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Capítulo 23 TIQUIRA E OUTRAS BEBIDAS DE MANDIOCA Marney Pascoli Cereda Vitor Hugo dos Santo Brito 1 Introdução O Brasil herdou da cultura dos ameríndios a tradição do preparo de alimentos fermentados obtidos da mandioca, que são produtos já bem entranhados na alimentação de base do brasileiro, em todas as regiões do país (CHUZEL e CEREDA, 1995). Entre eles, cita-se o polvilho azedo, que é o amido de mandioca fermentada naturalmente por 40 a 60 dias no processo tradicional ou 15 dias no processo industrial e depois seco ao sol. Entre outros produtos cita-se a farinha d’água, carimã ou mandioca puba que têm em comum uma etapa a fermentação natural das raízes em água. Dentre todos os produtos, o menos conhecido desses fermentados é a aguardente feita de mandioca denominada tiquira uma bebida tradicional do Estado do Maranhão. Muitas outras bebidas que são de uso das nações indígenas brasileiras ainda existem, mas são pouco divulgadas. O presente capítulo se propõe divulgar as informações sobre essas bebidas fermentadas obtidas da mandioca, com ênfase na tiquira. Souza (1875) citado por Gonçalves de Lima (1974) descreve uma síntese de todas as bebidas preparadas a partir de raízes de mandioca por índios. As raízes (descascadas) eram raladas e espremidas no tipiti. O líquido (manipueira) era desprezado e com a massa eram feitos grandes beijus, que eram tostados no mesmo forno onde era feita a farinha de mandioca. Depois de cozidos, os beijus eram colocados sobre taboas cobertas por uma camada de 2 a 3 cm de folhas de bananeira. So se tirar deste que asta na parede, pois tem que ser com boa qualidade Posteriormente os beijus eram borrifados com água, e sobre eles era colocada uma camada de folhas de mandioca picadas que chamavam de manissoba. Esta camada recebia outra de folhas de

Cap 23 Tiquira

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Capítulo 23 TIQUIRA E OUTRAS BEBIDAS DE MANDIOCA

Marney Pascoli Cereda

Vitor Hugo dos Santo Brito

1 Introdução

O Brasil herdou da cultura dos ameríndios a tradição do preparo de alimentos fermentados obtidos

da mandioca, que são produtos já bem entranhados na alimentação de base do brasileiro, em todas as

regiões do país (CHUZEL e CEREDA, 1995). Entre eles, cita-se o polvilho azedo, que é o amido de

mandioca fermentada naturalmente por 40 a 60 dias no processo tradicional ou 15 dias no processo

industrial e depois seco ao sol. Entre outros produtos cita-se a farinha d’água, carimã ou mandioca puba

que têm em comum uma etapa a fermentação natural das raízes em água. Dentre todos os produtos, o

menos conhecido desses fermentados é a aguardente feita de mandioca denominada tiquira uma bebida

tradicional do Estado do Maranhão. Muitas outras bebidas que são de uso das nações indígenas

brasileiras ainda existem, mas são pouco divulgadas. O presente capítulo se propõe divulgar as

informações sobre essas bebidas fermentadas obtidas da mandioca, com ênfase na tiquira.

Souza (1875) citado por Gonçalves de Lima (1974) descreve uma síntese de todas as bebidas

preparadas a partir de raízes de mandioca por índios. As raízes (descascadas) eram raladas e

espremidas no tipiti. O líquido (manipueira) era desprezado e com a massa eram feitos grandes beijus,

que eram tostados no mesmo forno onde era feita a farinha de mandioca. Depois de cozidos, os beijus

eram colocados sobre taboas cobertas por uma camada de 2 a 3 cm de folhas de bananeira.

So se tirar deste que asta na parede, pois tem que ser com boa qualidade

Posteriormente os beijus eram borrifados com água, e sobre eles era colocada uma camada de

folhas de mandioca picadas que chamavam de manissoba. Esta camada recebia outra de folhas de

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bananeira de mesma espessura que a primeira. A pilha era consolidada por taboas para que não

desmoronassem. Depois de 3 a 4 dias, as camadas de folhas eram removidas e os beijus, já cobertos de

mofos, eram colocados em grandes recipientes, fechados com folhas superpostas e amarradas com cipó.

Depois de 2 dias, ao desfazer a cobertura, verificavam que os beijus estavam úmidos e que deles

escorria um líquido amarelado e cristalino, com sabor de “vinho branco”. Os beijus dissolvidos em água

apresentavam variação de cor, que ia de amarelo “gema de ovo” a pardacento, como consistência

cremosa. A bebida, denominada caxiri, tinha sabor agradável e era considerada diurética. Caso o caxiri

não fosse consumido rapidamente, após 2 a 3 dias fermentava e dava origem a uma bebida embriagante.

Destilada, dava origem a uma excelente aguardente chamada tiquira.

Portanto, a origem da tiquira não é o estado do Maranhão, mas se tornou conhecida neste estado.

Os autores Venturini Filho e Mendes (2003) citam que o estado do Maranhão é o principal produtor da

tiquira, com fabricação concentrada nas cidades de Santa Quitéria, Barreirinhas e Humberto de Campos.

A produção de tiquira é artesanal e sua comercialização se faz no mercado informal, não sendo

conhecidos dados estatísticos de produção ou registro de produtor no Ministério da Agricultura.

Segundo o imaginário popular, a tiquira é muito forte e com duas ou três doses derruba qualquer

um. Dizem, no Maranhão, que quando uma pessoa toma umas doses de tiquira não é bom tomar banho

ou molhar a cabeça ou os pés, pois assim acontecendo, a pessoa pode até morrer ou ficar aluado ou

ruim da cabeça (TIQUIRA, 2004).

Contrastando com essa potencialidade, a tiquira está desaparecendo do Maranhão, sem condições

de competir com os baixos preços da aguardente de cana-de-açúcar proveniente do Sudeste do país. A

razão desta falta de competitividade é seu processo artesanal de produção.

A transformação do amido da mandioca em açúcares (liquefação e sacarificação) é feita por

bolores autóctones (mofos) que surgem sobre os beijus. A fermentação alcoólica também é feita por

leveduras selvagens. Esse tipo de produção tradicional é demorado e de baixo rendimento. Para alterar

este padrão, o processo deverá ser modernizado, sem alterar as características da bebida e sem se

tornar complicado demais, com tecnologia adaptada às comunidades rurais.

Page 3: Cap 23 Tiquira

1.1 Bebidas à base de mandioca

Os ameríndios preparavam diversas bebidas a partir de diferentes matérias-primas, incluindo frutas

e amiláceos como milho e mandioca. A maioria das referências sobre as bebidas, fermentadas ou não, à

base de mandioca, têm a região Amazônica como origem, tendo sido a tiquira descrita como preparada

por índios do Pará e Amazonas.

Gonçalves de Lima (1974) relata a origem de diversas bebidas das comunidades autóctones das

Américas, algumas vezes fazendo as conexões com bebidas similares de outros países. Em relação às

bebidas derivadas de matérias-primas amiláceas, descreve aquelas que eram de uso corrente dos

ameríndios do Brasil. O autor divide essas bebidas em dessentadoras (mitigavam a sede), nutritivas e

alcoólicas. O autor lembra ainda, citando os visitantes estrangeiros que tiveram longo contato com os

hábitos dos índios, que na verdade estes preferiam ingerir os alimentos líquidos aos sólidos.

Como os índios evitavam beber água pura, considerando que os debilitava, preparavam uma

bebida pela suspensão de farinha de mandioca em água, a qual usavam para matar a sede e ao mesmo

tempo se alimentar. Essa bebida era denominada tiquara. Este tipo de bebida era também usual dos

indígenas de outras regiões da América do Sul. Sob a denominação de chibé, essa bebida ainda é

comum na Bolívia.

Gonçalves de Lima (1974) ressalta a importância do caxiri como palavra. Segundo o autor, é

patente sua conexão à cultura aruaque do Rio Negro, embora se aplique a diferentes bebidas

amazônicas, tanto ao autêntico fermentado dos beijus tostados, como aos macerados de frutos. A

confusão criada em torno da palavra caxiri e das designações de outras bebidas resultou de informações

apressadas de alguns viajantes, porque os indígenas sabiam bem distinguir as diversas bebidas por

nomes adequados. É o que se conclui da diversidade de vocábulos, indicando diferentes bebidas em

uma mesma região. Aparece na língua tupi, significando caldo obtido de qualquer dos frutos da mata,

como o açaí, o patauá e a pupunha. Entretanto, o autor ressalta a paixão dos índios pelas bebidas

fermentadas, e neste caso o caxiri se prepara de grandes beijus de mandioca, enquanto o paiauaru é

Page 4: Cap 23 Tiquira

bebida mais elaborada do que o cauim e caxiri, resultando da preparação de uma papa feita de farinha

de beijus ou da própria mandioca cozida, que se dilui com água e se deixa fermentar um pouco.

Gonçalves de Lima (1974) cita o diário do Padre Cristóvão d'Acuña, denominado "Novo

Descobrimento do Grande Rio das Amazonas", no qual se apresentam os costumes dos indígenas

amazônicos ribeirinhos, tais como ainda viviam em 1639. Neste documento, já havia referências às

bebidas que preparavam, à base da mandioca. Segundo essa fonte, as bebidas feitas a partir dos beijus

eram muito apreciadas, e serviam também de pão quotidiano, o qual acompanha todas as comidas. Os

beijus secos podiam ser guardados por muito tempo nas partes mais altas e secas das casas. Para usar

bastava juntar água, desfazer e cozinhar ao fogo. Após, deixavam decantar o caldo e, estando frio, o

vinho estava pronto para beber e era tão forte quanto o vinho de uvas. O mocororó era diferente do caxiri

feito pelos povos aruaques, porque era previamente embolorado, o que não ocorria com o caxiri. O nome

caxiri parece haver se tornado uma designação genérica, pouco precisa, já no século 18, a julgar pela

frequência com que é citado apenas como mero significado de bebida fermentada indígena.

Gonçalves de Lima (1974) cita que José Veríssimo, em publicação de 1878 sobre as populações

indígenas da Amazônia, estabelece uma valiosa caracterização sistemática dos principais fermentados. A

partir do mbeiu-açu (beiju-açu), preparavam diversas bebidas, doces ou embriagantes. A caissuma é

descrita como um tucupi engrossado com farinha, cará (taro) ou outro tubérculo, até a consistência de

mingau. O autor cita ainda que os índios elaboravam diversos tipos de vinhos e aguardentes. Essas

bebidas alcoólicas eram consumidas com abundância nas festas e banquetes.

Diversas bebidas alcoólicas eram derivadas das raízes de mandioca. A base para elaboração

destas bebidas era o beiju, que segundo o autor podia ser de dois tipos, os beijus secos e os beijus

d’água. Os beijus d’água seriam os mais comuns por dar origem a bebidas do tipo cerveja, vinho e

aguardente. Como variação, os beijus podem ser colocados ao relento, sobre folhas de palmeira onde

recebem sol e chuva. Com isso, seria favorecido o crescimento de bolores na superfície. Para fazer o

mocororó, um tipo de vinho, os beijus eram mastigados pelas velhas da aldeia até se desfazerem como

um mingau. Esse mingau era então colocado em vasos de barro e diluído com água para fazer o vinho

doce. Esse vinho podia ser deixado fermentar naturalmente por mais alguns dias para ficar mais forte.

Page 5: Cap 23 Tiquira

Segundo o autor, o mocororó seria a transição entre os ensalivados simples de amiláceos cozidos ou

tostados e as bebidas do Extremo Oriente, do grupo tsiu-djin chinês, isto é, as cervejas elaboradas por

utilização da capacidade sacarificante dos bolores.

Paul Le Cointe, citado por Gonçalves de Lima (1974), esclarece que a bebida de nome tarubá,

também era preparada pelos índios com beijus mofados, mas não era fermentada. Neste caso, os beijús-

assus mofados eram conservados envolvidos em folhas de bananeira por 8 dias. Depois, eram

pulverizados em água juntamente com folhas de curumy (Muntingia calabura L. Elaeocarpées); e em

seguida, esta era peneirada para ser usada como bebida adocicada.

De acordo com o informe de Le Cointe e Bernardino de Souza (1873) citados por Gonçalves de

Lima (1974), o tarubá era uma bebida inofensiva, um sacarificado de mandioca não alcoólico. Essa

bebida não alcoólica correspondia ao paiwari não fermentado, ou ao próprio caxiri primitivo, como

descrito em 1839 por Ladislau Monteiro Baena citado por Gonçalves de Lima (1974) para quem a partir

da massa ralada e prensada da mandioca se faziam beijus grandes (beiju-assu) que depois de cozidos

eram postos em camadas sobre a folha de curumicaá, colocados em um paneiro (cesta) feito com a folha

do açaizeiro. Passados dois dias, era feito o caxiri pela dissolução em água seguida de peneiragem.

Uma variante da fabricação do paiauaru é encontrada na descrição de 1786, feita por Alexandre

Rodrigues Ferreira citado por Gonçalves de Lima (1974). Neste caso, o beiju-guaçu ainda quente era

ensopado em água, disposto no solo entre duas camadas de folha de embaúba, permanecendo por 4 a 5

dias até embolorarem. Quando o líquido apresentava sabor doce, era coado em vasilhames de cerâmica.

Gonçalves de Lima (1974) assinala que na categoria de bebida-alimento estava o massato, uma

massa ralada de mandioca parcialmente sacarificada pela saliva. A massa ensalivada era acondicionada

em folhas de bananeira e sofria um cozimento parcial do amido, devido ao aumento da temperatura

causada pela fermentação natural. Mesmo entre os índios tapuias, havia o hábito de levar esses bolos de

massato como um alimento de viagem. Desta forma, era considerada uma bebida-alimento de fácil

preparo, disponível e de longa duração. A preservação se dava pela formação de ácidos e álcool, que

faziam dos bolos um tipo de conserva. Sugere também o autor a provável origem da bebida paiauaru,

Page 6: Cap 23 Tiquira

esta já derivada de um processo de sacarificação da massa ralada de mandioca por bolores. Ainda

segundo o autor, essa bebida derivou do hábito dos índios de guardar e mesmo esconder os bolos de

massato em cavidades das árvores nas florestas úmidas, para poder comê-los quando necessário.

O fato dos beijus de mandioca apresentarem superfície mofada nas condições de temperatura e de

umidade relativa sempre existentes na região da selva tropical já havia despertado a atenção do

conselheiro Lisboa, que relatou suas observações de 1866 entre os índios da Venezuela. O autor cita

diversas outras bebidas encontradas na América do Sul, como derivadas desta massa fermentada.

O hábito de usar os beijus mofados deve ter conduzido à descoberta de que esses bolos cobertos

de bolores se tornavam muito doces. As condições de umidade e calor da floresta amazônica favorecem

o crescimento destes fungos.

Segundo Gonçalves de Lima (1974), havia também um tipo de cerveja preparada à base de massa

ralada de raízes de mandioca e denominada chicha, semelhante ao cauim preparado do milho. O autor

cita ainda que, segundo viajantes espanhóis, as nações indígenas da Amazônia tinham o hábito de

preparar os beijus delgados que eram assados no forno, secos e guardados em locais arejados. Com

esses beijus secos, eles preparavam um tipo de vinho desmanchando-os em água e deixando decantar e

fermentar. A bebida, correspondente ao sobrenadante, podia embriagar como vinho de uva.

Segundo Gonçalves de Lima (1974), o beiju embolorado seria o correspondente indígena do "bolo-

fermento" de Sikkim (Índia), ao chew ou pia chinês, ao ragi malaio (Java), ao tane-koji (fungo-fermento)

japonês. Barbosa Rodrigues, citado por Gonçalves de Lima (1974), em seus informes sobre os ipurucotó

de Uraricuera e Parimá, informa que as festas eram animadas com um tipo de vinho inebriante chamado

de anaruapá, que como o caxiri era feito com o paiauaru. A bebida era feita a partir de um grande beiju

de massa ralada e prensada de mandioca, torrado sobre a chapa do forno. Acamado em um cotai

(paneiro) e borrifado com água até ficar azedo, embolorado e fermentado, era metido em potes ou

yaçahuas (cahaná) para fermentar mais. Dissolvido na água e coado, originava então o anaruapá, bebida

usada em suas festas. Além deste vinho, faziam também o pajuá ou caxiri preto e o anaecó. O primeiro

era feito de mandiocas pequenas, raspadas e cortadas em lâminas, que eram secas ao sol e depois

Page 7: Cap 23 Tiquira

torradas no forno. Depois de pulverizadas em pilão, o pó era misturado com polvilho fresco (amido de

mandioca), a fim de fazer os beijus. O anaecó era feito com milho cozido, mascado, fermentado e coado.

Dessas bebidas, a única destilada é a tiquira, conhecida também como pinga da mandioca. Depois

de processada na forma de beiju, é fermentada por técnicas próprias e destilada de forma a produzir uma

bebida com 48 a 54 ºINPI, (TIQUIRA, 2004).

Um fato intrigante diz respeito à origem do processo de destilação usado na fabricação tradicional

de tiquira. Por ocasião do descobrimento, os ameríndios brasileiros estavam na idade da pedra, portanto

não conheciam o trabalho em metal, o que invalidaria a fabricação de alambiques. Entretanto, várias

referências da literatura colocam dúvidas sobre esta afirmação. A mais intrigante é a de Le Cointe (1922),

citado por Gonçalves de Lima (1975), que descreve a elaboração de álcool de beiju ou tiquira entre os

índios da região amazônica. Além da descrição geral do processo, já abordada, o autor informa que,

terminada a fermentação, o caldo fermentado e coado era passado pelo alambique, que mais

frequentemente era feito de barro.

Se for considerada a origem mongólica dos ameríndios brasileiros, essa informação cruza com

outra, do achado de alambique de cerâmica em escavações na China. Datada da dinastia Yuan (1271-

1368), foi encontrado na província chinesa de Jiangxi e poderá esclarecer o mistério da origem da

fabricação dos destilados, pois antes da descoberta deste que é considerado o mais antigo e melhor

conservado local de fabricação de destilados da China, a existência de destiladores era desconhecida.

1.2 Definição e legislação da tiquira

A literatura esclarece a etimologia da palavra. Segundo Stradelli citado por Gonçalves de Lima

(1974), tiquira é palavra nheengatu, significando "destilada” ou “obtida a pingos”, a partir do beiju de

mandioca fermentado. Para Anchieta citado por Gonçalves de Lima (1974), a palavra tiquira é tupi,

derivando de ti (água sumo ou caldo, como em tiquire ou tiquiri pingar, destilar). No nheengatu do

Amazonas, aparece em tiquira, como "destilada". Essa etimologia também aponta para a existência de

Page 8: Cap 23 Tiquira

destilados já na época do descobrimento.

Entre as bebidas derivadas da mandioca, apenas a tiquira tem legislação específica. A tiquira,

como outras aguardentes, é uma bebida calórica, principalmente em razão de seu teor alcoólico. A

graduação alcoólica mínima especificada pelo Ministério da Agricultura e do Abastecimento

(MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, 2004) é de 38 °INPI. Entretanto, essa graduação dificilmente é

aferida, em razão do nível artesanal de sua fabricação e da comercialização dispersa.

Segundo Venturini Filho e Mendes (2003), de acordo com a legislação brasileira de 1997, tiquira é

a bebida com graduação alcoólica de 36 a 54 °INPI, obtida do destilado alcoólico simples de mandioca,

ou pela destilação de seu mosto fermentado. A destilação da tiquira deve ser efetuada, de forma que o

destilado tenha o aroma e o sabor dos elementos naturais voláteis contidos no mosto fermentado,

derivados do processo fermentativo ou formados durante a destilação.

Segundo a mesma legislação, a tiquira pode conter até 30 g L-1

de açúcar. Quando a quantidade

de açúcar adicionado for superior a 6 g L-1

, a denominação deve ser seguida da palavra adoçada. O

coeficiente de congêneres (impurezas voláteis não etanol) não pode ser inferior a 200 e nem superior a

650 mg por 100 mL de álcool anidro.

Pode conter ainda compostos potencialmente tóxicos que também estão presentes em outras

aguardentes como metanol, carbamatos e alguns íons de metais e cianeto.

1.3 Composição e valor nutritivo

Não se pode considerar a tiquira como nutritiva, sendo apenas uma bebida alcoólica. O consumo

crônico de bebidas alcoólicas é um problema social e pode causar diversos problemas de saúde, que vão

de danos físicos severos ao estômago (DURELANKO; LONG, 1982 citados por NASCIMENTO et al.,

1992) e ao fígado (GREE; TALL, 1972 citados por NASCIMENTO et al., 1992), à absorção de nitrogênio

e ao metabolismo (MARCHINI ; DUTRA, 1990 citados por NASCIMENTO et al., 1992).

Page 9: Cap 23 Tiquira

Nascimento et al., (1992), demonstraram que o consumo de bebidas alcoólicas, inclusive tiquira

com grau alcoólico de 48°INPI, pode causar problemas no sistema imunológico. Os testes foram

realizados com fornecimento ad libitum a camundongos adultos com 2 a 3 meses de idade e de 16 a 17 g

de peso. O ensaio foi avaliado e comparado a um controle que recebeu apenas ração e água sem tiquira.

Os resultados (Tab. 1) demonstraram que o consumo continuado desta concentração de tiquira por 30

dias induziu à produção de anticorpos auto-reativos nos camundongos e interferiu com as reações

imunológicas por reduzir o número total de células excretoras de imunoglobulina e aumentar a produção

de anticorpos.

Tabela 1. Consumo de líquido (água e água + tiquira) e ração por camundongos e efeito sobre o sistema

imunológico do consumo diário de 8 mL de tiquira (48 °INPI) por 30 dias.

Grupos Controle Tiquira

Consumo

Ração (g dia-1

) 15,00 ± 4,00 13,00 ± 4,00

Água (mL dia-1

) 24,00 ± 5,00 16,00 ± 2,00

Tiquira (mL dia-1

) 0,00 ± 0,00 8,00 ± 2,00

Níveis no sérum Imunoglobulina UE 1600,00 ± 30,00 193,00 ± 20,00

Anticorpo RBC 119,00 ± 16,00 800,00 ± 20,00

Número de Células Proteínas A 482,00 ± 22,00 58,00 ± 3,00

Anticorpos RBC 183,00 ± 14,00 272,00 ± 16,00

Legenda: Total de líquidos: 24 ± 2 mL dia-1

; UE: Unidades ELISA. Fonte: Nascimento et al., 1992.

Segundo a autora, a pesquisa continuou para verificar se esse efeito se deve apenas ao álcool

presente na tiquira ou a outro composto presente na bebida, mas deve-se levar em conta que a

quantidade de tiquira administrada aos camundongos foi de 47 a 50 % do peso corporal dos animais, por

dia, durante 30 dias, não sendo, portanto, uma dosagem comparável à do consumo humano, mesmo

exagerado.

Page 10: Cap 23 Tiquira

2 Matéria-prima

A matéria-prima para a produção de tiquira é a raiz de mandioca ralada e moída. Embora não

tenha sido localizada composição específica de massa ralada e prensada de mandioca usada para

fabricação de tiquira, pode-se considerar a composição como semelhante à de outras cultivares de

mandioca em uso no Brasil. Além da massa ralada e prensada de raízes, apenas água é adicionada no

momento de diluir os beijus e preparar o mosto.

Por tradição, no Maranhão são adicionadas folhas de lima (citros) à tiquira recém-destilada, o que

proporciona uma fraca coloração azul à bebida. Essa informação não pode ser confirmada em

laboratório, ficando em nível de conhecimento popular. Mais recentemente, esse corante natural foi

substituído por forte corante de cor arroxeada, cujo princípio químico não foi identificado. A coloração

azulada pode também ser devida à acidez do líquido fermentado, que reage com óxido de cobre de

destiladores mal lavados.

O procedimento tradicional para o preparo da tiquira inicia-se pelo descascamento das raízes.

Estas raízes são em seguida raladas e prensadas, e confeccionados os beijus que, depois de cozidos,

apresentam o amido gelificado. A gelificação do amido facilita a ação das enzimas e deve ser realizada,

tanto no processo tradicional como na proposta de um processamento mais moderno.

A composição das raízes de mandioca de algumas cultivares do Estado do Maranhão é

apresentada na Tab. 2.

Tabela 2. Composição média de raízes da cultivar Liberato do estado do Maranhão, comparada a

um valor médio na região Sudeste.

Composição Cultivar Liberato Região Sudeste(*)

Massa seca (%) 38,92 40,60

Distribuição na massa seca

Amido 86,66 82,50

Açúcares redutores 2,12 2,00

Page 11: Cap 23 Tiquira

Fibras 1,63 2,70

Gordura 0,91 0,30

Proteína (N*6,1416) 1,07 2,60

Cinzas 1,72 2,40

Outras

pH 6,38 6,47

Acidez (**) 2,52 2,91

* Venturini Filho e Mendes (2003); ** mL de NaOH N 100 g-1

.

Como pode ser observado na Tab. 2, as raízes de mandioca apresentam predominantemente

amido, com cerca de 2 % de açúcares redutores, que poderiam também ser transformados em álcool,

caso se adote um processo sem prensagem (moderno). A maior diferença entre as cultivares

maranhenses e sulistas está na massa seca, maior para a cultivar sulina, mas o teor de amido das

cultivares maranhenses foi ligeiramente maior. O teor de massa seca é proporcional ao de amido.

O amido de mandioca é composto por moléculas de amilose (Fig. 1) e amilopectina (Fig. 2). Ambos

os polímeros são formados por unidades de glicose, entretanto a estrutura da amilose é essencialmente

linear, formada por unidades conectadas por ligações α-D- 1-4, enquanto que a amilopectina possui

ligações α-D 1-4 e ligações α-D 1-6, dando arranjo ramificado a estrutura (GARCIA et al., 2009;

UTHUMPORN et al., 2010). Para que ocorra a conversão do amido a açúcares de menor peso molecular

é necessário usar enzimas específicas para o rompimento da estrutura.

No processo tradicional de produção de tiquira são as enzimas produzidas pelos bolores e

bactérias autóctones que hidrolisam o amido gerando açúcares fermentescíveis, assim como as

leveduras que fermentam esses açúcares a etanol. Para não deixar essa importante fase ao acaso, no

processamento moderno, tanto as enzimas como as leveduras são produtos comerciais adicionados.

Page 12: Cap 23 Tiquira

Figura 1. Tipos de ligações entre moléculas de glicose para formação de maltose e amido.

Fonte: Surmely et al., (2003).

O

O

H

CH OH

H

OH

H

H

OH

2

O

O

H

CH

H

OH

H

H

OH

2

OH

CH OH

H

OH

H

H

OH

2

HHH

O

O

H

CH OH

H

OH

H

H

OH

2

O

O

H

CH OH

H

OH

H

H

OH

2

HH

OO

O

Figura 2. Estrutura molecular da amilopectina.

Fonte: Surmely et al., (2003).

As massa seca das cultivares maranhenses corresponderam ao limite superior das 12 cultivares

analisadas, que variaram de 24 a 40 %. Os teores de proteínas e gorduras foram baixos para todas elas.

O teor de proteína não representa bem os compostos nitrogenados da mandioca, que, além do nitrogênio

proteico, apresenta nitrogênio não proteico, destacando o cianeto (CN) acoplado aos glicídeos linamarina

e lotaustralina, cujas formulas estão apresentadas na Fig. 3.

Page 13: Cap 23 Tiquira

Figura 3. Estrutura molecular da linamarina e lotaustralina.

Fonte: Cagnon; Cereda; Pantarotto (2002).

A toxicidade cianogênica da mandioca origina-se da formação do ácido cianídrico (HCN) a partir da

hidrólise enzimática dos cianoglicosídeos por ação das enzimas linamarase e hidroxinitrilaliase. A

concentração de glicosídeos pode variar amplamente entre as cultivares, tanto por razões genéticas,

como por fatores ambientais (localização, tipos de solo, estação), podendo atingir valores de até 2 000

mg Kg–1

, tanto nas raízes, quanto nas folhas.

A presença destes glicosídeos cianogênicos potencialmente pode influir na geração de carbamato

de etila, pois o cianeto é considerado um precursor deste tipo de molécula (LUMSDEN, 1990).

3 Processamento da tiquira

3.1 Operações unitárias

Para produzir álcool a partir do amido, são necessárias três etapas, a gelificação do amido com a

posterior sacarificação para a formação de açúcares, fermentação alcoólica e destilação. O fluxograma

da Fig. 4 apresenta todas as etapas para elaboração de tiquira pelo processo tradicional (linhas cheias) e

pelo processo moderno (linhas tracejadas), no qual as três etapas são realizadas em sequencia.

Lavagem e descascamento Raízes

Água

Cascas

Água

Ralação

Prensagem Manipueira

Cozimento Água

Enzima

Enzima

Page 14: Cap 23 Tiquira

Figura 4. Fluxograma da produção de tiquira pelo processo tradicional (linhas cheias) e moderno (linhas

tracejadas).

Fonte: Adaptado de Venturini Filho e Mendes (2003).

No processamento tradicional, a sacarificação é feita por bolores e a fermentação por leveduras,

ambos da flora autóctone. No processo moderno proposto, os bolores são substituídos por enzimas

comerciais. Outra vantagem do processo moderno é que o resíduo líquido se reduz à vinhaça, eliminando

a produção de manipueira.

As operações unitárias para o preparo da tiquira são:

Pesagem das raízes: tem objetivo de calcular o pagamento e de controlar o rendimento da produção.

Descascamento e lavagem das raízes: tem por objetivo a apenas a retirada da casca marrom

(epiderme), pois a entrecasca (córtex) possui amido que pode ser convertido em açúcares e álcool. Pode

ser feito à mão, no processo tradicional ou em lavadores-descascadores, no processo moderno.

Ralação: destrói os tecidos, expondo o amido e facilita a retirada do excesso de umidade na prensagem.

Prensagem: tem por finalidade a remoção do excesso de umidade. Retira parte da água de constituição

da raiz e facilita a confecção dos beijus. Com a prensagem pode ser removida parte da linamarina, mas

Page 15: Cap 23 Tiquira

também parte dos 2 % de açúcares solúveis que acompanham. A linamarina, o composto cianogênico

da mandioca, é solúvel em água. No processo moderno, não é necessária esta prensagem, pois não há

necessidade de fazer os beijus.

Gelificação do amido: a gelificação permite que a enzima tenha acesso ao amido para transformá-lo em

açúcares de menor peso molecular. A gelificação deve ser feita à temperatura acima de 60 °C. Com a

gelificação, o grânulo perde a cristalinidade, sua estrutura se abre, as cadeias em espiral se esticam e a

viscosidade aumenta, facilitando a ação das enzimas. Detalhes sobre a estrutura do amido e o efeito do

calor com água em excesso podem ser encontrados em Cereda (2001).

Sacarificação: nesta etapa, as ligações do amido são rompidas. Quanto mais completo esse

rompimento, maior o rendimento em açúcares fermentescíveis. Na conversão, há aumento do

rendimento, pois a reação incorpora uma molécula de água por ligação rompida.

O calculo prático dos açúcares fermentescíveis é feito dividindo-se o teor de amido por 0,9. As enzimas

envolvidas são principalmente a α-amilase e a amiloglucosidase. Detalhes sobre a ação destas enzimas

podem ser encontrados em Surmely et al. (2003).

Preparo do mosto: o preparo do mosto é feito simplesmente por diluição dos açúcares com água, sem

complementações. No processo tradicional, não há medida do Grau Brix (°B), mas no processo moderno

são usados refratômetros de campo para esse fim.

Fermentação: no processo tradicional, ocorre por leveduras autóctones, no moderno com leveduras

comerciais de panificação na forma prensada ou seca.

Destilação: no processo tradicional era feita em alambiques de cerâmica (citado na literatura como

usada pelos ameríndios) ou de cobre. Deve ser usado um alcoômetro para estabelecer o teor alcoólico e

o final do processo de destilação.

Engarrafamento: é feito preferencialmente em garrafas de vidro, em geral transparentes. Podem

também ser usadas garrafas de refrigerante vazias, tipo PET.

Envelhecimento e armazenamento: embora não tenham sido encontradas informações, depois de

elaborada a tiquira poderia passar pelas mesmas fases de envelhecimento no armazenamento que a

cachaça ou aguardente de cana.

Page 16: Cap 23 Tiquira

3.2 Processamento tradicional

Segundo esse autor, citado por Gonçalves de Lima (1974), os índios da Amazônia fabricavam com

a mandioca uma bebida alcoólica de muito boa qualidade. A raiz da mandioca era descascada e ralada, e

a massa assim obtida era prensada no tipiti sem adição de água. Com a massa ralada, os índios faziam

os beijus de grandes dimensões, cerca de um quilograma, sobre a placa do forno de farinha bem quente.

Segundo Chuzel e Cereda (1995), a massa ralada e prensada apresenta em torno de 50 % de umidade.

Os beijus elaborados com essa massa têm 30 cm de diâmetro e 3 a 4 cm de espessura (Fig. 5).

Figura 5. Formação de beijus em empresa artesanal do Maranhão.

Fonte: Raízes ONG (2003).

Para Paul Le Cointe, citado por Gonçalves de Lima (1974), os beijus eram cozidos até tostarem.

Para Chuzel e Cereda (1995), os beijus são virados de vez em quando para cozer e tostar os dois lados.

Uma vez resfriados, os beijus apresentam teor de umidade entre 30 e 35 %, portanto perdem parte da

umidade durante a fase de cozimento. O teor de sólidos solúveis nos beijus frios foi de 14 °Brix.

Paul Le Cointe, citado por Gonçalves de Lima (1974), complementa que, uma vez resfriados, os

beijus eram aspergidos com um pouco de água dos dois lados e estendidos no solo sobre um leito de

folhas de bananeira ou de palmeira e recobertos também de folhas.

Page 17: Cap 23 Tiquira

Como variante, os beijus podiam ser colocados sobre estrados e mesas. Os beijus permaneciam

nestas condições por cerca de 8 dias, após os quais se apresentavam recobertos de mofos negros. Se

as manchas fossem de outras cores, o autor considerava sinal de que o processo não teria se

desenvolvido de forma adequada. Neste ponto, estavam prontos para o uso, mas podiam ser secos e

assim guardados por muito tempo. Para fazer álcool, os beijus eram esfarelados em água no interior de

grandes vasilhas de cerâmica ou escavadas em madeira. No dia seguinte, a mistura era passada em

peneiras e deixada fermentar naturalmente por cerca de 8 dias. Depois eram destiladas em destiladores

que em geral eram de cerâmica (Paul Le Cointe, citado por Gonçalves de Lima, 1974).

Segundo Chuzel e Cereda (1995), para que os beijus apresentem as melhores condições para

crescimento dos microrganismos, os locais de depósito deverão ter temperatura e umidade relativa do ar

elevadas, o que era naturalmente obtido na floresta amazônica.

Para Gonçalves de Lima (1975), a advertência de Le Cointe sobre a cor negra da frutificação dos

bolores nos beijus denuncia que se trata de Aspergillus niger e, ainda mais, que a presença de fungos

de vegetação aérea diversamente colorida é considerada uma "contaminação indesejável". O autor cita

ainda que também nos beijus de elaborarão industrial da aguardente tiquira, no Maranhão, o agente

sacarificante predominante era o A. niger, o qual, segundo Bronse citado por Gonçalves de Lima (1975),

apresenta desempenho em sacarificação semelhante ao A. oryzae, capaz de hidrolisar o amido a glicose.

A questão dos bolores que se desenvolvem sobre os beijus foi objeto de vários estudos, inclusive

por pesquisadores estrangeiros. Park et al., (1982) estudaram a flora natural de beijus coletados em 3

unidades de fabricação de tiquira no Maranhão, próximas da capital. Foram isolados e identificados

bolores, usando meios adequados. A temperatura de incubação foi de 30 °C, por 1 a 5 dias. Os autores

dosaram também a atividade de α-amilase e amiloglucosidase. As populações obtidas e suas atividades

enzimáticas são relacionadas na Tab. 3.

Tabela 3. População de bolores em 3 amostras de beijus coletados no Maranhão.

UFC nas amostras Atividade Unidades g-1

Page 18: Cap 23 Tiquira

Fungos Beiju 1 Beiju 2 Beiju 3 α-amilase (*) Amiloglucosidase (**)

Aspergillus niger 7. 105 6. 10

5 3,9. 10

5 - 1 497,00 ± 6,00

Paecilomyces sp 1,1. 106 1,2. 10

6 - 57,00 ± 3,00 448,00 ± 2,00

Penicillium sp - - 1,7. 105 - -

Rhizopus sp 1,5. 105 1,0. 10

5 1,8. 10

5 9,00 ± 1,00 1 276,00 ± 3,00

Neurospora sp 1,9. 104 - 1,2. 10

4 - 452,00 ± 3,00

Legenda: - Nulo; UFC: Unidades Formadoras de Colônias; (*) em dextrina; (**) em glicose.

Fonte: Park et al., (1982).

Os resultados mostraram que as amostras de Paecilomyces sp apresentaram maior atividade para

ambas as enzimas, enquanto para Penicillium sp e Neurospora sp os valores obtidos foram os menores.

Aspergillus niger e Rhizopus sp, embora tenham apresentado baixa atividade para α-amilase,

apresentaram valores mais altos para amiloglucosidase. As populações foram equivalentes em número

(Park et al., 1982).

Esses resultados são conflitantes com os de Gonçalves de Lima (1943), para quem a sacarificação

do amido era feita principalmente pelo bolor Neurospora crassa isolado de beijus e caracterizado pelo

autor em 1937, mas estão em acordo com os de Bronse, citado por Gonçalves de Lima (1975), para o

qual o Aspergillus niger, além de caracterizar os bolores do beiju, apresentava atividade de

amiloglucosidase elevada.

Chuzel e Cereda (1995) citam a identificação de Monila sitophila de cor rosada e com forte

atividade amilolítica proveniente de isolamento de beijus envoltos em folhas de mandioca no Estado de

São Paulo. Os autores citam também a produção de aroma agradável, de fruta madura e que foram

encontradas cepas de Aspergillus Niger e de Penicillium, ambos citados na literatura.

Embora importantes, estes resultados devem ser vistos com cuidado, pois não houve avaliação de

bactérias com atividade hidrolítica para amido e nas condições em que se faz a incubação dos beijus, a

presença de bactérias não pode ser descartada. A pesquisa de bolores é valorizada pela literatura. Como

Page 19: Cap 23 Tiquira

é comum em fermentações naturais, é difícil determinar que uma espécie possa apresentar maior

importância que outra, pois em geral ocorre uma sucessão de espécies, em razão das necessidades

nutricionais de cada uma delas. Também a produção de amilases por bolores não deve ser o único

enfoque para determinar a importância de micro-organismos nas bebidas à base de mandioca. O aroma

é um ponto importante, principalmente para as bebidas não destiladas.

Ainda sobre a formação de aromas, Turner (2004) lembra que bolores do gênero Neurospora, que

estão entre os diversos isolados por Park et al., (1982) de mandioca fermentada naturalmente, permitiram

identificar uma raça que foi depositada como ATCC 46892 e também disponível como FGSC 6673. Esta

raça foi demonstrada por Yoshizawa et al., (1988), citados por Turner (2004), como apresentando aroma

agradável de fruta atribuída a hexanoato de etila. Esta raça de Neurospora tem sido objeto de muitos

estudos relativos à produção e uso desta substância, incluindo estudos em escala piloto de possível uso

da cepa 46892 no Japão para produzir koji e sake (YAMAUCHI et al.,1989 citados por TURNER, 2004).

Entretanto, não há comprovação de que o aroma desenvolvido pela Neurospora passe para a tiquira

destilada.

Neste ponto, os beijus podem ser deixados secar e estão prontos para serem usados (Fig. 6).

Chuzel e Cereda (1995) citam que à medida que passam os dias, os beijus perdem parte de sua umidade

e dos micélios que nos primeiros dias estão visíveis na sua superfície, mas que também colonizaram a

parte interna dos beijus. Entre 10 e 12 dias, a reação do amido com iodo (lugol) será negativa, indicando

que não há mais amido presente. Isto não quer dizer que todo o amido tenha se hidrolisado a açúcares

fermentescíveis, pois a reação negativa pode ocorrer em presença de dextrinas que são pouco

fermentáveis pelas leveduras.

Para a etapa de fermentação alcoólica os beijus são esfarelados em um recipiente de madeira ou

em grandes potes de barro cheios de água. Os beijus desintegrados apresentam aspecto de um xarope

grosso, com °Brix entre 14 e 15. No dia seguinte pela manhã, toda a suspensão é passada por peneira e

o caldo deixado fermentar naturalmente por 8 dias.

Page 20: Cap 23 Tiquira

Figura 6. Armazenamento dos beijus embolorados em empresa artesanal do Maranhão.

Fonte: Raízes ONG (2003).

O líquido cremoso obtido é deixado fermentar por cerca de 48 horas ou mais, com leveduras

autóctones. Entre as leveduras selvagens, foi identificado o gênero Saccharomyces. Na etapa de

multiplicação celular, as leveduras responsáveis pela fermentação alcoólica dependem da presença de

compostos nitrogenados, tais como proteínas e ácidos nucléicos, os quais são fundamentais à

biossíntese da estrutura celular (ANGELIS, 1992 citado por POLASTRO et al., 2001). O conteúdo inicial

de nitrogênio total do mosto e as concentrações relativas de cada um dos constituintes nitrogenados

afetam o crescimento das leveduras, a velocidade de fermentação e a formação do produto final (BELL,

OUGH; KLIEWER, 1979 citados por POLASTRO et al., 2001).

Para manter a fermentação alcoólica em boas condições e assegurar que a taxa de multiplicação

celular permaneça elevada, a concentração ideal de nitrogênio amoniacal, geralmente adicionada na

forma de (NH4)2SO4, gira em torno de 10 a 35 moldes L-1

(ANGELIS, 1992 citado por POLASTRO et al.,

2001). A ureia é uma fonte de nitrogênio para as leveduras, que era frequentemente adicionada à dorna

de fermentação (ANGELIS, 1992 citado por POLASTRO et al., 2001), porém atualmente sabe-se que

esse procedimento não é aconselhável, pois pode ocorrer reação com o etanol para produzir carbamato

de etila, composto considerado carcinogênico. Mesmo quando não adicionada, a ureia pode ser

produzida durante o processo fermentativo, devido ao metabolismo das leveduras (STEVENS; OUGH,

1993 citados por POLASTRO et al., 2001).

Page 21: Cap 23 Tiquira

Além de possibilitarem a formação de flocos, os aminoácidos são também possíveis precursores

de carbamato de etila. A arginina, cuja degradação pelas leveduras produz ornitina e ureia é citada como

potencial formadora de carbamatos (OUGH; CROWELL; MOONEY, 1988 citados por POLASTRO et al.,

2001).

A presença de aminoácidos é considerada indesejável no produto final. Os aminoácidos presentes

nas aguardentes de cana e nas tiquiras são provavelmente provenientes da hidrólise de proteínas e dos

aminoácidos presentes na própria matéria-prima (LIMA, 2001). De acordo com Ciaco e D‘Appolonia

(1988) citam a presença de aminoácidos no mosto da cana-de-açúcar e da mandioca.

Embora nenhum dos autores cite o cianeto da mandioca como precursor destes aminoácidos, por

sua estrutura química seria impossível a geração destes através da linamarina.

Ainda segundo Polastro et al., (2001), a ureia não é adicionada no processo de fabricação da

tiquira. Também não é reportada a presença de ureia na bebida ou na mandioca. Assim, é possível que a

mesma se forme durante o processo de fermentação. Estes resultados são preocupantes e

provavelmente expliquem os elevados teores de carbamato de etila encontrados na tiquira, como citado

por Andrade (1999) apud Polastro et al., (2001), pois como se sabe este composto pode ser formado a

partir da ureia.

3.3 Processamento moderno

O processamento moderno foi proposto em pesquisa realizada para tornar a tiquira mais

competitiva onde enzimas e leveduras comerciais substituem com vantagem a fase de sacarificação e

fermentação do processo tradicional que usa microflora autóctone. O descascamento e lavagem das

raízes também são desnecessários pois fazem parte de processamento de farinha de mandioca, que foi

a base do processamento de tiquira. Também nesta linha de raciocínio as raízes serão apenas raladas,

Page 22: Cap 23 Tiquira

sem necessidade de prensagem. Este modificação do processo tradicional permite aproveitar cerca de

2% de açúcares (sacarose, glicose e frutose) da água de constituição da raiz de mandioca.

A gelificação do amido é obrigatória para obter rendimentos elevados, embora seja possível obter

hidrólise de grânulos de amido nativo, com baixos rendimentos. O processo moderno descrito foi

divulgado no Estado do Maranhão (citar a referencia do livro) e em diverso cursos ministrados pelos

autores.

Surmely et al. (2003) citam a avaliação de enzimas comerciais disponíveis no Brasil para obter a

sacarificação do amido de mandioca (Fig. 7).

Figura 7. Representação das fases de liquefação e sacarificação do amido onde as flechas representam

os pontos em que as ligações são rompidas pelas enzimas.

Fonte: Surmely et al., (2003).

Os autores apresentam um exemplo de como essas enzimas são calculadas, usando as enzimas

comerciais da Novozymes®

disponíveis no Brasil. Os autores avaliaram duas α-amilases para a fase de

liquefação, que tem por objetivo reduzir viscosidade do amido. Foram selecionadas a Thermamyl 120L de

origem bacteriana e resistente ao calor e a BAN 120L, obtida de bolores e mais sensível ao calor. Para

Page 23: Cap 23 Tiquira

ambas as amilases a sacarificação usou a AMG 300L, que converte o amido liquefeito e com baixa

viscosidade de dextrinas à glicose. As recomendações da indústria para essas enzimas são:

THERMAMYL 120 L

3 mL de enzima por Kg de amido

BAN 120 L

3 mL de enzima por Kg de amido

AMG 300 L

2 mL de enzima por Kg de amido

A massa ralada de mandioca tem em torno de 200 g de amido Kg-1

, correspondente a um beiju

padrão como citado na literatura. Neste caso, o cálculo seria de 0,6 mL de Thermamyl ou BAN e 0,4 mL

de AMG Kg-1

de massa ralada. Considerando essas quantidades, pode-se usar os dados obtidos por

Sumerly et al., (2003) para amido de mandioca, para calcular o tempo de reação e a temperatura ideais.

THERMAMYL 120 L

Thermamyl é um preparado enzimático líquido e concentrado à base de α-amilase termoestável,

produzido a partir de uma cepa selecionada de Bacillus licheniformes. A enzima hidrolisa as ligações α-

1,4 do amilose e da amilopectina, convertendo rapidamente o amido em dextrinas e oligossacarídeos

solúveis. Thermamyl foi especialmente desenvolvido para promover a liquefação (dextrinização) do

amido e produção de maltodextrinas. A ficha técnica desta enzima é:

Aplicações:

Indústria alimentícia: açúcares, álcool, bebidas e cerveja;

Indústria de fermentação: vitaminas, aminoácidos, antibióticos, etc.;

Indústria têxtil e adesivos.

Page 24: Cap 23 Tiquira

Características:

Aparência: líquido não viscoso de grau alimentício;

Cor: marrom escuro;

Densidade: 1,2 g mL-1

.

Propriedades segundo o fornecedor:

Atividade: 120 KNU g-1

(1 KNU: quantidade de enzimas que hidrolisa 5,26 g de amido por

hora, avaliado pelo método standard da Novozymes A/S).

Parâmetros ótimos:

Potencial hidrogeniônico (pH): 6,00 a 8,00;

Temperatura: 90 a 105 ºC;

Cálcio: 30 a 60 mg.Kg-1

.

O aumento de dextrose equivalente (DE) inicial em função do tempo, para uma determinada

concentração enzimática, com 35 % de amido e temperatura de reação de 90 °C é apresentado na Fig. 8.

Figura 8. Evolução do DE com o tempo de reação para amido (35 % p v-1

) a 90 °C, com duas

concentrações da enzima Thermamyl.

Page 25: Cap 23 Tiquira

Fonte: Surmely et al., (2003).

A DE máxima atingida pela enzima Thermamyl foi de 26. A estabilização da DE próxima desse

valor foi obtida com 3 mL de enzima por Kg de amido, depois de 60 minutos. Para concentração de

enzima de 1 mL Kg-1

, a reação foi mais lenta e não atingiu o DE máximo depois dos 120 minutos que

durou o experimento.

A Fig. 9 apresenta o perfil dos carboidratos de amido de mandioca hidrolisada. A concentração de

Thermamyl de 3 mL Kg-1

gera 30,60 % de carboidratos de Dp>7 (dextrinas), enquanto com concentração

de 1 mL Kg-1

sobram cerca de 62 % desses carboidratos, indicando uma atividade incompleta.

Figura 9. Perfil de hidrólise de amido (35 % p v-1

) incubada com duas concentrações Thermamyl a 90 °C

por 60 minutos. Legenda: Dp1: Glicose; Dp2: Maltose; Dp3: Maltotriose; Dp4: Maltotetraose; Dp5:

Maltopentaose; Dp6: Maltohexaose; Dp7: Maltoheptaose e Dp>7: dextrinas (Dp = grau de polimerização).

Fonte: Surmely et al., (2003).

BAN 120 L

A BAN - Bacterial Amylase da Novozymes é uma α-amilase produzida por fermentação submersa

de uma cepa selecionada de Bacillus amyloliquefaciens. A enzima hidrolisa as ligações α-1,4 da amilose

e amilopectina, o que resulta em redução rápida da viscosidade do amido gelificado. Os produtos

Page 26: Cap 23 Tiquira

provenientes da decomposição são dextrinas e oligossacarídeos solúveis, como as maltodextrinas. A

ficha técnica desta enzima é:

Aplicações:

Indústria alimentícia: açúcares, álcool, bebidas e cerveja;

Indústria de fermentação: vitaminas, aminoácidos, antibióticos, etc.;

Indústria papeleira.

Características:

Aparência: líquido não viscoso de grau alimentício;

Cor: marrom escuro;

Densidade: 1,2 g mL-1

.

Propriedades segundo o fornecedor:

Atividade: 120 KNU g-1

(também disponível com atividades de 240, 480 e 800 KNU g-1

).

Parâmetros ótimos:

Potencial hidrogeniônico (pH): 5,00 a 7,00;

Temperatura: 70 a 80 ºC;

Cálcio: 250 mg.Kg-1

.

Page 27: Cap 23 Tiquira

Figura 10. Evolução do DE com duas concentrações da enzima BAN, em função do tempo de reação

para amido de mandioca (35 % p v-1

) a 80 °C.

Fonte: Surmely et al., (2003).

O aumento do DE em função do tempo, para uma determinada concentração enzimática, com 35

% de amido e temperatura de reação de 80 °C é apresentado na Fig. 10. O perfil das duas concentrações

de BAN é similar e continua crescendo depois de 120 minutos (Fig. 11), identificando um perfil similar

para os dois teores de BAN, mas com maior quantidade de dextrinas para a concentração 1 mL Kg-1

.

Figura 11. Perfil de hidrólise de amido (35 % p v-1

) incubada com duas concentrações da enzima BAN a

80 °C por 60 minutos. Legenda: Dp 1: Glicose; Dp 2: Maltose; Dp 3: Maltotriose; Dp 4: Maltotetraose;

Dp5: Maltopentaose; Dp 6: Maltohexaose; Dp 7: Maltoheptaose e Dp >7: dextrinas (Dp = grau de

polimerização > 7).

Fonte: Surmely et al., (2003).

KgAMG 300 L

A AMG é uma amiloglicosidase de grau alimentício, produzida a partir de uma cepa selecionada de

Aspergillus niger. A enzima hidrolisa as ligações α-1,4 e α-1,6 do amido liquefeito. Durante a hidrólise,

eliminam-se gradualmente as unidades de glicose da extremidade não redutora do sacarídeo. A

Page 28: Cap 23 Tiquira

velocidade de hidrólise depende do tipo de ligação e do comprimento da cadeia. A AMG é recomendada

para sacarificação do amido para produção de glicose. A ficha técnica desta enzima é:

Aplicações:

Indústria alimentícia: açúcares, álcool, bebidas e cerveja;

Indústria de fermentação: vitaminas, aminoácidos, antibióticos, etc.;

Indústria de fermentação.

Características:

Aparência: Líquido não viscoso de grau alimentício;

Cor: marrom claro;

Densidade: 1,2 g mL-1

.

Propriedades segundo o fornecedor:

Atividade: 120 AGU g-1

. A AMG é disponível com atividades de 300 e 100 AGU g-1

. (1

AGU: concentração de enzima que hidrolisa um micromol de maltose por minuto, segundo o padrão da

Novozymes A/S).

Parâmetros ótimos:

Potencial hidrogeniônico (pH): 4,00 a 4,50;

Temperatura: 58 a 70 ºC;

Livre de atividade transglicosidase.

O aumento do DE inicial para uma determinada concentração enzimática, em função do tempo,

com 35 % de amido e temperatura de reação de 60 °C é apresentado na Fig. 12.

Page 29: Cap 23 Tiquira

Figura 12. Evolução do DE com o tempo de reação para amido (35 % p v-1

) a 60 °C, para duas

concentrações da enzima AMG.

Fonte: Surmely et al., (2003).

A atividade da enzima AMG permite obtenção de DEs maiores em relação às enzimas descritas

anteriormente, o que explica sua recomendação para produção de glicose. A evolução do DE é similar

entre as duas concentrações de enzimas, com uma tendência à estabilização depois de 4 horas.

A Fig. 13 apresenta o perfil dos carboidratos do amido hidrolisado. Os oligossacarídeos Dp1

(glicose) e Dp2 (maltose) são predominantemente produzidos. Neste caso, a duplicação da concentração

da enzima alterou o perfil do hidrolisado. Com 2 mL Kg-1

predominaram glicose e maltose e os teores de

oligossacarídeos intermediários (Dp3 a Dp6) foram menores que com a metade da concentração. Os

teores de dextrinas Dp>7 foram apenas 8 % maiores com a quantidade maior de enzimas.

Page 30: Cap 23 Tiquira

Figura 13. Perfil de hidrólise de amido (35 % p v-1

) incubada com duas concentrações da enzima AMG

por 2 horas, com temperatura de 60ºC. Legenda: Dp1: Glicose; Dp2: Maltose; Dp3: Maltotriose; Dp4:

Maltotetraose; Dp5: Maltopentaose; Dp6: Maltohexaose; Dp7: Maltoheptaose e Dp>7: dextrinas (Dp = de

grau de polimerização).

Fonte: Alvarez (1997).

Com a substituição do crescimento dos bolores pelo uso de enzimas comerciais, torna-se possível

prever que a liquefação se completaria em 60 minutos, tanto com a Thermamyl como com a BAN, nas

concentrações propostas. O pH ideal para ação é o mesmo pH natural do tecido raiz da mandioca. A

temperatura ideal para a Thermamyl é de 90 a 105 °C, próprio da fervura, mas para a enzima BAN pode-

se usar temperatura menor, de 70 a 80 °C.

A liquefação pode ser feita concomitante com a gelificação do amido. A sacarificação com a AMG

estaria completa em 2 horas, ganhando em tempo e padronização, o que se refletirá em melhoria de

qualidade e de eficiência. Neste caso, o pH deve ser ajustado entre 4,00 e 4,50 e a temperatura ideal é

obtida apenas deixando o mosto resfriar.

Uma vez terminada a mosturação, a suspensão de massa ralada de mandioca deve ser diluída

com água potável para 12 a 14 °Brix, valores adequado para que ocorra o processo fermentativo

utilizando fermento comercial na forma prensada ou seca, tipo o utilizado em padarias. Com esse ajuste

é mais difícil ocorrer inibição da levedura pelo teor de açúcares ou de etanol. Em seguida o mosto deve

ser fervido para desativar as enzimas, o que reduz em muito a contaminação e garante uma fermentação

vigorosa, rápida e com elevado rendimento.

Na fase de fermentação, deve ser adicionado cerca de 10 gramas de levedura em tablete (úmida)

por litro de mosto. A levedura seca conserva-se melhor, entretanto, para ser usada primeiramente deve

ser ativada por duas horas em água morna com açúcar. A levedura pode ser reutilizada, mas para isso

deve-se recuperar do fundo da dorna de fermentação e tratada com ácido a pH 2,00 a 3,00, por duas

horas, depois deve ser lavada com água e novamente utilizada. Mas é preciso levar em conta que estará

Page 31: Cap 23 Tiquira

mais diluída. O tratamento com ácido tem como função eliminar as leveduras fracas e bactérias

contaminantes.

Ao final da fermentação a filtragem do mosto é obrigatoriamente feita para evitar que o depósito

queime no fundo do destilador. Essa filtragem é indicada apenas antes da destilação, para preservar as

condições assépticas do processo decorrentes da fervura final.

Em pesquisa realizada pelos autores a filtração do mosto realizada com tecido limpo e esterilizado

foi realizada em dois momentos, para fins de comparação. Quando a filtração foi realizada logo após a

hidrólise enzimática, seguido pela inoculação com levedura a fermentação seguiu até a atenuação a 6

°Brix e apresentou maiores teores de açúcares solúveis (34g.L-1

) quando comparado à filtração apenas

antes da destilação (32g.L-1) proporcionando maior rendimento final de tiquira a 45°INPI. O único

problema que decorre desta filtragem é que a recuperação das leveduras fica prejudicada uma vez que

saem juntamente com a borra na filtragem. Neste caso, a borra pode ser lavada para recuperar a

levedura, depois deve ser decantada, lavada e tratada. Com a filtragem antes da destilação é gerado um

único resíduo sólido, uma borra contendo as cascas, fibras e restos de leveduras que pode ser usada em

alimentação animal.

3.4 Destilação

Na literatura, há relatos do uso de destiladores de cerâmica pelos índios sul-americanos.

Entretanto o processo mais usado é o da cachaça de cana, onde Chuzel e Cereda (1995) relatam o uso

de alambiques de cobre para evitar o mau cheiro e sabor. Para evitar que os resíduos queimem no fundo

do alambique, o fermentado deve ter sido filtrado antes. Outra solução é aquela de evitar o contato direto

da cuba do alambique com o fogo, usando uma camisa de vapor. Com isso é possível aumentar a

temperatura sem risco e reduzir o tempo de destilação. A partir de 100 litros de mosto fermentado, é

possível destilar 15 a 20 litros de tiquira pelo processo tradicional, com grau alcoólico de 54 a 56 °INPI,

com odor agradável que parece com a vodca, gim ou com genebra.

A destilação da tiquira é feita em alambique simples (Fig. 7), portanto, através de processo

descontínuo. Independentemente do modo de aquecimento da caldeira do alambique, a destilação deve

Page 32: Cap 23 Tiquira

ser conduzida de forma branda, sem pressa, devendo-se identificar e separar as frações de cabeça,

coração e cauda. Na fração “cabeça”, a primeira a sair do destilador, estão presentes os componentes

mais voláteis que o etanol, entre eles os ésteres e os aldeídos. Na fração “cauda”, a última a deixar o

alambique, há os componentes menos voláteis que o álcool etílico, entre eles os álcoois superiores

(fúsel). Tanto a cabeça como a cauda devem ser separadas e destiladas na partida seguinte. A parte

nobre da destilação é constituída pelo coração, que é pobre de impurezas de cabeça e de cauda. Esta é

a fração que deve ser aproveitada para a produção da tiquira (Venturini Filho e Mendes, 2003).

Segundo Polastro et al., (2001), as tiquiras apresentaram concentrações médias de aminoácidos,

superiores às das aguardentes de cana. Como os aminoácidos e a ureia não são voláteis nas condições

em que a destilação da aguardente é efetuada, a sua presença nos destilados só pode ser explicada por

arraste ou por contaminação do produto após a sua produção.

Como a obtenção da tiquira é basicamente artesanal e submetida a um controle técnico inferior ao

da cachaça, deve-se esperar que a contaminação durante a destilação da tiquira seja maior. Assim, um

controle mais eficaz do processo de destilação poderá reduzir ou mesmo eliminar a presença de ureia e

aminoácidos nos destilados.

Figura 7. Alambique de destilação simples.

Fonte: Venturini Filho e Mendes (2003).

1. Curcúbitas ou caldeira 6. Descarga de vinhaça

2. Capitel, dolmo ou elmo 7. Válvula igualadora das pressões

3. Alonga ou tubo de condensação 8. Saída de destilado

4. Condensador 9. Entrada de água

5. Entrada de vinho 10. Saída de água

Page 33: Cap 23 Tiquira

Cabe frisar a técnica adotada no Maranhão para estabelecer a graduação alcoólica, muito peculiar

como é a própria técnica de fabricação. Consiste em trocar de recipiente e passar de um para outro. O

teor de espuma e duração desta são considerados fatores determinantes da graduação alcoólica, o que

determina uma graduação dependendo do prático fabricante, entre 48 e 54 ºINPI, portanto, levemente

mais forte se comparado com as tradicionais aguardentes de 38 ºINPI. Não é vantagem vender a tiquira

com teor alcoólico superior ao estabelecido pela ANVISA porque o produtor perde em volume do produto.

Após cada destilação, o alambique é lavado para retirada dos resíduos da pasta que acompanha o

mosto a ser destilado. A medida de volume utilizada é a lata, recipiente de 20 litros utilizado como medida

comercial. A comercialização da tiquira é feita por intermédio de atravessadores que a revendem nas

cidades turísticas do Maranhão (TIQUIRA, 2004). Veja se da para substituir pela citação do livro

A destilação deve ser feita sob as melhores condições disponíveis, neste caso, o rendimento

teórico esperado é aquele citado por Venturini Filho e Mendes (2003) para a mandioca, que seria de

aproximadamente 240,59 litros por tonelada de raízes.

3.5 Controle de qualidade e conservação

Furtado et al., (2007) abordam a necessidade do controle de qualidade da tiquira e de bebidas

semelhantes, relacionando a problemática de íons metais e cianeto residual nas aguardentes.

Em bebidas alcoólicas ainda não existe limites de referência de cianeto, entretanto o limite máximo

fixado pela Organização Mundial da Saúde para ingestão é de 10 mg Kg-1

de massa corpórea. Ou

coloque os autores, sem data Brito e Cereda (2012) avaliaram o teor de cianeto durante as etapas do

processamento moderno na fabricação de tiquira. Os valores estão dispostos na Tab. 4.

Os autores relatam que na etapa de preparo do mosto com a trituração de raízes de mandioca (cv

Fécula Branca) em água, o teor de cianeto foi de 55,6 mg L-1

. Com o tratamento enzimático com

Thermamyl o conteúdo foi reduzido a 8,82 mg CN L-1

. Na terceira etapa, com ajuste do pH e da

temperatura para o tratamento com enzima sacarificante AMG, o teor de cianeto reduzido a 5,41 mg Kg-1

.

Page 34: Cap 23 Tiquira

Após o processo fermentativo de 24 horas, quando o mosto foi destilado em alambique de cobre, a

tiquira apresentou concentração de 1,98 mg L-1

.

Tabela 4. Valores de concentração (mg CN L-1

) de cianeto em tiquira destilada e bidestilada.

Preparo do

Mosto

Hidrólise

Thermamyl

Hidrólise

AMG

Tiquira

Destilada

Tiquira

Bidestilada

Repetição mg CN- L

-1

1 55,50 ± 0,11 8,87 ± 0,10 5,36 ± 0,11 1,96 ± 0,05 0,41 ± 0,00

2 55,71 ± 0,11 8,87 ± 0,10 5,36 ± 0,11 1,96 ± 0,05 0,41 ± 0,00

3 55,71 ± 0,11 8,87 ± 0,10 5,36 ± 0,11 1,96 ± 0,05 0,41 ± 0,00

4 55,71 ± 0,10 8,67 ± 0,10 5,57 ± 0,11 2,06 ± 0,05 0,41 ± 0,00

Média 55,66 8,82 5,41 1,98 0,41

CV% 0,18 1,13 1,94 0,02 0,00

Fonte: Brito e Cereda (2012)

Quando avaliada a bi-destilação, os teores foram ainda mais baixos, em torno de 0,4 mg L-1

. Os

autores lembram que estando presentes as enzimas responsáveis pela hidrolise da linamarina nas

primeiras etapas do processamento, os cianoglicosídeos liberam HCN, reduzindo os teores de cianeto

das amostras, que se perderam por volatilização. Essa redução foi significativa e nestas condições não

há riscos de intoxicação pelos íons remanescentes.

Entretanto, se não há risco de intoxicação diretamente com o radical cianeto, há relatos este ainda

pode estar envolvido em outras reações químicas, principalmente na formação de carbamato. Segundo

Andrade Sobrinho et al. (2002), o carbamato de etila (EtOCONH2) ou uretana é um composto

potencialmente carcinogênico. Este composto é formado naturalmente em alimentos fermentados como

pão, iogurte, vinho, cerveja, saquê (OUGH, 1976, citado por ANDRADE SOBRINHO et al., 2002). Ocorre

principalmente em bebidas fermentadas e destiladas, de origem estrangeira, como uísque, rum, vodca,

graspa ou nacional, como na cachaça (NAGATO et al. 2000). A tiquira foi bastante estudada por Andrade

Page 35: Cap 23 Tiquira

Sobrinho, Boscolo e colaboradores, para quem a presença deste componente pode ser potencialmente

tóxico.

Segundo Lima-Neto e Franco (1994) citados por Andrade Sobrinho et al., (2002), o Brasil é um dos

maiores produtores de destilados alcoólicos do mundo. Para Lawrence, Page e Conacher (1990), citados

por Andrade Sobrinho et al., (2002), é muito importante o conhecimento dos níveis de ocorrência de uma

substância potencialmente carcinogênica como o carbamato de etila nos destilados, pois, além dos

aspectos ligados à saúde pública, a sua presença em concentrações superiores a 0,150 mg L-1

constitui

também uma barreira para exportações para a Europa e América do Norte.

As amostras de tiquira analisadas pelos autores apresentaram teor médio de carbamato de etila

(2,4 mg L-1

) muito superior ao da cachaça. Observou-se que as amostras de tiquira com a concentração

de carbamato de etila inferior a 0,65 mg L-1

apresentaram graduação alcoólica de 28 % Vol., graduação

esta bem abaixo do mínimo especificado pelo Ministério da Agricultura e do Abastecimento (MINISTÉRIO

DA AGRICULTURA, 2004), que é de 38 % volume.

Vários autores citam as vias possíveis para a formação de carbamato de etila nas bebidas

destiladas, geralmente envolvendo a reação entre o etanol e precursores nitrogenados. Entre os

precursores nitrogenados, Zimmerli e Schlatter (1991) citam a ureia, Lawrence, Page e Conacher (1990)

relatam o fosfato de carbamila e Cook, McCaig, McMillan e Lumsden (1990) citam o cianeto, detalhando

que este último é considerado um precursor de carbamato de etila, durante e após o processo de

destilação (Andrade Sobrinho et al., 2002).

Andrade Sobrinho et al., (2002) citando Lawrence, Page e Conacher (1990) lembram que o

Canadá, através do Health and Welfare Department, em 1985, estabeleceu os limites máximos de teores

de carbamato de etila para bebidas alcoólicas em 0,030 mg L-1

para vinhos; 0,100 mg L-1

para vinhos

fortificados, 0,400 mg L-1

para licores e 0,150 mg L-1

para bebidas destiladas. Estas são até o momento

as únicas normas mundiais específicas sobre o assunto, sendo um referencial para os EUA e para a

Comunidade Europeia.

Page 36: Cap 23 Tiquira

Em função das baixas concentrações em que se encontra o carbamato de etila nas bebidas

alcoólicas e da baixa sensibilidade que alguns detectores apresentam, os procedimentos analíticos são

morosos e mais susceptíveis a erros. Assim, a cromatografia a gás acoplada à espectrometria de massas

(GC-MS) torna-se muito conveniente para a determinação de carbamato de etila em bebidas destiladas

(Andrade Sobrinho et al., 2002).

Andrade Sobrinho et al. (2002) analisaram bebidas destiladas na determinação de carbamato de

etila, além de considerar fatores ligados à região, tipo de destilação, coloração da embalagem e tempo de

envelhecimento. Segundo os autores, foram analisadas em duplicata 126 amostras de aguardente de

cana, sendo 63 da região Sudeste, 39 da Nordeste, 22 da Sul e 2 da Centro-Oeste, bem como 37

amostras de tiquira, todas provenientes do Estado do Maranhão. Foram também analisadas 21 amostras

de cachaças envelhecidas de reservas pessoais de produtores de aguardente de cana. Em alguns casos,

mais de uma amostra de uma mesma cachaça comercial foram analisadas.

Os resultados obtidos por Andrade Sobrinho et al., (2002) mostram que, nas 126 amostras de

cachaça analisadas, o teor médio de carbamato de etila foi 0,77 mg L-1

, variando de 0,013 a 5,7 mg L-1

.

Apenas 21 % das amostras de cachaça analisadas apresentaram teores 0,150 mg L-1

, valor considerado

internacionalmente aceitável. Os autores encontram variações de carbamato também para as cachaças

de diversos estados, de 0,44 mg L-1

nas amostras provenientes do Ceará a 1,00 mg L-1

nas provenientes

de Minas Gerais, não sendo portanto apenas um problema da tiquira. Os autores esclarecem que o teor

de carbamato de etila depende da disponibilidade de seus precursores na matéria-prima processada e do

processo de produção.

Comparando a destilação em alambique com coluna contínua, os autores constataram que os

teores médios de carbamato de etila nas amostras destiladas em alambique e coluna foram de 0,63 e

0,93 mg L-1

, respectivamente. Para os autores, isto provavelmente é consequência não apenas do

sistema de destilação em si, mas também da natureza do material utilizado na confecção dos aparelhos

destiladores. Os alambiques, em sua grande maioria são construídos em cobre, enquanto as colunas são

construídas em aço inoxidável. Ainda segundo os autores, o cobre dos alambiques pode favorecer

consideravelmente a formação de carbamato de etila, uma vez que o ácido cianídrico, não sendo fixado

Page 37: Cap 23 Tiquira

na coluna (parte ascendente do fluxo) atinge o condensador, complexando-se com os íons Cu+2

originados da corrosão do condensador pelos vapores ácidos da bebida. Através da redução do Cu+2

a

Cu+1

e com a formação de cianogênio, seguida de seu desproporcionamento, ocorre a formação de íons

cianato (Beattie, Polyblank, 1995). Segundo Taki et al., (1992), citados por Andrade Sobrinho et al.,

(2002), os íons cianato por reação com etanol produzem o carbamato de etila.

Quando o cobre é empregado na parte ascendente do fluxo, como ocorre nos alambiques, é

esperado que ocorra uma fixação de cianeto (MACKENZIE; CLYNE; MACDONALD, 1990 citados por

ANDRADE SOBRINHO et al., 2002), com a formação de compostos, tais como CuCN, Cu(CN)2,

Cu2(CN)3-, Cu3(CN)4

-, diminuindo a concentração de cianeto no destilado (BOSCOLO, 2001 citado por

ANDRADE SOBRINHO et al., 2002) e, consequentemente, reduzindo o teor de carbamato de etila.

Embora autores considerem que a radiação luminosa em vasilhames claros (transparentes) ou escuros

(âmbar e verde) possa exercer influência na formação de carbamato de etila após a destilação,

favorecendo a oxidação do cianeto a cianato e, assim, formando carbamato de etila. Porém os autores

Andrade Sobrinho et al., (2002 não encontraram diferenças significativas para as cachaças analisadas.

Tal resultado indica que a formação de carbamato de etila após o engarrafamento, se ocorrer em

proporções consideráveis, é independente da radiação luminosa incidente sobre a bebida. Também não

foi encontrada correlação do tempo de envelhecimento da cachaça e o teor de carbamato de etila.

Em amostras envelhecidas analisadas, o teor médio de carbamato de etila foi de 0,69 mg L-1

,

variando de não detectado (N.D.) até 2,6 mg L-1

, enquanto para as amostras não envelhecidas a

concentração média foi de 0,87 mg L-1

, variando de 0,04 a 5,7 mg L-1

. Estas informações sugerem que a

formação de carbamato de etila a partir de seus precursores deve ocorrer principalmente após um curto

intervalo de tempo depois da destilação. Em estudo anterior (ARESTA; BOSCOLO; FRANCO, 2001),

investigou-se a correlação entre o teor de carbamato de etila em cachaças e a presença de alguns de

seus precursores, como ureia, cianeto e aminoácidos. Apenas para o íon cianeto foi possível observar

uma tendência à correlação positiva.

Por ser o carbamato de etila uma substância de potencial carcinogênico, esses resultados indicam

a necessidade urgente de alterações no processo de produção de aguardente de cana e tiquira, tanto

Page 38: Cap 23 Tiquira

para eliminar esse problema de saúde pública, bem como para o enquadramento destes produtos nos

padrões internacionais. Um fato importante que deve ser realçado é que esses resultados referem-se às

bebidas disponíveis no mercado. Somente o acompanhamento da bebida ao longo do processo de

produção e armazenagem irá permitir uma melhor avaliação da gênese do carbamato de etila em

cachaças e tiquiras (ANDRADE SOBRINHO et al., 2002).

Além do cianeto, também a ureia é considerada precursor de carbamato de etila. Segundo Polastro

et al., (2001), foram utilizados métodos colorimétricos na investigação da presença de íon amônio, ureia e

aminoácidos em 51 amostras de aguardente de cana-de-açúcar (cachaça) e em 9 amostras de tiquira. As

nove amostras de tiquiras, todas sem marca registrada, eram oriundas do Estado do Maranhão. Os

resultados das análises são apresentados na Tab. 5.

Os teores médios de íon amônio encontrados foram semelhantes para as aguardentes-de-cana

(0,013 mmoles L-1

) e de mandioca (0,010 mmoles L-1

). As tiquiras apresentaram teores médios de

aminoácidos (0,290 mmoles L-1

) e ureia (1,45 mmoles L-1

) superiores aos da aguardente de cana:

0,093mmoles L-1

e 0,316 mmoles L-1

, respectivamente. Foi possível identificar e quantificar íon amônio,

ureia e aminoácidos nas amostras de aguardente de cana e de tiquira. Os resultados obtidos indicam que

as tiquiras apresentam concentrações médias de ureia e aminoácidos superiores aos das aguardentes de

cana, ao passo que os teores médios de íon amônio são equivalentes nas duas bebidas. A presença

indesejável desses compostos nos destilados é provavelmente devida a falhas relacionadas ao processo

de destilação. As variações dos teores de ureia e íon amônio, em função das regiões produtoras, podem

ao menos em parte serem explicadas pela da não-padronização da adição das fontes de nitrogênio ao

mosto.

Tabela 5. Valores de concentração (mmoles L-1

) de ureia, íon amônio e aminoácidos em tiquira.

Amostras de tiquiras Amônia Ureia Aminoácidos

1 0,015 2,52 0,008

2 0,013 1,42 0,175

Page 39: Cap 23 Tiquira

3 0,014 1,42 0,514

4 0,015 1,42 0,117

5 0,006 1,42 0,233

6 0,004 1,67 0,387

7 0,004 2,07 0,131

8 0,001 0,92 0,579

9 0,014 0,15 0,470

Média 0,010 1,45 0,290

Fonte: Polastro et al., (2001).

Para as características sensoriais, o dimetilssulfeto é relatado como causador de aroma

desagradável em bebidas alcoólicas. Segundo Cardoso et al., ( 2004), foi possível quantificar

dimetilssulfeto em bebidas alcoólicas por cromatografia. Foram analisadas 60 amostras, assim

especificadas: 22 de cachaça, 8 de tiquira, 7 de graspa, 8 de uísque, 9 de brandy, 10 de vodca, 4 de rum

e uma de tequila. Todas as amostras de tiquira foram obtidas no Estado do Maranhão. As amostras de

cachaça exibiram a maior concentração de dimetilssulfeto (mediana de 3,16 x 10-4

mol L-1

), seguidas

pelas amostras de graspa (mediana de 1,45 x 10-4

mol L-1

). Apenas uma amostra de tiquira apresentou

teor de dimetilssulfeto de 9,66 µmol L-1

, na faixa de concentração de sensibilidade do método (8*10-9

mol

L-1

).

Os autores explicam a presença de elevados teores de dimetilssulfeto nas aguardentes analisadas

pela presença de traços de cobre nas colunas de destilação de aço inoxidável, mas neste caso é difícil

explicar os baixos teores nas tiquiras, que sempre são destiladas em alambiques de cobre. Os autores

destacam que, embora a tiquira seja produzida em condições de controle de qualidade deficiente em

relação às outras bebidas alcoólicas, exibiu baixos teores de dimetilssulfeto, mesmo quando comparada

com bebidas internacionais.

Page 40: Cap 23 Tiquira

Embora haja pequenas diferenças no destilador, o uso de cobre na construção do aparelho com

propósito de reduzir o teor de dimetilssulfeto em bebidas alcoólicas é uma prática muito difundida e não

pode explicar as diferenças que foram observadas entre a tiquira e as outras bebidas. Provavelmente, as

diferenças de teor de compostos sulfurados nas matérias-primas de elaboração do mosto para cachaça

(caldo de cana), rum (melaço) e tiquira (massa ralada de mandioca), assim como as diferenças de

populações microbianas desenvolvidas durante o processo de fermentação colaboram para com os

resultados obtidos. O cheiro de repolho característico do dimetilssulfeto pode ser facilmente identificado

ao abrir uma garrafa fechada, desde que em teores maiores que 8*10-7

mol L-1

. Os autores propõem,

como forma de evitar teores elevados de dimetilssulfeto, usar cobre apenas na parte ascendente do

destilador.

Quanto à coloração azul de alguns destilados, principalmente de mandioca, a informação é que

esta é devida à presença de óxido de cobre, que é extraído durante a destilação, como resultado de

acidez elevada do vinho. Assim, isto pode ser resolvido utilizando-se aparelhos de destilação

(alambiques ou colunas) totalmente em aço inoxidável, inclusive condensadores e resfriadeiras. No caso

dos alambiques que são totalmente de cobre, seria interessante que, antes de se iniciar o trabalho, nos

primeiros dias de safra, ferver soda (0,5 %) do corpo do destilador por aproximadamente meia hora. Em

seguida, ferver somente água, até que o condensado não tenha mais soda e o teste com fenolftaleína

seja negativo, ou seja, deve se apresentar incolor.1

3.5 Envelhecimento e armazenamento

Em razão do teor alcoólico a conservação da tiquira deverá ser equivalente ao das demais bebidas

alcoólicas destiladas. O envelhecimento é sempre uma opção de valorização da bebida, mas na atual

situação, a tiquira ainda está longe de ser considerada uma bebida a ser envelhecida. Para que isso

ocorra ainda há necessidade de produzi-la comercialmente de forma estável.

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Page 41: Cap 23 Tiquira

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