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Capítulo 5 A PERCEPÇÃO MATEMÁTICA ou por onde começar? A fim de auxiliar o professor na organização de situações que permitam à criança observar, refletir, interpretar, levantar hipóteses, procurar e encontrar explicações ou soluções, exprimir ideias e sentimentos, conviver com os colegas, explorar melhor seu corpo, elaboramos a proposta a seguir. Ela visa ao desenvolvimento integral da criança, como não poderia deixar de ser, mas possui propositalmente um componente direcionado à futura aprendizagem de matemática. Por ora, trata-se apenas de favorecer o desenvolvimento do que chamamos de senso matemático infantil, o que pode ser feito por meio de explorações do campo matemático. No entanto, é preciso, inicialmente, observar que esse importante trabalho de exploração matemática a ser proposto às crianças sofre duas diferentes contribuições negativas, ambas externas a elas, mas que podem lhes afetar fortemente em seu desenvolvimento: a primeira vem dos próprios professores, que não incluem no processo de exploração matemática inúmeras atividades, por julgá-las muito simples, e, portanto, desnecessárias ou inúteis à aprendizagem; a segunda vem dos pais, que cobram da pré-escola o ensino de numerais e até mesmo de algumas “continhas”. Atender a esse pedido é provavelmente dar à criança um péssimo começo para o longo caminho da aprendizagem do importante significado que a matemática terá em sua vida; seria fazer como o pedreiro que se põe apressadamente a construir as paredes de uma casa sem ter preparado o alicerce. Surge, então, uma questão fundamental: por onde a educação infantil deve começar o trabalho de desenvolvimento do senso matemático das crianças? Em outras palavras, quais os assuntos a serem abordados e como podemos tratá-los 1 ? Toda criança chega à pré-escola com alguns conhecimentos e habilidades no plano físico, intelectual e socioafetivo, fruto de sua história de vida. Essa bagagem, que difere de criança para criança, precisa ser identificada pelo professor e, se possível, com o auxílio dos pais; o respeito a essa experiência pessoal é fator determinante para que sejam atingidos os objetivos desejados. Enfim, temos de começar por onde as crianças estão e não por onde gostaríamos que elas estivessem. Nossa proposta, seguindo a tendência internacional, sugere realizar a exploração matemática em três campos aparentemente independentes: o espacial, das formas, que apoiará o estudo da geometria; o numérico, das quantidades, que apoiará o estudo da aritmética; e o das medidas, que desempenhará a função de integrar a geometria com a aritmética. 1 Os grifos no decorrer do texto são nossos.

A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato

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Page 1: A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato

Capítulo 5

A PERCEPÇÃO MATEMÁTICA

ou por onde começar?

A fim de auxiliar o professor na organização de situações que permitam à criança observar,

refletir, interpretar, levantar hipóteses, procurar e encontrar explicações ou soluções, exprimir

ideias e sentimentos, conviver com os colegas, explorar melhor seu corpo, elaboramos a proposta

a seguir. Ela visa ao desenvolvimento integral da criança, como não poderia deixar de ser, mas

possui propositalmente um componente direcionado à futura aprendizagem de matemática.

Por ora, trata-se apenas de favorecer o desenvolvimento do que chamamos de senso

matemático infantil, o que pode ser feito por meio de explorações do campo matemático. No

entanto, é preciso, inicialmente, observar que esse importante trabalho de exploração matemática

a ser proposto às crianças sofre duas diferentes contribuições negativas, ambas externas a elas,

mas que podem lhes afetar fortemente em seu desenvolvimento: a primeira vem dos próprios

professores, que não incluem no processo de exploração matemática inúmeras atividades, por

julgá-las muito simples, e, portanto, desnecessárias ou inúteis à aprendizagem; a segunda vem

dos pais, que cobram da pré-escola o ensino de numerais e até mesmo de algumas “continhas”.

Atender a esse pedido é provavelmente dar à criança um péssimo começo para o longo caminho

da aprendizagem do importante significado que a matemática terá em sua vida; seria fazer como

o pedreiro que se põe apressadamente a construir as paredes de uma casa sem ter preparado o

alicerce.

Surge, então, uma questão fundamental: por onde a educação infantil deve começar o

trabalho de desenvolvimento do senso matemático das crianças? Em outras palavras, quais

os assuntos a serem abordados e como podemos tratá- los 1?

Toda criança chega à pré-escola com alguns conhecimentos e habilidades no plano físico,

intelectual e socioafetivo, fruto de sua história de vida. Essa bagagem, que difere de criança para

criança, precisa ser identificada pelo professor e, se possível, com o auxílio dos pais; o respeito a

essa experiência pessoal é fator determinante para que sejam atingidos os objetivos desejados.

Enfim, temos de começar por onde as crianças estão e não p or onde gostaríamos que elas

estivessem .

Nossa proposta, seguindo a tendência internacional, sugere realizar a exploração

matemática em três campos aparentemente independent es: o espacial , das formas, que

apoiará o estudo da geometria; o numérico , das quantidades, que apoiará o estudo da

aritmética; e o das medidas , que desempenhará a função de integrar a geometria com a

aritmética .

1 Os grifos no decorrer do texto são nossos.

Page 2: A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato

Até aqui, foram estabelecidos dois pontos básicos em nossa proposta: o de aproveitar os

conhecimentos e habilidades de que as crianças são portadoras e o de explorar os três campos

matemáticos. Mas, em sala de aula, por onde começar as atividades, afim de que tenhamos uma

probabilidade maior de sucesso? Eis, então, nosso terceiro ponto: começar o trabalho pelas

noções de:

Essas noções devem ser introduzidas ou revisadas verbalmente e por meio de diferentes

situações, materiais manipuláveis, desenhos, histórias ou pessoas. Essa diversidade de modo no

tratamento de cada noção é que facilitará a percepção do significado de cada uma delas. Como o

tratamento está no plano verbal, torna-se favorável a utilização de indagações, tais como: Como

ele é? Onde ele está? O que está acontecendo? Onde acontece isso? Quando aconteceu? Como

eles são diferentes? Qual é o maior? Qual deles possui mais? Para onde ele foi?..., cujas

respostas recaem diretamente nas noções mencionadas anteriormente.

Seja qual for a noção e o campo matemático (espaço, número, medida) que estiver sendo

trabalhado, haverá sempre uma relação direta com um dos conceitos físico-matemáticos

seguintes:

Por isso, é importante que o professor compreenda claramente tais conceitos, para que ele

possa ter segurança na condução das atividades com as crianças.

grande / pequeno

maior / menor

grosso / fino

curto / comprido

alto / baixo

largo / estreito

perto / longe

leve / pesado

vazio / cheio

mais / menos

muito / pouco

igual / diferente

dentro / fora

começo / meio / fim

antes / agora / depois

cedo / tarde

dia / noite

ontem / hoje / amanhã

devagar / depressa

aberto / fechado

em cima / embaixo

direita / esquerda

primeiro / último / entre

na frente / atrás / ao lado

para frente / para trás / para o lado

para a direita / para a esquerda

para cima / para baixo

ganhar / perder

aumentar / diminuir

tamanho

lugar

distância

forma

quantidade

número

capacidade

tempo

posição

medição

operação

direção

volume

comprimento

massa

Page 3: A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato

É preciso ressaltar que, para o professor ter sucesso na organização de situ ações que

propiciem a exploração matemática pelas crianças, é também fundamental que ele

conheça os sete processos mentais básicos para apre ndizagem da matemática, que são:

correspondência, comparação, classificação, sequenc iação, seriação, inclusão e

conservação . Se o professor não trabalhar com as crianças esses processos, elas terão grandes

dificuldades para aprender número e contagem, entre outras noções. Sem o domínio desses

processos, as crianças poderão até dar respostas corretas, segundo a expectativa e a lógica dos

adultos, mas, certamente, sem significado ou compreensão para elas. Vejamos o que significa

cada um desses processos, que podem se referir a objetos, situações ou ideias:

1. Correspondência: é o ato de estabelecer a relação “um a um”. Exemplos: um prato para

cada pessoa; cada pé com seu sapato; a cada aluno, uma carteira. Mais tarde, a

correspondência será exigida em situações do tipo: a cada quantidade, um número

(cardinal), a cada número, um numeral, a cada posição (numa sequencia ordenada),

um número ordinal.

2. Comparação: é o ato de estabelecer diferenças ou semelhanças. Exemplos: esta bola é

maior que aquela; moro mais longe que ela; somos do mesmo tamanho? Mais tarde,

virão: Quais destas figuras são retangulares? Indique as frações equivalentes.

3. Classificação: é o ato de separar em categorias de acordo com semelhanças ou

diferenças. Exemplos: na escola, a distribuição dos alunos por séries; arrumação de

mochila ou gaveta; dadas várias peças triangulares, e quadriláteras, separá-las

conforme o total de lados que possuem.

4. Sequenciação: é o ato de fazer suceder a cada elemento um outro sem considerar a

ordem entre eles. Exemplos: chegada dos alunos à escola; entrada de jogadores de

futebol em campo; compra em supermercado; escolha ou apresentação dos números

nos jogos loto, sena e bingo.

5. Seriação: é o ato de ordenar uma sequência segundo um critério. Exemplos: fila de

alunos, do mais baixo ao mais alto; lista de chamada de alunos; numeração das casas

nas ruas; calendário; loteria federal (a ordem dos números sorteados para o primeiro ou

quinto influi nos valores a serem pagos); o modo de escrever números (por exemplo,

123 significam uma centena de unidades, mais duas dezenas de unidades, mais três

unidades e, portanto, é bem diferente de 321).

6. Inclusão: é o ato de fazer abranger um conjunto por outro. Exemplos: incluir ideias de

laranjas e bananas, em frutas; meninos e meninas, em crianças; varredor, professor e

porteiro, em trabalhadores, na escola; losangos, retângulos e trapézios, em

quadriláteros.

7. Conservação; é o ato de perceber que a quantidade não depende da arrumação, forma

ou posição. Exemplos: uma roda grande e outra pequena, ambas formadas com a

Page 4: A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato

mesma quantidade de água; uma caixa com todas as faces retangulares, ora apoiada

sobre a face menor, ora sobre outra face, conserva a quantidade de lados ou de cantos,

as medidas e, portanto, seu perímetro, área e volume.

Os exemplos aqui apresentados devem ser interpretados como sugestões para abordagem

dos processos mentais em sala de aula, e não como conteúdos matemáticos para a educação

infantil. É importante lembrar que o fato de crianças terem uma mesma idade não garante que

apresentem a mesma maturidade cognitiva em alguns desses processos. Essas defasagens

momentâneas desaparecerão com o desenvolvimento de atividades diversificadas, conforme

sugestões apresentadas nas páginas seguintes.

Convém ainda salientar que os processos aqui descritos não estão restritos a um

determinado campo de conhecimento, na medida em que podem interagir com qualquer situação

do cotidiano. Na verdade, eles são abrangentes e constituem-se num alicerce que será utilizado

para sempre pelo raciocínio humano, independentemente do assunto ou tipo de problema a ser

enfrentado.

Antes de prosseguir com a apresentação de algumas considerações sobre os três campos

matemáticos a serem explorados na educação infantil (número, espaço e medida), é necessário

ressaltar a importância da integração entre os assuntos até aqui abordados. Foi por questão

didática e para facilitar o planejamento do professor de educação infantil que esses mesmos

assuntos foram apresentados em forma de itens, ou seja:

• Quem é a criança pré-escolar (características, conhecimentos e habilidades);

• Que campos matemáticos devem ser explorados na educação infantil (geometria, medição

e aritmética);

• Que noções devem ser trabalhadas (alto/baixo, mais/menos...);

• Que conceitos devem ser desenvolvidos (tempo, massa, distância...);

• Quais são os processos mentais básicos para aprendizagem da matemática

(correspondência, classificação...).

Embora cada um desses assuntos tenha sua especificidade, todos eles devem estar

presentes no planejamento do trabalho do professor, pois tão importante quanto trabalhar com

todos esses fatores é fazê-lo de forma mesclada e integrada; é nessa integração que reside o

verdadeiro favorecimento didático para o progresso educacional da criança. E é justamente nisso

que se constitui a pré-matemática. Em sala de aula, essa integração aparece de forma mais

simples e natural possível. Por exemplo, ao se explorar o espaço, propomos a comparação de

formas; estamos assim usando a geometria e o processo mental de comparação; para expressar

medidas, utilizamos números (medição x conceito de número); podemos auxiliar a contagem

através do uso de figuras geométricas (conceito de número x geometria), e assim por diante.

Page 5: A percepção matemática ou por onde começar - Sérgio Lorenzato

Além da integração mencionada, é preciso trabalhar o mesmo assunto apresentando-o

e reapresentando-o diversas vezes, mas com a variaç ão do contexto : assim, a comparação

aparece num primeiro momento para “verificar quem é a mais alta das crianças”; num segundo

momento, para descobrir “qual é a fileira mais comprida”; depois, para discernir “qual é a cor mais

parecida”, etc., trabalhando ora com pessoas, ora com objetos, ora com imagens, ora com

histórias. É justamente essa diversificação de atividades, experiências e contextos, a respeito de

um mesmo conceito, que favorece a formação do conceito que está sendo construído pela

criança.

Nesse sentido, o educador francês Vergnaud (1995) diz que todo campo conceitual é

constituído por:

a) Um conjunto de situações que, para dar significado a um conceito, devem ser distintas e

diferenciadas entre si e referentes ao mesmo conceito;

b) Um conjunto de invariantes presentes em diferentes e distintas situações, que indicam

constâncias, regularidades ou semelhanças. São os invariantes que dão significado ao

conceito;

c) Um conjunto de representações, que são linguagens e símbolos utilizados para representar

o conceito. São os significantes do conceito.

Finalmente, é imprescindível que o professor avalie constantemente seu trabalho, fazendo

a si próprio, frequentemente, questões do tipo:

• Como tenho abordado os assuntos que desejo desenvolver com meus alunos?

• As questões que são sugeridas estão auxiliando o aluno na (re)descoberta das noções que

quero propor?

• Tenho proporcionado a participação de todas as crianças, ouvindo-as e incentivando-as a

opinar?

• As atividades propostas estão adequadas às possibilidades de meus alunos?

• O que pretendo com cada atividade proposta?

• A integração dos assuntos está satisfatória?

• Há necessidade de rever a distribuição do tempo entre os vários “conteúdos”?

Referência Bibliográfica

LORENZATO, S. Educação Infantil e Percepção Matemática . Campinas, SP: Autores

Associados, 2006. p.23-28.