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Para que serve a filosofia? Simon Blackburn Universidade de Cambridge Está tudo muito bem, mas será que vale a pena preocuparmo-nos? Qual é o interesse? A reflexão não põe o mundo a funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que razão não havemos de pôr as perguntas reflexivas de lado, e passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostas: a elevada, a intermédia e a chã. A resposta elevada põe em questão a pergunta - uma estratégia filosófica típica, pois implica subir um grau na ordem da reflexão. Que queremos dizer quando perguntamos para que serve? A reflexão não coze o pão, mas também a arquitectura não o faz, nem a música, a arte, a história ou a literatura. Acontece apenas que queremos compreender-nos. Queremos isto pelo seu valor intrínseco, tal como os especialistas em ciências ou matemáticas puras podem querer compreender o princípio do universo, ou a teoria dos conjuntos, pelo seu valor intrínseco, ou como um músico pode querer resolver alguns problemas na harmonia ou no contraponto pelo seu valor intrínseco. São coisas que não se fazem em função de aplicações práticas. Grande parte da vida trata-se de facto de criar gado para poder comprar mais terra, para poder criar mais gado, para poder comprar mais terra. Os momentos em que nos libertamos disso, seja para fazer matemática ou música, para ler Platão ou Eça de Queirós, devem ser acarinhados. São momentos em que desenvolvemos a nossa saúde mental. E a nossa saúde mental é boa em si, como a nossa saúde física. Além disso, há no fim de contas uma recompensa em termos de prazer. Quando temos saúde física, o exercício físico dá-nos prazer, e quando temos saúde mental, o exercício mental dá-nos prazer. Esta é uma resposta purista. Esta resposta não está errada, mas tem um problema. Acontece que provavelmente só consegue ser atraente para as pessoas que já estão parcialmente convencidas - pessoas que não fizeram a pergunta original num tom de voz muito agressivo. Por isso, eis uma resposta intermédia. A reflexão é importante porque está na continuidade com a prática. O modo como pensamos sobre o que estamos a fazer afecta o modo como o fazemos, ou até mesmo se o chegamos a fazer; pode conduzir a nossa investigação, ou a nossa atitude relativamente a pessoas que fazem as coisas de modo diferente, ou até toda a nossa vida. Tomemos um exemplo simples: se as nossas reflexões nos levarem a acreditar na vida depois da morte, podemos estar preparados para enfrentar perseguições que não enfrentaríamos se nos convencêssemos - como muitos filósofos - de que a noção não faz sentido. O fatalismo, ou a ideia de que o futuro está determinado, seja o que for que façamos, é uma convicção puramente filosófica - mas é uma convicção que tem o poder de paralisar a acção. Em termos mais políticos, pode também exprimir a aceitação do baixo estatuto social atribuído a alguns segmentos da população, o que pode ser reconfortante para pessoas que, pertencendo aos estatutos mais elevados, encorajam essa aceitação.

Blackburn - Para Que Serve a Filosofia

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  • Para que serve a filosofia?

    Simon BlackburnUniversidade de Cambridge

    Est tudo muito bem, mas ser que vale a pena preocuparmo-nos? Qual ointeresse? A reflexo no pe o mundo a funcionar. No coze o po nem pe osavies no ar. Por que razo no havemos de pr as perguntas reflexivas delado, e passar s outras coisas? Irei esboar trs tipos de respostas: aelevada, a intermdia e a ch.

    A resposta elevada pe em questo a pergunta - uma estratgia filosficatpica, pois implica subir um grau na ordem da reflexo. Que queremos dizerquando perguntamos para que serve? A reflexo no coze o po, mas tambm aarquitectura no o faz, nem a msica, a arte, a histria ou a literatura.Acontece apenas que queremos compreender-nos. Queremos isto pelo seu valorintrnseco, tal como os especialistas em cincias ou matemticas puras podemquerer compreender o princpio do universo, ou a teoria dos conjuntos, peloseu valor intrnseco, ou como um msico pode querer resolver algunsproblemas na harmonia ou no contraponto pelo seu valor intrnseco. Socoisas que no se fazem em funo de aplicaes prticas. Grande parte davida trata-se de facto de criar gado para poder comprar mais terra, parapoder criar mais gado, para poder comprar mais terra. Os momentos em que noslibertamos disso, seja para fazer matemtica ou msica, para ler Plato ouEa de Queirs, devem ser acarinhados. So momentos em que desenvolvemos anossa sade mental. E a nossa sade mental boa em si, como a nossa sadefsica. Alm disso, h no fim de contas uma recompensa em termos de prazer.Quando temos sade fsica, o exerccio fsico d-nos prazer, e quando temossade mental, o exerccio mental d-nos prazer.

    Esta uma resposta purista. Esta resposta no est errada, mas tem umproblema. Acontece que provavelmente s consegue ser atraente para aspessoas que j esto parcialmente convencidas - pessoas que no fizeram apergunta original num tom de voz muito agressivo.

    Por isso, eis uma resposta intermdia. A reflexo importante porque estna continuidade com a prtica. O modo como pensamos sobre o que estamos afazer afecta o modo como o fazemos, ou at mesmo se o chegamos a fazer; podeconduzir a nossa investigao, ou a nossa atitude relativamente a pessoasque fazem as coisas de modo diferente, ou at toda a nossa vida. Tomemos umexemplo simples: se as nossas reflexes nos levarem a acreditar na vidadepois da morte, podemos estar preparados para enfrentar perseguies queno enfrentaramos se nos convencssemos - como muitos filsofos - de que anoo no faz sentido. O fatalismo, ou a ideia de que o futuro estdeterminado, seja o que for que faamos, uma convico puramentefilosfica - mas uma convico que tem o poder de paralisar a aco. Emtermos mais polticos, pode tambm exprimir a aceitao do baixo estatutosocial atribudo a alguns segmentos da populao, o que pode serreconfortante para pessoas que, pertencendo aos estatutos mais elevados,encorajam essa aceitao.

  • Consideremos alguns exemplos mais prevalecentes no Ocidente. Ao reflectirsobre a natureza humana, muitas pessoas pensam que, no fundo, somosinteiramente egostas. S procuramos a nossa prpria vantagem e nunca nospreocupamos realmente com mais ningum. Quando parece que nos preocupamoscom os outros, isso apenas disfara a nossa esperana num benefcio futuropara ns mesmos. O paradigma principal nas cincias sociais o homoeconomicus - o homem econmico. O homem econmico toma conta de si, numaluta competitiva com os outros. Ora, se as pessoas pensarem que somos todosassim, sempre, as suas relaes com os outros transformam-se; pois teromenos confiana nos outros, sero menos cooperativos e mais desconfiados.Isto muda o modo como interagem com os outros, o que acarreta vrios custos.Iro descobrir que difcil, e por vezes impossvel, manter actividadescooperativas: podem ficar encurralados naquilo a que o filsofo ThomasHobbes (1588-1676) chamou a guerra de todos contra todos. Na vida real,essas pessoas tero um alto custo a pagar, pois esto sempre a pensar queesto a ser enganadas. Se a minha atitude for a de que um contrato verbalno vale o papel em que est escrito, terei de pagar a advogados paraconceber contratos com sanes, e se eu no confiar nos advogados por pensarque eles nada fazem excepto encher-se de dinheiro custa dos outros, tereide contratar outros advogados para verificarem o trabalho dos primeirosadvogados, e assim por diante. Mas tudo isto pode estar baseado num errofilosfico, que consiste em olhar para a motivao humana atravs de umconjunto de categorias erradas, compreendendo portanto de forma errada a suanatureza. Talvez as pessoas possam importar-se umas com as outras, ou talvezpossam pelo menos preocupar-se em cumprir a sua parte e em manter as suaspromessas. Se tivermos uma imagem mais optimista, talvez as pessoas possamviver de acordo com essa imagem. Talvez as suas vidas melhorem. Assim,pensar um pouco, encontrar as categorias certas para compreender a motivaohumana, uma tarefa prtica importante. No algo que esteja confinado aoescritrio; pelo contrrio, algo que extravasa o escritrio.

    Eis um exemplo muito diferente. O astrnomo polaco Nicolau Coprnico(1473-1543) reflectiu sobre como temos conhecimento do movimento. Coprnicopercebeu que o modo como compreendemos o movimento depende da nossaperspectiva: isto , a questo de saber se vemos ou no os objectos emmovimento o resultado do modo como ns prprios estamos colocados e, emparticular, resulta da questo de saber se ns prprios estamos ou no emmovimento. (Sobretudo em comboios ou nos aeroportos, j tivemos a iluso dever o comboio ou avio que est ao lado do nosso a comear a movimentar-se,apercebendo-nos depois, com um sobressalto, que somos ns que estamos emmovimento. Mas no tempo de Coprnico havia menos exemplos quotidianos.)Assim, os movimentos aparentes das estrelas e dos planetas poderiam ocorrerno por eles se movimentarem como aparentam, mas por causa do nosso prpriomovimento. E afinal as coisas so mesmo assim. Neste caso, a reflexo sobrea natureza do conhecimento - o que os filsofos chamam investigaoepistemolgica, do grego episteme, que significa conhecimento - deu origemao primeiro grande salto da cincia moderna. As reflexes de Einstein sobreo modo como sabemos que dois acontecimentos so simultneos tinham a mesmaestrutura. Einstein percebeu que os resultados das nossas medies iriamdepender da direco em que estamos a viajar relativamente aosacontecimentos que estamos a cronometrar. Isto conduziu teoria darelatividade especial (e o prprio Einstein reconheceu a importncia dos

  • filsofos que o precederam, ao sensibilizarem-no para as complexidadesepistemolgicas de tais medies).

    Como exemplo final, podemos considerar um problema filosfico que muitaspessoas enfrentam quando pensam sobre a mente e o corpo. Muitas pessoas tmem vista uma separao estrita entre a mente, como uma coisa, e o corpo,como uma coisa diferente. Embora isto possa parecer apenas bom senso, podecomear a contaminar a prtica de uma maneira bastante insidiosa. Porexemplo, comea a ser difcil ver como estas duas coisas diferentesinteragem. Os mdicos podem ento achar quase inevitvel que falhem ostratamentos das condies fsicas que respondem a causas mentais oupsicolgicas. Podem achar praticamente impossvel ver como interferir namente de algum pode alguma vez causar mudanas no sistema fsico complexoque o seu corpo. Afinal, a boa cincia diz-nos que necessrio ter causasfsicas e qumicas para ter efeitos fsicos e qumicos. Logo, podemos teruma certeza a priori, uma certeza de poltrona, de que um certo tipo detratamento (drogas e choques elctricos, por exemplo) tem de estarcorrecto e que outro tipo de tratamento (como tratar os pacienteshumanamente, o aconselhamento e a anlise) est errado: no cientfico,no slido, est condenado a falhar. Mas esta certeza no tem comopremissa a cincia mas uma falsa filosofia. Uma concepo filosfica melhorda relao entre a mente e o corpo muda essa certeza. Uma concepo melhordeve permitir-nos ver que nada h de surpreendente no facto de haverinteraco mente-corpo. Um dos factos mais corriqueiros, por exemplo, quepensar em algumas coisas (domnio mental) pode fazer corar (domnio fsico).Pensar num perigo futuro pode causar todo o tipo de mudanas corporais: ocorao bate rapidamente, os punhos fecham-se, as entranhas contraem-se. Porextrapolao, no deve haver qualquer dificuldade em compreender que umestado mental como um alegre optimismo possa afectar um estado fsico como odesaparecimento de manchas na pele ou at a remisso de um cancro. Oproblema de saber se tais coisas acontecem realmente transforma-se numaquesto puramente emprica. A prpria certeza de poltrona de que tais coisasno poderiam acontecer afinal algo que depende de uma m compreenso dasestruturas do pensamento, ou por outras palavras, m filosofia - e nessesentido anti-cientfica. E perceber isto pode melhorar as atitudes e asprticas mdicas.

    Assim, a resposta intermdia chama-nos a ateno para o facto de a reflexoestar na continuidade com a prtica, podendo a nossa prtica ser melhor oupior de acordo com o valor das nossas reflexes. Um sistema de pensamento algo em que vivemos, tal como uma casa, e se a nossa casa intelectualestiver fechada e for limitada, precisamos de ver que outras estruturasmelhores sero possveis.

    A resposta ch limita-se a sublinhar um pouco este aspecto, norelativamente a belas disciplinas graciosas como a economia e a fsica, masrelativamente ao piso trreo onde a vida humana um pouco menos elegante.Uma das sries de stiras gravadas pelo pintor espanhol Goya tem por ttuloO Sono da Razo Produz Monstros. Goya pensava que muitas das loucuras dahumanidade resultavam do sono da razo. H sempre pessoas prontas adizer-nos o que queremos, a explicar-nos como nos vo dar essas coisas e amostrar-nos no que devemos acreditar. As convices so contagiosas, e

  • possvel convencer as pessoas de praticamente tudo. Geralmente, estamosdispostos a pensar que os nossos hbitos, as nossas convices, a nossareligio e os nossos polticos so melhores do que os deles, ou que osnossos direitos dados por Deus anulam os direitos deles, ou que os nossosinteresses exigem ataques defensivos ou dissuasivos contra eles. Em ltimaanlise, trata-se de ideias que fazem as pessoas matarem-se umas s outras. por causa de ideias sobre o que os outros so, ou quem somos, ou o que osnossos interesses ou direitos exigem que fazemos guerras ou oprimimos osoutros de conscincia tranquila, ou at aceitamos por vezes ser oprimidos.Quando estas convices implicam o sono da razo, o despertar crtico oantdoto. A reflexo permite-nos recuar, ver que talvez a nossa perspectivasobre uma dada situao esteja distorcida ou seja cega, ou pelo menos ver seh argumentos a favor dos nossos hbitos, ou se tudo meramente subjectivo.Fazer isto bem pr em prtica mais alguma engenharia conceptual.

    A reflexo pode ser encarada como uma coisa perigosa, visto que no podemossaber partida onde nos conduzir. H sempre pensamentos que se opem reflexo. As questes filosficas fazem muitas pessoas sentirem-sedesconfortveis, ou mesmo ultrajadas. Algumas tm medo que as suas ideiaspossam no resistir to bem como elas gostariam se comearem a pensar sobreelas. Outras podem querer basear-se nas polticas da identidade ou, poroutras palavras, no tipo de identificao com uma tradio, grupo ouidentidades nacionais ou tnicas particulares que os convida a voltar ascostas a estranhos que coloquem em causa os hbitos do grupo. Essas pessoasiro minimizar a crtica: os seus valores so incomensurveisrelativamente aos valores dos estranhos. S os irmos e irms do seu crculopodem compreend-las. Algumas pessoas gostam de se refugiar num crculoespesso, confortvel e tradicional de tradies populares, sem sepreocuparem muito com a sua estrutura, as suas origens, ou mesmo com ascrticas que possam merecer. A reflexo abre a avenida da crtica, e astradies populares podem no gostar da crtica. Neste sentido, asideologias tornam-se crculos fechados, prontas a sentirem-se ultrajadaspelo esprito interrogante.

    Nos ltimos 2 mil anos, a tradio filosfica tem sido a inimiga deste tipode complacncia confortvel. Tem insistido na ideia de que uma vida noexaminada no vale a pena ser vivida. Tem insistido no poder da reflexoracional para descobrir o que h de errado nas nossas prticas, e para assubstituir por prticas melhores. Tem identificado a auto-reflexo crticacom a liberdade - e a ideia que s quando nos conseguimos ver a ns mesmosde forma adequada podemos controlar a direco em que desejamos caminhar. Squando conseguimos ver a nossa situao de forma estvel e a vemos na suatotalidade podemos comear a pensar no que fazer a seu respeito. Marx disseque os filsofos anteriores tinham procurado compreender o mundo, ao passoque o que era preciso era mud-lo - uma das asseres famosas mais tolas detodos os tempos (e completamente desmentida pela sua prpria prticaintelectual). Teria sido melhor que Marx tivesse acrescentado que semcompreender o mundo, pouco saberemos em termos de como o mudar - pelo menospara melhor. Rosencranz e Guildenstern admitem no saber tocargaita-de-foles, mas tentam manipular Hamlet. Quando agimos sem compreenso,o mundo est perfeitamente preparado para dar voz reaco de Hamlet:Pensais que eu sou mais fcil de controlar que uma gaita-de-foles?

  • H correntes acadmicas no nosso tempo que so contra estas ideias. Hpessoas que questionam a prpria noo de verdade, de razo, ou apossibilidade da reflexo desapaixonada. Na sua maior parte, fazem mfilosofia, muitas vezes sem saberem que isso que esto a fazer: soengenheiros conceptuais que no conseguem desenhar um plano, quando maisconceber uma estrutura. Voltaremos a esta questo vrias vezes ao longo dolivro, mas para j posso prometer que este livro est de cara levantada aolado da tradio e contra qualquer cepticismo moderno, ou ps-moderno,quanto ao valor da reflexo.

    O mote completo de Goya para a sua gravura o seguinte: A imaginaoabandonada pela razo produz monstros impossveis; unida a ela, a me dasartes e a fonte dos seus encantos. assim que devemos encarar as coisas.

    Simon Blackburn

    Texto retirado de Pense: Uma introduo filosofia, de Simon Blackburn(traduo de Antnio Infante et al., Gradiva, 2000)