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GEOGRAFIAS IMAGINÁRIASESPAÇO E AVENTURA NO AMADIS DE GAULA

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  • GEOGRAFIAS IMAGINRIAS ESPAO E AVENTURA NO AMADIS DE GAULA1

    Graa Videira Lopes (FCSH-UNL)

    Falar de fico medieval obrigatoriamente falar de romances de cavalaria. As aventuras de cavaleiros em demanda de fama e de justia fazem parte integrante do imaginrio medieval, sobrevivendo, alis, muito para alm da sociedade que lhes deu matria e justificao contextual. Os romances de cavalaria so, ao mesmo tempo, um dos gneros literrios que menos modificaes sofre na sua difuso europeia, constituindo, sem

    dvida, um dos grandes modelos unificadores da mentalidade medieval do Ocidente. O processo da sua prpria constituio como gnero disso um indcio, j que, paralelamente aos textos fundadores (cujas origens so, em geral, relativamente obscuras) textos esses que podemos agrupar em trs grandes ciclos, o breto, o carolngio e o clssico paralelamente a eles, pois, so numerosas, por toda a Europa, quer as verses, mais ou menos alteradas, desses textos fundadores, quer os romances com heris autnomos, ainda que fortemente ligados ao ciclo a que pertencem. As fronteiras europeias no parecem, pois, influir grandemente na difuso e celebridade destas narrativas.

    A Pennsula Ibrica conheceu tambm o seu romance de cavalaria: Amadis de Gaula, romance datado provavelmente de finais do sculo XIII/incios do sculo XIV, e

    pertencente ao ciclo breto ou arturiano (o universo cujas personagens mais clebres so o rei Artur e os cavaleiros da Tvola Redonda). Inserindo-se, pois, nesta fecunda tradio literria medieval, Amadis , no entanto, uma criao original, que ultrapassou largamente, alis, as fronteiras da Pennsula Ibrica e se transformou num dos mais clebres romances de cavalaria em circulao na Europa at, pelo menos, ao sculo XVII (com tradues quinhentistas nomeadamente para francs, ingls, italiano, alemo, holands e hebraico). No espao ibrico, as 19 edies castelhanas da obra, apenas no perodo que medeia entre a primeira edio impressa conhecida, 1508, e 1586, podero exemplificar o seu enorme xito. A sua fecundidade, em termos de obras directamente nele inspiradas, imensa,

    1 Artigo revisto, publicado originalmente em Imagens do mundo na Idade Mdia. Actas do colquio,

    organizadas por Helder Godinho, Lisboa, ICALP, 1992, pgs. 207-213.

  • desde as inmeras sequelas quinhentistas (narrativas das aventuras de netos, bisnetos, tetranetos, familiares e companheiros de Amadis) at aos grandes textos, como a Tragicomdia de Amadis de Gaula, de Gil Vicente ou mesmo, no registo pardico da despedida, D. Quixote de la Mancha de Cervantes (que o abre, alis, com um conjunto de poemas da autoria das principais personagens do Amadis, dedicados a D. Quixote, o novo heri cavaleiresco poemas esses que algumas edies da obra de Cervantes pura e simplesmente ignoram, diga-se). Do ponto de vista cultural, a influncia de Amadis igualmente enorme, estendendo-se mesmo a zonas inesperadas, como o caso do nome dado Califrnia (directamente retirado do seu livro V).

    Se a primeira edio impressa conhecida de Amadis de Gaula data, como se disse, de 1508, a criao do romance , no entanto, muito anterior. Ter sido, pois, em finais de Trezentos que o romance original foi escrito, e dele circularam certamente variadas cpias

    manuscritas, das quais, infelizmente, nenhuma chegou at ns. Abundam, no entanto, os testemunhos da celebridade e difuso da obra desde o final do sculo XIV e ao longo de todo o sculo XV (de referncias cronsticas onomstica, incluindo um co chamado Amadis em 1387). exactamente em meados do sculo XV que o castelhano Garc Rodrguez de Montalvo, cavaleiro de Medina del Campo, decide elaborar uma refundio corrigida dos antigos originais que estavam corruptos e mal compostos em antigo estilo, por falta dos diferentes e maus escritores, como ele prprio afirma no final do seu Prlogo, verso a que acrescenta um novo livro, As Sergas de Esplandio (filho de Amadis). A nica verso que temos actualmente do Amadis (pelo menos no estado actual das investigaes) , pois, esta verso castelhana, corrigida e acrescentada, de Montalvo, elaborada muito provavelmente por volta da dcada de 1480.

    No irei aqui deter-me na longa e nunca resolvida polmica das nacionalidades que tem oposto portugueses e castelhanos na reivindicao da paternidade nacional do

    romance. O certo que, para alm da todos os problemas que se colocam em torno do seu autor e da sua lngua primitiva, Amadis de Gaula , efectivamente, o romance medieval ibrico por excelncia. A questo da nacionalidade do texto original , pois, a este nvel, relativamente ociosa. Para alm do que, pertencendo Amadis ao ciclo breto, a sua matria a transnacional matria da Bretanha, sem qualquer ligao explcita s sociedades especificamente portuguesa ou castelhana.

  • Mas o que interessa talvez sublinhar a questo da relativa autonomia que o romance de Amadis possui em relao ao seu modelo, que a Demanda do Santo Graal. Com efeito, e como diz Rodrigues Lapa2, na sua transplantao peninsular, a matria de Bretanha parece perder em sentido mstico-religioso o que ganha em realismo, patente, sobretudo, no forte e higinico sensualismo de alguns episdios. Procurando a justia, Amadis tambm um heri apaixonado, humanamente apaixonado pela sua dama Oriana. Na novela peninsular os sentimentos so simples (o amor o mortal desejo de que fala o texto), as circunstncias que o tornam complicado (originando, ao mesmo tempo, grande parte das aventuras do livro).

    Devia-nos Amadis, to referido mas to pouco estudado, esta breve introduo. O meu propsito , no entanto, outro: o de analisar at que ponto o mundo ficcional de Amadis acompanha, de perto, a imagem que o homem medieval tinha do mundo e nomeadamente

    da sua geografia.

    Para Bakhtine3 a relao espcio-temporal no romance de cavalaria (o que ele designa como o seu cronotopos) pode definir-se como o mundo das maravilhas no tempo da aventura. este mundo maravilhoso (mundo onde a maravilha uma constante) que os heris percorrem em busca de faanhas que os glorifiquem, a eles e s suas damas e suseranos. exactamente esta procura voluntria da aventura glorificadora que, segundo Bakhtine, distingue o romance de cavalaria do simples romance de aventuras,

    aproximando-o da epopeia. O papel eminentemente nacional e muitas vezes fundador da narrativa pica est, no entanto, ainda segundo Bakhtine, ausente do romance de cavalaria,

    pertencendo antes os seus heris ao tesouro das figuras internacionais: Enfim, o heri e o mundo maravilhoso no qual ele age so feitos de um s

    bloco, no h fissura entre eles. Este mundo, na verdade, no uma ptria nacional, apenas estrangeiro (sem que este carcter seja acentuado); o heri passa de pas em pas, confronta-se com diversos suseranos, naveva nos mares, mas em todo o lado o seu mundo um , sempre pleno de uma mesma nomeada, de uma mesma concepo dos altos feitos e da desonra, e o heri pode tornar-se ilustre ele-mesmo e glorificar os outros, em qualquer lugar; em todo o lado so

    2 Prefcio a Amadis de Gaula, textos escolhidos, Lisboa, Seara Nova, 6 edio, 1973.

  • aclamados os mesmos nomes clebres. Neste mundo, o heri est em sua casa (mas no na sua ptria).

    Todos os romances de cavalaria parecem desenvolver-se, genericamente, segundo estes princpios. No entanto, o carcter aptrida dos seus heris de que fala Baktine merece alguma ateno. De facto, e ainda que aparentemente secundria, deve notar-se que todos os heris dos romances de cavalaria tm uma ptria no que diferem das narrativas maravilhosas do era uma vez, num pas distante , um lugar de origem perfeitamente reconhecvel pelo leitor e correspondendo, nos trs ciclos, a lugares centrais da cristandade: Inglaterra (Grande e Pequena Bretanha, na poca politicamente unidas), Frana e Roma. tambm um facto que, misturados com estas referncias a uma geografia real, nos surgem

    constantemente lugares imaginrios, dotados das mesmas caractersticas de verosimilhana. Mas deve sublinhar-se que o espao do romance de cavalaria est ancorado no s num

    mundo reconhecvel pelos seus leitores, mas num mundo que corresponde, em grande medida, imagem possvel que o leitor medieval tinha desse mundo. Vejamos o caso concreto de Amadis de Gaula.

    Amadis de Gaula leva no seu nome a sua origem paterna filho de Periom, rei da Gaula, nome, certo, no muito claro e que poder corresponder tanto a Wales, Gales, como a um semi-mtico reino de Gaula, que a Idade Mdia situava na Pequena Bretanha. Seja como for, a referncia real. Do lado materno, as suas origens geogrficas so prximas: nascido na Pequena Bretanha, dos amores ilcitos deste rei Periom com Elisena,

    filha do rei breto. A infncia passa-a na Esccia, ao fim de algumas peripcias geogrficas resultantes deste nascimento pouco regular. O seu suserano, senhor de toda a vida, e pai da

    sua dama Oriana, Lisuarte, rei da Gr-Bretanha, cuja corte est situada em Londres (e que igualmente genro do rei da Dinamarca). Est delimitado o espao preferencial de Amadis, espao de origem das suas principais personagens, espao de onde elas partem e aonde

    inevitavelmente regressam. Gales, Pequena e Grande Bretanha, Esccia, Dinamarca: eis-nos perante o que pode ser considerado uma fico geograficamente verosmil. O canal da

    Mancha , com efeito, na poca, no uma fronteira mas um canal de ligao, intensamente cruzado, entre terras poltica e culturalmente prximas. A fico sublinha essa proximidade, ao mesmo tempo que retoma os conflitos poltico-familiares que ela no deixa

    3 Esthtique et thorie du roman, Paris, Gallimard, 1979, pp. 298-302.

  • historicamente de gerar (nomeadamente os que, durante sculos, opuseram Frana e Inglaterra e que, nalguns episdios do livro, so centrais4). A este universo do norte da Europa juntam-se mais algumas referncias histrico-geogrficas igualmente verosmeis: a que diz respeito luta com os irlandeses, tambm central, sobretudo nos dois primeiros livros (e na qual Amadis se notabiliza, nomeadamente derrotando o rei gigante da Irlanda), e a que diz respeito aos dois aliados do rei Lisuarte, os reis da Sucia e da Noruega. Na sua busca de aventuras, alis, Amadis, ultrapassando os limites geogrficos do seu mundo original, desce igualmente Europa central, num percurso de que fazem parte, nomeadamente, a Alemanha e a Bomia, e atinge mesmo Constantinopla onde se fixa por algum tempo (sob o nome de Cavaleiro Grego). Deslocando-se, em seguida, demoradamente pelo Sul da Europa, grande parte da narrativa centra-se, por outro lado, na pretenso do imperador de Roma mo de Oriana. Sublinhe-se

    ainda este dado perfeitamente verosmil na geografia poltica da poca (constituindo, ao mesmo tempo, uma interferncia do ciclo clssico no romance). O conflito vem, alis, a ser sanado pela interveno do poder religioso, como tantas vezes sucede na poca, aqui na figura do ermito Nasciano, que serve de intermedirio final. O mundo do romance de Amadis , como se pode ver neste pequeno resumo, a Europa medieval, cuja geografia espacial e poltica retoma (ainda que, politicamente, esta geografia seja anterior data provvel do romance, finais do sculo XIII, e corresponda melhor aos sculos XI e XII, data da fixao da matria de Bretanha). Seja como for, os percursos do heri so percursos historicamente verosmeis e muitas vezes atestados no exterior da fico.

    O que acabmos de ver no significa, no entanto, que a esta verosimilhana geo-grfica corresponda uma concretizao narrativa que produza um acentuado efeito de real. Como diz Bakhtine, este mundo , no romance, assaz abstracto. A este espao europeu

    diversificado que o heri percorre no corresponde, de facto, nenhuma espcie de diversificao narrativa ou descritiva. Retomando ainda Bakhtine, por onde quer que o

    heri passe em todo o lado o mundo um. O interesse pela paisagem e pelos costumes, pela cor local, estranho a este universo narrativo. Na verdade, a paisagem da aventura sempre esquematicamente descrita: uma floresta, um castelo, uma ponte. Da Gr-Bretanha

    4 Mas no s: recorde-se, a ttulo de exemplo, que tambm a infanta portuguesa D. Leonor, filha de Afonso II

  • Bomia ou a Constantinopla as variaes praticamente no existem. O processo , alis, extensivo a todas as descries, continuamente desviadas para um plano geral. Repare-se,

    por exemplo, j no final do romance, na forma como se relata o encontro decisivo entre os principais protagonistas (Amadis, Lisuarte, Periom, o imperador de Roma e seus respectivos cavaleiros e damas): Os vestidos que sobre si e sobre os palafrns levavam no bastaria memria para os contar nem mos para o escrever. S vos digo que nem antes nem depois se soube algum que jamais tivesse havido no mundo companhia de tantos cavaleiros de to alta linhagem e de tanto esforo e de tantas senhoras, rainhas, infantas e outras de alto estado to formosas e to bem ataviadas(Livro IV, cap. 123) O leitor que procure aqui qualquer tipo de informao concreta ficar certamente desiludido.

    Em relao ao espao fsico da aventura, o processo semelhante na conteno, como pode ver-se nestes exemplos avulsos: E metendo a espada na bainha, foi-se a um arvoredo, onde estava uma donzela mui formosa; No caminho encontrou a donzela que andava com o amigo de Urganda, chorando junto a uma fonte; De manh tornou ao caminho por onde o guiava o ano e andou at hora de tera; a lhe mostrou o ano num formoso vale, dois pinheiros altos e debaixo deles um cavaleiro todo armado sobre um grande cavalo (). Debaixo de outro pinheiro estava outro cavaleiro apoiado no elmo. Central na narrativa, o local onde foi feita dona a mais formosa donzela do mundo, o local onde Oriana se entrega a Amadis, igualmente descrito de uma forma muito genrica: Assim andaram trs lguas at que entraram num bosque muito cerrado, distante cousa de lgua de uma vila (). E desviando-se do caminho guiaram para o vale, onde acharam um pequeno arroio de gua e de erva verde muito fresca (Livro I, cap. 35). De passagem note-se que esta paisagem to abstracta quanto banal , no entanto, atravessada por anotaes realistas de comportamentos, nomeadamente aqui na referncia ao djeuner sur l herbre final dos heris, muito prosaicamente esfomeados: Assim estiveram naqueles

    actos amorosos() at que o estorvo da vinda de Gandalim fez levantar Amadis. Chamada a donzela, deram boa ordem para lhes aviarem de comer, que bem o precisavam. E ainda que ali faltaram os muitos servidores e as baixelas de ouro e prata, nem por isso aquela comida sobre a erva deixou de lhes dar doce e grande prazer.

    Seja como for, exactamente este carcter abstracto do espao, numa geografia real

    (1211-1223) casou com um filho do rei da Dinamarca.

  • e reconhecvel pelo leitor como verosmil, que permite que, paralelamente a esta Europa

    real de que antes falmos, se desenvolva toda uma geografia imprecisa ou imaginria, cujo o peso na fico idntico na verosimilhana com que se apresenta. De facto, ao lado das referncias reais anteriormente citadas, Amadis de Gaula inclui inmeras outras referncias geogrficas que no figuram em nenhuma geografia: castelos (o castelo de Valderim, residncia de Arcalaus, o Encantador, onde est presa Grindalaia, amiga do rei Arbam de Norgales - ainda que neste ltimo caso a referncia possa ter ressonncias geogrficas reais (Norwales); o castelo de Torim, colocado em terras de Sobradissa); florestas, como a de Angadua; ilhas, como a ilha de Mongaa, as ilhas da Romania ou a Ilha do Diabo e, sobretudo, a nsua Firme, terra encantada que Amadis conquista e liberta e da qual se torna senhor. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Esta geografia imaginativa pode, alis, dividir-se em dois grandes grupos. De um

    lado, os lugares cujos nomes so mais ou menos evidentes deturpaes ou tradues livres de nomes reais da poca, como o j citado Norgales, o tambm j citado castelo de Torim, colocado em terras de Sobradissa ou mesmo um certo mosteiro de Lubaina, onde o rei Lisuarte rene cortes. Muitos dos estranhos nomes de Amadis (e no apenas os geogrficos) podem ter aqui a sua origem, correspondendo deste modo mais a uma geografia adaptada e imprecisa do que totalmente imaginria. Ser este o caso tambm das numerosas ilhas referidas no romance ilhas que, como se sabe, a Idade Mdia multiplicou nos seus mapas, e que integram, portanto, uma geografia que se acreditava real. Do outro lado esto os

    lugares decididamente imaginrios, cujos nomes tm um peso simblico dominante: o caso da nsua Firme referida, domnio de Amadis; da Penha Pobre, lugar onde o heri se retira do mundo, num complicado momento da sua relao com Oriana, ou ainda do castelo de Miraflores lugar privilegiado dos amores de Amadis e Oriana (e que, muito claramente, retoma uma designao do romance de Artur). Entre a geografia real e esta geografia mais ou menos imprecisa ou imaginria no h nenhuma distino no romance. Ambas se sucedem e se cruzam sem descontinuidades. O heri vai de Londres s Terras de

    Sobradissa, da nsua Firme Alemanha ou Ilha do Diabo. E exactamente neste alargamento das fronteiras do mundo que reside parte do maravilhoso dos romances de cavalaria, cujo efeito chega aos nossos dias. No entanto, por estranhos e infantis que paream estes percursos ao leitor

  • contemporneo, o certo que, para o leitor ou ouvinte medieval, as coisas se passariam certamente de forma diferente. Em primeiro lugar porque, num mundo onde as distncias,

    mesmo na Europa, se contavam por semanas e meses de viagem, a estranheza do longnquo era certamente um dado habitual. Para grande parte desses leitores ou ouvintes, a Sucia ou a Bomia teriam, na verdade, a mesma realidade de Valderim, Norgales ou Sobradissa. Por outro lado, e isso sobretudo que interessa aqui sublinhar, convm notar que esta imagem geogrfica do mundo no exclusiva da fico romanesca. Pelo contrrio, a fico limita-se, em grande medida, a retomar a prpria literatura geogrfica medieval, tal como a podemos conhecer atravs das numerosas Imago mundi, compiladas nos XII e XIII. Geografias imprecisas e em grande parte imaginrias, onde o maravilhoso e o estranho

    preenchem normalmente o lugar do desconhecido, e que s as grandes viagens de navegao dos sculos XV e XVI permitiro questionar.

    O espao geogrfico, tal como nos aparece no Amadis de Gaula, , pois, tipicamente medieval, em todas as dimenses do termo. Como tipicamente medieval o espao maravilhoso da aventura que esses lugares proporcionam. De facto, a prpria ocorrncia sbita da aventura a marca de uma determinada relao do homem com o mundo. Num universo onde a verdade e o conhecimento pertencem a Deus, a ordem natural das coisas pode, a qualquer momento, ser alterada. Tambm por isso os intermedirios das foras do mal e do bem encantadores, bruxas (aqui representados particularmente por Arcalaus e Urganda, a Desconhecida) fazem parte integrante da aventura, j que eles so personagens medievais comuns cujos poderes e prodgios genericamente se aceitam (mesmo se combatidos pela Igreja). Como o so os estranhos animais que povoam os numerosos bestirios da poca, que no duvidam da existncia de drages, grifos, ou outros animais ainda mais monstruosos como, por exemplo, o leotfono ou a mantcora. Neste aspecto, Amadis, ainda que ligeiramente mais sbrio do que os seus textos fundadores, no foge regra, oferecendo aos seus leitores a figura de Endriago, o monstro que Amadis derrota na Ilha do Diabo, estranha criatura, fruto dos amores incestuosos do gigante

    Bandaguido com a sua filha (e note-se esta origem incestuosa do monstro, numa narrativa semelhante a algumas outras origens familiares atestadas nos Livros de Linhagens), criatura cujo corpo e rosto so cobertos de plo e conchas, possuindo ainda asas de couro negro, mos de guia e dois gigantescos dentes em cada maxilar. Para alm de Endriago, a fauna

  • extica de Amadis oferece-nos ainda vrios lees, um dos quais rapta (numa memria clssica) o filho ilcito de Amadis e Oriana e o cria. No que diz respeito aos humanos, a estranheza centra-se no tradicional ano aqui Analiam, companheiro de Amadis e nos vrios gigantes que o heri defronta e vence (um deles, como vimos, um rei irlands, justificao, alis, talvez bastante verosmil para o seu gigantismo). Refira-se ainda uma outra personagem medieval tpica, embora pertencendo a uma ordem diferente: o famoso mdico, mestre Elisabat, nome de evidentes ressonncias judaicas.

    O mundo das maravilhas, tanto o geogrfico como o humano ou animal, do romance de cavalaria corresponde pois, em grande parte, imagem que o homem medieval tinha do seu prprio mundo, estranho, maravilhoso e apto a todos os prodgios. A fico

    sublinha este maravilhoso quotidiano, no sem deixar de conferir ao homem ao heri um papel decisivo na conduo dos negcios terrenos.

    Romance de cavalaria, Amadis de Gaula -o ainda e sobretudo no esprito que preside a estes heris-cavaleiros, fiis sua dama e ao seu suserano. O espao por excelncia destes cavaleiros andantes claramente a Europa, uma Europa semi-real, como tentei brevemente mostrar, mas essencialmente una no que diz respeito ao reconhecimento dos mesmos cdigos e dos mesmos valores. esta Europa que Amadis atravessa, em busca de fama, glria e tambm proveito, como tantos cavaleiros de carne e osso que a Histria atesta. Amadis de Gaula no s nos fornece uma imagem verosmil deste mundo, como, apresentando o seu protagonista como modelo, ajuda sua consolidao como casa comum. A Europa que hoje conhecemos , em grande medida, a herdeira directa destas aventuras.