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Augusto Bobone FOTO-RADIOGRAFIAS 1896 organização e texto Margarida Medeiros texto António Maria Reis Pereira DOCUMENTA

Bobone Foto Radiografias

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Augusto BoboneFOTO-RADIOGRAFIAS

1896

organização e texto

Margarida Medeiros

texto

António Maria Reis Pereira

DOCUMENTA

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Ver através: corpos transparentes, espaços visionáriosAugusto Bobone, a fotografia de Raios X e a sua dimensão fantasmagórica

“I do not wish to regard myself, nor yet to be regarded, in that bony light.”

Charles Dickens, Our Mutual Friend

O sonho de transcendência da visão empírica vem da Antiguidade, não como um sonhotécnico, mas filosófico. Em Platão encontramos conhecidas passagens sobre o sentido da visão,e uma série de significados diferentes para a palavra ver, sendo que o menos importante, oumais desprezado de todos, é o que vê apenas a superfície dos objectos concretos ou das suasimagens (simulacra), geradora de phantamas, ou conhecimentos ilusórios sobre objectos e en-tes. Para a Filosofia é reivindicada uma capacidade de ver noética, ou seja, que permite a visãode Ideias que estão para além do mundo dos sentidos. Num certo sentido pode dizer-se que aHistória da Filosofia é atravessada por esta obsessão com a transcendência da visão empíricanormal, facto que torna a visão, regra geral, numa alegoria de extrema importância.

Mas a ideia de ver através, no sentido empírico do termo, é textualmente apontada comoacontecimento noutros contextos, como a notícia, publicada no Mercure de France de Setem-bro de 1725, onde se dá conta de que existiria em Lisboa uma senhora com a capacidade dever através da superfície opaca. Nesse extenso artigo descreve-se o seu dom, que teria sido jáútil ao rei de Portugal [D. João V] na descoberta de linhas de água subterrâneas, necessá-rias à construção de um edifício1. Descrevem-se ainda os efeitos na visão do corpo humano,

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1 «Há uma senhora em Lisboa que tem verdadeiros olhos de lince: isto não é exagero; ela tem uma visão tão trespas-sante que descobre água na terra a qualquer profundidade; já fez, e continua a fazê-lo diariamente. Experiênciasque são úteis a amigos e a muitas outras pessoas. O que lhe tem valido muitos presentes: mais aquele que a honramais, e que ao mesmo tempo testemunha o facto, é que o Rei de Portugal, tendo necessidade de água para um

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Neste contexto de aceleração dos processos de replicação do real, no mesmo ano da des-coberta do cinema, surge uma nova tecnologia que atravessa a superfície das coisas, não nosentido de captar o que está longe da vista, ou que é pequeno demais para que esta o alcance,mas que permite ultrapassar a própria barreira da matéria. Trata-se da fotografia radiográfica,imagem que resulta da impressão em superfície emulsionada da imagem projectada pelosRaios X. Wilhem Röntgen, físico alemão especialista em raios catódicos observou, por acaso,trabalhando com o tubo de Crookes, um efeito de transparência proporcionado pelos mes-mos sobre os corpos opacos a certa distância e, ainda em Dezembro desse ano envia o artigo“On a new kind of ray: A preliminary communication”, para o Physical-Medical SocietyJournal de Würzburg. Saiu também, um mês mais tarde, no n.º 53 da revista Nature emJaneiro de 1896, sob o título “On a New Kind of Rays”.

As imagens provocadas pelos Raios X devolviam um écran de sombras onde apenas, noque diz respeito à representação dos corpos, se salientavam, no interior de contornos difusos,as matérias realmente opacas como os ossos (no caso dos membros do corpo humano) ou ma-teriais densos (no caso de matérias inorgânicas como o ferro ou a madeira). Objectos de vidro,por exemplo, surgiam com um aspecto translúcido e rostos humanos transformavam-se emcaveiras, uma vez expostos a essa espécie de radiações que ousava atravessar a carne e a pele.

A experiência do Raios X de Röntgen propagou-se rapidamente, extravasando largamenteo círculos científico onde nasceu (o campo da Física experimental) para encontrar utilizaçõessobretudo na Medicina, onde, quer na observação de fracturas, quer na ingestão de corposestranhos e, de sobremaneira, nas doenças pulmonares, se tornou uma ferramenta de diag-nóstico imprescindível.

Logo à data do seu anúncio público se produziram imagens luxuosas, como é o caso dasrealizadas por Joseph-Maria Eder e Edgar Valenta no mesmo ano de 18963, com 13 ilustra-

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dos quais não apenas a senhora consegue observar o funcionamento como neles detectardoenças, apesar de ser incapaz de as tratar2. Esta visão extraordinária esteve também associadaao magnetismo animal, teoria setecentista também conhecida por mesmerismo e, mais tardeàs crenças espíritas que se centraram nas possibilidades de ver e ouvir para além das limitaçõesnaturais dos sentidos.

Todas estas teorias foram, no entanto, confrontadas com o positivismo nascente nasprimeiras décadas do século XIX, ao qual se aliaria a invenção da fotografia. Filha do na-turalismo, pictórico e científico, a fotografia instala-se na cultura oitocentista com o seuespantoso realismo, respondendo a uma prioridade de visionamento diferido do obser-vado, e incentivando a um mapeamento exaustivo da realidade observável; associada a ou-tros instrumentos científicos, como o telescópio e o microscópio, a fotografia ajuda aindaa disseminar mundos observáveis fora da experiência sensorial comum, introduzindo todoum imaginário sobre o infinitamente pequeno e o infinitamente longínquo, que agora setornam acessíveis e distribuídos de mão em mão. No final do século XIX, com a invençãodo cinema, vem instalar-se o «realismo total», apanhando, na superfície do visível, tambémo tempo e o movimento que, para André Bazin, estava há muito inscrito no imaginárioocidental.

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novo edifício, e tendo já mandado procurá-la sem resultado, esta mulher descobriu várias fontes na sua presença,sem outro recurso do que o dos olhos. Sua Majestade Portuguesa atribuiu-lhe uma pensão, e honrou-a com a Vestee Cruz de Cristo para aquele que a desposar, e à mesma o título de Dona.» In Mercure de France, Setembro, 1725,p. 2121.

2 «É pena que não exerça Medicina; porque, o que é mais surpreendente, ela também vê através do corpo humano;é verdade que só acontece às vezes e quando os poros estão menos serrados; ela vê o sangue circular, a digestão afazer-se […] e, enfim, todas as partes que o compõem e que conduzem a máquina e as suas diversas operações. Elatambém descobre as doenças que escapam ao saber e à experiência dos mais hábeis médicos que na verdade pode-ríamos chamar de cegos comparados com ela: consultam-se mais depressa do que a eles. Repito-o: é mesmo penaque não seja capaz de curar as doenças que descobre. Muitos maridos lhe levam as mulheres e muitas mulheres quetemem os efeitos funestos da libertinagem dos maridos, usam da mesma precaução.» Ibidem, p.1212.

3 J.M. Eder und E.Valenta, Versuche uber photographie mittelst der Röntgenschen strahlen von Regierungsrath (Viena:R. Lechner, 1896).

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Este movimento, no qual Bobone participou, para olhar para a realidade ra-diograficamente parece inscrever-se numa cultura de fim-de-século onde, ao po-sitivismo radical promovido pelo pensamento científico, acompanhado pelo rea-lismo da fotografia e do cinema, se alia um interesse por outras dimensões,menos palpáveis, da realidade. Neste sentido, a recepção dos Raios X parece reu-nir em si a tensão que atravessou o século — entre positivismo e misticismo.

O carácter estético da aproximação ao interior dos corpos é evidente, sobretudose atendermos ao facto da sua organização em álbuns, ou da sua venda ao grandepúblico, se assemelhar à de outros álbuns fotográficos, mais familiares, ou deviagens, e de se aproximar portanto das práticas sociais mais comuns da fotogra-fia. A tradição dos álbuns é contemporânea do aparecimento da fotografia, co-meçando logo nas Excursions Daguérreennes de Nöel Lerebours (1840-41) e con-tinuando com o importante marco de 1844 que foi a publicação, por HenryFox Talbot, de The Pencil of Nature.

Nesse sentido, a concepção do álbum luxuoso de Eder e Valenta, como a caixade Raios X de Augusto Bobone, vêm inscrever-se nesta crescente e obsidiante cul-tura de acessibilidade ao real através da imagem mecânica, que agora surge menos

definida, menos realista, mas revelando ao mundo uma realidade simultaneamente brutal efascinante. O que se produz agora já não são imagens do que se poderia ter visto, do queestaria eventualmente acessível a uma deambulação mais sistemática pelo mundo. O que ace-demos com estes álbuns é a uma colecção de imagens do interior das coisas, que se aproximamais do ideal de imagem procurada por Marey, com as suas cronofotografias, ou imagens defluidos eléctricos. O mesmo afirmava que, diferentemente do cinema, que procurava repro-duzir o visível, ‘a ele lhe interessava captar o invisível’ (apud Campany, 2008: 2).

É a este ‘invisível’ que agora se acede com os Raios X, com a criação de imagens que atra-vessam a matéria opaca e se constituem como uma espécie de ‘sombras’ da caverna de Platão.Os seus contornos são difusos, a sua leitura dependendo, em grande parte, de uma certa11

ções radiográficas excelentemente impressas, encadernadas num grande álbum decapa dura forrada a pano preto. As imagens percorrem assuntos tão diversos comopés e mãos humanos, peixes vermelhos, uma cobra, um sapo, etc.

A recepção dos Raios X em Portugal também não se fez esperar, sendo que emFevereiro do mesmo ano, após uma primeira experiência em Coimbra com o Prof.Teixeira Bastos, o Prof. Vírgilio Machado da faculdade de Medicina de Lisboa aliar--se-ia ao fotógrafo Augusto Bobone (1852-1910), fotógrafo com estabelecimentopróprio — na Rua Serpa Pinto — e também fotógrafo da Casa Real, emprestandoa este um aparelho para experiências com fotografia radiográfica. O resultado foi umasérie com temáticas muito semelhantes ao álbum de Joseph-Marie Eder e EdgarValenta, mas numa quantidade quatro vezes superior. Objectos e animais, assimcomo um crânio com bala, mãos e pés e, claro, várias mãos de senhora com e semanéis, que glosavam a primeira radiografia de Röntgen com a mão da sua mulherBertha, estão incluídas na caixa que editou. A caixa, ou álbum, contendo 48 pranchasfotográficas, apresentada à Academia das Ciências nesse mesmo ano. As imagenseram vendidas pela Parceria António Maria Pereira, por encomenda ou na livrariacom o mesmo nome na Rua Augusta, segundo anúncio da época. Toda esta aventuraé relatada pelo próprio na monografia que editou um ano mais tarde, e onde também explica,passo a passo, as condições de produção de cada uma das fotografias que podemos ver nestecatálogo4.

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4 Augusto Bobone, Raios X. Notas Praticas de Radiographia sobre as primeiras investigações feitas em Lisboa em 1896(Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1897). Cf. António M. Reis Pereira, Estudo do Impacto da Descoberta dosRaios X e das suas Aplicações Médicas em Portugal. Dissertação de Mestrado em Química, Nutrição e Saúde. Faculdadede Ciências da Universidade de Lisboa. Via http://repositorio.ul.pt/handle/10451/7932, último acesso em 24-5-2014.

Wilhelm Röntgen, Mão com anel, 18??.

Augusto Bobone, Mão de senhora, 18??.

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cultura popular, através de textos nos jornais e notícias, verdadeiras ou especulativas, que in-dicam a nova descoberta como motivo de espanto, curiosidade e temor.

A ideia de atravessamento proporcionada pelos Raios X, e a forma como a sua recepçãoambivalente atravessou as primeiras décadas do seu aparecimento é também exemplarmentedesenvolvida no livro de Thomas Mann, A Montanha Mágica, de 19215. A história conhe-cida de Hans Castorp, o herói do romance, é o pretexto para, frequentemente e ao longo dassuas setecentas páginas, a radiografia ser objecto de comentários que nos permitem com-preender os aspectos fantasmáticos a esta associados e a ambiguidade epistemológica que re-cai sobre estas imagens. Instalado de visita ao seu primo Joachim Ziemssen, internado no sa-natório de Davos, Castorp é aconselhado a usar também o termómetro da praxe, rotinaassociada a todos os internados, e com isso acaba por confirmar a ‘suspeita’ do médico, deque ele mesmo precisaria de ficar ali uns tempos.

O método de diagnóstico, é, nessa época, a radiografia e desde o início que o seu valorepistemológico é objecto de discussão, precisamente devido ao carácter indefinido, difuso,oferecido pelas suas imagens — ‘meras sombras’. A discussão e comentário do valor destasimagens ocupa o livro em diversos momentos da narrativa, e, em todos eles, o deslize metafó-rico da sua apreciação indica essa fantasmatização. O atravessamento que os Raios X fazem docorpo, revelando a superfície dos órgãos internos e expondo, por isso, partes do corpo nuncaantes visionadas, é motivo para deslocamentos e analogias com um atravessamento moral, ouemocional. Quando Castorp faz a sua radiografia no laboratório de radiologia do sanatório,Behrens, o médico, virando-se para o mesmo, diz: «…Vai receber uma cópia de graça, Cas-torp. Para que os seus filhos e netos possam ainda ver projectados na parede os mistérios doseu coração!» (Mann 1924, 247). E quando o médico convida Castorp a olhar para a radio-grafia do primo enquanto a realiza, chama a sua atenção para o mesmo órgão, provocando-

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habilidade profissional enquanto ferramenta de diagnóstico. Se estas imagens têm a proprie-dade ontológica de verdade de toda a fotografia, também a representam como algo próximodo fantasmagórico, muito perto mesmo das assumidas representações de eflúvios, auras di-gitais e outras representações do invisível de Hippolyte Baraduc, Bernard Luys e LouisDarget. O aspecto fantasmagórico do Raios X, ou pelo menos o seu aspecto etéreo, seduziuimediatamente os autores de imagens eflúvicas, que viram nos mesmos uma via para a legi-timação das suas ‘experiências’, já que os Raios X eram produzidos por cientistas de repu-tado mérito. É nesta linha de pensamento que os mesmos se apressaram a designar as suasimagens como produto dos Raios Y, tentando imitar também, terminologicamente, osRaios X (Chéroux et Altri, 2005).

Os Raios X foram, por outro lado, palco também de divertimentos no ramo do espetá-culo de massas e serviram de mote à produção de pequenas histórias em filme, como o deÉmile Cohl, Les Lunettes radiantes (1908). Fundamentalmente, a notícia dos Raios X veiocriar a expectativa fantasmática de um voyeurismo total, que ultrapassava progressivamenteas camadas superficialmente visíveis da realidade. Ao mesmo tempo que atravessava ocorpo, os Raios X sugeriam a promessa de atravessar paredes, vestuário e mesmo a mente,aparecendo como uma ferramenta simultaneamente óptica, psicológica, moral. A sua uti-lização na Medicina, cada vez mais intensiva e plural à medida que a tecnologia se aperfei-çoava, veio também popularizar o médium, sobretudo pela sua aplicação ao diagnósticopulmonar tão importante na viragem do século. Veio, sobretudo, aprofundar a Medicinacomo prática da exposição do corpo, de radical naturalização, devastação e secularizaçãodo humano, já que nem mesmo os mistérios do interior do organismo podiam, a partir deagora, permanecer discretos e íntimos.

Esta ferramenta fotográfica veio assim ao encontro de um imaginário de hiper-exposiçãoque se desenha no final do século XIX não apenas no campo da medicina, com a catalogaçãoe inventariação de corpos e de mentes, mas também na polícia. Hiper-exposição tão desejadacomo temida, como é visível nos ecos que o Raio X provoca na literatura da época como na 12

5 Esta relação foi também já estabelecida de forma acutilante no livro de José Van Dick, The Transparent Body:A Cultural Analysis of Medical Imaging (Washington, University of Washington Press, 2005), pp. 83-117.

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«A carne […] surgia-lhe carcomida, desfeita, reduzida a uma névoa rarefeita em que pai-ravam, escuros e à deriva, os ossos da sua mão direita, perfeitamente torneados, osten-tando, na falange do dedo anelar, o anel de sinete legado pelo avô, esse objecto bemsólido da Terra que serve de ornamento ao corpo humano, um corpo que está condenadoa desfazer-se para que o objecto, de novo liberto, possa passar para outra carne que o usedurante mais algum tempo» (Mann, 250).

Esta passagem permite-nos sublinhar claramente a forma como o atravessamento doscorpos, a sua exibição à transparência, introduz uma nova estética, simultaneamente uma es-tética do horror e uma estética voyeurista, que simultaneamente provocam atracção e repulsa,já que o exacerbamento da pulsão escópica traz consigo também, inevitavelmente, o fim daintimidade. E é essa intimidade que é aqui problematizada de forma ambivalente: no decor-rer do encontro entre Castorp e a sua amada Cláudia Cauchat, os dois trocam as pequenasradiografias dos seus pulmões que o médico fazia questão de oferecer, emolduradas, e Castorpusá-la-á no bolso interior do casaco, junto ao coração. Segundo José Van Dick, a imagem deRöntgen era também replicada com carácter sentimental: frequentemente as mulheres casadasfaziam questão de oferecer ao marido uma radiografia da sua mão com o anel de casamento,como manifestação romântica, até que os malefícios destas radiações começaram a ser divul-gados.

Eisenstein, no seu projeto Glass House, imagina uma história onde essa dimensão de-monstrativa e invasiva do olhar passa a constituir-se como elemento da trama, já que ahistória é passada numa casa toda feita de vidro, onde tudo é visto através de vidros trans-parentes. O cineasta, no guião desse projecto apenas escrito e nunca rodado, interpela di-rectamente a ideia de mostrar o que se vê ‘através de’ e usa a imagem dos raios de Röntgenna sua descrição: «O edifício transparente deverá parecer como uma pessoa atravessadapelos raios de Röntgen. O único objecto opaco na casa, o elevador (uma caixa negra de15

lhe um comentário interior: «Santo Deus, era o coração, era o coração honrado de Joachimque Hans Castorp estava a ver!» (Mann, 249).

Mas o estatuto de vaga sombra da imagem radiológica é o aspecto mais sublinhado nestarecepção ficcional. Trata-se apenas de uma sombra, fantasmagórica, mas uma sombra querevela, de forma definida, a fotografia de algo bem real: o esqueleto. Com a visão do esqueleto,outras confrontações realistas surgem, atestando simultaneamente o carácter apodíctico destegénero de fotografia que lhes apresenta, por contiguidade, a dura «fotografia» da finitude:«Examinou as manchas e linhas, o emaranhado de sombras no interior do tórax, enquantoque o outro espectador também não parava de observar a figura sepulcral de Joachim, a suaossada cadavérica, a carcaça descarnada, aquele momento escanifrado. Foi acometido de de-voção e pavor» (Mann, 249)6.

Mas é na passagem seguinte, ainda na mesma página, que Thomas Man reflecte mais di-rectamente o eco fantasmático da recepção dos Raios X, nomeadamente da popular imagemde Röntgen, a primeira divulgada ao mundo, da mão da sua mulher Bertha com um anel.Também em A Montanha Mágica essa imagem é apropriada, para um comentário de tonali-dade gótica. A visão da mão sob os Raios X, solicitada por Castorp ao médico Behrens, édescrita como «a visão da sua própria sepultura», e a «força da luz permitia-lhe ver, em ante-cipação, o processo futuro da decomposição», e nessa mão não falta o anel que se salientavatambém na mão de Bertha radiografada por Röntgen:

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6 Mas o estatuto epistémico dos Raios X, de verdade profunda desocultada, não é sempre claro fora dos círculoscientíficos e pragmáticos das suas aplicações e é no mesmo romance que o personagem Settembrini, farto de estarno sanatório e pretendendo ter alta a todo o custo (o que acaba por acontecer, mas sob a sua responsabilidade),põe em causa o valor destas imagens enquanto ferramenta apodíctica de investigação médica: «Sabia que às vezesa chapa fotográfica apresenta manchas que as pessoas pensam ser simples cavernas e que são simples sombras, en-quanto que, outras vezes, onde há verdadeiros focos não aparecem manchas nenhumas? Madonna, a chapa foto-gráfica! […] o senhor é um crítico e um céptico a toda a prova, disso não restam dúvidas! Se nem nas ciênciasexactas acredita!» (Mann, 225).

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vessamento do olhar pelo interior das coisas, com uma cultura do olhar que já não se con-tenta com superfícies, com velaturas, com opacidade.

Na sua análise do impacto da arquitectura moderna na vivência social, a autora parte deuma referência a um filme radiográfico de uma rapariga em fato de banho, que teria moti-vado o seguinte comentário: «Esta jovem, para quem de hoje em diante uma casa de vidro jánão deve ser causa de temores, ficará tranquilizada depois do exame das suas radiografias aosaber que está realmente de boa saúde.» (apud Colomina 2005: 12). A extraordinária refe-rência, a propósito dos Raios X, à vivência de uma casa de vidro, demonstra a associação,consciente, entre uma forma arquitectónica moderna e a recepção desta ferramenta utilizadano diagnóstico. Ambos, arquitectura de vidro e radiografia, respondem a uma nova formade inter-subjectividade, que passa pela possibilidade de exposição/exibição do interior docorpo como do espaço privado da casa. A relação entre casa e corpo, uma relação mítica, tãofundamental para a arquitectura (e para o desenho de arquitectura), parece aqui evidente,ultrapassando a dimensão elíptica, ou metafórica, que poderia ter tido no passado. A cons-trução do espaço pela arquitectura baseava-se até então numa clara oposição entre público eprivado: entre o espaço idealizado da catedral ou do palácio (espaços públicos) e o espaçoprivado da casa existia uma clara oposição.

Com essa arquitectura da transparência toda uma nova geografia intersubjectiva se de-senha, e muitos dos problemas imaginados por Eisenstein viriam a tomar expressão, aolongo do século XX e XXI, não apenas com a massificação da arquitectura moderna mas,também e sobretudo, com o banalização da vigilância sobre os indivíduos levada a cabopor instituições públicas e privadas, e para a qual a evolução das tecnologias da imagemteve fulcral relevância.

As ‘sombras’ que definiam os Raios X, na sua sinistra imprecisão como na sua cruezabrutal, inscreviam-se no mesmo grau de objectividade que as sombras fotogénicas criadaspor Talbot no início da fotografia: mostravam a crua realidade. Mas se estas últimas se ins-creveram na cultura visual centrada na urgência de mapear o visível, os Raios X, mostrando17

aço com luzes brilhantes que tudo vêem) parece-se com um osso ou comuma chave num bolso)»7.

Este filme, utopia nunca realizada de Eisenstein, explora o imaginárioda transparência e da exposição total, sendo que o argumento sustentariauma visão catastrofista e profética dessa mesma hiper-exposição, já que,no final, os personagens, ao tomarem conhecimento dessa exposição aque estão sujeitos, entram numa espécie de entropia social. É frequente,neste guião, o recurso à palavra radiografia a propósito do dispositivoconcebido para a filmagem: nesse edifício de vidro poderemos ver emtodas as direcções, e os desenhos que Eisenstein incluí no projecto mos-tram vistas de baixo para cima, de cima para baixo, em picado e contra-picado, dando a entender essa ideia de transparência total das acções dosindivíduos aos olhos dos outros. Para Antonio Somaini, estudioso de Ei-senstein, para além dos aspectos cinemáticos e de montagem, é toda uma alegoria dos ‘tem-pos modernos’ que Eisenstein procura construir. Esta forma de viver a interacção social empermanente estado de transparência, cujo desfecho é trágico e conturbado, parece ser umareacção à euforia da transparência instituída pela arquitectura moderna, de le Corbusier aGropius, Lloyd Wright e Mies van der Rohe, com as suas superfícies envidraçadas e a pro-messa de uma ‘vida transparente’.

Beatriz Colomina, historiadora e teórica da arquitectura, estabelece uma relação directaentre a invenção dos Raios X e os moldes da arquitectura moderna. As grandes superfíciestransparentes concebidas em vidro, os espaços abertos que permitem ao olhar atravessar emprofundidade de campo, estão directamente relacionados com esta fantasia moderna do atra-

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Desenho de Eisenstein para o projectoGlass House (1926-1930).

7 Cf. Antonio Somaini, «Utopies et dystopies de la transparence. Eisenstein, Glass House, et le cinematisme del’architecture de verre», Appareil, n.º 7, 2011, via http://revues.mshparisnord.org/appareil/index.php?id=1234. Apudidem, p. 96.

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uma colagem de radiografias do seu corpo, à escala de 1/1, com imagens de uma cartaastrológica, uma fotografia de uma cadeira e imagens de revistas de atletismo. Mas, fre-quentemente, é a própria ideia de radiografia mental, ou psicológica, que se desenvolve,e aí poderemos inscrever os ‘Screen tests’ de Andy Wharol, que entre 1964 e 1966 filma,até à exaustão, diversos personagens, em plano frontal e durante cerca de 1 minuto, umprocesso que visa, justamente, usar a câmara para ultrapassar camadas superficiais daapresentação do Eu.

O exercício das sombras e dos contornos vazios vem, entretanto, devolver explicita-mente às imagens o seu carácter espectral, aspecto com que Hans Castorp se debatia em

a Montanha Mágica quando olhava para as radiografias. Spectrum eratambém uma das características que Barthes, no seu A Câmara Clara as-sociava à ontologia fotográfica, dizendo que, se havia algo de ‘espectacu-lar’ na fotografia, ela tinha também sempre qualquer coisa de ‘regressodos mortos’. A solidez do esqueleto fornecia essa espectralidade à radio-grafia, proporcionando não apenas um deleite voyeurista mas tambémum espectáculo de assombração.

Mais recentemente, a textura e configuração da imagiologia médica éfrequentemente revisitada numa alusão a essa temática da assombraçãodo Eu, que a era digital mais não fez do que acentuar. É o caso da imagemda mão de Daniel Blaufuks em O Livro do Desassossego (1997), do auto-retrato radiográfico de António Júlio Duarte (Emotion, 2012) e outrascomposições que o mesmo criou com este processo.

O caso da artista brasileira Monica Mansour é particularmente inte-ressante; algum do seu trabalho faz-se a partir de radiografias, sendo o

seu suporte preferencial o celulóide, e criando imagens que se sobrepõem umas às outras nainstalação, com um efeito convocando o efeito de transparência semelhante ao da radiogra-fia (um pouco à maneira de Shades de Rauschenberg, de 1967). Usando não a radiografia19

as entranhas, o esqueleto, o ‘cadáver’, vêm inscrever-se numa outra urgência, a deatravessar a pele das coisas e de as expôr, despudoradamente, aos olhos de todos,inscrevendo-se também numa cultura marcada pela dissolução entre o público eo privado. Este imaginário do atravessamento das fronteiras da pele (do corpo edos objectos) vai encontrar, ao longo do século XX e XXI, sucessivas tematizaçõessobretudo no campo das artes visuais. A imagem de imprecisos contornos é tema-tizada por Man Ray, obliquamente, nas suas ‘solarizações’. E nos fotogramas, aque chamou rayogramas, cria imagens que, tomando o seu nome, são ao mesmotempo um piscar de olhos ao potencial surrealista da radiografia, já que os rayo-gramas, produto da colocação de objectos sob a luz, sem intervenção da câmara,acabam por se tornar imagens difusas e semi-abstractas, com uma aparência ‘ra-diográfica’.

O fascínio por esta imprecisão de contornos é, noutro contexto, exercitado porLourdes Castro no seu Herbier d’Ombres de 1972, onde à inscrição do contacto dopapel com as plantas alia o aspecto assombrado da sua imagem.

A mesma Lourdes Castro, especialista da sombra e das suas histórias, às quaisdedicou grande parte da sua obra, reiterou o tema da transparência e do esvazia-mento em diversos momentos do seu trabalho, quer nas sombras deitadas (borda-das em lençóis), onde apenas um contorno vazio se desenha, às sombras em plexi-glas, de cores fortes mas translúcidas (ex. Sombra projectada de Maurice Henry,1968). Ana Vieira, com a Sala de Jantar – ambiente (1971), convoca o tema da transparênciae da porosidade das fronteiras, quando constrói a sua casa/instalação com cortinas translú-cidas, a partir da qual se pode ver todo o interior, bem como figuras impressas noutros pa-nos translúcidos, encenando também, a partir de uma identidade fixa (a refeição, os horá-rios, a sociabilidade do jantar e os seus sons) uma outra que se dissolve, ou que procuradissolver os esquemas culturalmente herdados. Igualmente, nessa época em que se interro-gam os limites do corpo e da identidade, Robert Rauschenberg constrói Booster (1964), 18

William Kentridge, X-Ray Telephone, 1995.

António Júlio Duarte, Emotion, Inkjet print, 2012.

Lourdes Castro, Grand Herbierd’Ombres, 1972.

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mais, os objectos), optou-se por expor pela ordem pela qual foram apresentadas pelo próprioBobone e que o mesmo relata na sua monografia, deixando que associação livre possa fluirnum diálogo directo com a colecção.

Margarida Medeiros

Bazin, André (1945) O que é o Cinema?. Lisboa: Livros horizonte, 1993.Bobone, Augusto (1897)Campany, David (2008) Photography and Cinema. Londres: Reaktion Books.Colomina, Beatriz (2005) «Dupla exposição: uma arquitectura de Raios X», in Si(s)tu – revista de Cultura Urbana/Privacidade, n.º 5/6. Janeiro/Junho de 2003, pp. 12-37.

Mann, Thomas (1924) A Montanha Mágica. Lisboa: D. Quixote, 2010, 3.ª edição (trad. de Gilda Lopes Encarnação).Pereira, António Maria (2012) Estudo do Impacto da Descoberta dos Raios X e das suas Aplicações Médicas em Portugal.

Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Via http://repositorio.ul.pt/handle/10451/7932, último acesso em 24.5.2014.

Somaini, Antonio (2011)«Utopies et dystopies de la transparence. Eisenstein, Glass House, et le cinématisme del’architecture de verre», Appareil, n.º 7, 2011, via http://revues.mshparisnord.org/appareil/index.php?id=1234.

Van Dick, José (2005) The Transparent Body: A Cultural Analysis of Medical Imaging. Washington: University ofWashington Press.

Eder, Joseph-Marie e Edgar Valenta (1896) Versuche uber photographie mittelst der Röntgenschen strahlen von Regierungsrath.Viena: R. Lechner.21

mas o digitalizador (vulgo scanner), Claudia Fischer realizou um projecto, em 2007, sobreo visionamento das malas nos aeroportos. As imagens, a cores, mostrando interior das ba-gagens num terminal de aeroporto, são também um retrato íntimo, uma alusão à invasãoda privacidade introduzida pelas modernas tecnologias no quotidiano de cada um (O Pas-sageiro Transparente, Galeria Luís Serpa Projectos, 2006). Ou usando o desenho, poderemosconvocar ainda, de William Kentridge, X-Ray Telephone, de 1995, no qual, no grande planoda zona rasgada das costelas de um homem se instala um telefone de fio, supostamente de-tectado na radiografia que o desenho imita.

Muitos destes trabalhos, e referimos apenas uma pequena parte, reflectem o estado actualda investigação científica e os seus (não)problemas, convocando a forma como a culturacontemporânea, através de mecanismos racionais e poderosos (como os da ciência) perse-gue, sem parar, o sonho fantasmático, irracional, da visibilidade total do mundo e do outro.

É pois neste contexto contemporâneo, herdeiro da técnica e da matriz realista da foto-grafia, e sobretudo da sua estética, alimentada e disseminada pelas tecnologias do atravessa-mento da matéria, que a revisitação do espólio de radiográfico de Augusto Bobone se tornatão apelativa.

No projecto inical da exposição, no Museu da Electricidade desta colecção, previa-se aexposição dos originais, cujo exemplar único do conjunto pertence à Academia das Ciênciasde Lisboa. No entanto, a mesma Academia não foi de parecer favorável ao seu empréstimo.Com este contratempo de última hora foi necessário pensar uma montagem que apresentasseas reproduções digitais numa escala real, de facsímile. Apesar de os originais serem positivosimpressos em cartões, optou-se por uma impressão em duratrans iluminados, de modo acriar um efeito de translucidez que aproximasse o visitante da sensação provocada pela ra-diografia e jogando no facto de se tratar de um Museu da Electricidade que tem tambémuma vocação histórico-científica e didáctica. Por outro lado, em lugar de optar por uma se-lecção mais contemporânea, que sublinhasse a dimensão aparentemente desmaterializadados corpos vivos e selecionasse aqueles que mais se destacam à sensibilidade de hoje (os ani- 20

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29./30. Antebraço de homem com cárie nocúbito. Mão de homem, 32,3 x 39,5 cm[23,1 x 16,3 cm, cada]

31. Braço de homem, 36,2 x 30,2 cm [29,4 x 17,9 cm]

32. Mão de rapaz com 8 anos. Mão de meninade 9 anos, 38 x 31 cm [26,8 x 22,5 cm]

33. Atrofia numa perna de menina de 8 anos,39,7 x 32,8 cm [29,1 x 21,1 cm]

34. Pé dentro da bota e aparelho, 39,8 x 32,8 cm[29,7 x 21,2 cm]

35. Mão de senhora com um relógio, 36,2 x 30,2 cm [23 x 16,3 cm]

36. Mão de homem com uma chave, 36,2 x 30,2 cm [23 x 16,3 cm]

37. Mão de homem com reumatismo gotosodeformante, 38 x 31 cm [25,5 x 21,2 cm]

38. Mão de homem com reumatismo gotosodeformante, 38 x 31 cm [27 x 21 cm]

39. Central. Lefaucheux, 39,6 x 32,8 cm [16,8 x 22,5 cm]

40. Pomba, 39,7 x 32,8 cm [34 x 21,6 cm]

41. Mão de senhora dentro da luva tomandouma carteira, 31 x 38 cm [23,3 x 15,6 cm,cada]

42. Bala de revólver introduzida no crânio, 31 x 38 cm [16,5 x 25,2 cm]

43./44. Mão de senhora. Diversos objectos, 31 x 38 cm [23 x 16,3 cm, cada]

45./46. Mão de senhora com agulhaintroduzida nas costas da mão. Mão desenhora com uma bala de revólver,39,5 x 32,8 cm [16,3 x 23 cm, cada]

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Índice das fotografias

1. Mão de senhora, 36 x 30 cm [23,4 x 16,4 cm]2./3. Braço e perna de criança com 8 dias,

31 x 38 cm [20 x 13,1 cm, cada]4. Perna e asa de frango, 30,1 x 36,2 cm

[23 x 15,7 cm]5. Cabeça de frango. Rã, 30 x 36 cm

[15,5 x 10 cm, cada]6./7. Pé de homem com 40 anos. Pé de criançacom 8 dias, 30,8 x 38,1 cm[19,7 x 13,1 cm / 14 x 10 cm]

8. Rato, 30,9 x 38,1 cm [18 x 28,2 cm]9. Eiró, 31 x 38 cm [21,2 x 29,1 cm]10. Goraz, 31 x 36 cm [18 x 29,2 cm]11. Linguado, 31 x 38 cm [18 x 29,2 cm]12. Cachucho, 30 x 36,2 cm [15,5 x 22,8 cm]13. Diversos objectos, 31 x 38 cm

[17,2 x 23,4 cm]14. Diversos objectos, 31 x 38 cm

[17 x 23,4 cm]15. Pé de senhora dentro de um sapato depolimento, 30,2 x 36,2 cm [21,2 x 28 cm]

16. Pé de homem, 32,8 x 39,7 cm [23,6 x 32,1 cm]

17. Braço de senhora dentro das roupas, 31 x 38 cm [18 x 29 cm]

18. Joelho de homem dentro das roupas, 38 x 31 cm [29 x 18 cm]

19. Rim de vaca, 31 x 38 cm [18 x 29,5 cm]20. Coelho, 38,3 x 42,5 cm [22,8 x 32,5 cm]21. Mão de senhora, com um pedaço deagulha…, 38 x 31 cm [23,2 x 16,4 cm]

22. Mão de senhora com reumatismo e panaríciono polegar. Mão de homem atravessada poruma bala, 31 x 38 cm [22,9 x 16,4 cm,cada]

23. Mão de rapaz de 7 anos com lesões motivadaspela explosão de um cartucho de espingardaLefaucheux, 32,2 x 39,5 cm[20,5 x 13,2 cm / 16,4 x 12 cm]

24./25. Mão de um rabequista. Pé e moela degalo, 38,1 x 30,3 cm [22,9 x 16,4 cm,cada]

26. Sem título, 33,5 x 42,9 cm [28 x 37,3 cm]27./28. Braço de rapaz com luxação no cotovelo.Mão de senhora com um estilhaço de vidro,38 x 31 cm [22,2 x 16,3 cm, cada]

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O contributo de Augusto Bobone nos primórdios da radiologia portuguesa

Durante o século XIX as diversas investigações sobre a condução de electricidade emgases rarefeitos terão impulsionado Wilhelm Röntgen (1845-1923) a iniciar os seus estudosnesta área, que culminariam na descoberta dos Raios X no dia 8 de Novembro de 1895. Estemarco imperecível na história da Medicina influenciou a sua prática de tal forma que, possi-velmente, durante várias décadas, nenhum outro avanço no conhecimento científico o con-seguiu, deixando para trás períodos de hesitações no campo do diagnóstico e vislumbrandonovos horizontes, sendo a Radiologia, provavelmente, a especialidade médica que maior evo-lução registou.

À semelhança de outros países europeus, no início da história da Radiologia portuguesaverificou-se a colaboração de um Fotógrafo profissional com um Médico para a obtenção deradiografias1. Augusto Bobone (1852-1910), conceituado fotógrafo da Casa Real portuguesa,interessou-se não só pela técnica fotográfica, mas também por todas as modalidades de foto-grafia aplicadas à Ciência. Tendo já trabalhado em Fotomicrografia, encarou com interesse afotografia pelos Raios X, referindo «[…] a simples curiosidade, se não o hábito que tenho deexperimentar todas ou quasi todas as innovações ou descobertas em que figura a photographia,levou me a fazer investigações sobre os Raios X, encontrando grandes obstáculos antes deconseguir bons resultados.» (Bobone, 1897; Sousa, 1946).

1 Em Portugal, as primeiras radiografias foram obtidas no dia 3 de Fevereiro de 1896 pelo Professor Henrique Tei-xeira Bastos (1861-1943), na Universidade de Coimbra, cerca de três meses após a descoberta de Röntgen, con-tando com a colaboração do Fotógrafo Adriano da Silva e Sousa (Bastos, 1896).

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o unico que tenha de agradecer-lhe o valioso concurso que a sua radiographia alguma vez meprestou em esclarecer pontos de diagnostico cirúrgico, que sem a sombra de Röntgen pode-riam ter ficado com a pecha de incerteza.» (Bobone, 1897).

Bobone revelava um perfeito conhecimento de uma grande parte da literatura radiológicada época, apresentando na sua publicação, detalhes da técnica fotográfica, como as placassensíveis que permitiam a obtenção de melhores resultados, as etapas do processamento fo-tográfico, a importância do tempo de exposição e as suas variáveis dependentes, entre outros.Aborda, igualmente, alguns aspectos da Física e técnica radiológica, tais como a distância en-tre o objecto de estudo e o tubo de Raios X, o tipo de radiação produzida, o estudo da opa-cidade à radiação por parte de vários materiais e objectos, com base na realização de expe-riências, discussão de conceitos e formulação de hipóteses. Algumas reproduções deradiografias, acompanhadas da descrição das condições experimentais em que foram obtidas,estão incluídas na sua monografia, bem como a descrição de aspectos clínicos pertencentes auma colecção de doze exemplares (BOBONE, 1897).

O contributo fundamental dos Raios X ao serviço da Medicina também é referido porBobone: «[…] a applicação dos Raios X ou Raios de Röntgen sobre os corpos vivos podemconsiderar-se como um auxiliar à medicina e de indiscutivel valor nas operações cirurgicas.»,tal como o importante papel do registo fotográfico neste contexto: «Quando se proceder à in-vestigação de alto interesse com os Raios X por meios photographicos, deve considerar-se aphotographia como parte integrante da sciencia e não como simples acessório, porque d’elladepende a precisa observação que se deseje fazer sobre qualquer corpo.» (Bobone, 1897).

Para terminar, cite-se um excerto de uma notícia publicada no jornal O Século de 2 deJunho de 18965, no qual é consubstanciado o papel de relevo que Augusto Bobone desem-penhou nos primórdios da Radiologia portuguesa, nomeadamente, o seu contributo para o

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Em 22 de Março de 1896, Bobone obteve a sua primeira radiografia, a primeira a ser rea-lizada em Lisboa2. Posteriormente, em 1897, apresentou e ofereceu à Academia das Ciênciasde Lisboa, uma colecção de radiografias resultantes dos seus estudos realizados entre 3 deMarço e 15 de Abril de 1896. Esta colecção, para além de incluir radiografias relativas acasos clínicos, compreendia, também, radiografias de diversas espécies animais, bem comooutras resultantes de estudos de diferentes naturezas. Ainda nesse ano surgiu por sua iniciativaa instalação do primeiro «laboratorio radiographico» português, no qual recebia pacientes en-viados por vários Médicos da época3 (Bobone, 1897).

A sua monografia Raios X. Notas praticas de radiographia sobre as primeiras investigaçõesfeitas em Lisboa em 1896, a primeira publicada em Portugal sobre o assunto, foi prefaciada porAlfredo da Costa (1883-1908) que, ao prever o alcance da descoberta de Röntgen, referiu:«Os meios semiotécnicos nem são completos nem os que existem são absolutos; é por issoque em medicina a dúvida e até o erro de diagnose são lícitos dentro de certas condições querepresentam não a ignorância do médico, mas a incapacidade da ciência. A radiografia, alar-gando consideravelmente os meios de diagnóstico, vem prestar à medicina serviços de quenem mesmo se pode por enquanto avaliar toda a magnitude.». Para além disso, tece elogios àcontribuição dos estudos de Bobone e da sua aplicação na Medicina4: «Quem há por essepaiz fóra que uma vez ao menos não tivesse tido ensejo de travar conhecimento com supe-rioridade, nas muitas provas a que teem sido submettidas com admiração e applauso de to-dos? […] Mais do que na arte pensou o meu amigo na humanidade que padece, e já não sou

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2 Apesar de alguma carência instrumental no seu atelier, a colaboração com Virgílio Machado (1859-1927), Médicoe um dos grandes pioneiros da Radiologia portuguesa, permitiu contornar essa limitação.

3 Nos boletins radiográficos, para além da interpretação do objecto radiografado, constam referências a doentes deVirgílio Machado, Alfredo da Costa, entre outros.

4 Segundo Bobone, os seus primeiros estudos com Raios X conferiram-lhe um largo reconhecimento internacional,tendo sido «expostos nos primeiros centros de Paris, Berlim, Bruxellas e New York, onde receberam as melhoresreferências, como attestam cartas e jornaes recebidos d’estes paizes.»

5 Nesta edição é relatado que, em Portugal, a primeira localização de um corpo estranho recorrendo à técnica radio-lógica foi realizada por Bobone.

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progresso da aplicação médica dos Raios X: «É deveras espantoso o que já temos visto feitopor Bobone e muito mais teremos que ver quando ele possuir os aparelhos que encomen-dou. É muito honroso para o artista e para o nosso país que lhe deve o desenvolvimentoe aperfeiçoamento de tão grande auxílio à clínica portuguesa e à Humanidade em geral.»(Sousa, 1946).

António Maria Reis PereiraC.C.M.M., Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa ([email protected])

Este trabalho resulta de uma dissertação de Mestrado em Química (Química, Saúde e Nutrição) designada«Estudo do Impacto da Descoberta dos Raios X e das suas Aplicações Médicas em Portugal», desenvolvida no âmbitodo projecto financiado pela FCT intitulado «Fotografia Científica: estudo da instrumentação e dos processosfísico-químicos no período século XIX - início século XX» (PTDC/HIS-HCT/102497/2008), no qual o autorfoi colaborador.

Bastos, H.T. (1896). «Raios X de Röntgen», O Instituto: jornal scientifico e litterario. 43 pp. 38-41, pp. 274-279.Bobone, A. (1897). Raios X. Notas praticas de radiographia sobre as primeiras investigações feitas em Lisboa em 1896.

Lisboa, Livraria de António Maria Pereira.Sousa, A. (1946). A Descoberta de Röntgen e a Universidade de Coimbra. Coimbra, Livraria Académica. 110