutos, sendo seus fins: cultivar os diversos ramos do Sport. com especialidade o Foot-ball. Desenvolver intellectualmente os seus sócios para o que organisará de conformidade com os seus recursos um gabinete de leitura. Promover diversões dedicadas às famílias dos sócios. Manter uma sede onde os seus sócios possam reunir-se todas as noites para diversões lícitas a critério da Directoria..

Sobre os jogadores e os diretores esportivos, os novos estatutos de 1916 determi­navam o seguinte: “Logo após a posse da Directoria eleita, esta convocará uma reunião dos seus team s( 1Q e 22) para proceder-se a eleição de 3 Directores Sportivos e respectivos captains de cada team. Esses membros serão eleitos por um anno. Todos as resoluçõis de tais membros estão sujeitas à apreciação da Directoria. Os Directores Sportivos incumbir-se-ão de organizar os teams e festas sportivas que o Club der. Aos captains compete não somente a direcção technica do jogo, como auxiliar os referees na sua manutenção do máximo respeito e cortezia no campo. Qualquer falta commetida pelos jogadores será communicada à Directoria dentro do prazo máximo de 3 dias pelos Directores Sportivos ou captains. Os jogadores do 1Q e do 2- teams serão isentos de

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qualquer contribuição quando considerados effetivos nesses teams pelos Directores Sportivos. Em caso de faltas injustificadas de jogadores em matcbs ou trainings, ficam elles sujeitos às penas que lhes sejam impostas pela Directoria. Jogador algum poderá comprometter-se com clubs extranhos sem prévio consentimento da Directoria. Os jogadores recorrerão à Directoria todas as vezes que julgarem injustas as resoluções dos captains ou Directores Sportivos”.

Os estatutos determinavam que somente podiam ser admitidas como sócios pessoas maiores de 18 anos, apresentadas por associados quites com o clube. A admissão dependia de aprovação após sindicância e parecer de uma comissão especialmente nomeada pela diretoria do clube. Considerava-se dever do associado “elevar o Club com o seu proceder moral dentro ou fora do recinto social”. Além dos sócios efetivos normais, o clube estabelecia: “sócios honorários, aqueles que, a juizo da assembléia geral, sendo pessoas extranhas ao Club, lhe tenham prestado relevantes serviços; sócios beneméritos, pessoas pertencentes ao quadro social e que também tivessem prestado relevantes serviços ao clube; e os sócios extranumerários, ou extraordinários, que se tornaram jogadores do clube”.

Uma vez por semana a diretoria do clube se reunia para resolver assuntos da agremiação. O artigo 22 dizia: “O Club jamais poderá dissolver-se enquanto houver 10 sócios quites”.

O artigo 23 definia o fardamento oficial: “O fardamento como bandeira, distintivos e etc. obedecerão às cores preto e branco, a) Camisa fechada por cordões pretos, tendo gola e punhos assim como monograma no peito pretos, b) Calções pretos”.

Os estatutos de fevereiro de 1916 eram assinados por João da Silva, Domingos Império e Alexandre Magnani. A respectiva ata da assembléia foi redigida por Heitor da Rós, que era na época o 2Q secretário do clube. A assembléia encerrou-se às 24 horas.

Sabe-se que antes dos estatutos de 1913 houve pelo menos um outro — o primeiro deles, definindo o pensamento dos “fundadores”. Nos primeiros dez dias de setembro de 1910 o clube tratou de se organizar ainda que precariamente. Antônio Pereira, que fazia parte do grupo dos “cinco operários”, havia pintado a residência do doutor José Vicente Álvares Rubião, de família tradicional paulistana, e ali ficara conhecendo e se tornara amigo do copeiro que servia à família. Esse copeiro não jogava bola, mas como trabalhava para tais pessoas tinha um certo relacionamento de nível e até carregava os uniformes dos jogadores do Club Athletico Paulistano. Era uma espécie de roupeiro do team. Isso o deixava feliz e orgulhoso. O pintor Pereira contou ao copeiro a novidade, o Corinthians. Agora o clube existia e precisava de um estatuto, como o Germânia tinha, o Internacional tinha, o Paulistano tinha... “os grandes” tinham! Antônio Pereira era pintor de mão cheia, mas não sabia fazer estatutos. Estatutos eram tarefa de doutor acostumado com artigos, parágrafos e outros bichos legais.

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José Rubião era um rapaz lido, rico, viajado e vivido nas coisas do esporte. Ex-back do Paulistano, se afastara do clube em 1905, na grande crise que privou o 11 club do Velódromo” de seus principais campeões, e fora atuar como zagueiro e dirigente da Associação Athletica das Palmeiras, uma agremiação que nascera da união de clubinhos de rua, localizada na região da cidade conhecida como as Palmeiras — território que compreendia amplas glebas do atual bairro de Santa Cecília cortado pela alameda Barros, pela rua Conselheiro Brotero, pela avenida Angélica (na época, um matagal) e pela rua das Palmeiras, que manteve o nome como reminiscência geográfica3. O bairro das Palmeiras era tudo aquilo e mais um pouco. No tempo em que o Pereira pintou a residência dos Rubiões, a maior parte das áreas de São Paulo era delimitada mais pela imaginação e pelo apelido do que pelo rigor do metro quadrado.

O doutor Rubião era o que se chama, ainda hoje, de “prócer” esportivo. Em ocasiões especiais, o “prócer” usava cartola. Daí a alcunha, que pegou. Por intermédio de seu copeiro, o doutor Rubião ficou sabendo que os rapazes do Bom Retiro queriam estatutos para o clube que tinham acabado de fundar, achou a idéia correta, sugeriu que o copeiro mais o Antônio Pereira fossem procurar um outro “prócer” e “cartola” seu amigo antigo, também do Paulistano, jornalista de O Estado d e S. Paulo , uma figura dinâmica do esporte paulista, homem influente nos bastidores da bola, atleta, que às vezes atuava como referee nas partidas e se sobressaía pelos conhecimentos das regras do “esporte bretão”. Para muitos, ele era uma “eminência parda” do futebol.

Chamava-se Mário Cardim.

Mário Cardim, sempre bem informado, sabia do nascimento do Corinthians, um11 club de operários”, da escolha do nome, da eleição de Miguel Bataglia para presidente. Também ouvira dizer que muitos funcionários ingleses da São Paulo Railway tinham recebido com simpatia a idéia de se dar ao clubinho do Bom Retiro o nome dum grande time amador inglês. Receber com simpatia significava, na prática, que os trabalhadores das oficinas da Railway, no bairro da Lapa, podiam contar com a colaboração de um Boyes, um Banks, um Steward na hora em que fosse passada a lista da “vaquinha” para comprar fardamento e outras coisinhas de que um clube de verdade precisa para não morrer sufocado em apenas alguns meses.

Diante do Mário Cardim, Pereira, que havia trocado seu macacão de trabalho por um terno com colete feito pelo alfaiate Bataglia, segurava a palheta com as mãos na altura do umbigo e entrou direto no assunto:

“Doutor Cardim, dá pro senhor fazer um estatuto de clube grande para o Corin­thians?” “Posso tentar”, falou Cardim. “Foi o Rubião que mandou você me procurar?” “Sim, senhor.” “Então vou dar muita risada se um dia vocês derem uma surra no team das Palmeiras.”

O doutor Mário Cardim desatarrachou a tampa dum vidro de tinta azul Pelikan, enfiou uma pena-mosquito fininha na caneta de madeira, passou a ponta da pena de metal na língua úmida (como fazia todo mundo antes de começar a escrever alguma

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coisa importante com pena nova sem uso), apoiou na escrivaninha aberta uma folha dupla de papel almaço em branco, e rascunhou4. . . “No dia l 2 de setembro de 1910. Assim foi feito o primeiro estatuto do Sport Club Corinthians Paulista.

O tempo e a desmemoria consumiram suas páginas.

Mais de oitenta anos depois, o Sport Club Corinthians Paulista é denominado nos atuais estatutos simplesmente como Corinthians, “sociedade civil, de fins não econômi­cos, que tem por finalidade, em proveito de seus associados, proporcionar a prática de esportes em geral e promover a realização de reuniões sociais, artísticas e culturais. O quadro social é composto de sócios titulados (fundadores, grandes beneméritos, bene­méritos, atletas laureados, honorários, patrimoniais, benfeitores e remidos), sócios contribuintes (portadores de títulos patrimoniais, dependentes e extramunícipes), sócios militantes e sócios de futebol. Estatutariamente, todos têm o direito de votar e serem votados para o Conselho Deliberativo. A mensalidade do sócio torcedor não pode ultrapassar 2 por cento do salário mínimo regional e a renda reverte para o Departamento Profissional de Futebol. O Corinthians tem cinco poderes: a Assembléia Geral, consti­tuída pelos sócios maiores de 18 anos de idade e admitidos há mais de 2 anos, a qual se reúne de quatro em quatro anos, no mês de janeiro, para eleger os membros do Conselho Deliberativo, podendo reunir-se extraordinariamente a qualquer tempo. O Conselho Deliberativo, soberano, que escolhe a diretoria do clube, inclusive conselheiros, presi­dente e vice-presidente. O Conselho de Administração, conhecido como Cori, que fiscaliza a administração da diretoria. O Conselho Fiscal, que examina a escrituração geral do clube, analisando os respectivos comprovantes pelo menos uma vez por mês. A Diretoria, que se reúne ordinariamente uma vez por quinzena ou extraordinariamente quando convocada pelo presidente, da qual fazem parte o presidente, um vice-presi­dente da Diretoria, nove vice-presidentes titulados e diretores. O Corinthians tem um vice-presidente de Futebol, um vice-presidente de Finanças, um vice-presidente de Patrimônio, um vice-presidente de Esportes Terrestres, um vice-presidente administra­tivo, um vice-presidente de Esportes Aquáticos, um vice-presidente de Negócios Jurídi­cos, um vice-presidente social e um vice-presidente de Propaganda. O presidente pode ser reeleito uma única vez consecutiva”.

Nas Disposições Transitórias do atual estatuto social consta, no artigo 140: “Será construído um estádio compatível com a tradição e grandeza do Corinthians, devendo o assunto ser objeto de deliberação especial do Conselho Deliberativo”. Diz o artigo 142: “Deverá a Diretoria providenciar junto às autoridades competentes a criação de Facul­dade de Educação Física no Parque São Jorge. Determina o estatuto que o pavilhão do Corinthians e seu uniforme terão cores branca e preta. O pavilhão será branco e no centro conterá o atual distintivo ou escudo, tendo, por fundo, um salva-vida, uma âncora e dois remos. O uniforme será de calções pretos, camisa branca e o distintivo de cores

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vermelha e preta à altura do coração. O pavilhão, a flâmula, os uniformes e os distintivos do Corinthians deverão estar de acordo com os desenhos aprovados pelo Conselho Deliberativo, sendo que o distintivo ou escudo conterá a cor vermelha. Os símbolos representativos são de propriedade e uso exclusivo do Corinthians, mas o nome do clube não sofrerá restrição a seu uso para dar denominação a bairros, localidades ou municí­pios que representar, por parte de outra associação, e homenagens que não visem vantagem econômica, a critério da Diretoria da agremiação”.

No caso de uma hipotética dissolução do Corinthians — o que somente poderia ser decretado pelo Conselho Deliberativo — todos os seus bens passariam à propriedade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, mas todas as taças, troféus, medalhas, diplomas e outros prêmios conquistados em lides esportivas, bem como as lembranças, homenagens, álbuns, retratos, fotografias, tudo quanto lembra a vida desportiva do clube e os respectivos móveis, molduras e estojos seriam obrigatoriamente entregues ao Museu Paulista, com cláusula de inalienabilidade e impenhorabilidade.

A última reforma dos estatutos data de 1984 e dela foi encarregada uma comissão formada por Antônio Aristides, Antonio Carlos Soveral. Boaventura Farina, Elmo Fran- chini, José Borbolla, Marcus França Torres, Max Wasserstein e Rubens Approbato Machado.

Por deliberação da assembléia geral extraordinária de 23 de dezembro de 1926 foi conferido o título de Grande Benemérito a Alfredo Schurig. O Conselho Deliberativo, em 29 de dezembro de 1954, conferiu o título de Sócio Patrono a Alfredo Ignácio Trindade. O Conselho Deliberativo conferiu, em 28 de novembro de 1977 e êm 26 de abril de 1983, os títulos de Grande Benemérito, respectivamente, a Vicente Matheus do Valle, Antônio Ermírio de Moraes, José Ermírio de Moraes Filho, Lourenço Fló Júnior e Wadih Helu, como homenagem e preito de gratidão, “devendo esses galardões ser consignados no Estatuto Social enquanto existir o Corinthians”.

Notas

1. Na época da fundação do Corinthians, era comum a convocação das equipes ser feita no dia do jogo, pelos jornais, com avisos ao pé do noticiário de “Sports”, como este: “O captain pede o compareci- mento de todos os srs. jogadores...”

2. Outras datas que aparecem mencionadas, às vezes, como as da fundação do clube: 5 ,7 e 10 de setembro de 1910.

3. A Associação Athletica das Palmeiras nada tinha a ver com a atual Sociedade Esportiva Palmeiras — o Palmeiras foi fundado em 1914 com o nome original de Palestra Itália, ao passo que a A. A. das Palmeiras era anterior à fundação do Sport Club Corinthians Paulista. A Associação Athletica das Palmeiras reunia elementos das famílias Levèfre e Collet, chegou a ter grande prestígio, era um dos mais temíveis adversários do Paulistano e ficou ainda mais reforçado com a ida dos melhores jogadores do Paulistano para suas fileiras.

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4. Mário Cardim era um factótum, pau-para-toda-obra, figura que se ligou ao desenvolvimento do futebol e demais esportes em São Paulo e com forte influência nos outros Estados. Foi, dizem, o primeiro jornalista a descrever uma partida de futebol nos jornais e traduziu para o português, por volta de 1902, livros de regras e de técnica de futebol redigidos em inglês, dos quais, até então, não havia nenhuma tradução no Brasil. A informação de que Mário Cardim foi quem redigiu o primeiro estatuto do Sport Corinthians Paulista é plausível e foi recolhida pelo grande corinthiano e ex-prefeito de São Paulo, Wladimir de Toledo Piza, que a ouviu de alguns dos sócios fundadores do clube.

Batista Boni, João Collina e André Lepre provaram, logo em 1913, que o Corinthians não era bom apenas no futebol. Ganharam a primeira taça numa corrida pedestre. O Corinthians nascia poliesportivo. Lepre era cunhado de Antônio Pereira, um dos cinco primeiros idealizadores do Corinthians. (Foto Arquivo Corinthians)

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A biblioteca do Corinthians, que era projeto já em 1913, tomou-se realidade e constitui hoje um dos maiores patrimônios do clube graças à doação que Lido Piccinini fez de todos os seus valiosos livros para enriquecimento cultural da agremiação. Em vida, Lido Piccinini deu, com seu jornal tablóide, O Espotie, uma das mais vibrantes contribuições da imprensa esportiva para o desenvolvimento do esporte no Brasil. E completou sua obra cultural magnífica com a doação de sua biblioteca particular para o antigo “clube dos operários”, que ele tanto amou e enalteceu. A Biblioteca Lido Piccinini, no Parque Sãojorge, tem valor inestimável. (Foto Arquivo Corinthians)

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XIOnze ídolos entram em campo.

Uma derrota gloriosa

T ime de várzea não treina, joga. A várzea sempre foi a pátria da improvisação e há quem diga que o Sport Club Corinthians Paulista, como autêntico e opimo fruto da várzea, partiu para o seu primeiro jogo com a cara e a coragem. Sem treino

preparatório nenhum.Os comentaristas esportivos da época reconheciam — e até escreveram isso quando

o Corinthian inglês estivera em São Paulo — que, enquanto os jogadores estrangeiros não descuravam de sua forma física nem durante a viagem marítima, treinando no tombadilho do Aragón, os jogadores brasileiros detestavam o training, e é claro que os jornalistas se referiam especialmente aos futebolistas dos clubes “grandes”. A várzea, então, nem pensar nisso. De fato, ao longo de sua história ou algo com isso parecido, o futebol varzeano brasileiro sempre ocupou seu tempo em jogos de verdade. Antes que o metro quadrado de solo paulistano passasse a custar o preço de uma pepita de ouro, antes que a fo/zYzimobiliária derrubasse todas as traves e todas as bandeirinhas do com er por este mundinho de Deus, jogador varzeano era sinônimo do atleta voluntário que jogava no sábado à tarde, no domingo de manhã e no domingo de tarde. Em três times diferentes, defendendo três camisas. Sempre foi assim, normal.

Daí que deve ter sido mais ou menos nessa base que o Sport Club Corinthians Paulista começou sua carreira futebolística, formando um time a partir da experiência sabida de cada jogador. Conheciam-se os craques, os “bons de bola”. E estes haviam sido convidados e aceitaram jogar no novo clube. Mas o Corinthians não estava formando apenas um time, e sim três times. E nesse caso não custa admitir que tenha ocorrido algum training preparatório, talvez no dia 7 de setembro, ou no feriado do dia 8. Um training para formar os três grupos, disputas sem camisa, ou com camisas escolhidas ao léu, ou um time com-camisa e um time sem-camisa, como ainda se vê, quase um século depois, à beira do asfalto da cidade. Um training para, inclusive, amansar certas rivalidades pessoais, apresentar os do Botafogo aos do Domitila e aos do Pary, ajustar temperamentos, havia ali gente que vivia pegando no pesado e outros com o privilégio de estudar em boas escolas, a vida um pouco mais mansa.

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Mas se houve esses trainings, ninguém fez ata nem está vivo para contar.

O fato mais comprovado e confirmado por várias penas e depoimentos verbais é que houve o primeiro jogo de verdade. E esse jogo foi contra o União da Lapa.

O dia é incerto. A incerteza vem de algumas imprecisões de datas que se publicaram a respeito dessa partida memorável, que, todavia, não resistem a uma simples conferên­cia do calendário. Há uma versão de que a diretoria do Sport Club Corinthians Paulista fez realizar-se um “training, ao qual compareceu grande público, no Bom Retiro, com duas equipes”. A equipe A tinha como capitão Rafael Perrone e a equipe B era capitaneada por Anselmo Correia. Os dois captains, portanto, faziam parte do grupo de cinco operários que haviam tido a idéia inicial de fundar o clube. Nada mais normal. Ocorre que a data desse training é mencionada como sendo o dia 14, “domingo”1. Já outras fontes citam a mesma data, “domingo, 14 de setembro”, como sendo aquela em que se realizou o “primeiro jogo, contra o União da Lapa”. A dúvida começa a tomar corpo a partir do momento em que se verifica que o dia 14 de setembro de 1910 não foi “domingo”, e sim uma belíssima quarta-feira, dia de batente duro, e nessas circunstâncias é muito improvável que um clube que precisou fazer “vaquinha” para comprar a bola, um clube pobre, de “operários”, tivesse condições de fazer treino em dia útil da semana. É possível, naturalmente, que tenha havido um bate-bola, formado por jogadores que estudavam no Archidiocesano, no Coração de Jesus, no Gymnásio do Carmo, que estavam “testando” o campo recém-capinado do Bom Retiro . Podia ter sido até um “reconhecimento do gramado” por parte de alguns jovens estudantes, entre eles os irmãos César e Manuel Nunes. Realmente, César, que ajudara a fundar o clube, jogaria no primeiro quadro do Corinthians desde o princípio. E Manuel Nunes, o Neco, começou jogando no segundo quadro. Ambos vinham do Botafogo.

Um depoimento de Antoninho de Almeida dá o dia 10 de setembro — “sábado” — como aquele em que se enfrentaram o Sport Club Corinthians Paulista e o União da Lapa3. O desafio ao União tinha sido, à primeira vista, uma verdadeira temeridade. O União era uma excelente equipe. Devia golear o adversário. Realmente, ganhou o jogo. Mas por um resultado tão magro, tão suado, tão penoso, que quando a partida terminou a sensação da torcida de ambos os lados era de que se o vento fosse mais forte, se tivesse batido uma brisa na hora certa, o placar teria virado o resultado e dado a vitoria à garotada do Bom Retiro. Não houve briga. A camisa do Corinthians era modestamente branca — a cor que não desbota — e ainda não ostentava nem mesmo o primeiro distintivo do clube, que se resumia a quatro letras entrelaçadas: SCCP.

Esse jogo, na Lapa, foi assistido, ao que tudo indica, por vários estudantes da Politécnica, que utilizavam as oficinas da São Paulo Railway, muito bem montadas e com equipamentos importados, para realizar testes de engenharia mecânica referentes ao currículo escolar. Todos estavam admirados com o “clube dos operários”. O União da Lapa não era um time qualquer. Mais tarde chegaria à Segunda Divisão da Associação Paulista de Esportes Athleticos e em suas fileiras atuavam jogadores do nível do

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magnífico Américo Fiaschi, um rapazinho de apenas 14 anos, nascido na cidade paulista de São Carlos, que tinha chute preciso e foi comparado a Formiga, Agnello e Caetano, e apontado com um dos melhores extremas-direitas do scratch paulista.

Américo Fiaschi percebeu que aquele time que havia enfrentado não era apenas do Bom Retiro. Estava destinado a ser o time da cidade. E muito mais que isso. Américo Fiaschi um dia sairia do União da Lapa, passaria por vários clubes da várzea, e em 1913 vestiria, também ele, a camisa branca corinthiana que respeitou desde o princípio, mas depois passou também a amar.

O Sport Club Corinthians Paulista entrou em campo com onze jogadores e saiu de campo com onze ídolos. O primeiro time do Corinthians: Valente, Perrone (capitão) e Atílio; Lepre, Alfredo e Police; João da Silva, Jorge Campbell, Luiz Fabi, César Nunes e Joaquim Ambrósio.

As camisas foram lavadas, na primeira vez e nas vezes subseqüentes, durante meses, pela irmã do centro-médio Alfredo, que usava sabão de cinza em pedra feito em tacho de ferro e costumava deixar as peças em molho de anil, para alvejar. Antes de as camisas esgarçarem pelo uso, o preto das mangas e da gola tinha esmaecido e virado uma espécie de azul fajuto. Mas para todos os efeitos estatutários o uniforme continuava sendo preto e branco. Em todo caso, Miguel Bataglia já tinha tomado as providências para que o time tivesse um uniforme com tecido mais digno e de melhor qualidade. Miguel Bataglia não ia poder continuar mais tempo na presidência. Quinze dias, um mês, se tanto. Dizem que ficou três meses. Outros afirmam que não passou de quinze dias. Mas nas suas mãos o Sport Club Corinthians Paulista ganhou a certidão de nascimento e o primeiro teto sob o qual se abrigou, e em sua casa (ou em sua alfaiataria) fora aberto um espaço para o sonho e para a utopia. Porque o Corinthians no começo foi uma utopia.

Dos cinco pioneiros, um, Joaquim Ambrósio — que sugerira o nome Corinthians Paulista — jogava na ponta-esquerda. O outro, Rafael Perrone, era zagueiro e captain, Ele escalava o time. César Nunes, também sócio fundador, tinha 17 anos. Aos 10 aprendeu a jogar futebol com os alunos do colégio dos salesianos, mas fazia sete anos que não participava de nenhuma equipe. Foi dos primeiros a aderir ao clube do Bom Retiro trazendo seu irmão menor, Manuel, então com apenas 15 anos. Manuel — o Neco— começou jogando no segundo quadro. César entrou direto no primeiro, atuando na meia-esquerda contra o União da Lapa, e depois indo para a ponta-esquerda, quando formou “numa das mais homogêneas linhas de forw ards de São Paulo”.

César nunca chegou a ser um grande craque, uma estrela de primeira grandeza, mas se ajustou perfeitamente à equipe, onde todos se completavam, cada um na sua posição. Do “quinteto atacante”, onde a princípio jogava, passaria depois para a defesa, tornando-se um “ halfregular”. Dele se falou assim: “Não é extrema de grande nomeada,

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nem h a lf dos mais seguros, unicamente porque se torna em demasia arrebatado e nervoso quando o seu quadro está perdendo.”

O Corinthians Paulista se estruturou com jogadores que “davam o sangue” no campo, suavam a camisa desde o primeiro minuto, e essa característica formou sua índole, de César a Idário, de Idário a Touguinha, de Touguinha a Goiano, de Goiano a Carbone, de Carbone a Vladimir. e, por isso, apesar de todo o tempo corrido e decorrido, ainda hoje a torcida corinthiana sabe perdoar todas as fraquezas do time, menos o pecado mortal do “corpo mole”, a falta de fibra, a ausência da “garra”, que nos outros clubes pode até passar em branco.

A primeira cervejada oficial coincidiu com a primeira vitória. Contra o Estrela Polar, time aguerrido, por 2 gois a 0. Foi o segundo jogo do Corinthians, que entrou em campo com a mesma equipe que enfrentara o União da Lapa. Mas agora o time se ajustava. O centro-avante Luiz Fabi marcou o primeiro gol do jogo e o primeiro gol da história do Sport Club Corinthians Paulista. O segundo gol quem fez foi Jorge Campbell, que também trabalhava na estrada de ferro dos ingleses e já começava a recolher dos “gringos” algumas contribuições em dinheiro para o clube. Campbell era sócio fundador do Corinthians.

Rolou bebida, que foi paga com um rateio geral. Uma grande carroça puxada por dois cavalos atravessou toda a rua dos Italianos e descarregou na confeitaria do Desidério barris de chope e barras de gelo, provenientes da Cervejaria Germânia, um galpão amplo localizado ali mesmo no Bom Retiro, na referida rua, de onde se evolava permanente­mente um suave olor de malte e cevada. Normalmente, as rodas das carroças que transportavam diariamente a cerveja crepitavam no calçamento de pedra, como engre­nagens enferrujadas, mas naquela vez o barulho se tornara alegre e agradável de ouvir porque se misturava ao alarido de brasileiros, italianos, espanhóis e portugueses que se abraçavam irmanados, alguns com os bigodes tamanho família agarrados a minúsculos flocos de espuma branca. Comemoravam. Bebeu-se às baldas.

Os irmãos Reichert, donos da Cervejaria, não desmereciam o sangue alemão das veias e torciam pelo Germânia, mas tiveram a generosa e inteligente idéia de fazer um desconto camarada no preço da bebida, pois intuíram que pelo tamanho da festa, se dependesse de novas vitórias, aquela turminha iria no futuro comprar cerveja em tonéis...

E de fato a segunda remessa de cerveja foi encomendada logo a seguir, por um feito ainda maior, quando o Corinthians Paulista destroçou por 5 a 0 o team onde praticamente só jogavam ferroviários ingleses da Associação Athletica Lapa. A notícia dessa goleada estrondosa repercutiu como um tiro de rojão no silêncio da madrugada.

A partir desse feito, os adversários começaram a pôr de molho não apenas os uniformes do time, mas também as barbas.

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O pessoal passou cantando pela barbearia do Salvador Bataglia. Ele chegou à porta: “Quanto foi a tunda?”, perguntou. “Cinco a zero, fora o baile. É co pé, é co’a mão, u Corinthia é campeón!”

Geralmente Salvador Bataglia cumpria sua pequena devoção diária depois que atendia o último freguês: acertava as costeletas, passava álcool, abanava a toalhinha para evaporar, bombava talco perfumado no pescoço do cidadão, agradecia a gorjeta e fechava as duas folhas de madeira da porta do salão que dava para a rua.

Fazia aquilo quase maquinalmente. Mas no dia da primeira goleada ele não tinha freguês nenhum, era domingo, dia de folga. Mesmo assim ele lançou mão de todo o seu fervor ao subir na cadeira de encosto de palhinha para trocar a estrelinha da lamparina junto à imagem de Santa Rita de Cássia, que estava pipocando por falta de óleo de caroço de algodão.

Os ingleses que perdoassem, mas Salvador tinha de fazer um agradecimento especial à santa. Santa Rita de Cássia, a “padroeira das causas impossíveis”, foi a primeira protetora do Corinthians Paulista.

Depois, muito tempo depois, é que foi escalado São Jorge.

Notas

1. É o que consta no álbum Campeão dos Centenários, onde aparecem colaborações e depoimentos de vários autores sobre o Corinthians.

2. Nada impedia, por exemplo, que alunos do Gymnásio do Carmo, que jogavam no time do Santo Américo, daquele estabelecimento, atuassem também na várzea. E era o que acontecia normalmente.

3. O dia da realização do primeiro jogo, 10 de setembro, pode ter gerado a confusão de ligar a fundação do clube a essa data.

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XIIAs raízes da mística corinthiana: o povo

Se a árvore se conhece pelos seus frutos, é das raízes que os frutos e toda a árvore se alimentam.

Quem quer que tente explicar ou entender a “mística corinthiana”, ou que outro nome tenha essa paixão, esse arrebatamento, esse fenômeno singular que os próprios corinthianos, muitas vezes por não poderem explicar-se a si próprios, chamam de “religião” — no sentido de algo que os religa a uma aspiração maior e coletiva, uma religião ainda que pitoresca, pictórica e até esdrúxula (para os olhos dos infiéis e dos pagãos), com seus ídolos (jogadores, técnico, o presidente do clube, às vezes determi­nados elementos da torcida), seus altares (o estádio, a quadra, a pista, a raia, o ringue), suas devoções particulares e públicas, seu culto e seus sacrifícios (praticados sob o sol, sob os vendavais, sob a calmaria e sob as tempestades) — , quem quer que adentre no labirinto desse “mistério” brumoso em busca da luz da revelação irá encontrar, na raiz de tudo: o povo.

O Corinthians não é simplesmente um clube “popular”.O Corinthians “é o povo”!

Quando os operários do Bom Retiro foram convidar os rapazes do Botafogo e de outros pequenos clubes das várzeas para participar de um time cujo nome nada significava para eles — um nome estranho, estrangeiro e, sem dúvida, circunstancial — e lhes ofereceu uma camisa que no varal desbotava e as margens do rio Tietê para treinar, nada teria ocorrido além de um sonho e de uma ilusão juvenil — se ao lado dessa ilusão e desse sonho não existisse uma força espontânea: a força do povo.

O Corinthians é “o povo em campo”.

O “povo” passou então a reunir-se na ma dos Protestantes, numa sede cujo aluguel era coberto com contribuições de quem podia, no fim do mês, separar algum dinheiro desviado dos cigarros, das sessões do cine Bijou. do fe m e t nào bebido, dos espetáculos

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do Teatro Colombo e das exibições de malabarismo do ciclista-mirim Abelardo Pinto, vulgo Careca.

Miguel Bataglia cumprira sua tarefa. Agora havia um clube com estatutos, uma sede com jeito de sede — mesa, cadeiras, um banheiro, um armário para o livro de atas, manuscritas muitas delas por Aristides Pereira, que assim como redigira a primeira, na casa do alfaiate Bataglia, também se prestava a ajudar o time atuando no gol, como guarda-valas reserva. O clube tinha conquistado seus primeiros 50 associados, de recibo mensal e carteirinha, e muitos simpatizantes, que acompanhavam os jogos do primeiro, do segundo e do terceiro times onde quer que eles fossem. Da rua dos Protestantes — onde também havia uma mesa oficial de pingue-pongue para distração dos sócios pioneiros — bastava caminhar algumas quadras para se chegar à Estação da Luz, onde muitas vezes as equipes do Sport Club Corinthians Paulista embarcavam para enfrentar times do interior do Estado.

Ia recolhendo vitórias e cansaços por esse mundinho onde eram plantados e colhidos o arroz e o feijão devorados pela boca da cidade grande e onde os barões do café tinham redutos de poder e glória.

E quando não havia jogo marcado nem nas várzeas do Tietê, do Tamanduateí e do Pinheiros nem viagem de trem para a “interlândia”, os corinthianos voltavam a defender a camisa do Botafogo, que continuava sendo o “terror dos campos da Paula Souza”, como o Argentino era o bamba da várzea do Glicério e o Ruggerone (do qual sairia bem depois a base do time do Palestra) o manda-chuva da Lapa.

Isso era normal.

O zagueiro Palamone do Botafogo também jogava no Mackenzie (e chegou à seleção paulista). Fabrini, que jogaria no gol do Palestra em 1916, nem por isso deixava de defender no mesmo ano a camisa do Botafogo.

Nada mais natural, portanto, que Aparício I, Casimiro, Amílcar e os irmãos César e Mánuel (Neco) vestissem os dois uniformes, o do Botafogo e o do Corinthians Paulista, dependendo da data e do horário dos jogos marcados. A moçada queria era jogar bola; os jogadores tinham uma origem comum, a várzea; conheciam-se, eram companheiros de time numa partida pela manhã e adversários numa outra partida, â tarde.

Era do Botafogo e era do Corinthians Paulista o lendário jogador chamado Davi, considerado um dos melhores centro-médios de São Paulo, que muitos apontam como tendo sido o primeiro jogador negro reconhecido como craque, como ídolo, e o primeiro a conseguir romper a muralha do preconceito e da discriminação racial no futebol paulista. Davi chegou a vestir a camisa do Sport Club Corinthians Paulista e era amado pela torcida.

Contudo, Thomaz Mazzoni afirmava que Davi, corinthiano desde a primeira hora, nunca jogou no primeiro quadro do clube, e sim apenas no segundo, não por lhe faltar futebol nas pernas. É que ao Corinthians já era carga demasiado áspera e pesada furar

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o bloqueio erguido a um “clube de operários”, e temia não ser aceito nem recebido “fora da várzea”, se se atrevesse e ousasse entrar em campo com outro preto que não fosse o da gola e das mangas da camisa.

Mas o tempo — e a qualidade do futebol que o Corinthians apresentava — se encarregou de desfazer mais tarde a injustiça cometida contra Davi, modesto conferente da São Paulo Railway, um operário que ajudou com a beleza de seu jogo e a pungente resignação de sua pele a criar a “mística alvinegra \

Nota

1. Bingo é mencionado como tendo sido o primeiro jogador negro a atuar no primeiro quadro do Corinthians pelo veterano corinthiano Horácio De Vincenzi, nascido em 1889 e que manteve longa amizade com Caetano De Domênico, este também testemunha do nascimento do Sport Club Corinthians Paulista e um dos raros remanescentes dos fatos. Caetano De Domênico era sobrinho de Gígio, que tinha uma chapelaria na rua dos Italianos e também era ponto de encontro dos primeiros corinthianos. Caetano, que chegou a jogar nos segundo e terceiro quadros do clube, foi um dos sócios fundadores. Mais tarde aderiu ao Palestra, fundado como “clube da colônia italiana”. Horácio De Vincenzi, como tantos outros simpatizantes oriundos de famílias vindas da Itália, permaneceu fiel ao Corinthians, morou e casou no Bom Retiro e acompanhava o time nas idas e vindas, inclusive quando os jogadores paravam para matar a sede numa torneira comum, que servia a todos os moradores, instalada na rua dos Imigrantes e que fornecia água fresquinha recolhida diretamente nos mananciais da Cantareira.

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XIIITrês atletas conquistam

a primeira taça

No lado esquerdo do peito, duas letras: CP. Duas letras entrelaçadas. Os primeiros calções, feitos de sacos de farinha tingidos. A mulher de João da Silva, que

figurava na primeira diretoria sem cargo específico — uma espécie de faz-tudo — se revezava com a irmã de Alfredo na lavagem das camisas. Quando faltava sabão, era uma correria. Italianos, brasileiros e portugueses lutando como leões para não deixar o clube afundar. Um clube que muita gente de outros bairros imaginava, por causa do nome, que fosse um clube inglês. O português Antônio Pereira tinha na época 20 anos, era dos que mais batalhavam. Mas perto do João da Silva, era fichinha. O Pereira reconhecia que igual ao João da Silva não havia, quantas vezes os dois de enxada na mão tinham passado tardes arrancando tocos e raízes de bambu do campo do Lenheiro! Um dia o Pereira prestou uma homenagem ao companheiro João: trocou sua carteirinha de sócio nQ 2 com ele, que tinha a carteirinha nQ 9- Se trabalhava mais pelo clube, merecia o privilégio. Daí em diante João da Silva ficou sendo o sócio nQ 2.

Mas o Pereira trabalhou a vida inteira pelo Corinthians Paulista. Quando fazia um “bico” de serviço de pintura nos domingos, ou um “extra” no sábado, contava o dinheirinho e levava tudo para o clube, sem tirar para si nem um tostão. Ele conta: “O começo foi difícil, sacrificado. A segunda bola do Corinthians foi presente de um garoto que acabou sendo um dos nossos melhores jogadores: o Neco. Para concorrer à inscrição na Liga Paulista, não tínhamos nem os 5 mil réis exigidos de taxa. Quem salvou a situação foi o Caparelli, que pediu o dinheiro emprestado a um cunhado e veio correndo, feliz, trazer a quantia para o clube.”

Aos poucos o Corinthians Paulista se preparava para alcançar seu segundo sonho, depois da fundação: disputar o campeonato oficial da cidade. Ia montando um grande time, e também nisso Antônio Pereira ajudava como podia:

“Fui buscar o Casimiro do Amaral no Flor do Bom Retiro, onde ele jogava. Era português como eu, um craque, excelente como pessoa e magnífico como jogador.

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o bloqueio erguido a um “clube de operários”, e temia não ser aceito nem recebido “fora da várzea”, se se atrevesse e ousasse entrar em campo com outro preto que não fosse o da gola e das mangas da camisa.

Mas o tempo — e a qualidade do futebol que o Corinthians apresentava — se encarregou de desfazer mais tarde a injustiça cometida contra Davi, modesto conferente da São Paulo Railway, um operário que ajudou com a beleza de seu jogo e a pungente resignação de sua pele a criar a “mística alvinegra \

Nota

1. Bingo é mencionado como tendo sido o primeiro jogador negro a atuar no primeiro quadro do Corinthians pelo veterano corinthiano Horácio De Vincenzi, nascido em 1889 e que manteve longa amizade com Caetano De Domênico, este também testemunha do nascimento do Sport Club Corinthians Paulista e um dos raros remanescentes dos fatos. Caetano De Domênico era sobrinho de Gígio, que tinha uma chapelaria na rua dos Italianos e também era ponto de encontro dos primeiros corinthianos. Caetano, que chegou a jogar nos segundo e terceiro quadros do clube, foi um dos sócios fundadores. Mais tarde aderiu ao Palestra, fundado como “clube da colônia italiana”. Horácio De Vincenzi, como tantos outros simpatizantes oriundos de famílias vindas da Itália, permaneceu fiel ao Corinthians, morou e casou no Bom Retiro e acompanhava o time nas idas e vindas, inclusive quando os jogadores paravam para matar a sede numa torneira comum, que servia a todos os moradores, instalada na rua dos Imigrantes e que fornecia água fresquinha recolhida diretamente nos mananciais da Cantareira.

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A Taça “Unione Viaggiatori Italiani” foi o pri­meiro troféu conquistado oficialmente. Ofere­cido pela colônia italiana de São Paulo, foi disputado numa corrida de resistência. Antes dela, acredita-se que o Corinthians tenha dis­putado e vencido outras competições de fute­bol e recebido pequenas taças, que se disper­saram nos dois primeiros anos da existência do clube. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Miguel Bataglia, sempre elegante, orgulhava-se de sua profissão de alfaiate e gostava de com­pletar sua elegância exibindo ao pescoço a fita métrica que usava em seu atelier. Sua perma­nência como presidente do Corinthians foi cur­ta, não chegou a três meses, talvez menos, mas foi suficiente para incutir nos associados e sim­patizantes a certeza de que o clube tinha con­dições de seguir em frente, com o apoio do povo. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XIVO clube com a cara (e a coragem)

do Brasil

Desde o primeiro minuto de sua existência, desde o sopro de arroubo juvenil do dia l e de setembro de 1910, quando os cinco operários decidiram que o clube

existia e disso foram avisados alguns italianos, alguns portugueses, alguns espanhóis e todos os brasileiros do Bom Retiro, que fizeram uma reunião no dia 5 e outra reunião no dia 10, e escolheram uma diretoria, um nome, e fizeram uma ata que ninguém sabe onde foi parar, e compraram a primeira bola e escolheram o uniforme branco com a gola preta e pediram a uma costureira do bairro que costurasse uma bandeira bem grande também branca e preta e pediram ao padre Antônio Padova que a benzesse — o padre Padova olhou os rapazinhos de olhos brilhantes com a bandeira dobrada nas mãos, e no começo achou graça, mas depois pensou um pouco, meditou, e concluiu acertada- mente que Nosso Senhor Jesus Cristo lá nas arquibancadas do céu, se olhos tivesse para algum time aqui embaixo na terra, sem dúvida seria para um time de gente humilde e esforçada, time de migalhas e jamais para um time de epulòes, e então o padre Antônio Padova foi lá dentro na sacristia, apanhou a estola, colocou-a em volta do pescoço (mais ou menos como fazia o alfaiate Miguel Bataglia com a fita métrica), ergueu os olhos e deu uma bênção em latim, e a partir daquele momento a bandeira, que era preta e branca, ficou luminosa como um arco-íris...

In nom ine Patris, etFilii, et Spirítus Sancti... e desde aquele instante em que todas estas coisas aconteceram e que a moçada voltou com a bandeira benta e desfraldada, o Corinthians foi — e é — a cara do Brasil.

Em tudo, a cara do Brasil — principalmente nos contrastes que permitem ao clube, no beiral dos 90 anos de existência, harmonizar o maior conjunto aquático da América do Sul com a singela “biquinha” de água natural, puríssima, que jamais seca, por longa que seja a estiagem e abrasador o verão, a qual verte dia e noite sem cessar no sagrado território dos “petequeiros’’ do clube, e ao pé da qual, dizem, o próprio Friedenreich, que nem corinthiano de uniforme foi, se ajoelhou uma tarde para beber na concha da mão a água cristalina.

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E há quem afirme que, nesse minuto de contrição e respeito, uma lágrima rolou como um brilhante líquido pela face sarará do grande craque (e Friedenreich confessou, num sussurro, sua mágoa de não ter oferecido seu imenso futebol ao coração alvinegro do povo corinthiano).

A cara do Brasil. Até nas crises. E na maneira de vencê-las.

Os primeiros passos do Corinthians Paulista tiveram de sobrepujar não apenas as dificuldades inerentes à sua própria frágil estrutura, mas também o clima de exacerbação que afetava todo o futebol paulista.

A rigor, qualquer “clube de operários” não podia ter outras pretensões que não fosse se divertir pelas várzeas da cidade. Era um tabu. O Corinthians quebrou esse tabu, mas sem dúvida teve de fazer das tripas coração. Foi buscar bons jogadores em toda a várzea, nos times dos grupos escolares e de escolas particulares — onde era dada muita atenção ao futebol e onde, na verdade, se formavam os craques! E não olhava se o rapaz tinha sotaque. Pegou o Américo Fiaschi, do União da Lapa. Pegou Bianco Spartaco Gambini, que tinha sido campeão da Segunda Divisão na Argentina. Pegou Casemiro Gonzales, espanhol de Salamanca, para jogar na zaga. Pegou o português Horácio Coelho, que atuou como goleiro.

O convite a um jogador e sua aquiescência em jogar no time do Corinthians Paulista não significava, é bom deixar claro, que eles passassem a aderir de corpo e alma ao clube alvinegro.

O Corinthians não tinha nada a oferecer a não ser um certo calor, o entusiasmo da torcida, e a certeza de que o convidado iria ter por companheiros gente boa de bola. Mas a força dos aliciamentos era feroz. Muito jogador passou pelo Corinthians mas seguiu outros caminhos. Severino Sestari, que vinha da equipe colegial do Coração de Jesus, jogou antes no Fluminense da várzea paulista para filiar-se ao Corinthians em 1912, mas no ano seguinte já estava no Germânia, passou para o Campos Elyseos e em 1916 figurava no segundo quadro do Palestra Itália.

Assim como Sestari, o próprio Bianco Spartaco Gambini deixava o Corinthians em 1915, para defender as cores do Mackenzie, e em 1916 já estava no Palestra Itália, como capitão do time1. É claro que quase sempre um jogador saía do Corinthians Paulista porque outro jogador melhor que ele aparecia no time. Mas existiam preferências clubísticas, por que não? E o amor à camisa, também. Só o amor à camisa explica, por exemplo, a volta ao Corinthians Paulista da maioria dos jogadores que em 1915 haviam se dispersado para outros clubes — inclusive Neco — em razão de o “clube dos operários” ter ficado fora da disputa do campeonato por motivos... burocráticos!

Voltaram ao Corinthians, abandonando sem dúvida propostas e condições pessoais vantajosas que lhes eram garantidas, porque amavam o Corinthians.

Outro aspecto que parece bastante claro é que no Corinthians Paulista prevalecia a categoria do jogador. Não havia protecionismo para este ou aquele. O “pistolão” não

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funcionava. Hugo Magnani, apesar do sobrenome e do parentesco com Alexandre Magnani, que substituíra Miguel Bataglia na presidência do clube, defendia desde 1914 as cores alvinegras, como centro-médio, mas nunca passou do segundo quadro, onde, aliás, era “jogador utilíssimo”. O mesmo vale para Manuel Nunes, o imortal Neco, que era dono da posição no Botafogo mas, ao vir para o Corinthians, trazido por seu irmão mais velho, César, teve de gramar e mostrar todo o seu jogo nos quadros inferiores. Em compensação, quando se apanhou no primeiro time, Neco nunca mais saiu e se tornou uma das maiores legendas do esquadrão corinthiano.

Na verdade, os cinco primeiros anos da vida do Sport Club Corinthians Paulista são fundamentais para quem quer que pretenda investigar e aprofundar-se no estudo da “mística corinthiana”.

Começa que “clube dos operários” não é uma força de expressão. E ai de quem interprete isso com sentido pejorativo ou de disfarçado desprezo. Entenda-se o Corin­thians Paulista, isso sim, como uma das manifestações mais sérias ocorridas na sociedade brasileira dentro do movimento de emancipação do operariado paulista — e, logo, brasileiro2.

Quando Antoninho de Almeida, o homem que carrega a história do alvinegro na mente e no coração, diz que o Corinthians é “o clube construído pelo povo”, ele não exagera uma vírgula. E é o povo quem prossegue sendo a estrutura invisível do clube, depois de ter sido sua base e seus alicerces. Mas invisível, em termos. É a alma do povo que se materializa nas arquibancadas e gerais dos estádios ao longo de décadas, independente de o time estar bem ou mal, independente de vitórias ou derrotas, independente de crises ou glórias.

Os adversários pasmam. Os desafetos se remoem de inveja. Os indiferentes dissi­mulam sua admiração.

Mas onde está o Corinthians está o povo, abrigado sob a sombra claro-escura da bandeira eterna que drapeja desde a memorável tarde em que um grupo de modestos rapazes a levou ao padre Padova, para transformar um pedaço de pano de algodão rústico num tecido para sempre bento e abençoado.

Até que, finalmente, o “clube dos operários”, nas mãos de Alexandre Magnani, já estruturado e imbatível na várzea de São Paulo e conhecido em um sem-número de cidades do interior, estava pronto e decidido a encarar “os grandes do futebol paulista”. Mas as coisas, outra vez, não iam ser fáceis. “Clube de operários?” Essa não! Onde é que esse pessoal está querendo chegar, hem?

Notas

1. O jogador Bianco ingressou no Corinthians Paulista depois que o clube já havia conseguido a classificação na Liga Paulista e podia disputar o campeonato entre os “grandes”. Todavia Bianco jogou no primeiro quadro alvinegro e chegou a disputar pelo Corinthians os primeiros jogos internacionais

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da agremiação, contra o Torino, da Itália. No Palestra Itália, o ex-corinthiano foi de grande valia, pois ajudou a ajustar o time da “colônia italiana” nascido nos escritórios do Matarazzo, onde dinheiro é que não faltava. Bianco jogou a princípio de center-half, onde tinha o defeito da precipitação, que corrigiu ao ir para a zaga. Dele fala Leopoldo Sant’Anna em sua obra O Futebol em São Paulo: “Seria um back de muita confiança si não tivesse o mau vezo de, às vezes, se approximar em demasia do goal, prejudicando a collocação do keeper. Também, conforme os encontros, faz uso de jogo violento, jogo condemnável. É contudo back dos mais resistentes e esforçados em São Paulo e não está mal escalado no seleccionado paulista.”

2. Uma ou outra fonte cita o The Bangu — o atual Bangu carioca — como um “clube dos operários”, o primeiro deles. O Bangu foi fundado em 1904 e era sustentado financeiramente pela Companhia Progresso Indutrial Ltda. No começo reunia apenas jogadores ingleses, todos técnicos e altos funcioná­rios da empresa. Mais tarde, e aos poucos, para completar os times, eram escalados operários brasileiros que trabalhavam naquela indústria de tecidos. Em troca de uma boa atuação, iam conquistando privilégios... trabalhistas: folgas remuneradas, menos carga horária, tarefas mais leves e até mesmo promoções! Essa uma ou outra fonte confunde, infelizmente, “clube de fábrica” com “clube de operários”. Nesse caso poderia citar-se a Associação Athletica da Lapa, que o Corinthians Paulista goleou por 5 a 0, como “clube de ferrovia”.

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XV

O grande salto: do Lenheiro ao Velódromo

P ara ocupar um lugar ao sol entre os "grandes’' do futebol paulista, o Sport Club Corinthians Paulista teve de entrar numa verdadeira guerra de foice e mergulhar de ponta cabeça num clima onde quem podia mais chorava menos.

Ao contrário do que se possa imaginar hoje, o futebol paulista fervia em alta temperatura e o cavalheirismo da elite muitas vezes não passava de mera fachada para guardar as aparências. Quebrava o pau na várzea, mas também quebrava o pau entre os “grandes”. Para começo de conversa, o chamado “futebol amador” já tinha ido para o espaço e os comentaristas esportivos da época, magoados com o que viam, chegavam a afirmar que o “amadorismo” havia vigorado (se é que vigorou) no máximo até 1905. Daí para cá, valia o salve-se-quem-puder.

Se muitos jogadores podiam ter “mesada do papai” ou defender-se com negócios lícitos nas horas vagas — afinal de contas, jogava-se nos fins de semana e quase não havia trainings— , outros não tinham a mesma sorte e precisavam faturar para sobrevi­ver. De brisa ninguém vivia e os donos dos empórios, mercearias e vendinhas podiam facilitar o “pendura de caderneta”, mas no fim do mês o pagamento era sagrado. A palavra “caloteiro” deixava uma cicatriz mais feia que navalha na cara.

Não há nada mais ingênuo que imaginar que nos chamados “bons tempos de antigamente” tudo fosse um mar de rosas. “Clube de profissionais caloteiros” é como o Sírio foi chamado, nos “bons tempos do futebol amador”, por jogadores como Petroni- lho, Vani e Waldemar, que ficaram sem receber três meses de “ordenado”, que variava entre 200 e 500 mil réis. No ano de 1915 estourava um escândalo no “futebol amador” de São Paulo: denunciava-se, com provas, um contrato de 500 mil réis por mês amarrando a famosa ala esquerda Mac Lean/Hoppckins ao Sport Club Americano, que fora fundado na cidade de Santos, em 1903, por Sizídio Patusca. O contrato de Mac Lean e Hoppckins foi inclusive registrado em cartório.

Em 1910,o zagueiro Asbury ganhava 100 mil réis por jogo que fazia pelo Paulistano. O mesmo Americano pagava um salário aos irmãos Bertoni. É curioso que alguns

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jogadores eram “profissionais” e não sabiam. Pensavam estar recebendo dinheiro por “serviços prestados” a determinadas empresas, onde eventualmente faziam “bicos”, ou ganhavam salário normal mesmo quando lhes eram garantidas folgas de até três dias antes dos jogos. Havia os “vales” e os “bichos”. E disso nào escapavam nem mesmo este e aquele jornalista, repórter (o têmpora, o mores!), que defendiam o “amadorismo” mas iam receber também seu “vale”. Enfim, como o povo costumava dizer naquela época, “a vida era um buraco” 1.

Sem dinheiro para pagar “vales” e “bichos”, o Corinthians era um atrevido de marca maior. Uma confraria de ingênuos e sonhadores. Queria competir com a “turma da pesada”. Tinha uma credencial: era o campeão dos clubes não filiados à Liga Paulista de Futebol e nada mais natural que insistisse em conseguir filiação naquela entidade, que regia o futebol em São Paulo. Candidatou-se inicialmente à vaga aberta com a desistência do Sport Club Internacional em disputar o campeonato, retirando-se da Liga Paulista, mas o Internacional deu o dito pelo não dito, voltou atrás e o Corinthians Paulista sobrou.

Os corinthianos gritaram, elevaram seu protesto, “que raio de bagunça é essa no futebol!” O Corinthians Paulista tinha força moral para exigir seus direitos. Mostrava jogo no campo, tinha excelentes jogadores, Casemiro Gonzales, zagueiro, havia dado estru­tura ao time fazendo subir para o quadro titular elementos que se destacavam no terceiro e principalmente no segundo quadro.

Por esse tempo Neco ainda nào figurava como titular, mas já estava de boquinha numa vaga na linha atacante.

Mas concomitantemente às pretensões do Corinthians estourava uma crise aguda no futebol paulista: uma cisão que o dividiria em dois grupos de equipes. Não foi uma crise repentina. Ela vinha sendo alimentada como um tumor que latejava e um dia teria de romper-se.

Um simples — mas valioso — troféu, a Taça “Penteado” (a tal que foi parar no rio Tietê e, dizem, reapareceu em 1932 como doaçào na campanha “Ouro para o Bem de São Paulo”, na Revolução Constitucionalista de 1932...), disputada com unhas e dentes e princípios de porradas, já era um sinal de que as coisas não iam bem nas hostes futebolísticas. No ano de 1910, quando o Corinthians nascia modestamente, sem uma notícia nos jornais, sem nenhuma divulgação oficial, sem nada, o campeão paulista tinha sido a Associação Athletica das Palmeiras, que passava a ser detentora da referida taça. No ano seguinte, 1911, o campeão é o Paulistano. Cabe-lhe então ficar com a taça. Mas quem diz que o clube das Palmeiras a entrega? Xingamentos, críticas, verrinas, protestos, ameaças de lado a lado.

A taça desaparece.Ao mesmo tempo, reprovava-se de há muito o que alguns chamavam de “degrin­

golada do futebol, da educação esportiva”. Bons tempos? Pois sim!

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Havia violência em campo. Jogadores saíam carregados e iam para o estaleiro: “Um arranhão, um pontapé casual, um esbarro mais forte era suficiente para o match degenerar numa verdadeira luta entre animais ferozes. Daí resultava o término de torneios antes da hora, incidentes, briga séria entre os jogadores, invasão do campo pela assistência, intervenção dos diretores da Liga Paulista, intervenção, às vezes, de soldados e autoridades... Em seguida, a discussão pela imprensa, as descomposturas descabela­das. O provocador do conflito, ou o suposto provocador, era violentamente acusado. Em defesa dele saía a campo o clube a que pertencia, com protestos de solidariedade. A Liga, indecisa, não sabia para onde se voltar. Se porventura se posicionasse em defesa deste ou daquele jogador ou clube, a crise era inevitável: diretores não se conformavam e retiravam-se.

Observadores “elitistas” lamentavam que “os métodos antigos com que se formaram as brilhantes equipes do Athletic, do Paulistano e do Mackenzie, tão salutares e nobres, tenham caído em desuso”. E queixavam-se amargamente: “São Paulo transformou-se num vasto campo de football. Há sociedades por todos os cantos... Os clubs da Liga acolheram em seu seio rapazes da várzea. Fizeram bem? Achamos muito justo que os operários, os humildes, participem das refregas, mas os operários e humildes que comprehendem os seus deveres de sportsmen. Desta forma appareceram ao Velódromo, da noite para o dia, innúmeros sportsmen de outras plagas e de outros costumes... Os antigos, fiéis aos velhos hábitos, receberam com hostilidade os seus companheiros. E dahi, desse encontro inesperado, que era, aliás, uma conseqüência inevitável do pro- gresso do football, resultaram os factos tristíssimos de 1909 a 1912... ”

O Corinthians acompanhava a “guerra” de longe, vencendo os adversários todos da várzea. Por causa da Taça “Penteado”, a Associação Athletica das Palmeiras já se retirara da Liga Paulista de Futebol3. Mas então surgiu um fator econômico que precipitou a crise e provocou a cisão: o preço que o Paulistano cobrava dos clubes pela utilização do campo do Velódromo. Enquanto o problema era político, esportivo, a coisa ia sendo levada em banho-maria. Mas agora se tratava de enfiar a mão na bolsa dos clubes.

Por proposta do Germânia, secundado por alguns outros clubes, a Liga Paulista decidiu reconhecer o campo do Parque Antártica como oficial para a disputa dos jogos do campeonato. O campo do Parque Antártica seria cedido por 200 mil réis por mês. O Paulistano cobrava pela cessão do Velódromo 200 mil réis... por jogo! A diferença era brutal. Imagine-se o Corinthians desembolsando tal quantia!...

A primeira confusão das grossas aconteceu logo no domingo em que estava marcado o jogo entre o Paulistano e o Americano, em 1913. O Paulistano aguardou o adversário no Velódromo, que era seu campo e sua sede oficial. O Americano foi esperar o Paulistano no Parque Antártica.

Evidentemente não houve jogo algum e isso foi a gota d’água que precipitou o rompimento do Paulistano com a Liga Paulista de Futebol e a conseqüente e imediata

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criação da Associação Paulista de Esportes Athleticos — que depois ficou conhecida como APEA.

Duas entidades passaram a conduzir então o futebol de São Paulo. Sem dúvida, a APEA ganhava a fama de “elitista”, ao reunir o Paulistano, a Associação Athletica das Palmeiras e o Mackenzie. À Liga Paulista ficou reservado o rótulo de “popular” e mais sensível às aspirações de acesso dos clubes da várzea.

O Sport Club Corinthians Paulista não queria cortar caminho nem dar saltos muito maiores do que ter o direito de mostrar seu jogo, de enfrentar de igual para igual os “grandes do futebol paulista”, fosse no Parque Antártica, fosse no Velódromo, uma vez que já fora provado seu poderio superando mil adversários no campo do Lenheiro.

O Corinthians começou rompendo as barreiras da Liga Paulista de Futebol.

Notas

1. Para os pessimistas, que entendem que “maracutaia” é um neologismo só aplicável a estes tempos terríveis, recomenda-se a edificante leitura de Grandezas e Misérias do Nosso Futebol, do falecido ex-jogador e ex-prócer esportivo Floriano Peixoto Corrêa.

2. A vinda do Corinthian Football Club, da Inglaterra, contribuiu para despertar a atenção popular para o futebol. E fez mais: ao derrotar inapelavelmente as equipes consideradas de elite no futebol paulista, por contagens expressivas — autênticos massacres — , assumiu um papel de “vingador dos operários e humildes contra a enfatuação dos almofadinhas”. O que pode ajudar a explicar também a escolha do nome Corinthians para o “clube dos operários” do Bom Retiro.

3. A Associação Athletica das Palmeiras e o Paulistano não se bicavam desde 1905, é bom que se diga, quando uma boa parte dos campeões do Paulistano se mudaram de mala e cuia, ou de chuteira e caneleira, para o clube da região das Palmeiras. Para o Paulistano foi um golpe duro, que ele custou a assimilar. Em 1911, as rusgas se agravaram com o episódio da Taça “Penteado”. A Associação Athletica das Palmeiras precisava apenas vencer o campeonato daquele ano para ficar de posse definitiva do referido troféu. Deu o maior azar: o pessoal das Palmeiras foi derrotado exatamente pelo Germânia, que era o último colocado na tabela. Não entregou a taça ao campeão do ano, o Clube Athletico Paulistano, e daí em diante um não olhava para a cara do outro. As pazes só foram feitas, com abraços e champanhe francês, quando foi fundada a Associação Paulista de Esportes Athleticos e os dois clubes ficaram, “unidos até à morte”, no mesmo grupo. Mas o Corinthians Paulista não estava nem aí. Para ele, tanto fazia como tanto fez; tudo ia acabar sendo freguês.

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Alexandre Magnani, o segundo pre­sidente, levou o Corinthians de cam­peão da várzea a campeão de São Paulo. Assumiu a presidência quan­do o clube tinha apenas uma única bola e um único jogo de camisas. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XVIAdeus, ó várzea!

C om a cisão no futebol, a cidade de São Paulo tinha não apenas um, mas dois campeonatos. Simultâneos! O campeonato da Liga Paulista de Futebol tinha como

palco o campo do Parque Antártica, de acesso mais difícil, mais distante, porém ocupando uma área ampla, plana, e com aluguel mais em conta para a caixa dos clubes.

O campeonato da Associação Paulista de Esportes Athleticos — a APEA — realiza- va-se no Velódromo, a primeira praça de esportes construída em São Paulo, a mais famosa, a que atraía maior público pois nela jogavam os clubes da “elite”, que tinham simpatizantes cativos, gente de dinheiro e de influência política e social. Contudo, como entidade, a Liga Paulista de Futebol ganhava em tradição. Antiga, o futebol paulista dela dependera e nela se apoiara desde que Antônio Casimiro da Costa, o Costinha — que também fundara o Internacional — , a organizara no começo do século para gerir e administrar a prática daquele esporte em São Paulo .

O Velódromo situava-se na parte “mais nobre” da cidade. Velódromo não era “apelido”, como alguns supõem. O Velódromo assim se chamava porque era, de fato, um velódromo — ou seja, um lugar destinado a corridas de bicicletas.

Na infância do Corinthians Paulista, tanto os automóveis (que não chegavam a 60 na cidade toda e no geral tinham monogramas de seus donos pintados nas portas) como as bicicletas eram máquinas importadas.

Bicicleta dava status. E ciclista de competição levava jeito de herói. Com seu equipamento completo, macacão, óculos com proteção de celulóide para evitar cisco nos olhos, quando arriscava a pele em cima do selim, deixava muita donzela com faniquito.

O ciclismo era o principal esporte da cidade, o mais emocionante, e não ficava barato. Uma bicicleta custava os olhos da cara. As disputas atraíam um bom público — não apenas pelo “perigo emocionante” que ofereciam como pelas apostas em dinheiro que permitiam.

O Velódromo tinha sido construído em 1857 pelo conselheiro Antônio Prado, somente para corridas de bicicleta. Ficava num terreno na rua da Consolação atual, entre a rua Olinda e a rua Martinho Prado. Era uma obra monumental para a época, a primeira

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praça de esportes, a mais importante, um orgulho. Na época era de bom tom fazer comparações com o que havia de melhor na França, e por isso o Velódromo chegou a ser citado como o Pare des Princes do Brasil. E pensando bem, com razão!

Quando, 43 anos depois, numa rotisserie chic da ma São Bento, um grupo de rapazes da alta sociedade paulista fundou o Club Athletico Paulistano, nada mais natural que tivesse escolhido o Velódromo para sua sede esportiva, até porque, como eles tinham em mira a prática do futebol, o local, com algumas reformas, se prestaria a calhar para os jogos de bola, assim como vinha se prestando para os moços ciclistas.

Tudo era uma questão de conversar.

Os moços “paulistanos” procuraram dona Veridiana da Silva Prado, que era a proprietária do terreno, e lhe perguntaram se ela fazia o obséquio de arrendar a praça de esportes para eles instalarem no local a sede esportiva do clube.

Os rapazes eram gente fina, não faziam armaça, bem educados, tinham um nome a zelar, e além do mais pagariam 250 mil réis por mês. Dona Veridiana da Silva Prado aquiesceu. (Pouca gente, ao passar hoje pela ma Dona Veridiana, perto da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, imagina o quanto o futebol brasileiro deve a essa senhora!)

Em 1901 a primeira adaptação do Velódromo para o futebol estava concluída e consistia num campo de tamanho razoável — “os ingleses do Corinthian Football Club, lembram?, o haviam achado pequeno e duro” — , inaugurado no dia 19 de outubro com um jogo entre Paulistas vs. Cariocas, ao qual assistiram 3 mil pessoas.

Foi então que se ouviu pela primeira vez o grito de guerra formado pelas palavras allez, go. a ck — que depois as torcidas simplificariam para o aleguá-guá-guá!

Mas nem o poderoso Paulistano estava imune às crises, e em 1905 ele balançou nas bases, com a ida de muitos craques para a Associação Athletica das Palmeiras. Já então o Velódromo passara por outra grande reforma, ocupava uma área de mais de 9 mil metros quadrados, o campo de futebol era circundado "por uma pista cimentada com elevação nas curvas, para corridas de bicicletas, duas ou três quadras de tênis, e, nos fundos, junto a uma plantação de pinheiros, um tanque de natação oval, com 28 por 20 metros, e profundidade que ia de um a dois metros”.

Foi no sufoco do Paulistano (que estava com o quadro associativo reduzido a nada e uma reserva de caixa que mal passava dos 927 mil réis) que surgiu o Corinthians Paulista, e esse Corinthians de operários — que não tinham bicicleta e viajavam de “caradura” para economizar uns vinténs e oferecer ao clube — se preparava agora para enfrentar uma cilada que a Liga Paulista de Futebol lhe tinha armado à sorrelfa, para tentar impedi-lo de se ombrear com os “grandes do futebol”.

Para disputar o campeonato da Liga Paulista de Futebol o Sport Club Corinthians Paulista teria, antes, de passar pelo cadáver do Minas Gerais e do São Paulo. Era agora— ou nunca mais! Os corinthianos se prepararam para dizer adeus à várzea.

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O Corinthians Paulista, que já tinha até obtido vaga na Liga Paulista de Futebol — e que lhe fora depois subtraída com o vai-e-volta do Internacional — , devia enfrentar então dois outros times também pretendentes a um lugar na Liga. Organizou-se uma espécie de torneio de ingresso. Entraria o vencedor da disputa.

Parecia uma proposta simples e justa, porém na realidade se tratava de impor um obstáculo, supostamente bem-intencionado, ao acesso de um “clube de operários” na Liga. Não tanto pelo São Paulo, um dos clubes do torneio, que evidentemente nada tinha a ver com o São Paulo Athletic Club e menos ainda com o atual clube do Morumbi.

O São Paulo que o Corinthians Paulista teria que enfrentar era um clube médio, que jogava ali pelo Bexiga. Esse não deu problema. O Corinthians faturou com um 4 a 0 no placar e encerrou a disputa.

A dificuldade maior era o Minas Gerais. Embora o Minas Gerais, é claro, também fosse um clube de várzea, ele não tinha cheiro de graxa. Era um clube muito bem-estru- turado, a princípio com mais organização e base que o Corinthians Paulista. Não nascera na ma à luz de lampiões, nem precisara reunir seus primeiros simpatizantes numa confeitaria.

Tinha sido fundado em maio de 1910 — quatro meses antes que o Corinthians — na casa de Plínio Fonseca, que reuniu dezesseis associados que se comprometeram a sustentar o clube com recursos próprios. O nome do clube era uma homenagem ao vaso-de-guerra brasileiro que no dia 3 de maio entrava, pela primeira vez, na baía de Guanabara, no Rio.

Saturnino Correa assumiu a presidência do Minas Gerais, João Penteado era o diretor esportivo. O capitão do primeiro quadro era o próprio Plínio Fonseca e, do segundo quadro, Afonso Gogliano. Chegou a ter uma boa sede, campo de futebol próprio e cerca de duzentos associados contribuintes. Era um clube forte, uma pedra dura no caminho do Corinthians Paulista e os corinthianos sabiam disso muito bem .

Quando o time do Corinthians Paulista pisou o campo “pequeno e duro” da ma da Consolação, quando os onze rapazes com camisas novas apareceram sob o céu do Velódromo, onde estreavam e inauguravam um sonho que os adversários torciam para que fosse um pesadelo, as arquibancadas do estádio, construídas para acolher 5 mil pessoas, balançavam de emoção. A torcida dividia-se em dois grupos: os corinthianos— e os “anticorinthianos”. Os “anticorinthianos” não torciam tanto pelo Minas Gerais Football Club. Torciam, sim, pela derrota do Corinthians, aquele atrevido, aquele ousado, aquele “bicão” com cheiro de povo, jeito de povo, coração de povo. Os primeiros carrapatos do “anticorinthianismo” estavam ali agarrados nas vigas das arqui­bancadas, aves pardas piando maus agouros para aquela “gentinha” alvinegra.

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Soou o apito do árbitro. Quando o primeiro chute — que o povo chamava de kick— foi desferido na dama redonda e morena vestida com o manto do capotão, o alarido da galera subiu aos ares nas asas do vento. Tudo podia acontecer naqueles noventa minutos em chamas e carne viva. Eram vinte e dois “leões” em campo, se medindo e se respeitando, sabendo que um descuido, um escorregão, um tropeço, uma bobeada, um fraquejo equivalia à degola de anos de anseios e aspirações.

Para complicar as coisas, o zagueiro Chaves, que tinha ido do Club Athletico Pary para o Minas Gerais — do qual fora um dos fundadores — e que costumava dar suas boas “furadas” quando ficava nervoso e tenso, no jogo com o Corinthians Paulista não errava uma. Estava firme como uma rocha e exibia toda a potência de seus shoots. O Minas Gerais não era nenhuma “galinha morta”, tinha seus grandes craques, Bruno Poltronieri no gol, Alexi Neuyens, o próprio Fonseca, em cuja residência o clube nascera.

Mas o Corinthians Paulista era o guerreiro montado no cavalo branco da raça e estava preparado para fazer estrebuchar o dragão adversário a qualquer momento. Um gol, um único e portentoso gol — rezam as crônicas — , fulminou e pôs a pique o Minas Gerais com seus onze tripulantes uniformizados de listas vermelhas e brancas. Inexpug­nável pela presença magnífica do Casimiro do Amaral, que o pintor de paredes Antônio Pereira conquistara para o time ensinando-lhe o ofício das tintas e pincéis, o gol corinthiano terminava a partida virgem. 1 a 0 dava o caso com o Minas Gerais encerrado. Os corinthianos saíram de campo cobertos de pó e suor. E o Velódromo, pela vez primeira, que abria o caminho para todas as outras vezes, cobriu de aplausos e vivas e doce ternura aqueles meninos que no dia seguinte iam pegar no batente duro na ferrovia.

O próximo adversário ia ser o São Paulo Sport Club. Aparentemente, jogo fácil. Mas futebol se joga no campo. E muita gente já dizia, naquele tempo, que “futebol não tem lógica”. De modo que o pessoal deixou para beber todas as cervejas a que tinha direito depois do segundo jogo. Mas seu Reichert da Cervejaria Germânia já havia avisado que, se o Corinthians entrasse na Liga Paulista de Futebol, uma parte da cerveja ficaria por conta da empresa.

O Corinthians Paulista venceu o segundo jogo por 4 a 0. Um resultado insofismável. Um placar que não podia sofrer contestação. Os “anticorinthianos” da véspera repensa­ram suas teorias, puseram a mão na consciência, e concluíram acertadamente que o ingresso do Sport Club Corinthians Paulista na Liga Paulista de Futebol só podia trazer benefícios para todos. A vida ficava mais alegre. O mundo, mais redondo. O povo, mais feliz. São Paulo, mais com cara de gente. E quem não gostasse do Corinthians que “fosse às favas, lamber sabão, ou para o diabo que o carregue”!

O gol espetacular que Joaquim Rodrigues, meia-esquerda, marcara na vitória do Corinthians contra o Minas Gerais foi a chama que incendiou o entusiasmo dos milhares de corinthianos que acorreram ao Velódromo na segunda partida, contra o São Paulo

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Sport Club. Na vitória de 4 a 0, Fabi marcou o primeiro e o segundo gols. Peres marcou o terceiro. E Campanella encerrou a contagem!

O Sport Club Corinthians Paulista despedia-se da várzea. Como um garoto esforça­do que passara em todas as provas e exames com brilho e louvor, ia receber um “diploma que concedia ao Sport Club Corinthians Paulista o direito de integrar a Divisão Principal da Liga Paulista de Futebol”.

O time da proeza histórica: Casimiro do Amaral (goleiro e capitão do time), Fúlvio Benti e Casemiro Gonzales; Francisco Police, Alfredo de Assis e Francisco Lepre; César Nunes, Antônio Peres, Luiz Fabi, Joaquim Rodrigues, Carmo Campanella.

Então o Sport Club Corinthians Paulista encheu o céu de rojões e fez uma festa de arromba3.

Notas

1. Casimiro da Costa, o Costinha, aprendera a jogar futebol na Europa, onde estudara, e de volta ao Brasil dedicou-se a organizar o futebol paulista. Criou a Liga Paulista de Futebol e fundou o Internacional, clube formado praticamente só com jogadores brasileiros, de “boas famílias”, evidentemente. O trabalho de Costinha em prol do futebol brasileiro coloca-o ao lado e no mesmo nível de importância de Charles Miller.

2. O Minas Gerais Football Club foi fundado no bairro do Brás e era um adversário fortíssimo. Apesar de sobrepujado pelo Corinthians Paulista no torneio de 1913, no ano seguinte — quando o Corinthians se sagrou campeão paulista invicto, 1914 — o Minas Gerais voltou a disputar uma partida eliminatória com o Villa Buarque Football Club, venceu e foi também admitido na Liga Paulista de Futebol. No campeonato de 1914, o primeiro quadro do Minas Gerais obteve o 3e lugar, mas seu segundo quadro alcançou o l e lugar e os respectivos jogadores receberam medalhas de ouro e um troféu especial. O Minas Gerais chegou a campeão em 1917. O clube era dirigido por pessoas de posses e gozava da melhor boa vontade e trânsito fácil quer junto à Liga Paulista, quer junto ã Associação Paulista de Esportes Athleticos. Corinthians e Minas Gerais voltaram a defrontar-se numerosas outras vezes. O Clube do Brás não sobreviveu, talvez porque lhe faltasse aquilo que sobrava no Corinthians: a decisiva adesão do povo, a preferência popular. A torcida foi, desde o início, o maior patrimônio do clube alvinegro. Quanto ao São Paulo Sport Club, o outro adversário, incomparavelmente mais frágil, que o Corinthians enfrentou no Velódromo, não teve fôlego nem pernas para ir muito longe. Desapareceu sem deixar vestígios relevantes.

3. O Corinthians sempre foi um clube alegre e festeiro. Essa característica está nas suas raízes. Não é por acaso que a torcida uniformizada dos Gaviões da Fiel desce das arquibancadas dos estádios e invadeo sambódromo de São Paulo com sua escola de samba desfilando no Carnaval. Jogo grande ou pequeno,

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em dia útil, domingo ou feriado, o som dos surdos e repiniques marca a presença de quase todas as torcidas uniformizadas do Corinthians. E com um modo de ser peculiar: nem a derrota consegue silenciar essa manifestação de solidariedade para com o time.Numa dessas festas, quando o Corinthians Paulista derrotou o Germânia no campeonato de 1914, gastou-se vultosa quantia “em regozijo pela vitória”, o que elevou as despesas no mês de junho daquele ano a 642 mil réis. Para um clube pobre, era uma paulada. Basta que se compare com o dinheiro que o Paulistano (sem dúvida atravessando séria crise) tinha em caixa em 1910: apenas 927 mil e quatrocentos réis... Ao ser anunciada tal despesa na assembléia geral do Corinthians, o zagueiro e associado Casemiro Gonzales ficou de cabelos arrepiados e exigiu que fossem mostrados todos os recibos comprovantes dos gastos. O tesoureiro Campbell não teve dúvidas: trouxe a papelada tintim por tintim. Festa, sim. Mas tudo sob o maior controle!Wladimir de Toledo Piza conta, com saudades, o sucesso de uma das maiores festas realizadas na década de 30 pelo Corinthians, no Parque São Jorge, que repercutiu na cidade, permitiu uma arrecadação sensacional e marcou época: a festa junina na qual foram queimados alguns contos de réis de fogos Caramuru, fornecidos em pagamento de uma dívida que o então presidente Alfredo Schurig tinha a receber. O Parque São Jorge se iluminou de alto a baixo, todo mundo se esbaldou, e, no final, num único dia, 300 novos sócios entraram para o clube.

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XVIIPer aspera ad astra

Se quisesse, o Corinthians poderia, mais que qualquer outro clube, colocar em seu distintivo essa frase latina — Per aspera a d astra — para resumir sua vida e suas

conquistas. Clube que não se atemoriza diante dos desafios e das dificuldades. Clube cuja fibra, paixão, sentido de resistência foram acrisolados, postos à prova nas mais duras circunstâncias.

Per aspera ad astra: o Corinthians aprendeu a chegar às estrelas pelos caminhos da árdua luta.

1912. A sede do clube é uma saleta despojada. Pequena mesa para reuniões, uma dúzia de cadeiras, o armário envidraçado onde permanecem o livro de atas e as cópias dos ofícios dos clubes da várzea desafiados todas as semanas. Numa prateleira rústica repousam pequenos canecos, um ou outro troféu oxidado. A mesa de pingue-pongue se sustenta em três cavaletes. Modestas, as taças são lembranças de vitórias anônimas que repercutiram pouco além dos ouvidos do povo trabalhador. Era o que o clube tinha de valioso, de seu.

O aluguel da dependência, 35 mil réis, estava atrasado. O senhorio condescendeu a princípio. Conversou numa boa. Mas bastava olhar o rosto sem jeito dos rapazes para apalpar a interrogação que estava no ar: cadê o dinheiro, senhor? Espremendo o bolso da moçada, revirando o forro, virando os sujeitos de cabeça para baixo, era mais fácil pular fora uma lagartixa que o “vil metal”.

Precatado, já cismando o pior, o dono da salinha com toilettepôs as barbas de molho na bacia da prudência e avisou, com voz dura: “Ou acertam o aluguel ou... tranco tudo!” E foi girando a chave na fechadura que ele havia mandado trocar. Dali não saía nem uma cadeira. Ficava tudo retido em garantia da dívida. “Epa! E as taças? E as atas? E o armário envidraçado? E os blocos de papel para mandar ofício?”

O senhorio se despachou com a boca amarga só de pensar no provável cano, enquanto a rapaziada estudava um jeito de salvar a pátria. Fazer uma “vaquinha” não era coisa assim da noite para o dia. Dizem que quem deu a idéia temerária foi Neco,

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garoto ainda: “Retirar os trecos e badulaques à sorrelfa, de noite, pelo janelào e pela clarabóia”.

Combinou-se. Dito e feito. Madrugada fria e úmida, sem luar, naquela hora quieta em que até os grilos dormem, os vultos solertes caminharam nas trevas como duendes, forçaram as cremonas, treparam por uma escada de pintor de paredes — o clube tinha bons pintores em seu quadro associativo — , invadiram a saleta sem bulir na fechadura, retiraram tudinho, comandos em ação. Deixaram as quatro paredes nuas como a mulher de Adão. Até a folhinha de reclame do Ao Paraíso das Andorinhas — uma loja na rua Marquês de Itu, nQ 40, que vendia camisas para senhoras a 4 mil e quinhentos réis — carregaram embora.

O dono da saleta voltou na manhã seguinte para dar outra prensa; em vez da sede montada encontrou a desolação da sala reduzida ao silêncio. Os corinthianos haviam batido as asas sob o testemunho cúmplice das estrelas.

A dívida do aluguel foi paga meses depois, sem pressa, sem afobação. Mas as taças— primeiro patrimônio do clube — as taças que antecederam o fulgor da primeira taça arquivada foram tão bem guardadas que, assim como as primeiras atas, ninguém mais delas soube dar notícias.

Per aspera aci astra. 1913. Admitido finalmente na Liga Paulista de Futebol, vai o Corinthians disputar seu primeiro campeonato. Tudo são esperanças e euforia. Moleza pura! No primeiro turno, quatro adversários que não iriam dar nem para o cheiro... Sai tudo pela culatra! O Corinthians tomba diante do Americano, do Santos, do Internacio­nal, do Germânia. Os adversários mofam. “Timinho! Timinho!” Aquilo dói no fundo da alma.

Per aspera a d astra. Casimiro do Amaral, o captain do time, o técnico, que assumira o posto no lugar de Rafael Perrone, engole a afronta como se fosse uma esponja embebida em fel. A salvação era ir buscar no segundo e no terceiro quadros os reforços para lavar a honra alvinegra. Entre eles, aquele meninote que havia ajudado a salvar o “patrimônio” do clube na sede ameaçada de despejo por falta de pagamento do aluguel: Neco!

Os substituídos não chiam. Em primeiro lugar, acima do amor próprio e do orgulho pessoal, o Corinthians. O próprio César Nunes, que era um dos fundadores do clube, aceita recuar para a linha-média quando lhe pedem, e ali vai conquistar o apelido de Paredão.

O Corinthians vai para o segundo turno, na sua primeira disputa de campeonato, com uma equipe em que se mesclam agora jogadores da primeira hora e os “reforços”. Casimiro do Amaral continua no gol. Fúlvio e Casemiro Gonzales formam a zaga. Police, Alfredo e Lepre na linha-média. Na ponta direita, César começa a perder a posição para Dias; Peres permanece, mas Fabi se reveza com Amílcar Barbuy, craque extraordinário vindo do Botafogo da rua Paula Souza, que logo se impõe na equipe. Rodrigues continua

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firme na meia-esquerda, mas Campanella é ofuscado pelo brilho do novato Neco, que lhe toma o lugar.

Com tais modificações, no segundo turno o Corinthians é outro time. Dá a volta por cima. Recupera os pontos perdidos. Aperta os favoritos. Desbanca a empáfia dos adversários com fibra e, ao mesmo tempo, com humildade. Por fim chega à terceira colocação, depois de estar no fundo do poço. À sua frente, apenas o campeão, o Americano, e o vice, o Germânia.

Casimiro do Amaral — que fora o captain do time nas heróicas jornadas do ingresso na Liga Paulista de Futebol e naquele primeiro campeonato de estréia — começara a dar estrutura ã equipe e preparara, por antecipação, o esquadrão de 1914, que venceria o campeonato invicto. Sem nenhum ponto perdido!1

Casimiro do Amaral logo deixaria o gol, em seu lugar entraria Sebastião — que por vezes se revezaria com Aristides de Oliveira (o rapazinho que também secretariava e fazia as atas das primeiras reuniões da diretoria).

O Corinthians começa a transformar-se num rolo compressor. O time, com Sebas­tião ou Alcides, Fúlvio e Casemiro Gonzales; Police, Bianco e César; Américo Fiaschi, Peres, Amílcar, Aparício e Neco, vai passar por cima do Internacional, do Lusitano, doMinas Gerais (o mesmo Minas do torneio de ingresso na Liga), do Hydecroft (da cidade

^ 2de Jundiaí), do Campos Elyseos e do Germânia (que muitos julgavam... imbatível) .

Assim se fez o campeão invicto de 1914. Assim se forjou o Corinthians Paulista. Até então haviam sido disputados quinze campeonatos em São Paulo, feito igual jamais se vira: o Corinthians Paulista foi o primeiro clube da cidade a conquistar o título de campeão sem ter perdido nenhum ponto! A torcida delirava. A bandeira benta alvinegra tremulava, ainda que sem companheiras. Bom em tudo. A defesa menos vazada, apenas vencida em 8 gois. O ataque, arrasador: 34 gois. Neco, com 12, começava a consagrar-se como grande artilheiro e confirmação de uma maravilhosa promessa.

Per aspera ad astra. O Sport Club Corinthians Paulista principiava a cumprir seu destino, concretizava o sonho antes tido como impossível a um “clube de operários”. Não tinha aparecido apenas para vencer. O Corinthians vinha implodir barreiras, transpor os desfiladeiros da discriminação, fazer uma revolução incruenta em que os canhões eram chuteiras enlameadas e recuperadas na segunda-feira com pedaços de sebo obtidos no matadouro.

Na História do Futebol no Brasil, Thomaz Mazzoni, pesquisador sério e incansável que unia sua paixão “palestrina” ao respeito rigoroso à verdade dos fatos, reconhece, de forma definitiva: “Com o Corinthians, pela primeira vez era admitido no campeonato de São Paulo um clube tipicamente de bairro, de rapazes operários.

Foi este o marco inicial da democratização do futebol paulista, tornando-o o esporte do povo e para o povo.

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Mais que isso: o Corinthians trouxe para cima, para o futebol oficial, rapazes dos chamados pequenos clubes de bairros, da várzea, impondo um novo estilo, mais arrojo, mais malícia e um outro espírito de combatividade”.

Mais arrojo e visão das coisas. Enquanto os “cartolas” tentavam se entredevorar, cada entidade puxando as brasas para seu fogareiro, a força política do futebol esvaía-se na direção do Rio de Janeiro.

Ao Corinthians Paulista não interessava ganhar quantos campeonatos fossem num clima de divisão e de discórdia. Não podia haver dois futebóis — o dos “ricos” e o dos “pobres”, um para cá, outro para lá. O trato com a bola, a deferência para com essa dama ilustre é que devia regular o título de campeão.

A Associação Paulista de Esportes Athleticos estava de olho gordo no Corinthians, louquinha para conquistá-lo. O clube tinha jogo, tinha torcida, tinha craques, dava espetáculo, independente de sol ou chuva. Quando o Corinthians jogava, a cidade amanhecia bem-humorada.

Claro que o Corinthians respeitava a várzea, a várzea estava no seu sangue. Respeitava os clubes de várzea que enfrentava na Liga. Mas o perfume da glória e do sucesso se evolava dos lados do Velódromo, dos lados da ma da Consolação. A Asso­ciação Paulista de Esportes Athleticos tinha uma imagem de entidade “mais organizada”, aos poucos conseguira impor-se, ainda que a Liga Paulista de Futebol fosse muito mais antiga. A idéia de o Corinthians Paulista filiar-se à APEA não obtinha apoio unânime. A mentalidade dos dirigentes também começava a sofrer determinadas influências — Alexandre Magnani, o homem do tílburi, que conduzira o clube com os mesmos cuidados com que acionava as rédeas de seu veículo, percebia que as coisas iam mudar. Estavam mudando. As aspirações de ser um “grande” entre os “grandes” exigiam, tudo fazia crer, a tomada de novos caminhos.

Per aspera a d astra. O Corinthians ia pagar o preço de seu arrojo.

Notas

1. Embora em algumas narrativas sobre os primeiros anos do Sport Club Corinthians Paulista se observe certa confusão entre o goleiro Casimiro do Amaral e o zagueiro Casemiro Gonzales — o primeiro é normalmente citado como o segundo técnico do clube, logo depois de Rafael Perrone — , parece não haver dúvida de que, apesar de passagem relativamente rápida como jogador de agremiação, Casimiro do Amaral, captain da equipe no torneio de ingresso na Liga e na disputa do primeiro campeonato, em 1913, merece e deve ser citado como elemento importantíssimo na estruturação da equipe, sendo a ele atribuída a convocação de Neco do 2Q quadro para o 1Q. Não por acaso, Casimiro do Amaral era estimadíssimo por Antônio Pereira, muito seu amigo. Pereira dá Casimiro do Amaral como sendo português (conforme consta no suplemento “Corinthians”, da Folha de S. Paulo de 18 de dezembro de 1974), mas Leopoldo SantAnna diz que Casimiro de Amaral era brasileiro. Brasileiro ou português, talvez. Mas um dos primeiros grandes craques corinthianos, sem dúvida...

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2. Depois do ingresso do Corinthians Paulista na Liga Paulista de Futebol abriu-se caminho para outros clubes varzeanos, como era o caso do Campos Elyseos e do Lusitano (este se chamou inicialmente Aliança, e foi o primeiro clube a sagrar-se campeão da várzea de São Paulo). Essa “invasão” varzeana na Liga horrorizava alguns “puristas” do futebol, que se apegavam mais e mais ã Associação Paulista de Esportes Athleticos. A Liga popularizava-se em demasia, diziam esses críticos. A Associação Paulista de Esportes Athleticos começara com apenas três clubes, o Paulistano, a Associação Athletica das Palmeiras e o Mackenzie. Depois a ela se filiaram o Ypiranga (que logo voltou à Liga e reunia “rapazes comerciários”, o que já era considerado uma “concessão” não bem-vista pelos demais clubes de “elite” e o Scottish Wanderers. A divisão entre o “futebol popular” e o “futebol de elite” era bastante nítida. No Velódromo, o campeonato tinha menos clubes mas as rendas eram bem maiores que no campeonato que se realizava no Parque Antártica. E, sem rendas, os clubes bracejavam contra a maré. No campeonato da Liga Paulista de Futebol, o Corinthians começava a superar todos os demais adversários em público e renda. O “clube dos operários” principiava a impor-se como um “grande” entre os “pequenos”. Então a Associação Paulista de Esportes Athleticos achou que estava na hora de “ceder” em seus fúteis preconceitos e o Corinthians só valorizaria o campeonato da entidade. E o Corinthians queria mesmo, a partir de então, acertar as contas com o Paulistano, a Associação Athletica das Palmeiras e o Mackenzie. O “clube dos operários” tinha descoberto sua força e nada mais o seguraria.

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XVIIIA primeira bola morreu de velha

(e de emoções)

Charles William Miller, paulistano do Brás1, filho de pais ingleses, agente da Mala Real Inglesa, tinha 20 anos quando, após completar seus estudos na Banister Court

School, em Southampton, voltou da Inglaterra, em 1894. O rapaz gostava de esportes, era sócio do São Paulo Athletic Club, agremiação fundada em 1888 e que existe até hoje no bairro da Consolação, em São Paulo.

Ao descer do navio no porto de Santos e pisar terra firme após quase um mês de travessia marítima, o jovem Charles trazia na bagagem duas bolas de futebol usadas, com visíveis marcas de travas de chuteira, dois jogos de camisa para times de futebol, uma bomba de ar e um livro de regras de futebol.

As bolas eram souvenirs e testemunhas de um fato singular: Charles Miller foi o primeiro brasileiro a mostrar seu futebol na Europa, antes mesmo de o futebol existir no Brasil. E não era um futebol pequeno, de aprendiz. Era futebol de craque. Charles abafara na Inglaterra atuando como centro-avante de um selecionado do condado de Hamshire contra o Corinthian Football Club, já então o mais famoso clube amador de futebol da Grã-Bretanha. O jogo fora em Southampton. Quando o árbitro apitou o fim da partida, Charles pediu para ficar com a bola. Essa bola ele a trouxe para o Brasil, juntamente com uma outra, que fora utilizada numa partida entre a equipe do condado de Sussex e o mesmo Corinthian inglês, da qual Charles Miller também participara. Essas duas bolas tinham portanto para Charles Miller uma espécie de valor sentimental, eram como dois troféus, e traziam um pouco do espírito “corinthiano” que iria inspirar, 16 anos depois, os fundadores do modesto clube do Bom Retiro.

Ao contrário destes tempos, em que a bola de futebol entra no campo limpinha, brilhando de nova, elegante como o uniforme dos goleiros, e muitas vezes sendo substituída nos 90 minutos da partida por outra companheira mais descansada, as primeiras bolas eram obrigadas a correr e a pular em ritmo de várzea brava, como ainda acontece nas periferias da vida. Quase sempre a bola entrava em campo já machucada por pontapés sem a menor piedade, com escoriações generalizadas. Eram reutilizadas até que dessem no couro, e era couro mesmo, do bom. Entre uma partida e outra,

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passavam por sessões de massagem com sebo de boi, às vezes levavam pontos cirúrgicos para fechar lacerações brutais, e não era raro terminarem sua carreira completamente deformadas.

Como as duas primeiras bolas pioneiras de Charles Miller, a maioria delas, mesmo quase duas décadas depois, era importada. Comprar uma bola de futebol podia ser muito simples para os clubes bem-instalados, que tinham atrás de si o capital auferido com o café ou com o apoio de colônias estrangeiras prósperas.

Mas quando cinco rapazes metidos a balão conferem os bolsos e verificam que, além de um restinho do salário de trabalhadores, possuíam apenas a boa vontade de um punhado de simpatizantes, e haviam comprado um jogo de camisas, aquelas desgraça­das camisas que desbotavam, e ainda tinham de alugar o campo, e precisavam ter ao menos uma maleta para cânfora, arnica, esparadrapo, éter e algodão, com uma cruz vermelha na tampa de madeira, para indicar que aquela era a caixa de medicamentos que todo time sério tinha que exibir, e mais o saco dos uniformes, e os calções, e as meias, e ainda por cima pagar a bordadeira que estava colocando com linha preta as letras iniciais do clube — que foi o primeiro distintivo — , somando tudo, aqueles rapazes tinham de fazer das tripas coração se queriam uma bola de futebol nova.

E só podia ser nova, ora pílulas! O Sport Club Corinthians Paulista — com esse nome todo pomposo — não iria querer estrear na vida pedindo bola usada emprestada dos outros.

Os rapazinhos caminharam até ao ponto final do Bonde 15 Bom Retiro, na rua dos Italianos. Dizem que eles levavani 6 mil réis, conseguidos com uma vaquinha, e mais o dinheiro das passagens. Sentiam-se importantes, quase ricos, até porque o atencioso Miguel Bataglia, que condescendera em ser “presidente provisório” do clube, enquanto riscava um jaquetão no papel manilha dera a entender que podiam contar com ele em caso de apertura, desde que não fosse demais da conta.

O Bonde 15 Bom Retiro, elétrico, era um dos confortos do bairro e até um orgulho. Quebrava um galhão. A linha funcionava desde o dia 13 de maio de 1900, fora inaugurada seis dias depois da primeira linha de bondes elétricos, instalada na Barra Funda, e substituíra os carros de quatro bancos puxados a burro da Companhia Viação Paulista. O Bom Retiro tinha sido o segundo bairro de São Paulo a dispor de bonde elétrico, um serviço público da The São Paulo Tramway, Light and Power Company, Limited, e que o povo tratou de simplificar para, simplesmente, Ligth.

O Annual Report, 1910 da. empresa informa que São Paulo tinha naquele ano mais ou menos 400 mil habitantes, o número de licenças para novas edificações passava de 3-200, o Bom Retiro também crescia, até o chamavam de “Manchester brasileira”, o bairro tinha pressa, não podia depender dos antiquados bondes puxados por burros que o ligavam à Bela Vista, ao Bexiga, passando pela rua Direita. A Light antevia que ninguém poria freios ao crescimento da cidade e tratou de construir, naquele ano de 1910, na alameda Glete, a Estação de Bondes nQ 1, com capacidade para 100 carros. Parecia um

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exagero, como exagero parecia um grupo de operários pegar o Bonde 15 com o dinheiro contado no bolso para comprar no centro comercial da cidade uma bola de futebol importada.

No Bom Retiro os trilhos do bonde terminavam em ponta, não havia balão de retorno. O motorneiro e o cobrador viravam todos os bancos e o carro retomava o trajeto, que ida e volta tinha pouco mais de 7 quilômetros e gastava no todo 44 minutos, isso quando não tinha boi na linha. A passagem custava 200 réis, o dobro do preço do “caradura”, um bonde-reboque, aberto, menor, preferido dos operários, onde se viajava, ao lado de cestas de repolhos e sacos de cebola e jacás de frango, por um tostão.

O Bom Retiro chegava até ao largo de São Bento, que fazia parte do miolo comercial da cidade. ‘'Ir à cidade’’ significava buscar a luminosidade das vitrinas e o bulício das pessoas nessa região, o que exigia um certo apuro no trajar. Havia roupa para “ir à cidade”.

Não há registro fotográfico dessa incursão dos jovens, mas a experiência dos olhos de pessoas vividas garante que os fundadores do Sport Club Corinthians Paulista entraram na Casa Fuchs com temo completo, gravata e palheta, e foram logo pedindo uma bola de capotào — ou “capão” — e falaram aquilo com a voz trêmula, quase sufocada na garganta-.

O alemão Fuchs era um comerciante sabido. Desde 1905 ele fazia pequenos anúncios de sua loja, que ficava na ma São Bento, 83-A, tinha caixa postal ne 373 e oferecia um grande estoque de foot-balls. de fabricação legítima inglesa, com vendas por atacado e a varejo “a preços reduzidos e sem rival e só de exclusivamente superior qualidade”. Volta e meia a Casa Fuchs recebia novos sortimentos da mercadoria, que era novidade. Foi um desses pequenos “reclames” de ballsa um precinho mais camarada que atraiu os rapazes do Corinthians à loja. onde adquiriram a primeira bola de futebol do time. Há quem afirme — como Thomaz Mazzoni — que essa bola custou exatos 6 mil réis. Ou bem menos, na opinião do corinthiano histórico Chico Dionísio Mendes. De qualquer forma a Casa Fuchs participou da vida do Corinthians como de outros tantos clubes de futebol no correr dos anos, pelo apoio e incentivo que ofereceu a esse esporte, inaugurando até mesmo o m erchandisin gesportivo na cidade de São Paulo, se não no Brasil. Em 1917, instituiu a Taça “Casa Fuchs ’, conquistada pela Associação Paulista de Esportes Athleticos naquele ano e nos seguintes. 1918 e 19193- Dez anos depois, em janeiro de 1929, já então estabelecida na ma Libero Badaró, nQ 10, e funcionando sob a denominação social Machado, Mesquita & Cia., a loja continuava sua tradição de apoio aos esportes editando o Guia Brasileiro deFoot-ballA ssociação, orientando, ensinando e explicando regras e jogadas do futebol, tudo com ilustrações, e minucioso a ponto de mostrar “o modo correto de bater o escanteio sem remover a bandeira” e enumerando, entre as qualidades exigidas do “capitão da equipe”, as mesmas de um “general cuja autoridade deve ser absoluta”. A Casa Fuchs acompanhou durante longo tempo a evolução e a consolidação do comércio de São Paulo, tendo a dirigi-la outros sucessores

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e distinguindo-se, em determinada época, como “a maior casa de artigos para esportes em todo o Brasil, com artigos para futebol” (a loja se encarregou de abrasileirar o termo), “tennis, croquet, pingue-pongue, remo, natação, water-polo, hockey, esgrima, bola ao cesto, gymnastica, athletismo, box, patinação, volley-ball ”... Mas, entre móveis de vime e junco, “sellins nacionaes e extrangeiros, para meninos, cavalheiros, amazonas e jockeys, arreios finos para carros”, anos depois sua grande atração passou a ser a bola de futebol Apollo, marca registrada, por ela fabricada, em próprias oficinas, por oficiais de longa prática, anunciada como “a melhor bola para jogos officiaes”. A Apollo diferia das outras bolas de futebol por ter 12 gomos completamente iguais: “resulta desse corte feliz uma redondez perfeita e permanente que não se perde com qualquer tempo, nem com prolongado uso. Devido a este corte a bola Apollo supera em durabilidade a todas as outras, sendo ella considerada a bola mais própria para os campos duros e desgra- mados do interior”. Cada bola Apollo vinha acompanhada de uma câmera de ar da melhor borracha vermelha, inglesa, marca Raposa. Pois bem. Não poucas vezes, o Corinthians foi buscar a vitória em campos “duros e desgramados” e trouxe a bola do jogo como troféu. Algumas delas permanecem, silenciosas e humildes, como recordação da época romântica em que as bolas eram anônimas e sem enfeites. O suor dos jogadores impregnou sua pele áspera e secou com o tempo. Mas elas, todas, trazem as cicatrizes das refregas. Tornaram-se “corinthianas” porque foram conquistadas com a força e, principalmente, com o coração do povo.

Contudo, a primeira bola — o início do sonho e o primeiro grande sacrifício daqueles cinco jovens — não existe mais, a não ser na memória e na certeza de que, um dia, ela quicou, correu, voou, e, ainda que encharcada de lama, ou coberta de poeira, feia, rude, enrugada e exausta, jamais será esquecida.

Notas

1. Charles Miller nasceu na rua Monsenhor Andrade na casa de seus avós paternos, no dia 24 de novembro de 1874.

2. Há quem afirme que a primeira bola do Corinthians poderia ter sido adquirida numa suposta Casa São Caetano, que teria funcionado na rua do mesmo nome, no bairro da Luz.

3. A Taça “Casa Fuchs”, toda de prata de lei com arabescos trabalhados a mão em alto relevo, tinha sido feita na Holanda e fora ofertada por Jorge Fuchs em 1917, para ser disputada entre as seleções da Associação Paulista de Esportes Athleticos e da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, que correspondia a um campeonato entre São Paulo e Rio. Media 70 centímetros de altura fora a base, a qual era de madeira preta imitando ébano. Pesava uns 15 quilos.

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XIXO bom humor que

atravessa os tempos

Embora seja trabalho para muitos anos de paciência e investigação, não há dúvida de que a história do Corinthians poderia ser narrada a partir de seus troféus. São muitos. Alguns são lembranças de cidades pequenas, remotas, onde a equipe jogou. Outros são peças de raro valor intrínseco, ofertadas por clubes e entidades de prestígio

internacional. Contudo, independente de seu valor material, do peso, da consistência, do formato, do trabalho artístico que encerra, todo troféu vale como um símbolo, um sinal. Ele é, sempre, uma referência do clube, de suas lutas, de seus sacrifícios e do esforço individual e coletivo que exigiu. Pode-se dizer que as pessoas passam mas os troféus permanecem. É evidente que uma bola de couro datada de 1962 na qual se lê “Tetracampeão Paulista de Basquete Feminino” revela quatro anos de vitórias, a pujança do esporte feminino, num período em que o Corinthians é lembrado, por quem não tem memória, como o clube que ficou mais de duas décadas sem conquistar o campeonato paulista de futebol. Mas a primeira taça do Corinthians não foi conquistada no futebol, e sim numa corrida de pedestrianismo. Desde os primórdios o Corinthians foi um clube poliesportivo. Numa época em que viveu sem títulos de campeão no futebol, esbanjou raça, categoria, pujança e glórias em todas as outras modalidades esportivas. Mas às vezes um troféu é também um mistério, um enigma: a bola branca com a inscrição “A.A.B.B.” não traz nenhuma outra referência. Ela está na sala dos troféus como uma curiosa charada, mas sem dúvida significou, num momento, numa data, numa circuns­tância qualquer, algo especial e marcante. O mesmo se pode dizer desse outro “objeto”, que teria tudo para ser uma bola normal, não fosse... quadrada! Ela está na sala dos troféus sem nenhuma indicação histórica. Pelo "estilo”, pela conformação dos gomos, pelo tipo de costura, trata-se de uma bola antiga e até mesmo castigada, mas não existe mençào de data ou circunstância que explique sua transformação em troféu. É possível que ela represente simplesmente o bom humor do torcedor corinthiano que a atirou molequemente no gramado durante uma partida contra a Portuguesa de Desportos. Essa bola insólita foi expulsa do gramado pelo árbitro durante uma imemorial partida no Parque São Jorge, sob gargalhadas da galera, e daí para a vitrina da sala de troféus foi

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um pulinho... Pelo menos essa é a versão que corre, mas nem Teleco, que depois de pendurar as chuteiras cuidou, durante anos, dos troféus corinthianos, confirma tal explicação. Enfim, a bola “quadrada” deve ter um razoável motivo, ainda que oculto, para estar onde está.

Já a história do osso de boi elevado à condição de “troféu” remonta ao ano de 1918, época em que — não é nenhum desdouro dizer — o Corinthians ainda nem cogitava de ter uma... sala de troféus. Nessa época valia tudo, até gorrinha de jogador. Especialmente quando o objeto se referia a qualquer conquista sobre o novo adversário que participava do campeonato, o Palestra Itália. No dia 13 de maio daquele ano os dois times se enfrentaram, numa partida que terminou com empate de três gois.

Antes do jogo, como era comum, os jogadores do Corinthians reuniram-se para almoçar no restaurante dum hotel da rua Boa Vista, no centro da cidade. Tomavam uma refeição leve, uma canja. O restaurante envidraçado dava para a ma. No meio da refeição, passa um bando de palestrinos, identifica os jogadores à mesa, provoca: “É canja, é canja, é canja de galinha, arruma outro time para jogar com nossa linha”. Não se sabe de onde, aparece um osso de boi, que os palestrinos atiram para dentro do restaurante. Sem dizer uma palavra, levando a coisa na esportiva, alguém do Corinthians apanha o osso, embrulha-o cuidadosamente num pedaço de papel manilha, leva-o para o campo, quem sabe com segundas ou terceiras intenções. O resultado da partida talvez tenha agradado a torcida, porque o osso, em vez de ir parar na cabeça de um adversário, acabou seguindo o caminho da sala dos troféus. Com uma inscrição: “Este osso era para a canja e não cozinhou por ser duro”. Hoje, com tantos troféus valiosos em sua galeria, o Corinthians poderia abrir mão desse osso, mas ele serve para mostrar a ingenuidade das primeiras rixas entre as duas gloriosas torcidas dos dois clubes.

A bola do Tetracampeonato Paulis­ta de Basquete Feminino, de 1962. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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O que de especial e marcante esconde a inscrição “A.A.B.B.”? (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Prova de bom humor corinthiano: uma bola quadrada! (Foto Antônio Carlos Carreiro)

As torcidas do Palestra Itália e do Corinthians brincam em tomo de um osso de boi, que também foi para a sala dos troféus. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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O galo depenado

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Num estojo forrado de veludo estão guardadas, na sala dos troféus do Corinthians, estas duas penas que o tempo — mais de meio século -— descoloriu. Hoje não

passam de duas pálidas penas. Mas na tarde ensolarada de 18 de agosto de 1940, num jogo entre o Corinthians e o Palestra no Parque São Jorge, essas penas eram verdes e foram arrancadas, uma a uma, de um galo pintado daquela cor, que um torcedor esmeraldino cometeu a ousadia de levar ao estádio, oculto sob o paletó, para soltá-lo no campo e assim provocar os corinthianos. O torcedor palestrino imaginava, com razão, que seu time, que atravessava excelente forma, conseguiria uma vitória fácil. O Corin­thians jogava com José I, Agostinho e Sordi; Jango, Dino e Munhoz; Lopes, Seivílio, Teleco, Joane e Carlinhos. O Palestra: Gijo, Carnera e Begliomine; Carlos, Oliveira e Del Nero; Luisinho, Canhoto, Echevarrieta, Lima e Pipi. Apitava o jogo o árbitro Eneas Sgarzi, que expulsara Sordi, obrigando Munhoz e Echevarrieta a irem para a zaga. Dez contra dez. O jogo ficou 1 a 0 para o Corinthians logo no começo do segundo tempo. Quando Lopes, a seguir, perdeu o segundo gol quase cara a cara com o goleiro Gijo, a enorme torcida corinthiana que se comprimia contra o alambrado acabou por derrubá-lo, e muita gente rolou para dentro do campo. Não houve ferimentos graves em ninguém, mas o jogo ficou interrompido por vários minutos. No final o Corinthians venceu por 2 a 0, gois de Teleco. De repente, alguém descobriu o galo verde. Foi o maior fuzuê. Era só pena que voava. O galo foi sacrificado no altar do esporte bretão — como diria, muito tempo depois, rindo, o famoso Chico Mendes. Outra testemunha que garante ter assistido ao “galicídio” é Antoninho de Almeida, que nessa tarde viu centenas de corinthianos saírem do estádio portando orgulhosos uma pena verde na lapela do paletó e na aba do chapéu— na época, o uso do chapéu era comum, por causa da garoa. Duas dessas penas foram guardadas ad perpetuam rei m em oriam e como solene advertência de que não é bom brincar com os sentimentos mosqueteiros. Contudo há pessoas que põem em dúvida a autenticidade histórica desses “troféus”, sob a alegação de que, nos meses que se seguiram à referida partida de futebol, milhares de torcedores alvinegros passaram a exibir ou a carregar na carteira penas verdes de galo, em quantidade obviamente muito

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superior ao número de penas de um galo normal. Acredita-se que muitas dessas penas tenham sido falsificadas e distribuídas como originais, como, aliás, se viu acontecer no caso do Muro de Berlim. De qualquer forma, uma pena, de autenticidade comprovada, pertenceu ao torcedor Luís Viana, o qual, ao falecer, fez questão de deixá-la como recordação a seus filhos. Além do mais, ainda que adversários lancem dúvidas sobre a existência do próprio galo verde, assoalhando que tal ave é apenas uma lenda forjada por torcedores alvinegros bem-humorados, deve-se reconhecer que o fato, si non è vero, è bene trovato.

As penas do galo na sala dos troféus. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXIA bola de entrega das faixas

O título de Campeão do 4Q Centenário da fundação da cidade de São Paulo era uma questão de honra para a gente mosqueteira e acabou indo para o Parque

São Jorge por antecipação. Uma rodada antes, ao empatar com o Palmeiras por 1 a 1, o Corinthians já era senhor do título tão ambicionado. O último jogo contra o São Paulo era apenas uma festa, as faixas de campeão não dependiam mais de nenhum resultado favorável. Mesmo assim, nenhum corinthiano estava disposto a deixar carimbar a faixa ao adversário. Na tarde de 13 de fevereiro de 1955, numa verdadeira apoteose, Cláudio e Luisinho, a dupla genial, mandou a bola da foto para o fundo das redes são-paulinas. E Nonô, que substituiu Baltazar contundido, fez o terceiro. O resultado de 3 a 1 consagrou definitivamente o time alvinegro como Campeão do 4Q Centenário. A bola foi para a sala dos troféus e o troféu oficial do título — a figura de um bandeirante paulista, em bronze — está hoje colocado num pedestal nos jardins do Parque São Jorge.

Corinthians: campeão no 42 cen­tenário da fundação da cidade de São Paulo. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXIIUma tradição: a “virada”

Ao longo dos anos o torcedor corinthiano aprendeu a confiar no time até o derradeiro segundo do jogo. Não há placar adverso que não possa ser alterado

enquanto houver garra e disposição de luta. A “virada” tornou-se uma das armas do Corinthians: essa capacidade de mudar os números do placar e transformar uma derrota que parece definitiva numa vitória surpreendente. A torcida parece admirar mais o time quando ele consegue extrair forças, muitas vezes, da visível inferioridade diante do adversário. E quantas vezes o herói da vitória acaba sendo o jogador que menos aparecia em campo? Quantas vezes a torcida, encorujada nas gerais e arquibancadas, amuava-se com os caprichos do azar, e de repente uma chuteira alvinegra, modesta e gasta, ilumina com o clarão do gol e da vitória a face da galera?

No campeonato paulista de 1987 — quem não se lembra? — o time vinha caindo pela tabela, derrubado por penosas derrotas, em várias rodadas segurou a lanterna do último lugar. O primeiro turno fora um pesadelo. Em vão Basílio, o técnico, tentara ajustar a equipe. Os adversários, gente sem memória, divertiam-se. O Jo rn a l da Tarde, querendo ser jovial, faz uma brincadeira ácida em sua seção de esportes: publica, invertida, a tabela do campeonato paulista, e tripudia sobre o Corinthians dando-lhe o “primeiro lugar” na colocação das equipes. Vicente Matheus não gosta nem um pouco da desrespeitosa brincadeira de mau gosto e ameaça não dar mais entrevista ao jornal enquanto este não se desculpar. Contudo, o próprio time do Corinthians se encarrega de provar no segundo turno a força de suas tradições: Chico Formiga assume a direção técnica da equipe e o onze alvinegro vai abatendo um a um, como bonecos trôpegos e desengonçados, todos os times adversários. O Corinthians é outro; vira uma fera. E as melhores desculpas que a torcida corinthiana recebe do ágil vespertino paulista é o reconhecimento público — e óbvio — de que não se deve cutucar o Corinthians nem quando ele parece estar em estado de letargia. O Corinthians sobe na tabela, chega em Is no segundo turno, disputa a finalíssima com o São Paulo Futebol Clube. Vence a primeira partida por 2 a 1, empata a segunda por 0 a 0, ambas no campo do adversário, a equipe do Morumbi fica com o título porque tem a vantagem do empate. Mas o Mosqueteiro sai de campo de espada em punho, coberto de respeito da cabeça aos pés.

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Uma das mais gostosas “viradas” que os corinthianos gostam de relembrar foi a que aconteceu em abril de 1971, no estádio do Morumbi, contra o Palmeiras. O clube do Parque Antártica tinha montado uma equipe soberba, com dois grandes maestros — Luís Pereira e Ademir da Guia — e várias estrelas. O Corinthians entrou em campo com Natal na ponta-direita e Sadi improvisado de zagueiro central. Teoricamente, ia fazer o papel de saco de pancadas, de time destinado a servir de tapete vermelho para o oponente pisar. Era dia de fazer das tripas coração. A Fiel compareceu, como sempre, mas com um nó atravessado no gogó. Tremiam as mãos que faziam tremular as bandeiras alvinegras. Como se fossem dois raios disparados pelo céu ensolarado, o centro-avante César colocou duas bolas fulminantes no arco corinthiano. No fim do primeiro tempo, o Palmeiras vencia por 2 a 0. E prometia mais, muito mais. Os palmeirenses estavam bebendo toda a cerveja do estádio Cícero Pompeu de Toledo, aguardando o segundo tempo como quem espera uma apoteose. Esfregavam as mãos e riam da cara murcha do adversário. Um grupinho de corinthianos principiantes, temerosos de uma hecatom­be futebolística, não sabiam se iam embora ou se ficavam. Mas as bandeiras alvinegras continuavam a desfraldar acenos melancólicos. “Fica, fica”, pareciam pedir.

No segundo tempo — ora, ora! — , Mirandinha diminui a desgraça e manda o goleiro Leão ir buscar uma bola redondinha no fundo das redes alviverdes: 2 a 1. A torcida palmeirense continua a pular de alegria, confiante, mas eis que Adàozinho resolve estragar a festa: empata o jogo, 2 a 2! O mingau engrossa. A respiração de ambas as torcidas se torna densa e cálida. As gerais rosnam. O cimento ferve. Mas os palmeirenses explodem de júbilo quando Leivinha desfaz a esperança alvinegra e desequilibra novamente o placar: 3 a 2 para o Palmeiras. Para quem temia ser goleado, não chegava a ser um resultado catastrófico. Mas, e a tradição? Onde estava a tradição da “virada”?

Restam cinco minutos eletrizantes. Tião, a âncora e os remos no peito, é o encarregado pelo destino de acertar as contas: vai lá e faz o terceiro gol do Corinthians, o gol do empate! Nessa altura do jogo a maioria dos torcedores corinthianos está rouca de tanto gritar. Já não sabem se cantam, se dançam, se deitam ou rolam. Os palmeirenses sentem um sufoco na alma. Há alguma coisa de errada no placar. De fato, Mirandinha, quando o sol já empalidece atrás das 'torres do estádio, dá o golpe de misericórdia: o Corinthians vence o Palmeiras por 4 a 3- De “virada”! Alguns esfregam os olhos, não crendo no que viam. Outros enxugam as lágrimas no pano das bandeiras. Rufam os repiniques. Bumbam os surdos. Dos gorgomilos enrouquecidos ainda há fôlego para entoar, como as trombetas demolidoras das muralhas de Jericó, o amado hino: “Salve o Corinthians... eternamente dentro dos nossos corações”.

Em duas dessas históricas “viradas” a bola do jogo foi recuperada e figura hoje como troféu. Em 1929, o Corinthians conquistou o título de Campeão dos Campeões ao enfrentar o Vasco da Gama, no estádio de São Januário. Faltavam 18 minutos para o final da partida, o time carioca vencia por 2 a 0. Aconteceu então a “virada”: em fulminante reação, o time “mosqueteiro” sai de campo vitorioso, marcando três gois em 15 minutos!1

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No dia 26 de agosto de 1930, no Parque Sào Jorge, o Corinthians enfrentou o Hakoah, que vinha cercado de fama por reunir jogadores norte-americanos, ingleses e de outras nacionalidades européias. A partida estava marcada para um domingo, mas, a convite dos dirigentes corinthianos, os visitantes, que haviam chegado alguns dias antes a São Paulo, foram na quinta-feira à Fazendinha fazer um passeio. Antoninho de Almeida, presente na ocasião — integrado que estava desde então na vida do clube alvinegro — , conta que jogadores e dirigentes da agremiação estrangeira aproveitaram para assistir ao treino dos jogadores corinthianos, que iriam enfrentar dias depois. Conversavam animadamente quando entram no campo Aparício, Rato, Gambinha, Nerino, Peres, todos de baixa estatura, parecendo garotinhos. E eram mesmo garotos. O chefe da delegação visitante pergunta a Ângelo Rocco, diretor esportivo do Corin­thians, que fazia as honras da recepção, se aqueles eram os juvenis que treinariam antes. “Não, mister. São os titulares. Eles vão jogar contra os senhores no domingo.” Antoninho de Almeida diz que o dirigente do Hakoah riu discretamente, já imaginando a tunda que iria aplicar nos meninos.

De fato, o Hakoah não se saiu de todo mal no primeiro tempo de jogo no domingo: marcou primeiro, e agüentou o empate de 1 a 1 durante 45 minutos. Até que aconteceu a “virada” corinthiana: 5 a 1 para os “mosqueteiros” baixinhos, garotos que jogavam como gente grande.

Nota

1. O Vasco, que sempre teve posição de relevo no futebol brasileiro, chegou a ser temido como “invencível” em determinada época. Vencer o “Almirante” — seu apelido de guerra — era feito notável. Mais difícil ainda era superá-lo no campo de São Januário. Mais recentemente, o Corinthians levoü 15 anos para quebrar um tabu de disputas sem vitória contra o clube da cruz-de-malta, ao vencer o Vasco por 1 a 0, gol do lateral direito Giba, recebendo passe de Márcio, em jogo pelo Campeonato Brasileiro realizado no dia 2 de março de 1991, no estádio de São Januário, no Rio.

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Bola do histórico jogo contra o Vasco, em 1929- O Corinthians se sagrou Campeão dos Campeões com o time: Tuffy, Rafael e Del Debbio; Nerino, Guimarães e Mu­nhoz; Filó, Peres (Napoli), Gambi- nha, Rato e De Maria. (Foto Antô­nio Carlos Carreiro)

Bola de “virada” contra o Hakoah, dos Estados Unidos, em 1930-. Nessa época o futebol paulista vivia os últimos anos de amadorismo e o Corinthians atravessava um período de grandes conquistas. Desse jogo participaram Tuffy, Grané e Del Debbio; Nerino, Guimarães e Munhoz; Filó, Aparício, Gamba, Rato e De Maria. O Hakoah jogou com Fischer — um grande goleiro — , Mac Millan e Stenberg; Marer, Guttmann e Schneider; Nemes, Heisler, Grunswald, Wortmann e Grunfield. O gol dos visitantes foi marcado pelo ponta esquerda Grunfield. Para o Corinthians marcaram Gamba, Filó, Rato e De Maria, este duas vezes. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXIII

O nascimento do “Mosqueteiro”

O Novo D icionário de Aurélio Buarque de Holanda registra, no verbete “mosque­teiro”, dois significados: “antigo soldado armado de mosquete” e “corintiano”,

sem h. O mosquete há muito tempo que deixou de funcionar, é peça de museu: era uma arma com formato de espingarda, tão pesada que se era obrigado a apoiá-la numa forquilha. Atualmente, falar em “mosqueteiro” é falar em corinthiano. O Corinthians é o time mosqueteiro. É claro que em 1844, quando o escritor francês Alexandre Dumas, pai, escreveu, possivelmente com a ajuda de um outro escritor chamado August Maquet, o famoso romance de espadachins intitulado Os Três Mosqueteiros, não poderia imaginar que o mosqueteiro se tornasse o símbolo mais popular do futebol brasileiro. No livro de Dumas, pai, os três mosqueteiros acabavam sendo na verdade quatro: Athos, Porthos, Aramis e DArtagnan. Os mosqueteiros eram heróis denodados, valentes, audazes e ... bem-humorados. Essa personalidade em que se misturam o destemor na defesa da honra e da justiça e uma alegria lúdica no manejar a espada se ajusta como uma capa de seda brilhante na figura que o torcedor vê no jogador corinthiano.

O que foram Luisinho — o Pequeno Polegar — , Idário, Baltazar, Palhinha, Basílio, Mário — o ponta-esquerda que driblava a própria sombra e que se divertia, na quadra de basquete do Parque São Jorge, encestando a bola arremessada com os pés! — , Touguinha, e tantos outros no passado, e o que são tantos outros no presente, como Tupãzinho, Fabinho, Márcio, Marcelo, senão “mosqueteiros” empenhados em duelos espetaculares, revertendo situações desfavoráveis, nunca se dando por vencidos mesmo quando derrotados, e envolvendo toda partida num clima de dramático lirismo? O torcedor vê o jogador corinthiano assim: um “mosqueteiro”, que pode até perder o jogo, mas jamais pode abdicar do dever de lutar até o fim.

A primeira vez em que o Corinthians apareceu citado como “mosqueteiro” foi após o jogo contra o Barracas, da Argentina, realizado no dia 10 de fevereiro de 1929 no Parque São Jorge. O Corinthians atravessava uma fase brilhante. No ano anterior, 1928, conquistara o título de campeão e repetiria o feito em 1929, invicto. Os argentinos, porém, tinham time para enfrentar qualquer campeão e sabiam que abater o Corinthians naquela oportunidade significava conquistar uma supremacia incontestável no futebol sul-americano. Jogaram tudo o que sabiam, mostraram toda a sua categoria, mas o placar

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nào deixava dúvidas sobre quem era o melhor: 3 a 1 para o Corinthians. Essa foi a primeira vitória internacional do clube do Parque São Jorge. No dia seguinte, impressio­nado com a atuação da equipe alvinegra, empolgado com a disposição de luta dos jogadores, que pareciam seguir o lema “um por todos e todos por um”, Thomaz Mazzoni, jornalista que assinava a maior parte de seus comentários com o pseudônimo de Olimpicus, publicou na A Gazeta Esportiva uma crônica toda feita de elogios, na qual chamava o Corinthians de time formado por onze mosqueteiros, por sua bravura e garra. O apelido pegou imediatamente. Conquistou o carinho do povo e um lugar cativo nos dicionários como sinônimo de corinthiano. Contudo, o termo lançado em feliz oportu­nidade por Thomaz Mazzoni tinha algo a ver com o passado e a própria história do Corinthians. “Mosqueteiro” não foi uma escolha feita a esmo. Quando o Corinthians em 1913 — três anos após sua fundação — decidiu entrar para valer na luta com os maiores e melhores clubes da época, encontrou desde logo uma situação anômala que refletia em grande parte a discriminação da “elite” em relação à popularização do futebol. O futebol paulista, que até então era dirigido pela Liga Paulista de Futebol, sofria violenta cisão. O Clube Athletico Paulistano, que havia fundado aquela entidade, rompe com ela e em abril daquele ano funda uma nova entidade, a APEA, Associação Paulista de Esportes Athleticos. Filiados à APEA, o Paulistano, a Associação Athletica das Palmeiras, o Club Athletico Ypiranga, a Associação Athletica Mackenzie College e o Scottish Wanderers realizam seu próprio campeonato.

A Liga Paulista de Futebol, esvaziada de seus principais clubes, ficava a ver navios. Permaneciam ligados a ela apenas dois clubes da cidade de Santos — o Sport Club Americano e o Sport Club Internacional — e um clube da capital, o Sport Club Germânia.

Esses três clubes passam a ser gozados pelos adversários e mesmo por alguns órgãos de imprensa. São chamados de “Os Três Mosquiteiros”, mosquiteiros de mosquito. Era o desprezo. É nesse momento histórico do futebol brasileiro que o Sport Club Corinthians Paulista enxerga sua brecha para assumir uma nova posição: aproveita que o Sport Club Internacional pedira licença da Liga Paulista de Futebol, e solicita a vaga. Quer disputar o campeonato pela Liga, no lugar do Internacional. Ele quer ser um dos três... “mosqui­teiros”. Tinha credenciais: uma equipe respeitada na várzea e pelos campos do interior de São Paulo, um número razoável de associados, uma diretoria com a cabeça no lugar, que tinha planos e idéias, e uma torcida que acompanhava o time.

Naturalmente havia outros candidatos à vaga, mas o Corinthians foi quem a conquistou. A Liga Paulista de Futebol autorizou a filiação, mas sucedeu outro impre­visto: o Sport Club Internacional superou a crise interna que o abalava e decidiu disputar o campeoanto pela Liga, o que era legal, visto que apenas se licenciara. E com isso sobrava o Corinthians. O clube alvinegro protestou, defendeu seus direitos, insistiu no pedido de filiação. Ele queria ser o terceiro ou quarto... “mosqueteiro”.

O Sport Club Corinthians Paulista teve de provar ser bom espadachim no gramado, enfrentando o Minas Gerais e o São Paulo. Hoje, o Corinthians é o único “Mosqueteiro”

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do futebol brasileiro, conforme consta, inclusive, no dicionário do Professor Aurélio Buarque de Holanda...

O time “mosqueteiro” de 1929 jogava com Tuffy. Grané e Del Debbio; Nerino, Guimarães (Amador) e Munhoz (Leone); Filó (Aparício), Peres III (Neco), Gambinha, Rato e De Maria (Rodrigues). É interessante notar que alguns corinthianos mais antigos costumam dizer que os “três mosqueteiros” do time foram Nerino, Guimarães e Munhoz, que compunham a linha-média legendária do time. O que importa é que a bola desse jogo histórico de 1929 foi apanhada por mãos solertes e hoje repousa, como seus gomos de couro grosso e a epiderme ferida na pugna, como um dos troféus de todos os “mosqueteiros” vivos, mortos e por nascer.

O Barracas, de Buenos Aires, na realidade reunia uma seleção de craques argentinos que excursionavam para mostrar no exterior o poderio do futebol de seu país de origem. Eram embaixadores futebolísticos na expres­são plena das palavras. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Corinthians, o time mosqueteiro. (Ilustração de Dino)

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XXIVA bola da noite iluminada

D ificilmente uma bola, uma simples bola de futebol, poderá recordar tanta emoção e resumir tantos anos de espera e tal explosão de alegria como essa do jogo entre

o Sport Club Corinthians Paulista e a Ponte Preta, de Campinas, realizado na noite memorável de 13 de outubro de 1977 no estádio do Morumbi. Após 23 anos sem levantar o título de campeão no futebol profissional — embora conquistando um sem-número de títulos e troféus honrosos em diversas outras modalidades esportivas — , o Corinthians rompeu uma espécie de sina tormentosa, durante a qual foi testada a perseverança, a fidelidade, a união de sua imensa torcida e de sua incontável legião de simpatizantes. O longo período de provação valeu como batismo de fogo de sua torcida, que passou a ser conhecida como — a Fiel. E foi a Fiel que iluminou com seu brado de guerra e incentivou a equipe corinthiana naquela noite em que Basílio, aos 37 minutos do segundo tempo de um jogo trepidante, empurra para dentro do gol essa bola que brilhou, naquele instante, mais do que a mais brilhante estrela do céu brasileiro.

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A bola campeã de 1977.(Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXVUma bola especial

T alvez fosse o caso de se retomar, hoje, o hábito de ceder ao clube vencedor de um título importante a bola do jogo final, como recordação. No passado, embora sem qualquer determinação oficial nesse sentido, alguém sempre acabava tomando posse

da “pelota” — como falavam os locutores esportivos no tempo do Araken Patusca — e a escamoteava, para enriquecer a vitrina dos troféus. Aliás, o jogo nem precisava ser decisivo. Bastava que o torcedor entendesse que fora um “jogo especial, marcante”, para que a bola fosse... seqüestrada. Esta bola da foto refere-se a uma partida realizada no dia 30 de setembro de 1934, ano em que o Corinthians foi 4- colocado. Para entender por que essa bola foi recolhida como um troféu, é preciso retroceder no tempo e observar que, após conquistar o tricampeonato de 1928-1929-1930, o Corinthians começou a enfrentar sérias dificuldades. No ano de 1931 caiu para a 6a colocação e somente iria recuperar seu antigo prestígio a partir de 1937, quando chegou a vice-campeão. O time atravessou, portanto, um período de vacas magras, uma verdadeira crise, que exigiu medidas profundas para salvar o clube. No ano anterior, 1933, amargara uma derrota difícil de engolir diante de seu tradicional rival alviverde e, embora houvesse explicações cristalinas para justificar o resultado adverso, uma coisa era patente: fazia cinco anos que o Corinthians não derrotava o Palestra. De modo que aquele jogo em 1934 contra os alviverdes não era um jogo como os outros. A torcida corinthiana estava mordida. O jogo começou soltando faíscas para todos os lados. O primeiro tempo estava chegando ao fim, com empate sem gois, quando o juiz da partida, Afonso Mesquita, aos 42 minutos, resolve expulsar o corinthiano Brito, que — conforme rezam as crônicas alvinegras — não merecia a punição. O time do Corinthians vinha se recompondo aos poucos ao longo do campeonato, conforme se conclui pela escalação do quadro naquele ano e os eventuais substitutos: Jaguaré, que às vezes era substituído por José, Jaú e Jarbas; Brito (ou Jango), Guimarães e Carlos (que entrava no lugar de Munhoz); Tedesco, Lopes (muitas vezes entrava Baianinho em seu lugar), Mamede, Rato I e Rato II. O Corinthians, é evidente, procurava superar a deficiência técnica em algumas posições com um espírito de luta elogiável, até comovente, mas o sr. Mesquita achou que Brito era demais no campo e o mandou para o chuveiro. O Corinthians ia jogar com 10 elementos, mas a atuação do árbitro fora tão evidentemente equivocada que foi substituído no segundo

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tempo pelo juiz Pedro Alexandrino. Ainda que inferiorizado numericamente no grama­do, aquele era o dia da desforra do Corinthians, que no segundo tempo marcou 2 gois contra nenhum do Palestra Itália. Uma vitória retumbante, com gostinho especial, em face da adversidade que os corinthianos tiveram de enfrentar no campo e que bem justifica a anotação constante no troféu: “Corinthians 2 com 10 elementos — Palestra 0 e o Juiz”.

30 de setembro de 1934: a bola do “Corinthians 2 com dez elementos— Palestra 0 e o Juiz”. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXVIA bola do Centenário

C em anos depois de “as margens plácidas do Ipiranga” ouvirem “de um povo heróico o brado retumbante” — que é como o Hino Nacional brasileiro canta a

proclamação da Independência por dom Pedro I — , o Corinthians conquistou o título de Campeão do Centenário, o qual, obviamente, vale por um século. Em 1922, o ano do Centenário da Independência, o campeonato não foi fácil, até porque todos os clubes participantes faziam questão de conquistar o título histórico. O Corinthians vinha embalado por uma conquista no mínimo curiosa. Era o tricampeão de uma disputa que envolvia todos os clubes e se desenrolava num único dia: o Torneio Início. Instituído pela primeira vez em 1919, o Corinthians o vencera nesse ano e em 1920 e 1921. Mas em 1922 as coisas iam pegar fogo. O primeiro jogo do time corinthiano foi difícil, contra o Paulistano, mas este acabou batido por 3 a 2. No segundo jogo, contra o Sírio, o Corinthians foi derrotado; e no terceiro, enfrentando o Palestra, empatou por 2 a 2. Os times disputantes davam tudo de si. Cada jogo era uma guerra. Veio o segundo turno do campeonato. O Corinthians enfrenta de cara o Sírio, mas estava prevenido pela derrota do primeiro turno. Ganha o jogo e se prepara para a partida contra o Palestra. O time alviverde vence por 3 a 2 e fica pertinho do título ambicionado. Para .tanto bastava que superasse o Paulistano. Palestra Itália entra em campo como favorito. A torcida vibra. O público enche o estádio. Os corinthianos dependiam agora não apenas deles mesmos. Mas o Paulistano, tomado de brios, embravece e trucida o Palestra por 5 a 1. O tipo da goleada para deixar o próximo adversário com um pé na frente e outro atrás. O próximo adversário era o Corinthians. O Paulistano vinha embalado, cheio de confiança. A tabela indicava, por pontos perdidos: Corinthians, 6. Palestra, 7. Um tropeço, adeus sonho. Os palestrinos, com razão, torciam pelo malogro corinthiano, que lhes daria o título. O Paulistano, como já fizera contra o Palestra, queria mostrar que, apesar de fora da disputa do título em si, era o bom. o melhor. O encontro entre o Corinthians e o Paulistano foi um jogaço. Um duelo de 90 minutos em que as torcidas encheram de emoção aquela tarde de 4 de fevereiro de 1923- O resultado final foi apoteótico: 2 a 0 para o Corinthians. Tatu e Gambarotta marcaram os gois. A equipe campeã do Centenário faturou o Paulistano jogando com Mário, Rafael e Del Debbio; Gelindo. Amílcar e Ciasca; Peres, Neco, Gambarotta, Tatu e Rodrigues. Outra bola para a galeria dos troféus!

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É claro que um título tão expressivo sempre provoca comichões nos adversários. Todos gostariam de “carimbar” a faixa, como se costuma dizer. O primeiro desafio nesse sentido partiu do América Futebol Clube, do Rio, que vencera o campeonato carioca naquele ano, e portanto também era considerado campeão do Centenário. Ia bem um confronto entre os dois clubes, que mantinham excelentes equipes. O jogo foi marcado para o campo da Floresta. O Corinthians escalou o mesmo time que vencera o Paulistano, sem qualquer alteração. O América jogou com Ribas, Peres e Baratta; Matoso, Oswaldi- nho e Gonçalo; Graccho, Gilberto, Chiquinho, Simas e Brilhante. Resultado final: 2 a 0 para o Corinthians. Se se considerar que São Paulo e Rio eram os dois maiores centros esportivos, essa vitória equivalia ao título de campeão do Brasil no ano do Centenário.

Esta foi a bola da última partida, vencida pelo Corinthians, contra o Paulistano, no ano da conquista do título de Campeão do Centenário.O jogo foi em fevereiro de 1923 mas correspondia ao campeonato de 1922. (Foto de Antônio Carlos Carreiro)

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XXVIIA bola do gol sem goleiro

No ano de 1935 o Corinthians ainda tentava se adaptar ao futebol profissional, fechando as lacunas abertas com a saída de jogadores e tentando uma série de

experiências na equipe. Na zaga, Jarbas às vezes substituía Carlos; Ovídio ocupava o lugar de Brito; Tedesco entrava no lugar de Teixeira no ataque; e na ponta-esquerda, quando não jogava De Maria ou Rato I, era escalado Wilson. Mas a equipe se estruturava aos poucos. No campeonato paulista, obtinha a 3a colocação.

Nesse ano o Boca Juniors, carregado de fama e prestígio e ostentando o título de campeão da Argentina, visitou o Brasil para fazer jogos amistosos e dar exibições de campeão. Por onde passava, o Boca fazia até a grama tremer. Pegou o Botafogo do Rio e deu 4 a 0. No Vasco, ótimo de bola, aplicou um empate de 3 a 3- E o pobre do São Cristóvão, que na época tinha um timaço, levou uma trombada de 6 a 1.

Chegou a vez de o Boca visitar São Paulo. Os jogadores argentinos viajaram pelo noturno da Central do Brasil. Estranham o sacolejar do trem, inventam desculpas de que estão cansados e moídos da viagem, mas, mesmo assim, não deixam barato: empatam com o Palestra, que estava na ponta dos cascos.

A torcida alvinegra coça o queixo. Se o Vasco e o Palestra não tinham conseguido nada além de empates, e se o resto havia padecido goleadas, que sucederia ao Corinthians, agora que o Boca Juniors tinha descansado, dormido bem, comido chur­rasco e bebido chimarrào à vontade? Que papel faria o Corinthians, ainda mal-ajustado, nesse jogo marcado para o dia 10 de fevereiro de 1935 no Parque São Jorge?

O Corinthians entrou em campo com o time que podia escalar naquelas circuns­tâncias desfavoráveis: José, Jaú e Carlos; Brito, Brandão e Munhoz; Teixeira, Mamede, Teleco, Carlito (depois Zuza) e Wilson.

O Boca Juniors sabia que não podia facilitar com Teleco, artilheiro que marcava gol até de sombra, e também tinha de ter algum cuidado com Carlito, que era experiente mas não estava com o fôlego em dia. Os torcedores mais desconfiados achavam que aquela não era a melhor época para enfrentar campeões argentinos, mas, mesmo ressabiados, compareceram ao Parque São Jorge enchendo o estádio. Teoricamente, ia ser uma partida para argentino deitar e rolar.

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Nessa tarde aconteceu o inesperado que o corinthiano sempre espera: o time alvinegro jogou por música, afinado como nunca. Aos 20 minutos do segundo tempo, já havia enfiado duas bonitas bolas no gol platino. O Boca, parecendo barata tonta em campo, já estava mais que arrependido de ter vindo a São Paulo. Nisso, o juiz José Alexandrino, que teve atuação impecável, marca um pênalti claro como o sol contra o campeão da Argentina. O Boca, aturdido, não resiste à humilhação: chia, esbraveja, tenta melar a partida, mas a bola está lá, na marquinha branca de cal. O Boca abandona o jogo e o campo, maldizendo o descuido de deixar soltos Mamede e Wilson, que se encarre­garam de fazer os gois enquanto o sagaz Teleco se encarregava de chamar a defesa na sua marcação.

Faltava chutar o pênalti. Não tinha goleiro. O gol estava vazio. O juiz apita. A bola entra de mansinho. O gol ficou na memória do clube, mas não foi oficializado. O resultado foi só de 2 a 0 para o Corinthians. É o que consta na bola, testemunha redonda da história!

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XXVIII

A bola da paz

E sta bola de couro áspero, gomos costurados a mão, foi recolhida no fim de uma partida histórica do Corinthians, na tarde do dia 5 de dezembro de 1937, no estádio da Fazendinha. Nessa data, Amphilóquio Marques, o Filó, ponta-direita que havia voltado da Itália e se reintegrado ao time alvinegro, marcou os três gois da vitória contra

o Estudante Paulista, dando ao Corinthians o seu primeiro título de campeão paulista no futebol profissional.

Esmaecidas pelo tempo, ainda se podem ler na face dessa bola transformada em troféu as palavras que alguém escreveu: “Corinthians campeão da nova Constituição 1937”.

Uma foto dessa época mostra o júbilo dos jogadores quando o juiz encerrou esse que foi o último jogo do campeonato de 37, durante o qual Teleco foi o artilheiro com 15 gois. Teleco aparece encarapitado nas costas dos companheiros, enquanto Manuel Nunes se prepara para abraçar seus comandados. Manuel Nunes, o Neco, craque-sím- bolo, já havia pendurado as chuteiras, estava com 42 anos, mas continuava fiel ao Corinthians orientando a equipe como técnico. Costumava assistir às partidas de terno, camisa social, gravata e chapéu de feltro, e foi assim, vestido como se fosse a um casamento, que entrou no campo para comemorar a vitória e o título de campeão. Título duplo: Campeão da Constituição de 37 e Campeão da Paz. A alegria dos corinthianos se justificava porque o ano de 1937 não foi um ano comum. Nem no futebol, nem na política. A política fervia. Nesse ano o presidente Getúlio Vargas, que assumira o poder com a revolução de 1930, ordenou o fechamento do Congresso por tropas militares e promulgou nova Constituição — que ficou assinalada na bola como referência histórica. A Constituição de 1937 era autoritária e impôs o regime do Estado Novo no país. Interventores federais, escolhidos pelo próprio presidente Getúlio, passaram a dar ordens e a controlar os Estados1. O Palácio do Catete, no Rio, mandava e desmandava. A imprensa passou a funcionar com censura prévia. Foi instituída a pena de morte no Brasil! A Constituição foi elaborada sob encomenda pelo jurista Francisco Campos, o notório “Chico Ciência”, como ficou ironicamente conhecido. Era a ditadura.

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Para se ter idéia até que ponto as coisa chegaram, uma das primeiras proibições baixadas se relacionava ao uso das bandeiras estaduais. Não mais era permitido hastear nenhuma delas em lugar algum. Bandeira no mastro, só a do Brasil. As bandeiras dos Estados foram queimadas em cerimônia pública na Esplanada do Russell, no Rio. Ainda bem que a bandeira do Corinthians escapou desse incêndio maluco. Ninguém teve peito nem atrevimento de implicar com a bandeira paulista que ela traz no seu escudo.

Mas, no ano de 1937, enquanto a democracia era reduzida a cinzas, o futebol ressuscitava para a paz e a harmonia. Durante mais de duas décadas conflitos e desentendimentos entre os dois principais centros esportivos do país, São Paulo e Rio de Janeiro, vinham criando enorme divisão nesse esporte, prejudicando sua evolução e organização. Tanto o Rio como São Paulo disputavam a hegemonia para impor uma entidade que representasse o futebol brasileiro no mundo. Era uma luta pelo poder político no esporte. Essa luta vinha desde 1915, quando os dirigentes paulistas criaram uma Federação Brasileira de Futebol e os cariocas fundaram uma Federação Brasileira de Esportes2. As duas entidades queriam o reconhecimento da FIFA — Federação Internacional de Football Association — , organismo criado em 1904 para regulamentar e supervisionar a prática do futebol no mundo inteiro. Mas a FIFA se recusava a dar seu reconhecimento oficial a qualquer entidade enquanto não houvesse a unificação do futebol brasileiro. Este, na prática, era representado pelos clubes de São Paulo e Rio, embora em outros Estados, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o esporte também fosse praticado, ainda que com menor expressão.

Para superar a divisão entre São Paulo e Rio, o chanceler Lauro Muller propôs com êxito a criação de uma entidade máxima representativa do futebol do Brasil: a Confede­ração Brasileira de Desportos — CBD, que foi instalada solenemente em 1916 com apoio geral e inclusive um jogo amistoso entre as seleções do Rio e de São Paulo, vencido pelos cariocas. Essa “primeira” CBD resolveu um dos pontos de desarmonia no futebol: o problema do reconhecimento oficial da FIFA.

Mas havia outra questão bem mais complexa e que se agravava com o passar dos anos: o problema da profissionalização dos jogadores de futebol. Já não se tratava de um racha, uma disputa política, entre os dois centros esportivos. Era uma questão incandescente que se multiplicava na fragmentação de opiniões e posicionamentos difíceis de conciliar. Tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro não havia consenso em relação ao assunto. Pipocavam divergências entre paulistas e paulistas e cariocas e cariocas.

Um grupo entendia que o futebol devia ser sempre um esporte amador, vacinado contra as tentações do dinheiro. Um esporte “limpo”, que não podia ser manchado pelo azinhavre do vil metal'. Era o grupo conservador. Outro grupo, bem mais realista, achava que o futuro do futebol estava na profissionalização dos jogadores. Tinha boas razões para pensar assim. O amadorismo no futebol brasileiro estava sob suspeição desde seus primórdios. A própria Associação Paulista de Esportes Athleticos — APEA — , ao ser

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fundada em 1913 (três anos após o surgimento do Corinthians), já tinha em seus planos a cobrança de ingresso nos estádios tão logo as circunstâncias favorecessem a adoção prática da idéia. O mesmo pretendia a Liga Metropolitana de Esportes Athleticos, fundada no Rio em 1908.

Os grupos divergiam, ninguém se entendia, e o que não faltava eram destemperos verbais e escritos. Os conservadores diziam que jogador que aceitasse ser profissional seria “gigolô do esporte”.

É possível que dentro do próprio Corinthians houvesse discordâncias sobre o apoio à idéia do profissionalismo, o que tinha sua explicação óbvia. O clube nascera na várzea, tinha raízes amadoras, era modesto, não tinha retaguarda econômica e financeira a não ser aquela representada pelas contribuições de gente que ganhava o sustento com o trabalho cotidiano e suado. O patrimônio que pouco a pouco conseguira era fruto da contribuição popular. Topar o profissionalismo era ser ousado. Mas o futuro do futebol se delineava bastante claro. Bastava observar os fatos. Wladimir de Toledo Piza conta que quando o Fluminense, do Rio, no começo da década de 30, iniciou as primeiras gestões para que se aceitasse a profissionalização dos jogadores, ele foi pessoalmente à Capital Federal representando o Corinthians para dar apoio à idéia. O Corinthians não tinha dinheiro, mas tinha visão clara da realidade. Ao contrário de outros clubes que nadavam em recursos mas não enxergavam um palmo adiante do nariz.

O jogador de futebol era feito de carne e osso. Tinha de comer, se vestir, pegar o bonde para ir trabalhar e treinar. E a condução, mesmo no “caradura” ou no “bonde de operários” — como indicava a placa pendurada acima da cabina do motorneiro — , não saía de graça, a menos que o passageiro solerte driblasse o cobrador e soubesse pular do bonde andando. O jogador tinha de sustentar a família. E — por que não? — gostava de tomar sua birita, uma Cascatinha gelada, comprar seu maço de cigarros Sudan Ovaes. O jogador não vivia de brisa nem podia ficar eternamente na dependência de gorjetas, tapinhas nas costas ou favores paternalistas dos donos da “bufunfa”.

O futebol já não era praticado apenas por moços bem-arrumados na vida, que tinham pais abonados, recebiam mesada e faziam do esporte uma distração e um lazer. O pessoal dos arrabaldes, de tanto ver e tentar copiar as jogadas, com pés descalços, em campos carecas, controlando bola de meia e de papel — as “peladas” — , tinha aprendido as lições, sabia matar a redonda no peito e baixá-la no terreno, e agora ocupava posições nos times que brotavam na várzea como cogumelos depois do aguaceiro. Havia craques entre essa gente pobre e sem pedigree , cuja roupa do corpo cheirava a sabão de cinza feito em casa.

Nem todos percebiam que a realidade se modificava, inclusive a realidade social. Os operários se organizavam. Tinham até feito uma greve geral, ora, onde já se viu uma coisa dessas! E nas melhores escolas de São Paulo os padres ensinavam a garotos filhos de rudes artesãos lições de gramática, matemática, catecismo e as leis de um esporte bretão naturalizado brasileiro. Não havia internato de meninos sem futebol.

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Ai de quem nào percebia que o mundo é uma bola que gira depressa. O Club Athletico Paulistano, gente fina, legenda indelével de glórias futebolísticas, fez que não percebeu, foi voto contra o profissionalismo, entestou, amuou, bateu o pé, e acabou por tirar suas chuteiras de campo em 1929: extinguiu para sempre seu departamento de futebol.

Porém, assim como o Sport Club Corinthians Paulista, a maioria dos clubes de São Paulo apoiava o movimento pelo profissionalismo. Não era mais possível tapar o sol com peneira: o “amadorismo marrom” campeava. O “tutu” corria por baixo do pano, dissimulando-se, tentando inutilmente salvar as aparências. Apesar da resistência e intransigência da “primeira” CBD, que teimava em opor-se ao profissionalismo e con­tinuava a defender um amadorismo que só existia na cabeia dela, as duas principais entidades regionais do esporte, a Associação Paulista de Esportes Athleticos (APEA) e a Liga Carioca de Futebol (LCF) criaram a “Divisão Especial de Profissionais”, que permitia a qualquer clube a ela filiado manter jogadores profissionais e amadores. Os jogadores amadores começaram a jogar nas partidas preliminares. Os jogadores profissionais atuavam na partida principal, o chamado “jogo de fundo”. O público acompanhava o jogo dos amadores como aperitivo, passatempo, sem ligar muito. O que valia mesmo era a disputa dos jogadores profissionais.

O profissionalismo no futebol brasileiro passou a existir — ainda que com oposi­tores — no dia 23 de janeiro de 1933. Além do Corinthians, disputaram o primeirocampeonato profissional de futebol em São Paulo a Portuguesa de Desportos, o Santos,

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o São Bento (da cidade de São Paulo), o Palestra Itália, o São Paulo, o Sírio e o Ypiranga'.

A “primeira” CBD insistia em se manter contra o profissionalismo, mas seu isola­mento se tornou crítico, irremediável, quando a APEA e a LCF se reuniram em São Paulo e fundaram a Federação Brasileira de Futebol4. O encontro reuniu representantes de todos os clubes profissionais do Rio e de São Paulo e foi presidido por Arnaldo Guinle, que representava o Fluminense Futebol Clube, do Rio. Guinle fez um discuso de 45 minutos, emocionado, e ressaltou que a profissionalização do futebol brasileiro era uma questão de “humanização e moralização do esporte e tinha significação cultural em face da importância que o esporte assumira no Brasil”.

A realidade agora era a seguinte: de um lado, a Federação Brasileira de Futebol cuidando dos interesses e da organização dos clubes profissionais; de outro lado, a CBD às voltas com uns clubes amadores, a maioria deles disputando campeonato varzeanos.

Essa situação anômala é a que vigorava em 1937, no ano da nova Constituição. A cisão no futebol era essa. E Getúlio distribuía as cartas na mesa da nação. Nào foi necessária muita pressão política para que a FBF e a primeira CBD encerrassem a disputa e aceitassem o surgimento de uma nova e única entidade, a qual passou a denominar-se exatamente Confederação Brasileira de Desportos — CBD. Não se mudou o rótulo, e sim o espírito. O profissionalismo deixou de ser motivo de brigas. Pacificou-se o futebol.

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E aquele ano tumultuado de 1937 passou a ser chamado de “o ano da pacificação do futebol brasileiro”.

É por isso que, ainda hoje, velhos torcedores, ao admirar essa rude bola que repousa numa vitrina na sala dos troféus, gostam de explicar aos mais jovens que essa é a bola do título de “Campeão da Paz”. É a “bola da paz”, a “bola constitucional” e a “primeira bola profissional” corinthiana.

Notas

1. A Constituição de 1937 foi a terceira da República e a quarta do Brasil. Antes dela houve a Constituição de 1824, ainda no tempo do Império, a qual tinha 179 artigos; depois, já no regime republicano, vigoraram as Constituições de 1891 e de 1934. A Constituição de 1937 ficou conhecida como “Polaca”, numa comparação nada lisonjeira com a constituição totalitária que, em 1926, o general Jósef Pilsukski havia imposto aos poloneses. A Constituição de 37 foi promulgada em novembro, menos de um mês antes de o Corinthians vencer o último jogo do campeonato por 3 a 0 e conquistar o título de campeão.

2. A criação dessas entidades esportivas consta da obra O Pontapé Inicial, de Waldenyr Caldas, editada pela Ibrasa, edição 1990, página 38.

3- O primeiro jogo de futebol profissional no Brasil somente seria realizado dois meses depois, no dia 12 de março de 1933, na cidade de Santos. O São Paulo Futebol Clube venceu o Santos Futebol Clube por 5 a 1. O primeiro gol “profissional” foi marcado por Arthur Friedenreich, apelidado de El Tigre, que tinha 38 anos de idade. No Rio, a primeira partida “profissional” ocorreu no dia 2 de abril de 1933, entre Vasco e América. As duas partidas foram realizadas à revelia da CBD, que defendia o amadorismo.

4. A primeira Federação Brasileira de Futebol, que remonta, segundo alguns autores, a 1915, defendia apenas os interesses do futebol paulista.

Para ser o Campeão da Paz em 1937 o Corinthians fez 14 jogos, venceu 10, empa­tou 2, perdeu 2, marcou 33 gois e tomou 12. Teleco foi o artilheiro, com 15. Só num jogo, contra o São Paulo Railway, Teleco fez 5. No jogo final, dia 5 de dezembro de 1937, a bandeira corinthiana, incólume, intocada, tremulou gloriosa: a equipe do Estudante Paulista caía por 3 a 0, os três gois feitos por Filó. A primeira equipe cam­peã paulista no futebol profissional jogou com José I, Jaú e Carlos; Jango, Brandão e Munhoz; Filó, Carlito, Teleco, Daniel e Carlinhos. Mais uma bola para a coleção de troféus: a “bola da paz”. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXIX

O distintivo: todo ele um símbolo

“Se você olhar bem direito o distintivo do Corinthians, vai descobrir dois remos e uma âncora. A âncora é o símbolo da esperança. Os remos somos nós, os torcedores corinthianos. Porque o torcedor corinthiano não tem pressa. Pode ficar vinte anos na espera. Nossa esperança é de aço, nossa esperança é eterna. O torcedor corinthiano não cansa, sempre rema, a favor ou contra a corrente, jamais abandona o barco. É nisso que ele é melhor, é nisso que ele é valente. No distintivo do Corinthians há também uma bandeira. Olhe bem, a bandeira está aberta. O torcedor corinthiano tem tanta esperança, e rema tanto, que jamais enrola a bandeira, enquanto a bola rola em campo. Porque o torcedor corinthiano sabe, e se a bola tem coração, na hora da decisão, ela também é corinthiana.”

(Texto lido pelo grande ator e grande corinthiano Antônio Fagundes na TV Globo, na conquista do título de campeão paulista de 1988.)

A princípio o Sport Club Corinthians Paulista não tinha nenhum distintivo. Nem precisava. Havia onze camisas correndo em campo, alguns jogadores usavam

gorrinho de acordo com a vontade e o gosto próprios, havia até gorrinho com viseira de pano, tipo pescador de beira-rio Tietê, mas pelo jeito do jogo, pelo suor do peito e pelo placar invisível anunciado na boca do povo, já se sabia que aquele esquadrão era o Corinthians.

O primeiro distintivo, o mais antigo, o mais rústico, foi bordado às pressas na camisa do team que enfrentou o Minas Gerais do Brás e o São Paulo do Bexiga para conquistar o direito de ter um lugar na Liga Paulista de Futebol.

Era a coisa mais simples do mundo: apenas um C e um P maiúsculos sobrepostos um ao outro, lembrando um pouco as linhas de um coração.

Em 1913, os jogadores posavam nos retratos para o clarão dos flashes de magnésio ostentando nas camisas as duas letras no lado esquerdo do peito. Esse foi o distintivo da primeira camisa oficial, branca, com gola preta de bicos, mangas compridas e punhos largos, também pretos, amarrada no peito com cordão negro.

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A primeira sofisticação do distintivo surgiu por volta de 1916: o team campeão invicto da temporada — sem perder nem mesmo um único ponto! — ostenta então três letras no escudo, em fundo redondo embutido num contorno mais complicado. O modelo pouco durou: o formato circular, que daí para a frente iria prevalecer, definia a tendência de maior nitidez de “leitura” e simplicidade, embora as letras ainda se embaralhassem. O distintivo redondo é de 1917 e assim continuará sendo basicamente.

Acredita-se que mais de um associado tenha dado opiniões e palpites para as inovações que a partir de 1920 definiram os componentes do escudo: a bandeira de São Paulo, o nome do clube por inteiro, a data de fundação, em círculo negro com fundo branco. Mas é no ano de 1926, quando o Sport Club Corinthians Paulista realiza sua grande marcha para o Leste e adquire, num gesto de arrojo e confiança em seu futuro, a enorme gleba da Fazendinha, carinhoso e orgulhoso apelido dado pelos associados àquele “fim de mundo” coberto de árvores e pontilhado de chácaras que abasteciam o Mercadão e as feiras livres de São Paulo com legumes, hortaliças e frutas colhidos aquém e além das reputadas videiras do Marengo, é nesse ano em que o clube faz um pacto de boa vizinhança e agradável amizade com as águas cristalinas e caudalosas do Tietê que vão surgir a âncora, os remos, e o círculo do escudo se transformará numa bóia estilizada. O Sport Club Corinthians Paulista descobrirá a partir dessa mudança geográfica o prazer e a glória das regatas e será nessas águas em que, antes, navegaram os bandeirantes que se instàlará o histórico “cocho” flutuante sobre tambores de óleo vazios, onde gerações aprenderam a nadar e a ser grandes campeões.

O distintivo do Sport Club Corinthians Paulista tem uma leitura e tem significado. Não é uma mera etiqueta ou griffe. Ele é também a visão de pessoas anônimas, cada uma desenhando os remos e a âncora a seu modo. O português Antônio Ferreira de Souza, vulgo Scafanhask, sócio ns 10, que deu de seu bolso 10 contos para ajudar na compra da Fazendinha, homem ligado ao grupo de Ernesto Cassano, Costa Mano, Sá Ferros, Floresto Bandechi, e que — dizem — foi quem fez a primeira pintura do Parque São Jorge, recebendo como paga apenas os gastos com tintas e doando toda a mão-de- obra, é apontado como um dos elementos que bolaram os remos e as âncoras do escudo corinthiano. Os primeiros remos eram muito mais longos que os atuais. Aos poucos eles foram se harmonizando esteticamente no conjunto, até chegarem ao que são hoje.

É possível — se não inteiramente provável — que um rapazinho, que tinha apenas 8 anos quando o Corinthians foi fundado, tenha dado o toque final no distintivo do clube. Francisco Rebolo Gonzalez era um moleque que levava marmita para o irmão José, pintor de paredes e amigo de Antônio Pereira, um dos cinco operários fundadores do clube do Bom Retiro. De família de imigrantes espanhóis. Rebolo nasceu na rua Visconde de Parnaíba — uma das mas mais compridas de São Paulo — . perto do Parque Dom Pedro II, onde Charles William Miller fizera rolar a primeira bola de futebol. Rebolo estudou no Grupo Escolar da Mooca e começou a trabalhar cedo: em 1914, com 12 anos, era entregador de uma loja de chapéus na avenida São João. No ano seguinte conseguiu

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um lugar de aprendiz de decorador, passou a trabalhar em residências e pintava detalhes das igrejas de Santa Cecília e de Santa Ifigênia. Combinou um serviço no Colégio Dante Alighieri: pintar a sala da diretoria. Lá fora, os alunos jogavam bola, Rebolo espiava. Gostou. Começou a tentar fazer o mesmo. Em 1917 já tinha contrato como semiprofis- sional com a Associação Athletica São Bento.

Antônio Pereira era seu amigo, gostava de seu jogo, falou: “Você tem de ir para o Corinthians”. E foi mesmo: no ano de 1922, Rebolo joga na ponta-direita do Campeão do Centenário, permanece no clube até 1927, torna-se corinthiano de coração, e dá uma das primeiras provas de sua vocação artística que iria consagrá-lo anos depois: faz do distintivo do Corinthians uma alegre e popular jóia gráfica.

Custou ainda alguns anos para que o distintivo definitivo passasse a figurar, integralmente, na camisa do time: o esquadrão de 37, quando o Corinthians levanta seu primeiro campeonato no futebol profissional, ainda ostenta nos campos o escudo antigo, o simples círculo negro emoldurando a bandeira paulista. O novo e definitivo escudo assume seu lugar paulatinamente na camisa, mas já estava há muito nos muros do clube e no coração dos torcedores. Mudava-se o distintivo quando a camisa se esgarçava.

Contudo, já em 1914, e até antes, quando não se pensava nem na âncora nem nos remos, os associados tinham bolado um distintivo de lapela — torcedor ia ao campo de terno completo e chapéu, o que era comum. Tratava-se de um botão recoberto com tecido preto e branco com as iniciais C e P, num círculo. Um distintivo singelo ao extremo. Antoninho de Almeida conta que quem provocou uma alteração “técnica” no distintivo corinthiano de lapela foi o Torino, em sua visita ao Brasil. O pessoal do clube italiano circulava com um distintivo de metal esmaltado, muito atraente, novidade para os brasileiros. João Batista Maurício, que depois seria presidente do Corinthians, teve então a idéia de mandar confeccionar um distintivo do mesmo material e baseou-se no modelo da Companhia Paulista de Seguros, adaptando-o, evidentemente, ao clube alvinegro. As letras iniciais coincidiam e Maurício era segurado daquela companhia e por isso possuía um distintivo dela. João Batista Maurício pediu a outro corinthiano, Hermógenes Barbuy, que era 2S tesoureiro do clube e excelente desenhista litográfico, trabalhava na Litográfica Ypiranga, que se encarregasse do projeto artesanal propria­mente dito. Ficou a contento. O pessoal do Corinthians mandou então confeccionar na Itália 100 distintivos de metal esmaltado, por intermédio de um representante do Torino. A cunhagem do emblema custou 100 mil réis.

Uma nova encomenda de mais 100 distintivos de lapela se tornou necessária, em vista do sucesso alcançado, mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial obrigou a que fosse feita nos Estados Unidos e não mais na Itália. Também não chegou para tantos pedidos. Posteriormente o distintivo corinthiano de lapela virou moda e passou a ser fabricado no Brasil, a princípio por Messias Petraco e depois por outras oficinas do ramo.

O distintivo corinthiano parece, aliás, que sempre exerceu uma fascinação, talvez porque, de fato, é muito bonito. Numa antiga ata da diretoria, de 10 de agosto de 1933,

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lê-se que um certo Antônio Scudero pedia informações por carta aos diretores do Corinthians sobre como fazer para obter tais distintivos para seu uso e distribuição entre simpatizantes do clube. A diretoria informava que os distintivos eram vendidos normal­mente nas casas de material esportivo e custavam entre 2 e 3 mil réis cada um...

Uma movimentada avenida de trânsito apressado separa hoje as fímbrias da antiga Fazendinha das águas morosas e deterioradas do lendário rio, mas a âncora da esperança e os remos da persistência prosseguem sendo a marca do valoroso e destemido clube do povo. O distintivo está agora em toda parte onde pulsa a emoção do esporte único capaz de fazer brotar lágrimas e sorrisos de uma mesma fonte. Ninguém sabe dizer ao certo quem primeiro o pensou e o imaginou um dia — o que pode significar que esse distintivo é um pouco o pensamento e a imaginação de todos os corinthianos que o trazem na camiseta, na pele do corpo e na mente.

Quanto a Rebolo, depois de permanecer no Corinthians durante cinco anos, transferiu-se para o Ypiranga no ano de 1927, mas continuou a manter com a gente corinthiana os mais fortes laços de amizade e congraçamento. Alimentou sempre admiração e respeito por seu colega de mais idade Antônio Pereira e sua colaboração para com o Corinthians acabou tendo algo a ver com a evolução de sua carreira artística. Rebolo aposentou-se no futebol em 1930 depois de ter chegado ao quadro B da seleção paulista e acabou reunindo no antigo Palacete Santa Helena (na praça da Sé), posterior­mente demolido, um grupo de artistas de extração popular, entre eles Mario Zanini, Clóvis Graciano, Bonadei, Volpi, que ficou conhecido na história das artes plásticas brasileiras como o Grupo Santa Helena. O ex-futebolista, o ex-pintor de paredes, o companheiro de empreitadas de Antônio Pereira projetou-se como “artista obreiro, artesão da cor”, voltado não apenas para flores, frutas e pássaros mas também para a face dura e áspera da cidade que começava a misturar no seu caldeirão dores e amores. Não por acaso, um de seus quadros chama-se Futebol.

E um de seus quadros foi pintado especialmente para ajudar ó Corinthians a juntar o dinheiro da entrada para a compra da Fazendinha. O quadro foi à rifa. E Antônio Pereira, o homem que destinava ao Corinthians tudo o que conseguia ganhar como pintor com seus “bicos” nos fins de semana, adquiriu, sozinho, todos os números da rifa. O quadro do mestre Rebolo está hoje numa das paredes da casa de suas filhas Odete e Haidê, no bairro da Vila Pompéia, em São Paulo.

Um dia Rebolo disse: “Antes da pintura, o futebol já tinha marcado minha vida. Como no futebol, acho que na arte devem se fazer coisas espontâneas, com a marca do amor e do entusiasmo, para poder se emocionar e emocionar outras pessoas”.

Rebolo morreu no dia 10 de julho de 1980, com 77 anos. A tempo de certificar-se de que aquele distintivo que ajudara a desenhar fora escolhido pelo povo, que era o seu povo, como uma indelével “marca do amor e do entusiasmo”.

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O mais simples possível, o primeiro distintivo marcou a entrada do clube na Liga Paulista de Futebol. Com algumas variações de contorno, o segundo distintivo figurou no uniforme do Corinthians, mas não teve vida longa.O formato redondo, que nunca mais seria abandonado, marcou o aparecimento do terceiro distintivo. (Arquivo Corinthians)

Embora a âncora e os remos já tivessem sido incorpora­dos ao escudo, esse é o distintivo que prevaleceu durante anos na camisa do time. (Foto Arquivo Corinthians)

Em sua penúltima etapa, o círculo transfor­mou-se numa bóia. A bandeira de São Paulo, sem o rigor das treze listras, perma­necia chapada. (Foto Arquivo Corinthians)

O atual distintivo do Sport Club Corinthians Paulista. A bandeira paulista ondula, transmitindo a idéia de dinamis­mo e ação. (Foto Arquivo Corinthians)

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Este é o quadro de autoria de Rebolo, pin­tado especialmente para ir à rifa e angariar recursos para o Corinthians. Antônio Perei­ra adquiriu todos os números, ficou com o quadro, que passou a ser uma relíquia na casa de suas duas filhas. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Garboso e elegante em seu uniforme de árbitro, Antônio Pereira, um dos cinco “operários funda­dores” do Corinthians, muitas vezes era chamado para apitar jogos de futebol, como também acon­tecia com Charles Miller, Freeze (um bancário que jogava pelo Germânia) e vários outros jogadores. Consta que Pereira, um dos sustentáculos do clu­be do Bom Retiro, jamais usou o apito para ajudar o time alvinegro. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXX

Do captain Perrone a Guido, o técnico que foi presidente

No primeiro “treino” que o Corinthians realizou em 1910, reunindo dois quadros— o que era normal todo clube ter — , cada time foi orientado por um “técnico”:

Perrone dirigiu um e Anselmo Correia dirigiu o outro. Escalado o quadro principal, coube a Rafael Perrone dirigi-lo por uma razão hoje bastante nítida: Perrone jogava nele como zagueiro direito; Anselmo Correia fazia parte do segundo quadro, jogava no gol.

Como as primeiras atas deixam claro, o “técnico” mandava no team , era o respon­sável por ele, escalava e convocava os jogadores (freqüentemente pelos jornais) e era eleito pelos associados em assembléia geral. Era portanto natural que suas opiniões tivessem peso até mesmo na administração do clube. Dentro do campo, então, nem se fala: sua voz de comando era lei. Evidentemente, em vez de “técnico” dizia-se captain, capitão, da mesma forma que se falava shoot, k.ick, forw ard, back , e assim por diante. O captain tinha muito mais autoridade que o atual capitão do time e, ao que parece, muito mais importância dentro do clube do que os atuais técnicos. Ao captain não bastava conhecer as regras, a teoria, as táticas — se é que havia alguma. Ele tinha também de ser bom de bola no campo para ter autoridade de exigir o máximo de seus comandados. O captain jogava, fazia parte do quadro. Tinha de ser um leader.

Rafael Perrone foi “técnico” do Corinthians em 1910-1911, portanto o primeiro. Mas foi o segundo técnico (captain), Casemiro Gonzales, que dirigiu o time de 1912 a 1914, quem deu estrutura definitiva ao quadro e prestigiou os jogadores do 2Q e do 32 times e os chamou para integrar a equipe n2 1. A ascensão do craque Neco para o l 2 time e sua consagração ao longo do tempo começou com essa decisão lúcida de Casemiro, que deu ao clube seu primeiro campeonato em 1914! E invicto!

Casemiro Gonzales gozava de grande prestígio entre os associados. Era exigente na disciplina dos atletas mas ouvia seus jogadores antes de tomar decisões. Uma vez decidido algo, ponto final. No episódio em que Casemiro afastou do gol do 2- quadro Anselmo Correia, um dos cinco “operários fundadores”, substituindo-o pelo goalkeeper Sebastião, então recém-admitido no quadro de sócios, prevaleceu a atitude do técnico Gonzales sobre os protestos veementes de Anselmo Correia. Falou o captain !

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Amílcar Barbuy, o terceiro técnico do Corinthians, foi o que por mais longo tempo permaneceu nas funções: de 1915 a 1920. Substituiu-o Guido Giacominelli, uma das figuras mais dedicadas ao Sport Club Corinthians Paulista nos seus primeiros tempos, homem simples, oriundo de uma família de imigrantes italianos camponeses, intransi­gente na defesa dos interesses do clube, que mais tarde ocuparia também o cargo de diretor de futebol, seria eleito o 8e presidente do clube e se tornaria, por fim, funcionário administrativo do Corinthians de 1921 a 1925. Dez anos depois, já como diretor, participou do episódio em que denunciou uma ação de suborno desfechada por Roco Di Lorenzo, diretor do Palestra Itália, na tentativa de “comprar” por 1 conto de réis, com pagamento em duas prestações, o jogador Jaú, que atuava pelo Corinthians. A jogada palestrina extra-campo foi feita numa casa lotérica da rua XV de Novembro, esquina com a praça da Sé, e ficou plenamente caracterizada com a apreensão das duas cédulas de 200 mil réis e 100 mil réis em bônus do Estado.

Giacominelli não deixou barato, pôs a boca no trombone e denunciou a maracutaia à Associação Paulista de Esportes Athleticos, que abriu inquérito, apurou a veracidade da denúncia e cumpriu sua obrigação: suspendeu o dirigente Roco Di Lorenzo e eliminou o veterano jogador Abate, que havia atuado como intermediário no negócio. Corria o ano de 1932. Esse escândalo repercutiria meses a fio, ajudando a criar um clima de desconfiança e provocando acusações entre os dois clubes, que já arregimentavam grandes torcidas, ambas apaixonadas. Talvez tenha tido início aí a fogueira da rivalidade histórica entre os simpatizantes das duas agremiações futebolísticas1.

Muitos técnicos do Corinthians tiveram passagem fugaz pelo clube e vários deles pagaram pela inexperiência de não ter exata noção prévia da "psicologia” do clube que iam dirigir, ignorando o “modo de ser e de reagir” de um Corinthians, que somente pode ser entendido e assimilado quando observado como duas partes distintas que se compõem, se completam e se fundem num único fenômeno popular: a “torcida” e o “time”. No Corinthians, o “122 jogador” não é força de expressão. Ele existe, exige ser escalado, e também entra em campo com a camisa do clube.

Na mais completa relação dos técnicos que trabalharam no Sport Club Corinthians Paulista, figuram também os seguintes nomes: 1926, Ângelo Rocco — 1927, Manuel Nunes (Neco) — 1929-1931, Virgílio Montarini — 1932-1933Jo s é de Cario — 1933-1934, Pedro Mazzulo2 — 1935-1936, José Foquer- 1937-1939, Antônio Pereira3 — 1940-1942, Armando Del Debbio — 1944-1945, João Chiavone — 1945, Alcides de Souza Aguiar4— 1946-1947, Trigger— 1948, Gentil Cardoso— 1949-1950, Joreca— 1951, Newton — 1951-1954, Rato5 (José Castelli) — 1954-1958. Oswaldo Brandão — 1958-1959, Cláudio Cristóvão do Pinho — 1959, Sílvio Pirillo — 1960-1961. João Lima — 1961, Jim Lopes — 1961, Alfredo Ramos — 1961-1962. Martim Francisco — 1962-1963, Fleitas Solich — 1963, Roberto Belangero — 1964. Paulo Amaral — 1964-1965, Oswaldo Brandão — 1965, Filpo Nunes — 1966, Zezé Moreira — 1967-1968, Luís Alonso (Lula) — 1968, Aimoré Moreira6 e Oswaldo Brandão — 1969-1970, Dino Sani — 1971, Aimoré Moreira

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— 1971, Francisco Sarno — 1971, Baltazar (Osvaldo Silva) — 1972, Francisco Sarno — 1972, Luís Trochillo (Luisinho) — 1972, Duque (Davi Ferreira) — 1973, Luís Trochillo— 1973-1974, Yustrich (Dorival Knippel) — 1974, Luís Trochillo — 1974, Sílvio Pirillo— 1975, Dino Sani — 1975, Milton Buzetto — 1976, Filpo Nunes — 1976-1977, Duque— 1977-1978, Oswaldo Brandão — 1978, Armando Renganeschi — 1978-1979, José Teixeira — 1979-1980, Jorge Vieira — 1980, Julinho (Ijuranei Pinto de Barcelos) — 1980, Orlando Fantoni — 1980-1981, Oswaldo Brandão — 1981, Julinho (Ijuranei Pinto de Barcelos) — 1981-1983, Mário Travaglini — 1983, Zé Maria (José Maria Rodrigues Alves)— 1983-1984, Jorge Vieira — 1984, Jorge Maffia — 1984, Jair Picerni — 1985, Carlos Alberto Torres — 1985, Mário Travaglini — 1985-1986, Rubens Minelli — 1986-1987, Jorge Vieira — 1987, Basílio (João Roberto Basílio) — 1987, Formiga (Francisco Aguiar)— 1988, Jair Perejra — 1988, Carlos Alberto Torres — 1988-1989, José Carlos Fescina — 1989, Ênio Andrade — 1989, Palhinha (Vanderlei Eustáquio de Oliveira) — 1989-1990, Basílio — 1990, Zé Maria (José Maria de Oliveira) — 1990-1991, Nelsinho (Nélson Batista)...

Amílcar Barbuy (5 anos) e Oswaldo Brandão (4 anos, na primeira vez que trabalhou no Corinthians, em 1954) podem ser considerados as grandes exceções quanto à permanência, na “ciranda dos técnicos”. A alta rotatividade dos técnicos nos clubes é um dos fenômenos negativos do futebol brasileiro, que afeta a própria seleção nacional. No Corinthians, Amílcar Barbuy, que era o captain e jogava de centro-avante, entrara no lugar de Fabi e começara a dirigir o time exatamente no ano (1915) em que o clube sofrera uma “rasteira”, e com isso havia ficado fora do campeonato. Tinha ido disputar jogos no interior do Estado, ganhando todos, mas ficando com os cofres cada vez mais vazios. Foi um ano de crise. Amílcar segurou as pontas, deu personalidade ao time, e o resultado acabou sendo esplendoroso: em 1916 o Corinthians conquistou o título de campeão invicto. Amílcar era um craque, tinha começado a jogar no Belo Horizonte, passara para o Botafogo, ambos da várzea paulistana, e daí fora para o Corinthians, sempre como centro-avante. Apenas em 1917 jogou no centro da linha-média corinthia- na, porque o clube não tinha elemento para a posição. Amílcar abafou também aí. No ano de 1914 Amílcar Barbuy foi convocado para a seleção da Liga Paulista de Futebol que jogou contra o Torino, da Itália. Em 1916, Amílcar foi a Buenos Aires com o selecionado brasileiro que disputou o Campeonato Sul-americano de Futebol. Em 1917, com o Corinthians passando para a Associação Paulista de Esportes Athleticos, Amílcar Barbuy foi convocado para participar do selecionado da cidade de São Paulo. Tomou parte em todos os jogos do Torneio Rio-Sâo Paulo de 1917, com exceção da última partida. Disputou com brilho as taças “Hebe” e “Fuchs” e distinguia-se por estar em todos os lugares do gramado, muitas vezes ajudando a zaga, que, no Corinthians, antes do aparecimento do back. Reis, considerado um zagueiro magnífico, deixava um pouco a desejar. Amílcar era um dínamo. Dele falava Leopoldo SantAnna: “Amílcar é um dos jogadores mais distintos de São Paulo. Joga o footballcomo verdadeiro sportsman, nunca

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tendo em vista senão os interesses da educação esportiva. É um forte esteio do Corinthians, tendo-lhe um grande amor. Na sua posição costumeira, center-fonvard, é um dos melhores de São Paulo. Amílcar é, com justiça, um scratchm an”.

Se Amílcar permaneceu cinco anos como técnico do Corinthians, outros não chegaram a cinco meses. Alguns foram pouco além de cinco semanas. Bem verdade que no pardacento período de 23 anos em que o clube bracejou inutilmente na busca do título de campeão, o qual sempre lhe fugia, a maioria dos técnicos do Corinthians trabalhou sob a pressão natural das arquibancadas e tangida pela aflição e pela ânsia de acertar dos diretores do clube.

Nem sempre as contratações primaram pelo bom senso. Nesse período a bruxa da bola deixava os técnicos a arrancar-se os cabelos e um deles, Zezé Moreira, que passou pelo clube nos idos de 66, ao despedir-se escarmentado das funções e recolhendo à mochila seus conhecimentos técnicos, táticos e estratégicos; pronunciou a famosa frase de adeus às armas e aos barões assinalados: “O Corinthians não precisa de um técnico; precisa é de um psicólogo”.

O “psicólogo” que o Corinthians foi buscar para resolver o drama do jejum de título de campeão de futebol não tinha curso de psicologia e nem mesmo curso de técnico algum. Era um homem de trato sem maior refinamento, um pouco rude em determinados momentos, mas carismático, gaúcho da cidade de Taquara, que tinha feito carreira fugaz como jogador sem grande expressão e iniciara o convívio com a bola no pequeno Internacional de sua cidade natal. Oswaldo Brandão. Brandão conhecia a cabeça dos jogadores, a experiência lhe ensinara as palavras certas que dizia solenemente antes de cada partida. Às vezes, com o cigarro na boca, sentado no banco à beira do gramado, ele parecia capaz de com o olhar, com o palavrão cordial, decidir o momento da vitória. Mesmo nas derrotas, tinha um jeito de abraçar que afastava qualquer idéia de falsidade ou desculpa por as coisas não terem dado certo. Atrás de seu ar de suficiência, contudo, Brandão carregava a dor da moléstia do filho, e talvez por esse peso que lhe curvava os ombros mesmo quando era carregado em triunfo — como foi — ele tivesse a exata noção de que o sofrimento da galera alvinegra merecia um dia receber o bálsamo de uma alegria inesquecível. Pelo menos duas dessas imensas alegrias Brandão deu ao povo corinthiano: o campeonato de 54, do Centenário da Cidade, e o campeonato de 77.

Oswaldo Brandão foi o técnico que libertou o Corinthians e lhe deu a alforria da praga de 23 anos de penitência sem título de campeão de futebol. É difícil descobrir, hoje que Brandão está morto, se ele amou tanto o Corinthians como os corinthianos aprenderam a amá-lo. O importante é que no panteão dos ídolos corinthianos, Oswaldo Brandão tem um lugar eterno ao lado de Amílcar Barbuy.

Na história dos técnicos do Corinthians, houve um, Newton, que se escalava para jogar. Murilo, o grande zagueiro central, o Murilo que veio do Atlético Mineiro para dar

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maravilhosos espetáculos de futebol nos campos paulistanos, assombrando a torcida com sua inigualável capacidade de desarmar o adversário mal tocando-lhe as pernas, rei da classe e da disciplina, exemplo maior de cavalheirismo, queixava-se de que certa tarde de jogo, momentos antes de entrar em campo, Newton lhe pediu a camisa e ocupou seu lugar na zaga da equipe. Por um desses inesperados infortúnios do esporte bretão, foi numa furada do técnico-jogador que a bola maldita cismou de achar o caminho das redes corinthianas, obrigando Newton a cair na real. Humildemente, Newton devolveu a camisa a Murilo e não se falou mais no assunto...

Ainda que Cláudio Cristóvão do Pinho, o grande ponta-direita Cláudio, apareça na relação dos técnicos no período de 1958-1959, não é exagero dizer que, mesmo atuando como jogador, em toda sua carreira Cláudio foi sempre, no Corinthians, um técnico na mais completa acepção da palavra, no sentido de orientador e comandante da equipe. Sem nenhum favor, pode-se afirmar que ele foi um técnico e ao mesmo tempo um captain, como nos velhos tempos do clube. Era um conselheiro dos jogadores fora do campo e quase todos o consultavam. Numa renovação difícil do contrato de Julião, a opinião de Cláudio teve peso decisivo para aparar arestas e esclarecer mal-entendidos. Cláudio tinha discrição e discernimento. Era líder e cérebro do time. Um comandante que dirigia a estratégia, modificava as táticas nos 90 minutos de jogo e ainda se consagrava pelos lançamentos de alta precisão para a “cabecinha de ouro” do artilheiro Baltazar e pelo seu próprio chute calibrado, que fez muito goleiro ir buscar a redonda no fundo das redes mais de duas centenas de vezes.

Luís Trochillo, o Luisinho idolatrado pela torcida, o Pequeno Polegar, cuja magni­tude do futebol tinha a proporção inversa de seu tamanho físico, aceitou ser técnico interino, geralmente em momentos difíceis, sempre que o clube lhe solicitou a colabo­ração. Foi assim em 1972, 1973 e 1974. Se os dois remos que figuram no distintivo do Corinthians devessem ter nome de jogadores-técnicos, sem dúvida eles se chamariam Cláudio e Luisinho.

Notas

1. O episódio vem narrado no livro Grandezas e Misérias do Nosso Futebol, de autoria de Floriano Peixoto Corrêa.

2. Pedro Mazzulo, uruguaio, é citado como o primeiro técnico “profissional” do Corinthians. Atuou de 1933 a 1934, contratado no momento em que o futebol paulista assumia o profissionalismo e abando­nava os pudores do falso amadorismo que vigorava fazia já muito tempo nesse esporte.

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3- Embora Antônio Pereira conste como único técnico no período de 1937-1939, não há dúvida de que, pelo menos no campo, Neco, que parara de jogar, dava orientação ao time sentado no banco. A foto de Manuel Nunes, de terno, confraternizando com os jogadores no 32 gol de Filó que em 1937 deu o título de campeão ao Corinthians, vale mais que qualquer dado estatístico.

4. No período de 1945 a 1947 costumam ser citados apenas os técnicos Chiavone e Tigger — inclusive com algumas imprecisões informativas — e acabou se fazendo enorme injustiça, por omissão, a Alcides de Sousa Aguiar, técnico que atuou no Corinthians em 1945, onde permaneceu apenas alguns meses. Estreou em maio daquele ano, dirigindo o alvinegro e conquistando uma vitória de 7 a 1 frente ao Jabaquara, que na época tinha time respeitável e gostava de aprontar. Alcides de Sousa Aguiar deixou o Corinthians por ter brigado com Alfredo Inácio Trindadè, que queria dar palpite no time. Aguiar não concordou de jeito nenhum, mas em 1945 ainda teve tempo de comandar o Corinthians na única derrota sofrida naquele ano pelo São Paulo Futebol Clube (2 a 1 para o alvinegro do Parque São Jorge), apesar de o tricolor vir de Luisinho, Sastre, Leônidas, Remo e Teixeirinha. Felizmente, o levantamento do nome de Alcides de Sousa Aguiar, fazendo-o constar com todo o direito no rol dos técnicos, foi possível graças à paciente persistência do torcedor corintiano Cláudio Palmiro Cambraia Casella, que desde os 12 anos vem fazendo pesquisas sobre a história do Corinthians.

5. José Castelli, o Rato, distingue-se como técnico e como jogador no clube alvinegro do Parque São jorge. Não apenas dirigiu o time no período de 1951 a 1954, como ocupou a função de técnico interino em curtos períodos de 1960, 1962 e 1963. Burilou craques, orientou gerações de atletas e jamais, quando chamado, negou colaborar com seu clube de coração.

6. Ao assumir em 1968 o cargo de técnico, Aimoré Moreira trabalhou tendo Oswaldo Brandão como supervisor de futebol. Em 1971 Aimoré voltou como técnico ao clube, já então respondendo sozinho por seu trabalho.

Guido Giacominelli foi técnico, diretor de futebol e funcionário administrativo do Sport Club Corinthians Paulista. Ho­mem de valor e extremamente opero­so, foi o 8Q presidente do clube. O pri­meiro tricampeonato do Corinthians (1922-1923-1924) foi conquistado sob sua direção técnica. (Foto Antônio Car­los Carreiro)

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Neco (Manuel Nunes), de terno completo e chapéu na cabeça, já não mais integrava o time corinthiano mas funcionou como técnico — embora não constasse como tal— nesse jogo em que o Corinthians venceu o Estudante com três gois de Filó e conquis­tou seu primeiro título de campeão no fu­tebol profissional. Teleco aparece encara- pitado nas costas de um companheiro en­coberto por Carlinhos. À esquerda, de gorrinho branco, Jaú. Ano: 1937. (Foto Ar­quivo Corinthians)

Oswaldo Brandão tem seu nome para sem­pre ligado ao Corinthians. Foi sob seu co­mando que o time conquistou alguns de seus mais expressivos títulos, como o de campeão do 4e Centenário de São Paulo, em 1954, e de campeão de 1977, que rompeu a série de 23 anos de espera da torcida. Bran­dão voltaria ao Corinthians em mais outras três oportunidades, uma delas como super­visor de futebol. Seu mais longo período no Corinthians foi de 1954 a 1958. (Foto Ma­noel Motta — Abril Imagens)

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XXXI

Desde as primeiras atas, um clube forjado nas lutas

A inda que pareça inverossímil que, por falta de mesa, a primeira ata do Sport Club Corinthians Paulista tenha sido lavrada numa folha de papel almaço apoiada numa

palheta, sob a luz das velas que João Murino fora comprar num empório da ma dos Italianos, essa versão romântica combina bem com o chamado “espírito córinthiano” e ajuda a marcar o contraste entre o surgimento do Corinthians e o dos demais clubes de sua época.

Um dos fascínios do Corinthians tem sido a vocação para a fantasia e sua notável capacidade de não se atrapalhar e muito menos se abater com a realidade brutal da vida. O Corinthians existe para dar asas às pedras do caminho. Se há um clube que merece ter lendas, é o Corinthians.

A primeira sede do Corinthians foi o céu estrelado do Bom Retiro, o céu que havia acolhido com fidalguia o grande cometa Hailey. E nos três primeiros anos de vida do clube a sede do Corinthians — quando existiu... — mudava de endereço conforme a direção dos ventos. Não adiantava mandar fazer carimbo indicando a rua e o número da sala onde ficavam as mesas de bilhar e pingue-pongue, o livro de entrada e saída do dinheirinho escasso dos associados e o armário dos uniformes desbotados das equipes que defendiam as cores da agremiação.

O Corinthians durante muito tempo foi um clube sem placa na porta. Para desco­brido, corporificado, era fundamental conhecer os caminhos que levavam aos campos da várzea.

Dessa primeira época primitiva e nômade não restaram, ao que tudo indica, documentos e registros a não ser a palavra dos fundadores, dos primeiros associados, cuja voz a eternidade silenciou. Eles recordavam-se das primeiras atas; até mesmo, alguns, faziam questão de rememorar o talhe da letra que as tinha firmado. Mas

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ignoravam seu destino. Tais papéis desapareceram, a maioria diluída pelas sucessivas mudanças de endereço.

A “face original" do “clube dos operários” reaparece nítida a partir do momento em que. deixando a várzea, o Corinthians ingressa na Liga Paulista de Futebol ajudando a mudar definitivamente a história do futebol brasileiro. A primeira dessas atas vem datada de 11 de abril de 1913 e se refere à assembléia geral extraordinária realizada na sede do clube, então localizada na ma Guarani, n2 18.

“As 8 horas, o snr. Alexandre Magnani, presidente escolhido por aclamação dentre os sócios, mandou proceder a chamada e verificou a presença dos seguintes associados: Alexandre Magnani, Salvador Lopomo, César Nunes, Luiz Fabi, Casimiro do Amaral, Jorge Campbell, Anselmo Corrêa, Paschoal Alcieri, Joaquim Rodrigues, Manuel Nunes, Domingos Império, Américo Fiaschi, João Massario, Attílio Fredi, Guido Orlandi, João Murino, Manoel A. Ferreira, Arthur Fabi, Caetano Barone, Baptista de Bono, Antônio Mastri, Américo de Souza, Alfredo Ipessoni, Salvador Frederico, Luiz Fabi Filho, Bene- dicto da Cunha, Augusto Corrêa, Salvador Gaeta. Havendo número sufficiente, o Snr. Presidente declarou aberta a Assembléia. Os snrs. Jorge Campbell, Joaquim Rodrigues e Salvador Gaeta pediram a palavra, propondo para sócios, o primeiro, os snrs. Heitor da Rós e Américo Casertani; o segundo, o snr. Jacintho Sbano; e o último o snr. Vicente Perroni.

Os propostos foram aceitos.

O snr. Salvador Lopomo propoz a elevação das mensalidades para 3$000 (Tres mil) e uma jóia de 5$000 (Cinco mil), applicável a todos os que fossem propostos depois desta Assembléia; os jogadores do 1Q e 22 teams serem isentos das mensalidades, desde que o club estivesse em melhores condições. O snr. Presidente poz em approvação as referidas propostas, que foram aceitas por unanimidade de votos. Procedeu-se à eleição para prehenchimento de vagas da Directoria e foram eleitos: para 1Q Secretário, Heitor da Rós, para 22 Antônio Garcia, para Thesoureiro Jorge Campbell, para 22 Salvador Frederico, procurador Salvador Gaeta; para revisores de contas: Américo Casertani, Luiz Fabi, César Nunes; para Directores Sportivos; Casimiro do Amaral, Joaquim Rodrigues, Luiz Fabi Filho, Guido Orlandi; commissão fiscal: Casemiro Gonzales e Francisco Police.

Não havendo nada mais a tratar, foi encerrada às 11 horas. Heitor da Rós, l 2 Secretário.”

Por esse antigo documento verifica-se que a assembléia se iniciara com 28 associa­dos e terminara com 32, sendo que um dos sócios recém-aceitos, Heitor da Rós, foi eleito l 2 secretário, cargo bastante importante na estrutura da Diretoria. Heitor da Rós passaria a partir de então a redigir, com sua caligrafia elegante e firme, a maioria das atas da agremiação.

A proposta de aumento das mensalidades era oportuna uma vez que o clube, ao filiar-se à Liga Paulista de Futebol, passava a jogar no Parque Antártica, pagando uma

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taxa pelo uso, a qual, embora mais em conta do que no Velódromo, pesava bastante no orçamento do clube. Acabavam-se as facilidades da várzea.

Ao passar a disputar um dos dois campeonatos da cidade — o outro era o da Associação Paulista de Esportes Athleticos — , o Corinthians também atraía novos simpatizantes que desejavam filiar-se ao clube para gozar dos privilégios de associado. Os sócios fundadores, que durante três anos haviam sustentado o clube na várzea, dando o pouco que tinham de seu bolso, entendiam que nada era mais justo que exigir jóia àqueles que estavam chegando quando a situação do clube já estava definida.

Dinheiro em caixa: 451 mil réis e alguns trocados

Um balancete aprovado em assembléia geral no de 11 de julho de 1913 mostra que o clube tinha três fontes de renda: as bilheterias do Parque Antártica, as mensalidades dos sócios e as listas de “rateio” que circulavam entre os simpatizantes da agremiação. O balancete é assinado por Jorge Campbell, l e tesoureiro, o qual, segundo consta, era um dos principais encarregados de levantar tais listas de contribuições espontâneas. Não é fora de propósito aceitar a versão de que vários “gringos” da São Paulo Railway — onde Campbell trabalhava — , da São Paulo Gaz e da Light and Tramway vez por outra desembolsavam uma nota para ajudar o clube cujo nome Corinthians lhes inspirava simpatia. Aliás, por causa do nome, muita gente pensava que o Corinthians do Bom Retiro fosse um clube... inglês.

O balancete referido trazia o “de acordo” de Luiz Fabi, César Nunes (irmão de Neco) e Casemiro Gonzales, e dizia respeito ao movimento financeiro dos meses de abril, maio e junho de 1915, como se pode ver:

“Receita — Abril de 1913 Entradas vendidas no Parque Antártica Mensalidades de sócios Lista de rateio Total

Maio de 1913Entradas vendidas no Parque Antártica Entradas vendidas no Parque Antártica Total

Rs 6l4$200 Rs 116$000 Rs 190S000 Rs 920S200

Rs 1Ó7S000 Rs 301S100 Rs 468$100

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Junho de 1913Mensalidades de sócios Rs 201$000Mensalidades de sócios Rs 15$000Entradas vendidas no Parque Antártica Rs 190$500Entradas vendidas no Parque Antártica Rs 75$400Total Rs 481$900

Total Rs 1.870$000

Despesas de abril de 1913 Rs 596$200Despesas de maio de 1913 Rs 543$400Despesas de junho de 1913 Rs 279$400Total Rs 1.419$000

Saldo em mãos Rs 451$200”

Além do balancete, foram lidos e aprovados nessa mesma assembléia, depois de uma hora e 35 minutos de discussão, o estatuto do clube1, o regulamento interno e o “regulamento do ping-pong”...

Casimiro do Amaral: “Jogamospela honra do Corinthians!'’

Nessa assembléia, o diretor esportivo Casimiro do Amaral levantou a questão da isenção de mensalidade para os jogadores do l 2 e do 2e quadros, proposta por Salvador Lopomo, e indagou “se o club tinha condições de arcar com essa medida”2. Consultado,o tesoureiro Jorge Campbell disse que o clube atravessava dificuldades, mas, como o assunto era “delicado”, ele sugeria que qualquer decisão a respeito fosse tomada pelos próprios “bravos jogadores”. Casimiro do Amaral retoma a palavra e, em nome dos jogadores, manifesta-se contra a isenção: “O jogador do Corinthians”, diz, “não joga para um simples team. O jogador corinthiano joga pela honra do Corinthians!”

Entretanto, Casimiro do Amaral é realista e reconhece que há casos pessoais de dificuldade financeira tanto por parte dos jogadores como de associados. E propõe, com aprovação geral, que “se um jogador, ou qualquer outro sócio, por qualquer motivo, não tiver condições de pagar as mensalidades, e disso cientificar a Directoria, deve ser perdoado e dispensado de tal pagamento, ou então acertar sua situação perante os cofres do club quando estiver em condições de liquidar os débitos atrasados.

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Anselmo, um dos “fundadores”, perde o lugar no gol epede demissão do club

Dos cinco jovens operários que tiveram a idéia inicial de fundar o clube do Bom Retiro, nenhum chegou a dirigi-lo como presidente. Em muitas assembléias importantes eles nem mesmo estiveram presentes, o que se explica: eram trabalhadores, muitas vezes depediam dos bondes, muitos dos quais continuavam puxados por muares. Havia mil dificuldades. Com o tempo, tanto as reuniões da diretoria do clube como as assembléias gerais passaram a ser marcadas para horário mais avançado na noite, exatamente para facilitar a presença dos associados. As discussões também se alongavam, entravam pela madrugada. Havia atritos acalorados, o tempo esquentava, cada um imaginava propor os melhores caminhos para o progresso do clube.

Havia choques de mentalidades. Para alguns, o Corinthians já fazia muito em ser o melhor clube da várzea, não precisava se ‘ meter com os grandes”, que tinham dinheiro, poder e até força política. Bastava ao Corinthians ser um popular clube modesto, contentar-se em ficar no seu cantinho lá no Bom Retiro. É possível, se não provável, que os “cinco operários fundadores” até se assustassem com a perspectiva que se abria ao Corinthians, um team que arrancara em sua primeira disputa no campeonato um honroso 3Q lugar e que no ano seguinte passaria como um furacão por todos os adversários, fazendo deles “pó de traque”, e chegando a campeão invicto.

Porém, os pontos de vista daqueles rapazes, por discordantes que fossem, coinci­diam num objetivo: ajudar o Corinthians. Se nem todos participavam das reuniões, nenhum faltava à convocação dos captains e faziam das tripas coração para dar sua contribuição em mão-de-obra ou em dinheiro.

Dos “cinco operários” da primeira hora, Anselmo Correia era o mais assíduo às reuniões e assembléias e, de certa forma e certa razão, se achava meio “dono” do Corinthians. Quando discordava de alguma coisa, não deixava para falar depois. Era o tipo do “pavio curto”.

Numa reunião da diretoria, no dia 21 de maio de 1913, Anselmo perdeu a paciência por causa de um assunto que ele reputava gravíssimo, uma verdadeira ofensa pessoal: ele tinha perdido o lugar no gol do 2e quadro. Justo ele. Anselmo, que havia tomado sereno na cabeça organizando o clube sob os lampiões do Bom Retiro. Justo ele, que fora um dos captains no primeiro training do clube no campo do Lenheiro, ele que participava dos “rateios” e estava sempre com o recibo em dia, justamente com ele haviam feito tamanha sacanagem! Tiraram o moço do gol do 2- quadro. Ele, um dos “cinco fundadores”! Era demais! Anselmo Correia pediu a palavra naquela histórica reunião da diretoria e soltou a bomba: “Peço demissão do Corinthians!” A voz, sempre

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firme, agora estava embargada. Os olhos, vermelhos. O brilho furtivo de uma lágrima enrustida e teimosa no bico dos olhos. Na sala em silêncio ouve-se o bater das asas de uma mariposa peluda. A reunião estava quase no fim, a decisão de Anselmo Correia pega todo mundo de calça curta, inclusive o presidente Alexandre Magnani. Anselmo Correia não era um associado comum. Ele era “sócio benemérito”. Um dos “cinco primeiros corinthianos”!

Alexandre Magnani, o cocheiro de tílburi amigo de Miguel Bataglia, que os associa­dos haviam eleito presidente do clube, e depois reeleito, tentou contornar o problema, argumentar, mas Anselmo era esquentado mesmo. Não engolia aquela de ser afastado do gol. Sustentou o pedido, insistiu na demissão. E havia pressões de alguns associados para que o pedido de demissão fosse aceito ali,\naquela triste noite, o Corinthians não iria morrer com a saída daquele “goleirinho”...

Colocado entre a cruz e a caldeirinha, Alexandre Magnani, penalizado e acabrunha­do com a defecção do jogador e amigo, num primeiro instante concedeu a demissão. Houve um burburinho, arrastar de cadeiras, alguns associados deixavam já a sala, com destino a suas casas, quando uma luz se acendeu na cabeça do presidente Magnani: “Demissão de sócio benemérito, de sócio fundador, não podia ser tratada assim sem mais nem menos, em reunião da diretoria. Era assunto grande demais — era assunto para uma assembléia geral decidir”. A voz de Alexandre Magnani mal se ouviu quando ele avisou aos presentes que o assunto da demissão de Anselmo Correia ficava em suspenso até a convocação de uma assembléia geral de associados. Alexandre Magnani queria ganhar tempo. E encerrou a sessão. Lá fora, na noite, a cerração cobria o brilho das estrelas.

Na assembléia geral de 11 de julho de 1913 os associados Luiz Fabi e Francisco Police levantam a penosa questão: “Como é que havia ficado a situação do demissioná­rio?” Alexandre Magnani reitera que não cabia à diretoria do clube conceder demissão a um “sócio benemérito”, explicara isso ao final da reunião naquela noite de maio, infelizmente uma parte dos diretores já se havia retirado, suas palavras não tinham sido ouvidas...

Fabi e Police entendem que a demissão fora concedida. Magnani discorda. Afinal, dois meses já se haviam passado do pedido de demissão, Anselmo Correia continuava freqüentando a sede do clube... “Vamos fazer o seguinte”, sugeriu o presidente Magnani, usando do tato que a experiência da vida lhe ensinara: “nosso caro associado Anselmo está presente a esta assembléia, vamos dar a palavra a ele. Ele decide se mantém o pedido de demissão..

Anselmo Correia levanta-se da cadeira, respira fundo, ainda está magoado com o que considera uma dura injustiça, quantas bolas ele não fora buscar no ângulo, quantas vezes não esfolara os joelhos na piçarra do campo, quanto suor não dera ao Corinthians,

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sim, ele estava amargurado, mas: “Retiro meu pedido de demissão! Estava exaltado, não me conformo de ter sido afastado do gol. Fui injustiçado, não mudei de idéia quanto a isso... Mas nem por isso vou abandonar o barco. Peço que desconsiderem meu pedido de demissão. Estava com a cabeça quente...”

O pedido de Anselmo Correia foi não apenas aprovado pela assembléia como recebido com aplausos e abraços. Magnani sorria. Sua tranqüilidade de presidente dera resultado. Mas o ex-goleiro Anselmo insistia: “Eu só queria saber por que me tiraram do gol!”

Quem dá a explicação é o diretor esportivo Casimiro do Amaral, conforme se lê das atas: “Que tendo entrado, na qualidade de sócio, um g oa l keeper muito superior ao snr. Anselmo Corrêa, a comissão não tinha hesitado na escolha. E julga que tal decisão estava a contento de todos os jogadores do 2Q team e era uma medida também justíssima, porque sócio é o snr. Anselmo e sócio é o snr. Sebastião Casado. Pede, entretanto, aos presentes para julgar o assunto. O snr. Presidente põe em discussão a matéria. A discussão torna-se violenta porque o snr. Anselmo não quer ceder e persiste em sua reclamação. O snr. Presidente impõe silêncio, ameaçando suspender a assembléia. Acalmados os ânimos, põe em votação a proposta do snr. Casimiro do Amaral, que é aprovada por maioria de votos”.

Anselmo Correia perdia a parada, perdia seu lugar no gol do 2S quadro do clube. Não havia protecionismo, não havia privilégios. Jogava o melhor. O goleiro Sebastião entrava no 2S quadro, logo passaria para o 1° team , seria campeão em 1914 e 1916. Mas Anselmo Correia nunca mais pediria para sair do Corinthians, onde continuaria sendo um associado vigilante, atento e, às vezes, um crítico excessivamente áspero, de trato difícil. Mas jamais lhe faltou o profundo amor ao clube que era uma importante razão de sua vida.

“À lh45 da madrugada, não havendo nada mais a tratar, o snr. Presidente declarou encerrada a assembléia, a) Heitor da Rós, l 2 secretário.”

Dos antigos documentos:

“O snr. Joaquim Rodrigues diz ter verificado que alguns diretores, por ocasião de matchs no Parque Antártica, distribuem convites a estranhos. Esses convites, naturalmente, podem ser dados a rapazes indignos, que com sua presença podem comprometer o bom nome do club. Pede, pois, que a diretoria tome as necessárias providências. O snr. Joaquim Rodrigues acha conveniente que cada sócio tenha direito a um convite...”

“O snr. João da Silva, sócio honorário, solicita à assembléia a alteração de seu título. Diz que tendo trabalhado pelo clu b toáos estes anos, sempre com

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a máxima boa vontade e desinteressadamente, foi contemplado com o título de sócio honorário, e julga que a decisão não está conforme, porquanto não tendo aquela assembléia reconhecido seus serviços, devia tê-lo classificado como sócio benemérito. Posto o assunto em discussão, o snr. João da Silva é atendido em seu justo pedido.”

“O snr. Anselmo Corrêa propõe como sócio contribuinte o snr. Décio Viccari, estudante, com 20 anos de idade, que é aceito. E aproveita o ensejo para falar sobre um assunto: sua exclusão do 2Q team."

“Na assembléia geral ordinária de 10 de janeiro de 1914, na Rua dos Imigrantes, nQ 2, às 21h30 o snr. Alexandre Magnani, presidente, procedeu à chamada, verificando a presença dos seguintes associados: Jorge Camp­bell, Heitor da Rós, Salvador Lopomo, João da Silva, Frederico Police, Carmo Campanella, Casemiro Gonzales, Casimiro do Amaral, Joaquim Ferreira, Bianco Gambini, Américo Consertino, Mário Ghilardi, Cândido Marques, Benedito da Cunha, Manuel Nunes (Neco), Adelino de Castro, Antônio Marques, Manoel Ferreira, Francisco SantAnna, César Nunes, Domingos Império, Anselmo Corrêa, Peres Romeu, Carmo Carnevalle, Salvador Frede­rico, Américo de Souza e Antônio Pereira..... .em seguida o snr. Jorge Campbell, tesoureiro, apresenta o balancete anual, cuja leitura provoca constantes apartes. Alguns sócios solicitam esclareci­mentos sobre o total em caixa, pois acham que é muito pouco. O snr. Campbell dá as explicações necessárias e lembra, entretanto, que o relatório do snr. Presidente, que entrará em discussão, esclarece melhor o assunto... ...lido o relatório da Presidência também sob constantes apartes, o snr. Alexandre Magnani diz que economizou o quanto pôde e se as finanças estão mal a culpa é de fatores independentes de sua vontade. Prosseguindo a discussão do documento, Antônio Pereira recomenda mais cuidado e que se evitem despesas inúteis. Por fim o balancete é aprovado por unanimi­dade..... .Antônio Marques e outros associados entendem que são demais as bene- merências dadas pelo Club. Antônio Pereira diz que, se a Directoria conti­nuar a elogiar com tanta facilidade, cedendo títulos de sócio benemérito, em pouco tempo o Club será composto apenas por sócios dessa classe..... .Para o snr. Carmo Campanella, todos os agraciados com títulos merecem a distinção, mas a maioria não concorda com esse ponto de vista. Fica então decidido o seguinte: por unanimidade de votos, é concedido o título de sócio benemérito ao snr. Alexandre Magnani. É dado um voto de louvor e agradecimento aos jogadores que disputam o campeonato da Liga Paulista

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de Futebol pelo Corinthians. O snr. Campanella não se conforma e diz que, se os jogadores que disputam o campeonato são merecedores de um voto de louvor, é uma ingratidão não reconhecer o extraordinário serviço pres­tado por aqueles jogadores que souberam brilhantemente, nos dois matchs, fazer com que o Corinthians passasse a fazer parte do concerto da Liga. Campanella pede mais reflexão nas discussões e ponderação na votação. Antônio Marques, certo de interpretar os sentimentos de todos os presentes à assembléia, diz que não desejava nem por sombra fazer pouco caso daqueles campeões. E diz que o Corinthians pode manifestar o seu profundoreconhecimento de outra forma: propõe que cada jogador que tomou parte

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naqueles dois matchs seja premiado com uma medalha de prata e uma fotografia do conjunto do team e que a sede do Club seja ornamentada com uma dessas fotografias, em tamanho grande4. .... .Procedendo à chamada pelo livro de presença, para efeito de votação, o presidente da assembléia pede que os sócios, um de cada vez, depositem as cédulas numa das gavetas da mesa de ping-pong servindo de urna, o que é feito com a máxima ordem e sob a fiscalização dos snrs. Francisco Police e João da Silva...

.. .O snr. Antônio Marques recomedou aos diretores do Club calma e muita gentileza quando são obrigados a chamar a atenção de qualquer associado em lugares públicos......Francisco Police deseja saber se a festa em homenagem ao g oa l keeper Casimiro do Amaral foi feita à custa dos cofres sociais. Em caso afirmativo, pergunta qual a assembléia que autorizou tal despesa. Alexandre Magnani informou que a medalha de ouro foi oferecida ao homenageado pela Directoria. O cham pagne, presente do distinto associado Américo Conser- tino. O chopp e os salgadinhos foram financiados pelo Club, auxiliado por um rateio’ organizado entre os associados. O snr. Police se declarou satis­feito com a explicação...

...O snr. Carmo Campanella levantou a questão dos associados com as mensalidades em atraso e lembrou que entre eles existem muitos sócios antigos e alguns fundadores, que, independente da vontade deles, perma­necem nessa situação. Entende que a aplicação de penalidade previstas nos estatutos na situação de tão grande número de associados é prejudicial ao Club. O snr. Campanella sugere que os sócios nessa situação poderiam pagar as mensalidade correntes, amortizando os débitos passados em prestações. Casimiro do Amaral aproveita a oportunidade para propor que os jogadores do 1Q e 22 teams. insentos do pagamento de mensalidades, passem a pagar uma cota anual de 5S000. César Nunes propõe que a mensalidade seja reduzida de 3$000 para 2S000, conservando-se a jóia de 5$000. A discussão

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das propostas prolonga-se, associados pedem que a assembléia não se estenda até ao amanhecer, decide-se: os jogadores do 1Q e do 2a quadros passam a pagar uma taxa de inscrição de 5$000; os sócios com mensalidades em atraso amortizarão os débitos em prestações nunca inferiores a 1 $000; a mensalidade é reduzida para 2$000..... .Alexandre Magnani propõe — com aprovação geral — que, para evitar desculpas de que o cobrador não procura receber as mensalidades, a Directoria entregará o serviço a um profissional, que poderá receber até dez por cento de comissão sobre as cobranças que efetuar..

A última reeleição de Alexandre Magnani aconteceu numa assembléia geral no dia 10 de janeiro de 1914, que se estendeu até à lh45 da madrugada. Magnani obteve 22 votos. Antônio Marques foi eleito vice-presidente com um voto a mais... Jorge Campbell, depois de vários anos, perdia o cargo de l 2 tesoureiro (recebeu apenas um voto), mas era eleito para 2Q tesoureiro com 22 votos... Talvez sentindo-se diminuído, Jorge Campbell recusou o cargo. Os associados tentaram demovê-lo da decisão, mas inutil­mente. João da Silva foi então eleito 22 tesoureiro por aclamação... Bianco Gambini, Casemiro Gonzales e Antônio Peres Romeu assumiam os cargos de diretor esportivo...

Dia 11 de setembro de 1914. Assembléia geral extraordinária do clube, na rua dos Imigrantes, n2 2.

“ .. .Alguns associados entendem que as despesas do Club estão exageradas: num único mês, junho, os gastos haviam alcançado a soma de 642$000 (Seiscentos e quarenta e dois mil réis!), nisso incluídas as despesas com... a festa de regozijo pela vitória do Corinthians sobre o Sport Club Germânia... Casemiro Gonzales solicita para examinar os recibos, que lhe são entre­gues. .. O associado Ricardo de Oliveira propõe, para adiantar o expediente, qüe seja formada uma comissão para examinar as contas com vagar. São indicados para essa comissão os associados Casemiro Gonzales, Matheus Constantino, Horácio Coelho e Salvador Gaeta..... .Heitor da Rós e Amílcar Barbuy encaminham cartas à mesa da assembléia solicitando demissão dos cargos que ocupam na Directoria... O presidente Alexandre Magnani diz que o pedido de demissão de Heitor da Rós somente podia ser examinado em reunião da própria Directoria, uma vez que aquele associado ocupava o cargo de representante do Corinthians junto à Liga Paulista de Futebol e era indicação de responsabilidade exclusiva da Direc­toria. ..

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...quanto ao pedido de demissão de Amílcar Barbuy, diretor esportivo e captain do quadro principal do Corinthians, o presidente Alexandre Mag- nani opinou que a assembléia geral não devia atendê-lo, por se tratar de rapaz sincero, cumpridor severo de seus deveres, o qual não pode absolu­tamente deixar a chefia do team, tanto mais que fora escolhido pelo voto unânime de seus colegas de equipe. A assembléia geral recusa o pedido de demissão de Amílcar Barbuy... que continua como capta in ..."

O Corinthians começa a se afastar da Liga Paulista de Futebol

Ainda que levantando o título de campeão invicto naquele ano, foi na assembléia geral de 11 de setembro de 1914 que os corinthianos examinaram a possibilidade de desfiliarem-se da Liga Paulista de Futebol...

. .O snr. Ricardo de Oliveira pediu a palavra para expor a situação do Club perante o esporte paulista. Diz que a Liga Paulista, com a directoria actual, fraca e sem energia, não poderá manter-se perante a Associação Paulista de Sports Athleticos, esta bem vista pelo povo paulista, dirigida por homens sérios, de capacidade e de grande influência política. O snr. Ricardo de Oliveira julga que muito mais ganharia o Corinthians se passasse para as fileiras da Associação. O assunto provoca acalorada discussão e o snr. Presidente, depois de ouvir muitos pareceres, põe em votação a proposta do snr. Ricardo de Oliveira, completando também por sugerir a formação de uma comissão para estudar os melhores meios para conseguir o desideratum sem melindrar o nome do Club... A proposta é aprovada e são indicados para a comissão os snrs. Ricardo de Oliveira, Heitor da Rós, Américo Consertino e João Aloya\”

Magnani pede para deixar a presidência: cu mprira seu dever

Dia 10 de setembro de 1914, Alexandre Magnani surpreende a assembléia geral ao comunicar que não mais continuará na presidência do Corinthians, para a qual havia sido reeleito oito meses antes. Renuncia, alegando afazeres particulares. Os associados não se conformam, instam para que reconsidere sua decisão, mas Magnani permanece inabalável. O grande corinthiano que, na prática, dirigira o clube desde seus primeiros

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passos — Bataglia permaneceu menos de três meses na presidência —, dera tudo de si, levara a agremiação da várzea para a Liga Paulista de Futebol, conseguira o primeiro campeonato, invicto, estava cansado, e com razão. Heitor da Rós — o secretário que redigia as atas com sua letra firme e elegante — pareceu compreender mais que todos a retirada do presidente. Rós tomou a palavra na assembléia e pôs o dedo na ferida: Magnani em muitos momentos fora deixado praticamente sozinho tocando os trabalhos da diretoria eleita em janeiro... Havia diretores omissos, ausentes das reuniões da diretoria.

Porém Magnani não fez nenhuma queixa pessoal. Deixava a presidência, mas não se afastaria jamais do clube. Cumprira sua missão árdua, com alegria e entusiasmo. Mas agora devia deixar o clube na mão de pessoas talvez mais capacitadas. Os associados não eram mais apenas “operários”. Pequenos e modestos comerciantes, artesãos espe­cializados, estudantes, até mesmo algüns profissionais liberais aderiam ao clube... O Corinthians não mais se satisfazia em enfrentar os times da Liga. Seus olhos se voltavam para os clubes da Associação Paulista de Esportes Athleticos, depois do Parque Antártica— o Velódromo!

Naquela mesma noite de setembro os 36 associados que tinham assinado o livro de presença resolvem fazer outra eleição para escolher o substituto de Magnani. É eleito Ricardo de Oliveira — com 33 votos. Alexandre Magnani é eleito vice-presidente, com 20 votos, mas até esse cargo ele recusa assumir, apesar da insistência dos associados. O próprio Magnani indica para a vice-presidência João Aloya, que é então eleito por aclamação. Magnani reitera, mais uma vez, que “não tem mais tempo para desempenhar, com amor, as tarefas de qualquer cargo na Directoria”.

Ricardo de Oliveira e seus novos companheiros assumem numa festiva assembléia em 30 de setembro de 1914. A despedida de Alexandre Magnani não podia ter sido mais cordial, embora diga-se que ele teria se sentido magoado com as ressalvas que uma parte dos associados fez em relação às despesas com a festa de homenagem — que incluiu um grande jantar — aos jogadores que tinham feito o Corinthians ingressar na Liga Paulista de Futebol e, mais que isto, derrotado o grande Germânia! Que a despesa não foi pequena é verdade. Mas os jogadores, para o denodado Magnani, mereciam todo o apoio e todas as homenagens, faziam uma extraordinária campanha que levava o clube ao primeiro campeonato, invicto! — sem nenhum ponto perdido — e que ganhavam os jogadores? Pagavam jóia de cinco mil réis, e ganhavam, no fim de tudo, uma medalha, uma fotografia do time... Nos outros clubes, os clubes ricos, os favores corriam por cima e por baixo do pano. Molhava-se a mão deste ou daquele, concediam-se favores e privilégios... O time valia um banquete, sim. Até porque, se havia um clube festivo na cidade, era o Corinthians. Um clube alegre.

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Um clube feito de trabalho. Todos queriam ajudar, mas às vezes atrapalhavam...

É difícil explicar o êxito de qualquer associação detendo-se apenas em seus episódios de glória e triunfo. As glórias do Corinthians — muitas e enormes — tiveram como alicerce o trabalho, a dedicação, mas também foram conseguidas após choques entre correntes contraditórias e opostas entre si. O objetivo podia ser — e era — o mesmo: o bem do clube. Mas os caminhos propostos variavam. Existia um sentido de democracia, a decisão tomada pela maioria de votos, mas quem era eleito para qualquer cargo — entre eles o de capta in — tinha de trabalhar duro. Ser diretor, ser presidente, não dava status; dava encargos pesados. Não satisfazia a vaidade pessoal, e quem pretendesse apenas lustrar a vaidade podia estar certo de que logo ficaria na marca do pênalti. O Corinthians não tinha “cartolas” a dirigi-lo. Tinha, sim, trabalhadores.

O Corinthians era um clube cercado de armadilhas, que se debatia em dificuldades— principalmente financeiras. Não tinha patronos nem mecenas. Tinha de caminhar com suas próprias pernas. Alguns o viam como uma ameaça ao “cartaz” consolidado dos grandes. Um clube que incomodava, e havia quem o temesse por julgá-lo um detonador da... “luta de classes”. Essa história de “clube dos operários” não soava bem a todos os ouvidos. Essa gente começa pelos campos de futebol, começa a marcar gois, e de repente é capaz de passar a exigir descanso semanal remunerado, férias, o diabo a quatro. Que tal cortar o mal pela raiz?

Naturalmente o mundo gira mais depressa que as teorias, Alexandre Magnani percebia que o “clube dos operários” estava recebendo gente de outros quadrantes, um associado com a letra elegante e firme de Heitor da Rós, o grande secretário do clube, aquela mão que traçava o talhe inconfundível de um calígrafo podia ser tudo, menos mão de operário. Heitor da Rós e tantos outros associados não eram operários. Era a classe média chegando. No rol dos sócios apareciam sobrenomes como Auna, Marques, Consertino, Campbell, Lopomo, Gaeta, Micheli, Lepre, Casena, Martri, Chinaglia, Caldei­ra, Mazzeo, Souza, Nunes, Coelho, Império, Police, Collina, Silva, Gambini, Casado, Barone, Gonzales, Barbuy, Rós, Maurício, quer dizer — o clube harmonizava as colônias de imigrantes de várias origens e ia continuar fazendo isso, essa miscigenação esportiva, cada vez mais. À sombra iluminada da bandeira paulista, todos eram brasileiros de mãos dadas. O Corinthians era um clube de braços abertos — e isso era uma revolução. Era um clube que dava um bico de chuteira nas frescuras e foi assim que nasceu a agremiação que depois teria como simpatizantes o cardeal de São Paulo, o governador do Estado, artistas, professores, cientistas, políticos, donas-de-casa, gente de toda as cores, de

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macacão e de gravata, crianças com sapato e sem sapato, criaturas com teto de concreto ou apenas a lona das estrelas.

Tinham aderido ao Corinthians, um clube bem brasileiro, italianos, espanhóis, portugueses. Um clube brasileiríssimo, com estapafúrdio nome inglês, que conseguira captar inclusive as simpatias dos gringos das companhias inglesas que operavam em São Paulo, e também a afeição da espanholada que vendia alho e remendava sacos para os cerealistas do Mercado Velho, da portuguesada que abria hortas de chicória-amarga e couve-tronchuda nos arrabaldes, aonde somente se chegava de carroça, e o afeto daquele povo itálico que falava com os braços e a boca e cujos pais, ou os próprios filhos, tinham vindo de vapor, com os olhos marejados de melancolia, de Bari, de Nápoles, de Salerno, e da cidade eterna onde Rômulo e Remo mamaram na lendária loba6.

O Corinthians conseguiu juntar tudo isso num único cadinho onde fervia a emoção. Mas o cheiro dos “operários” continuava a incomodar certos narizes torcidos, sem falar que, entre as maledicências disparadas, dizia-se que havia associados que à noite, disfarçados na escuridão que torna todos os gatos pardos e todas as sombras suspeitas, saíam a borrar muros da cidade com palavras diabólicas, tais como “Pão, Terra, Liber­dade”! Dizia-se que o Corinthians tinha alguns sócios... “anarquistas”! Essa gente — que perigo! — não acreditava no Governo de jeito nenhum. Aliás, era contra governos, de um modo geral. Mas os “anarquistas” corinthianos acreditavam no Corinthians!

O Torino. Uma experiência deslumbrante

Magnani deixava a presidência, mas fora sob sua gestão que o Corinthians viveu sua primeira experiência de um confronto internacional, ao jogar com o Torino, clube italiano que visitava o Brasil. Com sua camisa grená e jogadores de alto nível técnico e profissional, o Torino Futebol Clube despertara os sentimentos nostálgicos dos italianos que aqui viviam, e de seus filhos, e tudo ajudou para que suas exibições em gramados paulistanos fossem cercadas de enorme emoção.

O Torino era tão bom de bola que no primeiro jogo, contra o Internacional, deu um show de competência e ganhou de 6 a 0. No segundo jogo, malhou um selecionado da Liga Paulista de Futebol por 5 a 1. A terceira partida ia ser contra o Corinthians. Era uma prova de fogo, uma experiência inédita para aqueles rapazotes vindos dos campos varzeanos. O resultado surpreendeu pela contagem mais que modesta da vitória tori- nense. Os italianos fizeram 3 a 0, e olhe lá. Não foi moleza, não. Quem imaginava que o Corinthians fosse sair de campo arrasado, viu o contrário: o time alvinegro deu o maior suadouro nos torinenses. Mas perdeu, e pronto. Porém, com dignidade e raça .

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Para desforrar-se dos 5 a 1 — e vexada pelo resultado mais honroso obtido pelo Corinthians — a Liga Paulista de Futebol desafia o Torino para nova partida contra seu selecionado. M am m a m ia ! — o resultado da emenda foi bem pior que o primeiro soneto. A tunda do Torino foi de 7 a 1 contra o selecionado. Não havia o que discutir, o Torino era arrasador. O negócio era enfiar a viola no saco e deixar os rapazes da Bota irem jogar em outra freguesia. Mas o Corinthians... ah, esse Corinthians! Que faz o Corinthians? Não se conforma com a derrota de 3 a 0. Pede... “revanche”. Desforra!

Os italianos não podem recusar. Seria fugir da luta. Se desmoralizar. Bem, agora eles iam mostrar todo o jogo. Iriam massacrar aquele time metido a besta. O Parque Antártica, local do jogo, estremece. Gente encarapitada até nos muros. A colônia italiana, parte da qual já vinha sonhando com um “clube só dela”, comparece em peso. O pessoal que torcia o nariz para o time alvinegro achava que aquela seria a oportunidade de vê-lo cair de quatro, de cinco, de dez... Os próprios simpatizantes corinthianos estavam com a pulga atrás da orelha, desconfiados de que não iria dar boa coisa no gramado.

Começa o jogo — os minutos escorrem, fluem, rolam como a bola no campo. O Corinthians era uma fúria, começa a dar uma exibição de raça — e de categoria! Joga como se fosse de ouvido. Impressionante harmonia em todas as suas linhas. O Torino tenta ir, mas não vai. Mas o placar se movimenta para os dois times: 1 a 1! O Torino se esfalfara, e o mais que conseguira nos primeiros 45 minutos fora um penoso 1 a 1. Os times saem de campo sob aplausos. Mosso marcara para o Torino. Américo Fiaschi fizera o gol do Corinthians.

O segundo tempo é tudo ou nada. Luta renhida. Partida disputada em alta tensão, alta temperatura emocional, mas disciplina perfeita. É jogo de bola, não de canelada. Atenção, torcida brasileira!... O jogo vai empatar!... Faltam 13 minutos para... O torinense Debernardi controla a redonda, avança impetuoso, pimba! Desfere um tiro de bico de chuteira. A bola é um bólido. O arqueiro corinthiano Sebastião (aquele que tirara o lugar do Anselmo Correia, lembram?) voa, arroja-se, faz defesa parcial. A bola sobe, bate numa das quatro faces do travessão (as traves redondas viriam muito, muito depois...), volta — Sebastião agaaarraaa! Chuta pra frente! O povo urra de alegria.

Mas Charles Miller, o árbitro, trila o apito. Charles tinha visto o que ninguém vira. Charles entende que a bola entrara no arco! Eta, juiz duma figa! Filho da mãe! Tomara que morra atropelado por uma carroça cheia de repolho! Os jogadores do Torino, cobertos de suor, exultam. Os corinthianos se olham — mas estão felizes. Os jogadores não reclamam, Charles Miller era o pai da bola, o homem que havia começado o mundo de emoções chamado futebol. Os craques corinthianos saem de campo como se suas cabeças estivessem cobertas de pétalas de carinho da torcida. Grande time: Sebastião, Casemiro e Fúlvio. Police, Bianco e César. Américo, Peres, Amílcar, Aparício e Neco...

A estréia do Sport Club Corinthians Paulista em jogo contra equipe estrangeira aconteceu no dia 15 de agosto de 1914.

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No dia 12 de outubro daquele ano, o jornal Sport deiPopolo trazia um artigo assinado por Vittorio Pozzo. treinador e diretor do Torino, dando sua opinião sobre o esquadrão corinthiano: “O Corinthians é uma esquadra formidável em todas as sua linhas. O campeão paulista joga com uma garra tremenda. O Corinthians tem em suas fileiras italianos ou filhos de italianos e todos eles são, individualmente, de categoria superior à média dos jogadores que atuam na Itália. Os backs são fortes e seguros, os halves são trabalhadores incansáveis, os atacantes são velozes e apresentam ótimo entendimento. Nos dois jogos que fizemos com o Corinthians, somente conseguimos sair vencedores depois de uma luta extenuante. O defeito grave do Corinthians é a insegurança e a falta de precisão nas finalizações dos chutes diante do gol. Fora isso, o Corinthians é um tearn de classe, que poderia enfrentar qualquer esquadra da Europa”.

Esse era o clube que Alexandre Magnani estava entregando naquela noite de 30 de setembro, em sessão festiva, a seu sucessor, Ricardo de Oliveira. Discursos comovidos. Abraços. Novos associados: Constantino, Rigobello, Buono, Cunha, Finato, Nowak, Mastri, Wanzo — longe estava o time de apenas meia dúzia de simpatizantes. Magnani está de pé, um pouco melancólico, mas com os olhos brilhantes de entusiasmo. Sente “deixar a presidência cle um clube que viu nascer, que viu galgar os degraus da glória e que hoje representa uma das mais poderosas agremiações esportivas paulistas. A diretoria que deixa seus cargos, caros consócios, faz os mais ardentes votos de que reine sempre entre vós a mais pura cordialidade e coleguismo. Que os novos e nobres diretores, cheios de entusiasmo pelas lutas esportivas, nunca venham a desanimar. Que a disciplina social, a obediência aos estatutos e aos regulamentos, a deferência para com aqueles que vós mesmos escolhestes para dirigir a sorte do nosso clube sejam sempre escrupulosamente observadas, em prol do prestígio do nosso clube... O segredo da força de uma coletividade é constituído pelo respeito às leis que a governam. A directoria que deixa seus cargos tem absoluta certeza de que seus sucessores, por longa série de anos, acompanharão e guiarão o Corinthians num caminho cada vez mais glorioso.

Ricardo de Oliveira, em seu discurso de posse, define o presidente que saía com palavras também emocionadas: “Alexandre Magnani, verdadeiro apóstolo corinthiano, a quem o clube deve a sua organização, a sua força e a sua glória!”

Rua dos Protestantes, n- 28. O Corinthians fica por um fio ...

O presidente Ricardo de Oliveira, mal tomou posse, sentiu na própria pele que dirigir o Corinthians era o mesmo que comandar um barco de emoções num oceano de paixão. O problema que teve de enfrentar de cara, na famosa assembléia extraordinária de 20 de outubro de 1914, relacionava-se com a mudança da sede para a rua dos Protestantes, nQ 28. A mudança efetuara-se sem consulta prévia aos associados, “de forma

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repentina, porque o estimado ex-presidente Alexandre Magnani, proprietário da confei­taria da rua dos Imigrantes, onde o clube ocupava uma sala, a tinha vendido e o novo proprietário desejava o prédio todo desocupado no mais breve tempo possível...”

O aluguel da nova sede seria coberto por um grupo de associados que se prontifi­caram a desembolsar de 10 a 15 mil réis, mas a chuva de ataques que Ricardo de Oliveira teve de enfrentar não foi brincadeira. Para muitos associados, a mudança fora um “absurdo”. O próprio Anselmo Correia não vira com bons olhos a decisão da diretoria, e fez coro com aqueles que defendiam a idéia de que o clube devia permanecer no bairro onde nasceu — no Bom Retiro. Entretanto, Anselmo, que costumava ser extre­mamente crítico, reconhecia que a mudança fora motivada por motivos imperiosos, e assim pedia que todos a aprovassem. O que acabou sendo feito por unanimidade, até porque um reduzido grupo de associados é que iria, teoricamente, suportar os gastos do aluguel...

Na realidade, formavam-se duas correntes no clube: uma, que se atemorizava com a perspectiva de o Corinthians dar um passo maior que suas forças. Era uma corrente tolhida pela timidez. A outra corrente via o Corinthians “grande, poderoso, com hori­zontes mais largos que um team de bairro”... Ricardo de Oliveira, acuado por críticas severas dessa primeira corrente, dizia que eram obra de “caluniadores”. E se aqueles que o atacavam estavam, de fato, dispostos a trabalhar pelo clube, ele, Oliveira, e seus companheiros de diretoria de bom grado abririam mão de seus cargos.

O Corinthians tinha a temperatura de um vulcão em plena atividade. As lavas escorriam pelas bordas. Para agravar a situação, o dinheiro ficava cada vez mais curto. Ricardo de Oliveira recebera o clube com a maioria dos associados atrasada com o pagamento das mensalidades, e consultava a assembléia para que decidisse que atitude tomar: expulsar os associados inadimplentes ou ... Fazer o quê?

Alexandre Magnani, com sua experiência, sabe que boa parte dos associados em atraso estava desempregada. Propõe, então, para que se oficie a cada um deles dando- lhes prazo de 30 dias para porem-se em dia com os cofres do clube, ou então darem explicações pelo atraso. Os desempregados seriam desculpados. Os demais seriam eliminados do quadro social. A assembléia aprovou esta decisão.

Mas outro problema mais espinhoso era levantado pelo associado João Collina: como é que ficara a aprovação das contas apresentadas pela diretoria? O aluguel do campo do Lenheiro fazia alguns meses que não era pago, estava havendo dificuldades para se ter em mãos todos os documentos comprobatórios de despesas, solicitados a Jorge Campbell, o que levou à formação de uma comissão para examinar a contabilida­de, e da qual passavam a fazer parte Casemiro Gonzales, Antônio Marques. Francisco Álvares e João da Silva. Ricardo de Oliveira pegara nas mãos o clube com enormes problemas de organização administrativa, e vivia sob o crivo de alguns associados que se esmeravam no rigor — para não dizer intolerância — com que acompanhavam sua gestão.

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Uma viagem a Campinas que deu o que falar.

Um dos associados que estavam sempre com o estilingue armado para atirar pedra na vidraça da presidência era, curiosamente, o fiel corinthiano Anselmo Correia, que, pela antigüidade — fora um dos “cinco” primeiros — se sentia um pouco dono do clube. Mas sem dúvida ele às vezes exagerava, como quando criticou acerbamente Ricardo de Oliveira por causa de um jogo em Campinas, contra a Ponte Preta. Oliveira exigira dos diretores da Ponte que pagassem a viagem dos jogadores corinthianos em carro ferro­viário de primeira classe. A Ponte queria pagar carro de segunda. Houve discussão forte, o presidente Ricardo de Oliveira bateu o pé, manteve a exigência, a Ponte acabou pagando a passagem de primeira classe, mas Anselmo Correia achou que Oliveira havia errado “e não poderia ter exigido o luxo inútil (sic) sabendo que o clube campineiro era um club modesto...”

Quem se levanta em defesa do presidente Ricardo de Oliveira é Alexandre Magnani, que informou ter acompanhado pessoalmente a discussão em Campinas e, portanto, estava em condições de elogiar “a admiráv.el calma, correção e até sangue-frio do presidente Ricardo, o qual, ao defender seus pontos de vista naquele jogo em Campinas, soube lutar pelo conforto dos teams corinthianos, embora tendo de ouvir verdadeiros insultos de alguns cafajestes...” Alexandre Magnani era justo: “Em vez de ser censurado”, ele falou, “um presidente que assim age deve, isso sim, merecer elogios”. Magnani foi mais fundo: “Trazer um assunto assim à assembléia somente serve para atrasar os trabalhos, demonstrando... certo despeito do associado Anselmo!” Por isso Magnani pedia que a assembléia examinasse a “injustiça das críticas feitas ao presidente Ricardo de Oliveira e que o principal autor delas, Anselmo Correia, fosse eliminado do clube!”

. ..No final, decide-se por um campeonato de pingue-pongue

O clima de guerra somente não prosperou porque o próprio Ricardo de Oliveira tomou a palavra e ressaltou que tanto ele, em nome pessoal, como todos os demais membros da diretoria, de modo nenhum desejavam a eliminação de qualquer sócio que fizesse críticas, ainda quando improcedentes. O clube precisava da união de todos. Pedia, portanto, que a assembléia não levasse em conta a proposta feita por Magnani de eliminar Anselmo Correia. Mas ele, Ricardo, pedia que os sócios isentos de prevenção e má vontade fossem juizes de sua conduta na direção do clube.

Os dois últimos assuntos tratados nessa agitada assembléia de outubro de 1914 — que se estendeu ate às 24hl0 — foram bem mais amenos: “O associado S. Gaeta propôs

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que se realizasse um rateio para aquisição de um pavilhão, o qual deverá ser colocado num ângulo da sede social. E o associado Bianco Gambini propôs que se organizasse um campeonato interno de ping-pong...” As duas propostas foram aprovadas por unanimidade e com muito entusiasmo.

No começo, um pequeno grupo carregou o clube nos ombros

Apesar de todas as dificuldades o clube seguia em frente e Ricardo de Oliveira se desdobrava para vencer um dos anos mais críticos da vida do Corinthians. Pode-se dizer que 1915 foi o ano de vida ou de morte para o clube. No dia 29 de janeiro daquele ano Oliveira foi reeleito para a presidência e iria comer o pão que o diabo amassou. A assembléia em si foi pacífica. Começou bem tarde da noite, às 22 horas, para permitir o comparecimento dos associados que trabalhavam longe — a sede continuava na rua do Protestantes, n2 28 — mas mesmo assim apenas 31 sócios estavam presentes na sala. Manuel Nunes, o Neco, e João Batista Maurício foram os escrutinadores encarregados de conferir e contar os votos. Ricardo de Oliveira se reelegeu com 28 votos (dois foram para Matheus Constantino e um para F. SantAnna). Para vice-presidente foi eleito João Batista Maurício. Nessa noite foi votado e aprovado um voto de louvor exatamente para Matheus Constantino, que na gestão da diretoria anterior “havia substituído o tesoureiro titular, com o máximo desvelo e competência, muito tendo ajudado o clube, motivo por que era lavrado em ata o elogio por seus bons serviços”.

Os associados eram poucos, mas havia entre eles alguns dedicados de corpo e alma ao clube. Matheus Constantino acabou sendo eleito l 2 tesoureiro, e nesse cargo conti­nuou sendo de extrema valia.

Amphilóquio de Oliveira, o Filó, obtivera na eleição 21 votos para captain do team, mas abriu mão do cargo, dando justificativas particulares. Mesmo assim, fez questão de tecer palavras de elogio a Ricardo de Oliveira, “pela sua competência, esforço e modéstia na direção do Corinthians”, e pediu também que se lavrasse em ata um voto de louvor e gratidão ao presidente que se reelegia.

Amargo aniversário

Dia l 2 de setembro de 1915 o clube completava cinco anos. Devia ser uma assembléia festiva, talvez uma reunião solene para grandes comemorações, mas em vez disso o clube debatia-se num mar de problemas. Estava fora do campeonato! Saíra da Liga Paulista de Futebol, com promessas e acenos de acolhimento por parte da Associa-

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ção Paulista de Esportes Athleticos — cujo campeonato pretendia disputar — e sofrera uma verdadeira traição, um “passa-moleque” dos dirigentes do futebol paulista. Para sobreviver, a duras penas, o Corinthians realizava verdadeiras vias-sacras pelo interior do Estado de São Paulo, enfrentando clubes aqui e ali. Longas e cansativas viagens, caminhadas por estradas cobertas de lama ou poeira, adversários duros que vendiam caro qualquer derrota. O Corinthians enfrentava-os com denodo — não tinha outra solução. Era um clube escanteado, que tentavam derrubar com a malícia e a burocracia malandra da “cartolagem”. Imaginavam que o Corinthians sucumbiria pelo desânimo.

Naquela noite de aniversário, não houve festa. A assembléia dos associados discutia as contas do clube — os cofres praticamente vazios, as dívidas crescendo monstruosa­mente! — e até a melancólica briga entre o associado Francisco Alves e o diretor de pingue-pongue, Gúido Orlandi. Por causa da briga, Francisco Alves fora eliminado do clube, mas pedia readmissão. E a assembléia estava reunida, nessa noite do quinto aniversário do clube, para examinar um assunto desses... Francisco Alves alegava que fora eliminado injustamente, pois, de outra forma, também Orlandi deveria ter tido idêntica punição. Antônio Marques toma posição a favor de Francisco Alves, o presidente Ricardo de Oliveira contesta-o, diz que Orlandi era diretor de pingue-pongue, não era, portanto, um associado comum, tinha autoridade... Devia ter sido respeitado. O sócio Antônio Marques retruca que Orlandi devia ter comunicado o incidente imediatamente à diretoria, ele também era culpado... “o clube não podia admitir arbitrariedades... e solicitou que fosse ouvido, naquela noite, o associado Horácio Coelho, que presenciara os incidentes e poderia dar sua opinião.

Horácio Coelho, que também era jogador de futebol do Corinthians, realmente havia presenciado a briga e dá seu depoimento: “Sim, o associado Francisco Alves ofendera moralmente o snr. Guido Orlandi, diretor de pingue-pongue! Merecera a eliminação do quadro social. Mas tendo em vista o adiantado da hora e como o assunto desse desentendimento já tinha tomado muito tempo da assembléia, propunha que se desse a discussão por encerrada e se prosseguisse nos trabalhos...”

Afinal, o clube estava numa dificuldade dos diabos, e se Francisco Alves insistia em voltar ao quadro social, era porque, no fundo de seu coração, era mais um corinthiano que queria ajudar. A briga? Ora, coisas da mocidade de cabeça esquentada! Um dia, no futuro, ninguém mais falaria nisso... Heitor da Rós, com sua experiência em conduzir debates, bateu o martelo: propôs que a assembléia votasse a readmissão de Francisco Alves.

A assembléia aprovou-a por unanimidade.

Mas agora é o associado A. Galliano quem tem algo a dizer. Põe-se de pé, emocionado. E recorda que naquela noite, cinco anos antes, um grupo de pessoas, menor que aquele ali reunido na rua dos Protestantes, havia fundado o Sport Club Corinthians Paulista. Uma grande data. Cinco anos de vida. No entanto... os associados estavam ali reunidos circunstancialmente. Nenhum festejo, nenhuma comemoração...

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Sim, o clube atravessava dificuldades, ele sabia... Todos sabiam. Não havia dinheiro para comemorações... Mas ele, Galliano, propunha o seguinte: “Que todos os associados presentes dessem um voto de louvor a todos os associados, inclusive os ausentes, os que não tinham podido comparecer à assembléia, todos os jogadores e fundadores, e que esse voto de louvor ficasse registrado no livro de atas... para que um dia, se alguém se lembrasse de ler esse livro, ficasse sabendo o que tinha acontecido, naquela noite de setembro, no 5S aniversário do Sport Club Corinthians Paulista!”

Há um arrastar de cadeiras. Todos os associados se levantam. E aplaudem. Aprovam a proposta de Galliano por unanimidade. Por longos momentos, na sala iluminada da rua dos Protestantes, ne 28, o Corinthians parece um clube em festa.

Quase no olho da rua...

Mas a situação não estava nem um pouco para festividades. O pouco que o Corinthians havia conseguido juntar das rendas do campeonato do ano anterior havia se transformado em fumaça... Em casa que falta pão, todos gritam e ninguém tem razão— era um ditado que os portugueses costumam citar. Alguns associados faziam oposição à diretoria e se apegavam ao problema das finanças. O presidente Ricardo de Oliveira propõe que a assembléia, naquela noite de I a de setembro de 1915, nomeie uma comissão de associados para examinar as contas do clube. Que tirassem todas as dúvidas e suspeitas ouvindo o tesoureiro. Casemiro Gonzales, com total isenção de ânimo, perguntou quanto havia de saldo nos cofres do clube. Ricardo de Oliveira faz uma dramática explanação: “Como o clube não disputara campeonato naquele ano, não havia fundo em caixa. A renda mensal diminuía mês a mês. O déficit do clube já chegava a Rs 552$800. Quinhentos e cinqüenta e dois mil e oitocentos réis! Para manter aquela sede adequada ao nome glorioso do Corinthians, um grupo de sócios se comprometera a pagar 10 ou 15 mil réis mensalmente, mas diversos sócios estavam atrasados com o pagamento dessa contribuição. A situação era dramática: a Directoria do Corinthians, encabeçada por Ricardo de Oliveira, se vira obrigada a fazer um empréstimo de Rs 400$000 junto ao sr. João Batista Maurício, dando como garantia de pagamento... os móveis do clube!”

Por que é que o presidente Oliveira foi falar uma coisas dessas! Foi a mesma coisa que jogar uma bomba no recinto. Os que lhe faziam oposição subiram pelas paredes. O associado Manoel Ferreira berrou: “Com que direito os diretores haviam oferecido os móveis em penhor?” Ferreira partiu para a acusação direta: “Ricardo de Oliveira, Heitor da Rós e Matheus Constantino eram responsáveis por aquela... irregularidade!”

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Ricardo de Oliveira retruca que o penhor foi feito em benefício do clube, para salvá-lo. mesmo porque o empréstimo havia sido feito por João Batista Maurício, que era o vice-presidente da agremiação, e ninguém iria se apoderar dos bens do clube.

Em vão Heitor da Rós tentava explicar que os diretores se responsabilizavam pelo empréstimo, que ninguém ia levar os bens do clube, e até pediu que se lesse na assembléia a escritura de empréstimo hipotecário.

O clima desandou. Manoel Ferreira não se convencia de jeito nenhum, passou a acusar os diretores de também eles haverem falhado com o compromisso de dar uma contribuição de 10 ou 15 mil réis para pagar o aluguel da sede. E citou o próprio presidente Oliveira como sendo um dos faltosos!

Parecia que o Corinthians ia desmoronar de vez naquela noite sinistra e negra. O chumbo era de grosso calibre. Ricardo de Oliveira engole a afronta, mas dá o troco: com as mãos trêmulas, retira do bolso um punhado de recibos e prova, com documentos, que sempre pagara as mensalidades em valor superior a 2 mil réis e, de livre e espontânea vontade, dera também sua contribuição de 10 ou 15 mil réis para saldar o aluguel da sede. Não estava de modo nenhum em atraso com os cofres do clube!

Manoel Ferreira não se deu por achado. Continuou a imprecar contra o empréstimo de 400 mil réis feito pela diretoria, e que comprometia — segundo ele — os móveis e as taças do clube. E acusava a diretoria de, ao alugar a casa n2 28 da rua dos Protestantes, estar, indiretamente, jogando a responsabilidade do aluguel nas costas dos futuros associados, que nada tinham a ver com tal compromisso...

Nessa época, um associado explorava o bar do clube na rua dos Protestantes. Era Antônio Marques. Pois o próprio Marques estava em dívida com o aluguel. Heitor da Rós pede um aparte e pergunta por que o contrato não estava sendo cumprido pelo associado... Antônio Marques responde que sua dívida se restringia a um mês de consumo de gás, e não pagara porque... lhe haviam fechado o registro do gás! Antônio Marques aproveita o embalo e também ele desfere críticas ao empréstimo de 400 mil réis... e insiste em obter explicações sobre a penhora dos móveis da sede!

Parecia que nada dava certo. Tudo se complicava... Ricardo de Oliveira está acabrunhado, mas altivamente responde que todas as explicações já haviam sido dadas à assembléia. O empréstimo e a penhora dos móveis eram uma saída para salvar o clube naquele período difícil. Se Marques insistia nas críticas, era porque estava ligado a um grupo de associados que alimentavam má vontade contra o presidente. Mas ele, Ricardo de Oliveira — disse — não baixava a cabeça nem fugia às justas responsabilidades de seu cargo. Assumia a decisão, apesar das críticas e da oposição de alguns.

Antônio Marques aparteia, diz que os jogadores não devem trabalhar para cobrir o penhor dos móveis e das taças, as quais foram conquistadas gloriosamente no campo da luta pelo esporte. A penhora — frisou — recaía nas costas dos diretores.

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Saudades do Bom Retiro

Quando as coisas não vão bem, tudo pode servir de pretexto para críticas. Aconte­ceu naquela assembléia terrível no quinto aniversário do clube: o associado Antônio Marques investe contra a mudança da sede para a rua dos Protestantes! “Quando o clube tinha sua sede no Bom Retiro, ocupava uma sala modesta e não tinha precisão de fazer gastos inúteis (sic).” Por isso Marques reprovava a decisão da diretoria de mudar a sede “daquele bairro, daquele modesto lugar, transferindo-o para ponto mais aristocrático, mais luxuoso, só para encrencar o clube com dívidas...” Que paciência devia ter o presidente Ricardo de Oliveira! Este explica que a diretoria transferiu o clube para a sede da rua dos Protestantes por conveniência social e “até mesmo para a elevação moral do clube, que, como todos os sócios sabiam, era injustamente difamado por outros clubes e pelos inimigos, que, não podendo vencê-lo no campo da luta, esmeravam-se em difamá-lo... A mudança da sede tinha em vista colocar o clube à altura das agremiações congêneres...”

Falta de memória...

O clube não tinha dinheiro em caixa porque, num golpe safado dos adversários, havia sido posto à margem do campeonato (tanto o da Liga quanto o da Associação Athletica...) O dinheiro que entrava no cofre era escasso. Havia dívidas, entre elas a do pagamento do aluguel da sede da rua dos Protestantes... A diretoria, num gesto extremo, havia feito um empréstimo de 400 mil réis, dando como garantia hipotecária os móveis e, dizia-se, as “taças” do clube (entre elas a “Unione Viaggiatori Italiani”), e isso acirrara a oposição. Havia maledicências por parte de alguns associados, que punham em dúvida a lisura das contas da diretoria do clube. O próprio Matheus Constantino, que fazia parte da diretoria, ouvira uma delas: alguns associados, “ciosos de seus deveres”, estavam propalando que houvera malversação de dinheiro num jogo amistoso contra um clube na cidade de Caçapava. Constantino, então, fazia uma proposta: “que os associados que tinham feito esses comentários fizessem parte da comissão de fiscalização das contas do clube!” Outra “acusação” que explodiu nessa quentíssima assembléia: “suspeitava-se que alguns diretores do club teriam viajado à cidade de São Carlos, com passagens grátis, acompanhando os teams do Corinthians...” O presidente Ricardo de Oliveira decidiu então submeter à assembléia geral a seguinte questão: os diretores deviam ou não pagar passagem quando acompanhavam as equipes que iam jogar no interior? Resultado: por

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maioria de votos, a assembléia decide que os diretores que acompanhavam os times tinham direito de ter suas passagens pagas pelo clube...

A diretoria comandada por Ricardo de Oliveira lutava com todas as suas forças para manter o clube à tona naquele terrível ano; a mudança da sede para a ma dos Protestantes não podia ser apontada como a causa principal da falta de dinheiro no cofre do clube. Imaginar que no Bom Retiro a situação seria diferente era, no mínimo, não ter memória para o sufoco vivido em 1912, quando o senhorio trancou a sede e por pouco não se apropria do “patrimônio” da agremiação0.

Ricardo de Oliveira estava bem ciente de que a mudança da sede era apenas um gancho para as críticas encarniçadas de alguns sócios que não se afinavam com ele, e no íntimo estava profundamente ferido e magoado com as ressalvas feitas à sua administração, especialmente quanto às dúvidas no trato com as finanças do clube. Não podia admitir tal tipo de suspeita à sua honra pessoal e dignidade. Sugerira a criação de uma comissão especial para devassar a contabilidade minuciosamente, dando a seguir um parecer — mas agora, naquela dura assembléia, Ricardo de Oliveira ia tomar drástica decisão: pediu demissão da presidência — e nisso foi acompanhado por todos os demais membros da diretoria!

Consta da ata: “A assembléia entende os motivos do snr. Ricaído de Oliveira e aceita seu pedido de demissão, mas rejeita o dos demais diretores, insistindo para que permaneçam nos cargos. Eles concordam em ficar exercendo suas funções no máximo até à realização de nova assembléia geral”.

Na noite de 1Q de setembro de 1915 — quinto aniversário do clube — o vice-presi­dente Joào Batista Maurício, um dentista do Bom Retiro, assumia a presidência do Corinthians, conforme determinavam os estatutos. Manoel Fonseca assumia a vice- presidência.

A primeira medida de João Batista Maurício foi propor que, “nas futuras viagens que o club fizer, os associados não jogadores gozarão de abatimento de 50 por cento no preço da passagem”. A proposta foi aprovada por unanimidade. A reunião se encerrou às 24h40.

Notas

1. Trata-se do estatuto focalizado no capítulo “A data da fundação”.

2. Normalmente os jogadores pagavam mensalidade, costume que vinha da várzea. Tinham de ser bons de bola e estar com o recibo em dia para serem escalados. Contudo, os clubes ofereciam “favores” a seus craques, e o Corinthians, ao entrar na Liga, ainda mantinha o antigo espírito rigorosamente amador. A manifestação de Casimiro do Amaral, que falou em nome dos jogadores corinthianos e abria mão da isenção, é uma prova bastante clara de que o “amor à camisa” existia, ao menos no Corinthians...

3- Os jogos foram aqueles contra o Minas Gerais e o São Paulo.

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4. Quando Alexandre Magnani recebeu o título de “sócio benemérito” ele já exercia a presidência fazia 4 anos, uma vez que Miguel Bataglia teve rápida passagem na direção do clube. O título a Magnani reconhecia seus “grandes e ininterruptos serviços prestados com amor e zelo excepcional” ao Corinthians.

5. Aloya passaria a figurar como halfâiverío titular no time principal do Corinthians em 1917.

6. Um mês e meio depois da assembléia em que Alexandre Magnani passou a presidência a Ricardo de Oliveira, uma carta aberta assinada por Vicente Ragognetti, publicada no jornal Fanfulla, propunha a fundação de um clube da “colônia italiana”, por sinal, na época, a maior de São Paulo. A defecção de um grupo de oriundi filiados ao Corinthians para a nova agremição, denominada Palestra Itália, fundada no Salão Alhambra, e que, conforme seus estatutos, além de futebolística, pretendia ser também filodramática e dançante, privou sem dúvida o alvinegro de alguns elementos de valor, entre eles o grande jogador Bianco, que do Corinthians se transferiu para o Palestra onde foi, durante todos os anos em que atuou pelo time, seu capitão e líder. Todavia, outros oriundi ilustres — os Magnani e os Giacominelli de todos os tempos — continuaram fiéis ao Corinthians.

7. Depoimentos insuspeitos revelam que o árbitro dessa primeira partida contra o Torino, o italiano Minoli, não foi dos mais competentes. O primeiro gol do Torino foi de pênalti; o segundo foi uma infelicidade do arqueiro Sebastião (que havia substituído Casimiro no arco). E o terceiro foi marcado em “flagrante impedimento”, que Minoli ignorou... Na primeira partida contra o Torino, o Corinthians jogou com Casimiro (Sebastião), Fúlvio e Casemiro; Police, Bianco e César; Américo, Peres, Amílcar, Aparício e Neco. No segundo jogo, o time foi o mesmo, com Sebastião jogando os 90 minutos da partida.

8. De como o “patrimônio” do clube foi salvo, de madrugada, pelos próprios associados, está no capítulo “Per aspera ad astra

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Fac-símile da primeira das atas do Corinthians, datada de 11 de abril de 1913. (Foto Arquivo Corinthians)

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Esta é possivelmente a mais antiga foto do Corinthians, de 1913: Fúlvio, Casimiro do Amaral (goleiro e captain) e Casemiro Gonzales, em pé; Police, Bianco e César (ir­mão de Neco), ajoelhados; Aristides, Peres, AmílcarBar- buy, Aparício e Neco, senta­dos. Osgorrinhos, cada joga­dor com sua preferência, não faziam parte do uniforme... (Foto Arquivo Corinthians)

Esta foto de 1914 — ano em que o primeiro título de campeão, invic­to, foi conquistado — mostra o Corinthians com Dias, na meia-es- querda, e sem nenhuma outra al­teração em relação à equipe de 1913. Mas o “visual” é outro: o time aparece mais elegante, começara a jogar no Parque Antártica. Adeus, gorrinhos. Os próprios di­retores aparecem na maior linha, terno escuro, colarinho alto, gra­vata. (Foto Arquivo Corinthians)

Nesta foto, de 1914, o primeiro distinti­vo do Corinthians nas camisas aparece nítido: apenas o C e o P entrelaçados. No alto, da esquerda para a direita, Américo, Peres, Amílcar, Aparício e Neco; ajoelhados, Police, Bianco e Cé­sar; sentados, Fúlvio, Sebastião e Case­miro Gonzales. A pose vale pela “ino­vação” do conjunto: o trio final da defe­sa no primeiro plano. Sebastião Casado, o goleiro, que segura a bola, era o asso­ciado que tirara o lugar do “fundador” Anselmo Correia no gol do 2° quadro e depois conquistou a posição no l 2 time. (Foto Arquivo Corinthians)

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Foto do Corinthians depois de vencer o Germânia, no campeo­nato de 1914. Como goleiro apa­rece Aristides de Oliveira, que era o substituto de Sebastião. Aristi­des, além de jogador, redigia as atas das reuniões da diretoria nos primeiros meses de vida do clu­be. Nessa foto, os craques corin- thianos ostentam, sobre o distin­tivo, a medalha de prata que o clube lhes oferecera como prê­mio pela conquista do título... (Foto Arquivo Corinthians)

Depois da “Unione Viaggiatori Italiani”, acredita- se que esta seja a taça mais antiga — e a primeira oficialmente conquistada no futebol — do Corin­thians. Foi oferecida pela Liga Paulista de Futebol e conquistada pelo alvinegro em 1914 (as inscri­ções no troféu referem-se também aos campeona­tos de 1911,1912,1913,1914,1915 e 1916). (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Os cam peões (outra vez invictos) de 1916 aguardando o adversá­rio, numa b o a ... (Foto Arquivo Corinthians)

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Ricardo de Oliveira substituiu Alexandre Mag- nani na presidência e notabilizou-se pelo espí­rito conciliador e pela diplomacia com que con­duziu o clube nos seus primeiros e inexperientes anos de existência. Deu respaldo moral e exigiu sempre total respeito à agremiação por parte dos adversários. Foi o primeiro presidente a dar uma “sede condigna” ao Corinthians. (Foto Arquivo Corinthians)

O dentista João Batista Maurício foi figura expo­nencial na presidência do Corinthians, tanto na solução de dificuldades financeiras quanto nos momentos de grave crise disciplinar por parte de alguns associados. Seu amor ao clube foi sempre maior que os problemas que tomou a peito solucionar. Nas suas mãos o Corinthians deu o primeiro salto para seu progresso e cres­cimento. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXXIIO fim dos anos cruciais. O

Corinthians se faz Corinthians

Ao findar-se o ano de 1915, o clube dobrava o tenebroso cabo das tormentas. As conspirações armadas contra a agremiação, as artimanhas dos adversários teme­

rosos da força emergente do Corinthians, mesmo a ebulição interna desta ou daquela corrente de associados menos pacientes e compreensivos, haviam ido de encontro e sido contidas por uma muralha invisível, mas palpável, que se constituía no verdadeiro “espírito corinthiano”. O “corinthianismo” — essa capacidade de irmanar e unir pessoas de diferentes origens e diferentes pensamentos e diferentes condições sociais num mesmo sentimento de solidariedade para com um clube transformado em fonte de emoção — tinha sido plantado no coração do povo.

João Batista Maurício tinha plena consciência de que, com a renúncia de Ricardo de Oliveira, pegava nas mãos um clube em crise, mas com um potencial de luta fora do comum. Fez levantamento da situação financeira. Podia contar, quando muito, com 80 associados mais ou menos em dia com os cofres da agremiação. Portanto não havia recursos para continuar mantendo o aluguel da sede da ma dos Protestantes, nQ 28, até porque havia um empréstimo de 400 mil réis a liquidar rapidamente, para acabar de vez com um dos mais ácidos pretextos de críticas de associados. Entregou as dependências ao proprietário saldando todo o aluguel e transferiu a sede para sua própria residência, na ma José Paulino — outra vez o Bom Retiro!

Mas J. B. Maurício não pretendia, de fato, que o clube ficasse lá para sempre, é claro. Aquilo era apenas uma solução de emergência.

Penosamente, mas com fecundo senso administrativo, o presidente Maurício muitas vezes teve de abandonar as atividades profissionais no consultório odontológico — onde o motorzinho que acionava as brocas era operado com pedal — para cobrir as dívidas que pipocavam aqui e ali.

Curiosamente, a crise administrativa parecia não afetar nem de leve a capacidade das equipes corinthianas. Atraído e sugestionado pelos dirigentes da Associação Paulista

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de Esportes Athleticos, que pretendiam enfraquecer a Liga Paulista de Futebol, o Corinthians desfiliou-se desta e ingressou na primeira, mas foi surpreendido com uma jogada menos limpa: somente poderia participar do campeonato da APEA no ano seguinte, 1916. Em 1915, era-lhe permitido participar apenas de jogos amistosos. Para usar uma expressão popular, tiraram-lhe a escada e o clube ficou segurando na broxa. Não havia como recuar, o Corinthians teve de submeter-se ao absurdo. Como seus jogadores eram todos de excelente categoria, os clubes que participavam dos campeo­natos da cidade solicitaram-nos por empréstimo, para que não permanecessem parados todo o tempo. O Corinthians cedeu-os com a maior boa vontade, apenas exigindo que, em jogos amistosos que acaso realizasse, tais jogadores vestissem a camisa corinthiana. E, naturalmente, com a condição de que, terminados os campeonatos, todos os jogado­res lhe fossem devolvidos. O único jogador corinthiano que permaneceu inativo durante o ano todo de 1915 foi Sebastião, goleiro. Amílcar, Fúlvio, Aparício e Peres foram jogar pelo Ypiranga. Police foi defender o Wanderers. Casemiro Gonzales, César e Bianco disputaram o campeonato pelo Mackenzie — o próprio Neco defendeu essa equipe durante aquele ano! Aliás, Casimiro do Amaral, que era o titular no gol do Corinthians, já tinha se mandado definitivamente para o Mackenzie, como o fizera o Antônio Dias, que passara a atuar pelo São Bento.

Pois bem. Ainda que com seus jogadores campeões dispersos, o Corinthians prosseguiu sua campanha vitoriosa no ano de 1915. Um antigo depoimento do falecido cronista Thomaz Mazzoni narra a proeza corinthiana: “Um por um, com exceção do Paulistano, o Sport Club Corinthians Paulista enfrentou e venceu todos os clubes da Associação Paulista de Esportes Athleticos em jogos amistosos, inclusive a seleção dessa entidade, por 2 a 1! Provou assim que poderia ter sido o campeão em 1915 se tivesse disputado oficialmente o campeonato...” Para não deixar dúvidas a respeito, o Corin­thians voltou a se filiar à Liga Paulista de Futebol com a finalidade de disputar o campeonato de 1916, mas antes resolveu dar uma lição aos adversários: num festival esportivo em prol da Beneficência Espanhola, o clube do Bom Retiro enfrentou o Germânia, campeão da Liga em 1915. A goleada do Corinthians foi de 4 a 1.

A galera corinthiana não se agüentava mais de alegria. Faltava apenas acertar contas com a Associação Athletica das Palmeiras, que era a campeã, invicta, de 1915. Combi­nou-se o jogo. Resultado: 3 a 0 para o Corinthians.

O clube podia não ter dinheiro. Podia não ter sede. Os associados podiam fazer ferver as assembléias. Porém, no campo, o Corinthians deitava, rolava e tirava de letra. Um verdadeiro timão.

Não foi por acaso que o apelido carinhoso pegou e hoje está na boca das gerais, arquibancadas e numeradas: Timão! Timão! Timão — desde os heróicos tempos das vacas magérrimas!

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No ano de 1915, o Velódromo também chegava ao fim. Estava sendo desapropriado. Hoje, nada mais resta dele, a não ser fotos amareladas pelo tempo e tênues lembranças. Ficava ali onde hoje se abre a rua Nestor Pestana. Pessoas cismadas dizem que de madrugada, quando os últimos boêmios se recolhem à toca na cidade que ressona, ouve-se no ar o alarido das falecidas torcidas que adejam no firmamento. Mas é pura imaginação. O Velódromo já era. O Corinthians ia trilhar seus caminhos de glória nos lados da Floresta — um bairro que tinha tanta árvore, nas beiradas do rio Tietê, que fazia por merecer o nome.

No dia 23 de março de 1916 o Corinthians havia mudado sua sede para o centro da cidade, no largo da Sé, nQ 3, num edifício conhecido como Palácio da Previdência.

Nesse local realizou-se uma das mais importantes assembléias gerais do clube, com a presença de 31 associados, que, em eleição absolutamente tranqüila, confirmaram — com 23 votos — João Batista Maurício na presidência. Para vice-presidente foi eleito Manoel Fonseca, um pequeno comerciante que mais tarde se estabeleceria com uma bem estocada charutaria perto das porteiras da Central do Brasil, no Brás, tipo valente, destemido, mas fácil de fazer amizades. Heitor da Rós elegeu-se secretário e Matheus Constantino — que se distinguia pelo rigor e precisão com que administrava as finanças— prosseguiu como tesoureiro.

Dois fatos marcam essa assembléia e merecem ser citados: o primeiro é que os associados, por unanimidade, desagravaram o ex-presidente Ricardo de Oliveira das calúnias e maledicências contra ele assacadas e que haviam atingido dè tal modo sua honra pessoal que o levaram a pedir demissão do cargo de presidente. Esse desagravo consistiu na aprovação do balancete de suas contas, que foram examinadas por uma comissão especial da qual faziam parte Casemiro Gonzales, César Nunes e o próprio Antônio Marques — que fora um dos principais acusadores de Ricardo de Oliveira. A lisura das contas e a honestidade da administração de Oliveira ficavam mais que comprovadas; Antônio Marques não compareceu à assembléia de desagravo. Isso fez com que os 31 associados presentes naquela noite redigissem e aprovassem uma moção de protesto contra sua ausência — “apesar de insistentemente convidado a participar da reunião” — e de enaltecimento à pessoa de Ricardo de Oliveira. O próprio César Nunes, membro da comissão fiscal, teve um gesto nobre. Publicamente, reconheceu que a princípio fizera coro com aqueles que punham em dúvida a lisura da gestão de Ricardo de Oliveira, mas agora, tudo examinado, fazia questão de ser dos primeiros a elogiar a atuação do ex-presidente, ao qual pediu desculpas, perante todos os demais associados. A tudo isso ouvia, bem calado, o associado Manoel Ferreira, outro dos acusadores, que sem dúvida percebia como tinham sido infundadas e precipitadas — para não dizer mal-intencionadas — as acerbas críticas feitas a Oliveira. Ricardo de Oliveira manifes­tou-se satisfeito com o desagravo, pediu que ninguém fosse punido pelas acusações

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feitas a seu nome, e, na eleição, acabou recebendo até cinco votos de associados que desejavam que ele voltasse à presidência. Mas venceu João Batista Maurício, por maioria mais que folgada de votos. De qualquer forma, fazia-se justiça plena a uma das figuras mais dignas e competentes que haviam dirigido o Corinthians em um de seus momentos mais difíceis. Ricardo de Oliveira não se afastou do clube. Ao contrário, continuou sendo um de seus mais eficientes e corretos colaboradores.

Outro pormenor interessante da eleição realizada no dia 23 de março de 1916 no largo da Sé, n2 3, é que um dos sufragados para a presidência — com apenas um voto!— foi o Dr. Alcântara Machado. Pela primeira vez aparece nas atas do clube um título de “doutor”. E também pela primeira vez é citado Alcântara Machado.

Qual Alcântara Machado?

O “velho” José de Alcântara Machado de Oliveira, historiador, jurista, professor e parlamentar, um intelectual do mais alto nível, nascido de família tradicional na cidade de Piracicaba e que tinha então 41 anos de idade. Se foi votado para presidente, sinal era de que esse ilustre cidadão, grande orador, filiado ao Partido Republicano Paulista, que fora eleito no ano anterior deputado estadual — antes fora vereador em São Paulo — , pertencia ao quadro social do Corinthians! O “velho” Alcântara Machado seria, em 1932, um entusiasta participante da Revolução Constitucionalista, e, ao morrer, deixou além de obras de jurisprudência seu Vida e Morte do Bandeiran te1.

Portanto, não eram apenas os operários que aderiam ao Corinthians. Agora a ele se filiavam a classe média, os pequenos comerciantes, os artesãos especializados em cornijas, arcos, capitéis e decoração dos primeiros palacetes e sobradòes com sacadas debruçadas para a ma, e aderiam também os primeiros intelectuais, que percebiam o Corinthians como de fato ele era: um fenômeno social e até mesmo político, uma manifestação palpável do anseio popular de emancipação.

Era esse Corinthians Paulista que conseguia trazer de volta a seu seio os jogadores que haviam sido emprestados a outros clubes. Com exceção de Bianco, que fora ajudar o Palestra a se estruturar como time de futebol, Peres, que se mandou para o Ypiranga, Police, que aceitou um convite para jogar no Botafogo do Rio de Janeiro, e do grande Casimiro do Amaral, ex-goleiro corinthiano, e que foi fechar o gol do Mackenzie, todos agora estavam de volta. E voltavam não por dinheiro — que isso era matéria rara no alvinegro. Voltavam pela camisa. Pelo prazer de defender o clube que escolhia seus dirigentes não por “bajulação ou vaidade”, mas pela identificação mais profunda com suas raízes.

O Corinthians agora tinha uma sede social no coração da cidade. E um bom time, um time raçudo, onde outra vez estava o Neco, aquele que nunca mais deixaria o Corinthians. Um time tão bom e valente que faturou o Germânia, campeão da Liga Paulista de Futebol, e faturou depois a Associação Athletica das Palmeiras, campeã da Associação Paulista de Esportes Athleticos. Apesar de malandramente posto à margem

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dos campeonatos da cidade — certamente para não humilhar os adversários — , o Corinthians provava nos campos que o melhor era ele.

O Corinthians voltava ao campeonato da Liga Paulista de Futebol por força da necessidade, mas dentro do clube crescia a corrente a favor da participação num campeonato mais bem-organizado, promovido por uma entidade com mais seriedade administrativa. No fundo, sem nenhum desmerecimento aos adversários, os jogos eram um pouco... fáceis. O campeonato da APEA era mais bem-administrado, dava mais renda, trazia mais prestígio — se bem que prestígio era o que não faltava então ao Corinthians. Os corinthianos mais lúcidos viam que a solução para o desenvolvimento do futebol paulista consistia numa fusão entre as duas entidades, com um único campeonato. E isso de fato acabou acontecendo em 1917, como não poderia deixar de ser.

Mas naquele ano de 1916 o Corinthians voltava a jogar onde podia, e determinados clubes, imaginando aproveitar-se do conceito elevado e das qualidade das equipes alvinegras, chegaram a propor uma... aliança. É o que se lê na ata da assembléia de março de 1916, no largo da Sé, n2 3:

“O snr. Ricardo de Oliveira deseja saber qualquer coisa sobre a tão falada aliança ‘Paysandu-Corinthians-Americano’. O snr. J. B. Maurício diz que há poucos dias recebeu um convite para assistir a uma reunião na sede do Paysandu: foi. acompanhado pelo snr. Fleitor da Rós, encontrando lá os snrs. Friedenreich, do Paysandu. e Guastini, do Americano. Nessa reunião foi discutida uma proposta para a constituição de uma aliança ofensiva e defensiva entre os três clubes citados, aliança essa que deveria ser exercida no seio da Liga Paulista. Não deu, entretanto, uma resposta definitiva, visto a idéia depender da aprovação ou não em sessão da nossa Diretoria. O snr. R. de Oliveira acha que procuraram o Corinthians para uma aliança dessa natureza porque os clubes citados necessitam pelo menos de um clube que goze de bastante prestígio na Liga. A política nossa, porém, foi sempre independente e julga que assim se deverá continuar. Estando, entretanto, prestes o dia em que o Conselho da Liga deverá definir-se sobre os teams que deverão disputar o campeonato e não tendo conseguido saber até agora se o nosso clube será considerado clube novo na Liga, devendo sujeitar-se nesse caso aos m atchs de seleção e despesas extraordinárias, propõe dirigir-se um ofício à Liga, perguntando- lhe se o Corinthians será considerado clube novo ou antigo e, conforme a resposta, aceitar ou não a aliança”. Essa proposta foi aprovada por unanimidade.

Mas havia outra armadilha preparada na Liga Paulista de Futebol contra o Corin­thians. Casemiro Gonzales denunciava que a Liga resolvera “fazer com que os jogadores que disputaram o campeonato passado nos clubes já filiados não possam fazer parte dos clubes que entram no campeonato este ano. Tal resolução vem melindrar ao extremo o nosso clube, porquanto a maioria de nossos jogadores, não disputando o Corinthians

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campeonato algum, foram reforçar alguns teams já filiados.” Gonzales denunciava também que, segundo constava nas rodas esportivas, “Fúlvio, Peres e Antônio Dias, tendo se recusado a assinar as inscrições no Maranhão, esse clube, como represália, havia resolvido procurar a eliminação dos rapazes do seio da Liga, impossibilitando-os, nesse caso, de disputar o campeonato no nosso clube". Casemiro Gonzales propunha que, se a Liga atender o Maranhão, o Corinthians não dispute o campeonato... O snr. Ricardo de Oliveira acha um tanto precipitada a idéia do nobre jogador e amplia sua proposta nos seguintes termos: Toda e qualquer resolução da Liga referente aos teams, antes de aceitá-la, deverá ser submetida à aprovação dos jogadores do l 2 e do 2- teams. Posta esta proposta em votação, é aprovada sem maiores discussões...”

Como se pode observar e deduzir desses antigos e valiosos documentos, a tão propalada fibra e garra da gente corinthiana não é fruto do acaso ou mero fenômeno de circunstância. O Corinthians nasceu e foi criado em clima de dificuldades que o testavam a cada passo. Assim como o organismo humano defende-se com anticorpos por ele mesmo produzidos, o Corinthians foi se imunizando com o correr dos anos e soube extrair a força que tem de suas próprias aparentes fraquezas. Também nisso o Corin­thians Paulista prossegue sendo um retrato fiel do povo...

Em todo o caso, ninguém é de ferro. Como diria o Eclesiastes, tudo tem seu tempo debaixo do sol. Tempo de chorar, tempo de atirar pedras, tempo de abraçar, tempo de separar, tempo de bailar. Mesmo nos tempos mais esfolados do Corinthians os corin- thianos reservavam um tempo para festejar. A alegria é um dom corinthiano. Houve épocas pardas em que os adversários, supondo descamar a alma dos corinthianos sensíveis, inventaram um apelido grotesco para definir o glorioso clube: “Faz-me-rir”. Mas os corinthianos é que costumam dar lições de riso e alegria. São corinthianos o riso e a alegria que enchem a avenida Paulista nas grandes comemorações da torcida, sem que seja necessário convocá-la por editais ou apelos desesperados dos dirigentes. Alegre torcida — que já em 1916 fazia do clube um centro de comemorações cordiais e fraternas, como se pode ver na mesma histórica ata:

“Em seguida o snr. Ricardo de Oliveira pergunta se o clube pode continuar servindo aos Associados, gratuitamente, o tradicional chopp na sede, em ocasiões de vitórias. Faz essa pergunta por ter verificado que as mensalidades dos associados, sempre pequenas, não compensam absolutamente as despesas de tais beberetes. Acha que d’oravante se poderia fazer como faz o Sport Club Germania: em ocasiões de festas, fornece o chopp à razão de 100 réis o copo. O snr. Carnevale também reconhece que é uma coisa evidente que a mensalidade de um associado não compensa absolutamente o que ele pode beber em ocasiões de tais festas. Entretanto é contrário à idéia do snr. Oliveira e prefere, como

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associado, que a mensalidade seja elevada para 5 mil réis, com direito, naturalmente, às regalias que até hoje sào dadas. O assunto provoca acalorada discussão, havendo uma infinidade de propostas. Fica por fim resolvido o seguinte: elevar a mensalidade dos associados de 2 mil réis para 3 mil réis, limitar o número de associados a 50 (sic), continuar concedendo beberetes”. Essas medidas passavam a vigorar a partir de abril.

O clube era rigoroso na readmissão de sócios. A ata dá conta de dois pedidos nesse sentido formulados pelos ex-associados João Mazzelli e João Murino — este último reconhecido como um dos pioneiros participantes das reuniões de organização da agremiação, no Bom Retiro. Mas até nesse caso a assembléia decidiu que o reingresso no quadro social somente era permitido com o pagamento de nova jóia, se bem que, a critério do tesoureiro, poderia ser feito com facilidades, em parcelas...

Três outros fatos assinalaram a assembléia de 23 de março de 1916: por proposta do vice-presidente Manoel Fonseca, foi concecido o título de sócio benem érito ao ex-presidente Ricardo de Oliveira, “como justo prêmio e reconhecimento dos grandes e ininterruptos serviços por ele prestados com amor e zelo ao clube, durante os dois anos consecutivos em que exerceu o difícil cargo de Presidente..

Sob forte emoção, era comunicado à assembléia “o nobre gesto de César Nunes, h a l fe squerdo do nosso 1Q team. que depois de tantos anos de luta, capaz de continuar a brilhar como jogador por muito tempo, sendo ainda um baluarte na defesa corinthiana, em uma reunião da Direção Esportiva, sabendo que o antigo elemento nosso, snr. Antônio Dias, desejava voltar a combater em nossas fileiras, de sua livre e espontânea vontade cedia o seu lugar no team àquele jogador, escusando-se que fazia isso visto estar com uma perna um tanto adoentada e mesmo cansado das lides esportivas. O snr. César Nunes deixa no team do Corinthians um exemplo belíssimo de disciplina e férrea vontade... Ricardo de Oliveira propõe que em ata seja lançado um voto de sincero agradecimento e de louvor pelos serviços verdadeiramente grandes que o snr. César Nunes soube prestar sempre desinteressadamente ao clube. A proposta foi aprovada com uma longa salva de palmas”.

Por fim ergue-se o snr. Júlio Micheli e lembra “festejar o próximo aniversário do clube. O associado Hermógenes Barbuy aplaude a idéia mas diz que o clube não está, e nem estará, naquela data, em condições de festejar com solenidade o seu aniversário. O snr. Júlio Micheli dá então a sugestão de se organizar imediatamente um rateio mensal entre os associados para angariar recursos para a comemoração. A proposta foi aprovada e o presidente indicou imediatamente o snr. Micheli para organizar o rateio com vistas ao desideratuní'.

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Sob aplausos, a assembléia chega a seu final. Já passavam 45 minutos da meia-noite. Os corinthianos vão saindo em grupos, cachecol no pescoço, chapéu na cabeça, uns levantando a gola do paletó. A garoa, como um véu pálido, descia sobre o largo da Sé mergulhado no silêncio.

Nota

1. José de Alcântara Machado de Oliveira era pai do escritor e historiador Alcântara Machado (Antônio Castilho de Alcântara Machado de Oliveira), nascido em Sãó Paulo, cronista, crítico teatral, radialista, um dos adeptos do Modernismo. O futebol foi um de seus temas. É de seu livro Brás, Bexiga e Barra Funda o texto seguinte, intitulado “Corinthians (2) vs. Palestra (1)”:“Delírio futebolístico no Parque Antártica. Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, choca- vam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava.— Neco! Neco!Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou.— Gooool! Gooool!Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um desaforo, um absurdo. Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians! Palhetas subiam no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:— Go-o-o-o-o-o-ol!”Por esse texto, dá para perceber que não era corinthiano apenas o Alcântara Machado pai. Também o filho devia ser... alvinegro! O texto acima citado foi transcrito da Memória Paulistana, editado pelo Museu da Imagem e do Som, 1975.

Alcântara Machado, grande intelectual, político e tribuno, é hoje “Presidente de Honra” do Sport Club Corinthians Pau­lista por ter antevisto, com extraordiná­ria lucidez e inteligência, o papel social que o clube iria representar como ma­nifestação popular. O primeiro estádio do Corinthians, na Floresta, foi resulta­do de suas gestões junto aos poderes municipais da época, 1916. (Foto Arqui­vo Corinthians)

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XXXIIIAlfredo Schurig

A s pessoas que conheceram pessoalmente Alfredo Schurig, um homem de cabelos claros, olhar firme e tranqüilo, juram que aparentemente ele não tinha a menor

propensão ou disponibilidade para dirigir qualquer clube de futebol.

Ele estava longe de ser o tipo que em geral se imagina capaz de tomar nas mãos uma agremiação esportiva e brigar com ela, e por ela, com unhas e dentes, enfrentando adversários e muitas vezes tendo de topar discussões com os próprios associados do clube.

Alfredo Schurig era um cidadão pacato, pacato e bem-humorado, que pouco entendia de futebol. O nome dele era de origem alemã. Também o bom humor de Alfredo tinha sotaque germânico, porque o pai de Alfredo era de um temperamento boêmio: ganhava o sustento da família tocando piano à noite, em bares onde se bebia chope à vontade. Esses bares eram freqüentados especialmente pelo pessoal da colônia alemã em São Paulo, mas não unicamente por alemães.

Enquanto o sr. Schurig, pai do Alfredo, mandava ver no piano polcas e mazurcas, uma atrás da outra, a clientela dos bares onde o sr. Schurig trabalhava — ele era excelente pianista — ia bebendo chope, cerveja, steinhãger e tudo o mais. As noites eram alegres. Ali pelas tantas, era comum um ou outro freguês do bar ficar meio alto, sair caminhando por entre as mesinhas, pedindo licença pra um, pedindo licença pra outro, e se aproximar do piano, apoiar os cotovelos no instrumento — geralmente piano de cauda— e pedir: “Schurig amigão, toca D anúbio A zu l”. O D anúbio Azul, como qualquer pianista de choperia sabe, é uma bonita valsa composta em 1867 por um ex-bancário vienense chamado Johann Strauss, que estudava violino escondido do pai e acabou compondo em sua vida mais de 150 valsas. O D anúbio Azul é uma das mais bonitas delas.

Rara era a noite em que o sr. Schurig não era solicitado a atender a um pedido de D anúbio Azul, que ele tocava de ouvido, de olhos fechados, sem precisar da partitura musical. Mas o sr. Schurig não se queixava da vida que levava. Ao contrário, tinha espírito jovial, gostava da noite, do piano, das valsas vienenses, e também tomava seus chopi- nhos. Era um pianista feliz.

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Mas, no íntimo de seu coração, pedia aos céus que seus dois filhos, Arno e Alfredo, não precisassem ganhar a vida tocando D anúbio A zulão piano nas choperias da cidade.

Foi atendido em seu pedido. Tanto Alfredo quanto Arno cresceram pessoas alegres e gentis, muito educadas. E com uma sorte incrível. Tanta sorte, que certo dia o rapaz Alfredo comprou um bilhete inteiro da Loteria e tirou a sorte grande: ganhou 20 contos de réis — numa época em que se o sujeito fosse “vagai” poderia encostar o corpo na rede e com esse dinheiro ficar muitos anos de papo pro ar.

Acontece que Alfredo Schurig era um moço com índole para o trabalho. Aplicou o dinheiro numa fábrica de parafusos e o dinheiro da Loteria principiou a dar cria que nem coelho. Ficou riquérrimo. Schurig tinha tino administrativo, boa visão para negócios, era honesto e competente. Tinha de prosperar, como prosperou.

No entanto, continuava não entendendo nada de futebol. Ia ao campo de vez em quando, gostava de ver boas partidas, freqüentara o Velódromo, fora ver o Corinthian Football Club inglês jogar em São Paulo, mas não é dizer que fosse um expert no nobre esporte bretão. Era um curioso, só isso. Nem o Germânia, que era o clube da colônia alemã, o entusiasmava. Acompanhava o futebol mais por ouvir dizer. E como também vez por outra, como quase todo mundo, dava umas voltinhas pelos campos da várzea, ficou sabendo que uns rapazes do Bom Retiro tinham fundado um clube chamado Sport Club Corinthians Paulista.

Mas Alfredo Schurig não se meteu no assunto. Não se inscreveu como sócio, não ajudou a fundar o clube. Apenas simpatizou com o esforço daqueles “rapazinhos operários” que pensavam em concorrer um dia com os clubes grandes da cidade.

Alfredo Schurig confirmou que o Corinthians merecia uma mãozinha quando o Dr. Alcântara Machado, homem respeitável, homem de idéias e de livros, ajudou o Corin­thians a arrendar um terreno na Floresta para ter seu campo, como um clube de verdade.

Pela cidade, passaram a correr “rateios” arrecadando fundos; e um dia alguém chegou-se a Alfredo Schurig, que era proprietário da Fábrica de Parafusos Santa Rosa, e perguntou se ele podia dar uma contribuição para o primeiro estádio do Corinthians, na Ponte Grande, na Floresta.

Alfredo Schurig poderia ter desconversado. Mas via naqueles jovens primeiros corinthianos um ideal que o fascinava: o ideal de vencer as dificuldades, por maiores que estas parecessem ser.

Alfredo Schurig, o filho do pianista de choperia, indagou:“No estádio vocês vão precisar de parafusos, não vão?”

“Sim, senhor.”“Os parafusos que vocês precisarem, a quantidade que for, podem vir buscar na

minha fábrica. Dou pelo custo.”Essa foi a primeira vez que Alfredo Schurig ajudou o Corinthians. Todos os pregos

e parafusos que sustentavam as arquibancadas da praça de esportes do Corinthians, e

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que depois foi vendida ao São Bento, tudo aquilo foi dado a um precinho de banana, sem lucro sequer de um tostão, pela Santa Rosa do Schurig.

Alfredo Schurig era um empresário bem-sucedido, a quem a fortuna parecia fazer questão de bafejar. Na década de 30 ele aparecia, ao lado de um certo Evans, como sócio da Casa Schill, magnificamente instalada na rua Florêncio de Abreu, n2 127, como um dos pioneiros na transformação daquela via no centro do comércio de ferragens em São Paulo. A Casa Schill, da qual Evans & Schurig eram donos, trabalhava com importações e engenharia e tinha estoques de máquinas, óleos, ferragens, tintas, ferramentas, atendendo a estradas de ferro, indústrias, fábricas, construtores e o comércio em geral.

O forte de Schurig era a fabricação e venda de parafusos de todos os tipos possíveis e imagináveis. Dominava a praça. Para se ter uma idéia, quando, um dia, resolveu vender a fábrica de parafusos aos ingleses, Schurig recebeu o pagamento em ... libras-ouro.

O tino comercial de Alfredo Schurig tinha sido aprimorado quando ele ainda não passava de simples “vendedor de praça”, antes da sorte grande na Loteria. Mas já então sabia fazer amizades e manter ótimo relacionamento com a freguesia. Quando subiu na escala social, não se tornou snob nem se deixou envolver pela afetação. Prosseguiu sendo um homem do trabalho.

Quem sabe isso explique a simpatia que desde o princípio nutriu pelo Corinthians, sem que, a rigor, alguma vez lhe passasse pela cabeça ter uma participação mais ativa na vida do clube.

Porém foi o que acabou acontecendo.

E aconteceu de uma maneira bastante simples.

Schurig, que já havia ajudado o clube alvinegro na construção do estádio da Floresta, ainda que de longe, acompanhava as atividades do time, como simpatizante. Sem dúvida, não ficara feliz quando o Corinthians, justamente na inauguração da sua praça de esportes na Floresta, convidou o Palestra Itália para dois jogos amistosos inaugurais, e foi derrotado duas vezes. Mas até aí Schurig não se envolvia de ponta-ca- beça nas coisas do Corinthians. O futebol era — sempre foi — uma paixão popular ácida, que muitas vezes deixa cicatrizes difíceis de remover. Alfredo Schurig preservava uma alma pura e romântica, a alma do filho do pianista do D anúbio Azul.

Mas, ao adquirir a primeira gleba da Fazendinha dos srs. Abdalla e Sallem, simpa­tizantes do Sírio, Ernesto Cassano assumira uma dívida pesada, que naturalmente acabou recaindo também nos ombros dos presidentes que o sucediam. Depois de Cassano, a presidência passara pelas mãos de Guido Giacominelli e José Tipaldi, e no final de outubro de 1927, prestes a vencer uma das prestações da escritura de compromisso de compra, o presidente que estava com o problema nas mãos era Felipe Collona. Collona não tinha nem sombra desse dinheiro em caixa e temia — o que ia acabar acontecendo

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— que a dívida fosse executada judicialmente e a gleba voltasse às mãos dos vendedores, como constava das cláusulas da escritura.

Apelar a quem? Collona pensou numa pessoa que pudesse ajudar o clube, que tivesse recursos financeiros para tal: Schurig. Sem dúvida, Schurig já dera provas de admiração pelo Corinthians. Mas era necessário levá-lo para dentro do problema. Colocar-lhe no peito da camisa o distintivo do Corinthians, uma vez que Schurig já o carregava no coração.

Collona não foi falar diretamente com Alfredo, até porque não tinha intimidade com ele e talvez fosse o caso de usar de um pouco de diplomacia. Felipe Collona escolheu um intermediário especial, um jovem médico pediatra culto, viajado, que havia estudado na Alemanha, uma pessoa fina, o Dr. Wladimir de Toledo Piza. O Dr. Wladimir de Toledo Piza morava na rua Conselheiro Nébias, n2 139, era médico especialista da Beneficência Portuguesa e tinha seu consultório na rua Barão de Itapetininga, ne 46, uma rua chic, por onde circulavam cavalheiros e damas que iam tomar o chá das cinco nos salões do Mappin. Na época, a rua Barão de Itapetininga tinha um odor gostoso de perfume francês.

O Collona não fez rodeios até porque o Dr. Wladimir tinha petizes para atender. Foi logo se abrindo: “O clube não tem o dinheiro da prestação do terreno”. Alfredo Schurig foi posto a par da aflição corinthiana, e assumiu: tirou do bolso 30 contos e entregou ao clube.

Schurig havia aberto um precedente financeiro do qual seria difícil escapar daí em diante. O Parque São Jorge debruçava-se sobre a prata líquida do rio Tietê. Ouvia-se o canto dos nambus no fim da tarde. Homens de camiseta e calças arregaçadas iam daqui pra lá carregando carrinhos de pedra, areia, cimento, cal virgem, barras de ferro. As antigas instalações mandadas fazer por Abdalla e Sallem estavam sendo remodeladas, modernizadas. Ali seria erguido um estádio de verdade. Atrás da entrada do campo de futebol, os corinthianos construíam camarotes para o público. E as velhas arquibancadas cobertas, na parte dos fundos do campo, iam ser ampliadas.

“Vamos precisar de muito prego, ferro e parafuso aqui!”, disse Alfredo Schurig, entusiasmado.

Ele não disse “Vocês vão precisar”. Disse “Vamos precisar”. Schurig tinha acabado de colocar o distintivo do Corinthians no peito da camisa. E estava arregaçando as mangas. Foi eleito conselheiro do Corinthians, com 78 votos, numa assembléia realizada no dia 31 de janeiro de 1938.

Um médico tão fino, tão conceituado — “corinthiano”! O Dr. Wladimir de Toledo Piza se esbaldava de rir quando ouvia esse comentário da boca dos remanescentes do São Paulo Athletic, do antigo Germânia — que haviam ido fundar o Clube Pinheiros —

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ou dos associados do Paulistano. O Dr. Wladimir de Toledo Piza era corinthiano, sim. E dos fervorosos. E não somente ele. No outro lado da mesma rua Barão de Itapetininga, funcionava o consultório médico do irmão, o Dr. Alarico de Toledo Piza, com enorme clientela, figura respeitadíssima na cidade. Também corinthiano. A rua Barão de Itape- tininga, quem diria!, tinha dois médicos corinthianos de truz!

Alfredo Schurig era amigo de Alarico e de Wladimir, dois jovens médicos que gostavam de gravata borboleta e cultivavam bigodinhos elegantes — o chamado “bigode de salão” — higienicamente aparados com navalha espanhola. Alarico e Wladimir eram cultos, mas haviam sido criados pelo pai em contato com o povo, estudado no Grupo Escolar do Brás. O pai deles era aquele antigo delegado de Polícia que depois foi ser diretor da Penitenciária do Estado e impressionara um criminalista alemão visitante com uma travessa de mandioca frita. Quantas vezes o delegado, pai de Wladimir e Alarico, não havia dado conselhos, pitos, mas no fim do “sermão” batido nas costas daqueles rapazinhos “corinthianos” que defendiam o Botafogo da várzea do Tamanduateí, e que às vezes quebravam o pau com o adversário!

Schurig continuou ajudando o Corinthians, principalmente nas prestações do terreno. E construíam-se novas dependências no clube para acolher a torcida, que aumentava semana a semana. Era necessário tutu à beça.

Em agosto de 1929, Alfredo Schurig deu ao Corinthians mais 15 contos de réis. Outros 15 contos, em setembro de 1929. Mais 2 contos e 800 réis em dezembro de 1929.

Por essa época Felipe Collona já tinha feito boa amizade com Schurig — já o tratava por Alfredo. Um dia Felipe Collona revelou aos irmãos Toledo Piza uma idéia que vinha ruminando fazia tempo em sua cabeça: “Bom mesmo seria o Schurig ser presidente do clube!”

Alfredo Schurig ouviu a proposta dos três. Não se animou: “Não entendo nada de futebol... Esqueçam”.

Mas o estádio da Fazendinha já estava funcionando, atraía um público enorme, e as coisas começavam a mudar profundamente no futebol brasileiro. O amadorismo — melhor, a capa do falso amadorismo — estava indo para o espaço. Dinheiro escuso corria por todos os lados. Uns menos, outros mais, os clubes abonados se aproveitavam dos recursos dos cofres para aliciar, reforçar seus times. Propalava-se que alguns resultados eram arrumados com mãos de gato.

Tomava-se fundamental reformular a administração do Corinthians, dar-lhe estru­tura capaz de encarar os novos tempos que se avizinhavam rapidamente. Dirigir o clube exigia homens que soubessem comandar, organizar, unir. harmonizar as atividades da agremiação.

“Pouco entendo de futebol”, repetiu Schurig.

“Ajudamos você!”

“Vou pensar. Me dêem um tempo...”

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Em novembro de 1930, Alfredo Schurig tirou do bolso 59 contos, 304 mil réis, e os deu ao clube. Em julho de 1931, fez duas doações: uma de 6 contos e outra de 88 contos, 900 mil e 200 réis. Em agosto de 1931, fez outro donativo de cinco contos e mais um de um conto, 743 mil réis. Em junho de 1933 — pouco antes de estourar a grande crise que abalou o clube e a própria boa vontade de Schurig — ele dera ao clube outro auxílio de três contos, 587 mil e 900 réis.

Em menos de seis anos — de 1927 a 1933 — Alfredo Schurig, que nesse período concordara em ser presidente do Corinthians e assumira o cargo, sucedendo a Felipe Collona, desembolsou em favor do clube alvinegro a soma de 227 contos, 375 mil e 100 réis!

Era muito dinheiro. E foi com essa ajuda que o Corinthians cresceu...

Se comparado aos justos sonhos dos corinthianos, o estádio do Parque São Jorge é uma obra que ainda está muito aquém da grandeza e importância do clube. Mas nenhuma homenagem é tão justa como ter sido dado ao estádio o nome de Alfredo Schurig.

Quem gosta de comentar as crises vividas pelo Corinthians tem assunto para se fartar. Na história do Corinthians, o que não falta são crises. A primeira crise, possivel­mente a mais romântica delas, aconteceu em 1910 quando, segundo dizem, por defeito nas tubulações da Companhia de Gaz, apagou-se a chama do lampião da ma ao pé do qual cinco operários discutiam como conseguir um local para a reunião dos primeiros associados. Aliás, nem associados havia — e essa era a segunda crise dc clube.

Na crise de 1912, o Corinthians não dispunha do parco dinheiro para pagar o aluguel da sede e o senhorio decidiu reter as cadeiras e as bolinhas de pingue-pongue para garantir-se de eventual calote.

Em 1915 houve outra crise: a Associação Paulista de Esportes Athleticos deu um golpe abaixo da cintura e deixou o Corinthians falando sozinho, sem poder disputar o campeonato daquele ano. (E olhem que naquela época havia não um, mas dois campeonatos em São Paulo.) Para desforrar-se da tramóia, depois que ambos os campeonatos terminaram o Corinthians convidou os respectivos campeões para partidas amistosas. Derrotou a Associação Athletica das Palmeiras, campeã da APEA, e derrotou o Germânia, campeão da Liga Paulista de Futebol. Foi demais da conta!

É por isso que no Hino do Corinthians há a frase: “Salve o Corinthians, o campeão dos campeões”.

Outra crise aborrecida, desagradável, ocorreu quando o Corinthians ficou duas décadas sem ganhar sequer um miserável título de campeão paulista de futebol. Para superar esse drama existencial, os corinthianos procuravam passar o tempo inaugurando ginásios, piscinas, quadras, divertindo-se no maior conjunto aquático da América do Sul,

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ou acompanhando as proezas de seus atletas campeões de bola ao cesto, natação, remo e outras modalidades afins. O Corinthians fez uma pausa, para que os adversários pudessem tentar igualar-se às conquistas alvinegras.

Contudo, para não perder o velho hábito, nesse período crítico de sua história o Corinthians aproveitou algumas oportunidades para juntar mais algumas taças e troféus nas prateleiras de seu show room de tradições e glórias mil (vide letra do Hino do Corinthians).

No Corinthians, as crises foram tantas que, sempre que uma nova acontece, os corinthianos fazem questão de esquecer as antigas, e passam a encarar a nova como se ela fosse a maior de todas. Aconteceu exatamente isso quando, um dia, um oficial de Justiça chegou ao cúmulo de entregar uma papeleta na portaria tentando penhorar o ônibus do clube. Parecia que o mundo ia acabar.

Independente do tamanho das crises do Corinthians, uma coisa é corriqueira: elas são as que têm a melhor cobertura no rádio, na imprensa e na televisão. E nas esquinas da cidade.

Seja como for, em todas as crises do clube o Corinthians tem conseguido não somente superá-las, como delas costuma se aproveitar para crescer e agigantar-se. O Corinthians se retempera nas crises. Tal é a opinião de torcedores da melhor cepa, como o Tadeu, o Ernesto, o Dentinho, da Gaviões da Fiel. o compositor Toquinho, o cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Ams, o Miro, do Parreirinha, o pintor Aldemir Martins, o Hermes, da melhor choperia da cidade, e assim por diante, a d infinitum.

Todavia, ao contrário das agremiações que se alimentam apenas de glórias, e quando não as têm morrem à mingua, o Corinthians aprendeu a usar as crises como antídoto contra o veneno da própria crise.

Talvez a mais dramática crise na história do clube ocorreu precisamente quando Schurig, o benemérito, dirigia a agremiação numa época de transição política, social e esportiva. Era a década de 30. A Itália, com o tilintar das liras, atraía os jogadores brasileiros, os oriundi, e até quem não era “oriundo”, como Amphilóquio Marques, o grande Filó, que se sagrou campeão do mundo no selecionado italiano de futebol em 1934, jogando com o nome de Guarisi... Além de Filó. haviam rumado para a Itália os craques corinthianos Del Debbio, Rato, De Maria. O Corinthians desfalcara-se. Grané, Pedro Grané, que tinha chute tão fulminante que recebera o apelido de “420”, (como era conhecido um potente canhão alemào da Primeira Guerra Mundial), Grané “420”, que aterrorizava goleiros e estava no alvinegro desde 1924, fora tricampeão em 28, 29 e 30. esse Grané já começava a ceder seu lugar a Juvenal, a Rossi. Ninguém é eterno, nem o canhão “420”.

O Corinthians estava na fase de fazer das tripas coração. O profissionalismo chegava, impunha-se. O clube tinha dívidas a cobrir, havia pela frente longas prestações.

Mas, na outra face da moeda, no outro lado das dificuldades, o clube organizava-se. Tinha conseguido reunir uma diretoria de escol. Montava-se uma oficina de barcos no

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Parque São Jorge. Desenvolviam-se outros esportes. Formavam-se atletas em quase todas as modalidades esportivas. A parte social era incrementada. Montavam-se times mirins. No bojo da revolução de 30, as coisas convulsionavam-se, a política entrava em ebulição, o povo estava ouriçado, nervos à flor da pele.

Mas o Corinthians avançava. Ainda que não possuindo uma pista adequada, lutando contra a falta de instalações propícias, os atletas corinthianos vinham conseguindo bons resultados nas competições de arremesso de peso, bola ao cesto, arremesso de disco, salto em distância, revezamento. Sete anos após haver tomado posse do Parque São Jorge, os corinthianos tinham transformado o “matagal” num estádio que era orgulho para torcedores e atletas. O Corinthians, em 1933, com Schurig, estava filiado à Associa­ção Paulista de Esportes Athleticos, à Federação Paulista de Atletismo, à Federação Paulista de Natação, a Federação Paulista das Sociedades de Remo e à Federação Paulista de Bola ao Cesto...

Numa das mais grandiosas festas juninas realizadas na Fazendinha, uma espetacular queima de fogos de artifício atraíra a população de São Paulo. O dinheiro para os fogos viera de uma sugestão do próprio Schurig: um fabricante de foguetes de Jacareí lhe devia 20 contos de réis, que foram pagos com o festival de luzes e cores. O espetáculo foi tão emocionante que somente numa noite se inscreveram como associadas do clube cerca de 300 pessoas!

O número de sócios era animador: em 1928, havia 1.210 associados; em 1929,1.853 associados; em 1930, o número de sócios caiu para 1.230; em 1931, subiu para 1.261; em 1932, eram 1.283. Em 1933, o sucesso: 3-615 associados!

A diretoria fazia os maiores esforços para atrair novos elementos para o quadro social. De janeiro a agosto de 1933, registravam-se os seguintes números no livro de freqüência dos atletas no clube: ginástica, 2.626; remo, 1.148; atletismo, 6.039; natação, 5.518. Eram números extraordinários para a época. O Corinthians firmava-se como clube poliesportivo. Somente nos seis primeiros meses de 1933, o clube arrecadara de mensalidades mais de 111 contos de réis. Ainda que em fevereiro e março daquele ano não houvessem sido realizadas competições de futebol, as rendas de janeiro, abril, maio e junho somavam quase 59 contos de réis. Os problemas situavam-se, porém, no time de futebol, que procurava armar-se a duras penas. Gente de longe, corinthianos distantes procuravam ajudar o clube, dando sugestões: um médico de Uberaba telefonou para o Corinthians, indicando um jogador da cidade. O médico chamava-se Dr. Boulan- ger. Lá vem o jogador indicado, acanhado, nem bom nem ruim. Pega o apelido de seu “patrono”. Vai Boulanger “quebrar o galho” na ponta-direita. Fazer o quê? Se não é Boulanger, é Carlinhos. Zuza de centro-a vante... Ou Chola. Na ponta-esquerda, ai que saudades de De Maria! Jogavam agora Rato II ou Gallet. Um sufoco!

Contudo, bem ou mal, os srs. Assad Abdalla e Nagib Sallem iam recebendo as prestações do terreno, embora, em alguns meses, o clube falhasse... Um balancete da época mostra o andamento da dívida:

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Em 1926, pagamento de 65 contos.Em 1927, nada.Em 1928, 50 contos.

Em 1929, 55 contos.Em 193O, 60 contos.

Em 1931, 65 contos.Em 1932, 45 contos.No primeiro semestre de 1933, fora paga mais uma parcela de 60 contos. Perfazia

tudo o total de 400 contos.No Parque São Jorge já tinham sido investidos em benfeitorias quase 439 contos de

réis! O clube progredia... O problema era o bendito time de futebol, que não acertava suas linhas de jeito nenhum... O maravilhoso Neco já estava fora do quadro, as pernas não davam mais conta do recado. Continuava no clube, estimulando, esbravejando, tentando incutir seu amor à camisa, mas...

Pela primeira vez o Corinthians tinha contratado um técnico pagando salário. O primeiro técnico profissional do clube: o uruguaio Pedro Mazzulo. Veio com fama! Conhecia o métier. Como diretor de futebol, um homem que há muito tempo os corinthianos sonhavam ter à frente do departamento: Oswaldo Amaral Pacheco. Pessoa dedicada, íntegra, cordial, gentil, capacitada. Um grande corinthiano.

O presidente Alfredo Schurig havia montado uma diretoria de primeira ordem: Dr. Alarico de Toledo Piza. vice-presidente: Dr. Wladimir de Toledo Piza, secretário-geral; Antônio Maurício Romano, l 2 secretário; Matheus Gravina, 2e secretário; Avelino Cardo­so Sampaio, l e tesoureiro; Manoel de Araújo Cunha, 2Q tesoureiro; Oswaldo Amaral Pacheco, diretor de futebol; A. G. Vasquez, diretor de futebol juvenil: Pedro de Sousa, diretor de bola ao cesto; José Ribeiro Saraiva, diretor de atletismo; João Barbosa de Oliveira, diretor de futebol adjunto; Carlos Braga Júnior, diretor de remo; José Dias Soares, diretor de ginástica; Fortunato dos Santos, diretor de natação. Manoel Fonseca, Benedito do Amaral, Francisco Pires. João Machado e Mário Missiroli eram diretores do departamento social. O Dr. Augusto Langgaard B. de Oliveira era diretor do departa­mento médico. Além do técnico Pedro Mazzulo no futebol, o clube tinha Carlos Joel Nelli — que depois seria diretor de A G azeta Esportiva — como técnico de atletismo e ginástica.

O clube estava mais que organizado. Mas o time de futebol...O dia 5 de novembro de 1933 caiu num domingo. Nesse domingo estava marcado

um jogo no Parque Antártica. O Corinthians, desengonçado, contra o Palestra Itália, na ponta dos cascos. Na cidade o clima de competição era bravo. Havia acusações, suspeitas, diz-que-diz, fofocas. O Palestra estava jogando de ouvido.

Alfredo Schurig lembrou-se do pai, que também tocava de ouvido o D anúbio Azul nas choperias da cidade...

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Nesse domingo de novembro, Onça jogou no gol do Corinthians. Na zaga: Rossi e Bazani (depois Nascimento). Na linha-média: Jango, Brancácio e Carlos. No ataque: Carlinhos, Baianinho, Zuza, Chola e Gallet.

O Palestra ganhou de 8 a 0. Romeu Pelliciari, sozinho, fez 4 gois. Mas cometeu uma besteira que mais tarde ia lhe custar caríssimo. Ele disse: “É melhor ganhar do Corinthians do que ganhar o campeonato!”

Romeu, sem dúvida, jogara um bolão. Mas com esse temerário rompante se condenou, a partir de então, a nem por sonho ser convidado a vestir a gloriosa camisa do Corinthians, mesmo que fosse o último jogador de futebol do mundo e ainda que se dispusesse a beber toda a água da biquinha do Parque São Jorge.

Apesar do plantei limitado, em que se revezavam jogadores como Chola, Zuza, Onça, Boulanger, Hernos, Laurindo, Baianinho e outros do mesmo padrão, alguns torcedores corinthianos, inconformados com o acachapante placar, entenderam que a culpa da derrota havia sido da diretoria, a qual, por sinal, estava se desincumbindo perfeitamente bem de suas tarefas, colocando o clube numa posição invejável em todos os outros setores. O futebol exigia um pouco de paciência. O Corinthians, na verdade, iria chegar ao fim do campeonato em 5Q lugar, mas nem todos os resultados haviam sido ruins naquele ano. Ao contrário. Em maio de 1933, o Corinthians pespegara uma derrota de 10 a 1 no Sírio. Nesse goleada, Zuza marcara 6 gois!

Acontece que os torcedores de cabeça quente esqueceram os resultados favoráveis, não levaram em conta as benfeitorias que estavam sendo construídas no Parque São Jorge, e fizeram uma loucura imperdoável.

Em novembro de 1933 a sede do Corinthians funcionava no centro de São Paulo, na rua José Bonifácio, n2 33, no andar de cima. Em baixo, no térreo, havia um salão de bilhar. O jogo contra o Palestra havia se realizado no campo do alviverde e fora desastroso também para o 22 quadro corinthiano, que perdera de 4 a 0. Torcedores exaltados se puseram então a xingar no campo o vice-presidente Alarico de Toledo Piza e o diretor de futebol Oswaldo Amaral Pacheco. Uma ingratidão grosseira, uma violência absurda, porque tanto o Dr. Alarico como o sr. Oswaldo eram pessoas da maior competência, da mais entranhada dedicação, faziam sacrifícios pessoais para colaborar com o clube. O grupelho de torcedores completou seu gesto de indignação e revolta indo à sede na rua José Bonifácio, com o propósito de depredá-la. De fato, chegaram a fazer estragos, derrubaram o aparelho telefônico (linha 2-4466), mas logo chegou a turma do deixa-pra-lá, da qual participavam jogadores do salão de bilhar, que não gostavam de confusão na área.

Na terça-feira, 7 de novembro de 1933, à noite, a diretoria presidida pelo grande corinthiano Alfredo Schurig pedia demissão coletiva, numa reunião da qual participaram Alfredo Schurig, Alarico de Toledo Piza, Antônio Maurício Romano, Avelino Cardoso Sampaio, Manoel de Araújo Cunha e Wladimir de Toledo Piza. Como consta:

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“Com a presença dos diretores acima, reuniu-se hoje, pela última vez, a Directoria do Sport Club Corinthians Paulista, eleita pelo Conselho Consul­tivo e Deliberativo, em 18 de fevereiro de 1933. e resolve o seguinte: l 2. Renunciar coletivamente, depondo nas màos do mesmo conselho que os elegeu, por absoluta e unânime solidariedade aos nossos distintos colegas Dr. Alarico Toledo Piza e Oswaldo Amaral Pacheco, respectivamente Vice- presidente e Diretor de Futebol, insultados e desacatados por sócios torce­dores, no campo do Palestra Itália, no último domingo, dia 5 do corrente, quando ali se realizava o jogo de campeonato da cidade entre o nosso e aquele club. em cujo jogo o resultado foi: 2S quadro. Corinthians 0 — Palestra 4 — 1Q quadro, Corinthians 0 — Palestra 8 e o resultado financeiro líquido de Rs 5:430S900 (cinco contos, quatrocentos e trinta mil e novecentos réis); 28. Fazer publicar um manifesto relatório, por conta particular dos Diretores; 3e. Deixar de aplicar penas aos sócios: Joaquim Pinto Valente, Antônio Guedes Paiva, José Alexandre. Henrique da Cruz P. Corrêa. Emílio Santoro, José Maria Marques Jr.. João Appugliese. Leopoldo Fernandes. José Penha Semper, Júlio Ciofi e Romeu Ferrara, elementos indisciplinados, principais chefes da rebeldia, das vergonhas e arruaças de domingo. Na data de hoje, a Directoria do S.C.C.P. deixa, de acordo com informações fornecidas pela Secretaria, o seguinte quadro social: Contribuintes: maiores, mensal, 2.134; menores, mensal. 974: anual — maiores, 178: anual — menores, 13- Total: 3.296. Remidos e beneméritos, 136: jogadores de futebol. 72; jogadores de bola ao cesto, 19; sócios honorários, 4; presidente honorário, 1. Total geral: 3-528. O Dr. Alarico de Toledo Piza. solicitando, a seguir, a presença dos componentes dos Departamentos Técnico, Social, despediu-se de todos em nome da Directoria. tecendo a todos um hymno de louvor e agradecimento. Respondeu em nome do Departamento de Futebol o snr. Oswaldo Pacheco, agradecendo todas as atenções que mereceu por parte de todos; em nome do Departamento Técnico, falou o snr. Carlos Joel Nelli, agradecendo em nome de todos os colegas e atletas as honras que a Directoria lhe havia dado. O Departamento Social também agradeceu a todos os diretores as homena­gens e atenções que mereceram. Por fim. o snr. Manuel Araújo Cunha pediu a todos que. mesmo fora da administração do S.C.C.P., todos trabalhem e se esforcem para que as cores da bandeira corinthiana sejam sempre honradas como o foram até aqui. Registrar o saldo de Rs 58S200 (cinqüenta e oito mil e duzentos réis) entregues nesta data ao tesoureiro, snr. Avelino Sampaio, pelo tesoureiro do Departamento Social, snr. João Machado, de acordo com os recibos juntos. Nada mais havendo a tratar o snr. presidente deu por terminados os trabalhos, despede-se e agradece a todos a cooperação que sempre teve da parte de seus colegas de Directoria e encerra às 22h30”.

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No dia 8 de novembro de 1933 elegia-se nova diretoria, presidida por João Batista Maurício, que completaria a gestão da diretoria demissionária.

Alfredo Schurig continuou fiel ao Sport Club Corinthians Paulista, ao lado de seus companheiros, até o fim de seus dias. Seu coração era grande demais e seu espírito demais gentil para levar para o túmulo mágoas e ressentimentos. Seus ouvidos eram surdos às ofensas e estavam abertos para o eco distante do D anúbio Azul ao piano e para as palavras do primeiro Hino do Corinthians: “... Lutar, lutar... A glória será o teu repouso...”

O médico Alarico de Toledo Piza, de tradicional família paulista, foi o vice-presidente na gestão Schurig. Grande corinthiano, foi dos primei­ros a romper com o preconceito contra o “time dos operários”. (Foto Arquivo Corinthians)

Alfredo Schurig: este homem foi o anjo da guarda do Corinthians. (Foto Arquivo Corinthians)

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Wladimir de Toledo Piza, médico corinthiano irmão de Alarico, secretário-geral na gestão Schurig. (Foto Gil Passarelli)

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Na gestão de Alfredo Schurig, começou a ser publicada a revista Corinthians, cuja capa do l e número está na foto. (Foto Arquivo Corinthians)

Oswaldo Amaral Pacheco era diretor de futebol, em 1933, quando o Corin­thians contratou o primeiro técnico profissional, um uruguaio. Ofendido por um grupo de torcedores corin- thianos após uma derrota contra o Palestra Itália. Pacheco demitiu-se e com ele toda a diretoria do clube. (Foto Arquivo Corinthians)

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Com a compra do Parque São Jorge (onde já havia um salão de baile), o Corinthians principiou a se tomar um clube familiar. (Foto Arquivo Corinthians)

Nadadores, década de 30: “um grupo de athletas em preparo para as próximas competições officiaes”.(Foto Arquivo Corinthians)

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Aspecto da torcida corinthiana no momento em que o juiz marcara uma falta contra o adversário nas proximidades da grande área: quem vai bater é o zagueiro Grané. o famoso “420”. (Foto Arquivo Corinthians)

O paletó e a gravata eram peças comuns no vestuário mesmo do torcedor das gerais. À esquerda, no alto, o antigo reservado da imprensa na Fazendinha. Apesar da construção de modemíssimas cabinas na parte nova do atual estádio, até por volta de 1991 o arcabouço da vetusta edificação resistia ao tempo. (Foto Arquivo Corinthians)

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XXXIV

O primeiro campo oficial: 1917

Duas partidas — ambas contra o Palestra — assinalaram a inauguração do primeiro campo oficial do Corinthians, na Ponte Grande, construído no terreno arrendado

da Prefeitura. Ficava ao lado do campo da Associação Athletica das Palmeiras, na Floresta, nas proximidades da antiga fábrica da Cama Patente. O Corinthians empatou o primeiro e perdeu o segundo jogo. Mas “o clube dos operários” dava um passo decisivo em seu destino, uma vez que até então não dispunha de nada que lembrasse nem de longe uma praça de esportes. A inauguração aconteceu no dia 17 de março de 1917 e foi saudada com entusiasmo pelos principais jornais da época. Dias antes da inaugura­ção, assim se manifestou o influente Correio Paulistano :

“No próximo domingo irá ter o povo esportivo desta capital — que já deve estar saudoso — ensejo de presenciar um belíssimo m atch de foot-ball, no qual serão contendores os conhecidos e queridos clubes da Paulicéia: Corinthians e Palestra. Estamos certos de que a afluência a esse encontro será grande, não só pelas condições de um m atch quase inicial do campeo­nato, como pelos conjuntos que se encontrarão amistosamente para as primeiras apresentações das perfomances por que passaram as equipes durante as férias da Associação. O Corinthians inaugurará nesse dia mais um campo digno de São Paulo. E, como tivemos ocasião de, na visita que fizemos ao novo ground, presenciar o capricho da construção das dependências todas, onde se vê a perseverança do ânimo e a vontade do desenvolvimento esportivo em nossa terra, não podemos deixar sem algumas considerações o nobre gesto dos diretores corinthianos.O retângulo destinado aos encontros assemelha-se a um tapete de grama, plano e sujeito às regras do foot-ball; as arquibancadas são espaçosas e cômodas, o mesmo se dando com os vestiários e outras dependências. Tudo, enfim, faz-nos ver a boa vontade dos dirigentes dessa entidade para a apresentação de mais um bom campo para o nosso esporte, para os estran­geiros e . .. para os decantados conjuntos metalúrgicos cariocas — que tanto se queixavam de nossos grou n ds— quando eram derrotados”.

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A alusão do Correio Paulistano, irônica, aos clubes cariocas dizia respeito às críticas que aqueles vinham fazendo aos “campos esburacados e cheios de areia" de São Paulo, “muitos furos abaixo dos do Rio de Janeiro"... Também o jornal A Platéia noticiava a visita à praça de esportes do Sport Club Corinthians Paulista feita pelos diretores da Associação Paulista de Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo... Dizia o jornal:

“A praça de esportes do Corinthians. se não se pode qualificar de colossal, entretanto é confortável e possui todos os requisitos para os matchs de campeonato de nossa entidade máxima. O campo tem as dimensões regu­lamentares e bom gramado, inteiramente plano; as arquibancadas reserva­das são do mesmo tamanho, mais ou menos das da A. A. das Palmeiras; e sob estas está instalado um confortável bar e serão construídos oportuna­mente quartos para vestiários dos jogadores, banheiros, etc. Mas o que, incontestavelmente, mais honra faz caber ao campeão da extinta Liga Paulista é a feliz idéia que teve de construir altas arquibancadas para as gerais, com nove degraus de um lado e onze do outro, que faz com que o povo da geral fique confortavelmente instalado, apesar de poder o novo ground comportar milhares de assistentes... Depois da visita ao campo a diretoria do Sport Club Corinthians Paulista reuniu os convidados, oferecen- do-lhes uma taça de champanhe. Estiveram presentes Feliciano Lebre Melo e Corrêa Dias, diretores da APEA e os cronistas esportivos Vicente Ragog- netti, do Fanfu lla■ Américo Marroni. do D iário P op u lar ; José Guimarães, do Correio Paulistano-, Mário Macedo, da Revista Feminina-, Ernesto Cassano, do Guerin Moschino, Renato Santos, de A Gazeta. Pêncio Ferraz Alvim. do C om bate ; e Plínio Silveira Mendes, de A Platéia

O primeiro jogo inaugural terminou empatado por 3 a 3- Informava o Correio Paulistano.

“A inauguração da praça de esportes do Corinthians Paulista foi um sucesso. Cerca de 10 mil pessoas ocuparam as dependências, dando ao local um aspecto encantador. Apesar da chuva e de outras reuniões esportivas não menos atraentes, como as do prado da Mooca e do Clube de Regatas Tietê, a afluência de público foi admirável e mostrou que o foot-ba ll é o esporte preferido do público paulistano. Às 16 horas, sob as ordens do juiz oficial Manuel Ferreira Pinto Júnior, do São Bento, deram entrada no campo as duas primeiras equipes dos clubes, recebidas por prolongadas salvas de palmas. O pontapé inicial foi dado pelo Doutor Alcântara Machado, deputado estadual e presidente honorário do Sport Club Corinthians Paulista. Ao clube local, conhecedor perfeito do campo, nâo foi difícil dominar de princípio o seu valente contendor, possuidor, aliás, de um conjunto de players que

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nenhum clube de São Paulo tem possuído. O Corinthians apresentou-se bem reforçado, porém ainda deixou um pouco a desejar; sua defesa continua fraca, se bem que Pizzocarro soubesse defender ontem bolas bem difíceis, produzindo tiradas em estilo elegante que emocionaram a assistência... As novas regras do foot-ball, ou antes, as resoluções tomadas ultimamente pelos juizes oficiais, não permitem certos abusos por parte dos jogadores, que são imediatamente punidos. Daí a razão por que presenciamos no match maior número de penalidades. O juiz foi obrigado a fazer soar o apito constante­mente, punindo este ou aquele fou l, que noutros tempos passavam desper­cebidos. O público, pouco conhecedor das novas resoluções tomadas, achou que as penalidade eram demais e, por isso, o juiz foi hostilmente tratado. Os casos de o ffs id e irritaram as torcidas, que chegaram ao ponto de desconfiar da honestidade do árbitro da pugna. O Corinthians, após algumas combinações de sua linha de ataque, conseguiu, aos dez minutos de jogo, marcar o primeiro ponto, conquistado por Neco. Poucos minutos depois Américo driblou a defesa e com um shoot forte e rasteiro envia a esfera ao retângulo defendido por Flosi, que, mal colocado, não interceptou sua passagem. Este segundo ponto foi recebido com gerais aplausos, notando-se desde então algum desânimo no excelente conjunto de Bianco...”

Ainda no primeiro tempo, Heitor, do Palestra, chuta perigosamente, Pizzocarro fàz excelente defesa. Mas num novo ataque, o mesmo Heitor marca. É a vez de o Corinthians descer para o ataque, Bororó finaliza com sucesso. Fim do primeiro tempo: 3 a 1 para o Corinthians.

No segundo tempo, o campo estava completamente molhado pela chuva.' O Palestra firma-se, reage, marca dois gois. Diz o cronista de A Platéia :

“O último gol nos pareceu offside. Senão vejamos: há uma niellée na porta do gol corinthiano; a linha e a defesa estavam aquém da do Palestra. A esfera estava em poder de Heitor. O árbitro apitou como bola fora de jogo, mas Heitor desferiu o pontapé e a bola foi aninhar-se na rede... Resultado: o gol foi dado como válido, naturalmente pelo fato de o juiz temer a revolta dos torcedores, caso anulasse o lance... Com o empate da luta, o Corinthians desanimou por completo. Basílio, efetivo do time corinthiano, machucado, não jogou. Neco, pouco auxiliado, não se esforçou... Devemos frisar, porém, que o Corinthians possui um bom conjunto de jogadores. O trio Amílcar, Bororó e Neco, auxiliados pelos extremas, muito darão o que fazer às defesas contrárias..

Portanto, foi Neco quem marcou o primeiro gol no primeiro estádio que o Corin­thians construiu em sua história.

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Os invictos de 1916, sem ne­nhum ponto perdido, no cam­peonato da Liga Paulista de Futebol: Sebastião, Fúlvio, Ca- semiro Gonzales, Police, Plí­nio, César, Américo, Fiú, Amíl- car, Aparício e Neco. (Foto Ar­quivo Corinthians)

Este lance embolado é do primeiro jogo interestadual do Corinthians Paulista, realizado no dia l 2 de dezembro de 1918, contra o Clube de Regatas Flamengo, do Rio de Janeiro. O jogo foi em São Paulo. O Corinthians venceu por 2 a 1. Em 1920, o Corinthians fez seu segundo jogo interestadual com o mesmo Flamengo, já então no campo do rubro-negro, na ma Paysandu, repetindo a vitória pelo mesmo resultado. Consta que, após a vitória de 1918, o jornal O Imparcial teria publicado aquela que é, supostamente, a primeira manchete esportiva na imprensa do Rio: Futebol impressionante do Corinthians (há quem informe ter sido no Rio a primeira vitória corinthiana contra o time carioca; mas São Paulo é o local que consta no levamento feito pela revista Corinthians, no número especial de setembro de 1937, publicação que tinha como diretor Antônio de Almeida, como redator-secretário Edmundo Faccio e como tesoureiro Dario Borbolla). (Foto Arquivo Corinthians)

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XXXV

O Corinthians arrumava o team treinando com os “reis do futebol”

Embora honrando a camisa do clube, muitos jogadores do Corinthians jamais alcançaram a glória e acabaram esquecidos. Basta examinar esta equipe do 22

quadro corinthiano, que no dia 29 de junho de 1917 venceu por 2 a 1 o 2e quadro do Paulistano: Pizzocarro, Ângelo e Bartô; Colonelo, Hugo e Reverso; Sabbatini, Saul, Pastore, Marinheiro e Basílio.

No mesmo dia, o I s quadro do Paulistano devolvia o resultado de 2 a 1 ao 1Q quadro do Corinthians, que jogou com Russo, Adelino e Casemiro Gonzales; Ciasca, Plínio e César; Américo, Aparício, Amílcar, Neco e Rogério.

Além dos jogos oficiais, pouca gente sabe que às vezes o Paulistano e o Corinthians treinavam seus dois primeiros times, um contra o outro. Os arquivos dos “reis do futebol” revelam que um desses treinos entre Corinthians e Paulistano foi realizado no dia 6 de abril de 1913!

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Acredite, se quiser: Corinthians e Palestra já formaram combinados

XXXVI

P arece incrível, mas o Corinthians Paulista e o Palestra Itália, apesar de tudo o que se diz — e com razão — da rivalidade entre os dois clubes, já uniram forças e

formaram combinados. E não apenas uma vez. mas duas. A rivalidade, que tem servido para animar os campeonatos, se origina da dissidência de um grupo de oriundi que abandonou o alvinegro (ou pelo menos as simpatias pelo alvinegro) para ir fundar o Palestra no Salão Alhambra. A rivalidade aumentou quando o Palestra, com uma vitória

\ de 3 a 0, acabou com uma invencibilidade de três anos do Corinthians. nos primórdios 'de sua história. Bem verdade que, para conseguir esse feito, o Palestra teve de ir buscar um dos melhores jogadores do Corinthians, chamado Bianco, Bianco Spartaco Gambini. Outro que jogou lenha na fogueira foi o M oscardo, um pasquim dirigido por um palestrino que vivia atacando graaütamente o Corinthians. O clube alvinegro pretendia processar o jornaleco, mas a diretoria achou que não se devia gastar cera com defunto mim. Tudo isso foi no tempo do onça.

-Mas nem tudo eram brigas no princípio das coisas.Tanto assim que no dia 12 de outubro de 1917 o Corinthians Paulista e o Palestra

Itália formaram um conjunto, misturando seus jogadores num único time, e foram enfrentar o Clube Athletico Paulistano num festival organizado pela Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo, que tinha sido fundada naquele ano.

Esse jogo é pouquíssimo conhecido e todos os dados sobre ele foram obtidos graças à fidalguia e à excelente organização da diretoria do próprio Paulistano, que abriu seus arquivos.

A Associação dos Cronistas Esportivos não tinha recursos, por isso organizou um festival esportivo no campo da Associação Athletica das Palmeiras, na Floresta, Ponte Grande. Toda a renda reverteu para a entidade dos comentarista esportivos, cujo número estava aumentando, obrigando-os a se organizarem.

Embora amistoso, o jogo atraiu grande público porque tanto o Corinthians quanto o Palestra tinham muitos simpatizantes, bons times, eram populares-, e o Paulistano era bicampeão de 1916 e 1917 — e também seria o campeão em 1918 e 1919 — no certame

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promovido pela Associação Paulista de Esportes Athleticos. O Paulistano reunia em seu esquadrão os chamados “reis do futebol”.

Na preliminar do festival jogaram uma equipe dos cronistas esportivos e o Rachou Team, que foi derrotado por 4 a 0.

O combinado alvinegro-esmeraldino (algo assim como uma equipe formada hoje pelos Gaviões da Fiel e pela Mancha Verde) apresentou-se com Flosi, Grimaldi e Casemiro Gonzales; Ciasca, Bianco e Fabi; Américo, Ministro, Ettore, Aparício e Severino.

O Paulistano jogou com Cunha Bueno, Carlito e Orlando; Sérgio, Gullo e Madureira; Agnello, Mário de Andrade, Friedenreich, Mariano e Ulbrich.

Friedenreich, que era um perigo, chutou duas bolas nas traves do excelente goleiro palestrino Flosi, mas foi o corinthiano Américo, com um chute enviezado e potente, quem fez o primeiro gol da partida. O placar foi completado por outro corinthiano, Aparício. Resultado final: Corinthians-Palestra, 2 e Paulistano, 0.

Nesse histórico jogo foi disputado um troféu de bronze que ninguém sabe dizer aonde foi parar, se na sede do Corinthians ou do Palestra. É possível que tenha ficado com a própria Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo. Enfim, o troféu sumiu! (Mas a Taça “Jules Rimet” também não sumiu?)

O corinthiano Américo que abriu a contagem era o Américo Fiaschi, que na época tinha 21 anos e começara a carreira no União da Lapa antes de entrar para o Corinthians Paulista. Excelente ponta-direita, centrava com muita precisão e tinha chute potente.

O outro goleador da partida, o também corinthiano Aparício, chamava-se José Delgado Aparício, e começara jogando futebol na várzea, no Sport Club São José, que ele fundara. Depois passou a jogar no Botafogo da várzea, inclusive ao lado de Neco e Amílcar. Em 1913, Aparício ingressou no Corinthians onde permaneceu dois anos, saindo para ir jogar no Ypiranga, ficando pouco por lá. Retornou ao time do Corinthians, atuando pela meia-esquerda, de onde mais tarde passou para a meia-direita. O problema de Aparício era o físico franzino, muito vulnerável à violência dos adversários. Lembrava o veterano Luisinho e o Tupãzinho do Corinthians de 90.

O goleiro Cunha Bueno, que atuou pelo Paulistano, chamava-se João da Cunha Bueno. Começara jogando futebol na Inglaterra, onde estudara, e tinha uma caracterís­tica singular: era o único goleiro de Sào Paulo que raramente utilizava as mãos para defender as bolas. Jogava quase somente com os pés. A torcida o considerava um goleiro de sorte, “rabudo”.

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Fora esse jogo contra o Paulistano, há registro de uma outra partida em que oCorinthians e o Palestra formaram um combinado, em 1930, e enfrentaram o Tucumán,da Argentina. O Corinthians-Palestra venceu o Tucumán por 5 a 2, e jogou assim: Tuffy,

1 7 2 Grané e Del Debbio; Pepe, Gogliardo e Serafim , Ministrinho, Heitor , Friedenreich ,Rato e De Maria. Foi, sem dúvida, um grande resultado, mas melhor ainda quando, aseguir, o Corinthians Paulista apenas com seus próprios jogadores venceu o Tucumánpor 7 a 2! Dos dois gois que levou Tuffy. um foi de pênalti. Nesse dia, o arqueirocorinthiano foi um portento!

Notas

1. Pepe, Gogliardo e Serafim eram conhecidos no time do Palestra Itália como Sisi, Gasosa e Guaraná, três refrigerantes.

2. Ministrinho e Heitor formavam ala no Palestra.

3. Friedenreich jogou como elemento do Corinthians nessa partida. Consta que. nessa época, ele já havia bebido uns goles da milagrosa água da biquinha do Parque São Jorge...

Esta é a equipe que venceu o Tucumán. da Argentina, por 7 a 2: Nerino, Grané, Tuffy, Del Debbio e Munhoz, em pé.Filó, Neco. Gambinha. Rato I e Rato II. (Foto Arquivo Corinthians)

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XXXVII

Corinthians vence os palestrinos e ganha a taça dos portugueses

Como gostam de dizer os corinthianos, todas as taças têm sua história mas umas têm mais história do que as outras. A “Cantara Portugália” é uma taça riquíssima,

uma obra de arte, e sua disputa foi um acontecimento não apenas esportivo, mas também político e social. Ela foi oferecida pelo Dr. Ricardo Severo ao vencedor de um jogo sensacional entre o Corinthians Paulista e o Palestra Itália, realizado em 29 de julho de 1922, no Parque Antártica completamente lotado por um público entusiasmado. Ali estava também a fina flor da sociedade. Foi uma tarde em que as mulheres derramaram elegância e perfumes franceses. Finas toilettes, homens engravatados, terno completo, colete e palhetas da melhor qualidade. E dois ilustríssimos visitantes, dois heróis, entre as altas autoridades que ocupavam os camarotes de madeira do estádio: o almirante e geógrafo português Carlos Viegas Gago Coutinho e o capitão-tenente Artur Freire Sacadura Cabral, também português. Gago Coutinho e Sacadura Cabral haviam pratica­do um feito extraordinário: no Lusitânia, um frágil e acanhado hidroavião, fizeram a primeira viagem aérea entre a Europa e a América do Sul: eram pioneiros na travessia do oceano Atlântico, realizando o percurso aéreo Lisboa— Rio de Janeiro em três meses, de março a junho de 1922. O jogo entre Corinthians e Palestra era uma homenagem aos dois heróis. Sacadura Cabral deu o pontapé inicial. Foi um delírio no Parque Antártica. Os dois aviadores disseram depois que jamais haviam recebido homenagem tão caloro­sa. O Corinthians venceu o jogo por 2 a 0, atuando com Mário, Del Debbio e Garcia; Rafael, Amílcar e Gelindo; Peres, Neco, Gambarotta, Tatu e Rodrigues. Marcaram: Gambarotta e Tatu. O feito heróico de Sacadura Cabral e Gago Coutinho foi comemorado também com outras partidas, entre as quais a que colocou frente a frente Corinthians e Sírio. Também a taça desse jogo está na sala dos troféus do Parque São Jorge.

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Esta é a “Cantara Portugália”, toda de prata. O jogo em que foi disputada se realizou em benefício dos órfãos portu­gueses da Primeira Guerra Mundial e para a construção do Monumento à Raça. A taça ocupa uma vitrina especial no Parque São Jorge. (Foto Antônio Car­los Carreiro)

Antes mesmo de Sacadura Cabral e Gago Coutinho completarem seu “rei- de aéreo” heróico, já se ofereciam ta­ças em sua homenagem. Como esta, conquistada num jogo com o Esporte Clube Sírio, no dia 9 de abril de 1922. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XXXVIII

Neco. O jogador-símbolo do Corinthians Paulista

Neco era o apelido de Manuel Nunes. Nasceu em São Paulo, no dia 7 de março de 1895. Sua família era de origem portuguesa, alguns o chamavam de Português,

daí o equívoco de imaginá-lo nascido em Portugal. Neco era paulistano. Durante toda a sua vida de jogador de futebol, Neco atuou em apenas três clubes. O primeiro foi o Botafogo, da várzea do Tamanduateí, de onde, por sinal, saiu quase que a maioria dos quadros do Corinthians então recém-fundado. Durante algum tempo, o que era comum, Neco atuava nos fins de semana defendendo o Botafogo e o Corinthians. Talvez a maior besteira que se publicou a respeito de Manuel Nunes, em livro, é que ele chegou a fazer partidas pelo Palestra. Nunca fez. Antes de Neco, o seu irmão — César Nunes — , apelidado de Paredão, já estava integrado ao Corinthians, em cujo l e quadro atuava desde o primeiro ano de fundação do clube. César era dois anos mais velho que Neco e desde 1903 jogava futebol no time do Liceu Coração de Jesus, dos padres salesianos, que funciona — desde aqueles tempos — no bairro dos Campos Elíseos, às bordas do Bom Retiro. Acredita-se que Neco também tenha começado a jogar futebol no mesmo colégio.

Quem levou Neco para o Corinthians foi o seu irmão César. César começou jogando no ataque na ponta-esquerda, depois foi para a meia-esquerda. Mais tarde, quando as pernas bambearam, César passou a atuar na defesa, lateral-esquerdo, e anos depois, numa assembléia geral do clube, pediu licença para abandonar o futebol. Recebeu uma das primeiras homenagens do clube a um jogador de seus times.

Dos dois irmãos, César era o mais arrebatado. Detestava perder jogo. Entrava nas divididas como um furaçâo, um dragão. Tinha jogo pesado, mas leal. A ida de Neco para o Corinthians, como jogador, não coincide certamente com seus primeiros contatos com o clube, feitos na companhia de César, que desde logo participou de reuniões com os primeiros fundadores da agremiação. Em 1910, Neco não passava de um rapazinho de 15 anos, mas era essa a idade da maior parte dos jogadores de bola da época. Começavam cedo, se firmavam cedo. César foi um corinthiano da primeira hora. Neco logo seguiu o mesmo caminho. Em 1911, já vestia a camisa com as letras entrelaçadas do clube do Bom Retiro.

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Tanto Neco quanto César viveram um tempo em que o jogador de futebol partici­pava diretamente dos destinos do clube a que pertencia, e isso ocorria especialmente no Corinthians Paulista, onde as coisas se misturavam sem nenhum inconveniente. Os jogadores decidiam muita coisa, para nào dizer quase tudo. César participou da comissão que fiscalizava os votos nas eleições, conferia as contas do tesoureiro, dava palpites e sugestões, votava a favor ou contra.

Neco foi igual. Neco nào apenas jogava no Corinthians. Ele era o Corinthians. Dizem que para salvar um punhadinho de taças retidas pelo dono da sede no Bom Retiro, que não tinha recebido o aluguel de meses, foi Neco quem sugeriu à torcida, diminuta, entrar pela janela à noite e retirar o “patrimônio’' do clube. Neco foi um dos que pularam a janela e ajudou a salvar os troféus (os primeiros troféus, antes mesmo da “Viaggiatori Italiani”).

Neco distinguiu-se como jogador logo de cara. e foi convocado para atuar no l e quadro por Casemiro Gonzales. Entrou e nunca mais saiu. Começou na ponta-esquerda. Amílcar Barbuy pediu que ele passasse para a meia-esquerda. Deslanchou de vez. Em 1914, já era campeão invicto pelo Corinthians.

Uma das mais antigas apreciações críticas a respeito da atuação de Neco diz que, tanto na Liga Paulista de Futebol quanto na Associação Paulista de Esportes Athleticos, era um dos atacantes de melhor desempenho e um dos mais aplaudidos pela torcida. Atuou na seleção da Liga contra o Torino, da Itália. E, pela APEA. fez parte de todos os selecionados paulistas que foram disputar no Rio de Janeiro as taças “Rodrigues Alves”, “Fuchs” e “Hebe”. Jogou, em 1918, contra o combinado Dublin-Nacional-Wanderers, e no campeonato sul-americano, conquistado pelo Brasil, o magnífico Friedenreich, com sua grandeza de espírito, reconheceu que o mais belo gol da partida, feito pelo craque sarará do Paulistano, nada mais tinha sido que o complemento de uma jogada sensacio­nal de Neco, que havia limpado o lance, arredondado a bola e passado a pelota aveludada e mansa para Fried mandar ver no fundo da meta.

Neco tinha passes precisos, milimetrados. E chutava forte e com pontaria. Um pouco nervoso? Sim, dizem que era, mas não tanto quanto o irmão César. Dava o sangue em campo, não amolecia o corpo, cobrava da equipe, falava, gritava, rosnava se fosse o caso, exigia fibra — ele era o primeiro a dar o exemplo — . mas jamais confirmou uma lenda, até elogiosa, de que correra atrás de jogador com cinta, para dar um couro no infeliz, que tinha afrouxado. Neco negou isso sempre. E como essa história da cinta tem várias versões — uma hora Neco tirara a cinta para um jogador, outra hora tirara a cinta para um juiz, outra hora tinha sido para dirigentes — , é melhor ficar com a palavra do Neco, numa entrevista que deu. poucos antes de falecer, a Aroldo Chiorino. no Parque São Jorge. Neco jamais deixou de ir ao Parque São Jorge, matar saudades, conversar com os doces fantasmas de seu passado e com os novos jogadores que então formavam as novas equipes do Corinthians. Nunca jamais tirou cinta para bater em alguém. E o César,

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que era bravo? O César — quem sabe? Mas quem ficou com a fama foi o Neco. Pura invenção, meu irmão.

Agora, o que não é invenção é que ele foi aquele jogador do Corinthians que mais se integrou ao clube, que mais assumiu as cores da bandeira, aquele cujo destino estava amarrado à história corinthiana. Grande jogador, corinthiano até o último fio de cabelo. E técnico competente — provou-o no campeonato de 37. Teleco disse que, fora do campo, Neco ensinava uma vez, ensinava duas vezes, parava o treino quando via que um jogador estava falhando. Chamava o moço, explicava como queria o lance, mostrava como eram os mdimentos da coisa chamada futebol. Reiniciava o treino. Se o jogador ensinado não havia assimilado, Neco parava outra vez a jogada e de sapato mesmo, de chapéu na cabeça, entrava no campo e mostrava: “É assim, companheiro”. “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”, diz o ditado malandro. Com Neco era diferente. Ele sabia, e fazia.

Chapéu de feltro na cabeça, óculos de lentes grossas, aquele homem ali perto do alambrado, rosto enrugado, conversando com voz baixa num grupinho de pessoas, é ele. “Seu” Manuel Nunes. A tarde está esfriando, é uma tarde de maio. É quarta-feira, dia 18, 1977. Maio, mês de Nossa Senhora. Maio dos lírios brancos. Sobre o Parque São Jorge o céu está claro, chega um vento do rio Tietê, já com miasmas. Aquele homem de chapéu é o Neco. Anda devagar, o tempo cansa, irmàozinho. O tempo cansa. Ele olha os jogadores correndo pelo campo. Quem levou Neco ao Parque naquela tarde de maio foi Armando Del Debbio, o Del Debbio dos tempos de ouro do futebol, o Del Debbio que foi mostrar aos italianos o futebol brasileiro na década de 30, o Del Debbio do Lazio, de Roma.

Junto ao alambrado, Neco olha o campo. Sorri: “Como é que pode jogador perder gol a duas, três jardas do gol?” Neco não perdia. Mas naquele mês de maio tudo são recordações. Oswaldo Brandão vai levando Neco para o Departamento de Futebol: “Lembra do Parque, Neco? Veja como mudou... A caixa-d’água não é mais caixa - d’água... Lembra da biquinha, Neco?...

O videoteipe da vida: Tuffy, Grané e Del Debbio. Nerino, Guimarães e Munhoz. Aparício, Neco, Gamba, Rato e De Maria...

Neco jogou no Corinthians Paulista de 1913 a 1930... Mas em 1910 ele já estava lá, no campo do Lenheiro! Neco dividia a ponta-esquerda com Campanella. Titular em 1914, depois meia-esquerda, depois meia-direita, onde precisava ele estaria sempre. Defendia, atacava, suava, gritava, conclamava, exigia... Fibra! Raça! É o Corinthians, turma! Campeão paulista em 1914, 1916, 1922, 1923, 1924, 1928, 1929, 1930 — duas vezes tricampeão com o Corinthians, seu time, sua razão de viver, sua vocação. Neco bicam- peão brasileiro por São Paulo: 1922, 1923. Vice-campeão brasileiro: 1924, 1925...

Neco duas vezes artilheiro do campeonato paulista, em 1914 (com 12 gois) e 1920 (com 24 gois). Lembra, Neco? A tarde esfria. Neco arranca os óculos de sobre o nariz, óculos de aros grossos, óculos feitos para não quebrar se caírem no chão por causa das mãos trêmulas (“O tempo passa!.. dizia Fiori Gigliotti... “Fecham-se as cortinas do espetáculo!.. .”), limpa as lentes com um lenço xadrez que ele tirara do bolso fundo do capote.

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“Quem é esse velhinho?”, pergunta um garoto chupando um picolé de groselha na tarde fria, intrigado por ver o velhinho sendo conduzido respeitosamente pelo Oswaldo Brandão.

“Esse velhinho é um pouco de nós todos”, respondeu Aroldo Chiorino, satisfeito por ter encontrado uma frase que combinava com a tarde azul do Parque.

O moleque prosseguiu com seu sorvete cor-de-sangue. De fato, bela a tarde.Neco aproveitou a tarde para contar uma de suas maiores emoções: tinha sido no

Rio de Janeiro, no campeonato sul-americano de 1919, o jogo contra o Uruguai. Neco tinha 24 anos. Brasil e Uruguai haviam terminado o certame empatados no 1Q lugar, jogo sem vencedor, 2 a 2. Veio o jogo-desempate, renhido, a ferro e fogo. Zero a zero. Segunda prorrogação: aquele gol do Friedenreich, o único da partida. O gol do primeiro campeonato sul-americano do Brasil. Quando o povo correu no fim do jogo para erguer Fried nos ombros, ele berrou, os olhos vermelhos: “O gol é daquele garoto lá. O gol é do Neco. A jogada toda foi dele.

Neco nunca esqueceu as palavras de Fried. Neco voltou a ser campeão sul-ameri­cano em 1922. Mas aquela vez. em 1919. aquela ficou para sempre no coração. Devagarinho, caminhando com cuidado, naquela tarde de maio de 1977, Neco viu pela última vez o Parque São Jorge. Em 1926. Neco começava a perder a posição para Peres III. E, em 1930, foi definitivamente substituído por Aparício. Perder a posição é modo de dizer. Nunca perdeu a posição. Foi ser técnico do time. orientar os mais novos. Foi ver os jogos no alambrado. suando frio quando via algum jogador perder gol a duas, três, cinco jardas das traves...

O tempo passa... Neco se lembrava do dia em que Aparício começou a ganhar a posição de Peres e dele mesmo, Neco. Aparício era um garoto do 2e quadro, fogoso, com um fôlego dos diabos. Um adolescente. Levinho. era uma pena. Não pesava quase nada. Tipógrafo. A profissão dele era tipógrafo. O Peres é que era o bom na ponta-direita, não o Aparício. Todo mundo dizia isso. Amílcar era o diretor esportivo, ele que marcava os treinos. ‘‘Pessoal, na quinta tem treino. Ninguém falta! O jogo domingo é contra o Paulistano!”

O Peres se aproximou de Amílcar: “Quinta não dá. Amílcar. Vir de Jundiaí, não dá mesmo”. Peres inventou um babado qualquer. Amílcar insistiu. Peres disse que não vinha treinar mesmo. Amílcar enrugou: “Se não treina, não joga”. No dia do treino, na quinta, do Peres nem sombra. Treinou no lugar dele o Aparício. com seus 50 quilinhos. E como treinou! Mas o bom na ponta-direita era o Peres. claro. Ora. o Aparício, essa é boa!

Sábado saía a escalação do time. Os nomes eram colocados num quadro-negro pendurado numa sede da rua Florêncio de Abreu, um sobradào onde funcionava o salão ítala Fausto. Tinha uma escada de madeira, dava num patamar, ali ficava o quadro-negro. Na véspera do jogo Amílcar escrevia os nomes da turma a escalada depois das seis horas da tarde. Amílcar trabalhava na ma Barão de Duprat. perto de onde hoje fica o Mercadão

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da Cantareira; depois do trabalho ele escrevia a escalação do time no quadro negro. Na ponta-direita, quem? Aparício! Neco trabalhava numa casa de ferragens da rua Florêncio de Abreu, uma casa comercial que tinha como sócio-proprietádo Alfredo Schurig. Neco olhou o quadro-negro: “Que que há, meu irmão! Aparício fazendo ala com Neco, na direita? Deixando Peres fora do time? Esse Amílcar está louco varrido'. Neco foi falar com Amílcar, Amílcar olhou Neco meio de lado, um sorrisinho nos lábios. “Não treinou? Então vá tomar naquele lugar..

“Orra, Amílcar, mas você me escala com o Aparício? Esse garoto vai mijar no calção contra o Paulistano.”

Amílcar coçou a orelha: “Neco, escuta esta: ou você joga com o Aparício, ou nem precisa aparecer no domingo!”

Quem dava as camisas pro time era o diretor esportivo. Era o Amílcar mesmo. Uma por uma, que nem carta de baralho. No domingo, Amílcar está com as camisas no braço parecendo mascate da rua Carneiro Leão. Ia jogando uma por uma... “Pega aí, rapaz.. Jogou as duas da ala-direita de uma vez só. Uma camisa pro Neco, outra camisa pro Aparício. Peres ficou com cara de bunda. No jogo, Aparício só faltou comer a bola com mostarda inglesa. Nesse dia, nesse domingo, Peres começava a perder o lugar no time. Aliás, perdeu. Aparício nunca mais largou a posição enquanto suas pernas deram no couro. E depois Aparício acabou tomando o lugar de Neco. “C’est la vie”— como falavam as polacas fazendo michê.

Naquela tarde fria de maio de 1977, Neco viu o Parque São Jorge pela última vez. Morreu aos 82 anos, dia 31 de maio de 1977. Está sepultado na quadra 5, da rua 1, no Cemitério do Chora Menino, Zona Norte de São Paulo.

Manuel Nunes, filho de Antônio Bertoldo Nunes e de Teresa de Sousa Nunes, tem um busto no Parque São Jorge — homenagem do Sport Club Corinthians Paulista a seu jogador-símbolo. Nunes, além do Botafogo varzeano, jogou no campeonato de 1915 emprestado ao Mackenzie, com autorização do Corinthians, que não queria vê-lo parado, uma vez que o clube alvinegro não participóu de nenhum campeonato esse ano. Apesar de todas as propostas que recebeu, Neco fez questão de voltar ao Corin­thians para defender sua camisa do coração. Aliás, em 1919, quando Neco brilhou no campeonato sul-americano, no Rio, houve uma terrível carga do Fluminense para levá-ló para a capital do País. O Corinthians ficou em polvorosa. Neco preferiu permanecer no Corinthians. Para sempre. Seu busto em bronze foi inaugurado no Parque São Jorge em 1929, numa comemoração em que se promoveu um jogo amistoso entre o Corinthians Paulista e o Atlético Mineiro. Neco viu nesse dia uma das maiores goleadas do Corin­thians em toda a sua história.

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Na inauguração do busto de Neco, o Corinthians venceu o Atlético Mineiro, em jogo amistoso, pela contagem de 11 a 2. Dias antes, o alvinegro paulista havia sido derrotado pelo grande clube das Altero­sas por 2 a 1, em Belo Horizonte. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Esta taça foi conquistada pelo Corinthians em 1920. Era uma homenagem ao craque que atravessava uma fase esplendorosa. No ano anterior, no cam­peonato sul-americano, a vitória contra o Uruguai surgiu depois de Neco haver driblado Vanzino, Zibechi. Foglino e mais dois ou três uruguaios, avançar até a linha de fundo e centrar sob medida para o cabeceio de Heitor. Saporiti mal conseguiu rebater. Friedenreich mandou para as redes. Era a conquista do título pelo Brasil. (Foto Antônio Car­los Carreiro)

Corinthians, de Neco, no campo da Associação Athletica das Palmeiras, na Floresta. (Foto Arquivo Corinthians)

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Corinthians, 1920. (Foto Arquivo Corinthians)

Corinthians tricampeâo, em 1930. (Foto Arquivo Corinthians)

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XXXIXBravos heróis da Ponte Grande

e da Fazendinha

O primeiro “grou n d social” do Corinthians — um estádio de verdade, com instalações de lazer e prática de esportes para os associados — dependia não

apenas de esforço do clube. O poder público tinha de dar uma mãozinha. O próprio Paulistano, rico e poderoso, a "fina flor” dos esportistas, dependeu disso quando, liquidado o Velódromo para abrir espaço à expansão da cidade, foi se instalar numa área urbana que era mato hirsuto e hoje faz parte integrante dos Jardins.

O Corinthians tinha apenas o campo do Lenheiro, era ali que ele começava a lapidar seus campeões, e não fora a visão, a sensibilidade, a percepção e o fe e lin g c orinthiano desse grande brasileiro chamado Alcântara Machado, o pai do outro famoso Alcântara Machado, talvez o Corinthians não tivesse dado o grande salto para o futuro — como deu. Foi oferecida ao Corinthians, em 1916. a possibilidade de arrendar uma área na Floresta, na Ponte Grande, e isso graças às gestões do Dr. Alcântara — o associado corinthiano que havia obtido apenas um voto na eleição para presidente do clube. Foi Alcântara Machado quem quebrou as dificuldades e orientou a tramitação burocrática do processo junto aos órgãos municipais de São Paulo, facilitando e tornando viável aquilo que parecia um sonho além da imaginação.

No começo do século, quando as coisas talvez fossem mais simples, os nomes das localidades, dos bairros, tinham um sentido nítido. A Bela Vista tinha uma vista bela; a Cachoeirinha tinha cachoeiras: o Pari era um lugar onde as pessoas iam pescar utilizando uma armadilha de taquara chamada "pari". De modo que a Floresta era um recanto que lembrava mesmo uma floresta, por causa da vegetação exuberante. Ficava numa área da cidade que tinha uma ponte grande sobre o Tietê. Já no fim do século passado aquela região se transformara em local de recreio para os paulistanos. O rio Tietê era um doce de rio. Fluía limpo, não tinha detritos de fábricas nem de esgotos. Dava peixe em abundância. Como não havia ainda televisão para prender as pessoas em casa nos domingos, o povo procurava aquele lugar ameno para piqueniques, passeios de barco. Havia também bons restaurantes, entre eles um tal de Bella Venezia. A italianada gostava de freqüentar o lugar, onde praticava remo e canoagem. Foi assim que nasceram os

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principais clubes de regatas de São Paulo. Naquele ano de 1916, o Corinthians nem pensava em canoa e remos, o distintivo do clube era apenas letras e um círculo. Para se ter uma idéia, somente onze anos depois, em março de 1927, o Corinthians pôde lançar às águas (do Tietê, sempre!) seu primeiro barco, oferecido pelo associado Antônio Fernandes — mas então o clube já nem estava mais na Ponte Grande...

No dia 27 de julho de 1916, os associados se reuniram no Palácio da Previdência numa assembléia geral, que tomou conhecimento do documento que tirava o Corin­thians do Bom Retiro definitivamente.

Eis o que dizia o documento:

“Prefeitura do Município de São Paulo — Directoria do Patrimônio, Estatís­tica e Archivo Municipal. Julho, 27 de 1916 — Contracto de arrendamento com o Sport Club Corinthians Paulista de um terreno do patrimônio muni­cipal, situado à rua Itaporanga. Aos dezoito dias do mez de Julho de mil novecentos e dezesseis, nesta Directoria do Patrimônio, Estatística e Archivo do Município de São Paulo, presentes o respectivo Director, Júlio Gouveia, e o Director Geral da Prefeitura, Arnaldo Cintra, que este termo subscrevem e vendo também, digo e onde também se achavam o Prefeito Municipal, Dr. W. Luiz Pereira de Souza representando a Municipalidade de São Paulo e o Snr. João Baptista Maurício, presidente do Sport Club Corinthians Paulista, Sociedade Sportiva com Sede nesta Capital, representando a mesma Socie­dade na forma do Art. 2S. parágrafo 1Q dos seus Estatutos publicados no Diario Official do Estado, números quarenta e um e quarenta e quatro de vinte dois e vinte seis de Fevereiro de mil novecentos e dezesseis e devida­mente transcriptos no Registro Geral e de Hypotheca da primeira circuns- cripção da Comarca da Capital, foi entre ambos, perante as duas testemunhas abaixo mencionadas e assignadas, que a todos conheciam, contractado o seguinte:l s A Municipalidade de São Paulo arrenda para fins sportivos ao Sport Club Corinthians Paulista, pelo prazo de 5 annos a contar da data da assignatura desse contracto, o terreno de propriedade do Município, situado na rua Itaporanga, na Ponte Grande, com a superfície de treze mil quinhentos e seis metros quadrados, conforme mostra a planta que, datada e assignada por ambas as partes, fica fazendo parte integrante deste contracto.2- O preço do arrendamento é de cento e dez mil réis mensais e será pago até o dia dez de cada mez depois de vencido, a começar cinco mezes depois da data deste contracto, sendo as taxas de água e luz contractadas e pagas diretamente pelo Club. No caso de falta de pagamento por tres mezes consecutivos, fica rescindido este contracto, exigindo a Prefeitura desde logo

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a desocupação do terreno pela forma prescripta na cláusula anterior, digo quinta e sem prejuízo da cobrança da dívida.3S O Sport Club Corinthians Paulista obriga-se a fazer à sua custa a cerca da frente, na rua Itaporanga pelo alinhamento que lhe será dado pela Directoria de Obras e Viação; a remoção das cercas actuaes para os lugares indicados pelo engenheiro do Patrimônio, conforme a planta a que se refere a cláusula primeira; os aterros que forem precisos e a demolição dos cômodos existen­tes no terreno, podendo empregar o material nas construções que o mesmo Club nelle fizer.4S Obriga-se mais o Sport Club Corinthians Paulista a conservar as árvores existentes no terreno (três coqueiros) e as que de futuro forem plantadas por elle, ou pela Prefeitura, sob pena de multa de quinhentos mil réis (500$000) pela destruição de cada árvore. No caso de não ser paga a multa dentro do prazo de 3 dias, depois de imposta, fica rescindido este contracto, e o Club desoccupará o terreno dentro do prazo de que tracta a cláusula seguinte.52 Se findo o prazo deste contracto ou antes, a Municipalidade precisar do terreno para a formação do parque ahi autorizado, o S. C. Corinthians Paulista obriga-se a desoccupal-o dentro do prazo de dois mezes da data em que para isso for avisado, retirando as archibancadas e outras instalações que tiver feito, sem direito a indenização alguma.6e Se ao dar destino definitivo ao terreno a Municipalidade o reservar para jogos sportivos o Sport Club Corinthians continuará a occupal-o até a terminação do prazo deste contracto desde que ahi faça as adaptações de accordo com o projecto que for approvado tendo preferência findo o prazo, em igualdade de condições, para prorrogação.7e O Sport Club Corinthians não poderá sublocar o terreno nem tampouco transferir o presente contracto, sem consentimento da Prefeitura, sob pena de rescisão. E para constar, lavrou-se o presente contracto que lido as partes e testemunhas Cândido Marques Ferreira e Júlio Micheli vai por todos assignado depois de pago o sello federal de quatorze mil réis, conforme se vê das estampilhas abaixo inutilizadas e os emolumentos municipais de quatorze mil réis, conforme o recibo do Thesouro número sessenta e um de dezessete do corrente (Sobre estampilha federal no valor de quatorze mil réis devidamente inutilizada). São Paulo, 18 de julho de 1916. a) João Baptista Maurício, Cândido Marques Ferreira. Júlio Micheli. Eu, Alfredo Luzzi Galliano, auxiliar de escripta desta Directoria do Patrimônio Estatístico e Archivo do Município de São Paulo, bem e fielmente para aqui transladei, aos vinte e sete dias do mez de julho de mil novecentos e dezesseis, a) Alfredo Luzzi Galliano”.

Como curiosidade preliminar, vale observar que o au x iliar d e escripta Alfredo Luzzi Galliano, que redigiu o histórico contrato, aliás com letra muito bonita, era corinthiano.

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Vale também examinar a íntegra de tudo quanto se passou na assembléia do clube, depois que foi feita a leitura do contrato:

“Ricardo de Oliveira diz duas palavras sobre tão importante aquisição: diz que acompanhou com sincero interesse todos os passos do presidente João Baptista Maurício e do esforçado consócio Alfredo Galliano, para conseguir que o clube de uma vez para sempre possuísse um campo digno do seu nome. A idéia demonstrou-se logo no princípio difícil de ser realizada; não bastava lutar somente com inimigos estranhos ao futebol; a Associação Athletica das Palmeiras e a Associação Paulista de Esportes Athleticos” (note-se que o Corinthians disputava o campeonato da entidade adversária, a Liga Paulista de Futebol),” possuindo ambas elementos políticos formidá­veis, não podiam absolutamente consentir que um clube estranho viesse plantar as suas tendas a dois passos de suas casas. Apesar disso, o requeri­mento foi feito e o Corinthians solicitava o arrendamento de um terreno na rua Itaporanga vizinho ao campo da A. A. das Palmeiras, comprometendo- se, conforme o contrato, a fazer de um charco um campo de esportes. A questão foi protegida no princípio pelo nosso venerado Presidente Hono­rário e depois de uma luta árdua a nossa petição conseguia ser tomada em consideração pelos altos poderes municipais. O exmo. snr. Coronel Oscar Porto, presidente da Liga Paulista de Futebol e sincero admirador do nosso clube, procurado, prestou com a mais viva satisfação os seus serviços e os nossos dois consócios, animando-se cada vez mais, sacrificando interesses particulares, tempo e dinheiro, conseguiram depois de um ano de luta vencer a questão e enriquecer o patrimônio social com um terreno grandioso e magnificamente situado. Sinceramente admirado, Ricardo de Oliveira presta suas homenagens aos snrs. Maurício, Galliano, e os mais sinceros agradecimentos aos exmos. snrs. Alcântara Machado e Oscar Porto e os mais efusivos parabéns ao clube.Os sócios presentes saúdam os homenageados com uma salva de palmas. Fala em seguida o presidente João Baptista Maurício. Diz que se terrível foi a luta para se conseguir o contrato, não menos forte será a luta para fazer o campo. Mostra a planta do campo e o projeto de construção; lê alguns orçamentos de engenheiros e empreiteiros (um de 80 contos, outros de 40, 30 e 22 contos). Não possuindo o Corinthians dinheiro para levar a efeito tal construção, o presidente Maurício diz que há tempos procurou os gerentes das fábricas de cerveja Germânia e Antarctica, com os quais conversou a respeito. Uma ou outra fábrica emprestaria ao clube a quantia de 20 contos, pagáveis em prestações nunca inferiores a um conto de réis mensais, e como prêmio o clube deteria o privilégio de instalar gratuitamente botequins nos

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recintos sociais e vender, durante 5 anos, os artigos de sua fabricação.O antigo gerente da Antarctica havia aceito a proposta, porém infelizmente faleceu há poucos dias. De maneira que será muito difícil conseguir o negócio com o novo diretor. A Germânia, com uma carta que é lida, escusa-se, devido à guerra, não poder realizar por enquanto o negócio. Diz que procurou todos os meios possíveis para dar cumprimento à idéia, porém até agora inutilmente; pede aos demais associados externarem toda e qualquer idéia para se conseguirem os meios para a construção. Fala o snr. Fonseca e, mostrando-se admirado, diz que sempre teve a certeza de que o snr. Maurício dispunha dos meios necessários, visto ser lógico que o clube nunca possuiu quantias tão fabulosas. Se o snr. Maurício não construir o campo, o clube fará um papel ridículo, visto estar espalhado aos quatro ventos que a Liga Paulista para o ano venturo jogará no nosso campo. Maurício replica dizendo que não tem culpa se os planos traçados não surtiram efeito, sozinho não podendo dispor de tal quantia, estando porém pronto a fazer tudo quanto estiver a seu alcance.Fonseca não se conforma com isso e censura acerbamente terem assinado em nome do clube um contrato que não se pode como também nunca se poderá cumprir: mesmo que se arranje dinheiro com prazo de 5 anos. o clube não poderá pagar mensalmente um conto de réis e se o campo for feito com dinheiro emprestado será mais cedo ou mais tarde a morte do clube. Fonseca propõe que o Corinthians desista do contrato, cedendo-o à Liga ou a um outro clube qualquer. O snr. Fonseca encontra alguns partidários, porém a maioria não se conforma com a sua proposta. Cavalcante, usando da palavra, diz que não se admira ver o snr. Fonseca falar assim, visto ser demais conhecido o pessimismo do nobre vice-presidente: em tudo encontra difi­culdades impossíveis de se vencerem. Mesmo que esse campo seja mais cedo ou mais tarde a morte do Corinthians. não é preferível que essa morte seja daqui a 5 anos, depois de se ter construído o campo, e depois de se terem procurado todos os meios para pagar a dívida?O associado Cavalcante manifesta-se contrário à teoria do snr. Fonseca, de ceder o campo a outrem: esse campo será a glória e a futura força e prosperidade do Corinthians.A discussão torna-se daí por diante violentíssima. Todos falam ao mesmo tempo e inutilmente o snr. Presidente chama a Assembléia à ordem. Amea­çando levantar a Assembléia, consegue por fim acalmar os ânimos. Diz que assim é impossível chegar-se a um acordo. Julga que a melhor maneira de resolver tão intrincado problema é nomear uma comissão que, com plenos poderes, deverá examinar bem a questão, resolver e pôr em prática se o campo deverá ser construído ou não, se deve ser cedido à Liga, etc.

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O snr. Cavalcante formula essa idéia em forma de proposta, a qual é aprovada por totalidade dos votos, assim como a Assembléia autoriza o snr. Maurício a escolher 2 associados para com ele formar a comissão. O snr. Maurício convida os snrs. Fonseca e Pereira, os quais se recusam terminan­temente; convida então os snrs. Galliano e Cavalcante, que aceitam. O snr. Maurício propõe ainda que todos os sócios atrasados se poderão pôr em dia descontando a dívida em serviços no campo. Sendo a proposta aprovada, o snr. Maurício declara encerrada a discussão sobre esse assunto”.

O teor do documento retrata nitidamente as duas vertentes de opinião que se entrechocavam. Para alguns, o temor de não se conseguir atingir determinadas metas— talvez consideradas “utópicas” tendo em vista as origens modestas do clube — tolhia as iniciativas mais ousadas.

Para outros, possivelmente não tão ligados às lides operárias, o Corinthians estava destinado a ser um “clube grande”. Era bastante natural que ocorressem divergências sérias e choques pesados entre as duas mentalidades. No fundo, os “pessimistas” — como era acusado o próprio vice-presidente Fonseca, um homem que viera do proleta­riado e aos poucos galgava o patamar de pequeno empresário — temiam o futuro não por eles, mas pelo próprio clube. Amavam o Corinthians. O Corinthians era também a família deles. Assombravam-se com a possibilidade de o clube ser “ridicularizado” pelos adversários se falhasse num projeto que lhes parecia grandioso demais, ousado em excesso, afinal a agremiação era bastante nova e outros clubes, possivelmente com mais lastro econômico e densidade política — Minas Gerais, Ypiranga, São Bento, para citar apenas alguns deles... — , não se aventuravam tanto como o “clube dos operários”.

O rompimento com a mentalidade mais ligada à várzea começara de forma sensível com o presidente Ricardo de Oliveira, que deu uma guinada no rumo do clube e não chegou a ser bem entendido. Levou golpes baixos, e era “fino demais” para usar os mesmos recursos em sua defesa. Deixou a presidência, mas continuou a inspirar e a apoiar a mentalidade aberta do presidente que o sucedeu, João Batista Maurício. Para Maurício e seu grupo, a história das atas redigidas sob a luz de lampiões, e da vaquinha para comprar uma bola de capotão, cabia bem num começo de narrativa romântica, mas o papo agora tinha de ser outro. A briga era de foice mesmo. O Corinthians, apesar de criança em termos de idade, já havia levado rasteiras e sido vítimas de trampos e maquinações como gente grande. Ou o clube se cuidava, estufava o peito e erguia a cabeça, ou iria morrer com as chuteiras cheias de formiga.

João Batista Maurício era perspicaz, tentou atrair Fonseca.

Se Manoel Fonseca era contra o estádio da Floresta, nada como colocá-lo na comissão que iria decidir “a devolução do terreno”. Que assumisse essa decisão “pessi­mista”. Fonseca recusou. Também Antônio Pereira, o “pintor de paredes”, o operário “fundador”, era contra assumir encargos financeiros tão pesados. Maurício convidou

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Pereira para manter essa posição... dentro da comissão que estudaria o assunto. Pereira saiu fora. Era contra, pronto!

Os fatos posteriores iriam mostrar que a maioria dos associados se posicionava a favor do contrato de arrendamento, por mais pesado que ele pudesse parecer e apesar de todos os riscos. Isso decidido — quem vai estar na linha de frente para ajudar o clube a construir a grande obra? Manoel Fonseca e Antônio Pereira! Tudo o que Pereira ganhava no sábado, fazendo bicos, entregava ao clube! Dizem que os corinthianos continuam assim até hoje. Brigam, discutem, às vezes até disparam algumas palavras mais cabeludas, mas na hora do vamos-ver todos agarram os remos e navegam... na mesma direção do bem do Corinthians.

Sabe-se perfeitamente que a maior parte das edificações do Corinthians na Floresta foi fruto do trabalho braçal e da mão-de-obra oferecida gratuitamente por uma multidão de associados. Depois do trabalho nas fábricas, oficinas e lojas, os associados — e mesmo simpatizantes — acorriam ao terreno charcoso da rua Itaporanga para ajudar a levantar paredes, aplainar o solo, aterrar desníveis, cobrir áreas.

Antônio de Almeida diz, com orgulho, que “clube construído pelo povo” não é uma frase de efeito para definir o Corinthians e diferenciá-lo de todos os outros clubes do mundo. O Corinthians foi erguido pela força dos braços do povo mesmo. E testemunhas desse feito de bravura singela foram os três coqueiros, que permaneceram de pé no terreno de 13 mil metros quadrados, tangidos pela brisa que soprava do lado do lendário rio que cruzava aquele pedaço bucólico da cidade...

Uma boa parte dos corinthianos que foram dar sua mão-de-obra — ferreiros, pedreiros, eletricistas, marceneiros, pintores — unia o útil ao agradável: saldavam com o trabalho as mensalidades em atraso. Foi outra idéia genial do dentista João Batista Maurício.

A assembléia do dia 27 de julho de 1916 está chegando ao fim. É uma hora da madrugada. Restam dois assuntos a tratar: o associado Camevale propõe que, para evitar a espera dos corinthianos na porta do Parque Antártica em dias de jogo, os associados do clube possam retirar seu ingresso na sede do Corinthians. Todos aprovam.

O presidente Maurício comunica que o jogador corinthiano Amílcar Barbuy, tendo partido para a Argentina com o selecionado que ia disputar o campeonato sul-americano de futebol, recebeu como ajuda de custo a quantia de 80 mil réis. Maurício pergunta se o clube se responsabiliza por essa quantia, como. em ocasião anterior, fora feito em relação ao jogador Casimiro do Amaral. A assembléia aprova que o clube cubra a quantia, “medida acertadíssima, para que o atleta corinthiano represente o clube da melhor forma possível”. Imediatamente o associado J. Martins organiza um rateio entre os presentes para devolver ao clube a importância dada ao scrcitchman Amílcar (que na época era

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também captain do l s quadro do Corinthians). Em poucos minutos, os 80 mil réis estavam recolhidos no fundo de um chapéu que Martins correra de sócio em sócio.

Esquecidos os arranca-rabos da assembléia, todos fizeram questão de dar sua colaboração.

O Corinthians abria agora duas frentes de batalha: o futebol, onde conquistara nome e respeito, graças a seus atletas que jogavam “por amor à camisa”, pois de outra forma não teriam voltado (e nem precisariam) às fileiras do time depois de terem sido emprestados a outros clubes também de renome; e a construção de sua primeira praça de esportes. Mesmo mergulhando em pesadas dívidas e compromissos financeiros, o Corinthians encontrava forças para conquistar o campeonato de 1916, invicto. Mas estava desfalcado de alguns elementos no ano seguinte, 1917: escalava-se o time de acordo com os jogadores à mão — Russo, Casimiro e César ou Fúlvio; Aloya, Plínio ou Amílcar e Ciasca; Américo, Aparício ou Amílcar, Neco, Rogério ou Marinheiro. No primeiro jogo do campeonato de 1917, contra o Ypiranga, a duras penas o Corinthians conseguiu uma vitória por 1 a 0. Percebia-se que não ia ser fácil preencher as lacunas da saída de Police, Peres, Bianco. Manteve porém a invencibilidade (de três anos), ao pegar pela frente o Mackenzie, em cujo arco atuava então Casimiro do Amaral, ex-goleiro corinthiano, que segurou todas, parecia um paredão de concreto. O jogo terminou 0 a 0. O próximo jogo seria contra o Palestra, estruturado por Bianco, também este ex-corinthiano. O jogo foi no Parque Antártica, com recorde de renda para a época. A derrota de 3 a 0 frente ao rival alviverde serviu como um alerta, um brado de união da gente corinthiana. O futebol paulista já não estava dividido em duas associações: prevaleceu a APEA — Associação Paulista de Esportes Athleticos — e era desse campeonato que agora o Corinthians participava: adversários mais fortes, mais organizados, clubes poderosos. Sem dúvida, o Corinthians nâo se apercebera no devido tempo de que precisava reforçar-se. Estava distraído com as obras de seu estádio na Ponte Grande. O estádio era sua segunda frente de batalha. As obras iam prosseguir, custasse o que custasse. Trabalho noturno. Esforço diuturno. Os corinthianos se davam as màos preparando o terreno para as futuras conquistas. O clube havia sentido o sabor amargo da derrota num momento crítico, mas o charco da Floresta assumia aos poucos o perfil da futura sede de esportes, a casa aberta para todos os corinthianos. O Corinthians pagava o preço de sua ousadia. Não lhe sobrou outra coisa que um 4e lugar em 1917. Mas começou a reagir, usando de um simples estratagema tático: moveu Neco, o garoto Neco, da ponta-esquerda para a meia; e recuou o magnífico Amílcar Barbuy do comando do ataque para o comando da linha-média, onde ele se consagraria como um dos maiores “pivôs” do futebol brasileiro em todos os tempos. Em 1918, com uma derrota por 1 a 0 diante do Paulistano, o Corinthians ficou a um palmo do título. Mas o vice-campeonato já mostrava cores alegres em seu horizonte. O 32 lugar em 1919 correspondeu ao ajuste final das linhas, que se ia aprimorar nos campeonatos de 1920 e 1921, em ambos obtendo o título de vice-campeão.

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Na Floresta, por fim o estádio do Corinthians era uma realidade. Foi lá, na velha Ponte Grande cantada em versos pelo poeta Mário de Andrade, ao bailado dos três coqueiros imexíveis e municipais, que o Corinthians foi buscar — na raça e na categoria— o primeiro grande título que até hoje deixa seus adversários a se arrancar os cabelos de despeito: Campeão do Centenário! 1922: ano do Centenário da Independência do Brasil. Título secular. Que ninguém rasga nem macula. Quando o Corinthians, no jogo da decisão, encaçapou os dois gois definitivos no arco da brava gente do Paulistano, dizem que até os mandis do Tietê saltaram de emoção. Manoel Fonseca e Antônio Pereira, os que a princípio não haviam acreditado no sonho do campo da Floresta, choravam como duas fontes d’água.

O Corinthians honrou todos os compromissos com a Prefeitura de São Paulo, cumpriu rigorosamente as cláusulas do contrato de arrendamento e fez muito mais: transformou o terreno alagadiço, encharcado, numa praça de esportes muito acima das pretensões urbanísticas das autoridades municipais. Sem dinheiro, com recursos mais que limitados, as obras foram feitas com a força do braço dos associados. Uns davam a mão-de-obra para saldar dívidas das mensalidades. Contudo, mesmos os associados com os recibos em dia faziam questão de ajudar a erguer o primeiro “estádio” corinthiano. E não era pequeno o número de meros simpatizantes, sem carteirinha de sócio, que aderiam àquele imenso mutirão que entrava pela noite, à luz de lanternas ou das precárias luminárias que começavam a piscar em poucas ruas da cidade. A Floresta não ficava perto. O acesso não era fácil. Havia espanto nos olhos dos sócios e dirigentes da agremiação que se instalara antes naquela área, a Associação Athletica das Palmeiras, um clube que se entendia mais refinado, havia gente com grana enfiada nele, jogando nele.

O Corinthians levava para lá o cheiro do povo. do povinho, da arraia-miúda, mas não só. A classe média que ia conquistando seu espaço, acertando o pé na vida, chegava junto e começava a levar o Corinthians nos ombros. Artesãos que haviam comprado seu bom terreno, construído sobrados com sacadas, janelões, portas altas. Comerciantes que haviam começado com uma “portinha” modesta mas agora estavam “fazendo a Améri­ca”. Essa gente áspera, que mandava os filhos estudarem nas excelentes escolas públicas ou nas conceituadas escolas particulares, muitas delas internatos, essa gente simpatizava com o Corinthians.

Estudantes de odontologia que cursavam a escola erguida na chácara que fora outrora do barão de Três Rios, no bairro do Bom Retiro, engraçavam-se com o clube que tinha, entre seus mais atuantes diretores, exatamente um dentista — o dinâmico João Batista Maurício. Os estudantes aproximavam-se. Ir ver os corinthianos jogarem na Floresta. Os futuros engenheiros, que a Escola Politécnica mandava fazer estágio nas oficinas da São Paulo Railway, na Lapa. punham-se a par das coisas corinthianas que estavam acontecendo, ouvindo o papo, as conversas, os comentários de muitos traba­lhadores da ferrovia que eram associados ou simpatizantes do Corinthians.

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A Associação Athletica da Floresta passou a ter um vizinho do seu tamanho, mas um vizinho que crescia a olhos vistos. O Corinthians passou a ser uma atração popular. Não era apenas um clube. Era uma devoção. Uma devoção que “contaminava” as pessoas. Guido Giacominelli e Aristides Macedo Filho, que tinham dirigido o clube e acompanhado os três vice-campeonatos, em 1918, 1920 e 1921, percebiam claramente que a Floresta estava ficando acanhada demais para tamanha ânsia de crescer. Mais cedo ou mais tarde, o Corinthians iria ter de instalar-se num local dele mesmo, sem depender de contrato municipal. Mesmo assim, o prazo do arrendamento foi prorrogado por mais cinco anos.

O que jogou o Corinthians nas nuvens mesmo foi o título de Campeão do Cente­nário, em 1922. E, para completar a euforia, papou também os títulos de campeão de 1923 e 1924. Esse foi o primeiro tricampeonato! Em 1925, deu um susto nos adversários: pegou o vice-campeonato... Mas já estava decidido que agora a moçada alvinegra tinha de partir em busca de novos horizontes. Tinha amadurecido como agremiação, tinha adquirido personalidade adulta.

O fruto do suor dos corinthianos estava visível. O clube tinha um patrimônio palpável. O Corinthians ia devolver à Prefeitura os 13-506 metros quadrados de terrenos, os três coqueiros intocados, mais algumas árvores que havia plantado em dez anos, o solo drenado e aplainado — mas havia também as benfeitorias construídas pelo próprio clube. O contrato de arrendamento permitia negociá-las com outro interessado. Quem primeiro apareceu assuntando foi o Internacional, mas demorou muito para decidir. O negócio foi feito com a Associação Athletica São Bento, clube formado por estudantes e ex-estudantes do Colégio São Bento, da capital. O contrato de arrendamento determi­nava que a transferência do uso da área, e conseqüente venda das benfeitorias, somente poderia ser feita para outra associação esportiva e recreativa. A Associação Athletica São Bento pagou ao Corinthians pelas benfeitorias — campo, vestiário, barzinhos e demais pequenas instalações — 40 contos de réis, em duas prestações de 20 contos: uma vencida em abril e a outra em novembro de 1927.

Se para construir o campo da Floresta, na Ponte Grande, foi necessária a abnegação dos associados, é fácil imaginar o esforço e a ousadia dos corinthianos quando o presidente do clube, Ernesto Cassano, dirigiu-se ao 6Q Tabelião de Notas de São Paulo, localizado no hoje chamado centro velho, para assinar a escritura de aquisição da primeira gleba do Parque São Jorge. Na tarde de 18 de agosto de 1926, o escrevente do cartório abriu o enorme e pesado livro n2 328, de capa preta, onde, a folhas 59, com sua letra miúda e clara, havia lavrado os termos do compromisso de venda e compra de uma área de 45 mil metros quadrados — mais de três vezes o tamanho do terreno arrendado da Prefeitura na Floresta! Em frente à mesa do escrevente do 6Q Tabelionato, ao lado de Ernesto Cassano, os donos da área, que naquele dia começava a pertencer ao Corin­thians, faziam um negócio como outro qualquer. A região era bucólica, distante do centro da cidade, agradável — mas era difícil supor que progredisse a não ser num futuro

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remoto. Aqueles lados do rio Tietê eram apenas um lugar tranqüilo para se caçar “tatu a pé”, e diz-se que, na cabeça do povo, foi assim que se deu o nome de Tatuapé à região.

Assad Abdalla & Nagib Sallem era os vendedores da área. Os 45 mil metros quadrados foram negociados por Rs 750:000S000 — setecentos e cinqüenta contos de réis — , um dinheirão, principalmente considerando a escassa capacidade dos cofres do Corinthians. Ernesto Cassano colocou sobre a mesa do escrevente o maço de cédulas apertadas por dois elásticos, que ele havia trazido numa pequena pasta de couro com alça, sem nenhuma preocupação ou receio de ser assaltado nas ruas. Molhando o polegar na língua, Assad e Nagib conferiram o dinheiro, cada um seu pacotinho.

A quantia estava certinha, conforme se combinara antes: o Corinthians dava, como primeiro pagamento, 40 contos de réis no ato da escritura. Até aí tudo bem, 40 contos era exatamente o que ele ia conseguir com a venda das benfeitorias da Floresta ao São Bento no ano seguinte.

O resto do pagamento, estipulado na escriaira. ia ser feito em 12 anos, desta forma: 50 contos em 1927, 50 contos em 1928, 60 contos em 1929. 60 contos em 1930,70 contos em 1931, 70 contos em 1932, 70 contos em 1933,70 contos em 1934, 70 contos em 1935, 70 contos em 1936, e a última prestação de 70 contos em 1937.

Essas prestações anuais eram feitas em duas parcelas: a primeira vencia-se até o dia 30 de junho; a segunda, até 31 de dezembro de cada ano.

Era um compromisso seriíssimo. que certamente os fundadores do clube não supunham que teriam de enfrentar. Para quem não tivera — dez anos antes — dinheiro em caixa para saldar o aluguel de uma sede na ma dos Protestantes, comprar 45 mil metros quadrados de terra na Zona Leste chegava a ser assustador. Aquilo era uma... “fazendinha"! O rio ficava logo ali, havia peixes em abundância. Pássaros canoros — no futuro, a Zona Leste teria até mesmo um beija-flor alvinegro denominado... corinthiano-roxo! “Fazendinha... fazendi­nha. ..” O Corinthians passou a ser conhecido como o clube da Fazendinha. “O jogo será na Fazendinha”, escreviam O Esporte. A G azeta Esportiva, o Correio Paulistano, a Folha da M anhã, O Estado de S. Paulo, o D iário d a Noite. A G azeta... Já então a água da biquinha escorria por entre as pedras, mas os 45 mil metros quadrados estavam longe de ser apenas vegetação. O local começara a receber benfeitorias deste 1920. e era cedido por Abdalla & Sallem para que o Sport Club Sírio o utilizasse. Esse filamento árabe, oriental, que se depreende da história do Corinthians. explica a denominação do Parque São Jorge, numa homenagem ao santo cuja devoção se liga às tradições cristãs populares do Levante.

Havia na Fazendinha, quando o Corinthians a adquiriu no mês de agosto de 1926, algo mais que árvores, uma bica, o rio. peixes e pássaros. Havia já um campo de futebol, onde o Sírio treinava, arquibancadas, praça de esportes, campo de tênis e ... salão de danças! De modo que o Corinthians estava comprando, de cara, um patrimônio que podia ser usado imediatamente. No local havia também uma casa de moradia e um bar, o qual, no dia 14 de agosto de 1922. havia sido objeto de um contrato de exploração por uma firminha de família, a Garcia & Filhos. Esse mesmo bar teve depois, em 30 de

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outubro de 1923, seu contrato de arrendamento transferido para uma firma denomina­da... Cardoso, Gonzales & Borbolla.

Esse bar devia funcionar muito bem, ter um bom estoque de bebidas e salgadinhos, porque Assad Abdalla e Nagib Sallem determinavam, pela escritura, que o Sport Club Corinthians Paulista devia honrar aquele contrato com os donos do bar e mantê-lo no local, até que se vencessem todas as prestações. Em compensação, o Corinthians passava a receber todos os meses 300$000 — trezentos mil réis — como parte do aluguel pago por Cardoso, Gonzales & Borbolla a Abdalla & Sallem.

Quanto a isso não havia — e não houve — o menor problema. Na verdade, os dirigentes do Corinthians estavam preocupados era como pagar as prestações anuais — na prática, semestrais — , pois a escritura determinava que, em caso de atraso ou descumprimento das cláusulas do documento, o clube perderia tudo o que tinha dado como pagamento! A escritura foi estampilhada — como era de lei — e todos assinaram o documento no enorme livro de capa preta. Apertaram-se as mãos, abraçaram-se, deseja­ram-se boa sorte, felicidades, e Ernesto Cassano saiu caminhando pela rua Álvares Penteado, desembocou mais adiante no largo da Sé, o coração aos pulos. O Corinthians a partir daquele dia possuía um campo, arquibancadas, um bica de água mineral, um barzinho, um salão de baile e um rio limpo. Possuía também associados que, começando de baixo, estavam subindo na vida. O Ferreira e o Alves estavam pensando em montar uma confeitaria para atender a encomendas de “casamentos, baptisados, bailes e reuniões com a máxima promptidâo”. Essa confeitaria acabou surgindo na avenida Rangel Pestana, ne 277, num ótimo local, bem em frente das estações ferroviárias do Norte e Brás. O Rossano começava a negociar com queijo “cavallo, ricotta fresca e curada”, fabricados em Pouso Alto, em Minas. O Bonilha e o Cabrera estavam agora metidos com ferro-velho, compravam e vendiam bronze, chumbo, zinco, canos, estavam abrindo depósito no n2 236 da rua da Mooca. O Caetano Donnabella estava começando um depósito de artigos e ferramentas para “coureiros, sapateiros, seleiros e artefatos congêneres para automóveis e montarias”. Acabaria fabricando inclusive bolas de futebol afamadas, marcas Zuré, Susi e Zuzu. “Quereis almoçar bem?”, indagava aos corinthianos um reclame. Pois então, que fossem ao Portuense, o restaurante dos alvinegros, que funcionava também em frente da Estação do Brás, ao lado da confeitaria do Ferreira e do Alves.

Ernesto Cassano contava com a ajuda desses homens que aos poucos, com denodo, esforço, muito trabalho, estavam subindo na vida, se aprumando, abrindo a ambicionada caderneta vermelha da Caixa Econômica. “De tostão em tostão se faz um milhão”, “de grão em grão a galinha enche o papo”, esses lemas funcionavam na vida prática. Enriquecia-se honestamente — ou quase. Havia, é certo, casos de pessoas aqui e ali que misturavam água no leite, compravam dez litros e vendiam trinta litros, e de repente chegava o “tintureiro”, a “viúva-alegre”, e levava aqueles desgraçados, cobertos de rubor, para o xilindró. Mas havia outros pecados mais pesados que passavam despercebidos, como jogar a cerca da chácara, do sítio, 10 metros mais para a frente hoje, 10 metros

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mais para a frente amanhã, 10 metros outra vez adiante depois de amanhã, e de repente havia grandes senhores de terras que não sabiam dizer como tudo havia começado.

Cassano pretendia apelar para os corinthianos operosos que continuavam a dar duro na vida, pessoas que prosperavam no trabalho e ensinavam os filhos a trabalharem desde pequenos: Braga, que sonhava em ter sua fábrica de ladrilhos e de artigos sanitários; Porto, que comercializava madeiras do Paraná e pinho-de-riga; Luiz Pasqua, que estava montan­do na rua Caetano Pinto, n2 83 uma funilaria, que anos depois seria o maior estabelecimento da América do Sul de artefatos de folha e ferro para uso doméstico; Francisco Caballero Esteban, que vendia carvão, telhas e estacas de eucalipto e guarantã para cercas num armazém da rua Visconde de Parnaíba; Manoel dos Santos, que ganhava a vida negociando com camas de ferro e colchões; Carmo Camevale, encanador habilitado pela Repartição de Águas e Esgotos, perito em instalações e conserto de tubulações de água e gás, e que tanto lutou até conseguir ter sua empresa no n2 41 da rua da Consolação.

Enfim, Cassano contava com aqueles corinthianos, declarados ou não, que nas horas difíceis deles mesmos haviam tirado um pedaço de pão da própria boca para ajudar o Corinthians a sair das agruras.

O primeiro barco lançado nas águas pelo Corinthians. no ano de 1927, foi exata­mente doação do corinthiano Antônio Fernandes, que completou o gesto magnânimo tirando do bolso 500 mil réis e oferecendo ao clube para ajudar nas obras do estádio. Tal Fernandes era um dos associados bafejados pela prosperidade oriunda do trabalho sério e persistente, que o transformara num reputado comerciante de tintas em pó e em tubos, telas, estampas, anilinas. purpurinas, óleo de linhaça, alvaiade e outros produtos para pintores.

O Corinthians vinha tendo o respaldo desses corinthianos havia algum tempo. A compra da Fazendinha não fora uma temeridade. Mas, de qualquer forma, tinha sido uma decisão corajosa e fruto da confiança profunda no apoio popular.

As instalações do Parque São Jorge foram aos poucos sendo remodeladas. Muda­va-se a paisagem. Aumentava o número de associados — quando este chegou a mil, comemorou-se. Chope à vontade.

Antoninho de Almeida lembra bem quando “o rio Tietê formava uma belíssima enseada bem à entrada da ‘casa' corinthiana. dando-lhe um aspecto maravilhoso. Ali os corinthianos praticavam natação e os que não sabiam nadar se divertiam nos dois ‘cochos’. Tudo era encantador naquele lugar pitoresco. Grandes eucaliptos circundavam toda a praça de esportes, margeando o Tietê. Essa paisagem foi-se alterando com as posteriores retificações do Tietê. que. se de um lado aumentaram a área do Corinthians e lhe deram vias de acesso mais rápidas, também apagaram o cenário de fundo onde os heróicos corinthianos fincaram as bases da Cidade Corinthians”.

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Corinthians, 1917: o quadro alvinegro sofrera modificações. Plínio, Ciasca, o goleiro Russo (com o enorme distintivo no peito), Aloya, César (irmão de Neco) e Casemiro Gonzales. Abaixados: Américo, Aparício, Amílcar, Neco e Rogério. Nesse ano, o time ficou em 4° lugar, mas uma providencial alteração na posição dos jogadores (Amílcar recuaria para a interme­diária) iria surtir ótimos resultados logo no ano seguinte. (Foto Arquivo Corinthians)

Este é o primeiro quadro juvenil da história do Corinthians. Foi formado em 1918, disputou o campeonato da Associação Paulista de Esportes Athleticos e classificou-se em 2S lugar. (Foto Arquivo Corinthians)

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A Taça “Cidade de São Paulo” foi ofere­cida ao Corinthians pelo prefeito Firmia- no Pinto, no ano do centenário da Inde­pendência do Brasil, 1922. (Foto Antô­nio Carlos Carreiro)

Corinthians, 1924: Gelindo, Rafael. Rueda, Colombo. Del Debbio e Ciasca. Ajoelhados: Peres, Neco, Pinheiro, Tatu e Rodrigues. (Foto Arquivo Corinthians)

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A primeira obra que a diretoria man­dou construir na Fazendinha depois da aquisição da gleba, em 1926, foi esta torre que servia como caixa-d’água. Era tida como obra “monumental”. As vésperas da inauguração do campo de futebol da Fazendinha, em 1928, a di­retoria, em reunião realizada no dia 16 de julho, determinou que uma banda de música ficasse tocando num dos patamares da torre. No passado recen­te, a função dessa torre banalizou-se, passando a acolher um barzinho — o Bar da Torre, que acabou fechando. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Os dois cochos da primeira fase do Parque São Jorge. A água, límpida e pura, era do rio Tietê mesmo. Aqui gerações de corinthianos aprenderam a nadar. (Foto Arquivo Corinthians)

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XI.

Zap, pimba! 29 segundos de jogo. Estava inaugurado o estádio!

O primeiro gol no estádio Alfredo Schurig. inaugurado oficialmente no dia 22 de julho de 1928, foi marcado pelo ponta-esquerda Alexandre De Maria (o ponta-

esquerda que mais gois marcou no Corinthians), exatamente aos 29 segundos do primeiro tempo, no jogo contra o América Futebol Club, do Rio de Janeiro. A inauguração do estádio foi uma verdadeira festa e reuniu os dois clubes que haviam conquistado o título de Campeão do Centenário, em 1922, o que tornava a disputa ainda mais sugestiva.

Na semana de inauguração do estádio, as empresas cinematográficas de São Paulo exibiram antes das sessões anúncios do sensacional jogo, o mesmo ocorrendo com a Rádio Educadora — da qual o Corinthians era associado — . que fez “reclames” da partida em sua programação diária. À delegação do América foi oferecida uma bandeira do Corinthians confeccionada especialmente para assinalar o acontecimento e uma banda de música tocava num dos patamares da torre da caixa-d'água do Parque São Jorge. O estádio ficou apinhado de gente. Para facilitar o acesso dos torcedores à Fazendinha, os ônibus que faziam a linha Cidade-Penha alteraram o itinerário, chegando até à entrada do Parque São Jorge. Houve um jogo preliminar entre uma representação universitária mineira e o selecionado dos bancários; os universitários venceram por 7 a 5. Os ingressos para as arquibancadas custaram 5 mil réis; as gerais, 3 mil réis; e os automóveis pagaram 10 mil réis. A renda líquida do jogo foi Rs 16:901S200 — dezesseis contos, novecentos e um mil e duzentos réis!

O resultado final do jogo entre Corinthians e América foi um empate de 2 a 2. De Maria, um homenzarrão com 1,90 metro de altura, marcou os dois gois do Corinthians, que jogou com o seguinte quadro: Tuffy. Grané e Del Debbio; Nerino, Sebastião e Munhoz; Aparício, Neco, Rato, Guimarães e De Maria.

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Na inauguração do estádio Alfredo Schurig nem todas as instalações estavam completas. Praticamente, todas as dependências para o público foram construídas com madeira, o que dá para avaliar a quantidade de parafusos e pregos nelas utilizadas, e que foram oferecidos quase de graça por Alfredo Schurig. Alguns anos depois da inauguração o estádio já dispunha de uma arquibancada coberta — considerada uma das mais artísticas da Paulicéia — , com capacidade para 2 mil pessoas, sendo a parte direita da edificação reservada para os associados do clube. (Esse local é onde agora se situam as cadeiras da parte nova do estádio.) Atrás do gol da entrada atual do estádio (no lado onde agora está o placar) foram construídos 74 camarotes, “que emprestavam um tom de elegância e magnificência ao estádio...” As arquibancadas descobertas, as gerais, situavam-se no lado onde hoje passa a avenida Condessa Elisabeth de Robiano, e tinham capacidade para mais 3 mil pessoas.

Esse troféu de bronze, uma obra de arte intitulada Char de la Victoire, foi oferecido pelo América do Rio ao Co­rinthians, no dia da inau­guração do estádio Alfredo Schurig. (Foto Antônio Car­los Carreiro)

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XLI

Campeão dos Campeões

O hino do Corinthians Paulista entoa a expressão “campeão dos campeões” ao referir-se ao clube do Parque São Jorge. Poderia ser uma mera imagem simbólica.

Não é. Alguns dizem que o título de campeão dos campeões vem de 1915, quando o Corinthians — sem ter podido disputar o campeonato daquele ano — desafiou os dois clubes campeões: a A. A. das Palmeiras, que conquistara o título da APEA; e o Germânia, que fora o campeão pela Liga Paulista de Futebol. O Corinthians Paulista venceu a ambos. Daí, o campeão dos campeões.

Outros corinthianos dizem que esse título foi conquistado no Rio de Janeiro, quando o Corinthians Paulista enfrentou o Vasco da Gama. Aconteceu em 1930. Não se dispu­tavam torneios nacionais. Porém era comum defrontarem-se os campeões de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foi o que aconteceu naquele ano. No dia 16 de fevereiro de 1930, perante um enorme público, o Corinthians enfrenta o Vasco da Gama. Filó marca para o Corinthians aos 4 minutos de jogo. Baiano iguala o placar aos 18. Filó vai lá e marca o segundo, aos 26 minutos. Antes de temiinar o primeiro tempo, o grande De Maria (grande no tamanho, grande no jogo) faz 3 a 1. Na etapa final. Gambinha faz o 4- gol aos 10 minutos de jogo. O Vasco, cobrando uma penalidade máxima feita por Grané, faz seu segundo gol, por intermédio de Russinho. O Corinthians vence o jogo por 4 a 2. Jogou com: Tuffy, Grané e Del Debbio; Nerino, Guimarães e Munhoz. Filó, Aparício (Napoli, no segundo tempo), Gambinha (Amador, no segundo tempo), Rato e De Maria. O Vasco: Valdemar, China e Itália: Tinoco. Fausto e Mola: Baiano (depois Mário Matos), Oitenta-e-Quatro, Russinho, Pascoal e Santana.

O juiz foi Osvaldo de Carvalho, do Fluminense. O Corinthians ganhou o título de Campeão dos Campeões e a Taça "APEA". oferecida pela Casa Castro, de São Paulo.

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XLII

A intervenção. E mais um campeonato para o Corinthians!

M anuel Correcher tornara-se muito querido e admirado pelos associados e corin- thianos em geral. Era homem comunicativo, popular, que entendia as aspirações

da torcida e se misturava a ela com maneiras simples e cordialidade. No futebol, não se podia exigir nada melhor: um belíssimo tricampeonato, jogadores esbanjando categoria, como Teleco, Servílio, Joane, Milani... A famosa zaga Agostinho e Chico Preto, os goleiros Ciro e Pio se revezando no arco, segurando a barra lá atrás. Que mais querer? Pois é exatamente no ano de 1941 que o Corinthians enfrenta uma de suas crises mais cabeludas, crise política, de desentendimento dentro do próprio clube, provocada pela falta de discernimento de apenas.. .17 conselheiros, de um total de 120! Luta de grupos, coisa difícil de entender quando se olha de longe. PaLxões sem rédeas. Os jogadores no campo marcando gois, e a panela fervendo, espumando, no Conselho. Gente de fora metendo o bedelho, insuflando desavenças — e conseguindo! Correcher, o grande presidente, era espanhol. Uma lei federal, então baixada, impedia que estrangeiros presidissem clubes esportivos. Seu mandato iria até 31'de janeiro de 1941, legalmente não poderia continuar à frente do Corinthians. A desunião dentro do clube, porém, precipitou o afastamento de Correcher com a vitória dos inimigos do Corinthians: no dia 4 de janeiro de 1941 a Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo decretou intervenção no clube. Caía Manuel Correcher!

Para interventor, é indicado o capitão do Exército Aírton Salgueiro de Freitas, o qual toma posse no dia 7 de janeiro. O capitão Salgueiro fez uma reunião com vários conselheiros no dia 10 do mesmo mês: ia tentar a pacificação. Com isso conseguiu que espontaneamente todo o Conselho do clube renunciasse. Foi uma jogada bem arquite­tada, inspirada pela Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo, dirigida por Sílvio de Magalhães Padilha. A renúncia coletiva — acabando com o Conselho — evitou que fosse adotada uma medida intervencionista que ferisse os estatutos da agremiação, que não seria tolerada. Para os associados interessava que se alcançasse urgentemente a pacifi-

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cação no clube, liquidando-se com o clima de guerra. De qualquer forma, contudo, a intervenção representava um golpe que surpreendeu os círculos esportivos, até porque todos acompanhavam o desempenho futebolístico de alto nível do Corinthians.

Mas por maior que seja a crise, por mais duro o golpe, diz a tradição que o Corinthians não se deixa vencer — porque tem a seu lado a perseverança do apoio popular.

Manuel Correcher, com um sorriso nos lábios, poderia dizer: “Com crise ou sem crise, o Corinthians vai ser campeão...” Campeão em 1941, e vice-campeão nos dois anos seguintes.

Depois do capitão Aírton Salgueiro de Freitas, que encerrou sua missão de inter­ventor — e portanto não consta na galeria dos presidentes — , a série foi retomada com Mário Henrique de Almeida, que cumpriu as formalidades burocráticas, assumindo a presidência como delegado da Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo. No campo, os craques corinthianos não estavam nem aí com interventores, delegados, atas, fofocas e marolas. Iam deitando e rolando, encaçapando a redonda, jogando o futebol que sabiam... Pedro de Sousa, por fim, assumiu a presidência e encerrou os últimos resquícios da intervenção, período que, embora abalando a estrutura administrativa do Corinthians, nem de longe conseguiu estremecer a fortaleza e a fidelidade dos verda­deiros corinthianos.

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O Corinthians foi o primeiro clube do Brasil a instituir um tiro-de-guerra, que dava instrução cívica e militar a jovens, fora dos quartéis. Substituía o serviço militar obrigatório. Esta é uma das turmas do “corinthiano” tiro-de-guerra 71, que funcionava no Parque Sãojorge, comandado pelo tenente Juraci de Aguiar auxiliado pelo sargento Juvenal de Almeida.Corinthianos também tiveram seus nomes ligados à Revolução Constitucionalista de 1932, durante a qual morreu, na explosão ocorrida num teste de morteiro no bairro de Congonhas, o coronel Júlio Marcondes Salgado, comandante da Força Pública do Estado de São Paulo, atual Polícia Militar. Júlio Marcondes foi promovido a general post morteme sua modesta campa perdia-se na obscuridade do anonimato. Durante um jantar de comemoração dos 50 anos de Alfredo Schurig, no Restaurante Portuense, na avenida Rangel Pestana, no Brás, alguém referiu-se à situação do túmulo do ex-combatente paulista. No mesmo dia, corinthianos formaram uma comissão para erguer um monumento funerário ao general Salgado. Esse mausoléu ergue-se hoje logo à entrada do cemitério São Paulo, no bairro de Pinheiros, graças ao espírito cívico de Schurig, dos irmãos Toledo Piza e de outros corinthianos que lideraram ou participaram da campanha para manter viva a lembrança do valoroso militar. (Foto Arquivo Corinthians)

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João Martins de Oliveira substituiu J. B. Maurício. Foi o 5a presidente do Corinthians. Administrou o clube numa fase difícil ajudando-o a firmar-se no cenário futebolístico de seu tempo. Era considera­do excelente orador. (Foto Arquivo Corinthians)

O 62 presidente do Corinthians foi João de Carva­lho. Capitão da Polícia Militar, gozava de prestígio e influenciou para que o clube passasse a ser trata­do com a consideração a que fazia jus, como uma das grandes forças do futebol, que de fato era. (Foto Arquivo Corinthians)

Albino Teixeira Pinheiro foi o 72 presidente. Per­maneceu pouco tempo no cargo, passando-o a seu vice, Guido Giacominelli. Mais uma vez Gui- do era chamado para conduzir os destinos do clube, o que fez com a dedicação e discernimento que lhe eram habituais. Em nova eleição, Guido Giacominelli tornou a ser escolhido para mais uma gestão à frente do Corinthians. (Foto Arquivo Corinthians)

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Aristides Macedo Filho foi o 9S presidente do Corin­thians. Sua passagem pelo cargo também foi rápi­da, sem nenhum fato marcante, especialmente por­que substituíra a personalidade forte de Giacomi- nelli, com as naturais desvantagens. Depois de Macedo Filho, o valoroso Giacominelli outra vez retornou à presidência, destacando-se por seu di­namismo. (Foto Arquivo Corinthians)

O médico José Tipaldi ocupou a presidência do Corinthians sucedendo a homens que se haviam distinguido como grandes dirigentes, como era o caso de Giacominelli — que já então estivera por três vezes à frente do clube, inclusive atuando como orientador da equipe de futebol — e de Ernesto Cassano, em cuja gestão o Parque São Jorge começou a ser adquirido. Tipaldi era médi­co bastante conceituado e assumia o Corinthians numa fase em que tudo eram planos... e dívidas. Sua gestão não se destacou por grandes obras, mas no futebol o Corinthians conseguiu montar um esquadrão. Foi o 13e presidente. (Foto Arqui­vo Corinthians)

Ernesto Cassano, 10s presidente do Corinthians. Foi ele quem. no dia 18 de agosto de 1926, assinou em nome do clube a escritura de compromisso de compra da primeira área de terreno que foi o início do atual Parque São Jorge. (Foto Arquivo Corin­thians)

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Felipe Collona era bancário e foi um presidente dinâmico e lúcido. Teve sorte de administrar o Corinthians com Alfredo Schurig na vice-presi- dência, mas essa aproximação se deu graças à solércia de Collona, que a conseguiu por intermé­dio dos irmãos Alarico e Wladimir de Toledo Piza. Collona atraiu Schurig para a diretoria do clube, obtendo respaldo financeiro para várias reformas realizadas no Parque São Jorge. Foi o 14- presi­dente, sucedendo a Tipaldi. Na gestão Collona, o Corinthians conquistou o tricampeonato de 30. O primeiro hino do Corinthians foi-lhe oferecido pelo próprio autor da letra. (Foto Arquivo Corin­thians)

José Martins Costa Júnior foi, pela ordem, o 182 presidente, após a seqüência que principiou com Schurig — que não terminou o mandato e fora substituído por J. B. Maurício. Este teve a sucedê-lo Ernesto Cassano, em sua segunda gestão na presi­dência. Costa Júnior elegeu-se depois de Cassano, mas demitiu-se sem concluir o mandato. (Foto Ar­quivo Corinthians)

Manuel Correcher, espanhol, 19e presidente, era •um temperamento apaixonado, corajoso e briga­dor, no sentido de enfrentar as dificuldades. Reto­mou o pulso do clube e levou-o ao primeiro título de campeão no futebol profissional, em 1937. Com­pletou o trabalho com a conquista do terceiro tri­campeonato para o Corinthians, levantando o título também em 38 (aquele do gol do Carlito, o Turco) e 39 (em que o juiz anulou um gol de Servílio contra o São Paulo, marcado de uma distância de 20 jardas...). É de Correcher a frase: “Con razón o sin razón. . .” (Foto Arquivo Corinthians)

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Mário Henrique de Almeida foi o 202 presidente do Corinthians por indicação da Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo, em decorrência da inter­venção desse órgão no clube. Na prática, atuou como delegado da Diretoria de Esportes. (Foto Arquivo Corinthians)

Pedro de Sousa, o 21Q presidente, assumiu a presi­dência do Corinthians como candidato único im­posto ao Conselho da Paz. praticamente o último ato inspirado pela Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo na fase de intervenção. O Conselho fora criado sob a égide desse órgão, mas a partir daí as eleições presidenciais no clube retomaram o procedimento normal. (Foto Arquivo Corinthians)

A eleição de Manuel Domingos Correia, 22Q pre7 sidente, se realizou dentro de total normalidade jurídica e administrativa. Domingos Correia se destacara no clube como excelente tesoureiro na gestão de Correcher. Como presidente, teve atua­ção discreta. (Foto Arquivo Corinthians)

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Alfredo Inácio Trindade inaugurou uma nova época administrativa no Corinthians, com um estilo em que o nome do presidente parece confundir-se com a personalidade do clube, e vice-versa. Arrebatado, iniciou a dinastia dos presidentes-emoção, que de certo modo havia sido ensaiada por Manuel Correcher. Trindade foi muito mais fundo. Ajudou a carregar taças, títulos e troféus em volta do gramado, sem o menor prurido de ser tomado por um torcedor comum. Xingou, foi xingado. Preocupou-se com o patrimônio do clube e o bem-estar dos associados. Promoveu o charuto como um dos mais pitorescos símbolos corinthianos em todos os tempos. Foi amado pela torcida, estimado pelos jogadores. Criou amizades e atritos. Contraditório, paciente, amável, ríspido, eletrizante. Gostava do poder, manteve-se nele durante cerca de dez anos. Fez política no clube, fora do clube, foi possivelmente o primeiro dirigente a transformar o corinthianismo em votos para cargos públicos legislativos. Popular, carismático, muito da mística corinthiana foi alimentada e estimulada por seus discursos inflamados: reunido com os jogadores nos vestiários, antes das partidas, conclamava-os com veemência a lutar em campo até a última gota de suor— sangue, se preciso fosse — “porque os presos nos cárceres, as viúvas desamparadas, os órfãos, os velhos nos asilos, os doentes nos hospitais, as crianças em farrapos e sem sapatos das favelas, os sofredores deste imenso Brasil estão à espera de um momento de alegria, e essa alegria está nos pés de vocês”. Falava estas coisas e acreditava nelas, vinham do fundo de seu coração. Depois de Alfredo Inácio Trindade, o Corinthians nunca mais foi o mesmo: passou a ser uma espécie de religião. Trindade foi um de seus maiores sumo-sacerdotes. Raposino entre raposas, cândido entre os inocentes, Alfredo Inácio Trindade fez jus a que a bandeira alvinegra cobrisse seu esquife, posto que, à sombra dessa mesma bandeira, Trindade viveu seus maiores dias de sofrimento e de glória. (Foto Arquivo Corinthians)

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Lourenço Fló Júnior é um dos grandes sócios beneméritos do Sport Club Corinthians Paulista — outros que receberam a honraria são Wadih Helu, Vicente Matheus e os irmãos José e Antônio Enuírio de Moraes. Conselheiro vitalício, Fló Júnior presidiu ao clube em 1947-1948. Gaúcho nascido em 1918, de pais catalães de Barcelona, veio para o Brasil com 2 anos de idade. O antigo executivo do clube, Dario Borbola, pai de José Borbola (que disputou a presidência com Marlene Matheus), costumava visitar corinthianos ilustres que nem sócios eram; apenas torcedores e simpatizantes. Era o caso de Fló. Foi por indicação de Dario Borbola que o presidente Alfredo Inácio Trindade convidou Fló Júnior para ser diretor de patrimônio, em 1942, quando a natação no clube ainda era praticada nos cochos do rio Tietê. Trindade estava na presidência fazia oito anos e precisava encontrar um candidato de pacificação para as eleições de 47. A oposição era formada pelo Grupo Alvinegro. Lourenço Fló Júnior foi eleito e formou uma diretoria que ficou conhecida como Jardim América (em alusão a um bairro nobre dos Jardins, Zona Sul de São Paulo) pelo alto nível social de vários de seus integrantes. Um triunvirato passou a dirigir o futebol do clube: Antônio Abdala, Cláudio Loeb e Savério Nigro. Foi na administração de Fló Júnior que os craques Cabeção (goleiro), Luisinho (meia-direita) e Colombo (ponta-esquerda) assinaram o primeiro contrato como profissionais. A assinatura de Fló Júnior também se encontra num dos contratos de Cláudio Cristóvão do Pinho. Na gestão Fló Júnior, uma das prioridades foi o conjunto aquático: em 1947, Fló abriu uma lista com 50 mil cruzeiros para as obras, não porque as finanças do clube não estivessem boas. Ao contrário, nesse ano o clube apresentou saldo favorável de 654 mil cruzeiros; o superávit do futebol foi de 400 mil cruzeiros.Embora o Corinthians tenha sido bicampeão de basquete nos anos 47 e 48. o grande título até então inédito do clube, conquistado sob a presidência de Fló Júnior, foi o de campeão paulista de xadrez — façanha essa que poucas pessoas conhecem, mesmo no clube... Depois que deixou a presidência do Corinthians, Fló Júnior foi ser vice-presidente da Federação Paulista de Futebol, na gestão Roberto Gomes Pedrosa, e presidiu, com raro brilho e discernimento, ao Tribunal de Justiça Desportiva durante quatro anos. Curiosidade: o corinthiano Fló Júnior é também sócio remido do Paulistano. (Foto Gil Passarelli)

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/Wadih Helu nasceu na cidade de Conchas, no Estado de São Paulo, no ano de 1922. Começou a freqüentar o Parque São Jorge com 11 anos — em 1933, justamente quando o clube vivia um período difícil no futebol mas ampliava as atividades de todos os outros departamentos — e entrou como sócio a partir de 1938. Com exceção de Miguel Bataglia e Alexandre Magnani, conheceu pessoal­mente todos os demais presidentes da agremiação e grande parte dé seus fundadores. (Foto Arquivo Corinthians)

Na foto, Vicente Matheus. O grupo de Alfredo Inácio Trindade foi substituído na direção do Corinthians Paulista por um movimento liderado por Wadih Helu e Vicente Matheus, que se uniram com o mesmo objetivo, em 1956. Essa união, toda­via, não prevaleceu por muito tempo. (Foto Hilton Ribeiro)

Miguel Martinez ascendeu à presidência do Corinthians no bojo de um movimento denomi­nado Revolução Corinthiana, que terminou por gerar uma das mais graves crises financeiras e administrativas de toda a história do clube. Marti­nez, ainda que tendo prestado no passado valio­sos serviços ao clube, não foi feliz em sua gestão. Foi destituído antes do término do mandato, as­sumindo em seu lugar novamente Vicente Ma­theus, que teve como sua primeira e principal preocupação sanear as finanças da agremiação. (Foto Arquivo Corinthians)

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Waldemar Pires assumiu a presidência do clube pela primeira vez em 1981, na sucessão de Vicente Matheus, que retornara ao cargo com o afastamento de Miguel Martinez. O nome de Pires está para sempre associado ao projeto Democracia Corinthiana. de repercussão nacional, uma arrojada mudança no relacionamento entre jogadores e dirigentes e que implicou em profunda descentralização de poderes. Waldemar Pires superou uma tentativa de "golpe político” arquitetada pelo então presidente do Conselho Deliberativo e foi reeleito em 1983, vencendo o novamente candidato Vicente Matheus. Não é exagero afirmar que esse pleito se constituiu num acontecimento histórico na vida do Corinthians, levando ao Parque São Jorge uma verdadeira multidão: Waldemar Pires recebeu 5.138 votos contra 2.336 de Vicente Matheus. Veteraníssimos associados vieram de longe, de todas as partes do País, para participar do pleito. Odilon Paes de Barros, então com 81 anos, 71 como sócio, que assistiu, garoto, à primeira partida do “clube dos operários”, compareceu para votar, e votou em Pires. Artur Marques Pereira esqueceu seus 84 anos e saiu de Sorocaba para, pela primeira vez, participar de uma eleição no Corinthians. Sócio remido, declarou antes de depositar seu voto na uma: “Democracia faz a gente sair de casa". A “revolução” de Waldemar Pires principiou com a entrega do departamento de futebol ao sociólogo Adilson Monteiro Alves, filho de Orlando Monteiro Alves, um dos principais líderes que apoiaram Waldemar Pires. A gestão de Waldemar Pires só pode ser analisada à luz da Democracia Corinthiana — que. obviamente, teve opositores dentro do clube — , mas não pode ser negada como um movimento que levou ao ápice a integração torcida-jo- gadores-dirigentes. (Foto Arquivo Corinthians)

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Roberto Pasqua conquistou a presidência do Corinthians em 1985, liderando a chapa Aliança Democrática e apoiado pelo grupo do ex-presidente Wadih Helu. Pasqua venceu por 32 votos a chapa Democracia Corinthiana, de Adilson Monteiro Alves, sucedendo ao presidente Waldemar Pires na direção do clube, A eleição de Pasqua transcorreu em clima pacífico, com alto nível de respeito, para o que contribuiu a postura pessoal de ambos os candidatos que disputavam o cargo, mas não impediu as manifestações de protesto de torcidas uniformizadas, que se posicionaram, inclusive durante a campanha, contra o candidato vitorioso nas urnas. Pasqua teve uma administração equilibrada. Entre os elogios que se lhe fazem, um deles é ter assumido obras iniciadas por seus antecessores — o que é raro acontecer — e introduzido melhoramentos de vulto na Cidade Corinthians, entre eles o Parque Aquático, um dos orgulhos do Parque São Jorge. Pasqua é corinthiano da velha guarda, tendo defendido as cores do clube inclusive como atleta. (Foto Arquivo Corinthians)

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Marlene Matheus, esposa de Vicente Matheus, assumiu a presidência do Corinthians Paulista abrindo um precedente histórico: jamais uma mulher havia ocupado antes tal cargo. Marlene sucedeu na direção do clube ao próprio marido, o qual assumiu a vice-presidência. Notoriamente, com a eleição de Marlene, Vicente Matheus continuou ocupando a mesma cadeira presidencial, decidindo os mesmo assuntos e mantendo aquele jeito de ser e de administrar que não poucas pessoas acusam de “extremamente autoritário e centralizador”. A atuação e a influência de dona Marlene Matheus no destino do clube serão examinadas um dia com o distanciamento que só o tempo permite e a história recomenda. Mas foi uma das eleições mais renhidas e animadas de todos os tempos, com campanhas caras por parte de todos os cinco candidatos, e que tomou conta da mídia em geral, movimentou legiões de cabos eleitorais e agitou a cidade, como se fosse uma eleição para governador do Estado. Empresas de pesquisas foram contratadas para avaliar a tendência do eleitorado corinthiano. Muitos a consideraram “a eleição mais cara do esporte brasileiro”. Como na hora da paixão a língua é uma víbora de bote imprevisível e nem sempre contida a tempo, trocaram-se farpas entre os candidatos Antoine Gebran, Damiào Garcia, Edgard Soares (apoiado abertamente pelos Gaviões da Fiel), José Borbola (de tradicionalíssima família corinthiana, jogador de basquete do Corinthians na década de 60 e diretor do clube em várias ocasiões) e a própria sra. Marlene Matheus. Mas no final prevaleceu o cavalheirismo e aquele sentimento, tão antigo, de que pelo Corinthians vale a pena esquecer as mágoas e as feridas em carne viva. Marlene Matheus obteve 2.119 votos; Antoine Gebran, 1.250; Damião Garcia, 1.073; José Borbola, 918; e Edgard Soares, 311. A eleição se realizou dia 27 de janeiro de 1991. (Foto Hilton Ribeiro)

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XLIII

O mosqueteiro na guerra do futebol

O Corinthians desde seus primeiros tempos precisou adaptar-se ao clima de guerra no futebol. Antes mesmo de conseguir impor-se fora da várzea, o “clube dos

operários” assistiu à primeira cisão no futebol paulista, em 1912, quando alguns clubes deixaram a Liga Paulista de Futebol e fundaram a Associação Paulista de Esportes Athleticos. Em 1926, alguns clubes, encabeçados pelo Paulistano, abandoram a APEA e fundaram a Liga de Amadores de Futebol — conhecida como LAF. O Corinthians, vale ressaltar, lutava pela harmonia e unificação do futebol com as forças de que dispunha: sua equipe, seus jogadores — uma vez que nem estádio próprio possuía. Não tinha a bem dizer um patrimônio. Em fevereiro de 1927, o presidente Ernesto Cassano — que tão bem se houvera na compra da primeira gleba do Parque São Jorge — , fiado em promessas de que se tentariam novos estatutos para dirigir o futebol paulista, abandona a APEA e ingressa na LAF. Ainda que a decisão tivesse sido aprovada em assembléia por 129 associados — e recebido uma moção de apoio dos sócios-jogadores, entre eles Manoel da Costa, João Lotito, Gino Colombo, Leone Gambarotta, Alexandre De Maria, Rafael Aparício Delgado, Armando Del Debbio, Rafael Guisardo, Sebastião Cravalos e Manuel Nunes, o Neco — , foi um passo temerário do qual o clube veio logo a se arrepender duramente. Em julho do mesmo ano, no dia 12, os associados decidem retornar à APEA, escarmentando a hora em que tinham aderido à LAF. Em 1928, o Corinthians levanta o título de campeão pela APEA (o Internacional foi o campeão pela LAF). E repete a conquista, pela mesma entidade, em 1929 e 1930!

Outra cisão do futebol paulista ocorre em 1935. Formam-se duas facções: os clubes dividem-se entre a APEA e a Liga Paulista de Futebol. A partir de 1937 volta a funcionar apenas uma única entidade — a Liga Paulista de Futebol: o Corinthians conquista o campeonato! Em 1938, a Liga Paulista de Futebol passa a denominar-se... Liga Paulista de Futebol do Estado de São Paulo! Eis o Corinthians Paulista novamente campeão. As entidades que dirigiam o futebol em São Paulo debatiam-se e iam passando. O Corin­thians ia conquistando seus títulos. Finalmente, em 1941, por lei federal, o futebol em São Paulo passou a ser administrado pela Federação Paulista de Futebol.

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Somente em 1937, o Corinthians conquistou seu primeiro título de campeão no futebol profissional, o qual já vigorava desde 1933- O profissionalismo obrigou o clube alvinegro a reestruturar sua administração, inclusive oferecendo melhores condições de conforto no Parque São Jorge. Em 37, os “mosqueteiros” demonstraram mais uma vez sua força: liquidaram a dívida da compra da Fazendinha e foram buscar o título de campeão de futebol com José I, Jaú, Brandão. Teleco, Munhoz, Carlito, Carlos, Jango, Daniel, Carlinhos e Filó. Ao fundo, o antigo camarote coberto que foi demolido. (Foto Arquivo Corinthians)

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XIIV

Marketing & futebol beneficente valiam taças e troféus

Quando o fator econômico no futebol ainda não havia assumido o papel impor­tante e complexo que, atualmente, regula a maioria das competições esportivas, ninguém ousaria imaginar que a camisa dos clubes pudesse ser “conspurcada” pelo

nome de empresas patrocinadoras da agremiação. A camisa era um símbolo sagrado. A marca registrada, o signo que não admitia interferências estranhas. A camisa do clube era — a camisa! Suar a camisa tinha um sentido preciso. Vestir a camisa significava defender a honra do time. A camisa não podia ser maculada. A cor da camisa, sua inviolabilidade, era um dado informativo visual de extrema importância1. O mesmo acontecia com o distintivo. No Corinthians, muitas vezes o distintivo do clube, redondo— era como um grande círculo no peito do goleiro — , podia ser reconhecido do último degrau de madeira das arquibancadas.

Talvez não tenha agora a menor importância apurar qual foi o primeiro jogador no futebol brasileiro que se permitiu a ousadia de trocar após o jogo sua camisa com o adversário — mas evidentemente não foi naqueles tempos heróicos em que a camisa era tudo para o clube.

Mesmo os jogos amistosos, era camisa contra camisa. Os jogos amistosos eram promovidos em geral para arrecadar fundos para entidades e associações que auxiliavam a população — creches, orfanatos, asilos. No dia 11 de novembro de 1914, anunciava-se, por exemplo, um jogo do Corinthians em benefício da... Maternidade de São Paulo, que tinha uma ala para atendimento a parturientes sem recursos.

Esses jogos de benefício — que continuam a ser realizados hoje com outros objetivos não menos altruísticos, como auxiliar famílias de jogadores em situação de dificuldade, apesar de todo o profissionalismo do futebol moderno... — tinham como incentivo a disputa de taças e troféus. Os troféus e taças eram utilizados como incipiente m arketingúe empresas, que com eles faziam “reclame” de seus produtos ou procuravam conquistar a simpatia do público. Perto da enxurrada de cartazes que hoje circundam os campos de futebol, ocupando nos estádios espaços disputados a peso de ouro, comparados com os esquemas promocionais e comerciais que orientam agora os

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torneios e campeonatos — por pouco a marca de um refrigerante não foi fixada no grande círculo dos estádios — , aqueles recursos do passado são singelos e de uma ingenuidade comovente. Mas ao tomar por base a quantidade desse tipo de taça que orna a sala de troféus do Sport Clube Corinthians Paulista, a coisa devia funcionar. O Asylo dos Orphãos ofereceu a taça “Ao Preço Fixo” (que era uma casa comercial em grande voga nos idos de 21); umas das taças conquistadas na vitória sobre o Bologna Sport Club foi gentileza dos irmãos Berti: nesse mesmo jogo, Bertolucci & Cia. Ltda., donos do Ao Empório Toscano, entregou aos alvinegros uma taça com esse nome sugestivo; o “Guaraná Espumante”, que era uma bebida sem álcool, muito apreciada no clima tropical, foi outra conquista alvinegra; a Agência de Jahú, que comercializava automóveis da afamada marca “Studebaker”, também honrou o Corinthians com um simpático troféu; a taça “Elixir de Cabo Verde Composto” — um santo remédio -— foi gentileza do Sylvio Polati, que o Corinthians foi buscar numa de suas vitórias sobre o Palestra; os estimados Rodrigues Irmãos & Cia.. que moíam e empacotavam o excelente Café Rodrigues, de inigualável pureza e sabor, também deram uma bonita taça ao Corinthians; e Sábbado D Angelo, que chegou a dominar uma grande parte do mercado de cigarros, tendo sua fábrica passado a funcionar em amplas instalações na várzea do Glicério, também honrou o Parque São Jorge oferecendo a bela taça “Sudan Ovaes”, cigarro que entre os corinthianos gozou de prestígio quase tão grande quanto o posterior charuto — que virou símbolo do Corinthians.

Vale lembrar que com a profissionalização do futebol o Corinthians, como os demais clubes, começou a pensar em outros tipos de promoção. Em agosto de 1933, o clube alvinegro não apenas nomeava o associado José Sanches Martins para diretor de Publicidade e Propaganda, como examinava uma proposta feita à diretoria pela Rádio Sociedade Record para... irradiar jogos de futebol diretamente do Parque São Jorge!

Nota

1. No campeonato da Associação Paulista de Esportes Athleticos, o uniforme do Corinthians (camisa branca, com golas, punhos, cordões e calções pretos) não era o único alvinegro. A Associação Athletica das Palmeiras usava camisa branca com uma lista preta no centro, e calções brancos. O uniforme do Paulistano era camisa branca com faixa vermelha e calção branco com faixa vermelha (o modelo básico do uniforme do São Paulo Futebol Clube vem daí). O Internacional tinha camisa com listas pretas e vermelhas e calção branco. O Ypiranga também tinha camisa alvinegra. listas pretas largas e listas brancas estreitas, com calção branco. O Palestra tinha camisa verde com uma lista branca horizontal e calções brancos. O Santos tinha camisa com listas iguais pretas e brancas. Uma curiosidade é que o Minas Gerais — que o Corinthians venceu por 1 a 0 por ocasião do ingresso na Liga — quando jogava na segunda divisão tinha camisa igual à do Corinthians. preta e branca, com a mesma disposição das cores na gola e no punho, mas calções brancos. Posteriormente, quando mais tarde ascendeu ao campeonato da APEA, com a unificação do futebol paulista, o Minas Gerais teve que mudar seu uniforme para camisa com listas vermelhas e brancas. O Corinthians ficou com o privilégio de manter seu uniforme.

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Taça “Ao Preço Fixo”, 1921. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

“Guaraná Espumante”, 1925. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

“Studebaker”, 1925. (Foto Antônio Carlos Carreiro) Taça “Città di Firenze”, conquistada no jogo Corin­thians vs. Bologna, 1929. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Gentileza do “Empório Toscano". 1929- (Foto An­tônio Carlos Carreiro)

"Elixir de Cabo Verde Composto”: vitória sobre o Palestra. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Um gentil oferecimento dos donos do Café Rodri­gues. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

"Sudan Ovaes”. uma preferência corinthiana antes do charuto. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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XLV

O terceiro tricampeonato: o polêmico gol de Carlito, o Turco

O Corinthians é o único clube paulista que ostenta em sua gloriosa história a conquista de três tricampeonatos. E nesses três tricampeonatos, por duas vezes

ele chegou à conquista do título realizando temporadas nas quais não foi derrotado nenhuma vez. Portanto, por duas vezes foi campeão invicto em nove títulos. O último desses tricampeonatos aconteceu nos anos de 1937, 1938 e 1939, e foi justamente no ano de 1938, em que o Corinthians chegou invicto ao título, que se registrou um polêmico gol, na parte decisiva, episódio esse que costuma ser lembrado com grande amargura pelos são-paulinos mais antigos. Naturalmente, a saga do Corinthians não pode omitir esse lance controvertido, como se verá mais adiante.

Preliminarmente, porém, convém lembrar que, depois de superar uma etapa cheia de vicissitudes, em que se juntaram a liquidação da dívida do Parque São Jorge com a adaptação ao regime do profissionalismo no futebol e a ida de vários jogadores para a Itália (a maioria para o Lazio, de Roma), o Corinthians começou a se firmar em 1936, ano em que chegou a vice-campeão. De 1931 a 1935, período de sérias crises no futebol, ele não passou de posições intermediárias.

Em 1937 começou a reação corinthiana de verdade. Já no primeiro turno ocupava a ponta da tabela, superando os obstáculos “com uma admirável linha de elegância moral e esportiva, espírito ordeiro e disciplinado, respeitando o público e os adversários e impondo-se por sua alta categoria”. Esses comentários são de observadores esportivos daquela época, que viam o Corinthians voltar a ocupar a posição de relevo compatível com sua história. Em 1937, o Corinthians disputava o campeonato da Liga Paulista de Futebol, entidade presidida por Artur Tarantino. E tinha como técnico o ex-jogador Neco! Manuel Nunes, que era seu nome de batismo, por si só, com sua presença e sua palavra, era uma fonte de entusiasmo para a equipe, pois Neco havia sido um baluarte na defesa das cores corinthianas. Neco era auxiliado por Manuel Domingos Correia, que era tesoureiro do clube; e por Augusto Ramos e pelo tenente Waldemar F. Justiniano, diretores de futebol. (Nunes era o técnico de futebol, Andrade Marques era o técnico de

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atletismo e ginástica, Napoleão Buchi era o técnico de natação e Sílvio Domingues era técnico de remo.)

Nesse ano, não apenas o futebol ia bem.

O basquete dera um salto, conquistando o campeonato de São Paulo sob a direção de Álvaro Moraes, com uma equipe da qual faziam parte Ênio, Caveda, Tony, Bettoi, Foguinho, Tonini e Raul.

O Corinthians Paulista era apontado como o clube que mais regalias e atividades esportivas propiciava a seus associados: futebol, atletismo, ginástica, remo, natação, voleibol, basquetebol, pólo aquático, handball. ciclismo e... bailes.

Os dois remos não tinham sido acrescidos ao distintivo à toa. Além de 18 catraias e um escaler para excursões, o Departamento de Remo do clube dispunha de uma flotilha da qual faziam parte os seguintes barcos: América, barco-escola a dois remos; São Jorge, barco-escola a quatro remos; Vasco da Gama, canoa a dois remos: Alfredinho, canoé; Alcides, canoé para provas oficiais: Carminha. d ou b lecanoé; Santinha, y o lea dois remos; Nené, y o lea dois remos; Botafogo, y o lea quatro remos; Corinthians, y o lea quatro remos; Zezé, y ole a quatro remos: Armando de Sales Oliveira, y o le a oito remos; Lili, out rigger a dois remos; A. Costa Mano, out rigger a. dois remos sem patrão; Fábio da Silva Prado, out rigger a dois remos; Cristina, out rigger a dois remos; e Fiel, single scu ll1.

E fácil concluir que, embora tenha nascido a partir de uma equipe de futebol, o Corinthians tem dado, ao longo de sua história, plena demonstração de que sua pujança, seu crescimento, nunca dependeu exclusivamente desse esporte. Quando adquiriu o Parque São Jorge, o número de associados mal chegava a 200. E ainda que no período do 1931 a 1935 sua colocação no campeonato futebolístico fosse do 6e ao 4a lugar, chegava a 1937 possuindo um estádio com excelentes dependências (para a época, é evidente) e um quadro associativo de 4.000 membros, assim discriminados: adultos, 2.000; juvenis, 1.650; mulheres, 105: remidos. 176: beneméritos. 60: grande benemérito, 1; fundadores, 13.

A boa situação do clube culminou com a conquista do seu primeiro campeonato no futebol profissional, com a equipe dirigida por Neco e capitaneada por Jaú: era 1937, começava a caminhada para a conquista do tricampeonato. O espanhol Manuel Corre- cher estava dando sorte na presidência do clube, de cuja diretoria também faziam parte: José Aboláfio, vice-presidente: Hélio Dias Siqueira, secretário-geral; João Alfredo Ge- mignani, l s secretário; Manuel Garcia Ariza. 2e secretário: Manuel Domingos Correia, l s tesoureiro (que dava uma mãozinha a Neco); e Antônio Pasquali, 2e tesoureiro.

Teleco, como sempre, barbarizava. Era um azougue. Naquele ano de 1937, sozinho ele fez 15 gois. Foi o artilheiro.

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Nesse ano a chopada da vitória foi na rua Florêncio de Abreu, n2 14, sobreloja, quase na esquina do largo de Sâo Bento, onde funcionava a sede do Corinthians.

Foi em 1938 que aconteceu aquele gol problemático na conquista do campeonato pelo Corinthians, invicto. Para que não paire mais nenhuma dúvida no espírito dos esportistas, será feita uma recapitulação dos fatos, adperpetu am rei memoriam.

Em 1938, como é sabido, realizou-se a Copa do Mundo, na França, e o campeonato paulista, então promovido pela Liga de Futebol do Estado de São Paulo, foi interrompido em sua segunda rodada, no mês de março. A idéia era fazê-lo prosseguir a partir de outubro daquele ano". Para não complicar o certame, os clubes paulistas se reuniram e decidiram, de comum acordo, fazer o campeonato com apenas um turno. Tudo bem, o Corinthians tinha armado novamente um bom quadro, topava qualquer coisa. Mas no primeiro jogo, na Fazendinha, o time mosqueteiro, no dia 20 de março, deixou a desejar: empatou com a Associação Athletica Portuguesa, de Santos, em 0 a 0. No segundo jogo, dia 27 de março, o Corinthians entra em campo, também na Fazendinha, com José I, Espinafre e Carlos; Jango, Brandão e Gasparini; Lopes, Daniel, Umbigo, Carlinhos e Wilson, e enfrenta o Lusitano. Apesar de Umbigo ter feito das tripas coração e marcado dois gois, o Lusitano empatou. Nesse dia o campeonato foi interrompido porque os clubes tinham de ceder seus principais jogadores para o selecionado brasileiro.

Reiniciado o campeonato em outubro, como estava previsto, o Corinthians venceu o Espanha por 2 a 1. Continuava invicto e manteve essa invencibilidade enfrentando o Palestra no Parque São Jorge, com o resultado de 1 a 1. Lopes fez o gol corinthiano. Convém observar que até aí o avante Carlito, apelidado de Turco, não havia participado de nenhum jogo no ano. Carlito entrou no jogo seguinte do Corinthians, dia 11 de dezembro de 1937, enfrentado o S. P. R. (São Paulo Railway). O time mosqueteiro venceu, mas a partida foi difícil: 3 a 2.

O campeonato de 1938 entrava agora no ano de 1939, com o Corinthians indo a Santos, ao famoso “alçapão”, como era chamado o campo dos praianos. Teleco e Servílio se encarregaram de dar a vitória ao Corinthians por 2 a 1. Esse jogo aconteceu no dia 8 de janeiro de 1939.

No dia 26 de março de 1939, o Corinthians vai enfrentar o Juventus. Se muitas pessoas não sabem por que o Juventus é chamado de “moleque travesso”, deviam ter visto esse jogo. O Juventus era especialista em dar susto nos grandes e nesse dia, para não variar, armou uma retranca dos diabos. O Corinthians jogou com Barcheta (que substituiu José I no gol), Jango e Carlos; Tião, Brandão e Munhoz; Lopes, Servílio, Teleco, Carlinhos e Wilson; a duras penas conseguiu marcar 1 a 0, tento do grande Teleco.

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Nos dias 2 e 9 de abril o Corinthians joga, respectivamente, com o Ypiranga e a Portuguesa de Desportos, vencendo-os por 4 a 1 e 3 a 1. Carlito jogou nessas duas partidas. O Corinthians, portanto, estava invicto — e chegava ao último jogo do campeonato de 1938. O adversário que o Corinthians vai enfrentar chama-se Sào Paulo Futebol Clube. O jogo vai ser no campo da Fazendinha. No estádio Alfredo Schurig!

Para ser campeão invicto, bastaria que o Corinthians apenas empatasse. Mas o São Paulo queria era ganhar o jogo. Tinha time para isso!

Na Fazendinha, sobre o rio Tietê, nos lados da Penha, até onde o olhar alcançasse a distância daquelas chácaras sem fim. armavam-se nuvens pesadas e negras no firmamento. A torcida dos dois clubes — evidentemente que muito mais a do Corinthians— chegava em bandos, ia ocupando todas as dependências, camarotes, arquibancadas cobertas e descobertas do estádio. Ainda bem que os parafusos e pregos do sr. Schurig eram de primeira qualidade, a qualquer prova, caso contrário aquele madeirame todo poderia vir abaixo. Mas as estruturas eram mais firmes que rocha. E o povo chegando, gente com galocha, paletó de gola levantada, suéter de lã, chapéu Ramenzoni na cabeça, guarda-chuva preto (homem naquela época só usava guarda-chuva preto), capa de gabardine, cada um se protegendo como podia...

O time do Corinthians agora estava sendo dirigido pelo grande técnico e ex-jogador Armando Del Debbio.

Os craques entram no gramado do Parque São Jorge: Barcheta. Jango e Carlos; Sebastião, Brandão e Tião; Lopes, Servílio. Teleco, Carlito e Carlinhos.

A multidão estruge. No céu. as nuvens negras se adensam. Já se sente nas narinas a umidade do ar.

Agora os dois times estão colocados em campo. No gol do São Paulo, um paredão— um homem finíssimo chamado Pedrosa. O grande Dr. Roberto Gomes Pedrosa! De beque-central tricolor, Agostinho — outra muralha. Agostinho está de olho em três corinthianos, considerados os mais perigosos, os mais terríveis, as grandes armas alvinegras: Teleco, o que marcava gol só com o pensamento e de olho fechado; Servílio, cognominado Bailarino pela volúpia e elegância de seus dribles, que mereciam figurar no palco do Teatro Municipal; e Lopes, aquele abençoado ponta-direita que o párocode Batatais tinha mandado para o Corinthians (e que os dirigentes sâo-paulinos haviam

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tentado desviar para o São Paulo, numa operação tática que deu errado) . Esses três corinthianos eram fogo. Naquele domingo, 23 de abril de 1939, o jogo ia ser de vida ou morte.

O juiz apita. Começa a partida. Ao longe troveja. Dois minutos de jogo. um corisco risca o céu da Fazendinha. Explode um estrondo. Não. não é corisco, não é trovão. É Mendes, ponta-direita do São Paulo, que acaba de marcar o primeiro gol tricolor! A

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torcida corinthiana não quer acreditar em seus olhos nem nos seus ouvidos. Perder do São Paulo, no último jogo, no jogo do campeonato invicto, em plena Fazendinha. Que um raio caia sobre nossas cabeças! Mil vezes um raio! E desce o São Paulo, pintando e bordando. Ameaçando. Chutando. Fazendo Barcheta voar em todas as direções. São Jorge! São Jorge! Onde estás que não escutas?

Nisso, um trovão de verdade, desses de arrebentar coquinho. E as nuvens do céu se abrem, como cachoeiras. É o dilúvio universal. Nem a arca de Noé agüentaria um toró daquele peso. A água desce, molha chapéus, capas, galochas, estraçalha guarda-chuvas. Chuva e vento. Vento e chuva. A bola patina, morre nas poças, o couro fica ensopado. Uma névoa cobre os olhos dos vinte e dois jogadores e do juiz que apita. “Macacos me mordam!”, ele reclama. “Não estou enxergando um palmo adiante do nariz!” Chamam-se os representantes da Liga de Futebol, os jogadores se agacham, tentam se proteger, mas inutilmente. O temporal desaba. Todos concordam: partida suspensa. O São Paulo está vencendo por 1 a 0. Marca-se a continuação do jogo para a terça-feira seguinte, dia 25 de abril de 1939- Com qualquer tempo. Mesmo que chova canivete...

A chuvarada prosseguiu na segunda-feira. Dia e noite. Na terça de manhã, estiou. Abriu um solzinho. Os passarinhos voltaram a cantar nas árvores. O rio Tietê havia enchido, se espraiava. O rio estava alegre outra vez. Limpinho. Refulgia e refletia os tímidos raios solares.

De tarde, naquela terça-feira, dia 25 de abril de 1939, os dois quadros estão novamente em campo. Frente a frente. O São Paulo com a vantagem de um gol. Servílio, supersticioso, jogava com a 8. Sempre com a 8. Teleco, o goleador, que não conseguia acertar o canto do goleiro Pedrosa, vestia a 9- Agostinho de olho nele. Carlito, o Turco, estava com a camisa 10, na meia-esquerda.

O jogo começa, mas alguma coisa havia mudado na conduta das equipes. Se no primeiro encontro entre os dois timaços só dera o São Paulo, agora a situção se inverte: o Corinthians está com a macaca. É Teleco, é Servílio, é Brandão, é Lopes, é Jango, é Tião. Tricoteiam, deitam e rolam. Mas gol que é bom — o gol que dá o campeonato — quem é que diz que o gol sai? Não tinha jeito. Mas o Corinthians desce estraçalhando. Uma hora tem que sair, São Jorge!

Vinte minutos de jogo, daquele bendito segundo tempo. Teleco não marca. Servílio não marca. Lopes não marca... Brandão arrisca de longe, nada! Começa a chover novamente. Não é chuva brava, igual a de domingo. É o resto da água que ficara nas nuvens, que agora pinga, molhando as camisas.

Vinte minutos de jogo. A bola vem cruzada. Carlito, camisa 10, aquele Carlito de quem a zaga tricolor descuidou, sobe, sobe, sobe, as chancas encharcadas, os cabelos pingando, sobe e ... pimba!

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Pedrosa voa. A bola está nas redes do São Paulo, pombinha adormecida. A Fiel se levanta num urro descomunal. O Corinthians acaba de empatar a partida, vai levar a partida empatada até o fim.

Um toque sutil de Carlito. Com a cabeça? Com a cabeça, “seu” juiz? O u... O árbitro aponta o meio do campo. O árbitro chama-se Cardoso de Almeida. Sim. marcou de cabeça. O arbitro aponta o meio do gramado. Foi? Não foi? É? Não é? Carlito, camisa 10, está sendo sufocado pelos abraços. O preto Brandão brilha como uma lâmina de platina. Barcheta salta, salta, salta de alegria. Pedrosa meneia a cabeça... Ele sabe que não foi de cabeça. Ele sabe. Carlito também sabe. Duas opiniões abalizadas de corinthianos. Chico Mendes: “Foi de cabeça, sim senhor. E que não tivesse sido?” Oswaldo Casella: “Meu filho, vem cá”.

Oswaldo Casella estava atrás do gol do Pedrosa. Ele viu tudo. Tenso, engolindo seco, quase mordendo a língua, desesperado, corinthianamente ele estava atrás do gol do Pedrosa, ele viu quando Carlito subiu. Um dia, anos depois, Oswaldo Casella chamou o filho Cláudio — esse rapaz que desde os 12 anos pesquisa a história do Corinthians — , chamou o filho e disse: “Meu filho, vem cá. Eu vou contar a verdade, a verdade que eu vi. Foi com a mão. Só com a pontinha da mão. Mas foi um gol lindo!” Sim. o gol de Carlito foi com a mão. Agora os dois quadros estão deixando o gramado: o São Paulo sai com Pedrosa, Agostinho e Iracino; Fiorotti. Damasco e Felipelli: Mendes, Armandi- nho, Elísio, Araken Patusca e Paulo.

O Corinthians Paulista sai carregado nos ombros da galera. São onze campeões invictos.

No campeonato de 1939 o Corinthians substitui Carlito no ataque, coloca em seu lugar Joane. O Corinthians está arrasador. Começa com uma goleada de 6 a 0 contra o Juventus, Joane marca 2. No jogo seguinte, um eletrizante empate de 3 a 3 contra o Palestra, os alviverdes suando frio para igualar o placar no último minuto de jogo. O São Paulo F. C. desforra-se: vence o Corinthians por 1 a 0. É o dia 16 de julho... Mas o Corinthians continua embalado, acerta o Palestra no campo alviverde. 1 a 0, pega o Comercial, o Espanha, a Portuguesa de Desportos, mas a grande partida, ansiosamente esperada, é novamente contra o São Paulo, exatamente o time que havia quebrado a invencibilidade alvinegra naquele ano... Teleco faz o gol da vitória: 1 a 0! Os são-pau- linos, que vinham com o gol do Carlito atravessado na garganta, não têm do que reclamar. Até porque nem podiam queixar-se do juiz. Na vitória corinthiana desse dia 29 de outubro, o “bailarino” Servílio fez um gol de uma distância de mais de 20 jardas. Um gol maravilhoso! Sabem o que o árbitro fez? Anulou o gol de Servílio! Até hoje ninguém sabe o porquê... No dia 31 de dezembro, o povo esperando a passagem do ano, os foguetes preparados, a molecada das ruas não vendo a hora de malhar os postes das ruas (era costume fazer isso na noite de 31 de dezembro...), nesse dia o Corinthians

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Paulista vai a Santos enfrentar o time “peixeiro”. Ali, duas rodadas antes do final, o Corinthians conquista o tricampeonato: 4 a 1. No gol, Joel; na zaga, Jango e Dedão; na linha-média, Sebastião, Brandão e Munhoz; no ataque, Lopes (o de Batatais...), Servílio, Teleco, Joane e Carlinhos...

Na passagem do ano, um festão que não acabava mais!Tricampeão! Pela terceira vez, tricampeão. Vinte jogos, 17 vitórias, 2 empates,

apenas uma derrota. O ataque corinthiano havia marcado 63 gois, e tomado apenas 16. Tinha 47 gois de saldo! Teleco, com 32 gois, voltava a ser artilheiro. Carlinhos, com 10, figurava em segundo lugar, logo acima de Servílio, que havia marcado 8 — fora aquele do meio do campo, que o juiz anulara, contra o São Paulo F. C. Joane, que substituíra Carlito, fez 6. Passerine, que jogava pelo S. P. R., fez um gol contra e completou a estatística para o Corinthians... Na torcida, ouvia-se o grito de guerra: “É co’ pé, é co’a mão, o Corinthians é campeão”. O presidente Correcher, eufórico e brincalhão: “Con razón o sin razón, Corinthians tienesiem pre razón”.Um poeta anônimo fazia versinhos para Carlito: “Vem o Carlito, o beduíno, que entra em campo com sede, bancando sempre o ladino, só vê pela frente a rede!” Nas arquibancadas de madeira, a galera cantava o antigo hino do Corinthians Paulista: “Luctar, luctar... é nosso lema sempre, para a glória. Luctar, luctar... é conquistar os louros da vitória...”

Notas

1. O termo “Fiel”, que dava nome ao barco corinthiano, sem dúvida referia-se a uma homenagem à torcida. Acredita-se que foi por volta de 1937 que a palavra passou a designar a entusiástica torcida, que aumentava em número apesar de o time não levantar título no futebol havia já cinco anos!

2. A Liga de Futebol teve vida efêmera, mas durou tempo suficiente para que o Corinthians levantasse o primeiro campeonato por ela promovido. Em 1941, era criada a Federação Paulista de Futebol.

3. O episódio envolvendo o ponta-direita Lopes, especialmente quando narrado com a verve e a fabulosa memória do Dr. Wladimir de Toledo Piza, merece ser contado pela sua ingênua malícia e jocosidade: o pároco de Batatais telefonou ao Dr. Toledo Piza falando do jogador Lopes, daquela cidade. O padre também era corinthiano, claro, e queria ajudar o clube do Parque São Jorge. Toledo Piza mandou o rapaz vir, com uma carta-contrato. Não se pode esquecer que o futebol profissional estava começando a dar seus passos num terreno ainda não regulamentado. Lopes chegou, com a tal carta, e como o Dr. Wladimir de Toledo Piza estava ocupado no seu consultório da rua Barão de Itapetininga, encaminhou o rapaz à casa de uma irmã, pedindo que ela segurasse o documento. A seguir, tomou algumas providências: mandou buscar a carta, que ficou em seu poder, e alojou Lopes numa pensão perto da igreja de Santa Ifigênia. Até que se fizesse a inscrição do craque como jogador do Corinthians, um guarda-civil ficaria hospedado com ele na pensão, o que não era difícil. O irmão do Dr. Wladimir, Alarico de Toledo Piza, era médico-chefe da Guarda Civil. Não se sabe bem por que cargas d’água dois diretores do São Paulo F.C. ficaram sabendo da chegada do Lopes e da carta, e tentaram furar a inscrição do rapaz pelo Corinthians. Foram atrás da carta mas tiveram o azar de comentar o assunto num táxi cujo motorista era corinthiano e amigo do doutor Wladimir. O motorista chamava-se Vicente Chirichella. Mais que depressa Chirichella, após deixar os passageiros no destino, correu a avisar Piza da jogada. Havia são-paulino querendo botar areia no negócio. O Dr. Wladimir, solerte, tinha porém a situação sob

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controle: enquanto Lopes ia conhecendo a cidade de São Paulo, pajeado pelo guarda-civil especial­mente designado para a meritória missão, o jogador teve sua inscrição devidamente regularizada. Dias depois — contou o Dr. Wladimir de Toledo Piza, dando desopilantes gargalhadas — ele encontra na rua o são-paulino Lulu de Barros (que viajara no táxi do alvinegro Chirichella, juntamente com Firmiano Pinto Filho), e tasca:“Então vocês foram furtar a carta do passe do Lopes, hem!”Ao que Lulu, rindo, numa boa, respondeu:“O Piza, em futebol vale tudo.

4. No campeonato de 38, o artilheiro do certame foi Elísio Siqueira, o centro-avante tricolor, com 13 gois. Pelo menos com esse consolo o São Paulo F. C. ficou.

Menina de mascotinha no Corinthians era comum, no tempo de (a partir da esquerda) Jango, Jaú, Carlos, Brandão e Munhoz. (Foto Arquivo Corinthians)

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XLVI

O jogador Brandão

José Augusto Brandão — o Brandão — tem seu nome definitivamente ligado ao Corinthians como um de seus mais legítimos ídolos. Era de Taubaté e antes de ir para o Corinthians Paulista passou pelo Caveira de Ouro Futebol Clube, pelo Rebouças,

pelo Barra Funda e pelo República, todos da várzea. Daí seguiria jogando pelo Juventus, da rua Javari, e posteriormente pela Portuguesa de Desportos. Mas foi no Corinthians que ele se consagrou, conquistando os títulos de campeão de 37, 38, 39 e 41. Foi cinco vezes campeão do Brasil, jogando ao lado de craques como Jurandir, Gabardo, Romeu, Camera, Oberdan, Batatais... Participou do campeonato mundial de 38, na França. Sem dúvida, o Corinthians Paulista deu-lhe notoriedade e, principalmente, a afeição de uma torcida que fez de Brandão um referencial do que vem a ser um jogador corinthiano. Incansável, denodado, senhor de sua posição na intermediária do gramado, Brandão era, sozinho, um espetáculo. Pelo Corinthians Brandão disputou 27 partidas interesta­duais, das quais venceu 18. Foi vencedor do Quinela de Ouro, formando ao lado de Jango e Dino. Cavalheiresco dentro e fora do campo, conseguia exibir um jogo firme, mas extremamente leal. E tinha uma vantagem extra: era exímio tocador de violão. Alegrava as concentrações. Até nisso foi um craque!

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XIVII

O bailarino Servílio

Servílio de Jesus veio do Galícia, na Bahia, sua terra, para consagrar-se no Corin- thians Paulista. Tranqüilâo, aparentemente desligado, que ninguém bobeasse com

ele durante a partida: faturava o dele ao menor descuido. Elegante, suas passadas lembravam um bailado — o que lhe valeu o apelido popular: Bailarino. Chegou ao time do Parque São Jorge em 1938 e conquistou de cara o título de campeão invicto. Nesse campeonato Servílio começou fazendo 2 gois (o artilheiro foi Teleco, com 8). Outra vez campeão em 1939 e 1941. Campeão também do Quinela de Ouro e da Taça “São Paulo” em 1942. Servílio jogou na seleção paulista 14 vezes e 6 vezes na seleção brasileira. Servílio era um preparador de jogadas de gol, um armador emérito, que soltava a bola amanteigada — e Teleco estava lá para mandar a redonda para o fundo das redes do adversário. Servílio e Teleco se completavam: e Servílio fazia os arabescos antes do grito de gol! Foi artilheiro nos campeonatos de 1945, 1946 e 1947 — os três anos em que o Corinthians foi vice-campeão consecutivamente. Num jogo contra o São Paulo, em 1939 (o Corinthians venceu por 1 a 0), marcou o famoso gol de 20 jardas, que o juiz anulou... Grande foi Servílio de Jesus, o Bailarino.

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XLVIIITeleco fala de Teleco

asei dia 12 de novembro de 1912, em Curitiba, no Paraná, fiquei órfão de X ^ pai bem pequeno, não tinha 3 anos. Meu pai se chamava Jaime, tinha o

mesmo nome que ele colocou no meu irmão mais velho. Escolheram para mim o nome de Uriel. Quem escolheu o nome foi minha mãe, Alzira. Vó Matilde, mãe da minha mãe, estranhou, disse: ‘Não tem santo com esse nome’. Naquela época era costume colocar nas pessoas nome de algum santo, não existia Santo Uriel. Para brincar, vó Matilde arreliou: ‘Por que não bota no menino o nome de Teleco?’ Teleco não queria dizer nada, era um apelido inventado. Mas ficou sendo Teleco. Ninguém nunca me conheceu como Uriel Fernandes, estava só na certidão de nascimento. Nas peladas de rua sempre fui Teleco. Desde que jogava na calçada com bola de borracha, era Teleco. No Americano Futebol Clube, da várzea de Curitiba, Teleco. Quando fui jogar no Paranaense, continuei Teleco. E também no Britânia, que era um clube que tinha sido seis vezes campeão no Paraná, um ano depois do outro. O campo do Britânia era alugado no bairro do Juvevê, perguntaram se eu queria tomar conta do campo, aceitei. Fiquei jogando bola no Paraná, aprendi a chutar com os dois pés, sem fazer diferença. Para mim não fazia diferença a posição. Só não joguei no gol. Eu pensava: ‘Sou o inimigo ns 1 dos goleiros’. Como é que eu ia jogar no gol? Mas meus dois irmãos foram goleiros. O Jaime e o Nivacir foram goleiros. Acontece que ninguém conhece o Nivacir Inocêncio Fernandes como Nivacir. Ele ficou conhecido como King, goleiro do São Paulo Futebol Clube. O pessoal muitas vezes me dizia: ‘O Teleco, por que você não trouxe o King para o Corinthians?’ Mas eu nem sabia direito que o King estava jogando bem de goleiro. Para mim foi uma surpresa. O Nivacir meu irmão pegou o apelido de King porque ele era enorme, patoludo, e passou no Paraná aquele filme do King Kong, que todo mundo fazia questão de ver. Foi aí que pegou o apelido de King e nunca mais o largou. Nesse tempo a gente tomava conta do cinema, o Cine Palácio, no centro de Curitiba, ficava

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entre a praça General Osório e a antiga rua Quinze de Novembro. Faxina, lanterninha, carregador de cartaz, esse era o trabalho da gente. De sexta-feira para sábado e de sábado para domingo, eu dormia no cinema, no fundo tinha uma sala com camas. Depois do cinema eu ajudava na sapataria de um português chamado Agostinho, aprendi a fazer chuteiras. Jogava bola e fazia chuteiras.

Vim a São Paulo com a seleção do Paraná. Era a primeira vez. Os paulistas tinham uma seleção de ouro, mas a seleção do Paraná estava dando um calor danado, tinha se preparado durante seis meses para esse jogo. Aí o juiz resolveu dar uma mão para o pessoal de São Paulo: o jogo era lá na Floresta, veio uma bola violenta e bateu na cara do zagueiro Pizzato, do Paraná. Bem no nariz. Espirrou sangue, foi na cara mesmo, o juiz deu pênalti para a seleção paulista. Ficamos chateados, a gente perdendo de 1 a 0 injustamente, no intervalo todo mundo revoltado no vestiário. ‘A gente não volta mais para o segundo tempo’, falamos. E não ia voltar mesmo. Acabava o jogo ali, no protesto. Mas aí desceu no vestiário nem me lembro bem quem, se foi o Neco, se foi o Amílcar, foi um desses, e falou: Vocês têm razão, é isso mesmo, o juiz errou, qualquer um viu que a bola bateu foi na cara, mas tem uma coisa: o estádio está cheio, lotado até a boca. Se vocês não voltam pro segundo tempo, a gente não tem como segurar os torcedores. Eles podem querer pegar vocês no tapa, e a gente não tem como enfrentar’. No que nossa turma ouviu isso, falado assim, com boas maneiras, a gente pensou, ‘pera aí’, morrer aqui, não. Por causa de uma partida de futebol? Que é isso! Vamos voltar pro segundo tempo. E voltamos, mas de má vontade. Voltamos porque não havia outro jeito. Aí acabamos de perder de uma vez, o jogo tinha perdido a graça para o Paraná. A seleção de São Paulo jogava bem. Não lembro, acho que ganharam de uns três, quatro, não lembro. Voltamos para Curitiba. Nos outros dias ficamos comentando o jogo, as coisas que tinham acontecido, contando vantagem, o Paraná tinha feito bonito apesar de ter perdido o jogo. A gente ficava comentando o jogo num café que tinha lá na rua Quinze, almoçava, depois ficava tomando café e comentando. Nisso chegou um homem de terno, entrou, perguntou para um garçom: ‘Onde é que estão os jogadores da seleção?’ O garçom conhecia todo mundo, não sabia quem era o homem, apontou com a cabeça: ‘São aqueles ali roncando papo’; o homem se aproximou e disse que era representante do Corinthians Paulista de São Paulo e perguntou se eu, o Wilson Zanini e o Segoa não queríamos ir jogar em São Paulo, no Corinthians Paulista. O Segoa estava empregado, falou: ‘Tenho emprego aqui em Curitiba, não posso’, mas isso ele falou naquele dia, depois, bem depois, ele acabou indo jogar no São Paulo. O Wilson respondeu que precisava consultar a mãe dele antes de dizer sim ou não, o Wilson também trabalhava numa sapataria, era oficial sapateiro. Respondi a mesma coisa: ‘Vou falar com a minha mãe’. Minha mãe é quem decidia. O homem do Corinthians não forçou nem nada. Disse: ‘Vamos combinar o seguinte: vocês vão lá na casa de vocês, levam a proposta que o clube está fazendo. Se estiverem de acordo, se as mães de vocês consentirem, podem ir direto para a estação da estrada de ferro’. O trem para São Paulo saía às 4 da tarde. Minha

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mãe disse: ‘Que você vai ficar fazendo aqui, filho? Vai ficar sapateiro... ’A mãe do Wilson Zanini disse a mesma coisa, fomos para São Paulo no trem das 4.

O presidente do Corinthians era o João Batista Maurício, dentista, na época ele tinha consultório na avenida Rangel Pestana, quase em frente da Estação do Norte da Central do Brasil. Cheguei a pegar alguns móveis quebrados, mesas, cadeiras, que a torcida tinha quebrado por causa de uma revolta depois de um jogo com o Palestra, fiquei jogando no Parque São Jorge, me entrosei com os companheiros, o técnico foi mais de um, o Amílcar fiquei conhecendo lá, um grande jogador, gente muito boa, e o Neco, que já estava terminando a carreira dele, um grande companheiro, muitas vezes o Neco parava o treino e entrava em campo para ensinar a jogada, ele fazia a jogada melhor que ninguém, depois mandava o treino continuar. Meu salário foi uns 350 mil réis, mais ou menos. Parece pouco, não era o maior salário do mundo, mas o dinheiro tinha outro valor. Fui morar numa pensão ali perto da praça Princesa Isabel, na rua Guaianases, pagava cama, comida, o dinheiro dava, sobrava, além disso a gente ganhava muitos prêmios da torcida. Chegava um torcedor, dizia: ‘Nesse jogo aposto que você não marca nenhum’, eu respondia: ‘Marco, sim, senhor’, o torcedor dizia: ‘Aposto 20 mil réis’, eu ia lá e marcava. Ganhava um dinheirinho, porque eu sempre marcava. Os torcedores faziam isso de propósito, para me ajudar. Outras vezes, os torcedores apostavam arroz, feijão, um saco, dois: ‘Nesse jogo duvido que marque gol', é claro que eu apostava, no fim do jogo, no dia seguinte, o torcedor chegava, dizia: 'Olha, estou sem tempo de comprar o arroz, não tenho o feijão’, enfim, dava uma desculpa qualquer, e dava o dinheiro do feijão, do arroz. 'Compra o arroz você mesmo’, o torcedor dizia. Comecei a mandar dinheiro para minha mãe no Paraná, sempre economizei para o futuro, ninguém sabe o dia de amanhã, eu pensava, esse sempre foi meu modo de pensar, minha mãe comprou um terreno que tinha em frente de casa, comecei a reforçar o dinheiro que mandava para ela, ela conseguiu fazer uma casa. Era um tempo muito alegre, muito divertido. Joguei ao lado de grandes elementos, do Carlito, que a gente chamava de Turco, fui marcando meus gois, joguei com o Servílio, com o Brandão, sempre chutei com os dois pés, era centro-a vante, centro-a vante tinha de ser o homem-gol, se o centro-avante não marcasse gol a torcida não gostava, perdia o lugar no time. Nunca contei quantos gois marquei, no meu tempo ninguém contava. Marquei uma porção. Depois do Corinthians, continuei jogando, joguei no Santos, no Juventus, mas foi de brincadeira. Fiquei dez anos no Corinthians. nunca mais saí de São Paulo, meu neto agora joga no time das crianças no Parque São Jorge.”

Teleco foi uma legenda no Corinthians. Artilheiro por vocação, goleador por prazer, jogou numa época em que o atleta nem de longe dispunha dos recursos de assistência como existem hoje nos clubes de futebol. Contra o Palestra, na histórica decisão de 1937, entrou em campo machucado, o médico tentou impedir que jogasse. Jogou e marcou o

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gôl do título. Não apenas chutava com os dois pés: marcava de cabeça, de costas para o gol, de esquerda, de direita. As “viradas” de Teleco eram fantásticas. É apontado como um dos jogadores com a mais alta média de gois por partida. Uns dizem que marcou 150 gois. Outros, que marcou 243 gois em 234 partidas... Teleco não contava os gois que marcava. Mandava a bola para a rede, saía comemorando, alegre, brincalhão, como se tivesse feito mais uma travessura e sua avó dissesse: “Ah, esse Teleco!”

Uriel Fernandes, o genial Teleco, contou pedaços de sua vida quando, já bastante adoentado, havia deixado de tomar conta da sala dos troféus do Corinthians Paulista. Estava morando numa casinha modesta num bairro de Guarulhos, município da Grande São Paulo1.

Nota

1. Wilson, companheiro de Teleco que veio com ele para o Corinthians, teve carreira fugaz no Parque São Jorge. Chegou a jogar algumas partidas, poucas, mas contundiu-se e deixou o clube.

Teleco, campeão pelo Corinthians em 37, 38 (invicto), 39 e 41. Vice-campeão em 36,42 e 43- Afastado do futebol, ficou cuidando da sala de troféus no Parque São Jorge. Várias das taças, bronzes e cartões de prata ali exibidos o grande jogador corinthiano ajudou a conquistar. (Foto Arquivo Corinthians)

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Teleco não desperdiçava oportunidades. Foi um tormento para as defesas, como nesse jogo contra o Palestra, em 1940. (Foto Arquivo Corinthians)

Teleco, hoje, com o neto. (Foto Hilton Ribeiro)

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X I I X

Um clube com vocação poliesportiva

Para um clube que nasceu com plena vocação poliesportiva, não é de admirar que a primeira taça tenha sido conquistada numa competição de... pedestrianismo! E

os mesmos atletas que conquistaram o troféu também jogassem... futebol. Sem dúvida, é bastante provável que, na realidade, as primeiras taças tenham sido disputadas e ganhas nos jogos da várzea, na fase de organização do clube, mas delas ninguém sabe o paradeiro. Não mais existem para documentar o valor dos primeiros heroísmos corinthianos.

Mas aos poucos o Corinthians Paulista passou a dedicar-se com afinco e entusiasmo a praticamente todas as atividades esportivas, e em cada uma delas construiu uma história, uma saga, uma legenda.

Os primeiros nadadores surgiram quando foi adquirida a primeira gleba do Parque São Jorge, beirando o rio Tietê. A natação era divertimento, lazer. Começou como uma brincadeira agradável nos dias quentes, onde a garotada aprendia a nadar nos cochos. Depois, as competições, organizadas nos pontões construídos com tábuas pregadas em tambores de latões vazios. As balizas das raias eram cordas com pedaços de madeiras que serviam de bóia para mantê-las à superfície da água. Entre os nadadores pioneiros, moças e rapazes! Hilda e Zélia Coltro, Helene Fronciollo, Abigail Salgueiro, Valentina Borbolla, Antenor Ferreira, o Paraíba, Ricardo Grosche Filho, Aníbal Borbolla, Aírton Caratori, o Cebolão, e o legendário Francisco Piciocchi, o famoso Tantã, que mais tarde seria um dos torcedores mais queridos e admirados do Corinthians Paulista... O primeiro técnico de natação? Del Debbio! Depois veio Mário Carlini, que deu impulso definitivo ao esporte. E Raul Soares, o Peru, o primeiro técnico de natação remunerado no Parque São Jorge. Peru, depois Napoleão Bucchi... E o nadador Roberto Pasqua, que depois assumiria a presidência do Corinthians...

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O boxe no Corinthians começou em 1943 com Benedito Santos, o Ditão. Foi ele quem fundou o Departamento de Pugilismo. Depois vieram Luís Campos Soares, o Gaúcho, Maurício Campos, Domingos Inácio Lameira, Nélson Martins Fernandes, Jorge de Jesus de Sousa, Geraldo de Jesus, Ângelo Silva. Arlindo de Oliveira, Leo Koltun...

O judô começou em 1963 por iniciativa de alguns associados que gostavam desse esporte: José Carqueijo, Geraldo Cruz, Valter Augusto Marques, Potiguara Ortega, Valdemar Cardoso, Lauro Stocmann, Romeu Garbim, Dimas Pelegrini, José Maida, José Borbolla, Diógenes Braga... Assim como quem não quer nada, começaram treinando no setor da peteca, perto dos quiosques... Em poucos meses, o clube já contava 46 atletas adultos e 43 atletas infanto-juvenis, que participavam ativamente das competições de judô.

No começo, aquele clube modesto tinha em sua sede apenas uma mesa de pingue-pongue — cuja gaveta era usada como “uma" nas eleições da diretoria! Em 1959, Benno Schimmidell desdobrou-se para que o Corinthians também fosse conhecido e respeitado nas competições de tênis de mesa. Conseguiu seu intento. Dois anos depois, quando o Corinthians completava seu 5Is aniversário de fundação, uma equipe alvinegra disputava e conquistava com raro brilho os troféus “Wadih Helu” e “Maximiliano Ximenes”, abrindo novos horizontes para a prática do tênis de mesa no clube. Biriba, defendendo o Corinthians, mais tarde se sagraria campeão individual no Torneio Internacional do Paraguai...

Há quem se lembre da primeira quadra de basquetebol inaugurada em 1928 no Parque São Jorge. Piso de saibro, cor-de-rosa. gradis de cimento armado, perfeitamente nivelada, foi considerada uma das melhores de São Paulo. Foi nela que o Corinthians Paulista principiou a conquistar uma série de títulos regionais, estaduais, nacionais e internacionais. Depois do futebol, foi o basquete o esporte que mais emoções e alegrias deu ao torcedor corinthiano. A inauguração da primeira quadra de bola ao cesto foi marcada por um jogo interestadual com a equipe do América, do Rio de Janeiro. Com 20 minutos de partida, os cestobolistas corinthianos estavam vencendo por 16 a 2! Vailatti, Toni I, Capella, Cateli. Bambista. Chumbão e Cavalheiro foram os atletas dessa jornada histórica. O América não voltou para a segunda fase da partida... Em 1932, o bola ao cesto corinthiano conseguia outro feito notável: campeão das equipes secundá­rias. Seus atletas eram forjados no próprio Parque São Jorge: Cavalheiro, Irineu, Rosa, Toni II. Gemignani, Capella jogavam de igual para igual com as equipes da Athletica São

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Paulo, Palestra Itália, Espéria... Em 1936, outra consagração: obtinha o título máximo de cestobol em São Paulo... De 1950 a 1956, o Corinthians sagrou-se campeão da cidade de São Paulo, alcançando o heptacampeonato! Em 1965, os cestobolistas corinthianos atingiam o melhor índice técnico entre todos os concorrentes: conquistavam, invictos, o título metropolitano. Campeões estaduais com apenas uma derrota... Foram campeões sul-americanos, após conquistar a taça “Brasil”... Entre suas glórias internacionais, registra-se a vitória contra o Real Madri, bicampeão da Europa, em empolgante partida realizada no ginásio corinthiano no Parque São Jorge... O cestobol alvinegro equipara- va-se ao melhor do mundo... Borbolla, Luisinho, Angelim, Cadrobi, Brás, Sacoman, Vladimir, Rosa Branca, Ubiratan, Renê, Mical, Peninha, Edward, Ortiz, Gilberto, Eduardo, Pedro Ives... Todos eles elevaram bem alto o nome do Corinthians.

Na malha também brilhou a camisa do Corinthians. Um pequeno grupo de associa­dos começou a praticar esse esporte no clube em 1959: Ambrósio Mariana, Avelino Teixeira Filho, Valdemar Cardoso, Jonas Ribeiro Nobre, Albino Pimenta, Olímpio Caraça, Afonso Andreolli, Paulino Nascimento, Amândio Augusto, Elísio Fernandes, Joaquim Neves Jo s é Fracari Júnior, Rafael Osório Peres, Máximo Batista Cardoso... Mal se iniciou a prática desse esporte, o Corinthians conquistava seu primeiro título naquele mesmo ano: venceu o Torneio Início do campeonato paulista dessa modalidade... Daí em diante, conquistas e mais conquistas.

Carlos Joel Nelli foi um dos nomes mais conhecidos da imprensa esportiva brasi­leira. Como diretor de A G azeta Esportiva, notabilizou-se pelo incentivo aos esportes em geral e especialmente pelo apoio entusiástico na divulgação dos acontecimentos esportivos de todo o País. Durante anos, A G azeta Esportiva foi uma espécie de seu segundo lar, sua trincheira de luta em memoráveis campanhas. Pois o nome de Carlos Joel Nelli, muitos anos antes de assumir sua importante função no referido jornal, esteve indelevelmente ligado ao atletismo no Sport Club Corinthians Paulista. Joel Nelli foi levado ao Parque São Jorge pela equipe de Alfredo Schurig e lá dirigiu como técnico os primeiros atletas do clube, fazendo deste esporte-base uma das atividades mais desen­volvidas na Fazendinha. A permanência de Joel Nelli no Parque São Jorge coincidiu com alguns dos momentos mais significativos da prática do atletismo no Corinthians, valendo lembrar que, ao mesmo tempo, o futebol atravessava um período bastante difícil. Em 1933, o Corinthians participou pela primeira vez de uma competição oficial no Campeo­nato de Estreantes da Federação Paulista de Atletismo. Pedro Lima, um estreante, obtinha recorde em sua categoria nos 300 metros rasos, fazendo 37 segundos e oito décimos. Na época, os atletas corinthianos que se dedicavam às provas de corrida treinavam numa pista de carvão que havia sido construída em volta do campo de futebol. Os que se

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dedicavam a saltos e arremessos, treinavam num tanque de areia que fora feito próximo à lendária biquinha. As atividades atléticas, que tinham atingido o auge, foram em parte desativadas em vista da reforma do gramado, que teve de ser ampliado para obedecer às medidas oficiais. Além dejoel Nelli. também muito contribuiu para o desenvolvimento do atletismo no Corinthians o atleta Andrade Marques, saindo das fileiras da antiga Liga de Esportes da Força Pública do Estado. Carlos Joel Nelli entrou para a direção técnica do atletismo no Corinthians logo após sua vinda de Los Angeles, onde, como atleta, fora representar o Brasil nos Jogos Olímpicos realizados naquela cidade dos Estados Unidos. Em 1936, Nelli foi novamente convocado para defender as cores do Brasil nas Olimpía­das de Berlim, na Alemanha. No seu regresso, foi forçado a deixar suas atividades no Parque São Jorge, pois a direção de A G azeta , onde trabalhava como jornalista, o designara para assumir a sucursal do jornal na cidade de Belo Horizonte... Mas perma­necem na lembrança nomes de atletas que marcaram as glórias daqueles primeiros tempos... Sinibaldo Gerbasi, Pedro Nagasse, João Tancresi, Roberto Seixas Queirós, Mário Zanzi, Hélio Ortiz, Júlio Vechiatti, João Soares Oiticica, Geraldo de Oliveira, Carlos Paiole, Ulisses Francisco, Aristides Silva, Francisco Lalli. Francisco Scabelo, Teodomiro de Andrade, Valdemar Melchiori. José Ricardo Rodrigues, Tucididis Civatti...

O Corinthians é um clube que não deixa cair a peteca... Eis uma frase que poderia estar no pórtico de um dos setores mais antigos do clube — e ainda em plena atividade: o dos “petequeiros”! Começou em 1929, como recreação. Continua como recreação, mas de tal forma organizado, com regras estabelecidas para sua prática, que pode ser considerado um esporte... para divertir. O setor de peteca do Corinthians é uma tradição que a princípio se valeu da quadra de voleibol, perto da antiga caixa d’água. Depois ganhou instalações próprias e adequadas, aumentou o quadro de militantes e se tornou um sucesso. A peteca transformou-se num entretenimento social, aliando ao “esporte” um rol de festas, recepções, reuniões de congraçamento... Tudo graças aos primeiros petequeiros, entre eles José de Sousa — que confeccionava as petecas — , Julião Ângulo, Francisco Toffoli, Raul Gonçalves, Evaristo Correia de Toledo, ítalo Galarini, José Abílio, José Lopes Pereira Filho, Jack de Castro. Bráulio Teixeira. José Nunes Costa, José Dias Soares, Manoel Barreira, José Toffoli. Isidoro Zanzele... Depois foram chegando ou­tros.. . Cláudio Vaselli. Mário Barletta. Francisco Dionísio Mendes, Oswaldo Valente, Luís Sacoman Neto, Geraldo Ayeta... Hoje, o Departamento de Peteca do Corinthians é um lugar agradável, onde se respiram reminiscências, e onde — dizem — qualquer candi­dato a algum cargo no Corinthians deve, se quiser ter êxito, ir bater um papinho com a turma alegre que lá se reúne desde que o rio Tietê passava dentro do clube...

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Ao contrário da peteca, cuja prática no Corinthians já tem muito mais de meio século, o “tamboréu” é dos últimos esportes introduzidos no território do Parque São Jorge. Começou em 1959 quando Palmaleoni Ferraço apareceu na Fazendinha, numa bonita manhã de domingo, portando uma rede, uma bola de tênis, dois “pandeiros”. Encontrou João Girello, convidou para bater aquela bolinha. Escolheram um lugar tranqüilo, mas, por acaso, apareceu por lá Osvaldo Ribaldo, que, coitado, estava com o braço engessado por causa de uma fratura. Mesmo com um braço só, Ribaldo quis saber aonde é que os dois companheiros iam, e foi assim que esse “esporte de praia” se instalou, e deu certo, no Parque São Jorge. O lugarzinho discreto, perto do antigo bar da praça de esportes (que não existe mais), começou a ser visitado por outros “curiosos”, Antônio Azevedo e Milton Molina... E assim se criou o Departamento de Tamboréu. Os próprios associados cuidaram das instalações... No dia 8 de dezembro de 1959, houve a inauguração oficial — com uma churrascada da qual participaram os fundadores Ferraço, Girello, Ribaldo, Felício Barletta, Antônio Azevedo, Milton Molina, Francisco Ariza Filho, Mário Soares, Abílio Cepera, Livans de Castro, e muitos associados, vindos de outros departamentos, que começaram a se interessar pelo novo esporte. O tamboréu instalou-se em definitivo nas proximidades da biquinha, onde permanece, num dos cantinhos bucólicos do Parque São Jorge. Cláudio Cristóvão do Pinho, o inesquecível ponta-direita alvinegro, também ele um praticante assíduo do tamboréu nas praias santistas, teve a honra de ser homenageado com um torneio que levou seu nome, organizado pelo entusiasmo e pelo dinamismo da equipe que continua a manter, no seu “cantinho de estimação”, o mesmo espírito de alegria e amizade que deu início ao departamento.

O remo, no Corinthians Paulista, teve início com a compra de 10 barcos usados do Clube Espéria, em 1926. O presidente era Felipe Collona, a quem alguns associados consultaram sobre a possibilidade de o Corinthians dedicar-se também àquele esporte uma vez que água é que não faltava — o Tietê estava ali mesmo a alguns metros, dentro do Parque São Jorge. As dificuldades eram muitas, mas muito ajudou o fato de Alfredo Schurig estar na vice-presidência da agremiação e o tesoureiro ser o Costa Mano, que tinha visão e sabia que nada mais natural que o Corinthians, mesmo não sendo um clube de regatas no nome, o era de fato e geograficamente propenso a tanto. Apesar de bem usadinhas, foi uma festa quando as embarcações chegaram ao Parque São Jorge. Os associados, dizem, admiravam-nas como se fossem jóias de raro valor. E eram... Para abrigar os barcos imediatamente se ergueu um galpão. Aos domingos, faziam-se cami­nhadas de associados para apreciar os barcos na sua garagem... Mais tarde, o primeiro estaleiro era instalado sob as arquibancadas de madeira do campo de futebol. Depois foram feitas catraias de fundo chato para recreação dos associados... Associados trouxeram, por sua conta, sandolins de zinco e madeira. Até mesmo apareciam por lá

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lanchas a motor! O Corinthians oferecia aos domingos um espetáculo inusitado, nunca imaginado. Um parque náutico. O rio limpo, refletindo o céu sereno ou enfarruscado... garças brancas ao longe, vegetação verde circundante... O remo começou no Corin­thians mais como distração do que como esporte. Os primeiros corinthianos a dar-lhe contornos técnicos foram Augusto Vailatte, Santos Melo, Neme, Barsotti... A primeira prova: a “Volta da Ilha’7. Defenderam as cores corinthianas Massaro, Bimbo, Soria, Chicão, Ferruccio. Era a estréia: o barco Nenê não fez feio. Um sucesso! O Corinthians filiou-se ã Federação Paulista da Sociedade de Remo. As primeiras regatas das quais o clube do Parque São Jorge iria participar estavam quase por acontecer, e os barcos em construção na Fazendinha não ficaram prontos. Corre o presidente João Batista Maurício (era 1933) a pedi-los emprestados aqui e ali... No Clube de Regatas Tietê, na Escola de Educação Física da Força Pública... O Corinthians saiu-se bem. dadas as circunstâncias da improvisação... Contratou-se o primeiro técnico: Raul Macedo de Carvalho... O remo não está simbolizado por acaso no distintivo do Corinthians. Ele continua a ser um capítulo importante das glórias corinthianas, um exemplo de dedicação e disciplina, de amor e respeito pelas cores alvinegras, graças a Carlos Di Lion, Primo Bigliate. João Mani, Antônio Sanches, Mário Pinto, Hélio Poleto, Cláudio Nardelli, Paulo Batistela, Renato Camargo... E a todos quantos, ao longo do tempo, os têm seguido nas conquistas com a mesma garra e a mesma dedicação...

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Este é considerado um dos maiores quintetos de bola ao cesto de todos os tempos: Amaury, Wlamir, Renê, Ubiratan e Rosa Branca. (Foto Arquivo Corinthians)

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Cântico dos cânticos ao som dos tamborins

vós, ó infiéis, lembrai-vos de que à sombra desta bandeira preta e branca habitam os fantasmas imortais: este é Amílcar Barbuy, o do Rio das

Pedras, o grande capitão, o centro-médio maestro das grandes emoções, campeão em 14, 16, 22 e 23.

Este é Rodrigues. O Paquito. O que corria pela extrema-esquerda feito um corisco, o que, apesar da idade, e com as pernas esfoladas, tornava-se jovem ao defender o time.

Aquele era chamado de Tatu. Jogo fuçador, grande no drible, rápido no disparo do tiro de misericórdia. Tinha sotaque de Taubaté. Altino Marcondes, Tatu, o que selou o primeiro tricampeonato, com aquele gol de 30 jardas no campo do Paulistano no ano de 24. Grande Tatu.

Este outro fantasma é Pedro Grané, o canhão “420”, um touro com asas de borboleta. Lépido no salto, esvoaçante, limpava a área. O Grané que mandou para dentro do gol com bola e tudo, o pulso trincado, o estupendo goleiro carioca Jaguaré.

Este é Del Debbio. Armando Del Debbio, que ajudou a carregar a bandeira de glórias. Del Debbio que não brincava em serviço e do qual se diz que nunca jogou mal sequer uma partida. Sempre impecável. O grande jogador, o grande técnico. Aquele que foi mostrar seu futebol na Itália e voltou moído de saudades.

Estes três rapazes são os três Peres: um o mais. antigo, foi campeão em 14, meia-direita, um craque ao qual qualquer craque sentiria honrado em atar os cadarços das chuteiras.

O segundo Peres jogou na extrema-direita, tricampeão em 22, 23 e 24. Grande figura, um astro.

O terceiro Peres foi de 29, integrou o Esquadrão Mosqueteiro. Como os outros dois, tinha sangue e raça. Eram dignos representantes daquela alma indómita dos espanhóis

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carvoeiros, daquela gente áspera que subiu na vida cosendo sacarias rotas nos armazéns do Brás.

Este outro fantasma de camisa brilhante é Guimarães. José Pereira. Magnífico. Corria o campo, estava em todas. Da zaga à extrema, era o senhor do jogo. Alguns dizem que, depois dele, nunca mais houve outro igual.

Gambarotta, houve dois. O hercúleo Alberto, que lembrava um gladiador. Tricam- peão (de 22 a 24). O outro Gambarotta chamava-se Guido. Pequeno, tinha o apelido de Gambinha. Compensava a fragilidade com a fibra. Usava gorrinho. Ajudou a vencer o Barracas, o Bologna, e contra o Tucumán, nos 7 a 2, fez três.

Jango, o que manteve seu jogo regular e firme, uma legenda. João Freire Filho. Mas o João sempre foi Jango para a torcida. Não fazia firulas, não inventava. Jogava o arroz-e-feijão bem temperado, o trivial fino, conquistador de títulos, impecável, tornou- se uma legenda ao lado de Brandão e Dino.

Dino era o Pavão. Osvaldo Rodolfo da Silva não era presunçoso. Tinha o jogo bonito, colorido, como a cauda do pavão. Elegante, majestoso, firme. Jamais deixou a vaidade atrapalhar a seriedade com que descia para o ataque ou recuava para a defesa. Um grande craque.

Mário Milani, José dos Santos Lopes, Agostinho (que tinha sido zagueiro do São Paulo no jogo de 37, em que Carlito fez o gol com a mão) e Chico Preto. Grande zaga: Agostinho e Chico Preto, no campeonato de 41! Domingos da Guia — um assombro, ao estrear no Corinthians no dia 19 de março de 1944. Parecia um sonho: era um jogo contra o Comercial, 7 a 3 no final para o Corinthians. Bino no gol. A zaga: Domingos da Guia e Begliuomini. A linha média: General. Brandão e Dino. O ataque: Agostinho, Servílio, Milani, Nandinho e Válter. O Corinthians atravessava a fase dos... vice-campeonatos. Domingos da Guia, o que era flamengo e veio buscar um lugar no coração corinthiano, e se tornar, também ele, um grande alvinegro.

Tantos nomes, tantas legendas. Eles continuam a entrar em campo à sombra da bandeira. São nomes tutelares, protetores. A torcida não sabe. não-percebe, mas eles estão lá, sentados nas arquibancadas, com suas faces invisíveis, silenciosos e dóceis, torcendo pelo time. Não riem-, não choram. Mas a brisa que desfralda as bandeiras alvinegras é um pouco o sopro de suas bocas misturado ao grito das gerais.

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Pedro Grané, cognominado “420”. Um tiro de canhão nos pés. Impossível dizer se mais ou menos potente que o chute de Neto. Grané jogava na zaga e era o batedor de faltas. (Foto Arquivo Corinthians)

Del Debbio. (Foto Arquivo Corinthians)

Gambinha. (Foto Arquivo Corinthians)

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LI

Quem não tem bom humor, é melhor torcer para outro clube

Um clube de futebol que aguarda 22 anos e 8 meses na fila de espera do título de campeão, e nem por isso perde o rebolado, e nesse tempo todo continua

crescendo, cada vez mais amado pela torcida fiel, um clube assim é predestinado. E tem que ter bom humor.

O bom humor corinthiano é antigo. Vem do tempo em que um grupinho de operários vivia espalhando pelas esquinas, botecos, alfaiatarias, barbearias e campos da várzea, uma idéia que parecia piada: fundar um clube — sem ter sede, campo, bola, camisa. E sem um tostão furado no bolso. As pessoas ouviam, e davam risada.

O bom humor prosseguiu depois que o clube tinha sido fundado e estava funcio­nando numa salinha com um armário e uma mesa de pingue-pongue: o pessoal do clube queria a todo custo construir, sem dinheiro, um estádio num charco da Ponte Grande, num lugar chamado Floresta.

Outra vez se riram deles.Mas o estádio foi construído e nele o clube conquistou o título de campeão de

futebol que vale 100 anos: campeão do Centenário da Independência do Brasil.Com o tempo, novas vitórias e uma porção de crises, o bom humor virou marca

registrada do clube e tornou a funcionar quando, anos depois, os corinthianos mergu­lharam na aventura de adquirir uma enorme gleba de terra numa das regiões menos valorizadas de São Paulo, nas bordas do rio Tietê, um lugar ermo e hirsuto rodeado de lagoas, chácaras e garças silvestres. Os associados do clube pensavam em construir ali uma cidade dentro da cidade, e foi o que acabou por acontecer. Ergueu-se no local a Cidade Corinthians. O bom humor corinthiano inventou então que essa cidade começa no n2 777 da ma São Jorge, conforme consta até mesmo nos manuais da Prefeitura, mas se a gente for verificar direito as placas, constatará que o nQ 777 da rua São Jorge não existe. Não parece piada?

Outra coisa bem-humorada no Corinthians é que o “clube dos operários” — como era chamado no começo de sua existência, 1910 — situa-se hoje entre duas avenidas de nomes diametralmente opostos: uma avenida é a Marginal; a outra avenida é Condessa.

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A Condessa é Elizabete Robiano — uma mulher piedosa que fundou uma congregação de irmãs de caridade1.

Na avenida da Condessa Elizabete, o Corinthians fez erguer uma espécie de arco do triunfo com o distintivo do clube no alto. Passado o arco, vê-se pintada no chão a figura colorida de São Jorge, montado no seu cavalo e enfiando uma lança nas fauces de um dragão.

Poucos passos à direita da figura de São Jorge fica um lampião de gás, fac-símile daqueles da antiga São Paulo Gaz, homenagem aos “cinco operários fundadores do clube” e ao falecido presidente Ernesto Cassano, que comprou a primeira gleba das terras onde agora se espraia a Cidade Corinthians.

À esquerda do portão principal do clube, antes da barbearia, quase em frente à torre onde funcionou outrora a primeira caixa d'água. pode-se ver a estatueta de um bandei­rante paulista com seu bacamarte. Não parece, mas é um dos mais gloriosos troféus, conquistado a ferro e fogo em 6 de fevereiro de 1955, num jogo contra o Palmeiras, o qual, por superstição, nesse dia trocou a camisa verde por uma toda azul, mas em vão. Aos 10 minutos de jogo, Luisinho, o jogador de menor estatura física do Corinthians, o Pequeno Polegar com lugar cativo no coração da galera, marcava seu décimo-quarto gol no campeonato. O máximo que o Palmeiras conseguiu foi um suado empate, insuficiente para arrebatar o título ao Corinthians. O bandeirante está num pedestal, nos jardins do Parque São Jorge, posto ao relento. Sob sol, chuva, vento, o bom humor o transformou numa homenagem a todos os torcedores sem capa e sem guarda-chuva das gerais e arquibancadas.

Outra coisa bem-humorada do Corinthians é que o clube viciou em conquistar títulos de centenários. Papa quase todos. Em 88, foi buscar o título de campeão do Centenário da Abolição da Escravatura. Em 91. disputou com o Flamengo, do Rio, e venceu, o troféu “Centenário da Antarctica”.

Quem não está bem a par do bom humor do Corinthians pode estranhar que o clube se interesse e prestigie inclusive centenário de cervejaria, mas o respeito e consideração aos fabricantes da diurética bebida também têm história e vêm de longe, do tempo do Bom Retiro, onde um dos cordiais vizinhos do clube era a Cervejaria Germânia, sem esquecer, claro, que os primeiros campeonatos do Corinthians foram disputados no Parque... Antártica!

A Germânia foi a fornecedora oficial da primeira chopada do clube, uma iniciativa extracampo que depois se tornou hábito entre os mosqueteiros. Aliás, foram a Cervejaria Germânia e a Cervejaria Antarctica que a diretoria corinthiana consultou em 1916 para

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tentar fazer o que seria, talvez, o primeiro contrato de m arketing num estádio de futebol. A proposta era a seguinte: uma ou outra cervejaria emprestaria ao clube determinada importância em dinheiro, que o clube devolveria em parcelas mensais, para poder construir as arquibancadas no campo da Floresta. Em troca, o clube autorizaria a fábrica de cerveja a montar barzinhos em volta do campo. Quase deu certo. Não deu certo apenas porque a Primeira Grande Guerra atrapalhou a vida da Germânia; e o gerente da Antarctica, que se interessara pelo negócio, faleceu repentinamente.

Mas valeu a intenção. E nem por isso o bom humor corinthiano abandonou o chope. Depois das vitórias, era praxe os associados se reunirem na sede e confraternizarem. A bebida corria de graça. Corria tanto que, numa assembléia, o tesoureiro, depois de fazer as contas, concluiu que havia associado bebendo numa comemoração mais do que a mensalidade que pagava. O tesoureiro deu o alerta, sugeriu que daí para frente todo associado pagasse 100 réis por copo de chope. Foi o mesmo que jogar pó-de-mico no salão. Os protestos foram gerais. Mas o bom humor corinthiano achou uma saída: a mensalidade foi aumentada, e o chope continuou de graça.

Nos vinte e tantos anos em que o Corinthians ficou chupando o dedo sem título de campeão de futebol — embora, claro, se fartasse de chegar perto e levantasse um monte de títulos gloriosos em outras modalidades esportivas — , os corinthianos precisaram exercitar seu bom humor para suportar com cavalheirismo as farpas e maledicências dos adversários. Mas até na maledicência inimiga havia precedente histórico. A primeira vez que o clube mudou de sede, da rua dos Imigrantes para a rua dos Protestantes, o motivo principal era rebater a chacota dos adversários, que chamavam o Corinthians de clubinho. O Corinthians foi alugar então uma sede quase de clube grande. Mas mesmo como clubinho, já havia armado um timão. O apelido Timão vem daí, do bom humor desse tempo. O bom humor corinthiano é que fez o apelido Timão grudar para sempre.

Durante os vinte e tantos anos de jejum, os inimigos espalharam que havia um sapo enterrado atrás de uma trave no Parque São Jorge. Era por isso, diziam, que o time não ganhava o título. Os corinthianos decidiram então juntar o bom humor a algumas medidas práticas e começaram a acender velas de vários tamanhos e cores, e a colocar vasinhos de comigo-ninguém-pode e espadas-de-são-jorge junto a uma imagem de cimento de São Jorge (um pouco kitsch, é verdade) entronizada em um dos recantos mais recolhidos e remansosos da Cidade Corinthians. Embora se diga que São Jorge não é santo de papel oficial passado e rubricado pela Santa Sé, os corinthianos de um modo geral o continuam prestigiando e, por mais que mudem as diretorias do clube, ao que se sabe ninguém até hoje pensou em demitir o santo de seu cargo de padroeiro. É claro que nas horas de aperto os corinthianos se socorrem também dos demais santos e anjos da coorte celeste, nisso incluído o Padim Cícero.

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Todavia, mesmo com toda fé da Fiel (o melhor sinônimo perfeito até hoje inventado para definir a torcida corinthiana), São Jorge não estava resolvendo o problema, de modo que os mais cismados começaram a dar crédito à mais lúgubre versão inventada pelos detratores do Timão: diziam, à boca pequena, pelas costas, que naquelas terras em volta do gramado funcionara, em tempos imemoriais, uma fábrica de pólvora, que um dia explodira, mandando para os ares os corpos de vinte e dois operários. E que as almas dos falecidos haviam ficado por ali, zanzando. nas bandas do Tatuapé, azucrinando o clube.

Essa versão macabra quase aluiu o bom humor corinthiano por uns tempos, até porque o futebol é uma caixinha de superstições e existem, de fato, certos gois que a trena e o compasso não explicam e parecem obra de um pé de fantasma. Mas depois, fazendo-se uma investigação séria e competente, descobriu-se que jamais houvera na região nenhuma fábrica de pólvora ou mesmo de busca-pés. Portanto, tratava-se de uma besteira arquitetada por adversários farsantes. Em todo caso. se duendes houvesse interferindo nos destinos do clube. Basílio foi encarregado de dar uma camisa simbólica do Corinthians a cada um deles, porque sempre é bom ter simpatizantes neste e no outro mundo. E assim se fez. Basílio obedeceu ao bom humor dos corinthianos.

Naquela noite mágica de 13 de outubro de 1977, perante a torcida de 87 mil pagantes, no amável Recreio do Morumbi — que é o apelido cordial que os corinthianos dão ao estádio são-paulino Cícero Pompeu de Toledo — , Basílio, numa jogada aos 36 minutos do segundo tempo da partida contra a valorosa Ponte Preta, exorcizou os sofrimentos da galera, espantou o mau-olhado, as cismas e os temores da torcida, recoseu o estandarte das glórias alvinegras, recompôs o bom humor da raça e redimiu a alma de todos os corinthianos vivos ou mortos.

Outro tema caro ao bom humor corinthiano é a biquinha do Parque São Jorge. Segundo minuciosos levantamentos hidráulicos, o Corinthians é o único clube no mundo que possui uma bica de água mineral em seu território. Todo associado tem direito a beber dela a hora em que bem entender, e também os visitantes, quando convidados.

A história dessa bica é algo misteriosa. Jamais secou, mesmo na estiagem. Mas ninguém sabe dizer com clareza como é que ela foi parar ali. no meio do trajeto de quem vai em direção à referida estátua do guerreiro São Jorge. O bom humor corinthiano administrou durante bom tempo a lenda segundo a qual o presidente Ernesto Cassano, às vésperas de assinar, em 1926. no 6a Cartório de Xotas de São Paulo, a escritura de compromisso de compra daquela gleba que seria o começo do Parque São Jorge, teve de enfrentar a renitente oposição de alguns pessimistas, que achavam que era terreno em demasia para o clube alvinegro. Evidente, por mais imaginação que Cassano tivesse, por maior que fosse sua premonição do futuro, era impossível prever, à época, que a

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zona leste de São Paulo deslancharia como deslanchou, substituiria as chácaras de hortaliças do cinturào-verde da cidade por enormes prédios de apartamentos e chegaria a ser servida pelo metrô, uma de cujas estações se chama exatamente “Corinthians”.

Diz o bom humor corinthiano que Cassano usou, então, como argumento para dobrar a oposição, a tal biquinha que hoje está lá. Só a bica d’água já valia o preço de todo o terreno. O resto da gleba era... brinde!

O fato é que a zona leste, o Tatuapé, que marcavam passo, começaram a tomar fôlego novo com a chegada do Corinthians. Se antes era uma região procurada para piqueniques, excursões campestres, no máximo romarias que iam a Nossa Senhora da Penha de França pagar promessas, aos poucos foi se transformando num refúgio da classe média em busca de novos ares e um pouco mais de tranqüilidade.

A bica conservou-se como uma reminiscência grata aos saudosistas e prossegue com a fama de ter poderes que a ciência não explica. Consta que quem daquela água bebe se converte ao corinthianismo para o resto da vida. Citam-se casos de jogadores que, vindos desprestigiados de outros clubes, beberam a água da biquinha e logo se tornaram ídolos corinthianos, fizeram brilhante carreira no clube, muitos chegaram a titulares da seleção brasileira e vários acabaram indo ganhar dólares em clubes do exterior.

Consta que o próprio Friedenreich — o monstro sagrado do antigo Paysandu e do Paulistano — , alguns anos após haver pendurado as chuteiras, passou pelo Parque São Jorge e foi conduzido à bica, para tomar um gole. Dizem que Friedenreich, mal provou o abençoado líquido, deixou-se ficar com os olhos marejados de lágrimas, abaixou a cabeça com ar contrito, e teria sussurado que, se pudesse retornar às glórias do passado, teria o maior gosto em vestir a honrada camiseta branca com a âncora e os remos no lado do coração.

Mas, infelizmente, essa Friedenreich ficou devendo.

Há corinthianos que, na relação dos que, hipoteticamente, teriam bebido da água da bica, fazem questão de citar, oficiosamente, é claro, os nomes de Domingos da Guia, o pai, Edmar, Murilo da Silva, Cláudio Cristóvão do Pinho, Rivelino, o goleiro Leão, o goleiro Gilmar, Touguinha, Idário, o famoso trio-médio apontado como “os três mos­queteiros” — Nerino, Guimarães e Munhoz — , Julião, Carbone, Jackson, Rafael, Zague, Casagrande, Sócrates, Neto e tantos outros craques, sem citar, naturalmente, os torcedo­res que se tomaram símbolos do clube, como Elisa, que foi uma das maiores propagan­distas da biquinha, e o próprio Francisco Dionísio Mendes — o conhecido Chico Mendes — , que costumava freqüentar a biquinha em companhia de outro torcedor também notável, o falecido Tantã. Ainda que na fase final de sua carreira, o jogador que mais se teria notabilizado pelo consumo da água da bica do Parque São Jorge foi, sem dúvida, Neco — o jogador-símbolo do Corinthians — , o qual, sempre que podia, fazia questão de tomar um cálice da água da biquinha antes do almoço, como aperitivo.

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É evidente que o abastecimento de água do Corinthians não é feito exclusivamente pelo tênue fio que escorre da biquinha gloriosa. Quando o rio Tietê era um curso de água decente, límpido, transparente, o Corinthians se serviu dele para ensinar seus atletas a nadar e a remar. O histórico cocho sustentado por latões vazios era abastecido pela água do Tietê. As competições de remo e canoagem eram feitas ali, a um passo do campo de futebol. O rio fazia parte da paisagem corinthiana, era íntimo do clube. O progresso modificou a geografia urbana, desviou o rio, poluiu-lhe o leito e o transformou desgraçadamente numa pasta pútrida, que agora, com esforços inauditos, os poderes públicos tentam sanear. O asfalto separou o Corinthians do rio Tietê e o clube passou a abastecer seu parque náutico, moderno e alegre, com poços artesianos. Até antes das últimas reformas do estádio Alfredo Schurig, que o modernizaram e ampliaram a capacidade de público para quase 30 mil pessoas, funcionava no Parque São Jorge, numa área de pouca circulação, um setor de treinamento de remo que lembrava, por sua estrutura arquitetônica, o antigo cocho. Assim como existem cabinas para formação de pilotos da aviação que permitem vôo simulado, o “cocho de remo” consistia num tanque d’água com canoas fixas, permitindo desenvolver um tipo de treinamento bastante proveitoso, tanto assim que o remo é uma das modalidades esportivas que continuam a dar ao Corinthians títulos e medalhas de repercussão nacional. Trata-se, por sinal, de uma tradição alvinegra, perfeitamente expressa nos remos do distintivo do clube.

Pode-se dizer, portanto, que em matéria de glórias e conquistas, o Sport Club Corinthians Paulista é uma agremiação anfíbia. Se dá bem tanto nos esportes em terra firme como na água.

E não será jamais por falta de água que o Corinthians deixará de remar e navegar em busca de vitórias e galardões. Mesmo que a biquinha secasse, mesmo que os poços artesianos entrassem em greve, o bom humor corinthiano iria buscar água no outro lado da avenida Condessa Elizabete Robiano, na fonte de um senhor chamado Vicente Matheus. Um dos orgulhos desse homem é que. exatamente no terreno onde se ergue agora um dos seus prédios de apartamentos, e do qual se descortina todo o Parque São Jorge, em frente ao clube, existe uma inesgotável fonte de água. com vazão suficiente para abastecer a Fazendinha — conforme, aliás, já aconteceu mais de uma vez. É claro que essa água sai de graça para o clube, e está devidamente canalizada, constituindo-se numa espécie de reservatório particular do Corinthians. O fato deve ser olhado com bastante naturalidade porque, na época em que Ernesto Cassano fez a histórica transação imobiliária que deu ao Corinthians o começo de seu atual patrimônio, o que se adquiriu, de fato, foi uma “fazendinha”. E nem teria cabimento comprar uma “fazendinha” sem um farto manancial de água...

Esse senhor Vicente Matheus que ri. feliz, ao dizer que sua fonte de água está sempre à disposição do Corinthians, ocupou a presidência do clube várias vezes, direta ou indiretamente. No Corinthians, desde 1910. nenhum presidente pode se vangloriar de que governou em clima de consenso unânime. Um dos maiores oposicionistas no

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Corinthians, um dos mais ferrenhos e vigilantes críticos dos primeiros presidentes, foi exatamente um rapaz que muito amou o clube, e que ajudou a fundá-lo, o operário chamado Anselmo Correia. O Corinthians foi sempre um clube onde a paixão é como óleo fervente: respinga e, onde atinge, cria bolha. Vicente Matheus também padeceu críticas, como a tiveram Trindade, Wadih Helu, J. B. Maurício, Correcher, Collona, Pasqua, Fló Jr. e o próprio Schurig. Nem Magnani, o antigo cocheiro de tílburi, escapou dela. A oposição às vezes chega a aborrecer tanto os presidentes do clube que alguns deles pegaram o chapéu e renunciaram ao cargo, suspirando de alívio. Mas jamais se afastaram de vez. Os que não estão mais vivos, com o coração corinthiano pulsando, morreram corinthianos.

Vicente Matheus é um espanhol naturalizado brasileiro, rico, hoje rico, que come­çou a fortuna carregando pedra britada. É um homem simples, mas sagaz. Não tem estudo — é ele quem diz — , mas tem inteligência. Estudo e inteligência são coisas diferentes, que não se excluem, é claro, mas nem sempre andam de mãos dadas. Há pessoas que têm diplomas mas não têm inteligência. Vicente Matheus é o contrário. Vicente Matheus entra no capítulo do bom humor porque, de todos os presidentes do Corinthians, é o que mais agüentou, com bonomia, as piadas e anedotas — verdadeiras ou inventadas — que foram postas em circulação em torno de sua figura. Considerado um presidente “pitoresco”, contudo ele salvou o Corinthians do poço das dívidas e do assédio encarniçado de credores mais de uma vez. Matheus administra as finanças do Corinthians como se o dinheiro fosse seu — e às vezes é. É tido como mão de ferro na hora de soltar a grana. É. É duro na hora de renovar contratos de jogadores. Mas Neto falou: “O que promete, ‘seu’ Matheus cumpre”. Nestes tempos de falsas promessas, um elogio desses pode constar como dístico num bom brasão de família. Quando reclamam de sua “munhequice”, Vicente Matheus sabe usar ironias: “Tem clube que gastou o que não tinha para conquistar títulos e hoje não tem como pagar os títulos dos credores”. Mas garante que não é sovina. É apenas prudente. Cita a compra do passe do craque Almir, o fabuloso Almir, que no Corinthians, talvez por excesso de fama, não chegou a ser mais do que uma sombra do craque Almir que tinha sido: “O dinheiro pago pelo Almir dava para construir, na época, um prédio de quinze andares!” O dinheiro pago por Almir saiu todo do bolso de Vicente Matheus.

Vicente Matheus — dizem os críticos — tem muitos defeitos. Um deles é querer tomar conta de tudo. Bater o escanteio e marcar o gol de cabeça. Mas uma virtude ninguém lhe nega: Matheus considera o Corinthians a artéria aorta de seu coração. Sem o Corinthians, seu coração secaria de tédio e desolação.

Quase todo corinthiano tem uma história dramática para contar de sua vida, e quando eles a contam, se emocionam. Antoine Gebran, antes de ser empresário bem-sucedido, um corinthiano que tem ajudado a dirigir a Federação Paulista de Futebol, antes de ajudar o pai, libanês, nas feiras-livres, viajou num navio como imigrante. Era um navio de bandeira grega. O navio chamava-se Corinthian. Um dia Gebran, depois

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de assistir a um jogo do Corinthians, emocionado, mal vestido como um ajudante de feirante, desceu trêmulo ao vestiário e pediu um autógrafo num pedaço de papel de embrulho a um craque cor de ébano, preto como carvão, um negro de ouro chamado Baltazar. O Cabeçinha de Ouro não ouviu, ou não prestou atenção, ou não ligou, virou a cara, entrou sob o chuveiro.

Só por causa de uma besteira dessas, Gebran. um baita homem, dono de empresa de vigilância, acostumado a lidar com guarda de pistola na cintura, fica com os olhos cheios de lágrimas. Esses corinthianos são de lascar! A história triste de Vicente Matheus é que quando era garoto, e andava a pé quase meia légua para ir ao trabalho, não via jogo do Corinthians. Não tinha dinheiro para o ingresso. Essa talvez seja a razão oculta de “seu” Matheus haver construído um prédio de mais de dez andares bem em frente ao clube, na avenida Condessa Elizabete Robiano. Dali do alto, da cobertura, dá para ver o campo, as duas traves e a atual cobertura de concreto do estádio Alfredo Schurig.

Essa parte nova do estádio não é obra apenas de Vicente Matheus. Os alicerces foram iniciados por Pasqua. A Cidade Corinthians é a soma de esforços e da visão de muitos presidentes do clube. Isso não impede Vicente Matheus de cultivar a vaidade de ter gasto, nas obras da reconstrução do estádio, segundo diz. talvez “menos da metade do que teria sido gasto se eu não fosse o Vicente Matheus”.

O bom humor corinthiano diz que o primeiro casamento de Vicente Matheus foi com o Corinthians. Amor à primeira vista, o visgo da paixão. O último casamento decorreu de outra paixão, chamada Marlene. Matheus uniu as duas paixões numa única e fez da esposa Marlene a primeira presidente do Sport Club Corinthians Paulista — a primeira, e possivelmente a única nos próximos cem anos. Não foi uma eleição sem faíscas, nem poderia ser. A campanha pulou os muros do Parque São Jorge e encheu as ruas de São Paulo com panfletos, bandas de música, show com artistas contratados, listas de apoio nos jornais, contratação de agências de pesquisa de opinião pública e outdoors nos muros. Parecia eleição de prefeito, de governador do Estado. No dia da eleição choveu, os eleitores de Marlene Matheus foram votar de guarda-chuva. Os quatro outros concorrentes à presidência do SCCP — todos com merecimentos e direito a suas justas aspirações de servir ao clube de corpo e alma — viram uma mulher romper a tradição de que clube de futebol é assunto para homem. Um precedente assim, só no Corinthians. A Gaviões da Fiel aceitou o resultado das umas com espírito democrático, no que foi seguida por todas as demais torcidas uniformizadas de menor peso e currículo ideoló­gico, como a Explosào-Coraçào Corinthiano, a Camisa 12, a Cobra-Corinthianos da Brasilândia, a Corinthians Chopp. a Nação Força Jovem, a Batimão, e mais umas duas ou três dúzias de corporações parecidas, que nos dias de jogo do Corinthians misturam suas bandeiras, seus repiniques, suas trombetas de plástico, sua coreografia e seu grito de apoio ao time alvinegro.

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Por vezes o bom humor corinthiano cisma de retocar fatos históricos apenas com o objetivo de aporrinhar os adversários. É o caso do galo verde depenado no Parque São Jorge. Há corinthianos que garantem que não houve galo verde nenhum. O que se depenou, na realidade, foi um frango caipira que um palestrino abusado havia pintado de verde e levado para o estádio, para fazer gozação.

A invenção do galo — bem maior que um frango — teve em vista justificar tanta pena verde — mais de mil! — que no dia seguinte ao jogo os corinthianos exibiam na lapela do paletó. Frango caipira não podia ter tantas penas no corpo...

Outro fato histórico que o bom humor corinthiano continua a manter sob o véu diáfano da fantasia diz respeito àquele lance, no Estádio Municipal do Pacaembu, em que Luisinho, o Pequeno Polegar, um dos grandes ídolos de todos os tempos, eterna­mente dentro dos corações corinthianos, teria sentado na bola diante do grande Luís Villa durante uma partida de futebol com o Palmeiras. O bom humor corinthiano jura que Luís Villa, que era um cavalheiro, permaneceu estático e marmorizado como a estátua de Davi, que na época existia e ficava à esquerda da concha acústica no estádio.

Luisinho sentou mesmo na bola?

Muitos anos depois, sentado no sofá da sala de sua casa no Tatuapé, o sr. Luís Trochillo, tendo a um canto um armário onde descansam alguns dos troféus conquista­dos na defesa do Corinthians, insinua que talvez ele, Luisinho, tenha escorregado no gramado, perdido o equilíbrio, e dado a impressão de haver sentado na bola, quando na realidade ele apenas se escorou nela com o corpo. Foi o bom humor corinthiano que inventou então aquele instante que nenhuma máquina fotográfica registrou para a posteridade. Mas como apagar a cena da retina dos corinthianos? Certa ocasião um repórter jovem e curioso, que nunca havia visto Luisinho jogar, mas ouvira falar de suas peraltices em campo, perguntou-lhe: “Por que o senhor tinha a mania de passar a bola no meio das pernas dos adversários?” “Não era mania. Era necessidade. Sempre fui deste tamanho. Os marcadores eram o dobro de mim. O único caminho que eu tinha era passar a bola por baixo deles.”

Há uma história bem-humorada que os velhos corinthianos gostavam de contar a respeito de Alcântara Machado, paulista de quatrocentos anos, uma inteligência fulgu­rante, e que ajudou decisivamente o Corinthians a obter o campo da Floresta por arrendamento.

Alcântara Machado era um mestre do Direito, chegou a diretor da Faculdade do Largo de São Francisco. Quando os corinthianos precisavam, iam procurá-lo para um conselho, uma orientação jurídica, um parecer abalizado.

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Foi na década de 30 que aconteceu uma dessas visitas corinthianas de consulta técnica. O clube carecia que alguém redigisse uma notificação judicial com argumentos de sustância, em defesa dos interesses alvinegros, e o trabalho foi feito pelo Dr. Alcântara com a maior boa vontade.

Passou-se o tempo, o Corinthians conseguiu seus objetivos, e alguns membros da diretoria, em caravana, voltaram ao escritório de Alcântara Machado para agradecer.

À frente do grupo estava Antônio Gonçalves Leite Mont’Serrat, associado corin- thiano que era também um líder popular, orador envolvente, de fala fácil, que vivia enfiado nas lutas populares, entre estas a defesa da nova legislação trabalhista em São Paulo.

O comércio na cidade não estava regulamentado, não tinha horário fixo. As lojas abriam às 7 da manhã, funcionavam até 8, 9, 10 horas da noite. Os donos conversavam à porta dos estabelecimentos, tocavam o negócio de acordo com o movimento do dia. Havia caixeiros que dormiam sobre o balcão. Mont’Serrat era contra esses abusos, defendia os trabalhadores, foi um dos chefes do movimento operário que ficou conhe­cido na época como “Fechamento das Portas-’ em São Paulo. Esse corinthiano Mont’Ser­rat é que tinha sido escalado para saudar, num discurso de agradecimento, o generoso atendimento de Alcântara Machado na defesa do clube. Falou bonito. Emocionou-se e emocionou os companheiros. Alcântara Machado também era um magnífico orador, um grande tribuno, e retribuiu as palavras dos corinthianos com grande carinho.

A diretoria do Corinthians havia mandado emoldurar um diploma para Alcântara Machado, uma homenagem mais que merecida. Todo mundo tinha falado, abraçado o Dr. Alcântara, o pessoal do Corinthians já ia se preparando para sair da sala — o homenageado cutuca o associado Manoel Fonseca, e sussurra-lhe ao ouvido, com o maior bom humor possível: “Caro Fonseca, e os meus honorários, quem paga?”

Fonseca estaca, olha em tomo, pensa um pouco, tudo muito rápido. Enfia a mão no bolso, retira dele 20 mil réis, entrega solenemente ao Dr. Alcântara. Com o maior bom humor, os dois se apertam as mãos e se despedem.

Dizem que Alcântara Machado remeteu mais tarde esse dinheiro para ajudar a pagar as prestações da compra da Fazendinha.

Murilo foi um dos grandes zagueiros do Corinthians. Era raríssimo cometer uma falta no adversário. Saía com a bola como se jogasse com uma varinha de condão. Um gentlem an , um exemplo de dignidade e respeito aos companheiros de profissão como raramente se viu, antes ou depois dele. no futebol brasileiro. Foi uma das grandes vítimas dos uruguaios do Penarol, que o quebraram, já que nào podiam vencê-lo no jogo limpo e decente. O Corinthians foi buscá-lo no Atlético Mineiro e o trouxe para fazer dele um dos grandes ídolos corinthianos na década de 50. Murilo morava no Parque São Jorge e

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conta, com bom humor, que o período em que vestiu a camisa corinthiana foi um dos mais felizes de sua vida. Pelo apoio da torcida, claro. Mas também porque, na Fazendi- nha, ele podia cuidar de seus coleirinhas, seus pássaros-pretos, seus canários e até de um passarinho que trouxe, escondido, num avião, quando voltou de uma excursão do Corinthians ao Peru. Nas vésperas dos grandes jogos, Murilo tinha uma receita infalível para relaxar: pegava vara, linhada, anzol, catava nos fundos do Parque São Jorge um punhado de minhocas, e descia tranqüilamente para a beira do Tietê, que ficava logo ali no fim da rua São Jorge. Murilo cansou de pegar mandi, bagre, piaba, lambari. “O Corinthians foi o melhor tempo da minha carreira de futebol”, ele diz, agora novamente em Belo Horizonte, olhando a medalha de ouro que o Grêmio Esportivo Social dos Árbitros de Futebol lhe ofereceu no dia 27 de março de 1951 “em face de seu elevado grau de cultura, educação e de alto espírito esportivo demonstrado no campo da luta”.

O Corinthians inspira até pratos da culinária. Acredita-se que a primeira vez que um “Corinthian” constou de um cardápio foi no ano de 1910, num banquete em homenagem aos jogadores ingleses que visitavam São Paulo, aos quais foi servido um “Filé-mignon à la Corinthians”. Mas os rapazes daquela época não podiam imaginar a exuberância visual de um prato bem mais adaptado ao clima tropical, como é a “Salada Corinthiana”, que o restaurante Montechiaro, do bairro do Bexiga, bolou e que, como a torcida corinthiana, tem um exagero de ingredientes: alface, tomate, palmito, pepino, cebola, batata, cenoura, ovo, salame, presunto cru, queijo provolone, mortadela, berinjela e pimentão! É o tipo da salada corinthiana mesmo, e bem-humorada...

Na ponta-esquerda do Corinthians jogou um rapaz chamado Mário. Muito prova­velmente ele nunca será lembrado para formar numa seleção dos melhores extremas- esquerdas corinthianos, mas é possível que ele tenha sido o mais bem-humorado ponta que o Corinthians acolheu em seus times. Quem é do tempo de Idário e Carbone lembra muito do Mário. Tinha vindo do Bangu. Sua especialidade domingueira era esconder a bola e deixar seu marcador zonzo. Mário era uma mágico disfarçado, um gnomo, um craque que desperdiçava seu talento como quem atirasse pepitas de ouro pela escotilha de um navio em alto-mar.

Dizer que Mário era um homem bonito, galã de novela, não era. Mas as mulheres tinham xodó por ele, ele tinha xodó pelas mulheres, gostava também de um baralho, e era um jogador que sabia muito bem divertir o público. A torcida corinthiana apreciava tanto seus números de malabarismo que chegava a disputar na cotovelada um lugarzinho junto ao alambrado para acompanhar suas peraltices futebolísticas e verificar, a olho nu, se o Mário fazia aquilo de verdade ou era truque.

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Quando Mário virava de campo, no meio-tempo, a torcida ia junto.O espaço vital de que Mário necessitava para fazer as diabruras habituais não era

maior que 40 centímetros quadrados, se tanto. Nessa área particular Mário conseguia driblar seu marcador, a sombra do seu marcador e a bandeirinha de escanteio.

Porém Mário, o ponta-esquerda assombroso, tinha o pior defeito de um atacante: ele tinha alergia por gol. Não marcava gol de jeito nenhum. Mesmo cara a cara com o goleiro adversário, só ele e o goleiro e as traves, ou até mesmo o gol livre, só as redes ali escancaradas, Mário ficava aflito, pedia por amor aos santos que algum companheiro viesse correndo receber o passe azeitado, amanteigado, na bandeja, para completar a jogada. Mário era uma coisa esquisita. Contando, ninguém acredita.

Uma tarde, antes de uma partida bem séria, daquelas partidas que o clube não pode perder, o técnico chamou Mário reservadamente para um canto do vestiário, pôs as duas mãos paternalmente no ombro do jogador, e foi franco: “Mário, tu tem algum trauma?” "Por quê, chefe?” “Tu não marca gol, filho! Que é que tá acontecendo contigo? Abre teu coração comigo.”

Mário somente tinha calçado um pé da chuteira. O outro pé ainda estava enfiado só na meia grossa. Mário baixou a cabeça, ficou batucando o dedão do pé com meia no cimento do vestiário. “Algum problema, rapaz?” Mário fungou: “É minha mãe.” “Tua mãe? Que é que tem a senhora tua mãe?” “Ela pede para eu não marcar gol para não deixar triste a mãe do meu marcador.”

No parque do Carmo, na zona leste da cidade de São Paulo, é comum ver-se um tipo de beija-flor todo preto, com a ponta das asas e do rabo bem branquinha. Embora o nome científico desse passarinho seja ainda pouco conhecido, qualquer moleque da região e mesmo os ornitólogos mais experientes sabem que o nome popular desse beija-flor é corinthiano-roxo. O bom humor corinthiano faz parte da natureza.

Nota

1. Elizabete Robiano viveu de 1773 a 1864 e foi a fundadora da Congregação das Irmãs de São Vicente de Paula, de Gysegem (conforme informa a placa municipal junto à entrada do Parque São Jorge).

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Este São Jorge tem mais valor afetivo que artístico para os corinthianos. Em véspe­ras de jogos, a imagem costuma amanhe­cer cercada de velas e flores. Mesmo quem não acredita respeita. (Foto Antô­nio Carlos Carreiro)

Esta é uma das mais antigas taças conquis­tadas pelo clube, quando a sede ainda es­tava na rua dos Imigrantes, no Bom Retiro. Foi ofertada pela “The São Paulo Tramway Light & Power Cs” (a Light dos bondes e da iluminação das ruas e residências), em 28 de junho de 1914. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

A biquinha, cuja água nunca seca, é uma das referências geográfi­cas da Fazendinha. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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O lampião de gás na entrada da Cidade Corinthians: homenagem a Joaquim Am- brósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone, An­selmo Correia, Antônio Pereira e Ernesto Cassano. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

A “Salada Corinthiana”, variada e exuberante, do restaurante Montechiaro, no bairro do Bexi­ga, em São Paulo. (Foto Veja)

Além da taça, o Corinthians recebeu este diploma pelo campeonato do Centenário da Independência. (Foto Arquivo Corinthians)

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No começo do clube, os corinthianos só tomavam cerveja Germânia, que era fabricada no próprio Bom Retiro. A chopada da vitória virou uma tradição. Posteriormente, os alvinegros adotaram também outras marcas. E sempre que havia taça oferecida pelas cervejarias, a rapaziada fazia empenho em conquistá-la, comemorando em dobro. Dois desses troféus: um de fevereiro de 1921, conquistado num jogo contra o São Bento, da capital; 70 anos depois, o Corinthians fez questão de prestigiar também o centenário da Antarctica. Saúde, alegre galera! (Fotos Antônio Carlos Carreiro)

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I.TT

O gol: aqui o Corinthians já teve onça, girafa e até um satanás

No Corinthians o gol é uma posição tão importante que no começo do clube o goleiro ganhava ou perdia a posição por voto da assembléia geral. Ou quase...

Uma coisa é certa: dos cinco primeiros “operários fundadores” do clube, um era goleiro: Anselmo Correia. Na disputa com Valente, perdeu a posição no primeiro quadro, mas ficou sendo o guarda-meta do segundo time. E quando, mais tarde, Sebastião Casado entrou de sócio, treinou melhor no gol e tomou o lugar de Correia, este ficou tão bravo que pediu demissão do clube. Mas no fim tudo se arranjou... O assunto foi motivo de discussão numa assembléia geral e coube ao captain Casimiro explicar que naquela posição — como em todas as outras — jogava quem mostrava ser o melhor, sem essa de ser dono do time.

Talvez isso explique por que, quando o clube só tinha completado uns 30 anos, já houvessem passado pelo gol do Corinthians bem mais de quinze goleiros, e esse número foi aumentando com o correr do tempo.

Um dos mais antigos goleiros do Corinthians, e que ficou muito tempo no clube mas deu o seu recado, atuando com grande categoria, foi Casimiro do Amaral, que chegou a enfrentar o Torino, da Itália, na primeira partida internacional do clube do Bom Retiro. Casimiro tomou um gol de pênalti, se machucou. Entrou Sebastião, e, num lance infeliz, os italianos fizeram 2 a 0.

Depois Casimiro do Amaral foi defender o Mackenzie e fechou o arco — como se dizia antigamente — , inclusive contra o próprio Corinthians Paulista. Num jogo, o alvinegro praticamente não saiu de sob as traves mackenzistas, e o raio do Casimiro pegou todas. Em compensação, Sebastião foi-se firmando e ficou dono da posição no Corinthians.

O gol, todo mundo sabe, é uma posição ingrata. O sujeito precisa ter vocação. Amílcar Barbuyjogava em qualquer posição: Teleco, a mesma coisa; mas ambos tinham pavor só de pensar em ir para o gol. até em treino, de brincadeira. Uma curiosidade: Casimiro do Amaral, que tinha vindo da várzea, só foi jogar no gol quando se passou para o Corinthians. Descobriu aí sua verdadeira posição no futebol. (No próprio

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Paulistano, na primeira década do século, Cunha Bueno sempre fora atacante e quando se tornou goleiro detestava pegar a bola com a mão...)

Nunca se pode condenar o goleiro tomando por base uma goleada. O grande Gilmar, que a torcida corinthiana viu, horrorizada, em 1951, ser massacrado por uma goleada de 7 a 3 diante da Portuguesa de Desportos no Pacaembu, durante o jogo estava ainda chorando a morte de seu pai. Mesmo assim foi para o gol, para o sacrifício. Goleiro é como palhaço: obrigado a segurar o espetáculo com suas mãos e seu sorriso. Muitas vezes o goleiro voa como um anjo, enquanto seu coração pesa de tristeza como chumbo.

Quando Onça tomou a histórica goleada, em 1933, que se passaria em sua cabeça?Sim, o Corinthians teve um goleiro chamado Onça, como teve o Girafa, o grande

Gilmar, cujo apelido de Girafa lhe veio da altura, do porte esguio, da elegância do jogo.Pelo gol do Corinthians passaram Russo, Sebastião, Valente, Anselmo Correia,

Medaglia, Barcheta, Pizócaro (ou Pizzocarro, como muitos diziam), Xororó, Alonso, Mário, Colombo, Moreno, Tuffy, Onça, Gimenes, Jaguaré, Ciro, José I — conhecido como Hungarês — , José II, Rede, Bino, Cabeção, Gilmar, Wilson, Ronaldo, Tobias... Passaram muitos. Grandes, inesquecíveis goleiros. E goleiros cuja memória o tempo esmaeceu, goleiros dos quais a torcida não mais se lembra. Há goleiros que não precisam figurar em nenhuma galeria de quadros emoldurados para serem admirados pela galera alvinegra. Ao caminhar pelos jardins do Parque São Jorge, eles são a presença viva de uma dedicação que, mesmo quando afastados do gol, prossegue sendo um exemplo para todos. Por suas mãos passaram gerações de jovens atletas: Cabeção deve ser citado como um deles, um grande arqueiro que deixou de ser arqueiro mas nunca deixou de ser um grande corinthiano. Prata da casa.

Gilmar dos Santos Neves, o Girafa das brincadeiras entre os companheiros de equipe, um dia foi receber a faixa de Campeão Brasileiro que o Corinthians, com justiça, lhe oferecia ao lado de Zé Maria, Idário, Carbone. Não estavam mais uniformizados. Não traziam no peito a âncora e os remos. Os cabelos estavam prateados. O próprio Gilmar havia se distinguido também com glórias mil, em campos do Brasil e da Europa, vestindo o uniforme santista. Mas naquela noite no Parque São Jorge, ao receber a faixa de Campeão Brasileiro que o Corinthians Paulista lhe colocava com satisfação no peito, ele tornava a ser o goleiro corinthiano que a torcida Fiel idolatrava. Gilmar, o grande Gilmar! Das defesas impossíveis. Gilmar à sombra de Cabeção. Gilmar da zaga Homero e Olavo. Gilmar do título do Centenário de São Paulo em 54... Gilmar que, mesmo tendo partido, sempre ocupou um lugar no coração da galera.

Gilmar foi o goleiro que mais vezes — 100 — vestiu a camisa da seleção brasileira...Quem viu este goleiro corinthiano jogar não o esquece: Bino. Arrojado, atento,

valoroso, nem sempre comparece no álbum de recordações dos grandes feitos corin- thianos. Mas como esquecer Bino, com sua estatura mediana, compensar o tamanho com o impulso de suas pernas, dando à torcida a impressão de que uma mola invisível o lançava ao ar, como uma flecha!

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Até um satanás o Corinthians teve no gol. Tuffy. Tuffy Neugen. Vestia-se todo de preto, por vezes deixava a barba crescer. Chamavam-no Satanás. Um gato no arco. Nasceu em Santos, 1899. Com apenas 9 anos jogava no time do Cruzeiro do Sul, depois foi jogar no Vicentino. A Associçáo Athletica das Palmeiras foi buscá-lo para jogar no gol, no campo da alameda Barros. Tinha 18 anos o Tuffy, que logo subiu para o Ia quadro. Espírito aventureiro, jogou no norte e no sul do Brasil, voltou para o Sírio, jogou no Santos. Um incidente o afastou daquele clube, Tuffy não quis mais voltar para lá. Passou a defender o Corinthians, onde conquistou suas maiores glórias. O tricampeonato de 28, 29 e 30. É com Tuffy no gol que o Corinthians vence o Barracas, da Argentina, e o Bologna, da Itália. É com Tuffy no gol que o combinado Corinthians-Palestra vence o Tucumán, em 1930, por 5 a 2.

Tuffy distinguiu-se como arqueiro portentoso, de defesas extraordinárias, especial­mente no período de 1929, considerado como dos maiores na fase do amadorismo no futebol brasileiro. Pessoa amável, generosa, apesar do apelido, que não passava de brincadeira por sua figura exótica, Satanás pendurou as chuteiras em 1930. Alguns corinthianos ainda o viram, despojado de seu passado glorioso, trabalhando como gerente — talvez menos que isso, encarregado... — do cine Rosário, no centro de São Paulo. Dizem que morreu de pneumonia, depois de comer melancia gelada.

Tuffy, herói dos tempos em que o distintivo corinthiano ainda não tinha remos nem âncora, mas já tinha uma bandeira e um nome. (Foto Arquivo Corinthians)

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Bino: as zagas mudavam (Domingo- Aldo, Rubens-Belacosa, Chico Pre- to-Begliuomini, Nilton-Belfare...) e ele se mantinha na posição. A torci­da o idolatrava nas vitórias e o res­peitava nas derrotas. (Foto Arquivo Corinthians)

Gilmar, dos tempos de Homero, Olavo, Goiano, Roberto, Rafael, Cláudio, Baltazar, Luisi- nho... Tempos de grandes emoções. (Foto Arquivo Corinthians)

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LIIIO charuto: até quem não fumava aderiu

Nos anos 50 aconteceu uma invasão de charutos nos estádios de futebol onde o Corinthians Paulista jogava. Charutos de tudo quanto era tipo, importados,

cubanos, perfumados, adocicados, baianos, finos, de marca, ou de pacotinho, vendidos a granel. Virou moda. O torcedor ia com charuto ao campo para fazer gracinha, e de repente o charuto transformou-se num símbolo do Corinthians. Grupos de torcedores, que não podiam sequer sentir o cheiro de fumo, confeccionavam em casa charutões enormes, de papelão, e os carregavam nas costas como se fossem estandartes. Chico Mendes, de chapéu e charuto, transformou-se em marca registrada do torcedor daquela divertida época.

Dizem que o primeiro torcedor corinthiano que lançou o charuto nos estádios foi José da Costa Martins, na década de 20! Veteraníssimo, o Martins devia ter bem uns 35 anos — nasceu em 1885, segundo boas fontes — quando levou alguns charutos no bolso num jogo do Corinthians. No que o alvinegro marcou um gol, ele acendeu um charuto. E ofereceu os outros a torcedores que estavam a seu lado. O pessoal não estava acostumado, o charuto apagava. O Corinthians marcou outro1 gol, a turma voltava a acender o charuto. Martins pegou o tempo de Neco. Amílcar. Peres, Grané, Rodrigues e uma infinidade de craques do passado. E foi nesse passado que o charuto foi lançado. Depois, quando o clube já jogava no Parque São Jorge, Martins fazia questão de sentar-se sempre no mesmo lugar do estádio Alfredo Schurig. Ele e seus charutos. Em 1957, João da Costa Martins tinha mais de 70 anos, acompanhava Cláudio, Luisinho, Gilmar, Homero, mais pela televisão. Sempre fumando charuto. E no campo, ele observava que o charuto corinthiano fumegava, era carregado em desfiles apoteóticos pela torcida, havia sido encampado como uma diversão a mais para o povo... Foi fumando um charuto que João da Costa Martins contou, num intervalo de um jogo do Corinthians — em 1957, Martins reduziu suas idas aos estádios, preferia ver as pártidas sentado diante de um televisor enorme, em sua casa na Vila Pompéia — . um episódio envolvendo o

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grande Neco: “Era um jogo importante, no tempo do amadorismo, Neco não estava escalado. Estranhamos, os torcedores reclamaram. Fomos perguntar o que estava acontecendo. Sabe o que era? Neco estava atrasado com o pagamento das mensalidades— três meses! Não ia jogar porque não estava com os recibos em dia. Não tivemos dúvida: cada torcedor enfiou a mão no bolso, fizemos um rateio, pagamos a dívida e ainda sobrou algum. Neco recebeu a camisa e jogou tudo o que sabia. Já imaginou uma coisa dessas?”

João da Costa Martins, o inventor do charuto corinthiano, era desse tempo.

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LIV

Carbone, o cavador

Dele a torcida dizia que estava sempre no lugar certo, na hora exata, e com a perfeita percepção de que tinha sido escalado não para jogar bonito ou dar

espetáculo, mas simplesmente para... fazer gois. Era o tipo do atacante que as gerais chamam de cavador. Rodolfo Carbone nasceu em outubro de 1927 no mesmo bairro que o Corinthians: Bom Retiro. O destino o levou a morar na Mooca e no Belém, e daí a jogar bola no Juventus foi a coisa mais natural da vida. Ficou no clube da rua Javari de 1947 a 1951, quando se transferiu para o Parque São Jorge. Na segunda fase de sua carreira, depois que deixou o Corinthians, foi jogar no Botafogo de Ribeirão Preto e retornou ao Juventus, onde pendurou as chuteiras em definitivo em 1960. Mas ninguém lembra Carbone sem ligá-lo ao Corinthians. É com a camisa do alvinegro que ele foi carregado nos ombros do povo. De certa forma, Carbone continua ligado aos esportes. Chegou a ter uma fábrica de alumínio, que fechou, e construiu em seu lugar uma quadra poliesportiva, que é alugada para torneios e promoções de futebol de salão e de vôlei. Desde 1964 tornou-se responsável por uma equipe de veteranos do Corinthians Paulista: Carbone, no grupo, é conhecido como “o veterano dos veteranos”. Esse time joga em média duas vezes por mês. mas em época de eleição os convites aumentam, o time sai se exibindo na capital e em cidades do interior. O corinthiano Carbone ficou no Parque São Jorge de 1951 a 1958, fez carreira brilhante, de cara duas conquistas importantes logo no primeiro ano na Fazendinha: campeão paulista e o principal artilheiro do campeonato, com 30 gois. Na época, fazia 10 anos que o time não levantava campeonato de futebol, o título de 51 teve grande importância na vida de Carbone. Foi nesse ano que jogou a famosa linha dos 103 gois. O centésimo gol foi de Carbone! Mas nem tudo foram flores nesse ano de 51. Carbone fora contratado por Alfredo Inácio Trindade para o lugar de Jackson, que voltava para seu Estado de origem, o Paraná. E nesse bendito ano aconteceu a goleada diante da Portuguesa, que fez 7 gois contra apenas 3 do Corinthians. Carbone fez os 3, e nem por isso escapou do mau humor dos corinthianos. Saiu como bode expiatório, ficou fora quatro jogos, exatamente jogos contra adversários tecnicamente fracos, que poderiam permitir aumentar seu número de gois. Paciência! Veio 1952, o bicampeonato. mas na derrota contra o Palmeiras, por 3 a 2, a torcida cismou com Carbone outra vez. ‘‘Acho que era por causa de meu sobrenome de origem italiana”,

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diz Carbone. Mas deu o troco no ano seguinte, marcou os dois gois na vitória contra o alviverde (resultado: 2 a 0 para o Corinthians). O São Paulo ficou com o título. Depois do jogo, Carbone e os companheiros ficaram sabendo que o tricolor havia reservado um “bicho” extra em caso de vitória. O São Paulo pagou — diz Carbone — religiosamente. O campeonato de 1954, o do Centenário da Fundação de São Paulo, teve a repercussão de todos conhecida. Carbone outra vez campeão com o Corinthians. Aquele timaço: Gilmar, Homero e Olavo; Idário, Goiano e Roberto; Cláudio, Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário. Carbone ainda se lembra do Trindade, que dava força ao time, e também bronca, se fosse o caso. “Trindade tinha jeito para mexer com o brio da moçada”, diz. Como em 1952, na cidade de Jaú, quando o Corinthians perdeu para o XV de Novembro de lá. No Pacaembu, enquanto isso, a Portuguesa de Desportos derrotava o São Paulo, permitindo que o Corinthians fosse campeão por antecipação. No domingo seguinte, haveria o clássico Corinthians vs. São Paulo. O Corinthians com o título ganho, mas o resultado no primeiro tempo era de lascar: 2 a 0 para o São Paulo! No intervalo, Alfredo Inácio Trindade desce para os vestiários. Mastiga o charuto no canto da boca, está cor de cera de vela de defunto, estaca diante dos jogadores que estão de cabeça baixa. Trindade funga, arranca o charuto dos lábios, encara um por um. Ninguém abre o bico. No vestiário, um cheiro de cânfora. Trindade, a voz amassada de mágoa e revolta, só diz, duro: “Vocês não merecem a faixa de campeão!”, coloca o charuto na boca outra vez, vira as costas, e sai. Aquilo foi que nem uma pedrada na cabeça. Carbone conta: “Ninguém falou nada, mas qualquer um percebia que a turma ficou com raiva de estar perdendo, o Trindade era até capaz de ter um troço e cair duro. Subimos pro campo, viramos o jogo. Deu 3 a 2 para o Corinthians. Quando terminou a partida, o Trindade estava na boca do túnel, com a cor normal dele, rindo, abrindo os braços que nem um pai recebendo os filhos depois de os filhos terem ganho medalha na escola. Tinha esquecido da bronca, de tudo. O bom coração do Trindade esquecia as broncas na hora. Trindade abraçou todo mundo, tinha até trocado o charuto”.

Para Carbone, corinthiano sempre — volta e meia ele está no Parque — , a torcida do Corinthians é alguma coisa fenomenal. “Ela não aparece; a torcida do Corinthians nasce.” Sempre foi respeitado por ela, até hoje continua sendo. Carbone acha que agora é mais fácil jogar, “os campos são melhores, têm mais segurança”. Não, nunca pensou em ser técnico: “É difícil, meu gênio não dá para a coisa”. Carbone foi um jogador do seu tempo, um jogador que alegrou a torcida fazendo gois. Aqueles gois que ele fazia por estar na hora certa, no local exato, pronto para colocar sua chuteira no caminho da bola. Ou fazer a bola desviar do caminho por causa de sua chuteira. Um cavador! Um grande e idolatrado cavador! Em 228 jogos pelo Corinthians Paulista, Rodolfo Carbone marcou 135 gois, dos quais 26 em jogos internacionais. Nestes, perdeu para Cláudio, que marcou 37. No dia em que o Corinthians entregou a faixa de Campeão Brasileiro para ex-jogadores, Carbone estava entre os homenageados. O público o apladiu de pé.

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Esta é a linha dos 103 gois: Cláudio, Luisinho. Baltazar, Carbone e Mário. Foi a primeira no Brasil a conseguir essa marca, no ano de 1951. Rodolfo Carbone fez o 100a desses gois. (Foto Arquivo Corinthians)

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Luisinho, o Pequeno Polegar

Você sai da avenida Rangel Pestana, entra à direita onde há um hospital, segue em frente, a rua vai dar numa praça quase só de concreto, umas árvores poucas, os

pardais de sempre. Dê uma olhada nos bancos. O sr. Luís Trochillo pode estar sentado num deles, batendo papo com algum homem de chapéu na cabeça, camisa xadrez, fazendo o tempo fluir. Talvez estejam falando de futebol, mas o sr. Luís Trochillo pode encerrar a conversa se perceber que alguém está querendo entrevistá-lo. Luís Trochillo, esquivo, se começar a falar outra vez de túdo quanto viveu nesse esporte chamado das multidões, vai dar assunto para uma biblioteca. Não, ele não vai dar entrevista. Mas sem Luisinho, rapaz, não há história do Corinthians. Sem Luisinho, esse Luisinho que foi o Pequeno Polegar e agora é o sr. Luís Trochillo de uma praça no Tatuapé, sem Luisinho sobra um furo na vida do Corinthians, fica uma lacuna, um buraco enorme, como uma noite sem estrelas. Luisinho pensa um pouco, abre a porta da sala. “Entre, por favor.” Uma cachorrinha feliz da vida late, impondo respeito e compostura. A cachorrinha se apresenta, mexendo os olhinhos. Late pra caramba. “Não morde. Fique tranqüilo.” A cachorrinha pula no colo do Luisinho. No fundo da sala se vê um móvel escuro com as taças, algumas das taças que ele conquistou. Como aquela na disputa da Pequena Taça do Mundo, em Caracas, Venezuela. Era 1953- Luisinho foi considerado o melhor jogador do torneio. Não um dos melhores; o melhor. Pois é. Esse tal de Luisinho já freqüentava o Parque no tempo do Teleco e do Servílio. Deste tamanhico, o moleque. Ficava vendo o pessoal jogar. Um que driblava, outro que mandava a bola no fundo das redes. Ele olhava, e aprendeu as duas coisas: driblar e fazer gois. Driblava o suficiente, nem um drible a mais, nem a menos. Driblava no tempo certo. Entortava. Vinha sarrafo, rasteira, tranco, cotovelada, cuspe, grosserias, provocações do adversário, que se arrancava os cabelos em campo. Luisinho tinha aprendido um pouco com Servílio, com Teleco, com aqueles ídolos, e ele tinha ido pôr em prática o que via no campo de Maria Zélia, junto com outros cobrinhas, Roberto Belangero, Rafael, Colombo, esses. Esses que um dia o Corinthians foi buscar no Maria Zélia e se tornaram glórias alvinegras. Luisinho vestiu a camisa do Corinthians pela primeira vez em 1949 — e só a deixaria em 1967 depois de fazer a mais longa série de jogos em toda a história do clube. Jogava todas. Oficialmente, jogou 589 vezes pelo time alvinegro. Venceu 359 dessas partidas. Pelo campeonato

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paulista, entrou em campo com a camisa da âncora e dos remos 280 vezes, com 186 vitórias. Jogos amistosos? Cento e vinte e duas vezes, meu amigo. Setenta e nove vitórias, se quer saber. Noventa e três vezes com a camisa alvinegra pelo torneio Rio-São Paulo (outras 39 vitórias). E 64 jogos internacionais, com 44 vitórias. Somar tudo isso — somar essas glórias — , só com calculadora. O jogador que mais vestiu a camisa do Corinthians e levantou 19 títulos, entre os quais aquele, com um gol seu, que valeu ao time a faixa de campeão do IV Centenário de São Paulo. Só glórias? Isso não existe. Também derrotas, Luisinho não era de aço nem de tungsténio. O primeiro jogo, contra o São Paulo, foi derrota: 3 a 2 para o tricolor. Mas adivinhem quem fez os gois do Coringâo? Acertou, rapaz: Cláudio, um; Luisinho, outro.

Ah, aquela ala, aquela dupla. Cláudio e Luisinho! Pau e corda. Corda e caçamba. Unha e dedo. Cuíca e cavaquinho. Pandeiro e reco-reco. Som e luz. Sol e lua. Um dia, 1950, no torneio Rio-São Paulo, o presidente Alfredo Trindade mais os diretores Manuel Santos, Cristino Kalafi e Albino Lotito chamaram Luisinho, que tinha treinado, estava suando. Trindade, que não tirava o charuto da boca, gostava de dar palpite no time. Luisinho atuava pela meia-esquerda. Trindade lhe perguntou: ‘‘Quer fazer ala com o Cláudio na direita?” Que diferença fazia? Nenhuma. Se Deus Nosso Senhor tinha dado ao Pequeno Polegar duas pernas, era para usar as duas. Bola não fazia questão de saber se era a perna direita ou esquerda que chutava. "Jogo sim, senhor.” Trindade sorriu, ajeitou o charuto no canto da boca. O Corinthians tinha descoberto o sucesso.

Antes do jogo, Cláudio e Luisinho acertavam os ponteiros, ajustavam as jogadas, combinavam o que iam fazer em campo. Muitas tabelas — as famosas tabelinhas da dupla Cláudio-Luisinho — tinham sido ensaiadas no papo, conversando. Era como decorar uma partitura musical. E depois, improvisavam. Aí era o diabo. Os adversários iam ficando para trás como folhas mortas no outono: caíam de maduros. Luisinho foi o parceiro de que Cláudio precisava para explodir como uma estrela dalva que no céu desponta. “E o Luís Villa?” “Esquece.” “Você sentou na bola diante daquele milongueiro?” “Luís Villa era um cavalheiro, não dava pontapé.” “Sentou ou não sentou?” “Nem me lembro. Acho que me desequilibrei.” ‘Mas quem viu. torcedor corinthiano que viu, até hoje conta e dá risada.” “É que torcedor corinthiano é alegre, animado.”

Luisinho jogou pela seleção brasileira no Uruguai, contra a Argentina. Luisinho, o Pequeno Polegar, marcou o único gol do Brasil, uma vitória inesquecível, a seleção brasileira não conseguia vencer a Argentina fazia 20 anos. “Bons tempos. Não se ganhava muito. Mas eram bons tempos." Luisinho amou a camisa, amou o Corinthians, amou a torcida corinthiana. Ele foi para a galera alvinegra o sol do meio-dia, o que ilumina tudo sem deixar sombras. Se um dia, por acaso. São Jorge saltar de seu cavalo luminoso para ir tomar um café na esquina, e pedir substituto no devocionário corinthiano, é mais que certo que Luís Trochillo, Luisinho. Pequeno Polegar, será convocado naquele banco da praça do Tatuapé para tomar o lugar do santo, e matar o dragão da saudade. Na sala, Luís Trochillo: a cachorrinha de estimação late e ao fundo as taças brilham.

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Luisinho foi campeão infantil, juvenil, extra-amador, aspirante e profissional. No fim da carreira, ganhou passe livre — a vida dos craques também tem momentos de penosa ingratidão — , foi jogar um tempinho no Juventus, só para não deixar as canelas enferrujarem. Mas voltou para o Corinthians. O Corinthians é sua terra, sua pátria, seu parque, seu território, seu sonho — que jamais será apagado.

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Carbone e Luisinho: a emoção do gol e do drible. (Foto Arquivo Corinthians)

Luisinho, o Pequeno Polegar: azougue, calunga, astro, maravilha. Quem te viu jamais te esquece. (Foto Arquivo Corinthians)

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Luisinho jogava tanto na direita como na esquerda. Quando Ra­fael (à esquerda) entrou na meia- esquerda, o Pequeno Polegar foi fazer a famosa ala com Cláudio, na direita. Paulo é o centro-avan- te. (Foto Arquivo Corinthians)

Luís Trochillo, em sua casa. no Tatuapé: taças e recordações. Entre elas, a Copa Adamis, prêmio al mejor goleador de la série internacional de futbol. Luisinho a conquistou em Caracas, 1953, com a camisa do Corinthians, claro. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Cláudio: o Gerente, o Baixinho, o Maestro

Para a geração que não chegou a ver Neco jogar, restou uma certeza: Cláudio foi um ídolo tão grande e tão amado quanto o jogador-símbolo do Corinthians. Neco

tem seu busto nos jardins do Parque São Jorge. Cláudio tem sua lembrança esculpida no coração de quantos acompanharam sua carreira defendendo as cores corinthianas. Com Luisinho, o Pequeno Polegar, Cláudio formou uma das alas mais estupendas do futebol brasileiro, consagrando a jogada conhecida como “tabelinha”. Foram mestres. Com Baltazar, o Cabecinha de Ouro, Cláudio empolgou as arquibancadas com lançamentos que pareciam calculados por computador (que ainda era segredo de laboratório...), milimetrando jogadas que tinham o destino certo do gol. Quando Cláudio Cristóvão do Pinho arrumava a bola para bater uma falta, a torcida se erguia, comemorando o gol por antecipação. Sem que seu chute fosse forte como o de Neto, longe disso, tinha porém uma precisão fenomenal. Educado, cavalheiresco, cordial com companheiros e adver­sários, jogava limpo e tranqüilo. Armava e concluía jogadas com igual eficiência. Driblava com elegância e precisão. Inteligente e disciplinado, arguto, sagaz e com plena visão de jogo em todo o campo, comandava o time com a firmeza e a consciência de um general senhor da situação. Era o Maestro, que fazia das chuteiras, das pernas, da cabeça, sua batuta. Com voz calma, impunha-se. Fazia-se respeitar dentro e fora do gramado, harmonizava arestas de companheiros junto a diretores do clube. Aconselha­va, sugeria, orientava, ordenava. Era o Gerente. E com seu pouco mais de 1 metro e 60 centímetros, era o Baixinho. O Baixinho gigante do futebol brasileiro — aquele ponta- direita que, por burrice dos dirigentes, deixou de participar da Copa do Mundo de 1950, para escarmento de todos quantos, depois do desastre diante do Uruguai, lamentaram o vazio de sua ausência já irremediável.

Em relação aos jogadores de sua época, no futebol em geral, Cláudio foi uma exceção até mesmo na sua formação profissional. A partir de certo momento de sua carreira futebolística, desempenhou também funções como técnico tributário e fiscal na Prefeitura de São Paulo, cargo em que se aposentou depois de cumprido o tempo regulamentar de serviço. Não dependia do futebol simplesmente. Todavia, poucos

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jogadores como ele levaram tâo a sério e com tanta dedicação pessoal o esporte da bola, que amava desde moleque. Na realidade, Cláudio Cristóvão do Pinho jamais abandonou o esporte. Quando largou os gramados, voltou para a praia e se dedicou ao tamboréu, onde também fez questão de ser um excelente atleta e companheiro. Foi de volta de uma dessas partidas nas areias de Santos, onde passou a morar, que Cláudio contou pedaços de sua história e de sua paixão pelo futebol.

“Nasci em Santos no dia 17 de julho de 1922. Fui registrado no dia seguinte. No registro meu nascimento consta como sendo no dia 18. Fui para o Corinthians em março de 1945. Tenho aqui a cópia do meu primeiro contrato com o Corinthians. Gosto de guardar essas coisas. Mas não comecei corinthiano. Eu fui corinthiano depois, e nunca mais deixei de ser corinthiano. Se você quer ouvir a história desde o começo, então a gente tem que voltar no tempo, naquela época em que eu tinha uns 12, 14 anos, jogava na várzea. Joguei no Tricolor Santista. no Santa Cecília. Tinha muito jogo no areião, os clubes tinham três times, jogava-se de manhã e de tarde. Tudo amador. Comecei jogando descalço. Não havia profissionalismo, jogava quem gostava de jogar. Quando o futebol foi profissionalizado, em 1933, esses clubes amadores de Santos foram desaparecendo um por um. Também não havia campeonatos. Não sei por quê, mas não havia. Nos sábados, a Tribuna publicava duas páginas de clubes que estavam querendo jogar, era por ali que a gente ia marcando as partidas. Bom. havia os times infantis, juvenis e os amadores. Os amadores eram formados por jogadores que tinham atuado nos times principais dos clubes mas que haviam regredido, voltado para trás. De modo que havia uma mistura. Gente de mais idade, criada, e gente miúda. Tudo jogando junto, depen­dendo da capacidade. Um dia um estivador perguntou se eu podia dar uma ajuda ao time deles, dos estivadores, que ia jogar no fim do Macuco. Eu morava na Campos Sales, perto do Mercado. Não sei se sabe, meu pai era português. Morei dois anos em Portugal. Minha família não podia ficar gastando dinheiro com bobagem, pegar dois bondes para jogar futebol tirando o dinheiro do bolso do meu pai, o velho não ia achar bom. Expliquei pro sujeito da estiva, ele disse: 'O clube paga a condução'. Fui, joguei. No fim do jogo eles me deram 5 mil réis. Meia-entrada de cinema custava 700 réis. Comecei a ganhar um dinheirinho, certa ocasião um cunhado meu — que até faleceu não faz muito tempo— me lembrou do dia em que apareci com 20 mil réis no bolso. Eu não me lembrava disso, claro, mas ele ficou impressionado. Vinte mil réis jogando bola na várzea não estava mal. Eu estava jogando na várzea e nesse tempo eu torcia para o Santos, o que era natural. E eu acabei indo jogar no Santos em 1940. Foi assim: o Santos tinha o Saiu, um moço que era massagista do time profissional mas cuidava também do infantil e do juvenil. O Saiu conhecia meu jogo, tinha falado de mim para o Bilu, um ex-jogador que dirigia o time principal do Santos. O Bilu disse ao Saiu: ‘Traz esse garoto para treinar aqui’. O infantil, o juvenil e o amador treinavam nas terças-feiras à noite, durante o dia os amadores trabalhavam. Fui treinar na terça-feira, o Saiu disse: ‘Volte na quinta-feira, você treina com o pessoal do time principal'. Na quinta-feira de noite eu estava lá, para

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mostrar o jogo ao Bilu, o técnico. O Santos tinha perdido um grande jogador da ponta-direita, o Saci, que tinha sido campeão pelo time em 1938. Saci tinha deixado de jogar bola, o Santos havia mandado chamar um ponta-direita do Fluminense, o Novelli, que era irmão de um outro Novelli que jogou no São Paulo Futebol Clube. Eu fiquei no banco de reserva. O Novelli entrou, jogou uns dez minutos, tinha jantado tarde, sentiu-se mal, pediu para sair. Bilu avisou: ‘Entra na ponta, menino’. Eu tinha o quê? Uns dezessete anos, media 1,62, pesava 53 quilos. Tinha jeito de menino mesmo. Fiquei numa situação engraçada, na ponta-direita do segundo time eu ia enfrentar um jogador que eu admirava, torcia por ele, o Laurindo, que tinha vindo do Juventus. O Laurindo me olhou, mediu meu tamanho, ponderou: ‘Jogue direito,- garoto. Não fique inventando, etc....’ Bom, o Laurindo não estava com disposição de ser aborrecido ou de ter trabalho com um moleque do meu tamanho. Claro que também não queria me machucar. Ele jogou o jogo dele, joguei o meu, tudo bem, no meio tempo o Bilu falou: ‘Passa para o primeiro quadro’.

Fiz minha primeira inscrição pelo Santos para ganhar 100 mil réis por mês. Eu pagava 65 mil réis no Ginásio Santista, onde estudava, sobravam 35 mil réis para minhas despesas. Foi assim que eu comecei. Meu primeiro jogo fora da várzea foi contra o S. P. R., o São Paulo Railway. Em 1942 já era para eu ter ido para o Corinthians, o Agostinho, aquele que tinha sido beque, conversou comigo, mas eu tinha assinado com o Palestra, que naquele ano estava mudando de nome. Francamente, eu não estava muito animado para ir jogar em São Paulo, estava acomodado em Santos, sou meio bairrista, mas fui, joguei um ano em São Paulo, fazia as refeições na cantina 1.060, uma que fechou, ficava no ne 1.060 da avenida Rangel Pestana, quem pagava a comida e minhas viagens de ida e vinda Santos— São Paulo era o Attílio Ricotti, das Válvulas Hidra, palestrino, ele é quem deu o alambrado do Parque Antártica. Fiquei jogando no Parque Antártica e morando em Santos. Nunca me mudei de Santos. Até que voltei para o ‘Peixe’, onde atuei em 1943 e 1944. Eu morava na Delfim Moreira. Um dia um senhor apareceu em casa. Era de São Paulo, um açougueiro, uma pessoa franca, cordial, pediu para falar comigo. Foi direto. Perguntou se eu queria, se eu estava interessado em jogar no Corinthians Paulista. Respondi: ‘Depende’. O homem tinha sido enviado pelo presidente Alfredo Inácio Trindade. Subimos a serra, conversei com o Trindade. Ficou combinado que eu faria um contrato de 2 anos, 100 mil cruzeiros de luvas e mais os 800 cruzeiros que eu ganhava no Santos. Acertamos tudo, passei a vestir a camisa do Corinthians Paulista. Nesse ano eu já estava casado com a Norma, minha mulher, eu morava na casa de meus sogros, em Santos, continuei lá1. Levantava cedo, às 5h20 pegava o Bonde 4 que vinha da Ponta da Praia e tinha o ponto final na praça Mauá. Descia, andava um pouco, na rua do Comércio tomava o ônibus para São Paulo, a viagem levava duas horas, quando chovia era lama, vinha pela Estrada Velha de Santos. O ônibus saía de Santos às 6, a viagem virou rotina, mesmo depois que parei de jogar futebol continuei trabalhando em São Paulo, na Prefeitura, fiz essa viagem entre São Paulo e Santos durante

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37 anos! Em 1945 comecei viajando sozinho para o Parque São Jorge; mas logo no ano seguinte tive um companheiro, o Baltazar, que também entrou para o Corinthians. Descíamos do ônibus de Santos no Parque Dom Pedro, onde pegávamos um lotação até a rua São Jorge, esquina com a avenida Celso Garcia. A pé, fazíamos o trecho da avenida até o rio Tietê lá embaixo, uns dez minutos. Fui jogar no Corinthians substituindo Jerônimo na ponta-direita. Baltazar começou na meia-direita, deslocando o Servílio para o centro do ataque. Depois é que o Baltazar se fixou como o grande centro-avante que foi. No gol jogava o Bino, que se revezava às vezes com o Rato. Não, não era o Rato que fizera ala com o De Maria, esse era o José Castelli, jogou na meia-esquerda, no passado. O filho desse Rato dos velhos tempos, anterior a mim, é meu amigo Mário Castelli, jogamos tamboréu aqui na praia de Santos. O Rato do gol era outro, naturalmente. E havia no gol também o Jurandir, que o Corinthians havia contratado. Na zaga jogavam o Domingos da Guia e o Aldo. Na intermediária, o Palmer, o Hélio e o Aleixo, mas cheguei também a jogar com Brandão, o centro-médio. A linha variava: eu, Servílio, Milani, Eduardinho, Pipi. No lugar do Eduardinho jogava também o Rui, era gaúcho. Na ponta-esquerda entrou depois o Válter, que estava voltando da guerra. O Válter havia ido para a guerra junto com o Geninho, aquele do Botafogo. Não sei se o Válter esteve no fron t, mas ele participou da Segunda Grande Guerra. Treinávamos de manhã. Depois do treino, tomava banho, pegava o ônibus de volta para Santos. Isso todos os dias. Almoçava em casa, lá pelas 2 horas da tarde. Quando cheguei, o técnico era o Vani, ex-jogador. Depois ficou como técnico o Aguiar, que não era muito conhecido. Também tivemos o Foquer, húngaro, que dizem havia sido goleiro. Esse Foquer tinha passado pelo Comercial, ficou um tempo no Corinthians, voltou para o Comercial. O time do Corinthians costumava ficar concentrado nas instalações do estádio do Pacaembu. Num domingo, estávamos lá concentrados, íamos jogar num outro estádio mas a concentração se realizava lá, encontramos o Foquer, que estava no Pacaembu porque o Comercial ia disputar um jogo naquele estádio. Nesse domingo o Foquer começou a sentir-se mal. No domingo seguinte, Foquer estava morto. Me lembro bem disso2.

O Trigger foi outro técnico do meu tempo. Passou a exigir que o Brandão, centro-médio, marcasse mais. Brandão não se adaptou, o jogo dele era dominar livre o campo inteiro, não se adaptou, começou a perder o lugar para o Hélio, que estava mais de acordo com a modernização do futebol que o Trigger estava começando a estabele­cer. Joguei com o Severo, o Edélcio, foi em 1949 que ò Luisinho passou para a meia-direita, antes ele jogava na esquerda, fazia ala com o Colombo. O técnico era o Joreca. Era um homem inteligente, tinha vindo de Portugal, onde fora inclusive cronista do Sport, imagine que ele conseguiu harmonizar aquele time do São Paulo Futebol Clube cheio de estrelas, o Zarzur, o Piolim. o Renganeschi. Luisinho, Sastre. Leônidas. Remo, Pardal, Teixeirinha... Time com muito astro de primeira grandeza não é fácil de conduzir. Joreca conseguiu. No Corinthians ele me disse: ’Vou colocar esse menino para jogar a seu lado’. O menino era o Luisinho. Foi então que nossa ala começou a funcionar. O

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que eu fazia com o Colombo, a tabela, passei a fazer com o Luisinho, com a vantagem que o Luisinho era canhoto, eu tinha sido meia na várzea, jogava na ponta porque foi ali que peguei nome, mas eu vinha com a bola dominada lá de trás, dava um toque para o Luisinho, Luisinho já soltava a bola lá na frente, no meu pé, e com a bola no p é ... Bem, era tudo mais fácil. Tenho a impressão de que foi aí que o Noronha começou a se complicar. O Noronha, do São Paulo, foi um dos melhores laterais que vi jogar, um dos meus melhores marcadores. Eu tinha uma dificuldade grande para passar por ele. Quando o Luisinho veio fazer ala comigo, as coisas mudaram. Luisinho pegava o Bauer, o Rui, chamava os dois, passava por eles, o Noronha não sabia se me marcava ou ia pra cima do Luisinho. Geralmente ia pra cima do Luisinho. A dificuldade que antes eu tinha com o Noronha, ele é que passou a ter comigo. Noronha foi um grande marcador. Luisinho não era um artilheiro, mas sabia fazer seus gois, não podia facilitar com ele. Driblava muito bem, aquele negócio de puxar a bola, coisa que se aprendia de pé no chão, descalço, em terra com pedrinhas. Puxava a bola, limpava o lance, pimba. Naquele jogo de 1942 entre Paulistas e Cariocas, foi assim que eu fiz o gol de empate. A seleção carioca era a seleção brasileira, Jurandir no gol, e dez craques. O jogo era em São Januário. Os paulistas perdiam de 3 a 1. Fizemos 3 a 2. Aí veio uma bola, puxei, limpei o lance, empatamos. Milani, do Corinthians, também já havia marcado um. O gol da vitória foi feito pelo Lima, que depois ficou com o apelido de Menino de Ouro. 4 a 3 em São Januário, de virada. Foi um jogo bonito. Tudo são recordações. Em 1951 passei a ser o capitão do time do Corinthians. Antes tinha sido o Domingos da Guia, o Hélio. O capitão mandava no campo. O técnico não podia entrar, ficar dando palpite como agora. Não havia substituição. Então era a coisa mais natural do mundo o técnico dar as instruções no vestiário e depois falar: Agora no campo você decide’. Combinávamos jogadas, mudávamos de posição, pedia isso pra um, mandava outro fazer aquilo, enfim, o capitão ordenava o time. Fiquei 14 anos no Corinthians. Treze anos como jogador, 14 meses como técnico. Um dia, eu já havia parado de jogar fazia uns anos, estou saindo da repartição da Prefeitura, em São Paulo, me dirigia à sede da Associação dos Lança­dores Municipais. Cruzo com um garotâo. Ele me pára na ma:

‘O senhor é seu Cláudio?’

‘Sou.’

‘O senhor ouviu o programa do Fiori Giglioti na Bandeirantes? O Cantinho da Saudade , no domingo? O programa contou sua história.’

Eu não havia ouvido o programa.

‘Foi legal, seu Cláudio.’

Fez uma pausa. Depois perguntou:

‘O senhor é corinthiano?’

‘Vou responder sua pergunta com outro pergunta: você é corinthiano?’

O garotâo riu:

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‘Claro, né!’

‘Pois então eu sou corinthiano por sua causa.’

‘Não entendi...’

Então eu expliquei que tudo o que tenho, tudo o que consegui, tudo que me faz sentir orgulho de — trinta anos depois de ter parado com o futebol — alguém ainda me procurar para que eu fale de meu tempo de jogador, tudo isso eu devo à torcida do Corinthians, que sempre me respeitou, e que eu respeito até hoje. A torcida corinthiana sempre acreditou em mim. Principalmente depois que passei a capitão da equipe, aquilo formou uma corrente de otimismo entre mim e as arquibancadas. A torcida confiava quando eu me dirigia aos companheiros de equipe. Muitas vezes eu me cansava mais conversando em campo do que jogando... Meu prestígio vinha da torcida. A torcida me dava confiança. E foi assim que o Corinthians se tornou o time das viradas. Como num jogo do Torneio Rio-São Paulo, Corinthians e Vasco. O Vasco tinha terminado o primeiro tempo vencendo por 4 a 1. Descemos para o vestiário, a torcida em pé, as bandeiras abertas. Aquele distintivo nosso balançando sem parar. Subimos do vestiário, o juiz apitou, no começo do segundo tempo o Corinthians faz o 2Q gol. Acontece que o Vasco estava impossível, desceu, fez o 5Q. Olhei lá para cima. as bandeiras, a face da torcida. Parece um rosto só. Um único nariz, dois olhos luminosos, uma única pele, uma única boca gritando ‘Corinthians!- A torcida é uma coisa só. Fala com um, anima o outro, berra com aquele, e a torcida esperando o milagre. O time corinthiano fez o 32. O Vasco tentou segurar, mas o fogo já tinha pegado no breu. Fizemos o 42. O pessoal do Vasco resfolegava, tentava montar um paredão na defesa. E a torcida nossa berrando, berrando, parecia que todo mundo havia ido pro campo com uma trombeta dessas de filme do Ben Hur. Aí encaçapamos o 5S gol. Ninguém mais segurava ninguém. No finzinho do jogo, por um triz, um fiapinho de nada, quase que faço o 6Q. Não fizemos o 6a, mas foi uma virada e tanto! Era um time de virada. O Baltazar ajudava muito, foi um jogador excepcional, um dos poucos cabeceadores que procuravam a bola. não esperava a bola chegar à cabeça. De centro, de escanteio, eu também já sabia onde ele gostava do lançamento: na meia-esquerda. atrás do beque central. Eu centrava, ele pulava, cumpri­mentava, fulminava. No escanteio, Baltazar saía fora da grande área. Quando a bola estava chegando ali na direção da marca do pênalti, na meia-esquerda. Baltazar estava chegando junto. De braços abertos, dava a cabeçada. Dificilmente errava.

Tivemos grandes jogadores. O Murilo, o beque Murilo. Foi um dos maiores zagueiros que vi jogar. Um primor de pessoa fora do campo. Um primor de jogador dentro do campo. Outro que não é muito lembrado, mas foi um craque, é Jackson. Culto, educado, era advogado, mesmo depois que paramos de jogar continuamos grandes amigos. Eu me hospedava em sua casa, ele também ficava em minha casa. Um grande jogador, era paranaense. Pessoas que não se consegue esquecer.

Eu chutava de trivela, quando o treino terminava para o grupo, eu ficava ali no campo, armava umas balizas com cabo de vassoura, ia passando por uma, por outra,

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por outra, carregando a bola. Também usava cabo de vassoura para treinar as cobranças de falta. Servia de baliza, o cabo de vassoura tinha a altura de um jogador. Aprendi a jogar a bola por trás da barreira, vi o Simão fazer muito isso. Foi assim que marquei aquele gol no Costa Pereira, do Benfica. Por trás da barreira. Quando ele olhou, não dava mais tempo de ir na bola. Me lembro que ele botou as duas mãos na cabeça, como quem diz: que será que aconteceu?3

No campo eu sempre falei muito. Uma vez, no Parque, eu já havia largado o futebol, encontrei o Roberto Belangero, grande companheiro, outro craque. Eu havia ido lá fazer uma palestra, bater um papo com os jogadores, a pedido do Oswaldo Brandão. O Belangero disse: ‘Puxa, Cláudio, você no campo era um chato, falava o tempo todo, enchia, mas a gente ouvia, sabia que você queria ganhar o jogo, queria ver o Corinthians vencedor, então a gente ia atrás. Você tinha autoridade’, o Belangero disse. E riu. É verdade. No campo, eu queria era ganhar o jogo. E assumia, é claro. Se eu pedia a bola, era para resolver.

O Trindade como presidente marcou época. Ele dizia: ‘Vocês têm um dom divino. Jogador de futebol tem o dom divino de poder dar alegria ao povo’. Se o time estava perdendo, ficava uma fera. Entrava no vestiário, arrancava o chapéu da cabeça, naquela época meio mundo usava chapéu, jogava o chapéu num banco, no chão, espinafrava. Ficava louco de raiva, furioso. ‘Vocês têm um dom divino’, ele berrava, ‘não desperdicem isso’. Tinha um grande coração. Foi um grande companheiro.”

Cláudio Cristóvão do Pinho foi o maior artilheiro da história do Corinthians. Mais de 300 gois!

“Nunca controlei os gois que marquei”, ele diz. “Jamais anotei isso. O que sei é que na minha vida devo ter perdido no máximo cinco ou seis pênaltis. Ou na trave, ou na defesa do goleiro. Pênalti chutado fora, que eu me lembre, nunca.”

Cláudio Cristóvão do Pinho é uma legenda. Os santistas o respeitam (começou lá...). No Palestra, foi o jogador que fez o primeiro gol para o clube já com o nome mudado para Palmeiras.

E no Corinthians Paulista, em sua estréia, fez um gol olímpico, chutando um escan­teio na esquerda, contra o grande arqueiro Oberdan, exatamente contra o Palmeiras.

Fotos, álbuns, troféus, cartas, faixas, velhos documentos, recordações em carne viva, eis Cláudio Cristóvão do Pinho sorrindo só de lembrar:

“Então o rapazinho me parou na rua e perguntou:

‘Você é corinthiano, Cláudio?’

Eu respondi:

‘Sou corinthiano por causa do Corinthians e por causa dos corinthianos!’ ”

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Notas

1. O pai de Cláudio era português, chamava-se Bento Cristóvão do Pinho. A mãe, brasileira, chamava-se Almira Tavares do Pinho. Cláudio casou-se em 1944 com Norma Corchs, moça de Santos, cuja família era de origem anglo-germânica.

2. O período inicial da carreira futebolística de Cláudio no Corinthians Paulista foi marcado, como se vê, pela passagem de alguns técnicos que não aparecem na relação habitual dos técnicos do clube, como é o caso de Vani e Aguiar. Por outro lado, Cláudio deixou de mencionar João Chiavone, que consta como tendo orientado o time de 1943 a 1945... Às vezes os técnicos passam como nuvens no céu. O próprio Foquer (José Foquer), pelo visto, dirigiu o time no período de 1935-1936 e também teve outra rápida passagem já tendo Cláudio como um de seus comandados. A propósito, vale lembrar que José Castelli (Rato) e Oswaldo Brandão foram os técnicos que dirigiram o time corinthiano em maior número de partidas em todos os tempos. Rato chegou a ser técnico interino do Corinthians por... 19 vezes! Cobria “buracos” entre a saída de um técnico e a contratação de outro. Essa rotatividade não constitui um fenômeno exclusivo do passado. Em 1991, Carlos Alberto Silva permaneceu à frente do time alvinegro durante somente 20 dias, sem disputar sequer um jogo de campeonato. No depoimento de Cláudio Cristóvão do Pinho, a menção a Trigger como um técnico que passou a exigir marcação mais rigorosa dos jogadores do meio-campo e acabou provocando o afastamento do grande Brandão é pertinente e elucidativa.

3. A perícia na cobrança de faltas era decorrência quase sempre de treino e da observação do desempenho de outros craques. Simão, cujas cobranças de falta Cláudio apreciava, revelou ao ponta-direita que aperfeiçoara esse tipo de jogada vendo Hércules. Hércules era mineiro de Guaxupé, onde nasceu em 1912, jogou no Corinthians, foi também exímio batedor de faltas, e tinha tido como “modelo” o velho Bianco. Raramente, porém, um time tinha apenas um batedor de faltas.

Cláudio Cristóvão do Pinho. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Luís Carlos é um exemplo de valorização da prata de casa, formado no próprio clube, e que devolveu ao Corinthians uma personalidade e uma firmeza na defesa das quais o time vinha sentindo falta. Desses jogadores que o torce­dor olha e diz: “Esse é corinthiano!” (Foto Arquivo Corin­thians)

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Baltazar, o Cabecinha de Ouro

C ertos apelidos ficam fazendo parte da personalidade das pessoas às quais sâo dados. Cabecinha de Ouro é um apelido insubstituível, vale como se fosse um

gorrinho, um boné sob medida, e marcou para sempre a capacidade de goleador de Oswaldo Silva, o Baltazar. Aliás, Baltazar também já era apelido. Na verdade, quem se chamava Baltazar era um irmão de Oswaldo — também jogador de futebol. Oswaldo Silva assumiu o nome do irmão e projetou-se no futebol como Baltazar. Não contente, ficou sendo também o Cabecinha de Ouro. Baltazar, talvez, por lembrar um dos três magos — que a tradição diz que era negro — que foram levar presentes ao menino Jesus recém-nascido. Cabecinha de Ouro porque quando Baltazar saltava, recolhendo no alto os centros medidos de Cláudio ou de Mário, e impulsionava a bola com sua abençoada cabeça negra com a rapidez do relâmpago e a pontaria que parecia feita com alça de mira, o goleiro precisava ser de circo, e de circo bom! Geralmente, ia buscar a bola no fundo da meta. Ao longo de sua existência o Corinthians Paulista muitas vezes — cerca de 20 — contou com jogadores que se distinguiram como principais artilheiros nas temporadas. Alguns, em mais de uma temporada. Neco, Teleco, Milani, Servílio... Claro que é emocionante ver Neco ajustar a bola para uma cobrança de falta e fazê-la viajar, como um foguete, para balançar as redes. Quem nâo se lembra de Cláudio, que treinava horas para atingir a perfeição nesse tipo de cobrança? Mas foi Baltazar — artilheiro paulista em uma única oportunidade, em 1952, com 27 gois — quem alcançou a maior popularidade junto à torcida corinthiana. Dono de uma cabeçada fulminante, goleador implacável, foi num jogo contra o Vasco, em que o Cabecinha de Ouro subiu e marcou, que surgiu a marchinha que tomou conta das ruas:

“Gol de Baltazar...Gol de Baltazar...”

Baltazar nasceu em Santos, em 14 de janeiro de 1926. É avô. Do casal de filhos, o rapaz, Carlos Alberto, também seguiu carreira futebolística, quarto-zagueiro. Apelido de Carlos Alberto: Batata.

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Reparem na curiosidade: Oswaldo Silva tinha um apelido verdadeiro, Batata, que é como o chamavam em Santos, nos campos da várzea, e nas concentrações. Batata ficou sendo o apelido sem uso, que passou para o filho. No lugar de Batata, Oswaldo Silva projetou-se como Baltazar, que era o nome do irmão. E Baltazar recebeu outro apelido do povo: Cabecinha de Ouro.

Baltazar veio do Jabaquara, de Santos, para o Corinthians no ano de 1946 e jogou no alvinegro do Parque São Jorge até 1959- No fim da carreira, jogou pelo Juventus, até 1961. No ano seguinte iniciou carreira de técnico, auxiliando Oswaldo Brandão no próprio Corinthians. A princípio ocupava a posição de meia-direita, até mesmo no Corinthians, mas se consagrou como centro-avante no famoso ataque formado por Cláudio, Luisinho... Acontece que Baltazar não marcava gois apenas de cabeça. Eram, sim, talvez os mais bonitos, os mais espetaculares, os mais inesperados — Baltazar vinha de trás dos zagueiros, zip! O impulso e o arremate indefensável, não adiantava o goleiro se espichar— , mas dos 267 gois que dizem que ele marcou, em 402 jogos com a camisa do Corinthians, 67 “apenas” foram de cabeça! Na verdade, Baltazar não teve preocupa­ção de registrar o número certo das vezes que vazou defesas adversárias... E gol de cabeça, para ele, não tinha nenhum segredo: “Bastava saber saltar, ter direção e... enfrentar os zagueiros adversários”. O impulso das pernas Baltazar aprendeu jogando vôlei na praia de Santos, no time do Santa Cecília, no bairro do Embaré, Canal 4. A esse time de vôlei Baltazar tratou de levar Cláudio, que jogava no Santos Futebol Clube. Cláudio era levantador. Baixinho, fazia sua parte. Baltazar cortava. Coincidência: os dois iam acabar jogando juntos no Corinthians. Diz Baltazar: “O Baixinho (apelido de Cláudio) fazia metade do trabalho. Bom de centro, de cobrança de falta, com bola correndo, com bola parada. Pelo alto, eram tiro e queda. Por baixo, também dava para aproveitar muita bola que ele chutava para a área...”

Baltazar, um craque, teve várias passagens pela seleção brasileira. Começou em I 95O como centro-avante titular nos jogos da Taça “Oswaldo Cruz” e Copa Rio Branco, contra o Paraguai e o Uruguai, respectivamente. No mesmo ano foi convocado para a Copa do Mundo, no Brasil. Disputou dois jogos: contra o México (no Maracanã) e contra a Suíça (no Pacaembu). Em 1952, no Campeonato Pan-Americano, em Santiago, no Chile, ajudou o Brasil a conquistar o primeiro título internacional de futebol jogando no exterior. Em 1958, em Lima, no Peru, Baltazar foi vice-campeão sul-americano, com outros dois corinthianos, Cláudio e Gilmar. Nas eliminatórias para a Copa de 54, Baltazar Cabecinha de Ouro teve participação importante na classificação do Brasil, nos confron­tos com o Chile e o Paraguai. Disputou sua segunda Copa do Mundo em 1954, na Suíça, participando dos dois primeiros jogos: contra o México, no estádio Charmilles (Brasil, 5 a 0), e contra a Iugoslávia, no estádio La Fontaise (empate de 1 a 1).

Depois de ser auxiliar de Brandão e dirigir os juvenis e juniores do Corinthians, Baltazar chegou a técnico do time principal, mas aborreceu-se “por não admitir interfe­rência de diretor em meu trabalho”, diz. Foi trabalhar em clubes do interior de São Paulo

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e depois em Campina Grande, na Paraíba. Encerrou sua carreira de técnico em 1979, no União de Mogi das Cruzes. Mas Baltazar permaneceu ligado ao futebol, orientando equipes de juvenis, juniores e “dentão” do Centro Esportivo e Recreativo do Trabalhador, órgão público ligado ã Secretaria de Promoção Social do Estado de São Paulo. Em 1953, Baltazar foi protagonista de um episódio que durante horas deixou a cidade de São Paulo apreensiva, tal era a fama que o jogador gozava junto à população. Baltazar estava concentrado com a seleção brasileira em São Lourenço, cidade de Minas Gerais, quando sofreu uma contusão no tornozelo e viajou para São Paulo para fazer tratamento médico e aproveitar para renovar seu contrato com o Corinthians. Viajava em seu próprio automóvel, um Cadillac conversível 1952. Na estrada, um desarranjo na parte elétrica provocou um incêndio que, começando na capota do veículo, se alastrou e destruiu o automóvel por inteiro. Baltazar não teve o menor problema para prosseguir viagem, arrumou carona imediatamente, foi reconhecido logo como o Cabecinha de Ouro, craque do Corinthians e da seleção. Quanto ao automóvel perdido, também não teve com que se preocupar: logo depois ganhava um Studebaker zero quilômetro, como “o craque mais querido do Brasil”, num concurso promovido pelos Diários Associados, em 1954... “Foi um prêmio que ganhei da maravilhosa torcida do Corinthians, que sempre admirei e respeitei por toda a minha vida.”

Oswaldo e Baltazar, dois irmãos que gostavam de jogar bola. Moravam no bairro do Macuco. Baltazar se machuca, o pai estrila. “Nada de bola daqui pra frente!” Baltazar obedece. O Oswaldo, não. Mais jovem, mais serelepe, dá suas escapadas. O pai embravece. “Seu” Silva trabalha no Sindicado dos Ensacadores de Café, em Santos, leva o filho Oswaldo para costurar sacos, sob sua vigilância. E adianta? Oswaldo sai de fina, vai correr atrás da pelota. Dizendo: “Vou jogar por dois, por mim e pelo Baltazar.. O apelido pega: Baltazar. Oswaldo fica sendo o Baltazar. Num domingo de tarde, Baltazar está jogando em Santos pelo Juvenil Guarani, dois senhores bem-vestidos o chamam de lado. Fazem o convite: jogar no Monte Alegre, da cidade de Piracicaba. Melhor que ficar costurando saco de café a vida inteira... Baltazar começa sua carreira lá, em Piracicaba. A família fica aflita. A colônia espanhola de Santos, que torcia pelo Jabaquara — o famoso “Jabuca” — , chia: “Como é que deixamos o menino ir para Piracicaba?”

Baltazar fica um ano lá no interior, e volta para a cidade de Santos, para o bairro do Macuco, para o Jabaquara. O Jabaquara que tinha uma linha e tanto: Alemãozinho... Bahia, Leonaldo, Tom Mix! Baltazar entra na meia-direita, sua primeira posição. E completa o ataque, arrasador. O Corinthians foi buscá-lo para a meia-direita. Começou na meia-direita. Joreca olhou, observou, pensou, pediu: “Baltazar, fica de centro-a vante”. Baltazar nunca mais saiu da posição. Uma tarde. no Pacaembu, num jogo contra o Vasco, Baltazar saltou, procurou a bola, tum! No fundo da rede.

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Alfredo Borba, radialista, compositor, jornalista, corinthiano até o último fio de cabelo, berrou: “Gol! Gol de Baltazar! Salta o Cabecinha! Gol de Baltazar!”

Alfredo Borba chegou em casa rouco. Gargarejou uma salmoura, pegou um pedaço de papel e escreveu a letra da marchinha que o povo inteiro ia cantar depois em homenagem ao menino do bairro do Macuco.

Baltazar recebeu o título de “o cra­que mais querido do Brasil” num concurso nacional, em 1954. A tor­cida corinthiana votou em peso e garantiu o resultado a seu favor. (Foto Arquivo Corinthians)

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LVIII

“O mais querido do Brasil”

No ano de 1955 foi feita uma pesquisa em todo o território nacional, uma espécie de concurso: qual o clube mais querido do Brasil? — era a pergunta. As pessoas

se manifestavam. Em São Paulo, Goiás, Minas, Rio Grande do Sul, Espírito Santo... Quem promovia a pesquisa-concurso era a Organização Vítor Costa, a TV Paulista, que depois viria a ser a TV Globo atual. O concurso tinha também o apoio do jornal Última Hora, que estava revolucionando a imprensa brasileira. O resultado não foi nem um pouco surpreendente: deu Corinthians, na cabeça! 471.450 votos elegeram o Corinthians Paulista o clube mais querido do Brasil. Em segundo, com 155.300 votos, apareceu o Flamengo. A terceira colocação ficou com o São Paulo F. C., com 150.150 votos. O Palmeiras ganhou o quarto lugar, com 61.500 votos. O Corinthians Paulista conquistava mais um título, feito de carinho e admiração dos torcedores. E, para não variar o hábito, conquistou mais uma soberba taça, que está entre seus mais lindos troféus.

Taça “Mais Querido do Brasil". (Foto Arquivo Corinthians)

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LIX

Elisa, Tantã, Chico Mendes: o torcedor

Os outros clubes são fundados e depois conquistam sua torcida. O Corinthians Paulista é a torcida que inventou uma devoção particular e a transformou num

clube. Mesmo sem nome definido, o clube do Bom Retiro já era dono de uma torcida. Tinha feito um pacto com ela, gerado uma simbiose, armado uma união. Daí vem a energia, a base, a seiva que explica a sobrevivência do Corinthians Paulista, mesmo quando tudo e todos parecem conspirar contra sua existência. Cabe ao jogador do Corinthians entender esse aspecto do fenômeno corinthiano: não basta jogar no time, vestir a camisa no corpo; é necessário mergulhar nessa crença de que o povo é também o time. A história do Corinthians, de César Nunes a Idário, de Munhoz a Marcelo, transforma em ídolo nem sempre os que jogam melhor, mas sim os que se jogam por inteiro na defesa do clube. César Nunes jamais foi um craque. Até é muito pouco citado quando se fala do Corinthians dos primeiros tempos. Mas a influência que César teve na alimentação da mística corinthiana — na disponibilidade total com que se entregou ao então pequeno clube — é quase insuperável. Dizem que Idário durante a semana era pedreiro: construía sua casa. Levantava paredes, carregava tijolos, concreto, respaldava alicerces. No domingo, Idário esquecia o cansaço. Entendia a torcida, como poucos. Ao lado de Goiano, Roberto, Julião, Aleixo, ele se tornava mais que um jogador corinthiano. Ele se tornava mais um torcedor.

É a esses que o torcedor corinthiano se afeiçoa, é com esses que ele se integra e se faz um único personagem. O Corinthians sem o torcedor seria um Boeing sem turbinas, um navio sem lastro e sem leme, uma ponte de aço cortada ao meio entre duas margens de rio. Não teria sentido. Nem sentido, nem nome, nem nada. Simplesmente não seria o Corinthians Paulista.

Na Cidade do Corinthians, caminhando para a direita por entre os canteiros do jardim, na direção das antigas lagoas em cuja superfície antigamente esvoaçavam libélulas e mamangabas ferozes, há um pequeno monumento, um obelisco sem nada de ostentação. É um pedaço de pedra com quatro faces, homenagem ali erguida em 1952 ao Torcedor Corinthiano. Não está por acaso, para preencher uma lacuna. O

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monumento está ali por uma obrigação de consciência de quem sabe o que é o Corinthians, quem o fez, quem o sustenta, quem não o deixa esmorecer nas horas escuras, e quem com ele brilha nas horas de glória e alegria. “Torcida que vibra, entusiasma, sofre, aplaude e delira. Torcida exemplo, sempre coesa e una, nas horas claras e nos momentos crepusculares. Torcida razão primordial de todas as vitórias.”

Bem, poderiam ser apenas palavras gravadas num momento de oportunidade. Mas no Parque São Jorge não se gravam à toa palavras na pedra. O humilde obelisco está naquele lugar plantado entre flores e arbustos para sussurrar aos ouvidos dos que estão chegando agora, dos corinthianos que não ouviram o som da galera na Ponte Grande, no Lenheiro e mesmo nesse Parque São Jorge quando era apenas metade água e metade terra, enfim, para dizer aos ouvidos dos corinthianos mais recentes que a torcida do Corinthians é — ela mesma — o próprio monumento.

Uma torcida assim costuma ter estrelas-guias, aquele torcedor que vai à frente e está presente mesmo quando aparentemente não o vemos. São símbolos. Quando o jogo acaba, quando as luzes se apagam, quando o último degrau da arquibancada fria fica vazio, quando sai o último porteiro e fecha a porta, quando o placar retorna ao zero a zero para o jogo do outro dia, quando o estádio emudece e adquire a sisudez do túmulo no cemitério, enfim, quando nada mais existe a não ser o eco seco da porfia, o torcedor-símbolo, invisível, continua em seu posto. Sua bandeira ainda tremula. O torcedor-símbolo faz parte das luzes e das sombras dos estádios.

Elisa foi assim. A torcedora-símbolo do Corinthians. Ela falava:“Quando eu morrer, só quero uma coisa: que a bandeira do clube cubra meu caixão.

Minha alma pertence ao Corinthians”.Elisa gostava de falar da alma:

“Minha alma também é preta e branca. Sou toda Corinthians por dentro e por fora”.Elisa conheceu Manuel Correcher, e depois dele todos os presidentes que o

sucederam. Era amiga de todos. Amiga de todos os jogadores. Amiga de todos os torcedores corinthianos. Valente, doce, alegre, serena, corajosa, as outras torcidas a olhavam com respeito, talvez um pouco de despeito — era uma mulher franzina demais para tamanha grandeza. Trazia o Corinthians na face escura, trazia o Corinthians no peito. E, de sobra, era cozinheira de mão cheia. Trabalhava para um patrão são-paulino que jamais pôde se queixar de feijão queimado ou bife por demais frito por causa de uma derrota. Um de seus netos, Benedito, tinha sido batizado pelo Gilmar, o goleiro que Elisa tratava como um filho. Tinha uma bandeira branca, bem branca, com o distintivo do Corinthians lavrado em lantejoulas, fios de seda e purpurina. Elisa Alves do Nasci­mento. Nascida na cidade paulista de Tietê — aquela terra do fumo em corda famoso no mundo inteiro (“Eeeeta, fuminho bão!”) — , menina pobre que fugia da mãe para ver jogo de futebol, a mãe lhe escondia os sapatos — e adiantava? — . Elisa os achava, pulava a janela. Marido, filhos, netos, a vida em branco e preto. Em 1935. Elisa ficou conhecendo Manuel Pereira, aquele antigo pintor de paredes que queria que o clube se chamasse

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Santos Dumont. ou Carlos Gomes, ou que outro nome fosse, menos Corinthians. Mas Pereira foi voto vencido. Esse grande Manuel Pereira, que tirava dinheiro do bolso toda semana para ajudar o clube, apertou a mâo da Elisa... No ano que Pereira estava fundando o Corinthians, Elisa estava nascendo: 1910. Pura coincidência. Mas querem coincidência mais pura que essa? Elisa disse uma vez: “Jamais ganhei uma camisa do time”. Nem precisava. Sua camisa alvinegra estava na pele de seu corpo esguio, elétrico, que aos poucos os anos foram alquebrando. Elisa, a torcedora-símbolo, faleceu no dia l s de agosto de 1987. Tinha 77 anos. Seu lugar, na “curvita” dos bancos de madeira das arquibancadas, ali entre os portões monumentais e as numeradas do estádio do Pacaem- bu, foi preenchido pela torcida. Mas na história do Corinthians Elisa, a torcedora-símbo- lo, continua ocupando sua cadeira cativa.

“Fala, Chico! E o coração?”

Já inaugurou uma ponte de safena, esse dom Francisco Dionísio Mendes, cujo pai tinha uma fábrica de móveis na rua Caetano Pinto, lembra? Faz tanto tempo! Esse é outro também que não desliga. Bate o carro, quebra o braço, quase que a alma dele vai para o espaço, e uma semaninha depois me aparece no estádio, lampeiro, o chapéu elegante na cabeça, o charuto de categoria para fazer pirraça para a torcida adversária. Chico Mendes é corinthiano do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça e a molecada, para encher o saco dos palestrinos, chegava à janela deles e gritava: “P em ach ia/”, e depois fazia aquele barulho com a boca como se estivesse tocando corneta enferrujada. Assim: “prfffehchfggfff! ”... O comandante da alegria, o rei da simpatia, chega Chico Mendes, não há quem fique triste. Um modo especial de ver a vida. Não com óculos cor-de-rosa. Com óculos de bondade, de cortesia, de familiaridade. Um coração cheio de ternura.

“Chicoooo! E o coração?”

“Firme! Como o Corinthians!”

Uma manhã Chico Mendes começou a mexer nos seus baús de saudades: papéis, papeletas, revistas, cartazes, opúsculos, recortes de jornais, adesivos, frases escritas em guardanapos do Gouveia, do Parreirinha, do Spadoni, discos, uma garrafa de pinga marca “Corinthians” — “deve ter uns quarenta anos essa pinga aí” — , e de repente acha o primeiro hino do Corinthians. “Vou cantar pra você”, diz o Chico. Pigarreia, ensaia. Bota os óculos. Pigarreia outra vez. Tenta imitar o Pavarotti. “Escuta essa, é de 1930, o nosso primeiro hino: “Luctar... Luctar.. Suspende o canto. Desafinado como só e le ... “Desculpe, estou afônico. Tá, leva a letra!”

Seus olhos estão luminosos de lágrimas.

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Lembra do Tantà, o Francisco Piciochi? Ia ao estádio de muleta. Grande nadador do Corinthians. Gostava de contar vantagem. Diz que foi um dos que atacaram a sede do clube na rua José Bonifácio, em 1933- • ■ Imagine, o Tantã! O que ele fazia mesmo era chegar com a imponência elegante, o terno completo, as muletas, olhar a arquibancada, as gerais, ir seguindo para as numeradas. Os cabelos bem penteados, o tipo de calabrês enfezado era só figuração. Tinha excelente memória. Recordava o jogo do dia 6 de janeiro de 1931, em Santos, em que a torcida corinthiana encheu o estádio. Só da estação do Brás saíram oito vagões lotados de corinthianos. Cinco a dois para o Corinthians contra o Santos, que festa! A torcida voltou sem camisa, cantando, foi recebida com rojões e bandeirolas no pátio da Estação da Luz.

Grande Tantà. Chegava quase sempre em cima da hora de o jogo começar. Contam dele uma história, talvez até verídica: que Tantã mudou a data do casamento para não perder um jogo do Corinthians.

Uma lembrança, uma bandeira, uma muleta, um coração, um monumento para essa gente que nas arquibancadas pula e grita: “Vai, Corinthians!”

E há também a história do cego Didi, cego mesmo, das duas vistas, que raramente perdia um jogo do Corinthians. Ia ao campo, sempre encontrava um lugar — quem não faria a gentileza? — , ligava o radinho de pilha, colava na orelha, era como se estivesse enxergando tudo, sem perder uma jogada. Depois ia discutir os lances. Tinha visto mais coisas no estádio que muito torcedor que ficava bebendo cerveja e comendo amendoim.

“Vai, Coringão!”

Que torcida! Tem mesmo que ganhar monumento.

Cláudio Casella é conhecido nos arquivos das redações dos jornais. Funcionário da Prefeitura, nas horas vagas — à noite, fins de semana, feriados — vai catando dados, conferindo resultados de partidas antigas, esquecidas, é um pesquisador do Corinthians. Descobre fatos que pouca gente conhece, já ouviu depoimentos da maior parte dos jogadores do Corinthians nos últimos 20 anos. Às vezes, o pessoal do próprio clube o consulta, quando surge alguma dúvida que precisa ser esclarecida. "Quem marcou o primeiro gol na inauguração do Alfredo Schurigf Cláudio Casella sabe essa de cor: “De Maria, aos 29”. Vinte e nove minutos? “Não, 29 segundos de jogo.” Quais os maiores artilheiros do Corinthians em todas as épocas? “Cláudio, já achei 300 gois; Teleco, 250. Baltazar, 200... Flávio, Sócrates, uns 180... Ainda estou contando...” Cláudio Casella é pesquisador por vocação, por prazer, por hobby. Não ganha um centavo por isso. Começou esse trabalho com 12 anos. Nunca mais parou. Um jeito especial de torcer pelo Corinthians.

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Antônio Del Nery descobriu, num dicionário de inglês, que corinthian significa gentieman. Está no dicionário, não é invenção de torcedor corinthiano. Del Nery é um torcedor especial: coleciona chaveiros do Corinthians Paulista. Começou em 1957 — sua coleção tem cerca de 150 chaveiros, de todo tipo, formato, tamanho, cor, material. Nenhum repetido. Um diferente do outro. Às vezes chega a uma cidade, vai comprar fósforos numa charutaria de beira de estrada, olha, descobre um chaveiro que não tem. Compra na hora. E esquece de pegar os fósforos. Certa ocasião, num fim de mundo, viu um chaveiro pendurado na cinta de um caixeiro-viajante. Bonito, de acrílico, o distinti- vão do Corinthians colorido. Fora da coleção.

“Por favor... esse seu chaveiro.E explicou seu negócio ao caixeiro.“Faria a gentileza de me vender?”O caixeiro deu de presente. Del Nery puxou do bolso um chaveiro repetido —

quase sempre tem um ou dois de estepe — , deu em troca. Pronto. Mais dois torcedores corinthianos felizes.

“Vai, Corinthians!”

Elisa. (Foto Carlos Namba— Abril Imagens)

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Chico Mendes. (Foto Hilton Ribeiro)

A Loteria Federal homenageia o Corin­thians. Chico Mendes comprou esse bi­lhete. final 54 — o ano em que o clube do Parque São Jorge faturou mais um título centenário. (Arquivo Chico Mendes)

Antônio Del Nery e sua in­crível coleção de chaveiros corinthianos. (Foto Arqui­vo Antônio Del Nery)

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No marco de pedra, no Parque Sãojorge, uma placa de bronze homenageia a fonte da principal força do clube: o Torcedor. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

“À Elisa, sempre presente em nossos corações, pela garra, fé e lição de vida” — um preito de agradecimento do clube que foi um pedaço de sua vida. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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I X

A camisa

A menos que ela tenha sido adotada pelo clube nos seus dois primeiros anos de existência — de 1910 a 1912 — , dos quais não restaram informações seguras e

muito menos fotografias, é bastante improvável que a camisa do Corinthians Paulista tenha sido alguma vez de outra cor que não branca, com golas e punhos pretos. Era esse preto das golas e dos punhos que desbotava, tornando-se azulado. No começo, os calções foram brancos. Feitos de saco. Sem dúvida, com o correr dos anos o clube adotou outros modelos, os mais variados, para a camisa, mas manteve sempre o preto e o branco como sua marca registrada. O modelo mais antigo de uniforme voltou a ser usado, excepcionalmente, numa única partida, contra a Ferroviária de Araraquara, num jogo que marcou as comemorações do jubileu de diamante do Corinthians Paulista. Nesse dia, e somente nesse dia, em 1985, os jogadores vestiram aquela camisa que era amarrada no peito com cordões pretos.

Atualmente a camisa está modernizada. E continua branca e preta.Porém, houve ocasiões especialíssimas em que o Corinthians abdicou do branco e

preto no uniforme. Numa dessas ocasiões foi para prestar uma comovente homenagem póstuma ao time do Torino, da Itália, que perecera num desastre aéreo ocorrido em Superga, no dia 4 de maio de 1949- O Torino havia se exibido no Brasil e realizara sua última partida exatamente contra o Corinthians. Fora um jogo belo e emocionante, um encontro de artistas da bola, em que a garra corinthiana prevalecera por 2 gois a 1. A tragédia abalou todo o mundo esportivo e especialmente a gente corinthiana. A melhor forma que o Corinthians Paulista encontrou para mostrar sua tristeza e o respeito para com os craques italianos com os quais pouco antes havia confraternizado no campo foi envergar a camisa grená do Torino em seu primeiro jogo após o desastre, enfrentando a Portuguesa de Desportos. Uma foto do time corinthiano com a camisa do Torino foi posteriormente enviada à sede do clube na Itália, com palavras de carinho e eterna solidariedade.

Em 11 de fevereiro de 1969. também excepcionalmente, numa excursão ao Peru,o Corinthians Paulista enfrentou no Estádio Nacional de Lima o time do Universitário do Peru, num jogo amistoso, vencendo por 5 a 2. O time do Corinthians — Diogo,. Lidu, Ditâo, Luís Carlos e Maciel; Dirceu Alves e Rivelino: Paulo Borges, Tales, Benê e Eduardo

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— nesse jogo vestiu camisa igual à do Penarol, preta e amarela, listas verticais, e gola vermelha, mas sem distintivo e sem número.

Como se vê, poucas vezes o Corinthians abandonou suas cores tradicionais, o preto e o branco. Curiosamente, porém, no dia 28 de junho de 1956, no Estádio Municipal do Pacaembu, o Corinthians Paulista enfrentou o Espanhol, da cidade de Barcelona, vencendo-o por 3 a 0, com o adversário envergando o uniforme da... seleção paulista de futebol! Por uma razão chinfrim: a bagagem com os uniformes oficiais do time espanhol ficou retida no Rio, não chegou a tempo para o jogo.

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I.XIA “Taça dos Invictos”

A “Taça dos Invictos” é um troféu instituído pelo jornal A G azeta Esportiva destinado ao clube que conquistasse o maior número de vitórias e empates no

campeonato paulista de futebol. Sendo de posse transitória, a taça somente ficaria em definitivo com o clube que superasse a marca de jogos invictos por três vezes. É por essa razão que a “Taça dos Invictos” está no Parque São Jorge para sempre, carregada nos ombros do povo, numa festa que se espalhou pelas ruas da cidade. Com um time formado basicamente por Gilmar, Olavo e Oreco; Paulo, Valmir e Goiano; Cláudio, Luisinho, índio, Rafael e Boquita, e tendo como técnico Oswaldo Brandão, o Corinthians conquistou definitivamente o troféu em 1957, com uma série de 35 partidas invictas que se iniciou em 16 de junho e terminou dia 22 de dezembro daquele ano. Com estes resultados: — Corinthians, 2 x Taubaté, 2; 2a — Corinthians, 3 x Ipiranga, 1; 3a — Corinthians, 7 x Ferroviária, 1; 4a — Corinthians. 2 x Santos, 1; 5a — Corinthians, 1 x XV de Jaú, 1; 6a — Corinthians, 2 x XV de Piracicaba, 1; 7a — Corinthians, 2 x Guarani, 1; 8a — Corinthians, 2 x Portuguesa, 1; 9a — Corinthians. 1 x Nacional, 0; 10a — Corinthians, 5 x Linense, 0; 11a — Corinthians, 3 x Noroeste. 2; 12a — Corinthians, 2 x São Paulo, 1; 13a — Corinthians, 5 x Botafogo, 1; 14a — Corinthians. 0 x Portuguesa Santista, 0; 15a — Corinthians, 2 x Ponte Preta, 2; 16a — Corinthians. 3 x Juventus, 0; 17a — Corinthians, 2 x São Bento, 1; 18a — Corinthians, 1 x Jabaquara. 1: 19a — Corinthians, 1 x Palmeiras, 1; 20a — Corinthians, 3 x XV de Piracaba, 1; 21a — Corinthians, 1 x São Paulo, 1; 22a — Corinthians, 4 x Botafogo, 0; 23a — Corinthians. 3 x Portuguesa Santista, 2; 24a — Corinthians, 1 x Jabaquara, 0; 25a — Corinthians. 3 x Santos. 3; 26a — Corinthians, 3 x Ponte Preta, 1; 27a — Corinthians, 2 x Portuguesa. 2; 28a — Corinthians, 1 x Palmeiras, 0; 29a — Corinthians, 5 x Portuguesa Santista. 1; 30a — Corinthians, 5 x Ponte Preta, 1; 31a — Corinthians, 3 x Palmeiras, 1; 32a — Corinthians, 2 x Botafogo, 2; 33a — Corinthians, 1 x Portuguesa, 0; 34a — Corinthians, 5 x XV de Piracicaba, 2; 35a — Corinthians, 1 x Jabaquara, 0.

Jogos-, 35; Vitórias-. 25; Empates-. 10; Gois Prá. 89; Gois Contra: 35

Em 1990, o Corinthians Paulista fez mais uma série de 34 jogos invictos.

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IXII

Com a camisa da seleção brasileira

No dia 16 de novembro de 1965, o Corinthians vestiu a camisa da seleção brasileira e representou o Brasil num jogo histórico, em Londres, contra o selecionado

inglês. O resultado, em termos numéricos, foi desfavorável: 2 a 0 para os ingleses. Mas a crônica foi unânime em elogiar a atuação dos jogadores brasileiros, que apresentaram um futebol digno das tradições que lhes competia defender. Uma derrota, mas em circunstâncias muito especiais: o Corinthians atendeu a uma convocação da Confedera­ção Brasileira de Desportos e olhou menos para si, para os sacrifícios que iria se impor— como se impôs — , e mais para o cumprimento de uma missão que lhe foi honrosa­mente atribuída. Na tarde do dia 14 de novembro de 1965, o Corinthians havia jogado com o Santos uma partida dificílima, 4 a 2 para a equipe santista. Um jogo duro, do campeonato paulista, sob uma temperatura de 30 graus, no estádio do Morumbi. Termina o jogo, o Corinthians embarca para Londres e vai encontrar uma temperatura de 3 graus abaixo de zero. É nesse clima, sem nenhuma adaptação, sem o menor tempo para recuperar-se do desgaste do jogo anterior, que o Corinthians entra em campo. Com a camisa da seleção. Perde o jogo, em dois contra-ataques dos ingleses. Mas a camisa da seleção foi dignificada — os ingleses aplaudiram de pé Marcial e seus companheiros corinthianos.

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Oswaldo Brandão, técnico. Marcial, Clóvis, Maciel, Galhardo, Édson, Dino Sani, Eduardo e Heitor. Abaixados: Jair Marinho, Nei, Rivelino, Marcos, Flávio, Geraldo José e Gilson Porto. (Foto Arquivo Corinthians)

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LXIII

Os Gaviões da Fiel: torrente de paixão, emoção diferente...

T omando emprestadas as palavras do sambista ao definir saudade — “torrente de paixão, emoção diferente” — , elas se aplicam com perfeita sintonia aos Gaviões da Fiel, paradigma da certamente maior torcida uniformizada do mundo. E torcida

uniformizada do Corinthians Paulista, nem podia ser de outro clube.

Os primeiros torcedores uniformizados na vida do Corinthians apareceram, na verdade, quando os Gaviões nem sonhavam em existir. Foi na Ponte Grande. Ali, nas tardes remansosas, nas disputas de canoagem, já perambulavam crianças conduzidas pela mão dos pais, e elas vestiam camisetas com o distintivo corinthiano. Mais tarde, no Parque São Jorge, esse grupo desorganizado, espontâneo, se unia mais pela solidarie­dade às cores do clube do que propriamente por um propósito grupai. Mas as torcidas uniformizadas não passavam de manchas esparsas nas arquibancadas, mesmo após a inauguração do estádio do Pacaembu. Os Gaviões da Fiel foram os primeiros que se organizaram de verdade, com o propósito definido de ajudar o clube — e ninguém mais que o Corinthians precisava de uma torcida ao lado. É claro que em 1928 funcionava dentro do próprio Corinthians um grupo denominado Extra-Corinthians, torcedores também organizados que promoviam competições internas, participavam de torneios externos e até acabaram se filiando, como militantes esportivos, à Liga Athletica Paulista, ganhando troféus e ajudando a glorificar a imagem do Corinthians Paulista.

Mas os Gaviões da Fiel são outra coisa: sâo o povo uniformizado com as cores corinthianas. É uma milícia desarmada, mas valente. E, de fato, fidelíssima. Não há chuva, nâo há terremoto, não há tufão que afaste os Gaviões de seu território nas arquibancadas, abertas suas bandeiras, estrugindo sua bateria. Os Gaviões da Fiel nasceram no dia l 2 de julho de 1969, depois de um jogo do Corinthians no Morumbi, em que o clube estava, mais uma vez, fora da disputa do título. Um grupo de torcedores teve então um entrevero com um dirigente corinthiano, seguindo depois para participar de um programa de televisão, onde desabafaram sua mágoa. O grupo — quase todo formado por jovens — se reuniu entâo na praça 14 Bis, no bairro do Bexiga, em São Paulo. Doze corinthianos participaram dessa reunião. Foram eles que decidiram formar uma torcida — organizada

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e independente. Essa é a principal característica dos Gaviões: organizados e inde­pendentes. Os Gaviões tiveram várias sedes, a maioria improvisada: rua Conselheiro Ramalho, na Bela Vista (o Bexiga), alameda Santos, numa garagem. Adotou-se o nome de Gaviões da Fiel — Força Independente. Gaviões, por quê? Gavião é forte e livre — eles dizem. Não tem fins lucrativos. Fiscaliza, a seu modo, a administração corinthiana. Nas vitórias ou nas derrotas, está presente. Não há jogo do Corinthians em que não haja torcedores Gaviões da Fiel. Dos dois anos — 1969-70 — passados no bairro de Santa Cecília, os Gaviões (como são conhecidos pelas torcidas dos outros clubes) extraíram a experiência necessária para se organizar de fato. mas os recursos escassos os levaram a abrigar-se provisoriamente num espaço cedido por um associado, na rua Frederico Steidel. De lá, mudaram-se para a rua Sete de Abril, no centro da cidade. As peripécias das mudanças de sede lembram bastante a odisséia do Corinthians dos primeiros tempos. As circunstâncias (inclusive políticas) levaram os Gaviões a manter sede dentro do próprio Parque São Jorge, mas a experiência mostrou-se em desacordo total com o espírito e os propósitos dos fundadores da torcida. Recusaram, então, algumas regalias— e até dinheiro — que lhes dariam tranqüilidade mas lhes roubariam a independência. Foram para a rua Aurora, uma garagem cedida por um corinthiano que simpatizava com eles. Foi um período ruim, de pressões e até ameaças. Por fim os Gaviões, superadas muitas dificuldades, se mudaram em 1972 para uma sala alugada na rua Santa Ifigênia, com horário de funcionamento das 11 às 23 horas. Ali os associados tiveram lugar e condições de se reunir com freqüência, fortalecendo a amizade, conhecendo-se melhor, trocando idéias. Criou-se então a estrutura financeira e administrativa que faz dos Gaviões da Fiel aquela que é considerada a maior torcida organizada do mundo. Em 1975 os Gaviões formam um bloco carnavalesco; disputam na avenida, nos desfiles oficiais, e em 1976 já são campeões carnavalescos do ano. Repetem a dose em 77, 78 e 79- Transformam-se em escola de samba. Criam um jornal, O Gavião, com notícias, reportagens e comentários sobre as coisas da torcida e do clube. Criticam ou apóiam dirigentes. Desabafam suas tristezas e alegrias. O G avião chegou a alcançar tiragem superior a 80 mil exemplares, com distribuição gratuita. Por fim os Gaviões da Fiel conseguem um terreno nadiom Retiro, ali constroem sua sede. Ali se reúnem. Ali têm planos de expansão. Para entrar nos Gaviões da Fiel basta ser corinthiano fiel. preencher uma ficha, pagar uma taxa módica e assistir a uma reunião preparatória. Sem participar da reunião, ninguém recebe a camisa dessa torcida — cujo número uns dizem chegar a mais de vinte mil. Mas é difícil contá-los a olho nu: os Gaviões da Fiel estão nos escritórios, nos ônibus, no metrô, nos trens de subúrbio, nas repartições públicas, no fórum, nas escolas, nas universidades, nos grupos escolares e nos colégios de elite. Claro,o melhor lugar para encontrar um Gavião, junto com milhares de outros Gaviões, é nas arquibancadas dos estádios. É lá que pulsa a alma desse povo — que alguns dirigentes olham de nariz torcido, c ’est la v ie— que carrega em suas bandeiras, em seus surdos e seus repiniques uma torrente de paixão e uma emoção diferente...

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Page 315: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Os Gaviões têm sido a raiz comum de onde nasceram todas as demais torcidas uniformizadas do Corinthians — muitas, mais do que possa contar a imaginação — como a Camisa 12, a Explosão-Coração Corinthiano, a Trapalhões da Fiel, e muitas, muitas outras... Mas a maior homenagem que se possa fazer à Gaviões da Fiel-Força Inde­pendente é revelar, pela primeira vez, que Lauro D’Ávila, o autor do Hino do Corin­thians, antes de morrer deixou a letra de um hino intitulado Os Gaviões d a Fiel em homenagem a essa vibrante torcida uniformizada:

“A nossa fiel torcida saúda e pede passagem.Temos na alma a bravura, temos no peito a coragem!

Bandeira Corinthiana, tremulando pelos ares, levando a nossa mensagem aos estádios e aos lares.

Nosso orgulho é o Corinthians, um gavião é um rei.Eu nasci corinthiano e corinthiano morrerei!”

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Este é o texto original da letra composta por Lauro D’Ávila, que acrescentou a se­guinte observação: “Esta pequena home­nagem que presto aos Gaviões da Fiel é dedicada ao meu grande amigo e fratello José Ferreira Nascimento, que considero um dos maiores corinthianos do Brasil”. (Arquivo Família DÁvila)

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No dia I a de setembro de 1990 — manhã enfarruscada, com nuvens pesadas no céu — os Gaviões da Fiel desafiaram o temporal que ameaçava cair e organizaram um desfile pelas ruas da cidade, culminando com uma reunião em torno do tosco marco que assinala o local dos primeiros encontros dos fundadores do Corinthians Paulista: a esquina da rua José Paulo com a rua Cônego Martins. O Corinthians completava naquele dia 80 anos de existência. Um enorme bolo com os nomes dos fundadores foi cortado e distribuído à Fiel. Depois, caiu o toró. Pouco importava, a missão estava cumprida. E foram todos tomar chope, como faziam os pioneiros corinthianos de 1910 depois de uma vitória... (Foto Diário Popular)

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Page 317: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

I.XIV

Os campeonatos do Sport Club Corinthians Paulista

O primeiro tricampeonato

1922: Campeão

Time-base: Mário (Xororó), Rafael, Del Debbio, Gelindo, Amílcar, Ciasca, Peres II, Neco, Gambarotta, Tatu e Rodrigues.

C am panha: 2 x 3, 1 x 0, Sírio; 2 x 2, 2 x 3, Palestra; 0 x 0, 6 x 3, A. A. Palmeiras; 5 x 0 , Germânia; 4 x 0 , 7 x 2 , Minas Gerais; 9 x 0 , Internacional; 9 x 0 , Portuguesa; 6 x 2 , Santos; 1 x 0, 7 x 0, São Bento; 3 x 2 , 3 x 0 , Ypiranga; 3 x 2 , 2 x 0 , Paulistano.

Resumo. J, 18; V, 14; E, 2; D, 2; GP, 72; GC, 19; S, 53.Artilheiro: Neco, 24 gois.

1923: Bicampeão

Time-base: Colombo, Rafael, Del Debbio, Gelindo, Amílcar, Ciasca, Peres II, Neco, Gambarotta, Tatu e Rodrigues.

C am panha: 2 x 3, 2 x 0, Sírio; 0 x 1, 4 x 0, Portuguesa; 4 x 1 , Palestra; 3 x 0, 1 x 0, A. A. Palmeiras; 5 x 2, 4 x 0, Germânia; 2 x 0, 2 x 1, Ypiranga; 3 x 1 , Santos; 9 x 0 , Internacional; 6 x 1, 3 x 0, São Bento; 3 x 3 , Minas Gerais. O Palestra recusou-se a jogar enquanto os outros foram eliminados.

Resumo;J , 16; V, 14; D, 2; GP, 53; GC, 13; S, 40.Artilheiro: Gambarotta, 19 gois.

1924: Tricampeão

Time-base: Colombo, Grané (Del Debbio), Pinheiro (Rafael), Gelindo, Rueda, Ciasca, Peres II, Neco, Gambarotta, Tatu e Rodrigues.

C am panha: 5 x 1 , 4 x 1 , Portuguesa; 3 x 2 , Germânia; 6 x 2 , Internacional; 7 x 2, A. A. Palmeiras; 2 x 0, 1 x 0, Ypiranga; 6 x 1, 0 x 2, Santos; 2 x 1, 6 x 3, Brás Atlético; 0 x 0, 0 x 2, São Bento; 0 x 1, 1 x 0, Paulistano; 0 x 2, 3 x 0, Sírio.

Resumo:J , 17; V, 12; E, 1; D, 4; GP, 46; GC, 20; S, 26.

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Page 318: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

O segundo tricampeonato1928: Campeão

Time-base: Tuffy (Colombo), Grané, Del Debbio, Nerino, Soares (Sebastião), Munhoz (Rafael), Aparicio, Neco, Gambinha, Rato e De Maria (Rodrigues).

C am pan ha: 2 x 1 , 3 x 2 , Portuguesa; 4 x 0 , 6 x 0 , Sírio; 5 x 2 , 5 x 2 , Ypiranga; 3 x 1 , 2 x 3 , Santos; 5 x 1 , 3 x 1 , Guarani; 3 x 0 , 0 x 0 , Palestra; 1 x 1, 2 x 0, Com. R. Preto.

Resumo:J , 14; V, 11; E, 2; D, 1; GP, 44; GC, 14; S, 30.Artilheiro: Gambinha, 16 gois.

1929: Bicampeão invictoTime-base: Tuffy, Grané, Del Debbio, Nerino, Guimarães (Amador), Munhoz (Leone),

Filó (Aparicio), Peres III (Neco), Gambinha, Rato e De Maria (Rodrigues).C am panha: 3 x 2 , Ypiranga; 5 x 2 , Sírio; 7 x 0 , Silex; 4 x 1 , Santos; 2 x 0 , Guarani; 7 x 1 ,

Portuguesa; 4 x 1 , Palestra.

Resumo.• J, 7; V, 7; GP, 33; GC, 7; S, 23-

1930: Tricampeão

Time-base: Tuffy, Grané, Del Debbio. Nerino (Leone), Guimarães, Munhoz, Filó (Napo­li), Aparicio (Neco), Gambinha. Rato e De Maria.

C am panha: 0 x 4 , Palestra; 6 x 3, 7 x 0, América; 7 x 1 , 4 x 0 , Germânia; 3 x 2, 5 x 2, Guarani; 5 x 0, 1 x 2, Juventus. ( ...)

O terceiro tricampeonato1937: CampeãoTime-base.-José I (José II), Jaú. Carlos (Del Debbio). Jango. Brandão. Munhoz. Filó, Lopes

(Carlito), Teleco, Daniel (Zuza) e Bruneli (Tedesco).C am panha: 5x0 , Lusitano; 4 x 0, 0 x 0. Juventus; 3x1. Espanha; 1 x 0, 3 x 0, Est. Paulista;

2 x 2, 1 x 0, Santos; 6 x 2, S. Paulo Railway; 1 x 0 , São Paulo; 1 x 2, 1 x 0 . Palestra Itália; 3 x 1, 2 x 3, A. A. Portuguesa.

Resumo. J, 14; V, 10; E, 2; D. 2; GP. 33: GC, 12; S, 21.Artilheiros: Teleco, 15; Filó, 8; Daniel. 4; Carlito, 3; Bruneli, 2 e Lopes, 1.

1938: Bicampeão invictoTime-base: José I (Barcheta), Miro (Espinafre e Lourenço), Carlos, Jango (Munhoz),

Brandão, Tião (Gasparini), Lopes (Sebastião). Servílio (Daniel), Teleco (Umbigo), Carlinhos (Carlito) e Wilson (Carlinhos).

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Page 319: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

C am pan ha: 0 x 0, A. A. Portuguesa; 2 x 2 , Lusitano; 2 x 1 , Espanha; l x l , Palestra; 3 x 2, S. Paulo Railway; 2x1, Santos; 1 x 0, Juventus; 4 x 1, Ypiranga; 3x1, Portuguesa de Desportos; l x l , São Paulo.

Resumo. J, 10; V, 6; E, 4; GP, 19; GC, 10; S, 9.Artilheiros: Teleco, 8; Lopes, 3; Servilio, Umbigo, Carlito e Carlinhos, 2.

1939: Tricampeão

Time-base: Barcheta (Joel), Jango, Carlos (Del Debbio), Sebastião (Peliciari), Brandão, Munhoz (Mário e Tião), Lopes, Servilio, Teleco, Joane (Wilson) e Carlinhos.

Campanha: 6 x 0, 3 x 0, Juventus; 3 x 3 ,1 x 0, Palestra; 4 x 0, 6 x 0, Espanha; 4 x 0, 4 x 0, Comercial; 5 x 1 , 2 x 1 , Ipiranga; 1 x 2 , 1 x 0 , São Paulo; 2 x 1 , 5 x 1 , Portuguesa de Desportos; 0 x 0, 4 x 1, Santos; 3 x 2 , 2 x 1 , S. Paulo Railway; 3 x 1, 4 x 2, Portuguesa Santista.

Resumo. J, 20; V, 17; E, 2; D, 1; GP, 63; GC, 16; S, 47.Artilheiros: Teleco, 32; Carlinhos, 10; Servilio, 8; Joane e Lopes, 6; e Passerine (contra —

SPR), 1.

Os dois primeiros campeonatos invictos

1914: Campeão invicto

Participantes-, Corinthians, Lusitano, Minas Gerais, Campos Elyseos, Hydecroff e Germânia.Time-base: Sebastião, Fúlvio, Casimiro, Police, Bianco, César, Américo, Peres, Amílcar,

Aparício e Neco. O campeonato foi pela Liga Paulista.Artilheiro: Neco, 12 gois.

1916: Campeão invicto

Participantes-, Corinthians, Germânia, Internacional, Americano, ítalo, Campos Elyseos, Atlético Vicentino, Aluminy, União da Lapa, Maranhão, Lusitano, Minas Gerais, Paysandu e Ruggerone.

Time-base: Sebastião, Fúlvio, Casimiro, Police, Plínio, César, Américo, Fiu, Amílcar, Aparício e Neco.

Artilheiro: Aparício, 7 gois.

O bicampeonato de 51 e 52

1951: Campeão

Time-base: Cabeção (Gilmar), Homero (Murilo), Rosalém (Alfredo), Idário, Touguinha (Lorena), Juliâo (Roberto), Cláudio, Luisinho, Baltazar (Nardo), Carbone (Jackson) e Mário (Nelsinho, Colombo e Ratinho).

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Page 320: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

C am panha: 3 x 2, 3 x 0, Nacional; 3 x 1,1 x 0, Ponte Preta; 5 x 2, 3 x 2, XV de Piracicaba; 9 x 2, 3 x 1, Comercial; 1 x 0, 5 x 2, Radium; 3 x 3, 3 x 7, Portuguesa de Desp.; 7 x 1, 4 x 2, Jabaquara; 3 x 0, 7 x 2, Juventus; 4 x 0, 4 x 1, São Paulo; 4 x 0, 1 x 1, Portuguesa Sant.; 4 x 1,4 x 2, Santos; 4 x 0,4 x 0, Guarani; 3 x 2,3 x 0, Ypiranga; 0 x 2,3 x 0, Palmeiras.

Resumo.• J, 28; V, 24; E, 2; D, 2; GP, 103; GC, 37; S, 66.Artilheiros: Carbone, 30; Baltazar, 25; Cláudio, 18; Luisinho, 13; Jackson, 9; Nelsinho e

Colombo, 2; Mário, Sula, Idário e Roberto, 1.

1952: BicampeãoTime-base: Gilmar (Cabeção), Homero, Olavo, Idário (Sula), Goiano (Lorena), Julião

(Roberto), Cláudio (Sousinha), Luisinho (Zezinho), Baltazar, Carbone (Gatão) e Mário (Colombo e Liquinho).

Campanha.- 3 x 2 , 1 x 0 , Ponte Preta; 6 x 0 ,1 x 3, XV de Jaú; 7 x 1, 3 x 0, Nacional; 0 x 0 , 2 x 0 , Jabaquara; 6 x 2, 3 x 0, Juventus; 3 x 2, 4 x 1, Santos; 4 x 0, 2 x 1.Ypiranga; 2 x 0 , 5 x 0 , Radium; 4 x 0, 2 x 1, Portuguesa Sant.; 3 x 4 , 2 x 1 . Portuguesa de Desp.; 2 x 1 , 6x4, Palmeiras; 2 x 2,1 x 2, XV de Piracicaba; 4 x 1. 2 x 1, Guarani: 2 x 1,3 x 2, São Paulo.

Resumo: J, 30; V, 25; E, 2; D, 3; GP, 89; GC, 33; S, 56.Artilheiros: Baltazar, 27; Carbone, 20; Cláudio, 13; Sousinha e Luisinho, 7; Zezinho e

Gatão, 3; Liquinho e Idário, 2; Mário, Julião, Colombo. Hermínio (contra — Portu­guesa) e Juvenal (contra — Palmeiras), 1.

O campeonato de 19411941: CampeãoTime-base: Ciro (Pio), Agostinho, Chico Preto (Dedão), Jango (Peliciari). Brandão, Dino,

Lopes (Tite), Servílio, Teleco (Milani), Joane (Caio) e Carlinhos (Manja).C am panha: 4 x 0, 6 x 0, Espanha; 3 x 2, 4 x 1, S. Paulo Railway; 2 x 1, 3 x 0, São Paulo;

2 x 0, 3 x 1, Portuguesa Sant.; 3 x 1, 2 x 1, Portuguesa de Desp.; 2 x 1, 2 x 2, Juventus; 7 x 0; 3 x 2, Santos; 5 x 1, 6 x 0, Comercial; 1 x 1, 0 x 2, Palestra: 1 x 1, 2 x 0, Ypiranga.

Resumo. J, 20; V, 16; E, 3; D, 1; GP, 61; GC, 17; S, 44.Artilheiros: Teleco, 26; Servílio, 11; Joane e Milani, 7; Carlinhos, 5; Brandão, 3; Tite, 2.

O campeonato do centenáno de São Paulo: 1954D ecisão : 6/fevereiro/1955CORINTHIANS 1 x PALMEIRAS 1Local: Pacaembu (São Paulo). Juiz: Esteban Marino. Gois: Luisinho 10 do l 2 e Ney 5 do 2°CORINTHIANS: Gilmar, Homero e Alan: Idário, Goiano e Roberto; Cláudio, Luisinho,

Baltazar, Rafael e Simão. Técnico: Oswaldo Brandão. PALMEIRAS: Laércio, Manuelito

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Page 321: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

e Cação; Nilo, Waldemar Fiume e Dema; Liminha, Humberto, Ney, Jair Rosa Pinto e Rodrigues. Técnico: Aimoré Moreira.

Campanha: 1 x 0, 3 x 1, Ypiranga; 1 x 0, 2 x 1, Linense; 1 x 1, 1 x 0, Juventus; 2 x 1, 2 x 1, Guarani; l x l , 3 x 0 , XV de Jaú; 6 x 1, 1 x 1, Ponte Preta; 1 x 0, 1 x 0, Portuguesa Desp.; 4 x 0, 3 x 1, São Bento; 5 x 0, 3 x 3, Noroeste; 3 x 1 , l x l , XV de Piracicaba;0 x 2, 1 x 4, Santos; 3 x 2 , 1 x 1 Palmeiras; 2 x 1 , 3 x 1 , São Paulo.

Resumo:J , 26; V, 18; E, 6; D, 2; GP, 55; GC, 25; S, 30.Artilheiros: Luisinho, 14; Claúdio, 12; Paulo, 8; Baltazar e Nonô, 7; Rafael, 3; Roberto, 2;

Carbone e Gatão, 1.

O campeonato que acabou com o jejum de 22 anos: 1977!

Decisão-. 13/outubro/77 CORINTHIANS 1 x PONTE PRETA 0Local: Morumbi (São Paulo). Juiz: Dulcídio Wanderley Boschilia. Renda: Cr$ 3-325.470.

Público: 86.677. Gol: Basílio 36 do 2Q. Cartão amarelo: Ângelo e Basílio. Expulsão: Rui Rei 15 do l 2; Oscar e Geraldo 40 do 2°

CORINTHIANS: Tobias, Zé Maria, Moisés, Ademir e Wladimir; Ruço, Luciano e Basílio; Vaguinho, Geraldo e Romeu. Técnico: Oswaldo Brandão. PONTE PRETA: Carlos, Jair, Oscar, Polozi e Ângelo; Vanderlei, Marco Aurélio e Dicá; Lúcio, Rui Rei e Tuta (Parraga). Técnico: Zé Duarte.

C am panha: 2 x 0,1 x 0, Portuguesa Sant.; 0 x 4,1 x 2, Ponte Preta; 3 x 0,1 x 0, Comercial; 2 x 0, 4 x 0, Paulista; 0 x 0, 3 x 1, Ferroviária; 2 x 0,1 x 0, Marília; 0 x 1, 1 x 0, Juventus;2 x 2, 2 x 0, Botafogo; 2 x 0, 0 x 1, Portuguesa Desp.; 0 x 1, 5 x 1, Noroeste; l x l , 4 x 0 , Santos; 0 x 0, 2 x 0, São Bento; 0 x 3 , 1 x 2 , Guarani; 1 x 0 , 1 x 0 , São Paulo;3 x 1, 3 x 2, XV de Piracicaba; 3 x 0, 2 x 1, América; 0 x 0, 2 x 4, Palmeiras; 4 x 0 , 0 x 3 , XV de Jaú. Semifinais-. 2 x 2 , Santos; 0 x 1 , Ponte Preta; 2 x 0 , Palmeiras; 0 x 1 , Guarani; 1 x 0 , Botafogo; 1 x 0 , Portuguesa de Desp.; 2 x 1 , São Paulo. Finais. 1 x 0 , Ponte Preta; 1 x 2 , Ponte Preta; 1 x 0 , Ponte Preta.

Resum o:], 47; V, 29; E, 6; D, 12; GP, 71; GC, 37; S, 34.Artilheiros: Geraldo, 23; Palhinha, 9; Vaguinho e Romeu, 8; Basílio, 7; Luciano, 5; Ruço,

3; Edu, 2; Zé Maria, Wladimir, Darci, Adãozinho, Lance e Rosemiro (contra — Palmeiras), 1.

Campeão em 1979

D ecisão-. 10/fevereiro/80 CORINTHIANS 2 x PONTE PRETA 0Local: Morumbi (São Paulo). Juiz: Romualdo Arppi Filho. Renda: Cr$ 8.986.120. Público:

90.578. Gois: Sócrates 11 e Palhinha 23 do 2Q. Expulsão: Juninho.

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Page 322: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

CORINTHIANS: Jairo, Luís Cláudio, Mauro, Amaral e Wladimir; Caçapava, Biro-Biro e Palhinha; Piter (Vaguinho), Sócrates e Romeu (Basílio). Técnico: Jorge Vieira. PONTE PRETA: Carlos, Toninho, Juninho, Nenê e Odirlei; Vanderlei, Marco Aurélio e Dicá (Humberto); Lúcio (Lola), Osvaldo e João Paulo. Técnico: Zé Duarte.

C am panha: 2 x 2, 3 x 0, Ferroviária; 2 x 0, 1 x 1, São Bento; 2 x 0, 3 x 0, Marília; 0 x 0 ,1 x 2, Internacional; 1 x 0, 0 x 0, Santos; 3 x 0, 0 x 0, Velo Clube; 1 x 3, 2 x 1, Botafogo;1 x 1, 1 x 1, Noroeste; 5 x 0, 1 x 0, Juventus; 2 x 0, 2 x 1, XV de Piracicaba; 0 x 3 , l x l , Ponte Preta; 0 x 0, 2 x 0, Portuguesa de Desportos; 0 x 0 , l x l , América; 0 x 0, 0 x 1, Comercial; 1 x 3 , l x l , Palmeiras; 0 x 1, 0 x 0, Francana; 2 x 0 , l x l , São Paulo;3 x 3, 0 x 0, Guarani; 1 x 0, 2 x 1, XV de Jaú. Semifinais: 1 x 0 , América; 0 x 0 , Ferroviária; 2x0 , Botafogo; 2x1 , São Paulo. Finais: l x l , Palmeiras; 1x0 , Palmeiras; 1 x 0 , Ponte Preta; 0 x 0 , Ponte Preta; 2 x 0 , Ponte Preta.

R esum o:}, 47; V, 21; E, 20; D, 6; GP, 58; GC, 30; S, 28.

Artilheiros: Sócrates e Geraldo, 10; Piter e Palhinha, 9; Vaguinho, 5; Basílio e Wilsinho, 4; Romeu e Wladimir, 2; Biro-Biro, Zenon e Caçapava, 1.

Campeão de 1982D ecisão : 12/dezembro/82

CORINTHIANS 3 X SÂO PAULO 1

Local: Morumbi (São Paulo). Juiz: José de Assis Aragão. Renda: Cr$ 50.677.200. Público: 66.851. Gois: Biro-Biro 26, Darío Pereyra 32, Biro-Biro 37 e Casagrande 41 do 2° Cartão amarelo: Ataliba, Casagrande, Darío Pereyra, Almir, Éverton e Serginho. Expulsão: Oscar 27 do 2S.\

CORINTHIANS: Solito, Alfinete (Zé Maria, 42 do 2e), Mauro, Daniel González e Wladimir; Paulinho, Sócrates e Zenon (Eduardo, 42 do 2Q); Ataliba, Casagrande e Biro-Biro. Técnico: Mário Travaglini. SÃO PAULO: Waldir Peres, Getúlio, Oscar, Darío Pereyra e Marinho Chagas; Almir. Renato e Éverton; Paulo César, Heriberto (Serginho, 35 do I s) e Zé Sérgio. Técnico: José Poy.

Cam panha: 1 x 0, 3 x 1, Santo André; 2 x 0, 2 x 1, Comercial; 1 x 1, 2 x 0, São José; 0 x 1 , 2 x 1 , São Bento; 2 x 0, 5 x 1, Juventus; 5 x 1, 0 x 0, Palmeiras; 2 x 0, 1 x 2, Francana;2 x 1, 3 x 1, Ferroviária; 3 x 2, 2 x 0, Internacional; 0 x 0 , 3 x 1 , XV de Jaú; 0 x 1, 1 x 1, Guarani; 1 x 0, 1 x 0, Santos: 1 x 1, 0 x 2, Ponte Preta; 1 x 0, 0 x 1, Marília; 0 x 0 , 3 x 1 , Portuguesa de Desportos-, 2 x 0, 2 x 3, São Paulo; 2 x 1, 4 x 2, Botafogo; 1 x 1, 4 x 0, Taubaté; 4 x 1, 3 x 3, América. Finais. 1 x 0 , 3 x 1 , São Paulo.

Resum o:J, 40; V, 26; E, 8; D, 6; GP, 75; GC, 33; S, 42.

Artilheiros: Casagrande, 28; Sócrates, 18; Zenon, 9; Wladimir. Biro-Biro e Ataliba, 6; Daniel González e Magu, 1.

3^3

Page 323: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Campeão de 1983

D ecisão : l4/dezembro/83SÃO PAULO 1 x CORINTHIANS 1Local: Morumbi (São Paulo). Juiz: Dulcídio Wanderley Boschilia. Renda: Cr$ 126.715.000.

Público: 88.085. Gois: Sócrates 46 e Marcão 48 do 2a. Cartão amarelo: Mauro, Casagrande e Marcão. Expulsão: Darío Pereyra 30 do 2°

SÃO PAULO: Waldir Peres, Paulo (Paulo César, 29 do 2Q), Oscar, Darío Pereyra e Nelsinho; Zé Mário, Humberto (Gassem, 35 do 22) e Renato; Márcio Araújo, Marcão e Zé Sérgio. Técnico: Mário Travaglini. CORINTHIANS: Leão, Alfinete, Mauro, Juninho e Wladimir; Paulinho, Sócrates e Zenon; Biro-Biro, Casagrande (Wagner, 33 do 2Q) e Eduardo. Técnico: Jorge Vieira.

C am pan ha: 1 x 0, 2 x 1, Ferroviária; 0 x 0 , 3 x 1 , São José; 1 x 0 , l x l , Internacional;1 x 0, 0 x 2, São Bento; 2 x 2, 0 x 0, Santo André; l x l j l x l , Marília; 1 x 1 , 2 x 1 , Juventus; 1 x 2 , l x l , Palmeiras; 4 x 1 , 2 x 0 , Botafogo; 1 x 2, 0 x 0, Taubaté; 3 x 0 , 1 x 0 , América; 0 x 2, 2 x 1, Taquaritinga; 2 x 1 , 1 x 2 , Portuguesa de Desportos; l x l , 1 x 0 , São Paulo; 2 x 1, 3 x 2, Ponte Preta; 1 x 2 , 3 x 0 , Comercial; 0 x 0, 0 x 2, Santos;3 x 0, 3 x 2, Guarani; l x l , 3 x 1 , XV de Jaú. Semifinais: 1 x 1, 0 x 0, Santos; 2 x 0 , l x l , Ponte Preta; 2 x 0, 3 x 0, São Bento. Finais: 1 x 1, 1 x 0, Palmeiras; 1 x 0 , l x l , São Paulo.

Resumo: J, 48; V, 24; E, 17; D, 2; GP, 68; GC, 39; S, 29.Artilheiros: Sócrates, 21; Casagrande, 15; Biro-Biro, 9; Ataliba, 7; Zenon, 4; Jota Maria e

Luís Fernando, 3; Wladimir, 2; Ronaldo, Wágner, Mauro e Paulo Egídio, 1.

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Page 324: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Mário, Peres, Amílcar, Rafael, Del Debbio, Gelindo, Neco, Ciasca, Tatu, Gambarotta e Rodrigues — este é o time campeão do Centenário, que conquistou o título num final dramático. O Corinthians, com 1 ponto à frente do Palestra, precisou vencer o Paulistano (2 a 0). (Foto Arquivo Corinthians)

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Nesta foto de 1928 observa-se que a "pose" da equipe variava de acordo com o gosto pessoal de cada atleta. Alguns, na hora de “bater a chapa”, não estavam nem aí. A redinha no cabelo dependia do vento. E o gorrinho não tinha modelo uniforme. O grande goleiro Tuffy foi dos primeiros a usar luvas. Em pé: Leone, Munhoz, Grané, Guimarães, Del Debbio e Filó. Abaixados: Napoli. Gambinha, Rato, De Maria e Tuffy. (Foto Arquivo Corinthians)

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Page 325: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Uma tradição, cultivada principalmente pelos corinthianos da chamada velha guarda, entende que os "três mosqueteiros” do Sport Club Corinthians Paulista foram, por todos os títulos, esses três rapazes: Nerino, Guimarães e Munhoz. Nerino Gallanti, médio-direito, ajudou o Corinthians a ser campeão em 1928, 1929 (invicto) e 1930. Foi campeão brasileiro jogando pela seleção paulista em 1929 e participou duas vezes do selecionado brasileiro de futebol. Nerino era do tipo de fazer marcação cerrada no adversário, grudava, mas como possuía um fôlego extraordinário e impressionante, era comum descer para o ataque e desferir chutes certeiros contra a meta. O nome completo de Guimarães era José Pereira Guimarães. Começou sua carreira futebolística como centro-avante, mas adaptava-se bem a qualquer posição do time, com exceção do gol. Foi como centro-médio, contudo, que se projetou como um dos maiores jogadores de todos os tempos naquela posição. Foi campeão paulista invicto pelo Corinthians em 1929, e campeão também em 1930. Jogou na equipe alvinegra que abateu o Bologna, da Itália, o Tucumán e o Huracán, da Argentina, e o Hakoah, dos Estados Unidos. Em 1931, Guimarães participou da seleção brasileira que venceu, no Rio, o time húngaro do Ferencvaros por 6 a 1. Não eram poucos os corinthianos que o tinham ao lado e mesmo acima de Neco, como o maior ídolo corinthiano de seu tempo. Munhoz era respeitado como um leão em campo. Mais de uma vez jogou em péssimas condições físicas, protegendo a parte lesada da perna com ataduras, e indo ao campo com o mesmo vigor e destemor habituais. Foi sete vezes campeão pelo Corinthians. A primeira, na conquista do título do Centenário, em 1922. Depois completou o tri, em 23 e 24. Na verdade, Munhoz conquistou um título fora do comum: bi-trícampeão, porque também ajudou o Corinthians a vencer os campeonatos de 1937,1938 (invicto) e 1939- Um grande ídolo corinthiano! (Foto Arquivo Corinthians)

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Page 326: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Este é o quadro campeão de 1941, tendo Del Debbio como técnico (último à direita, em pé): Jango, Dino, Chico Preto, Brandão, Ciro e Agostinho; abaixados: Tite, Servílio, Teleco, Joane e Milani. Foram 20 jogos, 16 vitórias, 3 empates, uma única derrota, no último jogo, contra o Palestra. Duas vitórias contra o São Paulo: 2 a 1, no Parque São Jorge, e 3 a 0_no Pacaembu. Em toda a campanha, a maior vitória foi contra o Santos, 7 a 0, no Parque São Jorge, no dia l s de junho de 1941. Agostinho e Brandão participaram de todos os jogos desse campeonato, no qual o Corinthians marcou 6 l gois e sofreu 17. O artilheiro, mais uma vez, foi o grande Teleco, com 26 gois, seguido por Servílio, o Bailarino, com 11. Brandão, que jogava na linha-média, marcou 3- (Foto Arquivo Corinthians)

Corinthians: Campeão do 4S Centenário de 1954. (Foto Abril Imagens)

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Page 327: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Corinthians: campeão paulista de 1977. (Foto Manoel Motta—Abril Imagens)

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Page 328: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

LXV

Um título internacional que custou 142 minutos de garra e categoria

A lém dos títulos de campeão, bicampeão e tricampeão, o Sport Club Corinthians Paulista reúne uma série de conquistas importantes, muito significativas na

medida em que caracterizam o espírito de luta da equipe, às vezes atravessando fases nem sempre positivas. Em 1919, 1920 e 1921 o Corinthians foi tricampeão do Torneio Início — uma disputa que abria o campeonato propriamente dito e envolvia todos os clubes dele participantes. Em 1936, foi outra vez campeão do Torneio Início. Em 1938, foi campeão do Torneio Início e Campeão do Festival de São Paulo. Em 1941, além de campeão paulista, foi campeão do Torneio Início. Em 1942, foi campeão da Taça “Cidade de São Paulo” e campeão da “Quinela de Ouro”1. Em 1943, foi campeão da Taça “Cidade de São Paulo”. Em 1944, campeão do Torneio Início. Em 1947 e 1948, foi bicampeão da Taça “Cidade de São Paulo”. Em 1950, campeão do Torneio Rio-São Paulo. Em 1952, além de se sagrar bicampeão paulista, conquistou também o título de campeão da Taça “Cidade de São Paulo”. Em 1953. Toi campeão do Torneio Rio-São Paulo, campeão da “Pequena Taça do Mundo”, em Caracas, campeão da Taça “Prefeitura Municipal de São Paulo”, campeão do Torneio das Missões, em São Paulo. Em 1954, foi. além de campeão do 42 Centenário de São Paulo, campeão do Torneio Charles Miller e campeão do Torneio Rio-São Paulo. Em 1955, foi campeão do Torneio Charles Miller e campeão do Torneio Início. Em 1956 conquistou a “Taça dos Invictos”. Em 1957 tomou a conquistar a “Taça dos Invictos” e foi campeão do Torneio de Classificação, em São Paulo. Em 1958, foi campeão do Torneio Charles Miller e campeão do Torneio Brasília, em Goiânia. Em 1962 foi campeão da Taça “São Paulo”. Em 1965 foi campeão do Torneio Pentagonal, em Recife. Em 1966 foi campeão do Torneio Rio-São Paulo e campeão do Torneio de Torino, na Itália. Em 1969 foi campeão do Torneio Costa dei Sol. na Espanha, campeão do Torneio Internacional de Nova York e campeão do Torneio de Torino, na Itália. Em 1971 foi campeão da “Taça do Povo”. Em 1973 foi campeão do Torneio Laudo Natel. Em 1978, campeão da Ta'ça “Governador de São Paulo”. Em 1981, campeão da Copa Internacional da Feira de Hidalgo, no México. Em 1983, campeão da Taça “Cidade de Porto Alegre”, e assim por diante...

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Page 329: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

A “Taça do Povo”, disputada em 1971, foi recebida como uma das maiores conquis­tas do clube, provocando um verdadeiro carnaval no vestiário corinthiano e no Parque São Jorge. O Corinthians venceu o Internacional por 1 a 0 e recebeu a taça das mãos do então presidente Emílio Garrastazu Mediei (a taça tem o seu nome), que assistiu à partida, no Mineirão. O Internacional precisava apenas de um empate e lutou por ele durante 79 minutos para descontar a diferença, obtida por Rivelino: este, aos 11 minutos do primeiro tempo, ao avançar no campo, foi derrubado por trás por Carbone (não o do Corinthians, evidentemente). O próprio Riva bateu, com violência, bola no barbante. O Corinthians teve a seu lado a torcida atleticana, que apoiou o time do Parque São Jorge: Ado, Zé Maria, Ditào, Luís Carlos e Pedrinho; Tião e Rivelino; Lindóia (Suingue), Paulo Borges, Benê (Mirandinha) e Aladim. O Internacional: Valdir, Cláudio, Pontes, Valmir e Edson Madureira; Carbone e Tovar; Valdomiro, Paulo César, Rubem (Didi) e Dorinho (Mosquito). Quando o juiz José Mário Vinhas, da Federação Carioca — auxiliado por Juan de la Passión e Abel Santos — apitou o fim do jogo, a torcida corinthiana invadiu o gramado e disputou a camisa de todos os jogadores do time.

O Torneio Costa dei Sol, realizado em Málaga, na Espanha, no estádio Rosaleda, nos dias 16 e 17 de agosto de 1969, foi outra conquista retumbante do Corinthians. E teve um pormenor curioso: na partida decisiva, final, o Corinthians precisou jogar durante 142 minutos com as prorrogações, até que Benê fizesse o gol da vitória corinthiana (contra o Barcelona). Foram estes os resultados das partidas no Costa dei Sol: l- rodada: dia 16/8/69, Corinthians 1 x Málaga 0. O gol foi de Benê, aos 18 minutos do 22 tempo. O Corinthians jogou com Alexandre, Polaco, Ditào, Luís Carlos e Pedro Rodrigues, Dirceu Alves e Tiâo (Benê); Suingue, Tales (Luís Carlos II), Servílio e Carlinhos (Adnâ). 2â rodada: dia 17/8/69. Corinthians 2 x Barcelona 1 (decisão). O Barcelona abriu a contagem aos 12 do l 2 tempo, através de Reixach. Aos 20, Adnà empatou. No tempo regulamentar, o jogo persistiu empatado e somente na terceira prorrogação consecutiva é que o Corinthians venceu. Benê foi o autor do gol que decidiu o título. O Corinthians jogou com Alexandre (Diogo), Polaco, Ditâo, Luís Carlos e Pedro Rodrigues (Mirandinha); Dirceu Alves e Suingue; Carlinhos (Tião), Benê, Servílio (Tales) e Adnà. O treinador do Corinthians era Dino Sani. o médico, o Dr. Orlando Plantulo e o preparador físico, o professor José de Sousa Teixeira. Na classificação final, o Corin­thians foi o campeão; o Barcelona, vice; o Málaga, terceiro; o River Plate, último.

Nota

1. O Torneio “Quinela de Ouro” se realizou no estádio municipal do Pacaembu, em março de 1942. Dele participaram os cinco maiores clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa conquista ficou indelevel­mente marcada na história do clube até porque teve por palco o estádio que, inaugurado em 27 de abril de 1940 (nesse dia e nesse local o Corinthians venceu o Atlético Mineiro por 4 a 2), acabou sendo o cenário de muitas vitórias emocionantes do time do Parque São Jorge. O Sport Club Corinthians Paulista conquistou o título de campeão do “Quinela de Ouro” empatando com o São Paulo por 3 a 3; venceu

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o Fluminense por 2 a 1; empatou com o Flamengo por 1 a 1; e venceu o Palestra por 4 a 1. Oberdan, nesse jogo, teve uma atuação magistral — foi um grande arqueiro sempre e um homem de comporta­mento pessoal impecável — e salvou o Palestra de uma goleada mais áspera. O Corinthians jogou com Rato, Agostinho e Chico Preto; Jango, Brandão e Dino; Jerônimo, Servílio, Teleco, Eduardinho e Carlinhos. O Palmeiras: Oberdan, Junqueira e Begliomini; Brandão (Oliveira), Og Moreira e Del Nero; Cláudio, Valdemar Fiume, Echevarrieta (Cabeção), Lima e Pipi. Três jogadores do Palestra acabariam por transferir-se mais tarde para o Corinthians: Cláudio, que substituiria Jerônimo; Begliomini e Pipi; o Brandão da intermediária é o Oswaldo Brandão que depois, como técnico, conquistaria grandes glórias no Parque São Jorge.

O Corinthians Paulista foi buscar esse troféu na Espanha, no Torneio Costa dei Sol: 2 a 1 contra o Barcelona, depois de 90 minutos de tempo de jogo normal e 52 minutos de prorrogação. (Foto Antônio Carlos Carreiro)-

Taça “Cidade de São Paulo”, 1952. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Page 331: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

LXVI

A Democracia Corinthiana (I)

E mbora nâo sendo vista nem aceita com os mesmos olhos de simpatia por deter­minado número de dirigentes, ex-dirigentes, associados e mesmo meros simpati­

zantes do Corinthians (e de outros clubes do país até...), o movimento que ficou conhecido como Democracia Corinthiana empolgou o clube, balançou a pasmaceira geral, atraiu as atenções de todo o mundo esportivo brasileiro e teve pertinência num determinado momento da vida nacional, em que a Democracia, como a Liberdade, abria novamente suas asas feridas sobre a cabeça de todos os brasileiros.

O ex-presidente Wadih Helu meneia a cabeça e diz que tudo nâo passou de uma mistura inadequada de política com esporte. “Nâo dá certo”, é sua opinião. Mas há quem pense exatamente o contrário e garanta que jamais o Corinthians Paulista foi tão povo, tão fiel às suas raízes e tradições de liberdade e luta, do que naqueles anos em que, a partir da decisão do presidente Waldemar Pires, o futebol passou a ser gerido pela inspiração do sociólogo Adilson Monteiro Alves. Curiosamente, nem todos os jogadores apoiavam a Democracia Corinthiana, que no fundo representava uma abertura liberal nas relações entre os jogadores e os dirigentes. Mas parece indiscutível que as decisões, dentro daquele ousado projeto, passavam a ser tomadas nâo de cima para baixo, autoritariamente, mas de baixo para cima, prevalecendo a opinião da maioria. O jogador Sócrates explicava isso assim:

“Nosso projeto visa à participação do trabalhador no seu meio de trabalho com maior alegria e prazer. Para que nós nos sintamos bem dentro da nossa profissão, é necessário que nossas idéias sejam colocadas e discutidas. E óbvio que existem falhas, pois estamos realizando algo de novo. Mas pretendemos chegar ao ideal”.

Os opositores da Democracia Corinthiana contestam:

“No vestiário eles levavam caixas de cerveja. Não havia controle, liberdade tem um limite”.

Mas Casagrande punha as coisas nos devidos termos:

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Page 332: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

“Quem vive o dia-a-dia do clube sabe que não é nada do que se diz. Aqui treinamos em regime de tempo integral, cumprimos nossas obrigações como profissionais conscientes de nossos deveres. Sabemos obedecer, procurar fazer o melhor. Desafio a quem disser que me viu chegar atrasado ou faltar a um treino, a não ser por contusão. Sempre dei tudo de mim. Tem dias que treino sozinho, por livre e espontânea vontade. Isso é bagunça?”

O técnico Jorge Vieira:

“No Corinthians existe democracia e também muita ordem. Pelo menos comigo é assim”.

O técnico Mário Travaglini:

“Fui um dos que participaram do processo da Democracia Corinthiana e não vi bagunça alguma. Em primeiro lugar, porque eu não permito. Saí do clube por outros motivos, alguns de ordem particular, nunca por causa da Demo­cracia Corinthiana”.

Um dia, um grupo de torcedores, inconformados com a liberação do jogador Sócrates para participar de um jogo de futebol de salão, no qual o craque acabou se machucando e ficou fora de um jogo contra o Flamengo, resolveu botar a culpa na Democracia, acusando Adilson Monteiro Alves de dar privilégios indevidos ao jogador. Adilson rebateu:

“Nossa amizade, entre mim e o Sócrates, vai até onde começa a obrigação, o trabalho. Liberei o Sócrates porque não vi nada de mais nisso. Outros clubes também liberam jogadores em condições parecidas. O problema é que quando algo dá errado, a tendência é achar que a Democracia é que é a culpada de todos os males”.

Mas o que era, de fato, a Democracia Corinthiana?Adilson Monteiro Alves explicava:

“Fazemos reuniões em grupos, tomamos opiniões das bases, ouvimos real­mente gente que entende de futebol. Nossa meta é transferir a cada um a responsabilidade do trabalho e acabamos com o paternalismo. O jogador de futebol geralmente é visto por dois extremos: como uma criança ou como um bandido. Para nós, o jogador é um trabalhador comum, mas de um talento diferente; um artista”.

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Page 333: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

O projeto da Democracia incluía o psiquiatra Flávio Gikovate, o publicitário Washington Olivetto, o jornalista José Roberto Aquino. Os jogadores não apenas jogavam. Iam a comícios políticos, a espetáculos artísticos. Sócrates e Wladimir iniciaram uma campanha para tornar o regime de concentração no clube uma opção dos jogado­res. “Vote”, era a palavra estampada na camisa do time. No comício das Diretas-Já, Adilson Monteiro Alves, Sócrates, Wladimir, Juninho, Luís Fernando e Ataliba estavam presentes, participantes da festa cívica. O clube autorizou com entusiasmo.

O Jo rn a l do Brasil, do Rio, explicava o que estava acontecendo na Fazendinha:

“O novo Corinthians é unido e político”.

A oposição recriminava:

“É uma mistura que não dá certo. Futebol é futebol. Política é política”.

Mas nos estádios, a euforia agitava as bandeiras. A torcida gostava dos democráticos corinthianos que enfiavam a bola nas redes adversárias e conquistavam títulos.

Uma relação de títulos no período de 1982 a 1985 conquistados pelo Corinthians Paulista era o argumento mais forte dos defensores do novo sistema. Coisas assim:

Futebol

1982 campeão paulista1983 bicampeão paulista1984 vice-campeão paulista

Basquete

1982 Campeão da primeira divisão — principal campeão Torneio de Belo Horizonte — principal

1983 campeão estadual — principal campeão paulista — pré-mirim campeão estadual — mini3Q colocado estadual — mirim

1984 3e colocado estadual — juvenil vice-campeão paulista — principal3S colocado Taça “Brasil” — principal bicampeão paulista — pré-mirim

Handebol

1981 vice-campeão Torneio Início — júnior masculino3Q colocado campeonato paulista — júnior masculino

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Page 334: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

vice-campeão metropolitano — principal vice-campeão estadual — principal campeão Torneio de Ponta Grossa — principal campeão paulista — principalvice-campeão Torneio Colorado — Curitiba — principal vice-campeão Torneio Início — principal feminino vice-campeão qualquer classe — principal feminino campeão paulista — principal feminino 32 colocado campeonato paulista — juvenil feminino

1982 32 colocado campeonato paulista — principal masculino1983 32 colocado campeonato paulista — júnior masculino

campeão paulista — principal masculino1984 bicampeão paulista — principal masculino

Futebol de salão1981 bicampeão estadual — principal

vice-campeão brasileiro — principal vice-campeão do Torneio Início — infantil campeão estadual — pré-mirim

1982 campeão metropolitano — principal3e colocado campeonato brasileiro — principal 32 colocado campeonato estadual — principal

1983 bicampeão metropolitano — principal campeão metropolitano — juvenil vice-campeão estadual — juvenil campeão paulista — mamadeiras Troféu dos Invictos — pré-mirim campeão do Torneio Início — mirim

1984 vice-campeão paulista — mamadeiras vice-campeão paulista — fraldinhas vice-campeão paulista — pré-mirim campeão paulista — chupetinha campeão paulista — mirim

1985 vice-campeão da Taça '‘São Paulo” — principal 32 colocado da Taça “São Paulo’' — infantil

Voleibol1981 tricampeão Grande São Paulo — principal feminino

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Page 335: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

bicampeâo Olimpíada infanto-juvenil — principal feminino

campeão do Torneio Início — infantil feminino

1982 campeão da Taça “Melita” — principal feminino

campeão da Taça “Volkswagen” — principal feminino

campeão Troféu Luis Sérgio Scarpelli — principal feminino

32 colocado metropolitano — juvenil

3Q colocado Taça “São Paulo” — juvenil feminino

vice-campeão metropolitano — infantil feminino

32 colocado estadual — infantil feminino

1983 campeão da 2a divisão — pré-mirim feminino

campeão da 2- divisão — mirim feminino

32 colocado Torneio Início — mirim feminino

32 colocado metropolitano 2a divisão — mirim feminino

vice-campeão Torneio Experimental — pré-mirim feminino

vice-campeão paulista — juvenil feminino

1984 vice-campeão da 2- divisão — pré-mirim feminino

campeão Torneio Experimental — infantil feminino

campeão estadual 2- divisão — juvenil feminino

vice-campeão paulista — adulto feminino

campeão do II Torneio Zonal de Pirituba — adulto masculino

1985 vice-campeão da seletiva 1985 — adulto masculino

(classificado p/ I a divisão)

Tam boréu

1982 campeão

1983 campeão

1984 campeão

Um dia, quando esse fenômeno for examinado dentro do fenômeno maior chamado Corinthians, com tranqüilidade e coração frio, ficaremos sabendo se a Democracia Corinthiana foi um sonho esgotado — ou se será o grande projeto para vigorar num país todo ele democrático, mais justo, mais esclarecido, mais límpido e menos poluído pela ignorância, pela miséria e pela irresponsabilidade. Então saberemos se a Democracia Corinthiana valeu ou não valeu, de fato. E se valeu, se ela foi apenas um clarão que iluminou o Corinthians no passado, ou se servirá para tornar a iluminá-lo no futuro. O tempo — e os espíritos desarmados — terá então a última palavra.

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Page 336: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Lxvn

Dois hinos. E mil canções

O Corinthians tem sido inspiração e tema de muitos artistas em todas as áreas da criação. Esse orgulho se acrescenta ao de ter tido, na ponta-direita de seu time

campeão do Centenário, um pintor-operário que se tornou um dos mais importantes mentores do famoso Grupo Santa Helena, de grande influência nas artes plásticas brasileiras.

Quando, pela primeira vez, foi feita publicamente a leitura dramatizada de um roteiro cinematográfico intitulado Corinthians, Men Amor, de autoria de Id Almeida, mais de 3 mil pessoas assistiram à apresentação no Ginásio do Parque São Jorge, aplaudindo o texto que mostra a nação corinthiana como ela é . ..

“A maior torcida do Brasil é a do Corinthians, meu amor na história da cidade o alvinegro fez furor.A história que é contada por todos os campeões Corinthians, Corinthians Corinthians das multidões Corinthians, Corinthians Corinthians dos corações.

O Corinthians Paulista é também tema de um belíssimo documentário cinemato­gráfico feito pelo jornalista Júlio Lerner. da TV Cultura de São Paulo, que o exibiu pela primeira vez no mês de abril de 1983 no Museu da Imagem e do Som. na capital paulista. O documentário, intitulado Corinthians. Corinthians, “mostra o jogador como um operário e um artista ao mesmo tempo. A luta diária nos treinos e o cotidiano do futebol que cerca uma grande equipe até o momento de entrar em campo. As filmagens foram feitas durante quatro dias com toda a liberdade nos vestiários do Parque São Jorge, na concentração e no estádio do Morumbi, antes de um jogo realizado contra o Bahia”.

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Page 337: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Em sessão especial, assistiram ao filme jogadores e diretores do clube, no qual vigorava à época a Democracia Corinthiana, um sistema bastante aberto de trabalho e de relacionamento dentro da agremiação.

Contudo, como parece natural, é na música que o Corinthians Paulista se sobressai, como tema e motivação de uma série enorme de composições, cuja relação completa demandaria, só ela, estudo acurado de maior fôlego. Bem verdade que parte dessa produção musical denota caráter circunstancial, aproveitando-se da maré mais ou menos alta do entusiasmo popular em relação ao Corinthians.

É evidente que não se pretende, nem de longe, citar aqui a totalidade das obras “corinthianistas”, se se pode dizer assim. Mas não custa observar que já em 1929 o tema Corinthians girava na vitrola: é desse ano o disco intitulado Vasco x Corinthians, que chegava à praça com letra e música de Batista Jr. Por aquela época, aliás, os dois clubes já cultivavam uma tradição de aguerrimento nas disputas entre si, com resultados emocionantes, que mexiam com a galera. Em 1929, Corinthians e Vasco jogaram duas vezes: no Rio, o Vasco venceu por 4 a 3. Na segunda partida, em São Paulo, a vitória foi do Corinthians por 4 a 2. Treze gois em dois jogos — era mesmo para se lançar um disco!

Enfim, a quem interessar possa — e certamente são muitos os que se interessam por examinar essa face pouco iluminada da música popular brasileira — , mencionamos alguns títulos de obras pertinentes ao assunto:

Corinthians, Cam peão do 4- Centenário, samba de Billy Blanco.

Meu Corinthians, de B. Lobo, N. Correia e José Guimarães.

Eternam ente em nossos Corações, de Osvaldinho da Cuíca e Jangada.

C alcanhar d e Ouro e Dr. Sócrates, de João Paulo da Silva.

Fiéis Corinthianos, de Zé Capoeira e Sebastião Gonçalves.Corinthiano Fiel, de Nélson Sampaio.

Corinthians Cam peão , marcha de Arlindo de Oliveira, Ariane e Nilo Silva.

C oração da Fiel, samba de J. Grimaldi e os mesmos Arlindo de Oliveirá e Ariane.

Frevo Corinthiano e Frevo dos Campeões, de Mário Vieira, com Antônio Arruda e sua orquestra.

O Grito d a Fiel, de Cláudio de Sousa e Antoninho Lopes.

Sam ba do Timão, de Antônio Fenelon e Eurípedes Fenelon.

Corinthians, Cam peão de Amores, de Geraldo Cunha, Antônio Albino e Osinete Mari­nho.

Coringão, Bom de Bola, de Estevam B. Sangirardi1.

Salve o Mosqueteiro, de Sidney Morais e Juvenal Fernandes, interpretado pelos Titulares do Ritmo.

Onze Mosqueteiros, de Rubem Melo.

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O Corinthiano, de Antônio Jacob e Amado Jacob.Corinthiano, de Luís Alfredo, Espadinha Saraiva, Waldelice.Corinthiano Chora d e Alegria, de João Martins Neto, José Antônio Macedo e Válter Eliseu

Ramos.Corinthians, de José Márcio Pereira.Corinthians Alegria do Povo, de Guaraci de Castro Oliveira e Antônio Luís Espírito Santo. Corinthians e Palmeiras, de José Fortuna.Corinthians e Santos, de Noel Francisco Moreira.Corinthians Eterna Paixão, de Ocimar de Oliveira e Nílton Soares da Silva.O Corinthians Ganhou, de Raimundo Sena.Corinthiano, de Luís Saraiva dos Santos e Diogo Mulero.Corinthiano Roxo, de João Batista Teixeira e Jorge Rangel.Corinthians Bicam peão, de Ocimar de Oliveira e Geraldo Nunes Moreira.Biro-Biro dos Gaviões, com os Gaviões da Fiel.

Uma análise das letras de muitas dessas músicas, ainda que feita superficialmente, mostra o período em que o Corinthians permaneceu sem levantar o título no campeonato paulista como muito fecundo para os compositores, que aproveitaram o clima de dor-de-cotovelo. Esses tempos aziagos serviram ao mesmo tempo para essas letras enaltecerem a fibra, a fidelidade, a solidariedade corinthiana nas horas escuras...

“Há vinte anos não conheço uma vitória está na hora de conhecer todo mundo sabe que eu sou corinthiano e vou ser até mo'rrer... lari-lá-lá...

Vai correndo, vai valente vira o jogo de repente,Corinthians do meu coração, sou fiel, sou verdadeiro o meu clube é brasileiro...

Depois de amanhã é domingo tomara que seja um domingo de sol à tarde vou ver o Corinthians ensinar essa gente a jogar futebol...”

O Corinthians também serve de pretexto:

“Mulher, ai mulhervocê não precisa me esperar

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eu vou chegar fora de hora pois hoje o Corinthians vai jogar..

Falou Corinthians, está mexendo com o torcedor Antônio Pecci Filho, o grande compositor Toquinho. Aquele grito na garganta, esperando a hora da explosão no campeonato de 1977, de repente, “me deu vontade de fazer um hino pro meu time de coração”, diz ele. E fez o hino, que foi gravado com o jogador Sócrates... Corinthians do meu C oração , uma beleza:

“És grande no esporte bretão o passado ilumina sua história Corinthians do meu coração Vitória, vitória, vitória!Corinthians do meu coração.Es grande de janeiro a janeiroser corinthiano é ir além de ser ou não ser o primeiro...”

Na música, a emoção corinthiana se derrama... É a voz do povo, falando de si mesmo, ancorando nas suas aflições e nas suas alegrias, remando contra ou a favor do rio...

Como na deliciosa Pro Timão, letra e música do Passoca:

“Precisa ver onde moroFica bem no centro da cidade de São PauloFica bem no centromas um pouco mais pro ladolonge da moreninhaperto de algum sobradolonge do ribeirãoperto da construçãoandando na contramãotorcendo para o meu timeSão Jorge!!!ser campeão”.

Um clube que nasceu na contramão só pode ter a seu lado o povo “bem no centro mas um pouco mais pro lado”...

Está num disco de 78 rpm, da Odeon, daqueles que quando caíam no chão não tinha mais conserto, uma marcha-hino do Alfredo Borba, Cam peão do 4 a Centenário. Gravado por Orlando Ribeiro. Quer ouvir?

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“Corinthians, Corinthians falou bem alto a tradição Corinthians, Corinthians e por cem anos serás campeão

Corinthianssempre leal com o adversário você ostenta com orgulho a faixa de campeão do 4- Centenário.

Nasceste sob a luz do lampião para ser o rei do nosso esporte bretão tens em São Jorge o seu padroeiro és do Brasil o clube mais brasileiro.”

O radialista, jornalista e compositor Alfredo Borba é o autor da talvez mais cantada marchinha em homenagem a um jogador de futebol. E não apenas a um. mas aos onze jogadores de um time, o Corinthians. Seu antológico O Gol d e B altazar ; gravado pela primeira vez pela cantora Elza Laranjeira, explodiu no mercado, como se costuma dizer. Foi um sucesso retumbante.

Borba conta que a inspiração veio num estalo, no estádio do Pacaembu, num domingo cinzento. Corinthians e Vasco — sempre os dois clubes! O Vasco segurando tudo, o Corinthians tentando ir à frente em vão. Nisso, o centro. Baltazar, aquele rapaz do Macuco que começara na meia-direita mas descobriu que seu destino verdadeiro era ser... centro-a vante. O centro-avante Baltazar veio lá de trás. de fora da área, correndo, subiu, como um anjo negro, abriu os dois braços, sua cabeça fez a bola mudar a direção em 90 graus. Indefensável! A torcida se levanta. Borba está cantando, sem quase perceber...

“Gol de Baltazar,Gol de Baltazar...Salta o Cabecinha um a zero no placar...Gol de Baltazar, gol de Baltazar...”

Nasceu ali a marcha, como um foguete espocando no céu. Alfredo Borba foi pra casa com a música martelando, tentando completar... Faltava o resto do time... Futebol é equipe, é conjunto... As palavras se encaixavam na música que soava em sua cabeça...

“... o Mosqueteiro ninguém pode derrotar Carbone é o artilheiro espetacular

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Cláudio, Luisinho e Mário,Homero, Olavo e Gilmar...são os onze craques que São Paulo vai consagrar!

Todo domingo, eu vou ao Pacaembu pra ver O Corinthians jogar, o Corinthians vencer,Fico maluco com as defesas do Gilmar,Os dribles do Luisinho, os gois do Baltazar!”

O time do Corinthians Paulista jogava por música. Alfredo Borba acertou o ritmo. Daí em diante... subia o Batata...

“Gol de Baltazar,Gol de Baltazar...”

Cláudio centrava...

“Salta o Cabecinha, um a zero no placar.

Num disco de 33 rotações de 1970, lançado pela Copacabana, quem é que canta a música Corinthians, meu Amor, de Idibal e Laura Maria? A grande Inezita Barroso! Ela mesma, dando a maior força. A voz quente, vibrante, envolvente da Inezita, acompa­nhada pela orquestra do maestro Élcio Álvares.

Manuel Ferreira, paulistano do bairro do Limão, onde nasceu em 1930, é um dos compositores recordistas de músicas carnavalescas. Manuel e sua mulher, Ruth Amaral, são autores de sucesso, sua produção ultrapassa 200 composições. Freqüentador do tradicional restaurante Spadoni, que funcionou na avenida Ipiranga esquina com a São João, Ferreira conheceu ali alguns dos maiores nomes da música popular brasileira. Mas de todos os sucessos carnavalescos que a dupla compôs, até hoje nenhum superou a marchinha Transplante Corinthiano, que apareceu na época em que os primeiros transplantes de órgãos emocionavam a opinião pública. A dupla levou a música para Sílvio Santos gravar. E, claro, pegou na hora:

“Doutor, eu não me engano, meu coração é corinthiano...”

Humor e paixão.Transplante Corinthiano projetou o nome da dupla inclusive fora do Brasil.“Um dia”, conta Ruth Amaral, “casualmente liguei a televisão num programa onde

estavam entrevistando o Rivelino, ele estava narrando sua vida, percebi que como fundo

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eles estavam colocando o Transplante Corinthiano. Mas num arranjo de música clássica, executado por uma orquestra sinfônica. Foi uma das melhores emoções de minha vida...”

Alegria do Povão , de Zé Lagoa, Carlos César Lima e Matheus Gualda, marcha:

“O meu Corinthianscampeão... você mata essa gente do coração”

Corinthians e seus Craques, de João Pasqual, relembra gois:

“Primeiro e segundo marcou o Biro-Biro, terceiro Casagrande seu chute é um tiro...Elogio a todo o time pelo título conquistado que venceu de três a um ... todos eles bem marcados!”

Corinthians Bicam peão, de Geraldo Nunes e Arlindo, presta homenagem a Só­crates:

“E só deixar a bola no pé do Doutor,que ele faz o gol, que ele faz o gol”.

Sem esquecer a deliciosa B an deira do Timão, de Germano Matias:

“Só porque eu falei de rasgar a bandeira do Timão ... foi quando a nega virou bicho, com razão, entrou na cachaça, fazendo pirraça,brigou sem parar... mas deu azar... é que na hora que eu peguei aquele pano, como bom corinthiano, não tive coragem de rasgar..

Os choros Corinthiano , do Armandinho, e Alvinegro, de Juvenal Fernandes e Cachimbinho (ex-bedel da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo)...

De Juvenal Fernandes são também o choro Corinthians (B icam peão do Centená­rio), em parceria com J. A. Humberto Miani: o samba Salve o Mosqueteiro, em parceria

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com Sidney Morais e cantado pelos Titulares do Ritmo; além do samba Corinthia (Meu Am or é o Timão), de Juvenal Fernandes e Adoniran Barbosa, ainda inédito, cuja letra é a seguinte:

“Como é bom ser alvinegro ontem, hoje a amanhã, respirar o ar mistura do Tietê e Tatuapé.

Lá no alto a velha Lapa de Anchieta e bandeirante ver São Jorge lá na Lua abençoando a Fazendinha com igreja e biquinha onde mora um gigante.

Corinthia, Corinthia, meu amor é o Timão,Corinthia cada minuto dentro do meu coração...

Belém, Vila Maria, Mooca,É São Paulo extensão,Mogi, Guarulho, Itaquera, tudo vira Coringão...É o Corinthia de nóis tudo É paulista, é campeão...”

O repertório das músicas corinthianas é extenso. Às vezes, basta uma conquista, um resultado positivo num jogo — ou até um mau resultado — para que a inspiração se manifeste.

Ao longo de sua história o Corinthians Paulista teve dois hinos: o primeiro deles, uma marchinha, intitulava-se Corinthians. Foi criado na década de 30, quando o presidente do clube era Felipe Collona. A ele, aliás, o hino foi oferecido e dedicado por Eduardo Dohmen, que fez a letra, e Larosa Sobrinho, autor da música. Não se pode dizer que o hino não tenha sido aceito pela torcida. Ao contrário. Ele era bem conhecido. Mas não havia os meios de divulgação modernos.

Vale conhecer sua letra:

“Lutar... Lutar...É nosso lema sempre, para a glória.Jogar... Jogar...

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e conquistar os louros da vitória.E proclamar nosso pendão é alvinegro e sempre há de brilhar, flutuar, virilpara a grandeza e glória do Brasil.

Corinthians... Corinthians... a glória será o teu repouso e nós unidos sempre elevaremos teu nome glorioso”.

Também o grande violonista e compositor Paulo Arthur Mendes Pupo Nogueira — o famoso Paulinho Nogueira — , autor do belíssimo M enino Jog an d o B ola , orgulha-se de ter criado uma das mais emocionadas composições sobre o Corinthians, conforme informa o jornalista e seresteiro corinthiano Cícero Afonso Vieira.

Trata-se da peça musical Ai Corinthians, que não pode ficar fora de nenhuma antologia corinthiana, e cuja letra reflete o amor do Paulinho pelo seu time-paixão:

“São vinte anos de espera, devoção e muito amor.Cada vitória é uma festa e a derrota um dissabor.Até um simples empate, que podia consolar, geralmente é conquistado quando é preciso ganhar.Mas nessas poucas vitórias, algumas sensacionais, a gente esquece de tudo, não desanima jamais.

Ai Corinthians, cachaça de torcedor, colorido em preto e branco, sem preconceito de cor.

Ai Corinthians, quando és o vencedor, pobre fica milionário, rindo da própria dor.

E lá se vão vinte anos alimentando ilusão.

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renovando a esperança, agüentando a gozação.

Quantos domingos sombrios, eu, eterno sonhador, chegava em casa arrasado, maltratava o meu grande amor.

Meu São Jorge, me dê forças pra poder um dia, enfim, descontar meu sofrimento em cima de quem riu de mim”.

Não há porém a menor dúvida de que o povo escolheu a marcha Cam peão dos Cam peões como verdadeiro e definitivo hino do Corinthians, esse que é cantado em toda a parte, do princípio ao fim, de cor e salteado, e que a galera traz na ponta da língua.

Basta se ouvirem os primeiros acordes para a torcida se eletrizar, unida num único sentimento. C am peão dos Cam peões tem o status de hino cívico. Dado o número de torcedores corinthianos, não é fora de propósito reconhecer e aceitar o que para muitos é fato inconteste: C am peão dos Cam peões é o hino de clube de futebol mais cantado no mundo. O corinthiano o entoa nas horas das vitórias e também nas derrotas. É grito de guerra, grito de glória e bálsamo nos momentos de sofrimento. Seu autor é Benedito Lauro D’Ávila (cujo nome artístico era apenas Lauro D’Ávila). Lauro, que foi radialista, era um temperamento boêmio, integrado à vida urbana de São Paulo, onde nasceu no dia 27 de janeiro de 1908. Apegado ao chão paulistano, respirava a cidade. Bem-humo­rado, amante das noites e das madrugadas com ou sem lua, era amigo dos cantores da vida, das almas sensíveis e despojadas que, como ele, sabiam extrair das pequenas coisas o significado para toda uma existência. Foi simples, cordial e sensível aos sentimentos mais puros do povo. Ninguém melhor que ele para sintonizar, no recolhimento de seu pequeno apartamento da rua dos Andradas, nQ 165, 8Q andar, a emoção do povo carregando sua bandeira alvinegra.

A primeira gravação foi feita pela Continental, na voz de Osni Silva — também ele um intérprete admirado pelo povo — , na década de 50. Mas foi somente em 11 de setembro de 1978 que Lauro D Ávila se inscreveu pela primeira vez como compositor, apresentando exatamente como sua obra o hino Cam peões dos Campeões.

Filho de Artur DÁvila e de dona Antonieta Sá DÁvila, o compositor Lauro DÁvila faleceu em São Paulo no dia 18 de outubro de 1985. Por um desses descuidos da vida apressada na hora de enterrar seus mortos queridos — ou talvez um pouco pelo tipo recatado que era o DÁvila, infenso a badalações e à glória ruidosa — , seu caixão baixou à sepultura sem ter a cobri-lo o pavilhão alvinegro. Mas não lhe falta hoje o carinho por

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sua memória, sempre que a letra e a música que seu coração verteu sobem aos ares.Assim:

“Salve o Corinthians o campeão dos campeões eternamentedentro dos nossos corações.

Salve o Corinthians de tradição e glórias mil tu és o orgulho dos esportistas do Brasil.

Teu passado uma bandeira teu presente uma lição figuras entre os primeiros do nosso esporte bretão.Corinthians grande sempre altaneiro és do Brasilo clube mais brasileiro”.

Nota

1. Antes do jogo contra o Malmoe, então bicampeão da Suécia, 1952; antes do jogo contra o Halmstad, em que o Corinthians inaugurou o Estádio Olímpico de Helsinque (vitória por 5 a 1) e foi aplaudido de pé por 40 mil pessoas; antes da goleada (9 a 3) contra a seleção de Gotenborg, também na Suécia; antes da despedida arrasadora (10 a 1) contra a seleção de Halmstad; em Istambul, na Turquia; em Atenas, na Grécia, em 1972; em todos os países que percorreu honrando o futebol brasileiro, os jogadores do Corinthians Paulista cantavam, além do Hino Nacional, o hino do Corinthians. Na volta de uma dessas excursões (a de 1952), 100 mil pessoas foram receber o time alvinegro no aeroporto de Congonhas, e vieram em passeata até o vale do Anhangabaú, cantando “Salve o Corinthians, o campeão dos campeões.. .” O hino que o D’Ávila fizera para os corinthianos estava começando a ser o hino do povo.

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Lauro D’Ávila: ele fez a letra e a música do atual hino do Corinthians. (Foto Arquivo Família DÁvila)

O primeiro hino do Corinthians foi oferecido a Felipe Collona, que então presidia o clube. (Arquivo Chico Mendes)

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LXVIIIO dia em que o Corinthian inglês

veio matar saudades...

A lém daquele ano de 1910 em que provocou enorme sensação no Brasil e inspirou o nome do clube mosqueteiro, o Corinthian Football Club, da Inglaterra, havia repetido

a visita em 1913, mas, ao contrário da primeira vez, em que goleou todos os adversários, encontrou dificuldades porque o futebol brasileiro havia evoluído. Mesmo assim o Corin­thian, depois de haver perdido o primeiro jogo para a seleção carioca por 2 a 1, conseguiu vencer o Rio Cricket por 4 a 0, a seleção brasileira por 2 a 1, a seleção paulista pelo mesmo resultado, o time do Mackenzie College por 8 a 2 e empatou com a Associação Athletica das Palmeiras. Nessa segunda viagem o Corinthian inglês, como se vê, não enfrentou o Sport Club Corinthians Paulista. Em 1914, parece que já apreciando esse tipo de intercâmbio esportivo com os brasileiros, o Corinthian havia partido de Londres no dia 24 de julho para, outra vez, vir jogar com os brasileiros. Mas essa viagem gorou, porque estourou a Primeira Guerra Mundial durante a viagem dos jogadores pelo mar. O navio em que vinham atracou em Recife e imediatamente cinco jogadores, que pertenciam à Brigada de Reserva do Exército britânico, retomaram a seu país. Os demais jogadores prosseguiram viagem até o Rio de Janeiro, mas sem nenhuma disposição para futebol. Retomaram a seu país. Aliás, dos 14 jogadores ingleses que tinham vindo ao Brasil. 4 morreram na guerra. De 1914 em diante o Corinthian inglês andou jogando em outros países da Europa. Porém, voltou ao Brasil 74 anos depois, para participar de uma das mais comoventes festividades esportivas de todos os tempos. Os corinthians, participando de uma excursão organizada pelo São Paulo Athletic Club, de ingleses radicados em São Paulo, homenagearam e ao mesmo tempo foram homenageados num jogo inédito, num encontro esportivo em que o futebol foi emoldurado por um halo de profunda comoção: um jogo amistoso “entre pai e filho”! O Corinthian inglês, já então tendo feito fusão com o Casuais Football Club — denominando-se, portanto, Corinthian-Casuals — enfrentava no Estádio Municipal do Pacaembu o time do Sport Club Corinthians Paulista “de todos os tempos”. O Corinthians Paulista reunia uma equipe de atuais e antigos jogadores, numa confraternização em que os ingleses matavam saudades de

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si mesmos, e o público matava saudades de alguns dos ídolos corinthianos que ao longo dos anos haviam feito bater mais forte o coração da Fiel.

O título que o Jo rn a l d a Tarde publicou na reportagem desse jogo — que na verdade foi muito mais que isso, foi* um festival de reminiscências e uma retomada da alegria conjunta de avôs, pais e netos — foi feliz e exato: “A manhã em que o Corinthians reviveu sua história”. '

“Ontem, três gerações que construíram mais da metade da vida do Corinthians se reuniram numa festa inesquecível”, começava o texto do repórter Sérgio Baklanos. A festa foi inesquecível também para os jogadores ingleses, que inclusive registraram o acontecimento numa de suas publicações, dizendo: “O Brasil nunca vira nada igual. Nemo time dos visitantes!”. E foi assim que se encontraram outra vez, vestindo a mesma gloriosa camisa de tantas tradições, Domingos da Guia, Bataglia, Vaguinho, Guaracy, Carbone, Luís Antônio, Julião, Ivan, Mirandinha, Geraldo José, Miranda, Ditão, Flávio, Lima, Romeu, Lance, Wladimir, Cláudio, Basílio, Tião, Benê, Tobias, Marco Antônio, Luís Carlos, Olavo, Ademir Gonçalves, Moisés, Zé Maria, Gilmar, Ado, Cabeção...

Muitos desses jogadores, deles a meninada tinha ouvido falar pela fabulosa narrativa dos mais velhos, dos adultos bem adultos. Mas agora eles estavam ali, jogando seus 5 minutos, dando autógrafos, sendo abraçados, beijados, reverenciados, sempre amados. A Fiel de pé revivia as emoções passadas. A equipe inglesa foi recepcionada no Parque São Jorge. Mas era alegria demais para ser completa. Momentos antes de os jogadores e dirigentes do Corinthian inglês serem encaminhados à sala dos troféus e às dependências do parque aquático da Fazendinha, Sérgio Terpins, o jovem dirigente esportivo que tudo fizera para que a festa se concretizasse, tocou no braço do então diretor de futebol do Corinthians, Henrique Alves: “Vou cair”, ele disse. Estava pálido, foi segurado. Foi socorrido na hora pelo médico do clube. Tentou-se tudo. Em vão. Sérgio Terpins estava morto. Foi sepultado na sexta-feira, dia 3 de junho de 1988. No domingo de manhã, 5, os dois Corinthians entravam em campo aplaudidos como os grandes campeões do passado e do presente.

Como informou o Jo rn a l d a Tarde da segunda-feira, dia 6, em sua edição de esportes:

“A vitória sobre o Corinthian de Londres, com um gol mágico do Dr. Sócrates

Foram setenta minutos de saudades, em que os seis mil saudosistas que foram ao Pacaembu, na manhã de ontem, se emocionaram em ver desfilar em campo três gerações do Corinthians Paulista. Como adversários — e perdedores por 1 a 0 — , os ingleses do Corinthian-Casuals, da Quarta Divisão, que também vieram participar da comemoração dos 80 anos do São

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Paulo Athletic Club, cujo fundador e presidente, Charles Miller, introduziu o futebol no Brasil.Lá estavam com os cabelos brancos e barrigas salientes, os garbosos cam­peões do IV Centenário. Mais recatados, apareceram também os que atra­vessaram alguns dos 22 longos anos de espera por um título. E, por último, a geração que mudou o perfil do Corinthians, colocando-o novamente em órbita, com os títulos de 77 e 79-

Aconteceu apenas um gol, aos 19 minutos do primeiro tempo. E não era preciso mais nada. Afinal, o autor foi Sócrates, com um chute em curva e para o alto, que fez a volta no goleiro, tomando inútil o seu apressado regresso para baixo das traves. Por isso, os ingleses — deslumbrados — pediram que, no segundo tempo, o D outor jogasse alguns minutos no time deles e, aos 9 minutos, foram atendidos.Os ingleses, como sempre muito civilizados, logo entenderam o espírito da festa, tanto é que durante o jogo, Dulcídio Vanderlei Boschillia — vestido de calça branca e camisa amarela, como nos velhos tempos em que os juizes eram chamados pejorativamente de vacas am are la s— apitou apenas duas faltas; uma em cada tempo e para cada time.

A princípio, a intenção dos dirigentes ingleses era colocar o time principal no primeiro tempo e, como dez titulares tinham viagem marcada do Rio para Londres às I4h30, deixariam lugar para os veteranos no segundo tempo. Mas eles se empolgaram tanto com o jogo que decidiram ficar até o fim e apressar a volta até o Aeroporto de Cumbica. O tempo melhorou bastante e a manhà começou com um sol firme. Assim, apesar da transmissão direta, cerca de seis mil pessoas, que tiveram ingresso livre, ocuparam as faixas centrais das numeradas e das gerais.Corinthians Paulista: Ado (Tobias), Zé Maria (Miranda), Olavo (Ditão/Ama- ral), Luís Carlos (Moisés/Guaracy) e Wladimir; Carbone (Tiâo/Marinho/Luís Antônio), Sócrates (Mirandinha Ademir/Gonçalves) e Rivelino: Cláudio (Ba- taglia/Ivan/Marco Antônio), Flávio (Geraldo José/Benê/Lance) e Lima (Ro­meu). Técnico: Oswaldo Brandão. Corinthian-Casuals: Metcalfe, Thurston (Doctrove), Cooper. Richardson e Preston. Davies, Robinson, Haider e Fox; Long (Longworth) e Simpson (Dagnell)./í«'z.- Dulcídio Vanderlei Boschillia. Público: 6.000 pessoas. Gol: Sócrates, aos 19 minutos do primeiro tempo. Local: Pacaembu”.

Num dos lances da partida. Cláudio Cristóvão do Pinho, o legendário capitão do time dos 103 gois, foi dar um pique mais forte, desequilibrou, caiu. A torcida o ovacionou como se ele tivesse marcado o maior gol de sua vida. Depois do jogo, Cláudio,

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acompanhado de Olavo, o ex-zagueiro que formava a grande dupla com Homero, encaminhou-se para os fundos do estádio, na direção da antiga concha acústica. Levou exatamente uma hora e meia para percorrer pouco mais de 300 metros: garotos, homens barbudos, mulheres o cercaram. Em folhas de caderno, em camisetas, que escrevesse apenas uma palavra: “Cláudio”.

Amistoso em 1988 entre o Corinthians Paulista e o inglês Corinthian-Casuals. (Foto Nélson Coelho—Abril Imagens)

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LXIX

Campeão Brasileiro. À la Corinthians!

O Corinthians Paulista esperou dezenove anos para conquistar um título que ainda faltava em seu currículo. Em 1976, havia chegado perto desse sonho, muito perto

mesmo, ao derrotar o Fluminense num apoteótico jogo no Maracanã, onde é difícil dizer o que, foi mais admirável: se a vitória em si ou se a invasão de 70 mil corinthianos no estádio carioca. Foi uma festa alvinegra tamanho família. Um acontecimento histórico. O Rio de Janeiro se assombrou com a solidariedade dos torcedores corinthianos, que foram em peso dar apoio ao time e fez com que os jogadores do Corinthians se sentissem em casa, como se estivessem n o ... Recreio do Morumbi! Mas em 76 o sonho ficou pela metade. Na final, o Corinthians perdeu para o Internacional, no estádio Beira-Rio. Na véspera dessa partida contra os gaúchos, Wladimir estava com um problema no mínimo estapafúrdio: seu par de chuteiras não estava legal! Ele ia depender de um par de chuteiras emprestadas por um amigo, o Stefan. Jogou em Porto Alegre com chuteiras emprestadas! Bem, o Corinthians ficou com o vice-campeonato. E continuou sonhando, fazendo de conta que não ligava para o título... O Campeonato Brasileiro de 1990 começou com o Corinthians capengando mais que saci-pererê. Perdeu de cara para o Grêmio no estádio Olímpico, por 3 a 0, e no Pacaembu também se deu mal diante do Cruzeiro, levando 1 a 0. Depois dessas o torcedor corinthiano ficou com meia dúzia de pulgas atrás das orelhas. Os mais otimistas e conformados continuavam insistindo naquele ponto: Campeonato Brasileiro não era importante. O Corinthians não fazia questão. E até davam uma desculpa ao time: ele vinha de uma campanha duríssima, atravessara o Paulistão com apenas uma derrota, diante do Noroeste, tendo sido eliminado nas semifinais, infelizmente. Enfim, o time tinha desculpas para começar perdendo. Mas quem começa perdendo assim, num campeonato de cobrões, geralmente nem chega até à praia. Morre no mar mesmo.

Dava para perceber que o time não estava pronto para aquela parada federal. Como técnico, Zé Maria, mais com experiência de boxe e de direção de juvenis, não tinha achado o tom do ofício, apesar de toda a sua boa vontade, na condução dos jogadores profissionais.

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O céu começou a azular, ainda que timidamente, quando Nélson Batista — o Nelsinho que tinha feito excelente campanha como técnico do Novo Horizontino — substituiu Zé Maria. Em seu primeiro treino, o campo ficou apinhado de repórteres e nas arquibancadas do Parque São Jorge apareceu até vendedor de sorvete e pipoca para atender à platéia de curiosos, que era bem grande. Nelsinho era técnico de falar baixo, simpático, cordial, mas exigente. O time não era de primeira — faz muito tempo que o Corinthians não tem um timaço de primeira, desses de permitir ao torcedor ir ao campo sem fazer promessa a São Jorge — , mas o moço ajustou as peças e colocou o pessoal em excelente forma física. Começou a campanha com um 0 a 0 contra o Vitória, na Bahia, o que já foi um alívio, e deu a volta por cima, completa, vencendo o mais tradicional adversário do alvinegro: Corinthians 2, Palmeiras 1, gois de Neto e Wilson Mano. O time pegou no breu. No resto do primeiro turno, não perdeu mais de ninguém, venceu o Flamengo no Rio e empatou apenas com o São Paulo.

No segundo turno o Corinthians, em nove partidas, perdeu para o Botafogo do Rio, para o Goiás, ambos no campo do adversário, mas deu uma escorregada violenta contra0 Internacional, gaúcho, perdendo em São Paulo por 3 a 0. A torcida, justamente ressabiada, começou a acender velas ao amado santo ali nos lados da biquinha do Parque São Jorge. Dependia-se agora do desempenho nas quartas-de-final, com dois resultados ótimos: vitória em São Paulo e empate no Mineirão. O Bahia veio a São Paulo nas semifinais e não deu moleza: vendeu caro a derrota, 2 a 1. Mas em Salvador o Bahia não saiu do zero e o Corinthians soube segurar o empate. As finais, no estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi de tantas batalhas monumentais, era um palco digno de um espetáculo de gala, que começou com a torcida corinthiana dizendo presente. Houve uma invasão corinthiana em grande estilo. O pessoal das barraquinhas começou a vender churrasquinho e sanduíche de pernil assado às 8 horas da manhã. O São Paulo Futebol Clube chegava às finais com a vantagem do empate, estava bem mais folgado e tranqüilo. O Corinthians ia precisar jogar em dobro. E jogou em triplo. Começou liquidando a vantagem do ilustre adversário logo na primeira partida, com a vitória de1 a 0. E liquidou a escrita no segundo jogo, naquele lance em que Tupãzinho, meio metro de altura, de repente se tornou um gigante de cem metros, colocou seu bendito pezinho de ouro na bola e emudeceu a garganta dos tricolores.

Quando a torcida corinthiana se ergueu num gesto só, num urro só, até as pombinhas que moram no estádio do Morumbi arrepiaram suas penas brancas e pretas. As bandeiras se enroscavam no ar. Fremiam os degraus de pedra do estádio. Gente que nunca tinha bebido cerveja antes começou a encher a cara. Mulher abraçou homem, homem abraçou homem e mulher, preto abraçou branco, branco abraçou amarelo e dizem que, ali naquele pedaço do estádio onde o vento faz a curva, um índio ianomami, com a camisa escrito Kalunga no peito, começou a cantar o hino do Corinthians sem nunca ter antes aprendido a letra. O sol brilhou mais forte. A lua apareceu mais cedo. O cavalo de São Jorge relinchou.

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De madrugada, quando a cidade havia outra vez retornado ao silêncio, e a segunda-feira de trabalho apontava no horizonte um pequeno clarão nascido no Oriente, ainda havia nas ruas o eco remanescente da avenida Paulista e algumas criaturas, embrulhadas no calor terno das bandeiras alvinegras, caminhavam em direção a suas casas. Tinham festejado até que o último bar se cansara e baixara as portas. Voltavam para os subúrbios. Os primeiros ônibus começavam a circular. O primeiro carro do metrô preparava-se para sair da gare. Chegavam os primeiros habitantes dessa hora inexata em que a noite já não é mais noite e o dia ainda não é bem dia. Tudo havia mudado na cidade, como mudam as estrelas na abóboda celeste — sem que se perceba a olho nu. O povo estava, de certa forma, redimido da pesada carga de sustos e aflições cotidianos. O Corinthians acabara de conquistar o título disfarçadamente sonhado — Campeão Brasileiro. Talvez não precisasse dele, se não o tivesse conquistado. Afinal, esse Corinthians está conquistando títulos desde 1910, desde o Bom Retiro, e mesmo o campeonato do Rio-São Paulo, que foi o grande torneio nacional durante anos, o Corinthians o conquistou por três vezes, nos anos de 50, 53 e 54.

Mas o Corinthians não conquista títulos para si, para alimentar sua vaidade ou para fazê-los constar nos manuais de história. O Corinthians busca os títulos para dá-los ao povo, como prova de carinho, como a imaginária corda mi do cavaquinho de Adoniran Barbosa cantando a alma da cidade. O Corinthians conquista seus títulos para que os estádios não apodreçam de tédio e para que as pessoas simples descubram que a vida vale a pena.

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Os heróis do título brasileiro

Para chegar ao título de Campeão Brasileiro de 1990 o Corinthians Paulista fez 25 jogos, teve 12 vitórias, oito empates e cinco derrotas. Marcou 23 gois e levou 20.

Jogaram:Ronaldo Soares Giovanelli. Nasceu em São Paulo, começou nas categorias inferiores

do clube. Subiu para o time principal em 1988.Antônio Gilberto Manizes — Giba. Nasceu em Cordeirópolis, interior de São Paulo.

Começou no Independente, de Limeira, passou pelo Internacional, da mesma cidade, pelo União São João, de Araras, e pelo Guarani, de Campinas. Foi contratado pelo Corinthians em 1989-

M arcelo Kiremitdjian. É zagueiro central e começou nas categorias inferiores do clube.

Waldinei Francisco de Paula — Guinei. Quarto-zagueiro, nasceu em Sorocaba, no interior paulista. Começou no São Bento, daquela cidade e foi contratado pelo Corin­thians em 1990.

Ja c en ir Silva. Lateral-esquerdo, nasceu no Rio de Janeiro. Começou jogando no Campo Grande. Foi contratado pelo Corinthians em 1986, do Joinville.

Hemymãrcio Bitencourt — Márcio. Nasceu em São José dos Campos, cidade do interior paulista, onde começou nas equipes de baixo. Contratado pelo Corinthians em 1985.

Wilson Carlos Mano — Wilson Mano. Basicamente médio-volante, jogou em quase todas as posições do time, com exceção do gol. Nasceu na cidade de Auriflama, interior paulista. Começou no XV de Jaú, de onde foi para o Corinthians.

Pedro Francisco Garcia — Tupãzinho. Nascido em Ucho, interior de São Paulo. Começou no juvenil do São Paulo. Foi para o São Bento, onde passou a atuar no time de juniores. Contratado pelo Corinthians no início de 1990.

Fábio Ribeiro — Fabinho. Nasceu em Santo André, município vizinho de São Paulo. Começou jogando no Santos. Atuou depois no Democrata, de Governador Valadares,

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em Minas Gerais; após passar por outros clubes, foi jogar no Novo Horizontino, onde o Corinthians o foi buscar em 1989-

José Ferreira Neto. Nasceu em Santo Antônio da Posse, no interior de São Paulo. Começou no Guarani de Campinas, passou pelo São Paulo, pelo Bangu e pelo Palmeiras. Contratado pelo Corinthians em 1989.

M auro Aparecido da Silva. Nasceu no interior de São Paulo, em Ipauçu. Começou nos times de baixo da Ponte Preta, de Campinas, jogando posteriormente no Palmeiras, no Pinheiros e outra vez no Palmeiras. O Corinthians o contratou em 1989-

Nélson Batista Júnior — Nelsinho. Nasceu em Campinas. Ex-jogador, iniciou sua carreira de técnico no São Bento de Sorocaba. Foi campeão paranaense pelo Atlético, em 1987, e vice-campeão em 1990 pelo Novo Horizontino. Consagrou-se no Corinthians ao levar o time ao título de Campeão Brasileiro.

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A campanha do Campeão do Brasil

0 x 3 Grêmio

Gois: Caio, aos 55 segundos e aos 17 minutos do primeiro tempo; aos 3 minutos do segundo.

Grêmio: Gomes; China, João Marcelo, Vilson e João Antônio; Jandir, Biro-Biro e Caio; Vander (Darci), Nilson (Geverton) e Paulo Egídio. Técnico: Evaristo de Macedo.

Corinthians: Dagoberto; Giba, Dama, Guinei e Vágner (Juarez); Márcio (Telson), Jairo e Neto; Fabinho, Valmir e Tupãzinho. Técnico: Zé Maria.

Ju iz : Tito RodriguesRenda: Cr$ 1.755.000,00Público: 7.566 pagantesLocal: Porto Alegre

0 x 0 Vitória

Vitória: Ronaldo; Jairo, Beto, Misisinho e Paulo Róbson; Cacau, Lino (Reginaldo) e Luís Carlos; Catatau, Júnior e Roberto Gaúcho (Renílson). Técnico: Carlos Gainete.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Jairo (Tupã), Wilson Mano e Neto; Fabinho, Valmir (Ângelo) e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Joaquim Gregório dos SantosRenda: Cr$ 6.938.500,00Público: 18.211 pagantesLocal: Salvador

2 x 1 São José

Gois: Tupãzinho aos 33 minutos do primeiro tempo; Neto, aos 14, e Eugênio, aos 22, do segundo.

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São José: Luiz Henrique; Marcelo, Celso, Eugênio e Bira; Amauri, Henrique e Vander;Luís, Peu, Wanderson (Romildo) e Tita. Técnico: Ademir Melo.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Márcio, Tupâzinho e Neto (Wilson Mano); Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Davi Aveiro

Cartão vermelho: Márcio

Renda: Cr$ 4.850.000,00

Público: 8.482 pagantes

Local: São José dos Campos

l x l São Paulo

Gois: Mário Tilico, aos 28, e Neto, aos 32 minutos do segundo tempo.

São Paulo: Zetti, Antônio Carlos, Ricardo Rocha, Ronaldo e Ivan; Flávio, Bernardo, Cafu e Raí (Vizoli); Mário Tilico e Diego Aguirre (Ivan). Técnico: Pablo Forlan.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Gérson; Márcio, Tupâzinho e Neto (Mauro); Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Márcio Rezende de Freitas

Cartão vermelho: Bernardo

R enda: Cr$ 10.732.750,00

Público: 18.049 pagantes

Local: Morumbi

2 x 1 Flamengo

Gois: Paulo Sérgio, aos 23, e Tupâzinho aos 26 minutos do primeiro tempo; Renato a um do segundo.

Flam engo: Zé Carlos; Josimar, Vítor Hugo, Rogério e Piá; Fabinho (Paulinho); Aílton (Marcelinho) e Djalminha: Renato, Nélio e Zinho. Técnico: Jair Pereira.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir: Márcio (Wilson Mano), Tupãzi- nho e Neto; Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Édson Resende

Renda: Cr$ 2.155.300,00

Público: 8.525 pagantes

Local: Maracanã

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2 x 2 Bragantino

Gois: Neto, a um, Fabinho, aos 9, e João Santos aos 43 minutos do primeiro tempo; Tiba aos 26 do segundo.

Bragantino: Marcelo; Pintado, Júnior, João Batista (Carlos André) e Biro-Biro; Mauro Silva, Ivair (Franklin) e Mazinho; Barbosa, Tiba e João Santos. Técnico: Luxemburgo.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Wilson Mano, Tupãzinho e Neto (Mauro); Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio C. (Ezequiel). Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Joaquim Carlos Caetano

Cartão vermelho: Wilson Mano Renda: Cr$ 2.749.500,00 Público: 4.861 pagantes Local: Bragança Paulista

0 x 1 Cruzeiro

Gol: Paulão, aos 31 minutos do segundo tempo.Corinthians: Ronaldo; Wilson Mano, Marcelo, Guinei e Giba; Márcio, Ezequiel e Neto;

Fabinho, Valmir (Juarez) e Tupãzinho. Técnico: Zé Maria.

Cruzeiro: Paulo César; Balu, Paulão, Gilmar Francisco e Nonato; Ademir, Paulo Isidoro e Luís Fernando; Paulinho (Quirino), Ramón Menezes e Édson. Técnico: Carbone.

Ju iz : Luiz Cunha Martins

Renda: Cr$ 3-488.500,00

Público: 6.266 pagantes Local: Pacaembu

2 x 1 Palmeiras

Gois: Neto, aos 7, e Wilson Mano, aos 17 minutos do primeiro tempo; Betinho aos 36 do segundo.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Wilson Mano, Tupãzinho e Neto;Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio Carlos (Jairo). Técnico: Nelsinho.

Palm eiras: Veloso; Marques, Toninho, Aguirregaray e Dida; Elzo, Betinho e Ranieli (Édson); Jorginho, Roger (Mirandinha) e Careca. Técnico: Telê Santana.

Ju iz : João Paulo de Araújo

Renda: Cr$ 9.612.750,00 Público: 17.828 pagantes

Local: Morumbi

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1 x 0 Fluminense

Gol: Antônio Carlos aos 24 minutos do primeiro tempo.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir (Mauro); Wilson Mano, Tupãzi- nho e Neto; Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Fluminense: Ricardo Pinto; Marquinho, Alexandre Torres, Edgar e Luciano; Dacroce, Macula, Marcelo Gomes e Julinho; Edemílson e Rinaldo (Jorginho). Técnico: Paulo Emílio.

Ju iz : Manuel Serapião Filho

Renda: Cr$ 6.657.000,00

Público: 12.010 pagantes

Local: Pacaembu

1 x 0 Inter-SP

Gol: Paulo Sérgio aos 18 minutos do primeiro tempo.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir (Wilson Mano); Márcio, Tupãzi- nho e Neto; Fabinho, Paulo Sérgio e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Lnter-SP: Silas; Valdeni, Ricardo, Marco Antônio e Pecos; Manguinha, Douglas e Márcio Florêncio; Rodolfo (Ribamar), Nando (Ronaldo xMarques) e Claudinho. Técnico: Waldemar Carabina.

Ju iz : João Massonetto

Renda: Cr$ 6.214.000,00

Público: 10.608 pagantes

Local: Pacaembu

1 x 0 Náutico

Gol: Neto aos 11 minutos do segundo tempo.

Corinthians: Ronaldo; Wilson Mano, Marcelo, Guinei e Jacenir; Márcio, Ezequiel e Neto; Fabinho, Paulo Sérgio e António Carlos. Técnico: Nelsinho.

Náutico: Celso; Levi, Barros, Freitas e Célio Gaúcho; Haroldo, Leo e Müller; Buião, Bizu e Nivaldo (Ocimar). Técnico: Otacílio Gonçalves.

Ju iz : Lineu António Lisboa

Renda: Cr$ 8.922.500,00

Público: 16.054 pagantes

Local: Pacaembu

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0 x 0 Bahia

Corinthians: Ronaldo; Giba, Márcio, Guinei ejacenir; Ezequiel, Tupãzinho, Neto (Mar­cos Roberto) e Mauro; Fabinho e Paulo Sérgio. Técnico: Nelsinho.

B ahia : Chico; Mailson, Jorginho, Vágner Basílio e Gléber; Paulo Rodrigues, Delacir, Gil e Luís Henrique; Charles e Naldinho (Marquinhos). Técnico: Candinho.

Ju iz : José Mocellin Renda: Cr$ 11.616.500,00 Público: 21.175 pagantes Local: Pacaembu

0 x 0 Portuguesa

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Wilson Mano; Márcio, Tupãzinho (Eze­quiel) e Paulo Sérgio; Neto e Antônio Carlos. Técnico: Nelsinho.

Portuguesa: Maurício; Betão, Wladmiri, Fernando e Éder; Capitão, Lê, Cristóvão e Arnaldo (Bentinho); Vágner Mancini e Adil (Adilson Heleno). Técnico: Leão.

Ju iz : João Paulo Araújo Renda: Cr$ 7.596.500,00

Público: 13-199 pagantes Local: Pacaem bu

0 x 1 Botafogo

Gol: Luisinho aos 37 minutos do segundo tempo.Botafogo: Gabriel; Paulo Roberto, Gilson Jáder, Wilson Gottardo e Renato; Carlos

Alberto, Luisinho e Pingo (Berg); Vivinho, Juninho e Carlos Alberto Dias. Técnico: Valdir Espinosa.

Corinthians: Ronaldo; Giba (Jacenir), Marcelo, Guinei e Wilson Mano; Márcio, Ezequiel e Tupãzinho; Fabinho, Paulo Sérgio e António Carlos. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Wilson Carlos dos Santos Renda: Cr$ 1.135.500,00 Público: 2.251 pagantes Local: Niterói

0 x 0 Vasco

Corinthians: Ronaldo; Wilson Mano, Marcelo, Guinei ejacen ir; Márcio, Ezequiel e Tupãzinho; Neto, Fabinho e Ângelo (Dinei). Técnico: Nelsinho.

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Vasco: Acácio; Luís Carlos, Célio, Jorge Luís e Cássio; Zé do Carmo, Luciano (Andrade), Bismarck e William; Sorato (Sérgio Araújo) e Bebeto. Técnico: Zagalo.

Ju iz : Aristóteles Cantalice Renda: Cr$ 5.442.500,00 Público: 10.408 pagantes Local: Morumbi

1 x 3 GoiásGois.- Túlio, aos 19, e Luvanor aos 22 minutos do primeiro tempo; Dinei, aos 14, e Túlio

aos 47 do segundo.Goiás: Eduardo; Wilson, Richard, Jorge Batata e Lira; Wallace. Fagundes e Luvanor;

Miltinho (Cacau), Túlio e Agnaldo (Marçal). Técnico: Sebastião Lapola.Corintbians: Wilson; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir (Paulo Sérgio); Márcio, Ezequiel

(Mauro) e Neto; Fabinho, Dinei e Tupâzinho. Técnico: Nelsinho.Ju iz : José Mocelin Renda: Cr$ 6.200.000,00 Público: 11.558 pagantes Local: Goiânia

0 x 3 Inter-RSGois.- Júlio aos 33 minutos do primeiro tempo; Luís Fernando, aos 20, e Paulinho Criciúma

aos 45 do segundo.Corintbians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Gérson; Ezequiel. Tupâzinho, Neto e

Antônio Carlos (Paulo Sérgio); Fabinho e Dinei (Ângelo). Técnico: Nelsinho. Lnter-RS: Maizena; Chiquinho, Zaballa, Márcio Santos e Daniel; Júlio, Alberto, Paulinho

Criciúma e Simào (Marcelo); Hamilton e Luís Fernando. Técnico: Enio Andrade. Ju iz : Cláudio Cerdeira Renda.- Cr$ 10.442.000,00 Público: 18.726 pagantes Local: Pacaembu

0 x 0 Atlético-MGAtlético-MG: Carlos; Carlão, Cléber. Toninho Carlos e Paulo Roberto; Éder Lopes,

Gilberto Costa (Mauricinho), Moacir (De Mattos) e Marquinhos; Gérson e Éder Aleixo. Técnico: Arthur Bemardes.

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Page 363: Coração Corinthiano (Lourenço Diaféria)

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Wilson Mano, Tupãzinho e Paulo Sérgio, Fabinho, Dinei (Ezequiel) e Mauro (Antônio Carlos). Técnico: Nelsinho.

Ju iz : José Mocelin Renda: Cr$ 26.331.660,00 Público: 62.551 pagantes Local: Mineirão

0 x 0 Bahia

B ah ia : Chico; Gilvan, Jorginho, Vágner Basílio e Gléber; Paulo Rodrigues, Gil, Luís Henrique e Marquinhos (Hélio); Naldinho e Charles. Técnico: Candinho.

Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Wilson Mano; Márcio, Tupãzinho, Neto (Jacenir) e Mauro (Ezequiel); Fabinho e Paulo Sérgio. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Renato Marsiglia Renda: Cr$ 54.849-000,00 Público: 64.958 pagantes Local: Salvador

1 x 0 Santos

Gol: Dinei aos 26 minutos do primeiro tempo.Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Márcio, Ezequiel, Tupãzinho e

Neto (Wilson); Fabinho e Dinei (Paulo Sérgio). Técnico: Nelsinho.Santos: Sérgio; índio, Pedro Paulo, Luís Carlos e Flavinho; César Sampaio, Axel e Edu;

Almir, Zé Humberto (Nei) e Sérgio Manuel (Serginho). Técnico: Pepe.Ju iz : Davi Aveiro Cartão vermelho: Edu e Ronaldo Renda: Cr$ 12.652.500,00 Público: 22.137 pagantes Local: Pacaembu

3 x 1 Atlético-MG

Gois: Giba, aos 4, Neto, aos 21, e Marquinhos aos 47 minutos do primeiro tempo; Mauro aos 44 do segundo.

Atlético-MG: Carlos; Neto, Toninho Carlos, Parreira e Baiano; Éder Lopes, Marquinhos e Gilberto Costa (Edu); Nilton (De Mattos), Mauricinho e Aílton. Técnico: Arthur Bernardes.

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Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir (Wilson Mano); Márcio, Tupãzi- nho e Neto (Ezequiel); Fabinho, Dinei e Mauro. Técnico: Nelsinho.

Ju iz : Joaquim GregórioCartão vermelho: Márcio e MauricinhoRenda: Cr$ 4.786.400,00Público: 16.172 pagantesLocal: Mineirão

2 x 1 Atlético-MG

Gois: Gérson aos 15 minutos do primeiro tempo; Neto aos 30 e aos 40 do segundo. Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Wilson Mano e Gérson (Paulo Sérgio); Márcio,

Tupãzinho e Neto; Fabinho, Dinei e Mauro. Técnico: Nelsinho.Atlético-MG: Carlos; Carlão, Cléber, Tobias e Paulo Roberto; Éder Lopes, Moacir, Gilberto

Costa e Éder (Aílton); Marquinhos e Gérson (Nílton). Técnico: Arthur Bernardes. Ju iz : Aristóteles Cantalice Renda: Cr$ 16.964.500,00 Público: 28.516 pagantes Local: Pacaembu

2 x 1 Bahia

Gois: Vágner Basílio, aos 2, e Paulo Rodrigues (contra) aos 12 minutos do primeiro tempo; Neto aos 18 do segundo.

Corinthians: Ronaldo; Giba. Marcelo, Guinei e Wilson Mano; Márcio. Tupãzinho e Neto;Fabinho, Paulo Sérgio e Mauro. Técnico: Nelsinho.

B ahia : Chico; Maílson, Jorginho, Vágner Basílio e Gléber; Paulo Rodrigues, Gil e Luís Henrique; Naldinho, Charles e Marquinhos. Técnico: Candinho.

Ju iz : Joaquim Gregório dos Santos Renda: Cr$ 24.576.500,00 Público: 40.000 pagantes Local: Pacaembu

1 x 0 São PauloGol: Wilson Mano aos 4min30s do primeiro tempo.Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Márcio (Ezequiel), Wilson Mano,

Tupãzinho e Neto; Fabinho (Marcos Roberto) e Mauro. Técnico: Nelsinho.

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São Paulo: Zetti; Cafu, Antônio Carlos, Ivan e Leonardo; Flávio, Bernardo e Raí; Mário Tilico (Alcindo), Eliel e Elivélton. Técnico: Telê Santana.

Ju iz : José Aparecido de Oliveira Renda: Cr$ 92.979.100,00 Público: 85.433 pagantes Local: Morumbi

1 x 0 São Paulo

Gol: Tupãzinho aos 8 minutos do segundo tempo.Corinthians: Ronaldo; Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Márcio, Wilson Mano, Tupãzinho

e Mauro (Dinei); Fabinho e Neto (Ezequiel). Técnico: Nelsinho.São Paulo: Zetti; Cafu, Antônio Carlos, Ivan e Leonardo; Bernardo, Flávio e Raí (Marcelo

Conte); Mário Tilico (Zé Teodoro) e Eliel. Técnico: Telê Santana.Ju iz : Edmundo Lima FilhoCartão vermelho: Bernardo e Wilson ManoRenda: Cr$ 106.347.700,00Público: 100.858 pagantesLocal: Morumbi

Avenida Corinthians PaulistaAconteceu de novo: a torcida

corintiana invadiu a Avenida Paulista e à PM, que havia proibido a comemoração ali,

só restou assistir. E respeitar.

Mal o juiz apitou o final do jogo e as bandeiras alvinegras tomaram conta da Avenida Pau­lista, ao som das buzinas dos carros. Mas, desta vez, a come­moração da torcida corinthiana tinha mais entusiasmo, pois o tí­tulo conquistado - - cam peio brasileiro — era inédito na his­tória do clube.

A Polícia Militar bem que ten­tou impedir que a festa se reali­zasse na Paulista. Não adiantou: os torcedores nem ligavam para os cerca de cem policiais que, sob o comando do Capitão Ned- son, tentavam organizar a moraçào. nado *• r*

comemorar vestido â caráter, com uma imagem de Sâo Jorgena cabeça. Ele havia subido a pê da Bela Vista até a avenida, “Fiz promessa ao Santo Guerreiro e agora estou cumprindo”, conta­va.

Raul Hermógenes Jr tocava o hino do clube com seu trombo­ne. Ele tem 54 anos, está na mú­sica desde os 12 e se dizia conrin- tiano fanático. “Trabalhei o dia inteiro tocando em uma la"-'’ nete da Bela Vista -

noite”, explicava o 1’ Tenente Oliveira Campos.

Mesmo proibidos pela PM, osrojões eram livremente usados pelos torcedores. O Tenente Campos dizia que embora a po­lícia estivesse impedindo a sua venda no local, não podia ev;* o seu uso pelos torced' passavam de rir«-- mos tir*-A-

memorar«p.

Título do Jornal da Tarde de 17 de dezembro de 1990, na segunda-feira após a conquista do título de Campeão Brasileiro.

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Corinthians, Campeão Brasileiro de 1990: o time, a torcida e o jogo. (Fotos Antônio Carlos Carreiro)

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Da primeira taça, conquistada em 1912, à taça de Campeão Brasileiro de 1990, o Corinthians Paulista é um dos poucos clubes do mundo que pode ter sua his­tória contada integralmente a partir de suas centenas de troféus. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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o

O Parque São Jorge. Contrastes e uma lição de otimismo

Do ponto de vista arquitetônico, o Parque São Jorge é uma teimosa convivência entre o passado e o presente. Nele ainda restam sinais bastante evidentes dos

tempos heróicos, entre os quais o pavilhão de madeira que se alteia nas gerais costeiras à avenida Condessa Elizabete Robiano. As próprias gerais de concreto, ainda que coloridas, já viram muito Teleco jogar. Vários presidentes, entre eles Pasqua, Helu e Matheus — para somente citar a história mais recente do clube — , se esmeraram em modernizar e ampliar as regalias oferecidas aos associados, mas quem percorre, ainda agora, os caminhos mais recônditos do Parque São Jorge está apto a encontrar fantasmas protetores do Corinthians. Determinados cenários no Parque dão a impressão de que o clube alimenta, propositadamente ou não, um espírito amador que pareceria completa­mente fora de moda, se o clube não se chamasse Sport Club Corinthians Paulista.

Alguns acham que é essa mistura de antigo e moderno que dá charme ao clube. De fato, associados mais antigos, aqueles de carteirinha esfolada, prosseguem vendo nitidamente o nQ 777 da rua São Jorge, e mais que isso, continuam vendo a rua São Jorge de terra batida, que entrava pelo clube e ia desembocar numa escadinha debruçada sobre as águas do rio Tietê.

Tudo isso acabou faz tempo. Como acabou o velho parque de diversões que era emprestado a clubes esportivos e recreativos no outro lado da rua, e que depois passou a ser o clube alemão Turnechft, o qual alugou suas dependências para a Associação Athletica Guarani, do Tatuapé, que passou a realizar no local jogos de futebol e principalmente grandes bailes noturnos, atraindo a moçada de bairros distantes.

O Corinthians cresceu, não coube mais dentro da enorme área adquirida por Ernesto Cassano, ampliou seus domínios e terminou por absorver e detonar tanto o Turnechft (que depois originou o Clube Ginástico Paulista) quanto o Guarani do Tatuapé.

Talvez como mera curiosidade, agora que o tempo passou, não custa relembrar que sempre que o Corinthians quis expandir seu patrimônio territorial encontrou sérias objeções dentro do próprio clube. Foi assim em 1926, no dia 5 de julho, na assembléia

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presidida por Ernesto Cassano e secretariada por Ernesto Marangoni e Antônio Sá Ferros: dos 51 associados presentes, 42 votaram a favor da compra da Fazendinha; 4 votaram contra; 4 votaram em branco; e 1 associado nem votou, tendo se retirado da assembléia.

O associado Manuel Rodrigues não apenas votou contra a compra, como fez questão de que seu voto contrário ficasse constando em ata. Rodrigues dizia que, “por mais que o clube cresça, jamais vai precisar de tanto terreno”. É possível que esse modo negativo de ver o futuro tivesse suas boas razões. Nem todas as pessoas podiam imaginar que um dia o Tietê seria domesticado, quase um mero canal, a cujas margens correriam avenidas asfaltadas. O Tatuapé, naquele lado onde se situava o Corinthians, parecia não ter nada a ver com o Tatuapé marcado pelas sirenas das fábricas e pelo altear das chaminés industriais que começavam a pontilhar a paisagem desde 1917.

Uma coisa era o Tatuapé do empresário George Street, que, junto às suas tecelagens de juta, fazia nascer uma cidadela com conforto e tranqüilidade para seus operários, a chamada Vila Maria Zélia — que resiste até hoje, ainda que com as modificações que o modus vivendida cidade introduziu. O Tatuapé corinthiano, porém, parecia que nunca ia sair daquilo.

Manuel Rodrigues devia estar preocupado também com as nuvens negras no horizonte. Sempre há nuvens negras no horizonte. Em 1924, havia estourado uma revolução em São Paulo, produzida a partir do momento em que o general reformado Isidoro Dias Lopes dera voz de prisão ao general Abílio Augusto de Noronha e Silva e passou a tomar conta de São Paulo durante 23 dias. Tal revolução pipocara também no Tatuapé, deixou marcas de projéteis nas paredes, feriu bastante gente e matou alguns. O futuro, naquele passado, também era imprevisível. Que diabo vai o Corinthians se meter a comprar mais terras? — deve ter pensado o bem-intencionado Manuel Rodrigues.

Manuel Rodrigues estava com alguma razão, mas completamente enganado... De fato, o país convulsionou-se anos depois, houve novas revoluções, subidas e descidas no poder — embora o poder, no Brasil, seja uma espécie de roda-gigante, tudo gira, tudo sobe, tudo desce, mas nada sai do lugar— , mas essas coisas todas somente serviram para dar mais resistência ao clube do povo. A Fazendinha não cabia mais dentro dos limites assinalados pelos seus cinco portões de madeira (dois para as gerais, um para as arquibancadas, um para os associados e um para os automóveis) e pelo morrinho do qual se tinha péssima visão do campo, mas nos dias de jogo vivia lotado de “duros”. O descortino de Ernesto Cassano, da comissão de compra da Fazendinha, formada por João Batista Maurício, Antônio Pereira, Manuel Franciscano e Sibelo, e da comissão jurídica do clube, da qual faziam parte Floresto Bandechi, Berto Condê e Guilherme de Carvalho, foi fundamental para o progresso do Corinthians e, a bem dizer, da própria zona leste.

Anos mais tarde, o Corinthians iria buscar exatamente num celeiro futebolístico, nascido à sombra da Vila Maria Zélia do industrial George Street, craques como Luisinho, Rafael, Roberto Belangero, que não passavam de uns guris. O Corinthians atraiu todo

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um time do Maria Zélia, e fez da maioria de seus jogadores grandes craques e grandes ídolos corinthianos.

A escritura definitiva de compra da primeira gleba do Parque São Jorge foi lavrada e assinada no l l 2 Tabelião de Notas de São Paulo, o Tabelionato Veiga, no dia 5 de abril de 1937. Pelos vendedores assinaram Assad Abdalla, sua mulher Corgie Assad Abdalla, e Nagib Sallem e sua mulher, Nassiba Sallem.

O Corinthians levou quase um time completo de dirigentes para firmar o documen­to: o presidente Manuel Correcher, o vice-presidente Carmo Carnevale, o secretário-geral Hélio Dias de Siqueira, o primeiro-secretário Amadeu Canolas, o segundo-secretário João Alfredo Gemignani, o tesoureiro Manuel Domingues Corrêa, o vice-tesoureiro Antônio Pasquali e, também, Floresto Bandechi e José Francisco Luís Pereira, respecti­vamente presidente e secretário do Conselho Deliberativo do clube.

Nessa tarde de 5 de abril de 1937 o clube saldava a dívida restante, 210 contos de réis, acrescida dos juros, permitindo ao clube a posse definitiva da área, assim discrimi­nada na escritura: um terreno situado no distrito do Tatuapé com frentes para as ruas São Jorge e São Felipe, que têm e deverão ter acesso à via pública, confrontando, de um lado, com o rio Tietê e de outro lado com propriedade de Assad Abdalla e Nagib Sallem, com a área de 45 mil metros quadrados, sendo 100 metros de frente na rua São Jorge e trinta e sete metros e trinta centímetros na rua São Felipe. Uma das linhas divisórias laterais é determinada pela margem do rio Tietê e a outra sofre uma deflexão aos 170, 10 metros da rua São Felipe e 260, 50 metros da rua São Jorge — tudo conforme a planta de levantamento feito pelo engenheiro civil Francisco de Salles Malta, que serviu de base para a escritura de compromisso de data de 18 de agosto de 1926...

Por essa época já funcionava plenamente no Parque São Jorge o estádio do Corinthians, ao qual fora dado o nome de Alfredo Schurig.

O próprio Manuel Correcher propôs, em 1939, a compra de outra área de cerca de 42 mil metros quadrados, contígua ao Parque São Jorge e também pertencente a Assad Abdalla e Nagib Sallem. O Conselho Deliberativo do clube aprovou a idéia, formou-se uma comissão para estudar a compra: João Batista Maurício, Ernesto Cassano e Carmo Carnevale. Outra vez, vozes discordaram: Ernesto Cassano e Carmo Carnevale eram contra, o Corinthians não necessitava ampliar sua área, na opinião deles.

Prevaleceu, contudo, a visão mais avançada dos demais dirigentes. A compra desse outro terreno acabou por abrir uma disputa com o Guarani do Tatuapé, mas no dia 10 de abril de 1945 era assinada a escritura definitiva de compra do imóvel. Outra vez a diretoria do Corinthians compareceu incorporada ao cartório. À frente, o presidente

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Alfredo Inácio Trindade, acompanhado de MaximilianoXimenes, vice-presidente; Pedro Ortiz Filho, secretário-geral; Arlindo Fontana, primeiro-secretário; Nagib Nader, primei- ro-tesoureiro; Primitivo Taguia Duran, segundo-tesoureiro; Lauro de Sousa Lima, diretor geral de esportes terrestres; Paulo Martins, diretor geral de esportes aquáticos; Manuel Garcia Ariza, diretor social e propaganda; Lourenço Fló Júnior, diretor do patrimônio; e Manuel Correcher, que à época era o diretor de futebol profissional.

Hoje percebe-se claramente que, não fora a antevisão lúcida dos dirigentes corin- thianos em relação ao crescimento de São Paulo, sua sensibilidade premonitória à tendência de abertura de novos caminhos de acesso aos bairros mais distantes, o Corinthians, como clube, como comunidade voltada para os esportes e o lazer dos cidadãos, estaria irremediavelmente confinado a um beco sem saída. Estaria sufocado seguramente por arranha-céus, espigões de concreto e aço. O Parque São Jorge safou-se da armadilha imobiliária e lembra, por sua geografia, uma singela ilha onde é possível encontrar a agitação dinâmica das práticas esportivas e, ao mesmo tempo, recantos para a paz e a tranqüilidade.

Wadih Helu costuma dizer que o Parque São Jorge vai do alarido das arquibancadas à meditação silenciosa de sua singela capela, que foi uma idéia sua, “graças a Deus”.

Para acolher tantos climas, o Corinthians tinha de conquistar espaços, e foi com esse objetivo que em outubro de 1962 foi feito um compromisso particular para a compra de outros 33 mil metros de área do espólio de Salomão Klabin, ampliando a área do Parque São Jorge. A escritura definitiva desse terreno foi assinada pelo presidente Wadih Helu no dia 12 de abril de 1971. Era um período em que o Corinthians padecia da falta de títulos de campeão no futebol profissional, enquanto outros times se vangloriavam de obtê-los em série. Mas o Corinthians crescia, enquanto outros clubes se iludiam com fogos de artifício passageiros. Perdendo títulos, chorando derrotas, o Corinthians agi­gantava-se em silêncio.

Caberia ainda a Wadih Helu adquirir outros 40 mil metros quadrados no Parque São Jorge, que até então pertenciam à Dona Maria Sebastiana Cintra Franco de Almeida, com escritura assinada no dia 16 de abril de 1962.

O Parque São Jorge tornava-se completo.

De frente para a avenida Condessa Elizabete, sem perder de todo a vista para o lendário Tietê, fingindo que seu arco de boas-vindas, talhado em concreto, esteja fincado, de fato, no n2 777 da rua São Jorge, a Fazendinha é um doce território, um chão aberto, que vai dos “petequeiros” aos craques do “canindé”, onde nenhuma tíbia é sagrada e onde o tempo das peladas é decidido pelo fôlego dos atletas.

O Parque São Jorge é um lugar tão parque e tão São Jorge que, se não existisse, teria de ser inventado.

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Com a retificação do rio Tietê, a abertura de avenidas marginais e a urbanização das áreas circunvizinhas, o Parque São Jorge ocupa hoje cerca de l60 mil metros quadrados na zona leste da cidade de São Paulo.

A apenas poucos quarteirões de um dos importantes corredores comerciais da região, a avenida Celso Garcia, no caminho para o outeiro da antiga Freguesia da Penha de França, faz parte do bairro do Tatuapé, assim conhecido nos documentos e na tradição.

Embora encravado numa espécie de ilha urbana cercada de asfalto por todos os lados, o Parque São Jorge confina também com uma região paulistana onde resistem ao avanço imobiliário vastas manchas de hortaliças e verduras, chácaras remanescentes do cinturão verde da cidade que agora se modifica rapidamente. A primeira e mais profunda modificação do cenário da região começou exatamente com a chegada do Corinthians. Coube-lhe alterar a geografia, provocar mudanças no traçado das ruas e do rio, e nesse processo engoliu e digeriu o rabicho da rua São Jorge, que outrora seccionava o território do clube e descia até às margens do Tietê. A São Jorge termina agora onde começa o Corinthians. O próprio rio, voluntarioso em outros trechos de seu percurso, nas terras corinthianas se docilizava para formar um ameno remanso que se ruborizava ao pôr-do-sol.

Nesse cenário, o número de associados do Sport Club Corinthians Paulista varia de acordo com as estações do ano e o conseqüente funcionamento do parque náutico, magnífico conjunto de piscinas e equipamentos aquáticos para competições e lazer, que cobre 3.500 metros quadrados e é reconhecido como o maior da América Latina. É uma das atrações do quadro associativo, mas longe-de ser a única. Apesar das oscilações eventuais, contudo, rara é a lembrança de alguma época, na última década, em que o número de sócios ficou aquém dos 30 mil. Em determinados períodos da vida do clube, beirou a casa dos 100 mil. Gira no geral em torno dos 45 mil. entre beneméritos, remidos e pagantes.

Independente do número de associados de recibo em dia e carteirinha. o Corin­thians é tido como uma agremiação privilegiada no que se refere ao apoio popular. Tem sido uma das principais características da sua história essa enorme capacidade de conquistar a torcida, mantê-la fiel (e Fiel é o apelido mais grato a essa torcida) nas horas escuras ou luminosas, e ter como base dessa fidelidade imbatível não simplesmente a admiração pelo clube, mas, principalmente, o amor ao clube. O Corinthians é uma comunidade de pessoas que o amam e provam isso nas gerais, numeradas e arquiban­cadas.

Chova, faça sol, caia granizo ou canivete, tormentas e relâmpagos, raios e sinistros, há sempre alguém, em bando, em legiões, mantendo aberta a bandeira preta e branca. Se o atleta pertence ao time alvinegro. o povo está a seu lado. O primeiro ídolo do Corinthians é a camisa do Corinthians1.

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Clube eminentemente poliesportivo, é difícil apontar alguma modalidade de espor­te em que a agremiação do Parque São Jorge não haja levantado títulos e medalhas em competições internas, nacionais ou no exterior.

Eclético por excelência, o Corinthians mantém espaço para atividades variadas, que vão do tamboréu ao remo — houve época em que os barcos do clube eram construídos no próprio Parque São Jorge. A gama variada de atividades compreende campos de malha, bocha, peteca, bola ao cesto, voleibol. Dois ginásios, um com capacidade para1.300 pessoas, outro para 10 mil. Áreas arborizadas, gramados, bares, quiosques, churrasqueiras, restaurante, campos de areia, biblioteca, o Parque oferece clima propício à agitação da juventude e à nostalgia dos associados mais antigos. E para quem deseja mergulhar na história do clube sem precisar revolver atas, relatórios, papéis amarelados nas prateleiras do tempo, coleções de jornais e revistas, existe uma sala dos troféus, onde as vitórias estão gravadas no bronze, na lata, na alpaca, no ouro, na prata, e onde o metal das taças, ainda que por vezes tisnado pelo passar dos anos, mantém ainda o brilho inconfundível das emoções permanentes.

Mas o que o Parque São Jorge tem, acima de tudo, o que o Parque São Jorge reflete e exprime, em suas ruas, seus canteiros, suas paredes, algumas carcomidas, e em cada folha de árvore que balança ao vento, é a lição de que o povo armado de confiança e amor é capaz de construir o que aos descrentes soa impossível.

Nota

1. Uma pesquisa do Instituto Gallup, há quase dez anos, divulgada pela revista Placar, revelava que os corinthianos, só em São Paulo, chegavam perto de 3 milhões.

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A nova cara do estádio Alfredo Schurig no Parque São Jorge. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

O Parque São Jorge é uma mistura harmoniosa de passado e presente. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Estes antigos barcos ajudaram os remado­res corinthianos a conquistar títulos e me­dalhas. Como guerreiros aposentados, re­pousam hoje ao lado da sala dos troféus. O Departamento de Remo do Corinthians mantém hoje seus barcos na Cidade Uni­versitária, em cuja raia competem. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Colocado nos jardins do clube, este é um dos mais admirados troféus do Corinthians: lembra a conquis­ta do campeonato do 4e Centenário da Cidade de São Paulo, sob o comando do técnico Oswaldo Brandão. No pedestal, os nomes dos 20 atletas que ajudaram a conquistar o título e o número de jogos de cada um Gilmar, 20 jogos; Cabeção, 6 jogos; Allan, 21 jogos Olavo, 9 jogos; Clóvis, 5 jogos; Idário, 21 jogos Goiano, 21 jogos; Baltazar, 17 jogos; Paulo, 11 jogos Rafael, 11 jogos; Gatão, 2 jogos; Nonô, 19 jogos Nardo, 1 jogo; Simão, 15 jogos; Carbone, 2 jogos Rivetti, 1 jogo; Homero, Roberto Belangero, Cláudio e Luisinho, com 26 jogos, foram os que mais partici­param do campeonato. Na época, o Conselho Deli­berativo do clube era presidido por Maximiliano Ximenes, tendo como vice Mário Augusto Campos; o presidente do clube era Alfredo Inácio Trindade, e vice, João Apugliesi; Pedro Ortiz Filho e Francisco Dionísio Mendes eram os diretores de esportes ter­restres; Vicente Matheus, Albino Lotito, Miguel Mar- tinez e Jaime Bortmann eram diretores de futebol profissional. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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Este monumento assinala a conquista do campeo­nato paulista de 1977, quando o Conselho Deli­berativo era presidido por Mário Campos. Aniz Aidar era o presidente do Cori, tendo como secre­tário Flávio La Selva. A diretoria do clube tinha como presidente Vicente Matheus e como vice, Waldemar Pires. Sob o comando de Oswaldo Brandão, atuaram no campeonato daquele ano Moisés, Vaguinho, Luciano, Romeu, Palhinha, Russo, Tobias, Wladimir, Ademar, Zé Eduardo, Edu, Zé Maria, Basílio, Cláudio Mineiro, Givanil- do, Jairo, Darci, Adãozinho, Nicola, Cláudio Mar­ques, Goes, Belino, Genildo e Geraldo, este tendo feito o maior número de jogos: 45. O título valeu ao Corinthians o troféu “Jubileu de Diamantes”, da Federação Paulista de Futebol. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Este arco marca a entrada da Cidade Corinthians. A tradição diz que ali era o nQ 777 da rua São Jorge, e esse endereço ficou constando como sendo o do clube alvinegro. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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A igrejinha de São Jorge, no Parque. Uma idéia de Wadih Helu que faz parte dos jardins da Fazendinha. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

Nesta esquina a glória marca encontro com a história. (Foto Antônio Carlos Carreiro)

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A vida colorida em branco e preto

Esta nâo é a história oficial do Corinthians Paulista. É possível que um dia a história oficial e completa seja escrita com todas as letras por um robô ou algum outro

engenho cibernético. Mas.se essa missão fascinante couber a uma pessoa de carne e osso, músculos e tutano, alma e coração, essa pessoa terá de reservar um espaço para a paixão fluir de seus dedos. Além da paixão, a história do Corinthians precisará ter ouvidos para o sussurro das sombras, acreditar na veracidade da imaginação. Não basta ouvir o depoimento dos vivos e escarafunchar papéis enrugados pelo tempo. A história do Corinthians depende de auscultar a voz dos fantasmas, voltar a percorrer as margens do Tietê com seus sanhaços e tiês-sangues — pois ali ainda pairam os ecos dos primeiros sonhos.

Talvez seja necessário voltar os passos ao Bom Retiro. Mas o Bom Retiro nâo é mais o Bom Retiro das meninas com sotaque do Juó Bananere. Não há grilos noturnos nem cigarras no verão. O cometa que por ali passou em 80 foi um arremedo do cometa de I 9IO. Já não se fazem cometas como no tempo do cocheiro Alexandre Magnani.

Mas mesmo que a história pudesse ser contada por inteiro, sem lacunas e sem omissões, restariam sempre alguns enigmas no miolo do fenômeno — pois digam o que disserem, o Corinthians Paulista é uma invenção fenomenal do povo. Enigmas, sim! Como é que o Corinthians resistiu, sobreviveu, e está aí, forte e saudável, apesar de uma ou outra crise sazonal? Outros clubes nascidos na mesma época, com a mesma raiz, paridos da mesma barriga varzeana de terra preta molhada de rio, arrepiaram carreira, sucumbiram, pediram penico, se arreglaram, se desmancharam, foram pulverizados como pó-de-traque. O que sustentou o Corinthians e manteve acesa a chama, se no começo, na sua infância trôpega, arquejante, o clube não passava de uma ilusão?

E tanta ilusão que foram copiar um nome inglês — que não queria dizer coisa alguma — para denominar um clube que hoje pode ter vários subnomes — Córints, Curingâo, Coringa — mas um único significado: é povo total, do gorrinho ao bico da chuteira. Dizem que Corinthians vem do grego. É verdade. Mas pode vir também de Minas Gerais, onde existe uma Corinto, com coreto, uma igreja de Nossa Senhora da Glória, e bancos no jardim. A Corinto mineira é o centro geográfico de Minas Gerais. Um funcionário da prefeitura disse que não troca a pracinha da cidade por nada deste

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mundo. Todo mineiro que nasce na Corinto é corintiano, sem o h. Um torcedor corinthiano descobriu num dicionário de inglês que corinthian significa também gen- tleman. Muito simpático.

Mas mesmo que se explique o nome, mesmo que se conte como é que o nome Corinthians foi escolhido numa noite do Bom Retiro, será preciso prestar enorme atenção ao passado se se quiser entender o Corinthians do presente e, possivelmente, o Corinthians do futuro. O Corinthians parece ter sido o primeiro clube a democratizar-se de fato. A escolher seus caminhos em decisões abertas, embora às vezes à custa de cicatrizes fundas. Os chamados “cinco operários fundadores” jamais chegaram a presidir o clube. Nâo que fossem alijados das decisões, isso não. Seria impossível. Nos primeiros tempos, todos palpitavam: jogadores, associados, mesmo os simpatizantes que ajuda­vam a reforçar as “vaquinhas”. Jogador não atuava apenas dentro das quatro linhas do gramado. Jogador atuava também nas assembléias.

É possível que a interferência e a influência dos cinco primeiros rapazes que davam duro nas oficinas ferroviárias da São Paulo Railway, no bairro da Lapa — onde viviam em contato com os estudantes da Escola Politécnica que ali realizavam testes de aula e faziam estágio como futuros engenheiros — , tivessem sido mais palpável nos primeiros três anos de vida do clube, justamente a fase que menos resíduo deixou em documentos e comprovações. Não há atas da infância do Corinthians. Dela sobrou apenas a primeira taça, de 1912.

O Corinthians nasceu paupérrimo. Bemard Shaw costumava dizer que todo ricaço gosta de contar como ganhou seu primeiro centavo, mas não faz questão de dizer como ganhou seu primeiro milhão. É comovente ouvir histórias de como a pobreza consegue subir na vida. Mas o Corinthians nasceu de tal forma pobre, sem teto, sem um pedaço de chão, com os primeiros calções — brancos — feitos de sacos de farinha de trigo, que perto dele o Bangu, do Rio — que alguns gostam de chamar de “clube de operários” — , podia se gabar da fama de marajá indiano.

O Corinthians era chamado de clube de operários. Não chegava a ser uma ofensa. Era uma constatação. Mas nenhum pobre gosta de ser chamado de pobreta. O Corin­thians vinha formado dessa gente, desse tipo de criatura que dá duro, lasca pedra, parafusa trilho em dormente, revisa êmbolo e caldeiras, limpa tênder de locomotiva e começa a carreira burocrática ajudando o chefe dos escritórios a organizar as pastas de faturas, memorandos e recibos.

Na época, fora o Velódromo, de Dona Veridiana, tudo eram várzeas. Até a Chácara Dulley era várzea. Charles Miller, filho do sr. John Miller e de dona Carlota Alexandrina Miller, levou suas bolas de capotão inglesas para a várzea do Carmo porque era naqueles terrenos encharcados dos vapores de rios, córregos e regatos, que se abriam os horizon­tes livres para a molecada mostrar o que havia aprendido na rua ou ensaiado nas escolas de padres e nos grupos escolares do ensino público. Neco, o Português, paulistano da gema, era linha de frente no time do Liceu Coração de Jesus. De lá vinha também seu

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irmão mais velho, César, o Paredão, fundador do Corinthians, cara duro na queda, pesadão, nervosão em campo, caráter íntegro. Numa das quentes assembléias do clube, César aderiu afoitamente a um grupinho de oposição que tinha levantado dúvidas sobre as contas do presidente Ricardo de Oliveira. Designado para fazer parte de uma comissão de revisão dos balancetes, César caiu em si, concluiu pela lisura dos números, e numa reunião seguinte, publicamente, com humilde dignidade e generosa retidão, pediu desculpas ao presidente ofendido.

Quando, mais tarde, muitos jogos e vitórias passados, as pernas fraquejaram e César não mais se sentiu útil na defesa da camisa do Corinthians, nem mesmo na lateral da intermediária, para onde fora recuado da linha atacante, fez um discurso de adeus à bola e aos gramados. Nesse dia chorou. Pendurava então não apenas as chuteiras, mas também um pedaço da melhor parte de sua mocidade. Contudo, jamais abandonou o Corinthians. Os Nunes eram assim.

Neco, o jogador-símbolo do Corinthians, vivia assediado por outros clubes. Desses, o que jogou mais pesado para conquistá-lo foi o Fluminense, de Arnaldo Guinle, homem poderoso, simpático, bem falante, um dos donos das Docas do Rio de Janeiro. Neco havia feito misérias naquele dia 29 de maio de 1919, a quarta-feira que o presidente Epitácio Pessoa tinha declarado feriado nacional para que o povo pudesse acompanhar a decisão de Brasil e Uruguai no campeonato sul-americano de futebol. O campo do Fluminense tinha gente agarrada até no pau das bandeiras, entupido até à boca desde as 10 da manhã. O jogo começou às 2 da tarde; foi nesse dia que Friedenreich marcou o gol que deu o título ao Brasil. Nesse dia Fried ia ser carregado em triunfo, mas antes avisou que quem devia subir nos ombros do povo era aquele moço franzino, de 24 anos, que tinha feito toda a jogada, vindo lá de trás driblando os uruguaios, limpando, e mandando o centro da linha de fundo: Neco. Neco ganha manchetes. Guinle oferece um banquete no Hotel Sul-América, e manda alto uma proposta para o corinthiano: 100 mil cruzeiros de luvas, um emprego bem-bom nas Docas, para Neco mudar de camisa. Neco diz não. O Corinthians não lhe pagava maiS que o Fluminense. O Corinthians não lhe pagava nada! Neco voltou a São Paulo, foi cumprimentado pelo governador Altino Arantes no Palácio do Governo, e acabada a festa foi para casa a pé. Só tinha 200 réis no bolso. Pior que isso: no dia seguinte Neco foi trabalhar normalmente, numa marce­naria que fabricava móveis em Santana. Surpresa: estava despedido, por ter faltado ao serviço!

Os corinthianos ficaram de cabelo em pé, ouriçados quando ouviram falar da proposta do Fluminense. O time jogava no campo arrendado da Floresta graças aos bons préstimos do Dr. Alcântara Machado junto ao Dr. Washington Luís; se dependesse de dinheiro, seria impossível segurar Neco. Mas Neco não jogava por dinheiro. Preferiu o Corinthians.

Em outra ocasião, correu um boato forte de que um clube inimigo estava namorando a fama do grande craque corinthiano. Os rumores chegaram à casa de Neco. Pois foi na

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porta de casa que Neco topou com o pai, o robusto lusitano Antônio Bertoldo, que o esperava de cara fechada e maus bofes. “Seu’’ Bertoldo nem falou boa-tarde, parou o Manuel na soleira:

“Menino, escuta: se vais mudar de clube, nem me entres cá na casa!”

Pelo menos é o que diz a lenda.

O Corinthians nasceu numa época de crise no futebol de São Paulo. O esporte bretão estava cindido em dois grupos. Não havia união. De um lado, a Liga; de outro, a Associação. Cada um com seu campeonato próprio.

Fora isso, o Corinthians carregava mais um fardo: tinha cheiro de operário, de povo. Seu time era formado com os melhores da várzea, sabia escolher; no Corinthians jogava o melhor. Não tinha cartucho, pistolão. E o jogador tinha de ter o recibo em dia. O Corinthians poderia jogar no Velódromo, se prevalecesse a qualidade de jogo. Mas havia o cheiro de várzea em seu futebol. O preconceito era uma erva daninha, a formiga lava-pés dos gramados de futebol. Barrava-se o futebol operário até a última porteira. O Sport, semanário ilustrado, que tinha como colaboradores Washington Luís, Antônio Prado Júnior, o capitão Balencie, da Missão Francesa no Brasil, o tenente-coronel Soares Neiva, comandante do Corpo de Bombeiros, e esportistas como Mário Cardim e José Rubião, num editorial de abril de 1914 defendia o direito de os operários participarem das... atividades esportivas! “Assim, portanto, o operariado, como toda criatura humilde dentro da sociedade, não pode ser privado da ação esportiva.

Mas advertia: “O clube que os admitir é quem toma toda e inteira responsabilidade do que esses indivíduos possam praticar dentro das relações dos clubes..

De onde vinha, afinal, o dinheiro para sustentar esse clube ousado que desejava ser mais do que um clube varzeano de operários? Das “vaquinhas” das mas — e, quase certo, dos funcionários mais abonados da São Paulo Railway, da Light and Tramway, da Companhia de Gaz. Ajudavam sim. Afinal, era o Corinthians! Em certos bairros, não havia quem pensasse que o Corinthians Paulista era um clube... inglês?

Na história do Corinthians nenhum presidente assumiu o cargo sem imensa cota de sacrifícios. Ainda que coberto de fama e glória, todo presidente corinthiano grama, padece, sofre. E se acha injustiçado. Quase sempre o é. O Corinthians é um vulcão japonês indormido. Ali fervem o sangue luso, um pouco dos mouros, a cimitarra árabe, a família dos macabeus, a espanholada que enriqueceu com cobre e zinco, os paulistas descendentes dos Alcântaras e dos Machados, e algumas ramificações do povo da Bota que encheram as noites do Bom Retiro de bandolins e pizzas napolitanas. Bote-se tudo isso num cadinho, mexa-se em fogo brando apaixonado, misture-se essa poção pode­rosa com o povo brasileiro, nós, e está feita a explosão chamada Corinthians Paulista. Como se vê, a receita é simples.

Essa é a turma que começou com os 200 da primeira gleba do Parque São Jorge, que ajudou a pregar prego e a girar parafuso nas madeiras das arquibancadas da Ponte

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Grande, construindo com as próprias mãos calosas dos operários o primeiro estádio, e depois ajudando a construir o segundo, a partir de uma esquina da rua São Jorge. Essa é a gente que enche os estádios, sem eira nem beira, arrastando como seus móveis e utensílios a bandeira de algodão atada ao cano de plástico das tardes fagueiras ou das noites de tempestade.

O Corinthians Paulista são os poros por onde o povo respira. Às vezes, nas costas dessa torcida fremente, canta o cassetete, sapateiam os cavalos fardados, gemem as sirenas dos camburões. Mas na vitória seguinte, ou na derrota seguinte, eis o povo alvinegro. Um dia, na geral, passou um moleque vendendo canole. Canole é um doce italiano, um canudo, recheado de creme amarelo. No tempo do Bom Retiro corinthiano, toda casa comia canole no almoço do domingo. Mas agora, nesta tarde de sol no Pacaembu — estádio que o Corinthians inaugurou vencendo o Atlético Mineiro — , nesta tarde de sol, o canole é um doce raro e estranho. O torcedor corinthiano pensa um pouco antes de pedir um. E acha o espírito da coisa:

“Ei, você aí: me dá um nariz-entupido!”

Não há nada mais parecido com um nariz entupido do que um canole. O corinthiano é o torcedor que descobre que tudo neste mundo tem vários nomes: torcer é amar, sofrer é suportar, preto e branco é arco-íris, canole é nariz-entupido, alegria é Corinthians.

Uma longa história. Cada um contando a sua. Inventando a sua. Mesmo revirando aqueles mofados livros de capa preta, capa dura, que guardam os espasmos de paixão que eram as assembléias que se iniciavam tarde da noite — para permitir que os operários, que moravam longe ou trabalhavam em bairro distante delas pudessem participar — , mesmo compulsando os livros é difícil livrar-se da sensação de que aquelas palavras, aquelas discussões, aquele amor ao clube, aquela voragem de sentimentos, continuam acesos, vivos, queimando na pele. A letra elegante do secretário Heitor da Rós, que assinava as atas, parece ter acabado de sair da pena molhada no tinteiro bojudo em cima duma velha mesa sem verniz.

Viremos as páginas. Neco marca 12 gois no primeiro campeonato, 1914, enfrentan­do o Lusitano, o Minas Gerais, o Hidecroft, o Campos Elyseos, o Germânia. A primeira bandeira branca e preta espreguiça ao vento do Parque Antártica. A primeira “vaquinha” para pagar o aluguel da sede.

Sebastião entra de sócio no clube e azucrina a vida do Anselmo Correia, que jogava no gol do segundo quadro. Correia perde o lugar. Sebastião fecha o gol do primeiro quadro. Vira titular. O campeonato agora é o de 1916, jogam o Germânia, da colônia alemã, o Americano, o ítalo, o Campos Elyseos, o Atlético, o Internacional, o Alumni, o União da Lapa (aquele que havia derrotado o Corinthians na várzea), o Maranhão, o Lusitano, o Minas Gerais, o Paysandu, o Ruggerone (que estava começando a dar jogadores para o Palestra). Campeão de novo. Invicto! Ah, esse Corinthians de operários! Metidão!

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O Paulistano, bicho-papão. Grande em tudo. Um dia seriam chamados “os reis do futebol”. Começa o campeonato de 1922. O Corinthians vinha de dois vice-campeonatos (1920, 1921). Em 1922 o título era de gala: Campeão do Centenário! O centenário da Independência do Brasil... Doze clubes disputam o título, somente oito se classificam para a fase final. O Corinthians está no páreo. No começo do campeonato, tropeça: perde do Sírio, empata com o Palestra e com a Associação Athletica das Palmeiras. Mas começa a acertar contra o Internacional: dá de 9 a 0. E carimba o Paulistano: 3 a 2. Na segunda fase, a mais importante, o Corinthians perde para a Associação Athletica das Palmeiras, que tinha sua sede no atual bairro de Santa Cecília, clube com dinheiro, rival do Paulistano. E o Paulistano faz valer a escrita, dá na A. A. Palmeiras por 5 a 1. Agora o pega vai ser entre Corinthians e Paulistano. O alvinegro precisa da vitória, se quer o título. Só vitória. O Paulistano entra em campo com Arnaldo, Guarani e Clodoaldo; Mestre, Franco e Abate; Formiga, Mário Seixas, Friedenreich, Zecchi e Alfredo. O Corinthians — aleguá-guá-guá! — entra com Mário, Rafael e Del Debbio; Gelindo, Amílcar Barbuy e Américo Ciasca; Peres, Neco, Gamba, Tatu e Rodrigues. Na Ponte Grande, tremulam as bandeiras. Mulheres de chapeuzinho na cabeça, frisson nas arquibancadas e nos camarotes. Neco pega a bola, não corre, o homem domina o campo na passada medida, olha, Tatu está pedindo o couro. A bola vem, elétrica. Tatu manda o petardo. Arnaldo só olha. Aleguá-guá-guá! O grande Friedenreich corre o campo, se desdobra, tenta matar a chama daquela turminha que começara sem sede e agora, ali, na Ponte Grande... tinha um campo, arquibancadas, tudo de madeira parafusada com os parafusos da fábrica do Alfredo Schurig. O Paulistano resiste, pode empatar a qualquer momento, ataca, insiste, mas Gamba desce e marca o 2S! Faltam poucos minutos para terminar a partida, o juiz, o Dr. Agenor Urbina Teles, trila o apito. Dizem que a torcida invadiu o campo, pensando que era fim de jogo. Que nada. O Dr. Teles tinha marcado uma falta do Neco no Abate. Todo mundo pra fora! Os minutos pingam. Aflição. Por fim, prrrrrrr! O Dr. Urbina Teles levanta os dois braços. Fim de jogo. Tatu está suado até no bico da chuteira. Neco ri como uma criança. Ainda bem que ele não tinha ido para o Fluminense... Já imaginou? Campeão do Centenário, com um ataque que tinha feito 73 gois — o maior número de gois de todos os times — , a melhor defesa, apenas 19 gois. Gamba era o artilheiro do ano, 19 gois.

O pessoal foi descendo as ruas da cidade, na direção da sede. Naquela noite ia ter cerveja de graça, a rodo.

Mudou o goleiro. No lugar do Mário estava entrando Colombo. Em 1923 as coisas pareciam repeteco. O Corinthians era bicampeào. O ataque com Peres, Neco, Gamba- rotta, Tatu e Rodrigues marcava 53 gois. Entre as vitórias, uma de 4 a 0 contra o Palestra, o qual se recusou a jogar no segundo turno. Outra vez Gambarotta era o artilheiro: 19 gois.

Pedro Grané, o “420”, apareceu nesse ano de 1924. Um chute colossal, um canhão. Grané surgiu para ajudar o Corinthians a conquistar seu primeiro tricampeonato. O

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Corinthians venceu 12 das 17 partidas disputadas. Um time goleador, que tinha lá atrás Grané. Nas faltas, Grané vinha bater. Um terror para os goleiros.

O campo da Ponte Grande, arrendado, já era pequeno para os sonhos. O Sport Club Corinthians Paulista começava a pensar como clube grande, poderoso. Comprou a primeira gleba. Os livros de capa preta, os livros das atas, contam que alguns associados, assombrados com o vulto da transação, berraram: o Corinthians não precisa de tanta área!

Mas a torcida ia aumentando. E enchendo as arquibancadas. Em 1928 o Corinthians já tem o Parque São Jorge, inaugurado com banda de música. E tem Tuffy no gol, aquele goleiro que viera da várzea com um apelido: Satanás. Em 14 jogos, o Corinthians vence11, tem 2 empates, uma derrota para o Palestra. E assim o Corinthians Paulista é outra vez campeão!

O crack da Bolsa de Nova York mexe com o mundo. Quebradeira geral. Terremotos econômicos internacionais. No campeonato paulista de 1929 houve apenas um turno, oito participantes. Que dizem os livros de atas? Que diz a história desse clube de operários? Dizem que o Corinthians é novamente campeão. Invicto. Sete vitórias. Nem mesmo um único empate. Nenhum ponto perdido. Bicampeão!

Tricampeão em 1930. Tuffy, Grané e Del Debbio lá atrás fechando a defesa. Rato e De Maria fazendo misérias na ala esquerda do ataque. José Castelli e Alexandre De Maria, a ala famosa, inesquecível. O Corinthians vai crescendo. Aumenta seu patrimônio, estrutura-se administrativamente, organiza seus departamentos sociais, incrementa o número de associados, mas não consegue fugir de uma de suas mais terríveis crises. Ai do clube que depende apenas de glórias e vitórias! Corinthians, temperado nas dificul­dades. Corinthians superando as tempestades. O Corinthians prepara-se para enfrentar o futuro.

Neco ganha busto no Parque São Jorge. Pendura as chuteiras. Está cansado. São dezoito anos jogando pelo alvinegro da Fazendinha. Antes da Fazendinha, na Ponte Grande. Antes da Ponte Grande, no campo do Lenheiro... As pernas doem. Ele agora está de terno, chapéu na cabeça, é técnico do time. E salta, como quando garoto, ao comemorar em 1937 o primeiro campeonato do Corinthians no futebol profissional. O Corinthians preparara-se para essa conquista. Não tinha sido fácil. O ex-time pobre, o ex-clube dos operários, assumia o profissionalismo. E tinha ido buscar no Paraná um garoto chamado Urias, mas que todo mundo conhecia como Teleco. Teleco, o homem da virada. O artilheiro das multidões. E na intermediária o Corinthians tinha agora o negro Brandão, um gigante que dominava o meio-campo como um imperador, um general, um rei do futebol.

Velhas folhas amareladas pelo tempo mas rejuvenescidas pela emoção: folhas que falam do bailarino Servílio, o bom baiano, esguio, lépido, liso como peixe ensaboado, fazendo filigranas em campo, ótimo chuta dor, artilheiro também ele. Mas começou no

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campeonato de 1938 marcando apenas 2. Fez os passes para Teleco faturar. E ajudou o Corinthians a ser bicampeâo em 1938...

Nenhum outro clube paulista foi tantas vezes tricampeâo quanto o Corinthians Paulista. Três vezes tricampeâo. Ciclo fechado em 1939. Teleco dizia a que tinha vindo. Chutava com os dois pés. “Centro-avante que não marca, não chuta com os dois pés, está com os dias contados”, ele dizia. Marcava com os dois pés. Fez 32 dos 63 gois desse campeonato histórico. Está nos livros, nas crónicas, na memória de quem viu com os próprios olhos...

Para o Corinthians, o estádio do Pacaembu tem um pouco de caráter sentimental. Um estádio com... calor humano! Pois não era ali, naquele trecho das arquibancadas com bancos de madeira, que gostava de ficar a Torcida da Curvita? Não era ali que ficava Elisa, a torcedora-símbolo, com sua bandeira? Foi no Pacaembu que o Corinthians Paulista conquistou o campeonato de 1941, líder de ponta a ponta, durante todo o certame. Era a estréia do Corinthians como campeão no Pacaembu, que tinha sido inaugurado no ano anterior... Mas o clube do Parque São Jorge vai viver um período de espera — desses períodos em que, por falta de títulos, a torcida parece preparar seu coração para suportar emoções mais intensas. É em 1951 que o ataque arrasador do Corinthians, num time remodelado, faz 103 gois em apenas 28 jogos. Carbone desponta como o artilheiro: só ele, sozinho, faz 30! Os adversários levam no mínimo quatro gois em cada partida. Cláudio, Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário. No gol, revezam-se Cabeção e ... aquele rapaz de 21 anos, nascido em Santos, Gilmar dos Santos Neves. Uma figura elegante, atlética, tranqüila. O antigo garoto que com 10 anos ingressara no Espanha Futebol Clube, depois Jabaquara, jogando no ataque — ponta ou meia-esquer- da. Infantil, juvenil, jogava bola e estudava. Fez o curso comercial no Colégio Santista. Era regular na escola e regular no ataque do Jabuca. Mas aos 13 anos descobriu o gol. Por acaso, ou quase. Num jogo entre dois times, faltava um elemento, Gilmar foi sondado se não queria “quebrar o galho” sob as traves. Foi. Houve um ataque — eram uns brutamontes — , Gilmar voou nos pés de um atacante, catou a bola, veio o chute na boca. Pulou fora um dente. Nem por isso largou a meta. Jogava de goleiro no Jabaquara e no Grêmio São Luís do colégio. Foi servir no Exército. Continuou no gol. O Corinthians foi a Santos. Estava interessado num jogador dojabaquara. Mas era... Ciciá. O jogador Ciciá. Conversações, ofertas, contra-ofertas, o Corinthians contrata Ciciá e traz Gilmar de... contrapeso! Gilmar chega como reserva de Cabeção, recebe salário de 6 mil cruzeiros por mês. Fica feliz. É dedicado, corajoso, logo vai ser o titular. Viverá momentos de glória e amargura. Em setembro, vê morrer seu pai, João dos Santos Neves, que tanto o incentivara e que um dia, surpreso, viu o garoto sair nadando no mar, o Gilmar que o pai nunca soubera que tinha aprendido a nadar. “Seu" João que quando viu o filho chegar com a boca inchada, sem o dente, pensou: “Mas com tanta posição no time, me escolhe justamente o gol, esse garoto!" O gol que tantas alegrias dará e tantas tristezas também, como no dramático jogo contra a Portuguesa de Desportos, 7 a 3 para a Lusa. Gilmar

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com o coração ainda ferida viva pela morte do pai semanas antes... Mas nesse mesmo ano de 1951 o Corinthians vai reagir. Julião tem a perna fraturada num jogo contra o Radium, de Mococa. Em junho, o Corinthians inaugura o alambrado do Parque São Jorge com vitória de 5 a 2 contra o XV de Piracicaba. E no dia 17 de novembro desse ano acontece um fato quase inacreditável: o ponta-esquerda Mário, que driblava a própria sombra, marca seu primeiro gol no Corinthians! A torcida mal crê no que vê. Mário marcando gol! Delírio nas arquibancadas. Mário detestava marcar gois. “Minha mãe não gosta”, ele explicava aos companheiros... Mas a alegria está reservada para o final do campeonato. O Corinthians conquista o título. O ataque dos 103 gois fizera sua parte. No ano seguinte, 1952, o Corinthians vai buscar o bicampeonato, com o ataque fazendo 89 gois em 30 jogos. Apenas um time, modesto então, o Jabaquara, conseguiu sair de campo sem levar gol do Corinthians. O Jabaquara agüentou um zero a zero... mais que honroso. O Corinthians conquistou o título com uma rodada de antecedência e no último jogo pespegou um 3 a 2 no São Paulo.

No campeonato do IV Centenário de São Paulo em 1954 o Corinthians faturou novamente. Sobressaiu-se a figura do grande Roberto Belangero — o Professor. Um mestre da técnica. O troféu, um “Bandeirante”, vai para os jardins do Parque São Jorge. Estático, hierático, dizem que, às vezes, nas vésperas dos grandes jogos, alguns torce­dores costumam se aproximar do troféu e dar três batidinhas com o nó dos dedos. Tum, tum, tum — faz o eco do troféu, que é oco. Parece que o “Bandeirante” fala, com seus olhos metálicos, suas barbas metálicas, sua boca metálica. A história oficial do Corin­thians, ó galera, terá que incluir também a palavra desse “Bandeirante” que olha o Parque e vigia as tradições corinthianas com seu bacamarte de paz.

Um dia, quando se contar a história oficial do Corinthians Paulista, um livro terá que ser aberto com páginas de prata e uma pena de ouro escreverá todas as letras da emoção que embalsamou a noite de 13 de outubro de 1977, uma quarta-feira, quando Basílio fez a Fiel sair às ruas cantando e dançando como poucas vezes — ou nunca — se havia visto na cidade de São Paulo. Foi como se uma nuvem escura, túrgida de esperança e ao mesmo tempo de desespero, se houvesse rasgado de alto a baixo. Um alívio, um grito sufocado durante 22 anos explodia nas baixadas, vales, esquinas e rompeu alas no espigão da Paulista.

A Ponte Preta é uma adversária de valor. Defende-se. O tempo passa — avisava o Gigliotti. E os corinthianos com o coração na boca e a alma nas mãos suadas. No 37s minuto do segundo tempo, a bola corre na área do clube do Campinas, a Macaca. Bate num jogador, por pouco não sai, pica na trave, retoma para Basílio que vem descendo, com a alça de mira na ponta da chuteira. É gol! É um gooooooool comprido, cantado, chorado, sofrido, ao compasso das baterias e da explosão dos foguetes que espocam no céu. O goleiro Carlos — que depois iria vestir a camisa do Corinthians — olhava desconsolado a bola aninhada no fundo do gol. A Ponte caía, mas com dignidade, com brio. Havia perdido o jogador Rui Rei por reclamações, o juiz Dulcídio Vanderlei

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Boschilia o havia mandado para os vestiários aos 16 minutos do primeiro tempo. Mas a Ponte Preta caiu de pé, honrosamente. Não podia fazer nada: era a noite do Corinthians, duas bolas na trave, uma de Luciano, uma de Vaguinho, o clima ferve, Oscar e Geraldão se estranham, saem expulsos, Palhinha, que não jogara, aguardava no túnel, trêmulo como um bambu na ventania. A torcida invade o gramado do Morumbi. Oswaldo Brandão é erguido nos braços do povo. Vicente Matheus gagueja, ri. chora, se confunde na multidão, fala aos microfones palavras sufocadas pelo marulho da torcida — e nesse dia voltou para casa com um único sapato no pé. O outro sumiu, como sumira o sufoco da torcida na noite iluminada pela alegria do povão.

Qualquer dia, qualquer hora, se encherão algumas páginas para falar de Paulo Borges e de Flávio se abraçando no Pacaembu lotado, naquele dia 6 de março de 1968, quando se quebrou a cadeia de infortúnios diante do Santos Futebol Clube1. Lula, o técnico que havia sido o guru do Santos durante mais de dez anos, agora dirigia o Corinthians que tentava quebrar o maldito tabu. O Corinthians jogava com Diogo no gol e Osvaldo Cunha na lateral-direita — essa lateral por onde corria o endiabrado Edu santista. Roíam-se unhas. Luís Carlos, com categoria, marca Pelé. Joga limpo, certo, implacável. Acabara a moleza. Classe contra classe. Mas o placar não gira. É no segundo tempo que Paulo Borges faz a tabelinha com Flávio e, quase na queda, chuta e arromba o gol santista. O gol aos 13 minutos. Mas a desforra do sofrimento não está completa. É Rivelino quem desce, dribla, limpa, ajeita para deixar Flávio na cara do goleiro Cláudio.2 a 0. Coisas da vida. Roberto Goicochea sopra o apito, é como se fosse o som de uma trombeta de prata no alto de um minarete. Canta, torcida! Brinca, torcida! Pula, torcida! Vibra, torcida! Histórias do clube do povo. Histórias do clube que tem a torcida mais fiel do mundo — a Fiel — , que enche o Maracanã para ver Tobias defender os pênaltis inacreditáveis, contra o Fluminense. Histórias que vão ficando para trás: as duas camisas que Viola vestiu para poder, na hora do gol da vitória, jogar uma para a torcida. Pedaço de sua própria pele, pedaço de sua alma. A vida inteira carregará na lembrança esse gol que uma perna esticada fez no poderoso Guarani — que time tinha o Guarani! — , nesse 1988 emocionante, inesquecível, eterno...

Passa o videoteipe desse clube, galera! Conta como foi o campeonato de 1979, com Sócrates, que era médico, e veio remediar e curar teus males e pesares. Conta a raça de Casagrande, aquele jeito de quem vai dançar rock com a namorada e de repente está à frente do gol, marcando o dele, agitando a praça. Revê Zenon, Biro-Biro, cabelos de cobre, coração de aço, Ronaldo, Marcelo, Márcio, Marcos Roberto, Éverton, Edmar, mostra de novo todos os lances, todas as nuances, revê a história que trazes no pensamento quando viajas nos subúrbios, quando sobes nos elevadores, quando te confinas entre as paredes dos escritórios, quando desces aos porões de tua vida opaca ou sobes aos promontórios das arquibancadas nos domingos de sol ou chuva.

Desfralda, coração! Mergulha na história. A tua história. Aquela que é costurada com trapos de emoção. Aquela cuja linha é preta e branca, trançada. Com ela se bordam

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os remos, a âncora, o nome da nossa paixão feita de fraquezas, de promessas cumpridas e esfoladas nas escadas de pedra da nossa devoção. O vermelho do distintivo é sangue da raça, é a cor dos beijos da mulher que amamos, cor de batom, de rouge, que recolhemos do rosto das meninas mais belas da alvinegra nação.

Amarga, coração! Um dia, nós os enterramos. Chegaram mortos. Eram dois jovens pequeninos, as pernas tortas, tinham manchas violetas na face hirta. O carro era um fusca, 9-26-79- Lidu e Eduardo, duas esperanças do time. Estavam indo no automóvel, correndo, ninguém sabe o que aconteceu. Saltou o canteiro, voou, bateu, rolou — os dois rapazes estão mortos na capelinha de São Jorge. Era o mês de abril de 1969- Os torcedores em fila dão o último adeus aos jogadores que estão deixando o campo para sempre. Elisa, a torcedora-símbolo, acaricia com a negra mão materna os rostos de seus meninos mortos, que parecem repousar. Wadih Helu mandara construir a capela para a maior glória de Deus e do santo padroeiro, mas agora estava ali, os olhos úmidos, se perguntando se era justa uma dor daquele tamanho pousada como ave de rapina no coração corinthiano. Lidu e Eduardo haviam saído pela longa avenida que margeia o Tietê, não perceberam que a Morte fazia marcação cerrada sobre seus destinos. Jogo acabado. O último apito. A alegria da dupla abandonava o gramado.

Trepida, coração! Ouve as palavras deste velho antigo, quase cem anos de recor­dação. É um palestrino. Mas naquelas gavetas onde estão as medalhas, os santinhos, a cartilha dilacerada dos netos, essas sombras do passado, desse escaninho o veterano Caetano de Domênico retira a carteirinha de... corinthiano! Um cara dos primeiros tempos, de quando ele tinha cabelos pretos, tinha cabelos, negros cabelos, e a Dona Ticha — santa mulher — dizia: “Caetano, ti amo tanto!” Esse Caetano — antigo morador do Ipiranga — era mais conhecido no bairro que o grito de dom Pedro. Gostava de contar histórias. Seu tio Salvatore, que gostava muito de pão com lingüiça calabresa, tinha uma oficina de reforma de chapéus. Garoa na cabeça fazia estrago, dava resfriado e sinusite, coriza e bronquite. A oficina do Salvatore era vizinha da alfaiataria do Miguel e da barbearia do Salvador Bataglia. Eram amigos. O barbeiro Bataglia ia todos os dias à oficina do xará para lhe ajeitar o cavanhaque e fazer a barba a seu pai, Plácido. Caetano de Domênico foi um dos que assinaram a lista da “vaquinha” para fundar o Corinthians. Caetano lembrava bem de Fúlvio Bente, que era um becaço. E lembra também que para ser sócio fundador do clube tinha que assinar a lista da “vaquinha” na primeira semana. Caetano ajudou a carregar o saco das camisas, um saco de estopa. Iam a pé do Bom Retiro à Lapa, cortando caminho pela Barra Funda. Caetano de Domênico chegou a jogar no 3Q quadro do Corinthians, half-csquerdo, jogador duro. Entrava de carrinho. Quebrou duas pernas de adversários: uma na Vila Prudente, outra no Bom Retiro. Mas sempre sem querer. Jogava duro, vai fazer o quê? O destino não quis que Caetano de Domênico fosse um corinthiano eterno. É a vida. Mudou com o tio Salvatore e a oficina de chapéus para a Vila Prudente, lá fundou outro time, o Oriente. Continuou, porém, sua vida de craque e operário. Caetano jogou no São Bento, foi técnico do Santos, campeão de 35

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com Moran e Mário Seixas... Um dia, uma de suas maiores glórias: os jogadores todos em fila, apareceu um senhor distinto, abraçou um por um. Era Santos Dumont, o pai da aviação! Caetano de Domênico fez carreira, foi técnico do Palestra, lançou Valdemar Fiume, descobriu Djalma Santos na Parada Inglesa. Andou por aí, pelo Ypiranga, pela Portuguesa, um dia, alguém o levou para falar com o Alfredo Inácio Trindade, que morava num casarão no bairro de Santana.

“Trindade, o Caetano podia vir dirigir o Corinthians!”Trindade olhou para o Caetano, sorriu:“Ele é palestrino. Olha o chapéu!”E era mesmo. Só usava chapéu verde. Mas no fundo da gaveta, quando batia a

saudade, vontade de rever o videoteipe da mocidade, Caetano de Domênico sabia onde estava a carteirinha de sócio do Corinthians2!

Balança, coração! Dezembro, 1974, Morumbi, tarde parda. Torcida colorida. Repi- niques, surdos, tamborins. Festa engatilhada. E vem a derrota, inesperada como um ladrão, pelos pés de Ronaldo, o esmeraldino primo do Tostão. Vai agora saindo a multidão em direção à noite. Cabisbaixa, fula da vida, engolindo palavrão. “Nunca mais!” “Nunca mais!”, sangra o coração do povo alvinegro. “Nunca mais aqui me verás, maldito estádio!”, rumina o torcedor embrulhado na mortalha de tristeza.

No jogo seguinte, o coração esquece. Eis o torcedor de volta, impávido colosso. Conta a bufunfa, confere, assunta o bolso, e volta a ocupar seu pedaço de arquibancada nos Morumbis, Canindés, Pacaembus, Maracanãs, Mineirões e Beira-Rios. Repare, ami­go: sempre há uma bandeira com os remos e a âncora palpitando à brisa. Campeão de público e de renda. Mania antiga. O torcedor salta e conquista a avenida Corinthians Paulista. Tradição da Ponte Grande. Milagre da biquinha com água cristalina vizinha do santo São Jorge. Milagre de São Alfredo com seus parafusos de cobre. Rezas mansas de Dona Elisa que hoje desfralda a bandeira nas nuvens do pensamento. “Tucurucutu! Já-já! Tucurucutu! Já-já! Hurrah! Hurrah! Corinthians!3”

Do pico do Jaraguá pra lá da serra do Mar, no giro da rosa dos ventos, marcha a nação alvinegra no rumo de seu destino: a estação final é “Corinthians”4.

Notas

1. Uma curiosa coincidência na vida do Corinthians: 23 anos depois da histórica vitória contra o Santos (em 6 de março de 1968), por 2 a 0, o clube do Parque São Jorge repetiu o enredo, se bem que com outro elenco, mas no mesmo palco. Tomou a vencer o Santos por 2 a 0, gois de Mirandinha, aos 18 minutos do primeiro tempo, e de Neto, aos 6 minutos do segundo! O clássico foi disputado sob chuva, o Santos teve uma bola na trave, mas parece que o destino havia decidido que ninguém alteraria o placar para não estragar o gostinho da festa corinthiana. Aos 42 minutos, Marcelo cometeu pênalti. César Sampaio cobrou... e Ronaldo defendeu.Corinthians. Ronaldo, Giba, Marcelo, Guinei e Jacenir; Márcio, Wilson Mano e Neto (Ezequiel); Fabinho, Mirandinha (Paulo Sérgio) e Mauro. Técnico: Nelsinho.

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Santos-, Sérgio, Marcelo Veiga, Pedro Paulo, Luís Carlos e Flavinho; César Sampaio, Zé Renato e Sérgio Manoel; Almir, Paulinho e Gláucio (Sérgio Santos). Técnico: Cabralzinho.Juiz: José Aparecido de OliveiraCartões vermelhos: Flavinho, Jacenir e MárcioRenda-, Cr$ 22.298.000,00Público. 17.761 pagantesLocal-, Pacaembu

2. O depoimento de Caetano de Domênico consta de sua última entrevista ao jornalista Vital Bataglia, publicada na edição de esportes do Jornal da Tarde de 6 de junho de 1988.

3. Grito de guerra da torcida corinthiana no jogo contra o Bologna, da Itália, em 1929- In Cavaquinho e Saxofone, de Antônio de Alcântara Machado.

4. O Sport Club Corinthians Paulista é o primeiro clube de futebol a ter seu nome dado a uma estação do metrô. Justifica-se: ela localiza-se vizinha à área de 197 mil metros quadrados, que o clube utiliza como centro de treinamentos, e onde, no futuro, está prevista a execução de um projeto de atividades culturais e esportivas para a população.

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Alguns dos craques corinthianos contemporâneos, que habitam o coração da Fiel: Rivelino, com João Havelange e Henry Kissinger, 1976 (Foto Rodolfo Machado— Abril Imagens); Sócrates, 1979 (Foto José Pinto— Abril Imagens); Biro-Biro, 1982 (Foto Sérgio Berezovsky—Abril Imagens); Wladimir e Zé Maria. 1983 (Foto Ronaldo Kotscho— Abril Imagens).

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Notícias corinthianas

U m ANTIGO REGISTRO INFORMA que a primeira bola adquirida pelos corinthianos custou 15 mil réis — e nâo apenas 6 mil réis, segundo outras fontes, entre elas o cronista Thomaz Mazzoni, que foi um dos primeiros e mais pacientes pesquisadores do futebol paulista e brasileiro. Consta que a segunda bola do clube foi oferecida por Manuel Nunes, o Neco, com a condição de seu valor ser descontado nas mensalidades do associado. Contudo, como o dinheiro escasseava no clube, Neco jamais foi ressarcido. Pagou a bola e pagava mensalmente o recibo... se quisesse jogar!

D u r a n t e OS PRIMEIROS ANOS DO CORINTHIANS o problema da sede foi um espinho na vida do clube e gerou discussões ásperas até mesmo nas assembléias gerais dos associados. Mudar de sede significou, em certos momentos, vencer a luta contra a timidez de um grupo de associados que se atemorizava com a idéia de que o clube devesse crescer e tornar-se igual aos maiores de sua época. Se dependesse deles, o Corinthians permaneceria confinado ao Bom Retiro, com sua precária sede da rua dos Imigrantes esquina com a rua Prates, pagando aluguel pelo campo da rua Ribeiro de Lima. Felizmente prevaleceu a visão progressista da maioria dos associados, embora a primeira mudança para a rua dos Protestantes não tivesse dado certo. Logo essa sede teve de ser entregue ao senhorio e o clube passou a fazer suas reuniões na casa do então presidente J. B. Maurício. Mas por pouco tempo. Logo o Corinthians se mudava para a sede na praça da Sé, n2 3. Depois ocupou dependências na avenida São João. Mesmo depois que o Parque São Jorge já estava funcionando e com vários departamentos ali instalados, o clube prosseguiu mantendo os serviços de tesouraria e secretaria na rua Florêncio de Abreu, n2 4, numa sobreloja, de modo a facilitar o acesso e o atendimento aos associados, que nem sempre, durante a semana, podiam se locomover até à Fazendinha, por causa da distância. Mais tarde os serviços burocráticos do clube passaram a ser despachados na rua Direita. A sede social também funcionou, na gestão Schurig, na rua José Bonifácio, n2 33, sobreloja, num prédio onde também havia um

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salão de bilhar. Essa sede é que foi palco de um movimento de revolta de torcedores, inclusive com quebra-quebra. Antes de fixar todos os seus departamentos no Parque São Jorge, o Corinthians também manteve sedes na avenida Rangel Pestana (perto da antiga estação de bondes da Light) e na avenida Celso Garcia. Aconteceu também de algumas reuniões da diretoria e assembléias gerais serem realizadas no salão das Classes Laboriosas, na rua do Carmo, n2 25.

No FAMOSO JOGO DO “GALO VERDE”, os gois corinthianos na vitória contra o Palestra foram marcados por Teleco e Carlinhos. Os times jogaram assim: Corinthians— José I, Jango e Sordi; Munhoz, Brandão e Dino; Lopes, Servílio, Teleco, Joane e Carlinhos. Palestra — Gijo, Camera e Junqueira; Carlos, Tunga e Del Nero; Luisinho, Canhoto, Echevarrieta, Lima e Pipi.

O PRIMEIRO JOGADOR CORINTHIANO a vestir a camisa da Confederação Brasileira de Desportos foi Amílcar Barbuy. Ele estreou em 18 de julho de 1916 num jogo amistoso em que o Brasil derrotou o Uruguai, em Montevidéu, por 1 a 0. Outros corinthianos que vestiram a camisa da seleção depois de Amílcar: Neco, 1917; Tatu, Rodrigues e Gamba, 1922; De Maria e Grané, 1928; Del Debbio e Nerino, 1929; Guimarães e Rato, 1931; Jaú e Brandão, 1936; Brito, 1937; Lopes, 1938; Dino e Servílio, 1942; Begliuomini, 1944; Domingos da Guia, 1945; Aleixo, 1946; Cláudio, 1947; Baltazar, 1950; Gilmar, 1953; Cabeção, 1954; Luisinho, Olavo e Roberto, 1955; Julião, 1956; Oreco, 1957; Cláudio, Marcos, Eduardo e Nei, 1936; Garrincha, 1966: Rivelino, Eduardo, Paulo Borges, 1968; Ado, 1970; Zé Maria, 1972; Vaguinho e Luís Carlos, 1973...

v J S DOIS PRIMEIROS JOGADORES do Corinthians convocados para atuar na seleção paulista foram Amílcar e Neco. Foi em 1917!

T o DA SORTE DE PRESSÕES FOI FEITA para impedir o Corinthians de participar do campeonato em 1916 com sua força total. A mais maliciosa delas, partida de dirigentes da Liga Paulista de Futebol, era considerar o Corinthians como... time novo na Liga, embora já tivesse o clube participado do certame e inclusive conquistado o título de 1914. A Liga pretendia que os jogadores que em 1915 (ano em que o Corinthians ficou fora do campeonato) haviam jogado emprestados em outros clubes, não poderiam em 1916 jogar pelo Corinthians. E até havia uma proposta de eliminação dos jogadores corinthianos Fúlvio, Peres e Dias, que se haviam recusado a jogar pelo Maranhão, um

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clube da época. O Corinthians firmou o pé: se houvesse eliminação, o alvinegro tornaria a não disputar o campeonato, com prejuízos óbvios para a Liga. A Liga cedeu. E Fúlvio, Peres e Dias continuaram corinthianos.

T aLV EZ PORQUE OS ASSOCIADOS não eram em tão grande número, notava-se um espírito de solidariedade entre os corinthianos, visível até mesmo no tipo de anúncios publicados na revista Corinthians das décadas de 20 e 30. Os corinthianos estabelecidos com qualquer tipo de negócio faziam questão de colocar seus anúncios na publicação. O associado Manoel da Fonseca anunciava seus serviços de autotransporte e aluguel, com caminhões de 2 e 3 toneladas próprios para mudanças tanto na capital como no interior. Seu número de matrícula como transportador era 2-26-18, atendia chamados pelo telefone 0-2446 (cedido pelo restaurante Concórdia) e tinha estacionamento no largo do mesmo nome, nQ 5.

Lalli, “o alfaiate de todos os corinthianos”, estabelecido na avenida Celso Garcia, n2 351, trabalhava com casimiras nacionais e estrangeiras, tinha preços módicos e oferecia um desconto de dez por cento aos associados que quisessem fazer ternos com colete e apresentassem a carteirinha de sócio do Corinthians. Os fregueses inscritos nas seções de futebol, atletismo, vôlei, bola ao cesto, remo e natação, obteriam um preço ainda mais especial.

J. Neves e seu filho, donos da Casa Neves, localizada na rua São Caetano, n2 6 e com filial na avenida Tiradentes, n2 98, junto ao Seminário Diocesano — cujo prédio existe até hoje, ao lado da igreja de São Cristóvão — ofereciam aos corinthianos café, açúcar, arroz, queijos, forragens, querosene, além de estampilhas federais e estaduais, para cuja venda estava devidamente licenciado pelos governos federal e estadual.

O Villa, no n2 2010 da avenida Rangel Pestana, reformava e tingia chapéus com esmero, lavava panamás e chapéus de linho — muito na moda — e deixava qualquer chapéu sujo e amassado em jogo de futebol novamente novinho em folha, cobrando apenas 2 mil réis.

Ser corinthiano já naquele tempo valia a pena.

N a DRAMÁTICA PARTIDA DE NOVEMBRO de 1933 frente ao Palestra, o zagueiro esquerdo do Corinthians foi Bazani (substituído no decorrer da partida por Nascimento), pai do outro Bazani que muitos anos após se distinguiria como jogador da Ferroviária, de Araraquara, e também do próprio Corinthians. Após aquele jogo desastrado, o alvinegro tratou de reforçar o time, ao qual voltaram Segalla, Guimarães, Reis, Gabinha, Rato II e Tigre. Deu certo: na partida seguinte, o Corinthians venceu o Sírio por 6 a 0. Aliás, o Sírio não dava muita sorte com o Corinthians: em maio de 1932 aquele clube

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havia sido goleado por 10 a 1, sendo que o meia-esquerda corinthiano Zuza marcou 6 gois. Nesse jogo o Corinthians escalou: Rede, Conti (depois Segalla) e Jaú; Munhoz, Brito e Laurindo; Boulanger, Baianinho, Hemos, Zuza e Rato II. Esse ponta-direita Boulanger tinha vindo de Minas Gerais recomendado por um médico, Dr. Boulanger, que morava em Uberlândia. O jogador pegou como apelido o nome do facultativo que o apadrinhara. Mas não deu muito certo, ficou pouco tempo no Parque São Jorge.

No CAMPEONATO PAULISTA DE 1937 — o primeiro que o Corinthians conquistou no futebol profissional — o título foi obtido por antecipação no Parque Antártica, com a vitória do Corinthians sobre o Palestra por 1 gol a 0, marcado por Teleco aos 11 minutos do primeiro tempo, recebendo um passe de Filó. A renda foi excelente — 42 contos e 500 mil réis — com público de 15 mil pessoas. O árbitro foi Sílvio Stucchi. Corinthians: José, Jaú e Carlos; Jango, Brandão e Munhoz; Filó, Carlito, Teleco, Daniel e Carlinhos. Palestra: Jurandir, Carnera e Begliuomini; Ruiz, Goliardo e Del Nero; Aldo, Frederico, Dula, Rolando e Matias.

LTma outra excelente renda alcançada num jogo do Corinthians — e essa foi recorde— foi registrada no primeiro jogo contra o São Paulo Futebol Clube, na final do campeonato de 1938 (na verdade o jogo se realizou em 1939 e foi desdobrado em duas seqüências por causa de um temporal, como consta neste livro: o jogo começou no domingo e terminou na terça-feira). O recorde de renda ocorreu no domingo: 66 contos e 445 mil réis!

U m DOS JOGOS HISTÓRICOS do Corinthians foi contra o Arsenal, de Londres, dia 22 de maio de 1949, no estádio do Pacaembu. Foi vencido por 2 a 0, mas a exibição corinthiana foi considerada espetacular. O jogo foi emocionante. A renda foi de quase1 milhão e 100 mil cmzeiros. O quadro do Corinthians: Bino, Belacosa e Rubens; Hélio (Belfare), Touguinha (Hélio) e Belfare (Nílton); Cláudio, Edélcio, Baltazar, Nenê (Rui) e Noronha.

I\ u M JOGO CONTRA O MALMOE, da Suécia, no dia l 2 de dezembro de 1949, no Pacaembu, Baltazar desentendeu-se com um dos auxiliares do árbitro e o juiz, o inglês Harry Rowley, com uma atuação desastrada, expulsou... o Cabecinha de Ouro e o bandeirinha! O resultado do jogo foi 4 a 4, com 3 gois de Cláudio e 1 de Baltazar. O Corinthians jogou com Cabeção, Norival e Belacosa; Belfare, Nílton e Hélio; Cláudio, Constantino, Baltazar, Luisinho e Colombo.

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O CORINTHIANS PAULISTA FOI O PRIMEIRO campeão do Torneio Rio-São Paulo, que se iniciou em 1949 e terminou no ano seguinte (em 1954, o torneio passaria a chamar-se Roberto Gomes Pedrosa, em homenagem ao grande dirigente esportivo, que foi goleiro do São Paulo Futebol Clube e posteriormente presidente da Federação Paulista de Futebol). O Rio-São Paulo reuniu os times mais bem colocados em São Paulo e Rio de Janeiro, nos respectivos campeonatos, a saber: Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Portuguesa de Desportos; Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo. O início do torneio para o Corinthians foi infeliz: perdeu para o Flamengo por 6 a 1. Passou a ser encarado como clube “fora da competição”. Acontece que a seguir o Corinthians derrotou o São Paulo por 4 a 2; venceu o Palmeiras por 3 a 2; e derrotou o Fluminense no estádio de São Januário por 3 a 1. Restavam duas partidas: contra a Portuguesa de Desportos, que o Corinthians venceu por 5 a 3; e o Botafogo, do Rio. Ao Corinthians, bastava empatar para ficar com o título. O jogo foi no dia 15 de fevereiro de 1950, à noite, no estádio do Pacaembu. Chovia. Não obstante, o estádio estava lotado. Renda: mais de 720 mil cruzeiros. Foi uma peleja disputadíssima, empate foi o resultado final. Noronha, ponteiro-esquerdo, marcou o gol corinthiano. O Corinthians sagrava-se campeão do Torneio Rio-São Paulo, o primeiro deles. Sua equipe: Bino, Nílton e Belfare; Idário, Touguinha e Hélio; Cláudio, Luisinho, Baltazar, Nelsinho (Edélcio) e Noronha. No Corinthians jogaram também Lorico, zagueiro-direito vindo da Portuguesa de Desportos, e que fez sua estréia contra o Flamengo, e Fortaleza, que jogou apenas contra o São Paulo (na segunda partida do torneio) e nunca mais foi aproveitado no Corinthians.

O CORINTHIANS ESTREOU FORA do Brasil no dia 30 de julho de 1951, no estádio Centenário, em Montevidéu, no Uruguai: venceu um combinado de jogadores daquele país por 4 a 1. Os gois foram marcados por Baltazar, 2; Luisinho, 1 e Nelsinho, 1. O gol dos uruguaios foi marcado por Atílio Garcia. O time do Corinthians: Cabeção, Homero e Rosalem; Idário, Touguinha (Julião) e Julião (Roberto); Cláudio (Carbone), Luisinho, Baltazar, Carbone (Nardo) e Colombo (Nelsinho). Apitou o jogo o juiz Dante Rossi, paulista. Na verdade, a campanha do Corinthians nessa sua primeira viagem ao exterior devia compreender a disputa de um torneio quadrangular, do qual participavam tam­bém, além do Corinthians e do combinado uruguaio, as equipes do Penarol e do Bangu, do Rio de Janeiro. A delegação corinthiana havia deixado o Brasil (em 27 de julho de 1951) com uma determinação do Conselho Nacional de Desportos e uma carta da CBD no sentido de que um juiz brasileiro (no caso, Dante Rossi) acompanharia os jogadores e dirigentes nacionais. Em suma: os jogos seriam apitados por Dante Rossi e por juizes uruguaios. Não havia dúvidas a respeito. A atuação de Rossi no jogo Corinthians e combinado Uruguai tinha sido normal. Mas a derrota imposta ao conjunto uruguaio fez com que os dirigentes uruguaios mudassem o esquema, em cima da hora, exigindo que os jogos do Corinthians fossem apitados por árbitros uruguaios. O Corinthians, repre-

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sentado por Maximiliano Ximenes, Frederico Estéban Júnior e Albino Lotito, defenderam o que estava mais que combinado e aceito: Dante Rossi, designado pela Federação Paulista de Futebol, devia apitar os jogos do Corinthians. Os diretores do Penarol — clube que estava então escalado para ser o segundo adversário do Corinthians — exigiam na arbitragem Estéban Marino, uruguaio. O Corinthians propôs um árbitro inglês, Mr. Tooth, que residia no Uruguai, portanto um juiz nem de cá, nem de lá. Em vão. O Corinthians sugeriu que se buscasse um árbitro argentino. Nada de os uruguaios aceitarem. O Penarol só jogaria com o apito na boca do uruguaio Estéban Marino... Daí que o Corinthians decidiu retornar ao Brasil deixando o Penarol lá com seus caprichos. Não disputou o resto do quadrangular — no que foi apoiado por toda a torcida corinthiana.

“ F aixa DE OURO” DO FUTEBOL BRASILEIRO, o Corinthians conquistou esse título na campanha realizada em 1952, na Europa. Começou pela Turquia: no primeiro jogo, contra o Beziktas, o Corinthians perdeu por 1 a 0. No segundo jogo, contra o Fenerbakce, a coisa mudou: o Corinthians goleou por 6 a 1. No terceiro jogo, contra o Galatassary, o Corinthians vence por 1 a 0. A Turquia organiza uma seleção para enfrentar o alvinegro do Parque São Jorge no quarto jogo: o Corinthians empata: 1 a 1. A excursão estende-se então a Ankara: 3 a 1 para o Corinthians frente a uma seleção local. A seleção de Ankara pede novo jogo: o Corinthians vence por 2 a 1. Novamente em Istambul, novo jogo contra a seleção, nova vitória corinthiana: 1 a 0. Agora é o Galatassary que pede novo jogo. Corinthians vence: 4 a 2. Adeus. Turquia! Vai o Corinthians para a Suécia. Resultados: contra o A.I.K., 3 a 3; contra o Djugarden. 3 a 2 para o alvinegro. Ambos os jogos em Estocolmo. Os corinthianos viajam para a Dinamarca. O Corinthians joga contra um combinado de Copenhagen. O jogo está 1 a 1. O gol dos dinamarqueses foi de pênalti. O juiz assinala outro pênalti contra o Corinthians. Gilmar defende! O jogo prossegue empatado mas... o juiz apita: mais um pênalti contra o Corinthians. Chute violento, Gilmar voa, espalma! Defende o segundo pênalti também. O jogo termina empatado... Na Suécia, na Finlândia, o Corinthians vai colhendo vitórias. Por fim, o último jogo, o jogo do adeus à Europa. Contra o Almia. no estádio olímpico de Halmustad, na Suécia. O Corinthians vence por... 10 a 1: Cláudio marca 3; Gatão, 3; Nardo, 2; Luisinho, 1 e Jackson, 1. O Corinthians regressa de sua primeira excursão à Europa com 15 jogos invictos. Perdera apenas o primeiro! O time do Corinthians que estreou na Europa: Gilmar. Murilo e Juliào; Idário, Goiano (Touguinha) e Roberto; Cláudio (Sousinha), Luisinho (Cláudio), Gatão (Nardo), Jackson e Colombo (Carbone). Na volta, o Corinthians Paulista foi recebido em triunfo.

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U m a DAS PARTIDAS MAIS VIOLENTAS de que o Corinthians Paulista participou foi contra o Penarol, na disputa da II Copa Rio, em 1952, realizada no Brasil, e da qual participaram o Saarbrocker, da Alemanha; o Libertad, do Paraguai; o Austria, da Áustria; o Fluminense, do Rio; o Penarol e o Corinthians. Este jogo foi terrível: os jogadores uruguaios conseguiram tirar de campo Murilo, com violentíssimo pontapé no joelho; Roberto Belangero, também com grave contusão; e Baltazar, com afundamento do osso malar, em decorrência de uma pancada no rosto. A agressão que mais revoltou os torcedores foi aquela contra Murilo, sabidamente um zagueiro que se caracterizava por desarmar adversários com o jogo mais limpo do mundo. Era extremamente difícil cometer uma falta contra o adversário. Pois Murilo foi a maior vítima dessa partida. Mesmo assim, o Corinthians derrotou o Penarol por 2 a 1.

No TORNEIO DE CARACAS, o Corinthians conquistou a Copa Marcos Pérez Giménez, que era o presidente da Venezuela (1953). Disputado em dois turnos, o torneio teve como vencedor o Corinthians, sem nenhuma derrota: venceu o Roma, da Itália, por 1 a 0, no dia 14 de julho de 1953; venceu o Barcelona, da Espanha, por 3 a 2; venceu a seleção de Caracas, por 2 a 1. No segundo turno, tornou a vencer o Barcelona por 1 a 0; venceu novamente a seleção de Caracas, por 2 a 0; e, por fim, o Corinthians venceu o Roma, por 3 a 1. O artilheiro do torneio foi Luisinho, o Pequeno Polegar, com 5 gois— de um total de 12 marcado pelo time.

A . PRIMEIRA TAÇA CHARLES MILLER foi disputada em São Paulo em 1955, num torneio internacional. Participaram o Penarol, do Uruguai; o Benfica, de Portugal; o América e o Flamengo, do Rio; o Corinthians e o Palmeiras. O Corinthians sagrou-se campeão, invicto, do torneio. Teve apenas 1 ponto perdido (empate com o Penarol). Venceu o Palmeiras, 2 a 1; Flamengo, 3 a 0; América, 3 a 1; Benfica, de Lisboa, 2 a 1. O quadro que jogou contra o Benfica foi: Gilmar, Homero e Alan; Idário, Julião e Roberto (Goiano); Cláudio, Luisinho, Baltazar, Rafael (Paulo) e Nelsinho. Cláudio marcou os 2 gois do Corinthians. Um deles, de pênalti; o outro, fantástico, com um chute de “curvita” — como a torcida chamou aquela mágica que o Gerente fez mandando a bola sem que Costa Pereira conseguisse esboçar qualquer defesa.

v_Js REFLETORES DO CAMPO do Parque São Jorge foram inaugurados oficialmente na noite de 25 de fevereiro de 1961 num jogo amistoso contra o Flamengo, do Rio, que foi goleado por 7 a 2. Dois árbitros atuaram: João Etzel Filho, de São Paulo; e Armando Marques, do Rio.

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O TÍTULO DE CAMPEÃO DO CENTENÁRIO, conquistado pelo Corinthians em 1922, vale por 100 anos. Somente voltará a ser disputado no ano de 2022. O jogo final, em que o Corinthians venceu o Paulistano por 2 a 0, realizou-se no campo da Associação Athletica das Palmeiras, na Floresta, e foi apitado pelo Dr. Agenor Turbina Telles, do Rio Claro Futebol Club, que substituiu Bartô, da Associação Athletica São Bento, que estava inicialmente escalado mas não compareceu.

O “CLUBE MAIS BRASILEIRO” DO BRASIL, como é chamado o Corinthians em seu hino, tem razão de ser: o alvinegro do Parque São Jorge não tem nenhuma tradição em “importar” jogadores do exterior. É avesso a isso. Claro, já teve jogadores estrangeiros: José “Hungarês” Grambell foi um deles; Espanhol foi outro... Mas o Corinthians, mesmo quando tem eventualmente um jogador estrangeiro em seu time — o que tem sido muito raro — , vai buscá-lo no Brasil. Mas mesmo esses contam-se nos dedos.

Na realidade, até 1974 o Corinthians mantinha essa espécie de tabu, avesso à contratação de jogadores estrangeiros. Com a chegada do goleiro Buttice, argentino, que jogava na Bahia e veio para defender as cores alvinegras. pela primeira vez o clube do Parque São Jorge cedeu em sua posição radical. Após Buttice, há o caso de outro argentino, Veira, que jogou apenas uma única vez com a camisa mosqueteira. Veira vinha da equipe do Palmeiras. Ugo de León, outro estrangeiro no Corinthians, veio do Grêmio, de Porto Alegre.

O único jogador que o Corinthians foi buscar diretamente no exterior foi o uruguaio Taborda, que jogava no Nacional, de Montevidéu. Taborda foi contratado em 1978, coincidentemente na mesma semana em que o Corinthians comprou o passe de Biro-Biro.

P e LA PRESIDÊNCIA DO CORINTHIANS Paulista passaram os mais diversos profissio­nais: um alfaiate, Miguel Bataglia; um cocheiro de tílburi. depois motorista de praça, Alexandre Magnani; um dentista, João Batista Maurício, que teve consultório no Bom Retiro e na avenida Rangel Pestana; o médico José Tipaldi; um capitão da Força Pública, João de Carvalho; um comerciante, José Martins Costa Júnior, estabelecido com a Casa Coimbra na rua Santa Rosa, zona cerealista de São Paulo; um funcionário da antiga Companhia de Gaz, Ernesto Cassano; um bancário do Banco do Estado, Felipe Collona; um fabricante de bebidas, entre as quais vinho, Manuel Correcher. que fora garçom do Hotel do Oeste, situado entre a rua Boa Vista e a rua São Bento; um chefe de escritórios, Alfredo Inácio Trindade, funcionário da SKF. firma sueca de rolamentos. Trindade depois acabou fazendo também carreira política.

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A . ENORME ÁREA ONDE SE SITUA hoje o Parque São Jorge é resultado da visão empreendedora de pelo menos três presidentes: Ernesto Cassano, Manuel Correcher e Wadih Helu, que a partir de 1926 foram, a seu respectivo tempo, adquirindo os terrenos que formam hoje o conjunto. Embora uma parte dessas áreas fosse utilizada pelo clube Turnecheft, da colônia alemã, e pelo Guarani, um clube do Tatuapé (que jogava num campo da rua Tuiuti com camisa vermelha e calção branco), o Corinthians realizou ali um vasto trabalho de recuperação e urbanização dos terrenos: uma enorme área era constituída de lagoas, que foram aterradas. O Corinthians modificou a geografia da região. As duas últimas glebas foram adquiridas das famílias Cintra Franco de Almeida e Vieira de Morais (40 mil metros quadrados) e Klabin (33 mil metros quadrados). A princípio, a área total era maior. Hoje gira em tomo de 180 mil metros quadrados, em decorrência da retificação do rio Tietê, iniciada na década de 40 pelo prefeito Francisco Prestes Maia. O Corinthians perdeu a intimidade com o histórico rio mas ganhou duas avenidas. Atualmente, a área que os associados chamam de Canindé — e onde se realizam as famosas peladas em que quem pode mais chora menos — localiza-se num bico da área, na direção do bairro da Penha. Mas o Canindé é uma instituição no Parque São Jorge: em 1940 essa “praça de esportes” já funcionava com regras próprias; isto é, sem regra nenhuma. Quem chegava, e tinha peito, ia entrando e jogando. Conta-se que o grande centro-médio Brandão, certa ocasião, foi lá mostrar sua categoria. Estava de uniforme completo — só calção. Jogou duas horas, não tocou na bola. Saiu bravo e nunca mais voltou a se ombrear com os “craques do canindé”.

E m BORA a CONTAGEM DE 6 A 1 contra o Bologna, da Itália, tenha representado uma goleada histórica na vida do Corinthians pela circunstância de tratar-se de um time estrangeiro que vinha ao Brasil precedido de enorme fama, esse placar esteve longe de ser o mais contundente em termos numéricos. Nesse mesmo ano, 1929, o Corinthians venceu o Atlético Mineiro por placar bem mais dilatado. As crônicas mosqueteiras registram também: Corinthians, 11, Santos, 0, em 1920: Corinthians, 10, Combinado Halmstad/Hamlia, da Suécia, 1; Corinthians, 10, Tiradentes do Piauí, 1. Nesse jogo, realizado no estádio do Canindé, o Piauí começou o jogo vencendo por 1 a 0. Como curiosidade histórica, há que se mencionar, porém, que a maior goleada corinthiana não foi obra do time titular, e sim do 2Q quadro do alvinegro, em 1921: venceu a equipe do Internacional por 16 a 0.

Outra curiosidade é que, no período de 6 de julho de 1952 a 16 de março de 1958— cerca de seis anos — , o Corinthians permaneceu invicto diante do Palmeiras em 26 partidas. Foi nessa fase que se registraram as contagens de 6 a 4 — com 3 gois marcados por Cláudio, em 15 de janeiro de 1953; e de 5 a 1, em 27 de agosto de 1952.

No retrospecto dos grandes clássicos do futebol brasileiro, publicado pela revista P la c a rem edição especial, em julho de 1991, verifica-se que nos confrontos entre o

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Sport Club Corinthians Paulista e c Sào Paulo Futebol Clube o time mosqueteiro levava vantagem de 20 vitórias em 211 partidas. Uma boa parte dessas vitórias foi conseguida no próprio reduto são-paulino, o estádio Cícero Pompeu de Toledo. O retrospecto citado aponta, naquele período, 315 gois para o Corinthians e 285 gois para o São Paulo Futebol Clube.

Apesar da chamada “Era Pelé” e do sempre tão citado “tabu”, pelo qual, durante 11 anos, o Corinthians não obteve nenhuma vitória sobre o Santos Futebol Clube, o mesmo retrospecto da revista P lacar demonstra que, no período de 1913 a 1991 — portanto incluído aí o “tabu” — , os dois clubes enfrentaram-se 226 vezes. O Corinthians marcou 429 gois, contra 350 do Santos. Foram 97 vitórias do Corinthians contra 65 do Santos! Sem dúvida, Édson Arantes do Nascimento fez o que pôde para equilibrar a estatística, e seu afã foi admirável. Mas não deu. O Corinthians acaba sempre ficando acima dos “tabus”.

No jogo de 11 a 0 contra o Santos, a partida não chegou ao final. Foi suspensa aos 21 minutos do segundo tempo. Os santistas reclamaram que o árbitro Eduardo Taurisano estava sendo parcial. Mas no primeiro tempo o Corinthians já vencia por 3 a 0, gois de Neco e Gamba (2). Na etapa final, Gamba marcou o 4e, de pênalti. E a seguir fez o 5Q. Em novo pênalti, proposital, Bilu, zagueiro do Santos, para debochar do juiz, bateu ele mesmo o pênalti e marcou contra. Depois o Corinthians fez mais cinco, jogando com Colombo, Gano, Nando, Garcia, Amílcar, Ciasca, Américo, Neco, Bororó, Gamba e Basílio. A equipe do Santos foi Randolfo, Cícero, Bilu, Pereira, Marba, Ricardo, Millon, Constantino, Ari Patusca, Castelhano e Arnaldo.

POSSÍVEL QUE ALGUNS estejam inativos, mas é quase certo também que outros surgiram em seu lugar. De qualquer forma, o Sport Club Corinthians Paulista vive inspirando a fundação de outros “Corinthians” por todo o Brasil. Numa certa época, a Federação Paulista de Futebol chegou a registrar mais de 50 só no Estado de Sào Paulo. Mas há “Corinthians” também em outros Estados, espalhados pelo Brasil. Por exemplo:E.C. Corinthians, em Andradina; E.C. Corinthians, em Araraquara; C.A. Corinthians, Batatais; E.C. Corinthians, em Campinas; E.C. Corinthians, em Jaú; E.C. Corinthians, em Lucélia; S.C. Corinthians, em Marília; Corinthians E.C., em Olímpia; E.C. Corinthians, em Piracicaba; E.C. Corinthians Poaense, em Poá; Corinthians F.C., em Santo André; S.E. Corinthians, em São Bernardo do Campo: A. Corinthians F.C., em São Caetano do Sul; Corinthians F.C., em São Caetano do Sul; S.C. Corinthians Sanjoanense, em São João da Boa Vista; E.C. Corinthians, em Taubaté; E.C. Corinthians, em Votorantim; CorinthiansF.C., em São José dos Campos; E.C. Corinthians, em Piraju; E.C. Corinthians, em Presidente Venceslau; E.C. Corinthians, em Araçatuba; S.C. Corinthians Bonfim, em Campinas; Corinthiàns F.C., em Femandópolis; E.C. Corinthians de Boa Vista, em Mogi das Cruzes; E.C. Corinthians Bandeirantes, em São Caetano do Sul; Corinthians de Sã<

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Francisco, em Osasco; S.C. Corinthians, em Registro; S.C. Corinthians, em São Carlos; A. A. Corinthians São Roque, em São Roque; E.C. Corinthians Vila Cascatinha, em São Vicente; E.C. Corinthians, em Guariba; S.C. Corinthians Paulista, em Mirassol; Corin­thians F.C., em Penápolis; AA. Corinthians, no Bom Retiro; E.C. Corinthians, na Vila Monumento; E.C. Corinthians, em Vila Palmeiras; E.C. Corinthians, na Vila Rio Branco; E.C. Corinthians do Imirim; E.C. Corinthians, na Vila Santa Catarina; Extra Corinthians, na Vila Guilherme; S.E.R. Corinthians Central, do Parque São Lucas; C.A. Corinthians, na Vila Santa Isabel; Corinthians do Bosque F.C., no Bosque da Saúde; E.C. Corinthians de Belém, capital; E.C. Corinthians, na Vila Jaguaré; E.C. Corinthians, no Moinho Velho; E.C. Corinthians do Rio Pequeno; E.C. Corinthians de Vila Izolina; G.E. Corinthians, na Água Fria; S.C. Corinthians de Santana, capital; S.C. Corinthians, na Vila Industrial; E.C. Corinthians da Bela Vista.

Há também “Corinthians” em outros bairros da capital e cidades do interior: Vila Mazei, Pedreira, Casa Verde, Vila Carrão, Capivari, Restinga, Franca, Jundiaí, Pindamo- nhangaba, Ribeirão Preto, Tupã, Franco da Rocha, Monte Mor, Palmital, Piedade, Pirapozinho, Viradouro, Vila Alpina, Parque Sevilha, Graça Martins, Itaim, Vila Maria, Vila Nair, Engenheiro Goulart, Itaquera, Pompéia, Guaiaúna, Ipiranga, Mãe do Céu, Vila Deodoro, Vila Pirituba, Vila Ede, Vila Gustavo, Vila Matilde e Lavapés.

Fora do Estado de São Paulo, existem o Corinthians Fortaleza, no Ceará; o de Rio Tinto e o de João Pessoa, na Paraíba; o de Aracaju, em Sergipe; o de Timon e o de Lago da Pedra, no Maranhão; o de São Torquato e o de Vitória, no Espírito Santo; o de Rio Verde, em Goiás; o de Barreiro, em Minas; o de Salvador e o de Boa Viagem, na Bahia; o de Saquarema, no Estado do Rio; o do Departamento Autônomo, na Guanabara; o de Monte Alegre, no Paraná; o de Santa Cruz, o de Passo Fundo, o do Rio Grande e o de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. (Fontes: Revista P lacara Folha de S. Paulo')

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Sem este homem, a história do Corinthians seria como

folhas ao vento

O presente livro não poderia ter sido escrito se não existisse Antônio de Almeida. Foi a primeira pessoa com quem conversei no Parque São Jorge, uma certa

manhã, há dois anos e pouco, quando Iraty Ramos, então presidente da Fundação Nestlé de Cultura, me honrou com a tarefa de executar o Projeto Corinthians. Não sou um corinthiano especializado em Corinthians, como existem muitos milhares. Sou apenas um corinthiano convicto, de arquibancada, e nessas condições a primeira coisa que se tem a fazer é procurar alguém do ramo. Mas alguém que saiba das coisas mesmo, por tê-las vivido e por estar dia e noite mergulhado nelas. Sempre que se pede qualquer informação sobre o Corinthians, a primeira sugestão que se recebe é: "Já falou com o Antoninho?” Ouve-se isso da boca de associados, diretores, ex-diretores, ex-presidentes e do presidente em exercício. O Antoninho é o que se chama de “fonte autorizada”.

O Antoninho fica o dia inteiro numa sala modesta, que funciona como pónto de reunião e trabalho dos repórteres. É ali que o pessoal das rádios usa o telefone para passar as notícias. Os avisos de interesse jornalístico são colocados num painel: escala- ção, hora de viagem, local do treino e da concentração dos jogadores e até retrospectos de partida. Nessa sala há uma foto do Calil Filho, um grande repórter, que foi também um grande corinthiano, morto num acidente de carro. A sala tem o nome de Calil Filho, como homenagem póstuma1. Antoninho ocupa uma mesa de fundo, ao lado de um armário, nesse armário fica uma parte da história do Corinthians. Só uma pequena parte. Na verdade, a história toda do Corinthians repousa em várias pastas, que Antoninho guarda com cuidado e zelo em sua casa, localizada a algumas centenas de metros do Parque São Jorge. Antoninho mora num apartamento de um dos prédios de Vicente Matheus, vizinho do Parque. Antoninho é o apelido carinhoso como todo mundo, com um pouco mais de familiaridade, trata o sr. Antônio de Almeida, português do Vale da Estrela, arredores de Lisboa. Antônio é português, mas sem sotaque. Pudera, ele veio com os pais para o Brasil com apenas 2 anos. Foi morar na cidade de Avaré. Antoninho

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nasceu na véspera de Natal, dia 24 de dezembro, em 1911. Nesse ano o Corinthians ainda tinha a sede no Bom Retiro e estava com dificuldade para pagar o aluguel da saleta. Pela idade, quase que dava para Antoninho ser sócio fundador do Corinthians, mas ele era muito pequeno para se meter com aqueles brutamontes do Botafogo. Na verdade Antoninho de Almeida veio para São Paulo em 1925, com 14 anos, e foi bem garotào que ele começou a rondar o Parque São Jorge. No ano seguinte, quem ia para o Parque era o próprio Sport Club Corinthians Paulista. De modo que Antoninho conheceu a Fazendinha quando tudo aquilo eram lagoas, o Tietê fazia parte do terreno do clube, pescava-se, andava-se de barco, caçava-se passarinho, e tudo o mais. Antoninho é do tempo dos bailes do Guarani, dos alemães fazendo piquenique no Tatuapé, do Neco, Teleco, Homero, Carlito, Gilmar, Cláudio, essa turma de ases toda. E tem mais: quem deu um jeito de Luisinho, Roberto Belangero, Rafael, Colombo e aqueles meninos geniais irem do Maria Zélia para o Corinthians foi exatamente “seu” Antoninho. Ele é que trançou os pauzinhos.

“O que é que você quer saber do Corinthians?”, falou o Antoninho quando fui procurá-lo naquela sala junto ao ginásio pequeno do clube. “Tudo”, respondi, confes­sando minha ignorância. Ele puxou um cigarro, acendeu com uma binga — me pareceu uma binga — , levantou-se, falou: “Vou lhe mostrar o clube”. Visitamos a parte antiga. O local do tamboréu, o local onde os remadores treinavam, a biquinha, os quiosques, o pátio das churrasqueiras, o salão da marcenaria, o mundo recôndito, o lado oposto das piscinas, do parque náutico, das salas da diretoria, do restaurante, da sala dos troféus. Subimos uma rampa, fomos até à imagem de São Jorge. Fiquei na dúvida se devia me persignar, olhei para o Antoninho. Ele estava quieto, meio cismado. Falou: “Esse é o São Jorge!” É evidente que eu já conhecia São Jorge, mas não assim tão de perto, tão corinthiano. Havia uns tocos de vela vermelha no chão. De vela colorida não entendo nada; aí nós descemos. Antoninho mostrou o campo novo, que estava sendo gramado. A cobertura imponente das cadeiras ainda estava sendo feita. Antoninho me mostrava tudo aquilo com a expressão de quem abre sua casa a um amigo. Depois descobri que o Parque São Jorge é mesmo uma casa para o “seu” Antônio de Almeida.

Antoninho tem três filhas, Luana, Mariza e Débora, cinco netos. Sua carteirinha de sócio tem o ns 7. É funcionário do Corinthians desde 1930. O primeiro salário era 250 mil réis. Foi almoxarife, porteiro, funcionário da secretaria, secretário do Departamento Social e de Propaganda, até que em 1972 Vicente Matheus, que era presidente, o indicou para assessor de imprensa. Antoninho começou no jornalismo em 1937, como repórter de esportes, no jornal O Dia. Fundador da revista Corinthians, durante doze anos foi produtor do programa de rádio Corinthians em Marcha, apresentado por Otávio Muniz. Participou durante dois meses do programa de televisão O Céu é o Limite, em 1964. Não errou uma só resposta. Parou porque quis. Sabe tudo sobre o Corinthians.

Garoto, no interior, Antoninho sofreu um acidente numa moenda. Perdeu as mãos. Mas não a capacidade de manter a letra firme e colocar no papel, datilografadas, centenas

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de páginas que contam pormenores de toda a história do Corinthians Paulista. É seu patrimônio — a herança que pretende deixar para a família. Com uma generosidade comovente, ele me estendeu com seus braços os massudos pacotes onde estão dias e noites de pesquisa, vivência, paciente esforço, recolhendo a vida e a paixão do clube dos operários. Antoninho viveu parte importante da história corinthiana. Desde aquele primeiro jogo a que assistiu, em 1922, em que o Corinthians venceu o Esporte Clube Sírio no campo que ficava exatamente ali no Parque São Jorge, terras dos Sallem & Abdalla, que o Corinthians depois adquiriu. A maior parte das informações sobre o Corinthians, Antônio de Almeida obteve diretamente de documentos e do convívio com muitos dos ex-presidentes e vários sócios fundadores. Seu apelido, por isso, e com justiça, é Enciclopédia. Em 1972, Antônio de Almeida recebeu um cartão de prata e um distintivo de ouro como funcionário-símbolo do Corinthians Paulista.

A história do Corinthians está não apenas nos arquivos de Antoninho, mas na sua memória. Fatos inesquecíveis: o “tri” do “tri”, o Corinthians três vezes tricampeão paulista de futebol, selando a série em 39. numa campanha com apenas dezessete jogadores — Antoninho cita de cor, como se estivesse lendo a escalação: Barcheta, ou Joël, Jango e Carlos, ou Del Debbio; Sebastião, ou Peliciari. Brandão e Munhoz, ou também Mário ou Tião; Lopes, Servílio, Teleco, Joane, ou Wilson, e Carlinhos. Certamente, não fosse Antoninho de Almeida, a história do clube fundado no Bom Retiro teria em parte se perdido, como folhas de outono atiradas ao vento. Com sua memória e sua paciente dedicação, Antônio de Almeida é um guardião vigilante das tradições e glórias mil do clube do povo. Uma praxe de conduta: Antoninho de Almeida não se envolve na política interna do clube. Seu trabalho e sua vida estão voltados para o bem do Corinthians.

Por uma questão de elementar honestidade e respeito à verdade, tirando as lacunas e os silêncios — que o autor assume por inteiro — . frise-se que toda a inspiração do que aqui se leu foi extraída do apoio e da colaboração desse companheiro de ofício e de paixão corinthiana que atende pelo apelido de Antoninho.

Seu amor ao Corinthians não é menor nem menos estrénuo do que foi o amor de Neco. É possível que um dia a lembrança de seu trabalho silencioso e de sua dedicação perseverante como guardião da memória do clube seja esculpida em bronze e colocada nos jardins da Cidade Corinthians, da qual se tornou cidadão ilustre e fiel servidor por merecimento e antigüidade.

Nota

1. A sala de imprensa no Parque São Jorge recebeu o nome de Calil Filho, em 1974, por sugestão de Antoninho de Almeida. Calil Filho faleceu no dia em que era inaugurado festivamente o posto de gasolina do jogador corinthiano Roberto Rivelino.

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Antoninho de Almeida. (Foto Gil Passarelli)

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A Democracia Corinthiana (II): um fenômeno sociológico que

virou tese universitária

Se há um tema que até hoje divide opiniões e suscita pontos de vista contraditórios e conflitantes é a Democracia Corinthiana, um movimento gerado e vivido no seio

do clube mais popular e apaixonante do Brasil e cujas influências acabaram transbor­dando para além, muito além, dos limites do Parque São Jorge.

Conflito de idéias e opiniões nunca foram novidade no Corinthians. A história do clube, como se viu, mais de uma vez foi assinalada pela atuação de facções e grupos divergentes, empenhados em fazer valer sua posição, invariavelmente escudados pelo são objetivo de beneficiar a agremiação.

Até para progredir o Corinthians tem suas peculiaridades. Não é à toa que o Parque São Jorge confina com o Tietê, um rio que despreza as facilidades de descer direto para o mar e prefere os caminhos singulares de seu próprio destino, indo encher a bola do Paranazão.

A Democracia Corinthiana foi uma escolha singular, feita dentro de um clube, todo ele singular. Mas, se alguém pretende chegar ao consenso e à harmonia de opinião quando se discute o tema, desista. Para uns, a Democracia Corinthiana foi um riozinho que passou pelo Parque São Jorge e não se fala mais nisso. Para outros, a Democracia Corinthiana foi uma luminosa idéia plantada no lugar certo, que deitou raízes, vicejou, deu frutos opíparos; sua sombra benfazeja permanece protegendo os ideais corin- thianos, como um anjo da guarda de asas bem abertas. A Democracia Corinthiana não foi passageira como uma quermesse. Ao contrário, ela foi fundo e surgiu no momento em que não apenas o jogador de futebol precisava recuperar seus direitos de cidadania, mas todo o Brasil ansiava por isso1.

Após longa e meticulosa pesquisa. Luís Tolosa Santos desvendou aspectos emocio­nantes desse verdadeiro “fenômeno sociológico” que arrebatou jogadores, a torcida e uma parcela ponderável de dirigentes, alcançando repercussão nacional. O trabalho de Luís Tolosa foi defendido e aprovado em novembro de 1990. por uma banca examina-

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dora da qual fizeram parte os professores Manoel Tosta Berlinck, que orientou a tese, André Villa Lobos e Jeanne Marie.

Luís Tolosa, em seu Futebol Empresa e a D em ocracia Corinthiana: um a Adminis­tração que Deu Dribling na Crise, mergulha na fascinante trajetória do clube que, nascido ao relento do Bom Retiro, com um único uniforme lavado com sabão de cinza, possui hoje uma biblioteca com mais de 20 mil volumes, é a alegria trepidante do país e da cidade, campeão de público, campeão de rendas, campeão de troféus e — principalmente — campeão de emoções!

Quando surgiu, a Democracia Corinthiana era apenas o nome de uma chapa da situação, em abril de 1983, para concorrer às eleições dos novos administradores da agremiação. Liderava-a Waldemar Pires, tendo na oposição Vicente Matheus. Com a vitória no pleito, a Democracia Corinthiana passou a caracterizar todo o período de seu mandato e mereceu, do grande corinthiano e grande brasileiro que foi Rogê Ferreira (antigo diretor de basquete do Corinthians, ex-deputado e candidato a governador do Estado de São Paulo em 1982), estas palavras:

“A democracia, tão ansiosamente esperada por nós, os brasileiros, pode ser com­parada com a Democracia Corinthiana. O Corinthians é a expressão exata do povo brasileiro. Nossa torcida é pobre, em sua grande maioria, mas tem também remediados, ricos, intelectuais, tecnocratas, etc. Tem de tudo. Mas o que prevalece é a maioria sofrida, que vive mais da esperança... E nada melhor para essa esperança do que as coisas seguirem de acordo com a vontade popular, de acordo com a vontade dos que participam, dos que vivem neste país. Podem ter certeza de que, assim, haverá muito mais responsabilidade individual. Exatamente como está acontecendo no Corinthians. Em outro clube não daria certo porque as decisões são tomadas de cima e quem não obedece sai. Então, Sócrates e Adilson Monteiro Alves tentaram modificar. Acharam que as decisões deveriam ser tomadas pelo grupo e não houve impedimento (como prova­velmente ocorreria em outro clube e ocorre com os que estão no poder no Brasil). Agora ninguém mais segura, pois os resultados estão aí para todo mundo ver”.

Assim os jogadores definiram a Democracia Corinthiana:

Wladimir: “É a participação de todos em quase todos os níveis de decisão do grupo. A maior conquista é que todos se sentem importantes dentro do grupo”.

Ronaldo: “É liberdade de expressão. Liberdade para expor nossos pontos de vista”.

Solito: “Consiste na liberdade de falar e de agir. Com isso, têm-se condições de mostrar o melhor de que você é capaz, como profissional da bola e como cidadão”.

Casagrande: “É liberdade de trabalho com responsabilidade. Liberdade do homem, com a responsabilidade do profissional”.

Sócrates: “Na Democracia as decisões são tomadas com a participação de todos. E a gente vive bem. Eu, por exemplo, trabalho com prazer no Corinthians. Acho que isso é uma das principais razões que me ajudaram a chegar onde estou”.

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O professor de educação física e preparador físico Hélio Mafia disse: “Posso confessar que foi na Democracia Corinthiana que vivi os melhores momentos dentro do futebol. Foi um período onde aprendi a ouvir e a falar. Todos falavam e todos ouviam. Então, pude exigir mais dos atletas, sabia que o retorno seria garantido”.

Adilson Monteiro Alves, deputado e secretário da Cultura do Estado no governo Fleury Filho, sociólogo e reconhecido como o inspirador e mentor da Democracia Corinthiana, assim sobre ela falou: “Muita gente elogiou a Democracia Corinthiana e continua elogiando. Só que pensam que a Democracia Corinthiana é responsável pelos títulos conquistados, principalmente no futebol. Não concordo. Numa democracia, existem objetivos preestabelecidos. No Corinthians, é claro que almejamos títulos na parte esportiva. Mas no aspecto social, não há e nem pode haver metas fixas. A gente tem que ir criando ou conquistando continuamente coisas boas para o grupo”. [...] “Transformamos a equipe num grupo saudável, alegre e lutador.” [...] “É bom lembrar que os jogadores do Corinthians nessa época (1981-1985) provaram que a liberdade e o equilíbrio eram duas qualidades que não podiam ser excluídas do grupo.” [...] “Nunca havia entrado em um vestiário antes de ser o diretor de futebol do Corinthians, mas fiz grandes amizades e parece que esse foi um ponto importante para promover a união entre dirigentes, jogadores e a torcida”, disse Adilson Monteiro Alves. Adilson foi convidado pelo pai, Orlando Monteiro Alves, vice-presidente de futebol, e por Walde- mar Pires, presidente, para substituir o demissionário e histórico dirigente futebolístico João Mendonça Falcão. Adilson pediu autonomia de ação. E iniciou o diálogo, a base da Democracia Corinthiana, da qual assim falou Zé Maria, capitão do time em 1981: “Em tantos anos de carreira, mais de dez anos no clube, nunca tinha visto um dirigente pedir opinião a jogadores daquela forma..

Adilson: “É fundamental que o jogador ocupe o espaço na sociedade enquanto cidadão. E ele tem uma contribuição enorme para dar. pois uma frase do Sócrates vale mais que um longo discurso do presidente da República na Voz do Brasil

A Democracia Corinthiana começou a chamar a atenção do governo federal. “O que está acontecendo no Corinthians?" Às vésperas da eleição de 15 de novembro de 1982, o time do Corinthians Paulista entra em campo ostentando, em seu uniforme oficial, a frase: “No dia 15 vote!” A frase foi mantida apenas durante alguns jogos. Uma proibição superior apagou a frase das camisas. Mas não se apagam uma emoção e uma paixão no coração das pessoas. A Democracia Corinthiana foi uma emoção e uma paixão.

Nota

1. A Democracia Corinthiana é objeto e um dos capítulos do .trabalho do sociólogo Luís Tolosa Santos que constituiu sua dissertação de pós-graduação apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

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RevistasA lm anaque Esportivo (Thomaz Mazzoni)Corinthians {Sport Club Corinthians Paulista)Corinthians; Grandes Clubes Brasileiros (Rio Gráfica)Corinthians; História de um Grande Clube Escrita pelo Próprio Povo (Antoninho de Almeida) D em ocracia Corinthiana (Sport Club Corinthians Paulista)M anchete Esportiva (Bloch)P lacar (Abril)P lacar Extra-, Os Maiores Clubes de Futebol, as Maiores Torcidas (Abril)

Retrato d o Brasil (Política Editora)

JornaisA GazetaA G azeta Esportiva D iário Popular Folha d a M anhã Folha d a Noite Folha de S. Paulo Jo rn a l d a Tarde O Estado d e S. Paulo O Gavião (Gaviões da Fiel)

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Arquivos e bibliotecasArquivo de Assis Ângelo (jornalista e pesquisador da história da música popular brasileira) Arquivo de Francisco Dionísio Mendes (Chico Mendes)Arquivo de Tadeu Piva (Gaviões da Fiel)Arquivo do Clube Atlético Paulistano Arquivo do Museu da Imagem e do Som Arquivo do Sport Club Corinthians Paulista Biblioteca do Sport Club Corinthians PaulistaBiblioteca Mário de A ndrade ( hemeroteca e departamento de microfilmes)

DepoimentosAroldo ChiorinoBaltazarCarboneCláudio Cristóvão do Pinho Horácio de Vicenzi João Bosco Luís Trochillo Nailson Gondim Vicente Matheus Wadih HeluWladimir de Toledo Piza

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