Deus, Por Onde Começar

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Filosofia da religião

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    Deus: Por onde comear?

    (e outros Ensaios)

    Joo Carlos Silva

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    FICHATCNICA

    Ttulo: Deus: Por onde comear? (e outros Ensaios)Autor: Joo Carlos Silva

    Coleco: Artigos LUS OSOFIADesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2011

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    (e outros Ensaios)

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    ndice

    Deus: Por onde comear? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4O paradoxo do ovo e da galinha. . . . . . . . . . . . . . . . 9Se o Universo Existe, ento quem o criou? . . . . . . . . . . 14De Que Falamos Quando Falamos De tica Republicana?. . 21Os trs demnios inimigos da Filosofia. . . . . . . . . . . . 53

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    Deus: Por onde comear?1

    Por onde comear a investigar filosoficamente o problema de Deus?

    Que questo deve ter prioridade sobre as outras? Saber se existe?Saber o que ? Ou saber se possvel conhecer alguma coisa a re-speito? primeira vista, qualquer uma parece igualmente boa paracomear, mas uma anlise mais cuidadosa revela que no assim.Rapidamente se descobrem prs e contras em todas elas e o opti-mismo inicial corre o risco de se converter em pessimismo cpticoe paralisar a investigao. Analisemos cada uma delas com algumdetalhe e vejamos onde isso nos conduz. Admitamos, por hiptese,que a primeira a melhor para iniciar: Deus existe ou no? No lgico que esta a questo das questes, a primeira de todas, a

    que deve ser colocada e respondida antes de qualquer outra? Pois,se Deus no existir, que sentido faz continuar a colocar as outrasquestes? Nenhum, no verdade?! Se ele no existir, a questoda sua identidade ou essncia, bem como do nosso conhecimentodele, so questes vazias e absurdas; por isso, devemos decidirprimeiro se ele existe ou no e s depois perguntar o que e o quepodemos saber sobre ele, certo?! Errado! Pois, por outro lado,que sentido faz perguntar se Deus existe, sem sabermos o que ele? Sem sabermos do que estamos a falar quando usamos a palavraDeus, qual o seu significado? Nenhum, como evidente! ab-surdo perguntar se algo existe, sem que faamos a mnima ideia doque esse algo, ou no?! Portanto, talvez a segunda questo devater prioridade lgica e metodolgica sobre as outras duas! Definir

    1 Publicado originalmente na revista onlineCrticae posteriormente no livroA Natureza das Coisas do Ponto de Vista da Eternidade, Chiado Editora, Lisboa,Dezembro de 2010.

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    primeiro o objecto que se quer conhecer e s depois determinar seele existe e pode ser conhecido ou no! Mas tambm aqui podemosencontrar uma objeco a esta tese: como possvel determinar aidentidade essencial de algo que se desconhece se existe ou sequerse pode ser conhecido? Determinar a essncia de uma coisa ou serno implicar necessariamente um duplo compromisso ontolgicoe epistmico com a sua existncia real e com a possibilidade de oconhecer? Dizer que X igual a Y ou que pode ser caracterizadopelas propriedades A, B e C, no pressupe a existncia de X e onosso conhecimento do mesmo? E como podemos ns afirmar aessncia ou existncia de algo, sem que isso pressuponha ou im-plique o nosso conhecimento desse algo, precisamente da sua es-sncia e/ou existncia? No ser ento mais acertado, e porventuraa nica via possvel, comear com a terceira e ltima das questes,isto , saber se podemos ou no conhecer algo sobre o objecto emcausa? Afinal possvel saber algo sobre Deus ou no? S resol-vendo isto, podemos e devemos avanar para as outras, j que umaresposta negativa a esta questo esvazia e impossibilita qualquer

    uma das outras; se nada podemos saber em relao a Deus, nemo que nem se existe, resta-nos acatar humildemente a mximalgico-filosfico conhecida, segundo a qual devemos calar aquilode que no podemos falar, mas aqui sem qualquer sada mstica,simplesmente suspendendo todo o juzo sobre o objecto, por im-possibilidade cognitiva radical! Mas, uma vez mais, tambm aquise pode descobrir um argumento contra tal tese: como podemos de-cidir que nada se pode saber sobre algo que desconhecemos? No isto absurdo? Afirmar que no podemos conhecer um objectoqualquer, real ou imaginrio, concreto ou abstracto, possvel ou ac-

    tual, no implica saber ou acreditar que isso existe e o que isso ?Caso contrrio, que legitimidade racional temos para defender talideia? Mas ento, se cada uma das questes parece reenviar para asoutras, pressupondo-as e/ou implicando-as reciprocamente numarede de interdependncias, como desatar este n lgico, como sair

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    deste beco aparentemente sem sada da investigao filosfica so-bre Deus? Haver uma sada? Ou estamos condenados a maisuma aporia do comeo, sem soluo racional possvel, a no ser oagnosticismo radical face a qualquer uma dessas questes e ao pro-blema de Deus como um todo? Ser que existe uma quarta questoque resolve o problema? Ser a escolha arbitrria e o ponto departida indiferente? Ser a questo do comeo uma falsa questo?Ser possvel atac-las a todas ao mesmo tempo? Ser a aporia realou aparente? Como resolver este dilema, ou melhor, este trilema,uma vez que so trs questes? A soluo existe e pode ser inspi-rada no engenho mtico de dois personagens histricos: Alexandree a histria clssica do n grdio e Colombo e o lendrio problemado ovo! Analogamente ao corte do n com a espada e quebrada base do ovo, a soluo do nosso paradoxo teolgico-filosficoconsiste na sua dissoluo, isto , em perceber que, na realidade,uma das questes pode e deve ser preferidas outras, porque umadas objeces que enfrenta no , pura e simplesmente, vlida eassenta num equvoco que pode ser desfeito. De facto, no s

    possvel, como mesmo requisito prvio, indispensvel a qualquerinvestigao, que se defina a priori, conceptualmente, o objecto ainvestigar, pois, caso contrrio, no s no se saberia o que procu-rar, como, caso se descobrisse a resposta, nunca se saberia se eraverdadeira ou falsa, dada a indefinio original quanto s condiesnecessrias ou suficientes que a mesma deveria satisfazer. Assim,a definio conceptual de Deus, a sua caracterizao a priori comoum ser com determinadas propriedades essenciais especficas (re-conhecidas, alis, salvo pequenas diferenas, por todas as religiesmonotestas e tanto por crentes, como por ateus e agnsticos),

    condio necessria para se inquirir quer a sua existncia, quer asua cognoscibilidade reais, e no implica necessariamente qual-quer compromisso ontolgico ou epistmico, uma vez que se tratato s de definir o significado essencial de um termo, a forma como usado, ou aquilo que queremos dizer quando falamos disso, em

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    suma, o conceito de Deus. Do que falamos quando falamos deDeus?, eis a questo prioritria, que , no fundo, outra maneira deperguntar o que Deus, ou seja, a que tipo de ser corresponde otermo Deus. Tal como inquirir se o Pai Natal, o rato Mickey, oSuper-Homem ou o conde Drcula existem pressupe to s quesaibamos do que estamos a falar, isto , que conheamos o sig-nificado desses termos e no implica qualquer compromisso on-tolgico, isto , nenhuma crena prvia na sua existncia real, tam-bm no caso de Deus isso acontece e fica assim claro qual deve sera questo que deve iniciar a pesquisa.

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    O paradoxo do ovo e da galinha2

    O famoso problema-paradoxo do ovo e da galinha o qual con-

    siste, na sua verso popular, em saber qual dos dois nasceu primeiro- , no passa afinal de um caso exemplar de falso problema ou pro-blema mal formulado, que se resolve (ou dissolve) logo que cor-rectamente compreendido e definido! Seno, vejamos, analisandologicamente a sua estrutura, a fim de verificar onde se encontraafinal o erro que gera o paradoxo: se aceitarmos a formulao co-mum nos seus exactos termos Qual dos dois nasceu primeiro,o ovo ou a galinha? -, fica claro que s uma das duas hipteses aceitvel como resposta, o que delimita imediatamente o campodas possibilidades de soluo do problema, reduzindo-as a duas al-

    ternativas mutuamente exclusivas e eliminando a priori qualqueroutra! O problema comea exactamente a, pois, uma vez quesabemos que o ovo s pode provir de uma galinha e que a ga-linha, por sua vez, s pode provir de um ovo, o jogo fica viciado partida por essa colocao, condicionando a forma mental de opensar e tentar resolver! Mas o que que nos garante que esta for-mulao adequada? No haver outra melhor? Por que no nemum nem outro, ou ambos simultaneamente? Por que no podem agalinha e o ovo ter surgido ao mesmo tempo? Porqu a galinhaou o ovo e no a galinha e o ovo? Por que no Como surgi-ram a galinha e o ovo?, em vez de Qual deles surgiu primeiro??Talvez o problema esteja exactamente aqui, nos pressupostos daquesto, nas premissas ocultas do raciocnio que conduz questo,

    2 Publicado originalmente no livro A Natureza das Coisas do Ponto de Vistada Eternidade, Chiado Editora, Lisboa, Dezembro de 2010.

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    em suma, no que assumimos saber e no sabemos de facto. Masvoltemos ligeiramente atrs na anlise e vejamos o que acontece sefizermos um pouco de batota, aceitando a formulao do problematal como literalmente colocado, no acrescentando nem retirandonada sua forma explcita: poder-se-ia ento responder que, nessecaso, de acordo com o que sabemos da biologia evolutiva, o ovonasceu primeiro que a galinha, j que as galinhas so uma espciede aves entre muitas outras, e, muito antes de haver galinhas, asespcies que as precederam e que lhes deram origem j punhamovos, e, antes de qualquer ave existir, os dinossauros, seus maisdo que provveis antepassados, j os punham tambm, e, antesdeles, os seres que, por sua vez, os originaram (anfbios, peixes,etc) tambm j o faziam, e assim sucessivamente at ao primeiroovo, ao mtico ovo original, que talvez nunca tenha existido comotal, mas cuja sucesso e descendncia seguramente muito ante-rior s galinhas! E assim temos o problema resolvido: afinal, foimesmo o ovo que nasceu primeiro que a galinha, qualquer galinha,correcto!? No fundo, limitmo-nos a responder ao problema tal

    como habitualmente formulado! Onde est ento o problemadesta soluo? Porqu falar de batota? H razes para protestare contestar esta resposta? bvio que sim! uma soluo enge-nhosa, la Alexandre, o Grande ou la Colombo, mas no sria,porque claro que, ainda que o termo ovo no aparea explicita-mente definido e identificado, na formulao popular, como sendode galinha, evidente que implicitamente disso que se trata e isso que as pessoas tm em mente quando representam o problemadessa forma, o que invalida a pseudo-soluo anterior! Mas en-to em que ficamos? Se esta soluo no serve, qual a soluo

    afinal? Se um ovo (de galinha) s pode nascer de uma galinha ese uma galinha s pode nascer de um ovo (de galinha), como sairdeste impasse? A resposta : distinguindo os dois planos sobre-postos que geram a confuso e produzem o erro! E que planos soesses? O ontogentico e o filogentico, o plano do indivduo e do

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    seu desenvolvimento e o plano da espcie e da sua evoluo! O erroest em ignorar essa distino na formulao do problema, esque-cendo que galinhas e ovos de galinha so um e mesmo ser-espcieem diferentes fases do seu desenvolvimento individual. Galinhasadultas e ovos de galinha representam etapas no desenvolvimentoontogentico isto , dos organismos individuais da mesma es-pcie e, portanto, evoluram filogeneticamente em conjunto e emsimultneo, como um s organismo-espcie, e, logo, no houvenenhuma galinha especificamente diferenciada que tenha posto umprimeiro ovo, nem um primeiro ovo posto por outro animal no-galinceo que tivesse originado a primeira galinha! Ambos, ovosde galinha e galinhas, evoluram gradual e progressivamente, comopartes, aspectos e momentos de uma mesma espcie, elementosde um mesmo sistema evolutivo! Assim, poder-se-ia dizer compropriedade que, tanto o ovo como a galinha, surgiram afinal aomesmo tempo na ordem filogentica, ao contrrio do que acon-tece na ordem ontogentica, onde um precede necessariamente ooutro! O erro est, assim, na projeco de uma ordem sobre a outra,

    confundindo-as e misturando-as equivocamente. Deste modo, faztanto sentido perguntar O que nasceu primeiro, o ovo ou a gali-nha?, como perguntar O que nasceu primeiro, o embrio (ou ofeto) ou o homem?. Se nos referirmos ao embrio humano, claroque, tal como acontece com os ovos e as galinhas, embries e fetoshumanos so tambm apenas fases do desenvolvimento de organis-mos individuais e no de espcies - quer exista ou no paralelismoe recapitulao onto-filogentica, que indiferente para o caso. Oembrio humano, tal como o feto, o beb, a criana, o adolescente,o adulto e o velho, sucedem-se to s ao nvel da vida individual e

    no da espcie, que tem outra lgica de desenvolvimento diferentedos organismos individuais que a compem. Como evidente, sfaz sentido perguntar o que apareceu primeiro, se a criana ou oadulto, no plano da vida individual e no da espcie como um todo,o que tornaria a pergunta absurda. Em concluso, a resposta directa

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    e objectiva ao problema-paradoxo o seguinte: na forma como equacionado, o problema no tem soluo, um falso problema,porque est mal colocado, uma vez que nem o ovo nem a galinhanasceram ou poderiam ter nascido um primeiro que o outro, tendoambos, na realidade, surgido em simultneo embora no instanta-neamente ao longo de um mesmo processo evolutivo! A soluofinal seria, portanto: nem um, nem outro! Ambos! A questo pura e simplesmente absurda! Tal como seria obviamente absurdoperguntar se uma pessoa um rinoceronte ou um eucalipto, ou seum professor um mamfero ou um ser humano, pela simples razode que, no primeiro caso, a resposta s poderia ser Nem um, nemoutro! e, no segundo caso, que ambas so verdadeiras.

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    Se o Universo Existe, ento quem o criou? anlise filosfica de uma questo viciada3

    Quando se afirma, perguntando retoricamente: se o Universo ex-iste, ento quem o criou?, estamos perante outra questo viciada,outro problema mal formulado, cuja soluo bvia e previsvelface forma como colocado. Que o Universo existe, seja ele oque for, como for ou porque for, um facto incontestvel. Masque da constatao pura e simples da sua existncia se passe au-tomaticamente para a ideia de um criador necessrio, eis o queprecisa de ser demonstrado e no apenas pressuposto ou tacita-mente assumido! Como acontece frequentemente, o problema estem a questo presumir saber, na sua estrutura, aquilo que de facto

    no sabe, ou seja, est na premissa oculta que a condiciona e for-mata! E qual ela? Que tudo o que existe, no s teve umaorigem e uma causa, como foi criado por algum! Em suma, sealgo existe, ento algum criou. Mas ser isso verdade? Serque por detrs de todas as coisas, seres e acontecimentos se en-contra necessariamente um sujeito responsvel, seja ele natural ousobrenatural, humano ou sobre-humano? Porqu acreditar nisso?Como sabemos que isso verdade? H algo na realidade objectivaque o evidencie ou justifique inquestionavelmente? No ser maisprovvel que a razo explicativa desse esquema mental resida, no

    tanto no mundo, mas em ns mesmos, ou seja, precisamente naprpria estrutura intencional da mente humana, com os seus de-

    3 Publicado originalmente na revista onlineCrticae posteriormente no livroA Natureza das Coisas do Ponto de Vista da Eternidade, Chiado Editora, Lisboa,Dezembro de 2010.

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    sejos e crenas, emoes e cognies, estados de conscincia efinalidades mais ou menos inconscientes? No ser uma expli-cao mais plausvel, face a tudo o que sabemos da natureza hu-mana e no-humana, que esse pressuposto tenha origem na pro-jeco para o exterior da nossa prpria estrutura e funcionamentopsquicos internos? A atribuio de qualidades, motivos, signifi-cados e sentimentos humanos ao mundo natural no humano umfenmeno universal e perene, um padro constante da natureza econdio humanas, na histria e cultura de todos os povos e pocas,no plano individual e colectivo. A esse processo podemos chamarprojeco, alienao, animismo, panpsiquismo, ou, mais comum-mente, antropomorfismo, dependendo da inteno mais descritivo-explicativa ou crtica dos seus proponentes, bem como da disci-plina cientfica que praticam, mas em todo o caso trata-se basica-mente do mesmo fenmeno. Freud disse certa vez, a propsito, queaquilo que diferenciava a viso do mundo da psicanlise da visodo mundo do ocultismo e da religio no fazendo aqui qualquerdiferena para o efeito era que a psicanlise acreditava na existn-

    cia do acaso e na ausncia de sentido entendido como significadoe finalidade no mundo externo, mas no a aceitava no mundopsquico interior, enquanto o ocultismo e a religio afirmam, defen-dem ou pressupem exactamente o contrrio disso, isto , que osindivduos podem pensar, sentir ou fazer coisas sem inteno, mo-tivo ou significado, mas que tudo o que existe e acontece no mundoexterior tem significado, corresponde a intenes e tem uma finali-dade ou desgnio! Parece uma observao lcida, com a qual dif-cil no concordar no essencial! Claro que podemos interrogar porque que isso acontece, porque temos ns essa necessidade, simul-

    taneamente cognitiva e emocional, de interpretar de forma criativae projectiva a realidade, subjectivando-a e delirando-a, imageme semelhana dos nossos desejos, crenas, emoes e intenes,quer dizer, recriando-a imagem e semelhana de ns prprios! Etalvez a explicao seja complexa e inclua factores de vria ordem,

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    mas, como no esse o nosso objectivo aqui, basta-nos referir queessa tendncia humana, demasiado humana, corresponde provavel-mente a uma forma ao mesmo tempo defensiva e estruturante dedar um rosto humano quilo que no o , de personalizar e sen-sibilizar o que impessoal e indiferente, para nos fazer sentir emcasa e no centro de tudo, com tudo o que existe e acontece gi-rando nossa volta e tendo como sentido ltimo a nossa prpriaexistncia individual ou colectiva; no fundo, um protesto primrioantropolgico contra angstia, a solido, o acaso, o desamparo, afinitude, o absurdo, o sofrimento e a morte; um exorcismo psquicodo medo infantil e animal original face estranheza, independnciae indiferena da realidade no-humana, que, ao ser humanizada,nos d uma iluso de segurana. Isto, combinado com a loucuracrnica da humanidade, com a sua incapacidade estrutural ou, pelomenos, extrema dificuldade cognitiva em distinguir o real e o ima-ginrio, o subjectivo e o objectivo, juntamente com a facilidade enatural predisposio para confundir os dois planos da fico e dafantasia com a realidade, sobretudo quando a primeira permite um

    consolo e uma iluso de controlo e proteco que a segunda nofornece ou favorece. Ser esta a origem ltima dos mitos, da ma-gia e da religio? Talvez! Talvez seja humanamente irresistvel,porque emocional e cognitivamente consolador, atribuir imaginar-iamente um sentido humano, um rosto humano e propsitos hu-manos a tudo o que existe e acontece, pois assim tudo fica maiscompreensvel, mais nossa escala, mais acolhedor e menos as-sustador, frio, indiferente e insensvel. Se tudo for animado porespritos ou governado por um Esprito; se tudo for efeito de umavontade e de uma inteligncia de preferncia, omnipotente, om-

    nisciente, omnipresente e absolutamente boa -, ento o mundo e avida no s no so absurdos, como tm uma lgica humanamenteacessvel, no apenas razo humana, mas ao corao humano,uma lgica de bondade, justia e sabedoria, uma lgica humana,no fundo! No tentador pensar assim e acreditar nisto? No ser

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    esta uma ideia consoladora face realidade muitas vezes terrvele assustadora e nossa necessidade de consolo virtualmente im-possvel de satisfazer? Parece ser, a julgar pela universalidade, an-tiguidade e perenidade da mesma! Mas, voltando nossa questooriginal e analisando agora o problema do ponto de vista lgico eepistmico, e no do ponto de vista psicolgico ou antropolgico o qual explica mas no justifica -, se o primeiro defeito da per-gunta est aqui, em pressupor que algum necessariamente criou ouniverso, esse no o nico defeito que se pode assinalar. Logica-mente, a primeira coisa a fazer provar que, se algo existe, entotem que ter uma origem, isto , ter comeado a existir, no po-dendo existir desde sempre sem um princpio; em segundo lugar,seria necessrio demonstrar que, a ter um princpio ou origem, talno pode ter ocorrido sem uma razo suficiente ou causa necessriapara o efeito. Em terceiro lugar, seria preciso provar que essa causaou razo no pode ter sido puramente natural ou fsica - se quefaz algum sentido procurar uma causa natural ou fsica para ex-plicar a origem de toda a natureza fsica -, um algo, uma fora ou

    causa eficiente no-inteligente ou intencional; em quarto lugar, en-to, mas s ento, se conseguirmos estabelecer indubitavelmente,ou de forma altamente provvel, a plausibilidade dos passos ante-riores, que poder finalmente fazer algum sentido perguntar sehouve algum, algum criador ou arquitecto csmico, algum su-jeito ou pessoa, ainda que puramente espiritual e, portanto, semcorpo ou forma fsica, que hipoteticamente pudesse explicar tudoisto, e, s nesse caso, teramos legitimidade racional para perguntarQuem?. Em suma, se no formos apressados, subjectivamentetendenciosos e preconceituosos na nossa investigao, se no qui-

    sermos pr o carro frente dos bois e saltar directamente para aconcluso, encontrando no fim aquilo que j pusemos no princpio,formulando um raciocnio tautolgico ou, pior ainda, cometendo afalcia da petio de princpio, ento devemos seguir a sequncialgica da investigao, fazendo as perguntas certas na ordem certa,

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    procurando as respostas correctas ou mais provveis, sustentadaspelas melhores razes ou argumentos mais fortes, e, s no casoda pesquisa imparcialmente conduzir ltima questo, que estapode e deve ser colocada. Como diria aproximadamente o maiordos detectives, o grande Sherlock, Eliminado o impossvel, o querestar, por muito improvvel que seja, ou deve ser verdade.. As-sim, necessrio perguntar: ser que tudo o que existe comeoua existir, teve uma origem? Porqu? Como sabemos? Ser quenada existe eternamente e sem princpio? Ser o universo como umtodo uma excepo a esta regra supostamente universal, ou seja, sua prpria regra interna? Ser que todas as coisas e fenmenosindividualmente tm uma causa e uma origem, mas no o todo for-mado por todas as coisas e fenmenos, isto , o conjunto do uni-verso? Por tudo aquilo que conhecemos das coisas e seres que ocompem, a regra parece ser de facto universal, confundindo-se,de certa forma e at certo ponto, com o princpio da causalidade ecom o da razo suficiente. Temos hoje at algumas e boas razeslgicas, fsicas e metafsicas, para pensar que talvez nem o universo

    como um todo e no apenas nas suas partes e processos consti-tuintes seja uma excepo a esta regra. Veja-se nomeadamenteas razes cientficas, tanto tericas como empricas, de peso, quesuportam a teoria do Big Bang, em particular, o efeito Doppler, oudeslocamento para o vermelho das galxias, a distribuio quanti-tativa dos elementos qumicos no universo e a radiao microondasde fundo mais ou menos homognea. E veja-se tambm as razeslgicas e metafsicas, explicitadas no argumento cosmolgico naverso Kalam, contra a possibilidade do infinito actual e, logo, deuma regresso infinita do tempo e das causas que, a ser impossvel,

    implicaria a necessidade de uma origem para o universo. Mas soestas razes conclusivas e indisputveis, ou seja, indiscutivelmenteverdadeiras e vlidas, sem margem para dvidas razoveis? Noso! Logo, mesmo reconhecendo diferenas de peso na ordem dasrazes as cientficas parecem reunir, por agora, maior consenso

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    do que as filosficas, o que normal -, a combinao de todaselas garante, no mximo, uma maior probabilidade a favor da teseda criao, ou melhor, de uma origem do universo, mas no umacerteza absoluta. Mesmo a teoria do Big Bang, apoiada como num conjunto de evidncias empricas fortes, enfrenta problemas ecoloca outros que permanecem irresolvidos, como seja o da prpriacausa ou causas do acontecimento e daquilo que eventualmente oprecedeu. Isto no significa que a teoria seja falsa, mas to s que, por enquanto, incompleta ou imperfeita. E, se a teoria do uni-verso cclico oscilante se revelar verdadeira, ento a prpria ideiade um comeo absoluto, isto , de uma criao, que fica em causa,embora isso tambm no resolva o problema da prpria existnciado universo, apenas o desloque e difira para um infinito passadoque no sabemos se existiu ou sequer se pode ter existido de facto.Em todo o caso, aquilo que importa aqui que nem a primeira pre-missa, necessria formulao da nossa questo original, pode serestabelecida com segurana e, logo, uma vez que todas as outrasse encontram dependentes desta, todo o raciocnio invisvel que

    conduz questo se revela meramente hipottico ou condicional eno categrico e absoluto, como a sua forma fechada d a enten-der. A prpria questo esconde, na sua formulao dogmtica, umasrie de premissas ocultas ou pressupostos dados como adquiri-dos, que no o esto de todo. Muito pelo contrrio, so e per-manecem problemas em aberto, tanto na investigao cientficacomo filosfica. Deste modo, assumidos como tal, mas no prova-dos como verdadeiros, e assumida, mas no provada como vlidaa sua necessria conexo, toda a questo fica a priori viciada e spode conduzir a uma nica concluso possvel: aquela que se pre-

    tendia, ou seja, Deus.

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    De Que Falamos Quando Falamos De ticaRepublicana?4

    Permitam-me que comece com uma provocao filosfico-socrtica:este artigo intitula-se De que falamos quando falamos de tica re-publicana?. Ora, como sabido, de h um tempo a esta parte,a expresso tica republicana tem vindo a ser usada e, porven-tura, abusada, nos mais variados contextos e com finalidades igual-mente diversas, que vo desde a pura retrica poltica disputaideolgica ou partidria, afirmando-se uns contra e outros a favor,declarando uns a sua utilidade e necessidade e denunciando out-ros a sua vacuidade ou periculosidade, mas fazendo-o quase sem-pre uns e outros de forma vaga quanto ao significado exacto da

    expresso em causa, o mesmo dizer, dando por adquirido quetoda a gente sabe muito bem do que se fala quando se fala detica republicana. esse pressuposto, tacitamente assumido por to-dos os utilizadores da expresso, que gostaria de questionar desdej. Para isso convido-os a fazerem comigo aquilo que os filso-fos costumam chamar uma experincia mental ou de pensamento,que no fundo apenas uma forma de sugerir que se tente imagi-nar o que aconteceria num cenrio virtual ou possvel como aqueleque agora vos convido a visualizarem com os olhos da mente:o que que aconteceria se, antes de eu prprio tentar pessoal-

    mente responder-lhe, lhes pregasse uma partida e me armasse emScrates, sacudisse a gua do capote, vos passasse a batataquente e vos fizesse a todos essa mesma pergunta: de que falamos

    4 Publicado originalmente no livro A Natureza das Coisas do Ponto de Vistada Eternidade, Chiado Editora, Lisboa, Dezembro de 2010.

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    afinal quando falamos de tica republicana? Qual seria a vossa res-posta? Ser que, como costume em relao a todas as questesfilosficas fundamentais, tambm aqui todos saberiam muito bemdo que se trata at ao momento em que algum formulasse clara-mente a pergunta, mas, logo que isso fosse feito, e uma respostaracional, consistente e satisfatoriamente justificada fosse solicita-da, rapidamente emergiria a confuso habitual das opinies sub-jectivas, vagas, diversas, mutveis e contraditrias, que geralmenteservem de camuflagem e de mecanismo de defesa contra a sim-ples tomada de conscincia da nossa ignorncia em relao ao quemais importa, e que s o essencial? Ser que teramos tantasrespostas diferentes mesma pergunta quanto o nmero de leitoresdeste artigo que tentassem responder-lhe? E, se fosse esse o caso, oque que isso provaria? Que no h verdade nenhuma, como nor-malmente se pensa, uma vez que existiriam solues divergentes,e eventualmente contraditrias, para o mesmo problema? Ou quea verdade, mesmo que exista, no humanamente acessvel, vistono haver acordo ou consenso na sua definio? Ou significaria

    apenas e to s que usamos habitualmente conceitos e expressesque somente nos parecem claras e distintas porque estamos maishabituados a ouvi-las e a repeti-las do que a pensar verdadeira-mente no seu significado exacto, e que s quando isso acontecenos apercebemos de que afinal no sabamos bem do falvamos?Ser que as coisas se passariam de maneira diferente se em vezde tica republicana falssemos apenas de tica, ou de justia, oude bem, ou de verdade, ou de conhecimento, ou de virtude, ou deliberdade, ou de felicidade, ou de realidade, ou de Deus, ou doUniverso, ou do sentido da vida? Talvez no, mas podem ficar des-

    cansados, pois, quer este prognstico seja ou no correcto, eu notenciono p-lo prova nem p-los prova dessa forma, uma vezque nem isto uma aula de filosofia nem vocs so meus alunos,pelo que me compete a mim, e no a vs, tentar responder per-

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    gunta que formulei. No liguem, que so apenas vcios de profes-sor de filosofia.

    Feita a provocao e abertas as hostilidades, e ainda antes deatacarmos o problema de frente, comecemos ento por esclarecero que no iremos fazer, a fim de prevenir e evitar tanto equvocoscomo decepes desnecessrias: em primeiro lugar, no minhainteno fazer aqui qualquer anlise histrica, seja da repblicaportuguesa em qualquer uma das suas verses ou encarnaes aolongo do sculo XX -, seja da repblica romana, francesa, ameri-cana ou brasileira, ou de qualquer outra forma republicana histri-ca, clssica ou moderna, nem tampouco das suas mltiplas formu-laes e defesas tericas - nem mesmo a repblica platnica -, toou mais variadas que as suas manifestaes histricas, ainda quefosse apenas procura de uma qualquer suposta tica republicanaideal e abstracta que eventualmente fosse comum e se pudesse in-duzir de todas essas formas histricas concretas ou de todos essessistemas tericos de apologia e legitimao filosfica. Deixareiessa tarefa aos historiadores polticos e das ideias, visto no ser

    essa nem a minha competncia nem o meu objectivo; em segundolugar, tambm no tenciono deduzir filosoficamente, a partir dasdefinio ideolgica do conceito politico de Repblica, seja enten-dido como forma especfica de governo, de regime ou de organiza-o do Estado, aquilo que seria uma tica adequada a essa formapoliticamente determinada, pois se o fizesse, mesmo que fosse bemsucedido na empresa, tal tica seria sempre relativa, porque ape-nas vlida no contexto de uma Repblica, nunca podendo aspirara qualquer validade universal e objectiva que fosse independentedessa forma poltica, salvo se ficasse demonstrada, sem qualquer

    margem para dvida razovel, a superioridade tico-poltica domodelo republicano em relao aos modelos alternativos, o queno nos cabe aqui faz-lo; como ainda mais evidente, no pre-tendo de modo algum aqui entoar loas ou fazer a apologia de qual-quer regime republicano do passado, do presente ou do futuro, seja

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    ele portugus, brasileiro ou outro qualquer, muito menos de qual-quer partido poltico, seja ele qual for, e assuma-se ou no comorepublicano. Gostaria que ficasse claro que aquilo que me levou aescrever este ensaio no foi tanto a minha adeso incondicional aum qualquer iderio poltico especfico ou a uma qualquer ideolo-gia republicana em geral, como se eu estivesse a priori dogmatica-mente convencido da superioridade moral e poltica da mesma emrelao s alternativas concorrentes, mas to s a possibilidade deinvestigar filosoficamente um problema e de partilhar convosco areflexo que o mesmo me suscita, problema esse que me parece nos intelectualmente interessante como praticamente importante, oumesmo decisivo, para todos ns, tanto enquanto sujeitos indivi-duais como enquanto cidados locais, nacionais, transnacionais ouglobais, querendo com isso dizer que o tema que aqui nos ocupanos diz provavelmente tanto respeito na nossa qualidade de pessoassingulares como na de cidados das nossas respectivas cidades, vi-las ou aldeias, da Repblica Portuguesa ou Brasileira, da Unio Eu-ropeia, da Amrica ou do Mundo. Mas como assim, perguntaro,

    no haver a algum exagero retrico, algum empolamento exces-sivo da questo, qui para aumentar a expectativa dos leitores,valorizar artificialmente o texto ou engrandecer o autor, fazendocrer que se trata de uma questo de importncia vital ou transcen-dente aquilo que afinal no passa de mera vulgata poltico-retrica?No esse o caso, evidentemente, mas para perceber porqu necessrio primeiro explicar o que nos propomos realmente fazer,a fim de enquadrar devidamente o problema na forma pretendida, es depois ento se estar em condies de se poder avaliar critica-mente o alcance e a importncia de que o mesmo se reveste. Assim,

    sem de modo algum querer antecipar concluses prematuras, con-vm dizer que o mtodo que vamos seguir consiste em decompore analisar a expresso em causa a partir da clarificao dos con-ceitos que a compem, esclarecendo cada um deles isoladamente,para depois investigar-mos o sentido e a pertinncia da sua con-

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    juno. Em primeiro lugar, vamos, portanto, tentar determinar oque ou deve entender-se por tica, uma vez que esse o primeiroconceito presente na expresso; em segundo lugar, o que significaou deve significar o termo republicana, ao menos no contextoe da forma que aqui nos interessa; em terceiro lugar, tentaremosperceber se faz algum sentido, ou que sentido faz, associar os doistermos e com eles compor uma expresso sinttica como a ex-presso tica republicana. Se, no decorrer da investigao, por-ventura se verificar que existe um sentido vlido e pertinente parao uso da mesma, mas s nesse caso, iremos ento procurar saberqual ele, como podemos us-lo e com que argumentos o podemosdefender ou justificar racionalmente; caso contrrio, se a expressose revelar vazia ou inconsistente, talvez o melhor seja abandon-lade todo, em vez de continuarmos a us-la no s como se soubsse-mos muito bem do que falamos, mas como se falssemos de algosumamente importante.

    Pois bem, feita a introduo e esclarecido o mtodo e objec-tivos da investigao, comecemos ento por analisar o primeiro

    dos dois conceitos que compem a expresso, tentando clarificaro seu significado independentemente do outro, se que tal coisa possvel: o que a tica? Que significa o termo tica? Deque falamos quando falamos de tica? Ser que tambm aqui nosdeparamos com o mesmo problema de s sabermos bem do quefalamos desde que ningum nos pea uma definio clara, rigorosae objectiva? Bom, uma vez que as palavras no so coisas, ou pe-los menos no so coisas ou objectos fsicos a no ser, eventual-mente, quando se encontram escritas nem como tal funcionam ouse comportam, a determinao e fixao do seu sentido, isto , a sua

    definio, nem sempre to fcil como a descrio de um daquelesobjectos ou coisas que podemos captar com os sentidos do corpo.Dada a imaterialidade do sentido, a sua ambiguidade e indetermi-nao em funo dos usos e contextos, a sua variao ao longo dostempos e/ou dos sujeitos, a tentativa de definir rigorosamente um

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    termo assemelha-se frequentemente ao esforo vo e inglrio deuma criana para agarrar uma bolha de sabo sem a rebentar. Mascomo as dificuldades no devem servir-nos de justificao para nodarmos o nosso melhor e para desistirmos sem sequer tentar - ouainda para recorrer desculpa esfarrapada do costume, aquelaque diz que saber at sabemos, o que no sabemos explicar, spara no termos de confessar a nossa ignorncia acerca da coisa-, vejamos, para comear, o significado etimolgico da palavra, isto, o seu significado original, para depois ento analisarmos aqueleque lhe atribudo na actualidade e o uso que aqui lhe daremosem concreto. Ora, o termo tica provm, como muitos sabero,do termo grego ethos, que tanto podia designar o carcter indi-vidual, ou o modo prprio de ser de um homem, como os hbitose costumes prprios de uma comunidade, o seu ethos colectivo,aquilo que a define especificamente e a distingue de todas as out-ras. Encontramos, portanto, aqui, e desde logo, a mesma ambigu-idade semntica que o termo moral tambm carrega, uma vez queeste deriva do latim morus, e este, por sua vez, no mais que

    a traduo latina do ethos grego, o que implica, naturalmente,que, pelo menos do ponto de vista etimolgico, tica e moral sig-nifiquem exactamente a mesma coisa, e sejam, por conseguinte,sinnimos. H um outro sentido, j no original mas historica-mente adquirido e moderno, em que os significados de ambas aspalavras no coincidem e a sua diferena relevante: quando seidentifica a moral apenas e to s com um cdigo de conduta social-mente reconhecido e aprovado, ou seja, como um conjunto de re-gras, normas e valores colectivamente partilhados e mais ou menosconsensuais (ao menos verbal e tacitamente) que determinam do

    exterior do indivduo o que deve ou no fazer-se no seio dessa so-ciedade ou cultura, reservando-se ento o termo tica para a dimen-so individual e interior das virtudes e das intenes conscientesque, de forma mais ou menos livre e autnoma, os indivduos de-vem realizar, virtudes e intenes essas que podem estar em maior

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    ou menor conformidade com a moral pblica, podendo mesmo at,em certos casos, estar em conflito aberto com esta ltima. Por fim,existe ainda um outro sentido da palavra tica que, no sendo deuso comum, no entanto significativo por ser aquele que os fil-sofos actualmente costumam utilizar quando dela falam: a ticaentendida como a disciplina filosfica que se ocupa da investigaoda moral, dos seus fundamentos, princpios e aplicaes, sendo porisso tambm designada de filosofia moral, uma vez que tem a moralcomo seu objecto de estudo e se prope responder questo fun-damental, tanto terica como prtica e existencial, de saber o quedevemos fazer, ou como devemos ns viver, enquanto seres hu-manos. Ora bem, para o fim imediato que aqui nos interessa, as dis-tines subtis atrs referidas entre tica e moral so relativamenteinteis, j que a simples clarificao conceptual da expresso ticarepublicana no parece requerer necessariamente qualquer delas,podendo perfeitamente falar-se de moral republicana como ex-presso equivalente ou sinnima daquela, e perdendo-se to s,eventualmente, nessa substituio, algum verniz retrico, j que

    o termo moral est hoje um tanto ou quanto fora de moda - emparte pela sua associao inconsciente religio (ou, em certospases, Igreja catlica em particular) ou a um certo moralismoreaccionrio e hipcrita -, enquanto o termo tica parece hoje emdia mais chique e de dignidade semntica superior. Mas comono so iluses semnticas ou jogos de palavras o que aqui nosimporta, usaremos indistintamente as duas palavras para significaraquilo que j estava contido no seu sentido etimolgico comumatrs explicitado.

    Chegados aqui, uma vez que esta reflexo se situa a meio ca-

    minho entre a filosofia moral (ou tica filosfica) e a filosofia pol-tica, visto o Homem ser, por condio, natureza e destino, um ani-mal social ou poltico (no sentido clssico da palavra), posto quenasce, cresce, se forma e desenvolve sempre em comunidade, sa realizando a sua humanidade potencial, a pergunta que talvez

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    se deva fazer a seguinte: se o termo tica pode designar tantoo carcter de um indivduo como de um povo ou nao, tanto asvirtudes interiores como as regras e os hbitos de conduta exte-riores, e se a tica uma tentativa de responder questo da vidaboa, ou da melhor forma de vida para o Homem e para todos oshomens, em parte atravs da descoberta dos princpios, normase valores que devem reger e orientar a sua aco, ento que sen-tido pode ter a palavra quando aplicada na expresso que aqui nosocupa? Que sentido poder ter falar-se de uma tica republicana?Significar isso que existe um conjunto de princpios, valores evirtudes prprias de um Estado, Governo ou Regime republicanoe que outros estados, governos ou regimes no possuem? Haverum modo prprio e especfico de ser, de agir e de viver que ca-racteriza o republicanismo, tanto individual como colectivamente,que o torna no s distintivo de outras formas de vida, de ou-tros ethos, mas moralmente superior em dignidade, em liberdadee em justia? No ser esta suposta superioridade moral republi-cana que tradicionalmente a ops a outras formas polticas como

    a monarquia e lhe conferiu a sua identidade prpria, para l detodas as suas variaes ou vicissitudes histricas? pelo menosnisso que parecem acreditar todos os que perfilham o ideal republi-cano. Mas no por a que seguiremos, ao menos para j, pois parasabermos se essa pretenso tem ou no fundamento, precisamos desaber primeiro o que uma repblica ou o que significa o termorepblica, visto que sem o seu esclarecimento estaramos impos-sibilitados de compreender o que seria ou poderia ser uma ticadenominada republicana. Ora, uma vez mais, tal como aconte-ceu com o termo tica, tambm o conceito de repblica no

    desprovido de ambiguidade nem universalmente aplicado comum nico sentido ou para referir exactamente o mesmo tipo derealidade. Comeando aqui tambm pela etimologia, repblicaderiva, como se sabe, do latim res publica, que significa literal-mente coisa pblica, ou que diz respeito ao pblico, ao povo ou

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    vida da comunidade como um todo, muito prximo do sentido ori-ginal do conceito grego de poltico e de poltica, como aquilo quediz respeito polis ou cidade, e a que hoje em dia chamaramospura e simplesmente sociedade. A palavra veio posteriormente adesignar, de forma mais restrita, um tipo particular de governo emcontraposio monarquia, tanto por no ser governo de um s,com direitos e privilgios nicos e hereditrios, enquanto ali qual-quer cidado ou grupo de cidados pode, ao menos em princpio,governar a coisa pblica, mas tambm por ser uma forma de go-verno em que todos os cidados, directa ou indirectamente, de di-reito e de facto, podem e devem participar de forma livre e respon-svel, por ser esse o seu interesse racional, j que das suas vidase da vida da comunidade como um todo que se trata. Neste ltimosentido, o conceito de repblica aproxima-se assim do de demo-cracia, originalmente entendida como governo do povo, pelo povoe para o povo, o que conduz por vezes iluso de se pensar que,ou bem que significam a mesma coisa, ou ento que uma repblicas pode ser necessariamente democrtica, embora as repblicas di-

    tas socialistas e as repblicas islmicas paream desmenti-lo - noobstante os protestos dos republicanos democratas, que as consi-deram falsas repblicas, repblicas apenas de nome ou de fachada.Alis, h um outro aspecto que distingue uma repblica de outrasformas polticas e que relevante para a nossa investigao: ofacto de as repblicas, seja enquanto tipo de governo, modelo deorganizao do Estado ou regime poltico, recusar fundar-se numqualquer direito divino ou transcendente que superiormente legis-lasse, e assim determinasse a partir do exterior da comunidade doscidados, o modo como estes devem reger e governar a sua vida

    colectiva - o mesmo valendo, naturalmente, para a tica ou moral,no sendo portanto esse facto desprovido de consequncias signi-ficativas para o nosso tema. Deste modo, se houver uma verdadeiratica republicana, e se ela aspirar ao estatuto de universalmente v-lida e objectiva, isto , se quiser ser uma moral vlida para todos

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    os homens enquanto pessoas e membros de uma comunidade po-liticamente organizada qualquer, e no apenas de uma repblica nosentido restrito do termo, ento ela no pode nem deve assentar, ousequer depender, de um fundamento teolgico transcendente cujaverdade s a f tem condies de garantir, sob pena de deixar defora da lei e da obrigao moral todos aqueles que no acreditemnessa transcendncia. Isto implica, como bvio, que tanto o fun-damento da lei jurdica como o da lei moral tenha de ser procuradoe descoberto a partir da prpria comunidade e da pura razo naturaldos seus membros, tal como acontece com as prprias leis moraise jurdicas que a regulam, sem que isto acarrete necessariamentequalquer consequncia relativista ou particularista para tal tica,uma vez que a razo natural que todos os seres humanos partilham(ao menos potencialmente) precisamente a faculdade que nos per-mite, em princpio, aceder a verdades universais e objectivas, es-capando assim ditadura das opinies particulares e subjectivasprprias da caverna em que habitualmente estamos encerrados. E aqui que uma tica republicana encontra outro dos seus adversrios

    mais temveis, j no no plano poltico, mas no religioso, na me-dida em que todas as ticas teolgicas, seja qual for a religio emcausa, fazem depender a sua verdade e validade de um princpiosobrenatural transcendente ao Homem e somente acessvel pela fou pela revelao, enquanto uma tica republicana teria de ser ex-clusivamente fundada em razes imanentes ao Homem e comu-nidade dos homens, assim como serem humanamente acessveis ecompreensveis por todos na sua simples qualidade de membrosda espcie e da sociedade humana, e sem qualquer distino rele-vante de raa, classe, sexo, cultura ou religio. Ser possvel uma

    tica assim, ao mesmo tempo vlida para todos os seres humanose racionalmente acessvel a todos eles, ou ao menos queles queestiverem dispostos a conhec-la? E poder tal tica dispensar orecurso transcendncia divina como forma de autenticar os seusimperativos morais? Que direitos e que deveres morais poderemos

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    ns deduzir em relao comunidade humana em que vivemos spelo facto de l vivermos e de sermos humanos? E ser possvelou desejvel fazer isso sem recorrer a qualquer autoridade superior prpria razo humana e sua capacidade para descobrir aquiloque bom e justo em si mesmo, e no aquilo que bom ou justoporque foi decretado por, ou atribudo vontade de uma qualquerentidade divina? O que poder ser uma tica independente de qual-quer fundamento ou mandamento divino que determine e decidapor ns o que o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o in-justo? Uma tica racional ou natural, logicamente, ou uma ticapoltica, em sentido lato, ou cvica, ou da cidadania, portanto laicae secular, ou ainda humanista, na nobre acepo do termo, notanto por colocar a Humanidade num pedestal, divinizando-a emsubstituio do Deus tradicional, mas por acreditar na capacidadehumana, tanto individual como colectiva, de se aperfeioar, de seformar e educar a si mesma, procurando idealmente realizar o seupotencial natural atravs do conhecimento verdadeiro e da acojusta, autodeterminando-se racionalmente a si mesma de forma

    livre e autnoma, em busca no apenas da felicidade, mas de umafelicidade digna e merecida, porque justamente conquistada na lutacontra a estupidez, a ignorncia, a fraqueza, a maldade, o egosmoe todos os outros demnios que nos afastam de ns mesmos euns dos outros, impedindo-nos de viver bem connosco prpriose com aqueles com que partilhamos um destino comum. Mas,perguntar-se-o porventura, no isso que visam tambm, pelomenos em parte, as ticas religiosas? No haver mais convergn-cia do que divergncia, mais acordo do que desacordo, em to-das as ticas dignas desse nome, sejam elas sagradas ou profanas,

    laicas ou religiosas, pblicas ou privadas, monrquicas ou repu-blicanas, mesmo quando diferem nos detalhes particulares ou nosfundamentos ltimos? No so boa parte, ou a quase totalidadedos nossos conceitos, valores e princpios ticos, polticos e ju-rdicos, afinal verses seculares de conceitos, valores e princpios

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    religiosos ou de origem religiosa, como o caso, por exemplo daliberdade, igualdade e fraternidade, ou do direito vida e procurada felicidade, que inspiraram tanto a revoluo americana comoa francesa, ficaram consagrados nas respectivas constituies (ouna Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado)e, por a, no ethos colectivo dos seus povos? No procuram afi-nal todas as ticas o aperfeioamento moral pessoal e colectivo,tentando orientar tanto os indivduos como os povos em direcoao bem comum, quilo que bom e justo em si mesmo, e porisso mesmo vlido para todos? Sem dvida que sim, pelo que noh qualquer necessidade de opor, no plano dos princpios e val-ores fundamentais, uma tica denominada republicana ou laica auma qualquer moral religiosa, mesmo quando possam existir difer-enas de nfase ou de linguagem, ou ao nvel da sua fundamen-tao ltima. Sosseguem, portanto, todos aqueles que queiram veraqui mais uma extenso da guerra entre crentes e ateus ou agns-ticos, ou entre religio e atesmo, porque aquilo que define um serhumano bom e justo no pode ser diferente, e muito menos con-

    traditrio, com aquilo que define o bom cidado, uma vez queas suas virtudes essenciais so basicamente as mesmas: honra honra, dignidade dignidade, honestidade honestidade, bondade bondade, justeza justeza, responsabilidade responsabilidade,dever dever, e respeito pelos outros respeito pelos outros, sejaem que tica for. No entanto, precisamente esta convergnciaou acordo de fundo entre as diferentes ticas, a qual poderia fun-cionar como uma verdadeira plataforma de entendimento na cons-truo de uma tica verdadeiramente global ou ecumnica, essamesma comum unidade que as expe e torna vulnerveis, fazendo-

    as partilhar igualmente uma srie de inimigos comuns, adversriosde toda e qualquer tica e de toda a tica que se preze, a saber:o niilismo, o relativismo, o cepticismo, o cinismo, o pessimismo,o determinismo, o positivismo ou cientismo, e o egosmo moral,enquanto inimigos filosficos; e o orgulho, a vaidade, o medo,

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    a preguia, o hbito, o conformismo, a inveja e o egosmo psi-colgico, como adversrios morais ou psicolgicos. So estes queminam por dentro e por fora a possibilidade de uma tica ver-dadeiramente universal, e so eles, portanto, que devem ser aquiidentificados e criticados um a um, se se pretender alcanar algomais que uma moral particular e provisria, somente vlida paraos cidados de um Estado ou Regime republicano, mas inadequadaem geral para todas as pessoas, estados ou regimes.

    Analisemos ento em primeiro lugar alguns dos principais obs-tculos filosficos criao de uma tica universal, todos eles di-recta ou indirectamente ligados entre si:

    O niilismo (do latim nihil, que significa nada), que aprofisso de f daqueles que no acreditam em nada, ou queacreditam que tudo nada, ou que nada vale nada, recusandotodo e qualquer tipo de princpio, ideal, valor ou verdadecomo desprovido de sentido ou carente de fundamento. As-sim, para o niilismo, nem a Verdade, nem a Justia, nem

    a Beleza, nem o Bem, nem a Vida, nem o Amor, nem oConhecimento, nem a Humanidade, nem a Liberdade, nem aDignidade, nem a Virtude, nem a Felicidade, e todos aque-les princpios, valores e virtudes que tornam a vida digna deser vivida, valem rigorosamente nada, pois no passam deiluses fteis e de fices consoladoras que apenas servempara camuflar o vazio infinito que se esconde por trs de to-das as coisas, o absurdo universal de tudo o que existe, acompleta ausncia de sentido do Universo e da Vida. Orabem, fcil perceber o que que uma doutrina destas im-

    plica moralmente: que no h bem nem mal, que no h certonem errado, que no h justia ou injustia, que nada dissofaz qualquer sentido, que vale tudo o que quisermos e puder-mos, porque no verdade moral nenhuma, porque no fundotudo igualmente vo e vazio e no h qualquer fundamentoou razo vlida para devermos fazer (ou evitarmos fazer) o

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    que quer que seja, nem para viver nem para morrer. a leida selva e o salve-se quem puder, que a vida curta e a morte certa.

    O relativismo, parente pobre do anterior e um seu descen-dente, que defende que tudo relativo sem excepo (ex-cepto ele, claro), que todas as verdades, conhecimentos, va-lores e princpios dependem, para serem vlidos, ora dos

    indivduos e das suas crenas, opinies, gostos ou estadosde alma, ora dos hbitos e costumes de uma cultura, oradas leis de uma sociedade, ora dos padres e ideias domi-nantes de uma poca, no havendo assim quaisquer verdadesmorais universais e objectivas vlidas para todos os indiv-duos, culturas, sociedades ou pocas, o que implica natural-mente que todas as perspectivas morais so igualmente leg-timas e defensveis, desde que algum, indivduo ou colec-tividade, acredite nelas, pois esse o seu ponto de vista so-bre as coisas. Se no existem critrios universais e objectivos

    susceptveis de serem racionalmente descobertos, discutidose justificados, no h qualquer razo moral digna desse nomee todas as regras e prticas morais esto automaticamentejustificadas, como o caso do racismo, da xenofobia, dadiscriminao sexual ou religiosa, da escravatura ou at docanibalismo. No havendo bem nem mal objectivos, como evidente, tambm no faz qualquer sentido defender o re-lativismo e advogar a seguir que a nica atitude eticamenteaceitvel que ele implica a tolerncia e o respeito pela di-versidade de opinies, costumes, crenas e valores, j queisso seria transformar a tolerncia e o respeito em valoresmorais absolutos, o que seria contraditrio com o prpriorelativismo e, desse modo, o faria refutar-se a si mesmo.

    O cepticismo, ao mesmo tempo antepassado longnquo e pa-rente prximo do relativismo, porque se no existem quais-

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    quer verdades, sejam elas morais ou factuais, fsicas ou me-tafsicas, ou existindo no possam ser conhecidas, ou po-dendo ser conhecidas no possam ser transmitidas ou ensi-nadas, porque nunca se pode ter a certeza de nada a no serque nada certo, porque, ao menos em matria de moral, noh forma de decidir onde est a razo e a verdade, visto nohaver provas cientficas, lgicas ou empricas, nem demons-traes matemticas que eliminem toda a dvida razovel,ento no possvel saber o que bom ou mau, certo ou er-rado, justo ou injusto, nem o que devemos fazer ou como de-vemos viver as nossas vidas do ponto de vista moral. E comoningum sabe e no possvel saber, ento cada cabea, suasentena.

    O cinismo, no sentido vulgar da palavra e no no filos-fico, porque ao desconfiar sistematicamente das mais nobresintenes e aces humanas, querendo ver invariavelmentenelas o efeito secundrio e dissimulado de motivaes egos-

    tas ou de inconfessveis interesses particulares, seja por partede indivduos, de grupos ou de governos e Estados, minaqualquer possibilidade de orientao e avaliao morais jus-tas e imparciais, pois se andamos todos ao mesmo e cadaum se limita a fazer o melhor que pode para salvaguardar osseus interesses e safar-se, inclusive disfarando-os por de-baixo de um manto de respeitabilidade moral, ento ningum melhor do que ningum e no h aces melhores nempiores do ponto de vista moral, ao menos no plano das in-tenes, que so sempre fundamentalmente as mesmas e de-rivam sempre do interesse pessoal.

    O pessimismo, irmo gmeo do fatalismo e forma de cep-ticismo moral, porque se no acreditarmos que possvelaperfeioarmo-nos moralmente, que podemos agir melhor eviver melhor do ponto de vista tico, que podemos corri-

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    gir vcios, defeitos e fraquezas de carcter, transformando-os em virtudes, qualidades e foras, se pensarmos que novale a pena lutar contra a mar, que as pessoas so comoso e pronto, no h nada a fazer, que no adianta ensinar,educar ou tentar aprender, porque a estupidez, a ignorn-cia, a maldade, o egosmo e a injustia sempre vencero,porque este mundo e esta vida so um vale de lgrimas e intil resistir, ento sentamo-nos sombra da bananeira,encostados s boxes, com o piloto automtico ligado, nopropriamente cantando e rindo, mas chorando e lamentando,enquanto somos levados, sim, e ficando depois consoladosquando a nossa profecia pessimista se concretizou, ou me-lhor, se auto-cumpriu, porque tudo fizemos para que issoacontecesse ou nada fizemos em contrrio para o evitarmos.Talvez seja precisamente quando temos todas as razes parasermos pessimistas que convm ser optimista, no um op-timista ingnuo que acredita cegamente na bondade naturaldos homens ou na boa vontade de toda a gente, mas um opti-

    mista lcido, esclarecido e realista, que sabe como as coisasso e como as pessoas funcionam, e que, por isso mesmo,no desiste de tentar fazer o seu melhor, mais que no sejaporque sabe que isso que se deve fazer, assim como paradar o exemplo e o testemunho a quem puder aproveitar comele, e por saber que h sempre possibilidades que nunca seiriam realizar se nada fizermos por isso, nem em ns nem nomundo exterior, pois se pensarmos que intil lutarmos poraquilo que sabemos que bom e justo, que no vale a penacriticar, denunciar o erro ou tentar corrigi-lo, visto ele con-

    tinuar sempre a existir, ento a que as coisas no mudarocom certeza e, o que pior, ns seremos cmplices desseestado de coisas.

    O determinismo, porque, ao menos na sua verso radical,ao negar a possibilidade e existncia do livre-arbtrio, afir-

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    mando, pelo contrrio, a causalidade universal como lei geraldo Universo, compromete desde a base toda a tica, umavez que se tudo o que fazemos no apenas condicionado,mas completamente determinado por uma srie complexade causas e factores, desde os fsico-qumicos aos biolgi-cos, dos psicolgicos aos sociais, aos culturais ou histri-cos, ento a liberdade de escolha no existe verdadeiramentee no passa de uma iluso causada pela ignorncia daquiloque efectivamente nos move sem que ns tenhamos dissoconscincia; mas se no h verdadeira liberdade de escolha,se a nossa aco resulta necessariamente daquilo que so-mos e do meio em que estamos envolvidos, e se estes resul-tam, por sua vez de foras igualmente cegas que nada nemningum controla - o inconsciente, os processos neuronais,os genes, as estruturas sociais, os padres culturais ou o con-texto histrico -, ento a razo no para aqui chamada eningum tem realmente culpa de nada porque ningum ver-dadeiramente responsvel por aquilo que faz, uma vez que

    sem liberdade no h responsabilidade. Como pode algumsaber o que faz, agir de forma consciente, intencional e de-liberada, com autonomia moral, determinando-se racional-mente a si mesmo e, dessa forma, poder responder pelosseus actos, se a conscincia, a razo, e as intenes sub-jectivamente apercebidas pelo sujeito moral no passam afi-nal de um teatro de sombras que esconde as reais forasagentes que nos controlam como marionetas que somentedesconhecem que o so? Se a razo consciente impotentepara operar escolhas livres, ento no h responsabilidade

    alguma e ningum merece ser recompensado e elogiado, oucastigado e censurado, por fazer o que faz ou por ser como, pois ningum se fez a si mesmo ou ao mundo em quevive para poder ser ou agir de outra maneira. Portanto, seo determinismo for verdadeiro, ou se acreditarmos que o ,

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    nenhuma moral verdadeiramente possvel ou defensvel,j que a prpria noo de dever deixa de fazer qualquer sen-tido: as pessoas so como so e agem como agem porque notm verdadeiramente escolha; limitam-se a agir em funodaquilo que so e a serem em funo daquilo que as fez,nada mais, no havendo dessa forma qualquer justificaoracional para as opes morais que cada um faz ou deixa defazer.

    O positivismo ou cientismo, que a doutrina ou crena se-gundo a qual s os factos ditos objectivos, observveis eempiricamente verificveis, ou matematicamente demonstr-veis, que existem realmente, e, logo, que s eles podemverdadeiramente ser objecto de conhecimento racional e ob-jectivo, relegando-se tudo o resto - entre outras coisas,os valores - para o domnio do subjectivo e, por consequn-cia, para fora do mbito da cincia ou mesmo da existncia; esta a crena que sustenta o carcter inevitavelmente subjec-

    tivo e particular da tica, tal como da filosofia ou da religio,ficando assim o conhecimento e o pensamento racional re-duzido ao domnio da cincia, enquanto aquelas no passamde formas mais ou menos intelectualmente sofisticadas daopinio subjectiva ou da f cega e irracional, no merecendopor isso qualquer crdito cognitivo. O simples facto destacrena ser objectivamente falsa e absurda, porque autocon-traditria, uma vez que assenta ela mesma num pressupostodogmtico de natureza filosfica que, como tal, no pode sernem observado nem verificado empiricamente, refutando-sedesse modo tambm a si mesma, no parece ser suficiente,ainda assim, para demover os seus defensores, o que provapor si mesmo que se trata, ela sim, de uma f cega e irra-cional, um mero preconceito ideolgico impermevel a todaa crtica ou argumentao racionais; e, como todos sabemos

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    muito bem, ao contrrio do que diz o ditado, contra precon-ceitos no h factos nem argumentos que adiantem.

    O egosmo moral, porque ao afirmar que todos devemos seregostas e que o egosmo a nica motivao moralmentevlida, por ser a nica verdadeiramente racional, por de-fender que aquilo que devemos fazer, se queremos ser fortes,felizes, bem sucedidos e agir inteligentemente, procurar

    nica e exclusivamente defender os nossos interesses pes-soais - e que isso justifica tudo o que fizermos, possamosfazer ou deixemos de fazer, visto ser a nossa felicidade oubem-estar que est em jogo -, impede dessa forma qualquerrespeito ou considerao moral pelos interesses e direitos dosoutros, tornando-os ora meros obstculos nossa aco orasimples instrumentos teis para a satisfao dos nossos dese-jos e necessidades, mas nada valendo em si e por si mesmos.Mas como toda a verdadeira tica exige a adopo de umponto de vista universal e imparcial, contrrio lgica par-

    cial dos dois pesos e duas medidas que costumamos aplicarhabitualmente em relao a ns e aos outros quando abri-mos uma excepo para ns e nos desculpamos por aquiloque censuramos aos outros, ou quando fazemos aos outros oque no gostaramos que eles nos fizessem a ns, isso sig-nifica que o egosmo moral sabota qualquer possibilidade deentendimento moral racional entre os seres humanos, justi-ficando o facto de cada um puxar a brasa sua sardinha,sem qualquer hiptese de consenso e sem um critrio de ar-bitragem superior verdadeiramente justo, porque imparcial edesinteressado, condenando-nos deste modo guerra de to-dos contra todos e lei do mais forte ou do mais astuto.

    Se todos estes obstculos filosficos tica em geral - e a umatica republicana em particular fossem teoricamente intranspon-veis e no houvesse outra maneira melhor de pensar nos problemas

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    e de os tentar resolver de forma racionalmente sustentada, entono haveria tica possvel que sobrevivesse a tais inimigos nemalternativa razovel possvel entre um dogmatismo moral injusti-ficado e a pura arbitrariedade irracional dos actos ou das regras.Mas como felizmente no esse o caso, mesmo sem que tenhamosaqui oportunidade de o demonstrar cabalmente, passemos agora aoexame dos diversos demnios que nos assombram a partir a partirde dentro e que funcionam igualmente como obstculos procurade uma vida tica:

    O orgulho, porque nos enche de ns prprios, nos convencede que temos sempre razo e que somos moralmente in-falveis e perfeitos, colocando-nos ilegitimamente acima dosoutros em valor e em direitos - ficando apenas os outros comos deveres para connosco -, e desse modo nos cega para apossibilidade de podermos errar, reconhecer o erro quando ocometemos ou o defeito quando o temos, e logo tambm deos corrigir e aprender com eles, superando-os.

    A vaidade, porque ao fazermos gala das nossas virtudes eboas aces, exibindo-as ostensivamente, e ao dependermosde aprovao ou aplauso para o que deveramos ser ou fazerdesinteressadamente e apenas por ser o melhor e o mais cor-recto, estamos a comprometer o verdadeiro valor moral doque somos e fazemos, criando a legtima suspeita de que so fazemos para obter essa recompensa para o nosso amor-prprio, ou para a falta dele, e no por acreditarmos sincera-mente que essa a melhor conduta ou modo de ser.

    O medo, porque nos induz cobardia moral de no fazermosaquilo que sabemos ser a coisa certa apenas por receio dasconsequncias, porque no queremos perder a segurana ouos privilgios, porque no queremos ficar sozinhos ou ser ex-cludos; porque nos impele a fazer o que certo pelas razes

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    erradas e o errado por razes ainda piores; e porque nos im-pede ou nos limita a coragem de fazermos o que devemosfazer e de ser o que devemos ser, independentemente do quepossamos perder ou sofrer com isso.

    A preguia, porque nos faz pensar que o esforo de tentaragir e viver bem em termos morais no compensa, porqued muito trabalho e no vale a pena, porque o bem, a justia

    e a virtude so inalcanveis, tanto na teoria como, sobre-tudo, na prtica, logo esto verdes, no prestam, porqueningum o faz, porque ningum perfeito e errar hu-mano, portanto uma perda de tempo e de energia tentar-mos aperfeioar-nos enquanto pessoas, uma vez que somosimperfeitos e incorrigveis por natureza; porque os ideaismorais so muito bonitos, mas no funcionam na prtica,visto que as pessoas no os cumprem nem vivem de acordocom eles, logo so inteis e no servem para nada.

    O hbito, porque nos impe determinados padres de con-duta e modos de ser ou de pensar que tomamos como cer-tos e justificados to somente por a eles estarmos acostu-mados; porque nos cega para outras alternativas de vida ede aco que podem ser melhores e mais justas, porque criauma iluso de normalidade moral at onde os maiores crimesou injustias so cometidos.

    O conformismo, por nos levar a pensar que as coisas somesmo assim, sempre assim foram e sempre assim sero,calando a nossa revolta e sufocando a nossa indignao con-

    tra o estado das coisas; por nos levar a imitar mesmo os com-portamentos e atitudes que sabemos serem imorais apenaspor desejo de segurana e de pertena ao grupo, porque noqueremos chatices e queremos integrar-nos; porque nos levaao compromisso moral com o erro, cedncia e concessodos nossos prprios princpios em relao aos do grupo a que

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    pertencemos ou queremos pertencer, diluindo e alienandoa nossa conscincia moral individual e a nossa autonomiacrtica no seio do partido, da religio, do clube de futebolou de um qualquer gang de interesses e convenincias a quesimbolicamente tenhamos vendido ou queiramos vender anossa alma;

    A inveja, no s porque nos leva a cometer actos que sabe-

    mos serem imorais pela mais mesquinha das razes, mastambm porque nos faz amesquinhar as razes e os actosdaqueles que julgamos serem melhores que ns, transfor-mando qualidades em defeitos e virtudes em vcios, ape-nas porque no suportamos que outros possam ser ou fazeraquilo que ns no temos a vontade, a capacidade ou a forade ser e fazer, desvalorizando desse modo toda a aco mo-ralmente exemplar s porque isso nos faz doer o egozinho.

    Por fim, o egosmo psicolgico, entendido quer como ten-dncia natural e universal dos seres humanos para se colo-carem em primeiro lugar e quererem o melhor para si mes-mos independentemente dos outros ou contra os outros, mastambm enquanto crena de que o egosmo a nossa nicamotivao real e possvel, que tudo o que fazemos tem, semqualquer excepo, directa ou indirectamente, consciente ouinconscientemente, uma razo egosta por detrs, visto nohaver almoos grtis e ningum fazer nada de graa, j quetudo o que toda a gente procura fazer satisfazer sempre osseus interesses pessoais, ainda que travestidos de intenesgenerosas e de comportamentos altrustas. Ora, sendo a tica

    a tentativa humana de viver bem em relao com os outrose de saber como faz-lo, colocando-os no mesmo plano ejulgando-os luz dos mesmos critrios com que nos jul-gamos a ns, bom de ver que se o egosmo psicolgicofor verdadeiro e formos de facto incapazes de aces ver-

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    dadeiramente altrustas, no h tica que se aguente, poistudo o que fazemos apenas por interesse pessoal ou bem que desprovido de qualquer valor moral (amoral, portanto) ou pura e simplesmente imoral, caso seja contrrio ao nossodever para com os outros ou para connosco prprios. Fe-lizmente para ns - e felizmente para a tica, republicanaou no -, e infelizmente para todos os cnicos e cpticos a-cerca da capacidade da natureza humana para a aco desin-teressada ou altrusta, parece haver mais e melhores razespara duvidarmos do egosmo psicolgico do que para acre-ditarmos nele, bastando para o efeito recordar todos aquelesindivduos ou aces exemplares em que a preocupao pe-los outros e o sentido do dever se sobrepuseram a quaisquerconsideraes do interesse pessoal ou da vantagem egosta,inclusive muitas vezes custa da perda da prpria vida, se-gurana ou liberdade pessoal.

    Uma vez mais, se alguns ou todos estes obstculos psicolgi-

    cos fossem humanamente insuperveis e no houvesse escolha ano ser aceit-los e aprender a viver com eles, deixando que elesditem a sua lei e exeram o seu poder incontrolvel sobre ns a par-tir do nosso prprio interior, nenhuma tica prtica seria possvel eestaramos, na melhor das hipteses, condenados a poder saber oque devemos idealmente ser e fazer, mas a sermos totalmente im-potentes para vivermos e agirmos de acordo com isso, reduzindo-seassim toda a tica ou moral a um discurso bonito de boas intenesretricas, ou de princpios tericos formalmente vlidos mas mate-rialmente impossveis de realizar na prtica, mera utopia idealista

    e romntica incompatvel com a vida real dos homens e com a ver-dadeira natureza humana universal.Chegados aqui, denunciados embora no refutados - por no

    ser aqui e agora possvel faz-lo nem ser essa a nossa finalidade alguns dos principais e mais temveis inimigos da tica, tantoterica com prtica, e uma vez que nos aproximamos do final da

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    nossa investigao, tempo de arrepiar caminho e tentar responderde forma directa e objectiva nossa questo essencial, que parano sermos cmplices de alimentarmos o velho preconceito contraa filosofia e os filsofos, aquele que diz que estes so muito bons apr questes e a criticar as respostas de outros, mas no to com-petentes quando se trata de lhes responder objectivamente. Mesmosendo falso este preconceito, e tpico de quem no sabe verdadeira-mente o que a filosofia, quer porque nunca a estudou, quer porquenunca a praticou, no ser aqui ocasio de lhe dar mais um pretextopara se confirmar e reforar.

    Afinal de que falamos, quando falamos de tica republicana?Faz algum sentido falarmos disso? Ser que isso existe? No sen-tido em que aqui tommos ambos os conceitos, a resposta a estasduas ltimas perguntas necessariamente afirmativa. Mas, nessecaso, como defini-la ou caracteriz-la? Ser uma tica apenas paraum governo, estado ou regime republicano? Ser uma tica ape-nas para republicanos? Ser uma tica apenas para os polticos, oupara polticos republicanos? Uma vez mais, no sentido em que

    aqui tommos os dois conceitos, a resposta a estas trs ltimasquestes tem de ser negativa. A tica republicana, tal como a en-tendemos aqui, isto , enquanto tica da, na e para a res publica, eno na sua mltipla e varivel acepo histrica, corresponde a umconjunto mais ou menos coerente de princpios, valores e virtudesvlidos em geral para todos os indivduos, povos, estados gover-nos e naes, e no apenas para alguns ou para aqueles que osseguem ou acreditam neles. Esse conjunto de princpios, valorese virtudes universais constitui genericamente uma resposta artic-ulada s questes fundamentais da filosofia moral e da filosofia

    poltica acerca da melhor forma de vida para o Homem, questoda vida boa e justa, ou da vida que devemos levar se queremosviver como seres humanos e no como animais irracionais. Ora,ao contrrio daqueles que pensam que factos e valores so doisdomnios inteiramente distintos (como se os factos tambm no

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    fossem valorizados e os valores factos de um certo tipo que geramoutro tipo de factos), que o ser e o dever ser, ou o real e o ideal,nada tm a ver uma com o outro, a posio que aqui defendemos que a escolha da melhor forma de vida para o Homem e para cadahomem, bem como das normas que devem orientar a sua conduta,s pode ser racionalmente efectuada se partirmos do conhecimentoda sua natureza essencial e daquilo que ela implica ou sugere emrelao ao modo como pode e deve ser realizada. Quer isto dizerque a tica e a filosofia poltica no podem ignorar ou desprezar aantropologia filosfica enquanto conhecimento do Homem essen-cial. Se admitirmos assim que o Homem tanto um animal racionalcomo um animal social ou poltico, visto a sua natureza racionalespecificamente humana somente se realizar em sociedade, sendodeste modo a vida em sociedade condio necessria para o plenodesenvolvimento da nossa humanidade potencial, ento a questoda melhor forma de vida para o Homem tem inevitavelmente delevar em conta que ele no vive isolado nem pode realizar a suahumanidade virtual fora da comunidade humana. Isso significa,

    por sua vez, que os melhores princpios, valores e virtudes que odevem orientar na sua relao com a comunidade so os mesmosque devem orientar a comunidade como um todo, e que estes so osque melhor permitam a realizao da nossa natureza humana, aque-les que mais nos aproximem do ideal da nossa potencial perfeiocomo pessoas e cidados, e como membros da espcie humana,isto , tanto na nossa qualidade de indivduos humanos como demembros integrantes da civitas, ou cidade, no sentido clssico. Istoimplica, evidentemente, que, dada a interdependncia natural queexiste entre os indivduos e entre estes e a comunidade que formam

    e os forma, a qualidade e sade moral de ambos est indissociavel-mente conectada, o que significa que quando esta se degrada moral-mente aqueles a acompanham na queda, e que quando so elesque se degradam o mesmo acontece inevitavelmente comunidadecomo um todo, ficando ento a nossa prpria humanidade em risco

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    de soobrar na pura animalidade que tambm nos habita por dentro.Temos ento de perguntar que princpios, valores e virtudes tico-polticas sero esses afinal, que podem tornar melhor, porque maishumana, a vida do Homem, tanto individual como colectivamente,e que constituem a substncia ideal do que deve ser uma verdadeiratica republicana? E aqui no h grande surpresa, pois todos osconhecemos muito bem, embora a sua prtica seja cada vez maisverbal ou retrica e no real e concreta, devendo alis ser por issoque tanto se fala hoje de tica em geral e de tica republicana emparticular, porque isso que falta, como se os discursos politica-mente correctos e as intenes piedosas funcionassem como sub-stitutos da aco real ou fossem suficientes para cobrir ou encobriraquilo que mais importa, que a maneira como realmente vivemose no o que declaramos fazer ou dever fazer. Esse o problema dequem se limita a denunciar ou a criticar o estado das coisas sem darverdadeiramente o exemplo daquilo que prega ou exige aos outros,pois ao faz-lo dessa forma perde qualquer legitimidade na crtica.E no, no me refiro apenas ou principalmente aos polticos, mas

    todos ns pessoas comuns e cidados, quando cobramos aos polti-cos que dem o exemplo pessoal de honestidade, integridade, dig-nidade, honra, esprito de sacrifcio, respeito pela lei, imparciali-dade, justia, virtude, coragem, inteligncia, prudncia, respons-abilidade, coerncia, sentido de dever, esprito de misso, amor ededicao causa pblica e ao bem comum, entre outras virtudesmorais e cvicas prprias da tica republicana e de qualquer ticapoltica digna desse nome, ou quando os acusamos de egosmo,hipocrisia ou corrupo, e de quererem tacho, mas depois dize-mos ou pensamos que fazem eles bem, que so espertos e

    que se ns l estivssemos faramos exactamente o mesmo ou pior.Portanto, meus amigos e caros concidados, ao contrrio do que secostuma dizer quando se afirma que ou bem que h moralidade oucomem todos, aquilo que preciso que haja realmente morali-dade para podermos comer todos, e por isso que o exemplo no

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    pode nem deve vir apenas de cima, embora tambm deva por maio-ria de razo vir de l, mas sim de todos os lados, de cima e de baixo,da esquerda e da direita, bem como de todos ns, enquanto sujeitosmorais e polticos responsveis pelos nossos actos e pelas nossasvidas pessoais, mas tambm pela nossa vida colectiva enquantocomunidade politicamente organizada em que todos participamosactivamente, para o melhor e/ou para o pior. Uma tica verdadeira-mente republicana tem de ser igual para todos os cidados, tantoem direitos como em deveres fundamentais, e no ficarem uns scom os direitos e outros s com os deveres. Se o que est acimade tudo em causa na tica republicana o bem comum, o bem detodos e do todo, ento todos somos co-responsveis por ele, visto asociedade no serem os outros, como costumamos pensar quandonos d jeito faz-lo, mas todos ns e aquilo que fazemos dela e dens prprios ao agirmos como agimos e ao vivermos como vivemostodos os dias. E se pensarmos ainda que a nossa comunidade oures publica no se reduz cidade onde vivemos nem ao pas ondeestamos, mas, e cada vez mais, uma comunidade global onde to-

    dos estamos inseridos e participamos, uma verdadeira aldeia globalde cidados do mundo cuja extenso a Humanidade inteira, en-to os nossos deveres morais e a nossa responsabilidade j no serestringe exclusivamente aos nossos familiares, amigos ou vizin-hos prximos, mas alarga-se, isso sim, a toda a famlia humana dospotenciais amigos e vizinhos longnquos, tanto presentes como fu-turos, que connosco navegam no mesmo barco global, incluindoa todos os seres vivos, animais e plantas, os rios e oceanos, o are a terra que connosco habitam e partilham a mesma casa a quechamamos planeta Terra. Portanto, uma tica republicana que no

    seja mope e saiba integrar no seu seio toda a comunidade relevanteem que participamos e que se preocupe realmente com o bem co-mum, tem obrigatoriamente que ser tambm uma tica ecolgica,ambiental ou da Terra, visto que a comunidade a que pertencemose em que vivemos no exclusivamente social mas tambm natu-

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    ral e csmica. por isso que, podendo a Declarao dos DireitosHumanos fornecer um excelente suporte tico-jurdico e polticopara o que poderiam ser os princpios e valores fundamentais deuma tica republicana verdadeiramente universal, eles tm de sercomplementados com uma Declarao dos Deveres Humanos emrelao no s Humanidade presente e futura, mas tambm em re-lao a natureza e ao planeta vivo de onde viemos, onde estamos,de que fazemos parte, e onde vivemos e morremos, dependendodele e, ao menos em parte, sendo responsveis por ele, no apenaspara nosso benefcio humano, mas para benefcio de toda a vida.

    Finalmente, e para concluir, um duplo apelo histria: emprimeiro lugar, histria das ideologias, para recordar que a con-cepo clssica do republicanismo (a que vem dos romanos atao renascimento italiano e ainda inspirou as revolues francesa eamericana) assentava em trs princpios fundamentais: primeiro, ode que a fora de uma comunidade residia na coeso dos seus mem-bros; segundo, que essa coeso se atinge atravs da participao notipo de aco colectiva representado pelo Governo ou pela defesa

    da comunidade; terceiro, o de que o homem s tem verdadeira-mente acesso sua prpria autonomia individual atravs da ex-perincia na autonomia colectiva. Da que virtude cardinal darepblica, a base da sua coeso, seja assim o patriotismo, a de-voo dos indivduos ao bem comum, e a decadncia das naesacontea quando os membros da comunidade colocam os seus in-teresses particulares acima do interesse colectivo e a vida cvicase desfaz, sendo este o princpio de corrupo das repblicas.Se reconhecermos, mesmo a contragosto, que h alguma verdadenestes princpios e nestas afirmaes, j no ficaremos talvez to

    surpreendidos ou perplexos face ao estado actual das coisas nasRepblica Portuguesa e Brasileira - e no s.E esta a razo de fundo pela qual, do ponto de vista prtico,

    no muito relevante saber se a tica republicana filosoficamentejustificvel a partir de intenes puras e deveres absolutos, ou em

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    funo das consequncias positivas para a felicidade da maioria, ouainda pelas virtudes essenciais do carcter individual, ou mesmo deuma combinao mais ou menos coerente de todas elas, visto queo que interessa acima de tudo vida tica no tanto saber qual o critrio ou fundamento ltimo da validade da aco e das nor-mas que a devem reger, mas sim que se viva e aja de acordo comelas, fazendo o nosso melhor para o bem de todos, sob pena detodos ficarmos a perder se no tivermos a fora, a coragem e o dis-cernimento de o fazer. tambm por isso que a discusso tericaentre, por um lado, uma forma de republicanismo mais liberal ouindividualista que defenda o primado dos direitos e liberdades in-dividuais em relao comunidade, insistindo nos deveres destarelativamente queles, e, por outro lado, um republicanismo maiscomunitarista que defenda o primado dos direitos e liberdades dacomunidade em relao aos indivduos, insistindo principalmentenos deveres destes relativamente quela, uma questo relativa-mente secundria e mais de nfase, uma vez que no existem dire-itos sem deveres nem deveres sem direitos, sendo os direitos de uns

    os deveres de outros, e a liberdade, tanto individual como colec-tiva, no pode nem deve ser vista apenas negativamente, enquantoausncia de coero ou de constrangimentos externos que limitema aco, mas deve ser tambm encarada positivamente como pos-sibilidade ou capacidade real de influenciar, de intervir e participaractivamente na determinao do destino de cada um ou de todos,naquilo que a todos diga respeito. Tal no significa qualquer anu-lao da diferena entre o pblico e o privado ou qualquer diluiodos indivduos no colectivo, mas to s uma soluo de compro-misso entre ambos, visto no haver comunidade sem indivduos

    nem indivduos sem comunidade, e os seus respectivos destinosestarem, assim, inextrincavelmente ligados, o mesmo acontecendo,necessariamente, ao seu estado moral, como j foi referido.

    Quero, finalmente, concluir este artigo com uma homenagemao homem que, pelo seu exemplo de sabedoria e virtude (que para

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    ele eram uma e a mesma coisa), talvez mais tenha feito para queeu me tenha dedicado pessoalmente filosofia, assumindo uma vo-cao inata, transformando-a em formao acadmica e realizan-do-a numa profisso e numa forma de vida que encaro tambmcomo uma misso espiritual, moral e cvica, semelhana dessemeu heri inspirador: refiro-me, como alguns certamente j adi-vinharam, uma vez mais, ao filsofo Scrates, o homem que ssabia que no sabia nada a no ser que uma vida que no e-xaminada no digna de ser vivida, o mesmo que, apesar de noter propriamente morrido para nos salvar, dedicou toda ou quasetoda a sua vida procura da sabedoria e ao aperfeioamento moral,no apenas de si prprio e da sua prpria alma, mas da alma dasua cidade na pessoa dos seus concidados, fazendo-lhes pergun-tas e forando-os a reconhecerem a sua ignorncia naquilo que jul-gavam saber, para os obrigar, atravs dessa tomada de conscincia,a despertarem do sono dogmtico em que viviam na sua iluso desabedoria, levando-os assim a perceber que aquilo a que davam im-portncia e valor - ou seja, fama, ao estatuto social, ao dinheiro,

    ao poder e aparncia (tal como nos dias de hoje curiosamente) -no tinha afinal valor ou importncia nenhuma, e que aquilo querealmente importava era o aperfeioamento pessoal, somente al-canado na busca humilde e infatigvel do conhecimento da ver-dade a que se chamava e chama Filosofia. Prestou dessa forma,na maneira como viveu e como morreu, um testemunho de virtudeindissociavelmente moral e poltica sua comunidade, mesmo con-tra a vontade expressa da maioria desta, que, como se sabe, acaboupor democraticamente conden-lo morte. Ao colocar o real inte-resse e as reais necessidades da sua cidade acima dos seus prprios

    interesses e convenincias pessoais, e at dos desejos da cidade,dispondo-se mesmo a pagar o preo com a prpria vida, deu assimum exemplo perfeito ao mesmo tempo de vida filosfica e de ticarepublicana avant la lettre.

    E pronto, caros leitores, resta-me apenas dizer que no sei se

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    propriamente disto de que falamos quando falamos de tica re-publicana, mas estou relativamente certo e seguro de que talvezdevesse ser exactamente disto de que deveramos falar quando fala-mos de tica republicana.

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    52 Joo Carlos Silva

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