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Água da fonte

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Gostei, sim, tanto do “Água da Fonte”, que li em voz alta, para Maria Julieta, duas crônicas de seu livro. Você tem em mim um leitor cheio de admiração. Calos Drummond de Andrade Fernando Jorge: você, com seu poliédrico talento literário, me dá a impressão de ser um arrojado arquiteto na arte de escrever, o dono de um estilo claro, moderno, envolvente, de linhas dinâmicas e alicerces à prova de terremotos. Oscar Niemeyer

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S ã o P a u l o 2015

F E R N A N D O J O R G E

Água da fonte

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Índices para catálogo sistemático:1. Crônicas : Literatura brasileira 869.93

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Copyright © 2015 by Fernando Jorge

Produção Editorial Desenho Editorial

Projeto Gráfico e Guilherme Xavier Criação de capa

Composição Silvia de Cerqueira Cesar

Finalização Felipe Siqueira

Revisão Fernando Jorge

Impresso no BrasIl

prInted In BrazIl

dIreItos cedIdos para esta edIção à

novo século edItora

Rua Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andarcep 06023-010 – Osasco – SP

Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br

[email protected]

Jorge, Fernando Água da fonte / Fernando Jorge. – 8. ed. –Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014.

1. Crônicas brasileiras I. Título.

14-12943 CDD-869.93

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Copyright © 2015 by Fernando Jorge

Produção Editorial Desenho Editorial

Projeto Gráfico e Guilherme Xavier Criação de capa

Composição Silvia de Cerqueira Cesar

Finalização Felipe Siqueira

Revisão Fernando Jorge

Impresso no BrasIl

prInted In BrazIl

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novo século edItora

Rua Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andarcep 06023-010 – Osasco – SP

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Nota da Editora

As edições anteriores deste livro (ao todo sete) foram lan-çadas pelo grande editor José de Barros Martins, o mesmo que publicou as obras de Jorge Amado, Guilherme de Almei-da, Menotti Del Picchia, Graciliano Ramos, José Geraldo Vieira. As sete edições anteriores de Água da Fonte se esgo-taram rapidamente no espaço de três anos. De todas saíram (conforme os recibos de pagamento de direitos autorais) nove tiragens abrangendo cinquenta e cinco mil exemplares. Ne-nhum outro livro, de crônicas e prosas várias, alcançou este sucesso no Brasil.

Podemos dizer: Água da Fonte deve o seu êxito, em boa parte, à ampla cobertura da nossa imprensa e ao fato de ter sido adotado, como material de leitura, de pesquisas e de aquisição de conhecimentos, em dezenas de escolas e uni-versidades brasileiras.

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Fernando Jorge:

Gostei, sim, tanto da “Água da Fonte”, que li em voz alta, para Maria Julieta, duas crônicas de seu livro. Você tem em mim um leitor

cheio de admiração.

Carlos Drummond de Andrade

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AAmérico Bologna, jornalista culto e inteligente, a quem devo a publicação dessas conversas literárias em A Gazeta, o grande órgão onde continuava vivo o espírito inovador de Casper Líbero.

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AMIGOS E INIMIGOS DAS SOGRAS . . . . . . . . . . . . . . . 15

O FIM INGLÓRIO DOS DITADORES . . . . . . . . . . . . . . . 25

ASPECTOS INÉDITOS DE CRUZ E SOUSA . . . . . . . . . 35

O ENIGMA DA LONGEVIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

FOME, FLAGELO UNIVERSAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

CARTA A ANTÔNIO POUSADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

RUI: ANTÍTESE DO HOMEM TROPICAL . . . . . . . . . . . 71

O CULTO DA ÁRVORE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

UMA FEIÇÃO INÉDITA DE JÚLIO RIBEIRO . . . . . . . . . 89

CONVERSA COM SÃO NICOLAU . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

EM BUSCA DA FELICIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

O PROBLEMA DA FELICIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

SUMÁRIO

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O FIM E O PRINCÍPIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

O TRABALHO E SEUS HERÓIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

O VALOR DAS MÃES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

A MÚSICA E O ANALFABETISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

PRESENÇA DE PORTUGAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

NOSSA SENHORA DA ESPERANÇA . . . . . . . . . . . . . . 155

MORRER DE ALEGRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

SAUDADE, SENTIMENTO INDEFINÍVEL . . . . . . . . . . . 167

O PAPA E O MATERIALISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

O DIA DA SOLIDARIEDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179

O HOMEM QUE LUTOU COM A ONÇA . . . . . . . . . . . . . 187

TAMANHO NÃO É DOCUMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

CHUVA DE DINHEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

SÃO PAULO DENTRO DO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . 205

A ARTE DE ENVELHECER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213

O HOMEM CÉLEBRE E A MULTIDÃO . . . . . . . . . . . . . . 221

A MENTIRA E OS MENTIROSOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

VICENTE DE CARVALHO, O INIMIGO DO MAR . . . . . . 239

ÍNDICE ONOMÁSTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245

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Água da Fonte ... por que dei este título a um livro assim eclético, composto de crônicas e prosas várias, muitas rabiscadas ao léu dos acontecimentos? Pelo mo-tivo destas páginas terem brotado das minhas nascentes culturais. Irromperam com a espontaneidade de uma planta nativa que encontrou terra propícia para o seu crescimento. Teria de vicejar, ramificar-se, ainda que o Sol não a fortalecesse, ainda que o humus não a nutris-se. Espírito introspectivo, pouco sociável, extravasei nestas páginas os meus solilóquios literários. Sim, esta é também água da minha fonte. Oxalá, leitor, possas des-sedentar um pouco, por algumas horas, a tua sede...

A RAZÃO DO TÍTULO

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AMIGOSE INIMIGOSDASSOGRAS

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GRANDE VIDA devem ter levado Adão e Eva! Imagi-nem os dois no paraíso terrestre, antes do pecado origi-nal. Não precisavam trabalhar nem se preocupar com a conta de luz, da água e do telefone. Não pagavam im-postos. A atmosfera era pura, sem as fumaças intoxican-tes dos automóveis. Em vez dos apitos estridentes das fábricas, os pássaros lançavam, com seus gorjeios, péro-las raras e ressoantes no firmamento cor de opala, aque-cido pelos beijos do Sol. Eva não estragava os seus lin-dos cabelos em mãos mercenárias, fazendo permanentes nos institutos de beleza. Limitava-se a engrinaldar as tranças, semelhantes a ébano desfiado, com as flores brancas e encarnadas da macieira. Nem tão pouco usa-va o venenoso baton na boca ambrosíaca, de lábios na-carados, feitos com a polpa veludínea das romãs. As pombas ainda ruflavam sossegadas suas asas de prata, sem se preocuparem em ser símbolos da paz, porque não havia outra coisa senão paz. A abelha silvestre não fabricava mel para fins comerciais. Era apenas uma es-voaçante gota luminosa de ouro aveludado. O baru-lhento Wagner não existia. A única música murmureja-va nos trêmulos harpejos da sonora linfa de um arroio. Desconheciam as áspides da paixão, os rugidos das tem-pestades, os punhais de fogo do sofrimento, os cardos e os tojos das estradas poeirentas.

Adão e Eva desfrutaram uma vida venturosa por-que não tinham sogra. A desgraça só começou depois que a serpente, que era uma sogra disfarçada, con-

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venceu Eva a comer o fruto da árvore da ciência, do bem e do mal.

Tristan Bernard passava por uma das ruas mais mo-vimentadas de Paris conduzindo, com muito cuidado, uma enorme torta em cada mão. Um dos seus amigos, ao vê-lo, perguntou:

– Duas tortas, meu caro Tristan? Você é assim tão guloso?

– Engana-se, meu amigo. Estas duas tortas não são para mim. Explico: há dias passava com minha sogra diante de uma pastelaria. Ela disse, olhando duas mag-níficas tortas expostas na vitrina: “daria metade da mi-nha vida para comer uma dessas tortas!”

E, concluindo, Tristan Bernard acrescentou:– Assim sendo, o amigo compreende, levo-lhe duas...Outro que não apreciava as sogras era Coquelin Ca-

det, o epigramático ator cômico francês:– Conheço uma que dorme de óculos para melhor

ver sofrer, em sonho, o genro.Émile Augier, que renovou o teatro e preocupou-se, em

muitas peças, com os problemas do casamento, chegando a levantar em Madame Caverlet uma tese a favor do divórcio, declarou certa vez:

– As sogras são as grandes pedras de escândalo dos consórcios desiguais.

Conta Augusto de Lima que foi visitar, num dos arra-baldes de Ouro Preto, o romancista Bernardo Guima-rães. O autor de A escrava Isaura vivia os seus últimos

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anos quase na miséria, numa deprimente e humilhante pobreza. Queixando-se da sorte, lamentou:

– O meu destino é de tal ordem, meu amigo, que a minha sogra tem o nome de Felicidade!...

Estaria sendo injusto o iniciador do sertanismo no romance nacional? Não compreenderia sua sogra, como Leandro, personagem de Aluísio Azevedo? Afirma um dito popular, registrado por Perestrello da Câmara na sua Collecção de proverbios , adagios, rifãos, anexins, sen-tenças moraes e idiotismos da lingoa portugueza, que “amizade de genro é sol de inverno”.

Pobres criaturas! Como são caluniadas! Poucos sa-bem compreendê-las. Tanto os povos selvagens como os civilizados vem revelando, ao longo dos séculos, uma invencível sografobia...

Os cafres jamais vivem com elas. Nem pronun-ciam, muito menos, o seu nome. Os índios omáguas, da América do Norte, não permitiam que tivessem co-municação direta com os genros. Em Minahaça era proibido, a estes, mencionar o nome da sogra. Se, por distração, o nome lhes escapava, cuspiam logo no solo, exclamando:

– Enganei-me!Os espanhóis costumam soltar este provérbio:Suegra, ni aun de azucar es buena.Mas nem todas sogras são inimigas íntimas...Edgar Allan Poe teve em Marie Clemm, mãe de sua

esposa, um anjo tutelar. A senhora Clemm lhe arranja-

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va dinheiro quando não tinha um níquel, consolava-o nas desventuras, fazia-o adormecer perpassando a mão rechonchuda pela sua atormentada fronte. O poeta amou-a como se fosse sua progenitora. Numa carta, das últimas que escreveu, confessou:

“Você tem sido tudo...tudo para mim, querida e sempre amada mãe, a mais querida e verdadeira amiga.”

E a mãe da meiga Virgínia, depois que o autor de “O corvo” desapareceu, disse um dia:

“Jamais gostava de ficar sozinho, e eu costumava sentar-me com ele, muitas vezes até as quatro horas da madrugada. Ele, na sua mesa, escrevendo, e eu cochi-lando na minha cadeira. Quando estava compondo ‘Eureka’, costumávamos passear para lá e para cá no jar-dim, abraçados um ao outro, até ficar eu tão cansada, a ponto de não poder mais andar. Ele parava alguns mi-nutos e me explicava as suas ideias, perguntando-me se o entendia. Sempre me sentava perto dele quando esta-va escrevendo, e dava-lhe uma xícara de café quente, de uma ou de duas em duas horas. Em casa era simples e afetuoso como uma criança e durante todos os anos que viveu comigo, não me recordo de uma só noite em que tenha deixado de vir beijar sua ‘mãe’, como me chama-va, antes de ir para a cama.”

Que dirão, lendo este sentimental depoimento, os inimigos das sogras?

Excelente sogra, não podemos deixar de lembrar, foi a imperatriz Maria Teresa da Áustria, que persuadiu sua

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filha, a leviana Maria Antonieta, a respeitar o augusto e bonachão marido, Luís XVI. Chegou mesmo, esta de-dicada sogra, a passar severa descompostura na rainha de França, ao ver que esta se havia referido ao esposo de maneira irônica:

“Que linguagem! – exclama a austríaca numa carta dirigida à filha – Le pauvre homme! Onde estão o respeito e a gratidão por tanta bondade?”

Terêncio escreveu, no ano 165 antes de Cristo, uma comédia chamada Hecyra, na qual mostra uma sogra bondosa, simpática, ideal, cujo nome é Sostrata. Talvez, por causa disto, sua peça não obteve sucesso ao ser re-presentada...

Goldoni, na comédia La famiglia dell’ antiquario, explorou o antagonismo de uma sogra com a nora. A sogra “satânica” chama-se Isabella e a nora “seráfica” Doralice.

Há uma curiosa narrativa de Salomão Jorge, da qual me permito, com ousadia, fazer a transposição literária. Narra que certo califa recebeu, como pre-sente de um soberano chinês, um estranho metal. Segundo afirmava o ofertante, este não se derretia de nenhum modo. Não existia fornalha capaz de torná--lo menos frio, mais inconsistente. Era um metal único na Terra. O califa fez diversas experiências e verificou que realmente possuía natureza inamolgá-vel. Não obstante, mandou apregoar por todo o país que se alguém conseguisse alterá-lo, ainda que fosse

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de maneira mínima, ganharia três valiosos prêmios. O primeiro era uma cornucópia de bronze, contendo mil rubis mais rubros do que as sedas de Damasco. O segundo, um palácio de alabastro, coberto de to-pázios, com portas de ouro, todo pavimentando de esmeraldas, onde, num lago de águas verdes e nenú-fares de flores amarelas, deslizavam peixes azuis e prateados. O terceiro, uma dançarina circassiana, de lábios mais vermelhos que os abrunhos escarlates, cútis tão alva como o lódão sagrado dos egípcios, e olhos merencórios, à semelhança de uma ave cujas asas estivessem partidas.

Surgiram três candidatos. O califa mandou colocar o metal em cima de uma rígida pedra e reclinou-se em fofas almofadas de seda. Ia presenciar as experiências cercado por lânguidas odaliscas cobertas de véus trans-parentes. Guardavam sua sagrada pessoa trinta núbios de torsos desnudos, trajados de bombachas brancas e calçados com pantufas encarnadas.

O primeiro que surgiu, disposto a vergar o singular metal, era um homem de barba ruiva, carregando um alfange esguio, curvo como o crescente. Trazia escudo oblongo, onde se desenhava um dragão alado, de bocar-ra ignescente. Vestia uma cota feita de couro de javali e via-se, pelo seu punhal de cabo lavrado, pelo seu elmo cintilante, que era um guerreiro. Avançou com passos hieráticos, marciais... Ergueu o alfanje e desferiu no metal um violento golpe, que silvou como a mais rápi-

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da das serpentes. Não aconteceu nada. Apenas sua arma encurvou-se ainda mais.

Depois surgiu um gigante de quase quatro metros de altura. Segurava, numa das manzorras calosas, um pesa-do machado de ferro. Cada brinco de cobre que pendia de suas orelhas acabanadas, semelhantes às de um oran-gotango, tinha a largura e a espessura de um grosso bra-celete. Levantou, qual o homem das cavernas, sua tosca arma, e arremessou-a, num relâmpago, sobre o metal. O machado pulverizou-se em estilhas, espalhando no ar uma tênue poeira clara.

Por fim apareceu um mercador franzino, de rosto lívido, cabelos crescidos até as costas, traje curto e surrado, de mãos amarelas e finas como pergami-nhos. Desamarrou, ante o olhar surpreso de todos, um minúsculo embrulho. Dentro se achava um pe-dacinho róseo, sanguíneo, de carne. Com muita de-licadeza encostou, de leve, aquela matéria flácida, roxa, mal cheirosa, no elemento invencível, que por escárnio parecia rebrilhar com fulgor diabólico. Uma chispa acendeu-se e ouviu-se um pavoroso estrondo. A sala foi invadida por calor causticante. Todas fisio-nomias ficaram congestionadas e o ambiente, dando a impressão de haver sido incendiado, tornou-se pur-púreo. O califa levantou-se, lesto, dos seus macios coxins e correu para perto do metal que se tinha transformado, ó milagre!, em matéria visguenta, pas-tosa, a esparramar-se pelo chão.

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– Homem! – exclamou louco de espanto o califa – de que extraordinária substância é feito o teu talismã maravilhoso? Que naco de carne é este, tão virulento que é capaz de derreter o mais sólido, o mais vigoroso, o mais inabalável de todos os corpos? Diga-me, por Alá!

– Emir dos Crentes – respondeu o homenzinho – este talismã tão poderoso é apenas um pedaço da língua de minha sogra.

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