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A ‘OUTRA ECONOMIA’:UM OLHAR ETNOGRÁFICO SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA
Eugênia de Souza Mello Guimarães Motta
Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-graduação em AntropologiaSocial, Museu Nacional, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, como parte dosrequisitos necessários à obtenção do título deMestre em Antropologia Social
Orientador: Federico Neiburg
Rio de JaneiroFevereiro de 2004
ii
A ‘OUTRA ECONOMIA’:UM OLHAR ETNOGRÁFICO SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA
Eugênia de Souza Mello Guimarães Motta
Orientador: Federico Neiburg
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação emAntropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em AntropologiaSocial.
Aprovada por:
______________________________ - OrientadorPresidente Prof. Federico Neiburg
______________________________Profa Lygia Sigaud
______________________________Prof. John Comerford
Rio de JaneiroFevereiro de 2004
iii
Motta, Eugênia de Souza Mello GuimarãesA ‘outra economia’: um olhar etnográfico sobre a Economia Solidária/ Eugênia
de Souza Mello Guimarães Motta. Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional, 2004. viii, 102f. il.Orientador: Federico NeiburgDissertação (mestrado) - UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, 2004.Referências Bibliográficas: f. 89-921.Economia. 2.Etnografia. 3.Economia Solidária. 4.Organizações não
Governamentais. 5.Estado. 6.Crítica. 7.Brasil. I. Neiburg, Federico. II. UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-graduação emAntropologia Social. III. A ‘outra economia’: um olhar etnográfico sobre a EconomiaSolidária
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos os amigos e familiares que estiveram a meu lado durante os
anos de mestrado e sempre, em especial a minha mãe, Charlotte e ao meu pai, Horacio
pelo carinho, paciência e incentivo. Também ao Fernando, sempre companheiro, que
esteve ao meu lado em todos os momentos e às amigas Carla, Maria Claudia, Tatiana,
Flávia e Sabrina.
Agradeço aos colegas do PPGAS com quem, nos debates em sala de aula, tive
a oportunidade de aprender muito e de discutir minha pesquisa e em especial a Fernando
Rabossi pelos valiosos comentários e pelo apoio. Agradeço também aos colegas do
IPPUR e em especial aos professores Carlos Vainer e Henri Acselrad com quem os
debates nas duas disciplinas em conjunto com o PPGAS foram cruciais para este
trabalho.
Agradeço a Federico Neiburg, meu orientador, que foi sempre presente,
atencioso e paciente e cujo interesse pelo meu trabalho foi essencial. Agradeço aos
professores do PPGAS com quem tive aula e aprendi muito. Em especial, agradeço a
Lygia Sigaud pelo interesse e apoio, muito importantes para este trabalho.
Agradeço também aos pesquisadores do IEC, a Vera Calheiros e Filippina
Chianelli e especialmente a Vanilda Paiva, que tanto me ensinaram sobre a pesquisa
social e me incentivaram a seguir a vida acadêmica.
Agradeço especialmente àqueles sem cuja ajuda e atenção seria impossível
realizar este trabalho, que possibilitaram a participação nos encontros de Economia
Solidária, se interessaram pela minha pesquisa, responderam às minhas perguntas e
gentilmente me permitiram participar de suas atividades. Agradeço especialmente ao
João Roberto, do IBase, ao Robson do PACS, ao Peninha, da Anteag, ao professor José
Ricardo Tauile.
A ajuda e dedicação dos funcionários do Museu e do PPGAS foram
importantes. Em especial agradeço às funcionárias da biblioteca, sempre gentis e
eficientes.
Agradeço à CAPES pela bolsa concedida durante os dois anos de mestrado.
v
RESUMO
A ‘OUTRA ECONOMIA’:UM OLHAR ETNOGRÁFICO SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA
Eugênia de Souza Mello Guimarães Motta
Orientador: Federico Neiburg
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduaçãoem Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre emAntropologia Social.
Este trabalho pretende analisar a Economia Solidária como o conjunto de indivíduos e
organizações que têm em comum a idéia de que é possível uma ‘outra economia’ na
qual prevaleçam os valores da solidariedade e da cooperação sobre o egoísmo e a
competição. A Economia Solidária é um fato social novo, tendo surgido no Brasil na
segunda metade da década de 1990 e é um mundo de fronteiras vazadas entre outras
esferas sociais relativamente autônomas: a academia, o universo das ONGs e o Estado.
A abordagem se inspira na análise maussiana da Magia, ao considerar como elementos
de análise da Economia Solidária seus agentes, práticas e representações a partir de um
olhar etnográfico sobre alguns eventos, textos e narrativas orais.
Os eventos observados são considerados como situações condensadoras na medida em
que revelam várias características da Economia Solidária: o esforço por criar coesão e
uma identidade comum, formas de classificação e uma visão de mundo. São analisadas
no texto as narrativas sobre a origem da ES, a sua construção como teoria econômica e
como crítica ao capitalismo. Estas representações são permeadas por uma série de
noções acerca do humano de forma geral e sobre o que seja e deve ser a economia numa
perspectiva transformadora.
Palavras-chave: Economia, Etnografia, Economia Solidária, Organizações nãoGovernamentais, Estado, Crítica, Brasil
Rio de JaneiroFevereiro de 2004
vi
ABSTRACT
THE ‘OTHER ECONOMY’:AN ETHNOGRAPHIC VIEW OF THE SOLIDARY ECONOMY
Eugênia de Souza Mello Guimarães Motta
Orientador: Federico Neiburg
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduaçãoem Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre emAntropologia Social.
The purpose of this work is to analyze Solidary Economy as being the sum of
individuals and organizations that have in common the idea that ‘another economy’ is
possible, an economy in which values such as solidarity and cooperation prevail over
egoism and competition. Solidary Economy is a new social fact, which began to appear
in Brazil in the second half of the 1990’s and which constitutes a world whose borders
intermingles with those of other relatively independent social spheres: the academy, the
universe of NGOs and the State. The approach is based on maussian analysis of Magic,
since it considers, through an ethnographic prospect over some events, texts and oral
narratives, the Solidary Economy agents, practices and representations as the elements
in the analysis.
The observed events are considered as crystallizing situations in the sense that they
reveal some characteristics of Solidary Economy: the effort to create cohesion and a
common identity, forms of classification and a world vision. Narratives about the origin
of Solidary Economy and its construction as an economic theory and as a form of
criticism to capitalism are analyzed in the text. All these representations are pervaded by
a series of notions about what is humane in a general and about what the economy is
and should be, in a perspective of transformation.
Key-words: Economy, Ethnography, Solidary Economy, Non governmentalOrganizations, State, Criticism, Brazil
Rio de JaneiroFevereiro de 2004
vii
SUMÁRIO
página
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 1
CAPÍTULO 1. A CONSTRUÇÃO DA COESÃO .......................................... 6
Situação 1 ............................................................................................................ 6
Situação 2 ............................................................................................................ 7
Situação 3 ............................................................................................................ 14
1. 1. As práticas, as instâncias e o vocabulário da coesão .............................. 24
Conclusões .......................................................................................................... 32
CAPÍTULO 2. OS PROFISSIONAIS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA ....... 35
2.1. Empreendedores, gestores e assessores .................................................... 36
2.2. Figuras carismáticas ................................................................................... 40
2.3. Entidades, organizações e associações ...................................................... 43
2.4. A palavra escrita ......................................................................................... 44
2.5. Espaços e capitais ........................................................................................ 46
2.6. Economia Solidária e políticas públicas .................................................... 52
Conclusões .......................................................................................................... 57
CAPÍTULO 3. TEORIA E REPRESENTAÇÃO ........................................... 59
3.1. As três obras ................................................................................................ 60
3.2. A origem da expressão “economia solidária” ........................................... 64
3.3. Os sentidos da economia e da solidariedade ............................................. 66
3.4. Narrativas sobre a origem da Economia Solidária .................................. 69
3.5. Economia Solidária como teoria econômica ............................................. 73
3.6. Práticas econômicas .................................................................................... 74
viii
página
3.6.1. Cooperativas ............................................................................................. 75
3.6.2. Gestão pelos trabalhadores de empresas falidas (ou autogestão) ........ 76
3.6.3. Clubes de troca e moeda social ................................................................ 76
3.6.4. Consumo ético (ou solidário) ................................................................... 77
3.6.5. Comércio justo (Fair Trade) .................................................................... 78
3.6.6. Crédito solidário ....................................................................................... 79
3.7. A construção da crítica e os “gargalos” .................................................... 80
Conclusões .......................................................................................................... 84
CONCLUSÕES .................................................................................................. 86
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 89
Anexo 1 - Breve Cronologia dos principais acontecimentostratados na dissertação ...................................................................................... 93
Anexo 2 - Fotografias ......................................................................................... 94
Anexo 3 - Entidades que compõem o Grupo de Trabalho Brasileirode Economia Solidária do Fórum Social Mundial (GT-Brasileiro) ............... 99
Anexo 4 - Siglas ................................................................................................... 101
INTRODUÇÃO
Na segunda metade da década de 1990 surgiu no Brasil uma idéia que
conquistou diversas entidades, organizações e pessoas. Ela se baseia na possibilidade de
se construir uma “outra economia”, capaz de gerar renda e trabalho para os
desempregados e de estabelecer novas formas de relação entre as pessoas e destas com o
mundo que as cerca.
Em torno desta idéia todo um mundo está sendo criado. Um mundo cuja
diversidade e ausência de fronteiras fixas constituem sua própria condição de existência.
Cuja fluidez e dinamismo são sua singularidade e maneira própria de existir.
Esta idéia se chama Economia Solidária (ES). Seus defensores a consideram
como sendo o conjunto de novas relações econômicas baseadas na cooperação, na
democracia e no respeito ao meio ambiente, traduzidas pelo trinômio: “socialmente
justo, economicamente viável, ecologicamente sustentável”. Estas novas relações
poderiam ser construídas através de empreendimentos e associações em que os
princípios da solidariedade da cooperação se sobrepusessem ao da competição e do
egoísmo que caracterizariam o capitalismo através da busca pelo lucro a qualquer custo.
Neste trabalho, vou tratar a ES como o universo de pessoas, idéias e práticas
particulares. Uma aproximação sobre quem são estes indivíduos, de que maneira,
quando e onde atuam como agentes da ES, revela todo um universo de práticas e
representações que constituem a ES como um fato social.
Tratada como fato social, ou seja, como uma “ordem de fatos” “que consistem
em maneiras de agir, de pensar, exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de
coerção em virtude do qual se lhe impõem” (DURKHEIM, 1974) é possível afastar-se
das representações nativas permitindo torná-las objeto do próprio estudo.
Segundo estas pessoas que pertencem ao mundo da ES esta compreende as
relações econômicas que têm como locus os empreendimentos e associações dedicadas
a diversas atividades (produção, comércio e consumo de bens e serviços). Tratarei estas
relações econômicas os discursos e teorias sobre elas como representações. É
importante ressaltar este ponto na medida que este forma de olhar permite uma
abordagem da ES como fato social. O trabalho dentro dos empreendimentos, em suas
múltiplas dimensões, é considerado como atividade entre outras que fazem parte da ES,
2
que porém é muito mais ampla que estas atividades econômicas. Considerando-se isso,
os participantes deste mundo não seriam apenas aqueles que trabalham e tiram sustento
destes empreendimentos e associações, mas os que através do gerenciamento de
projetos, da intermediação de verbas, da organização e participação em eventos e da
elaboração de textos defendem, propagam e produzem a ES.
Para tratar de um mundo dinâmico e sem fronteiras explícitas, muitas vezes
ambíguo e polissêmico, este trabalho inspira-se na análise de Mauss sobre a Magia
(MAUSS, 1972). Tratar do mundo da ES a partir de elementos inspirados nas idéias que
Mauss utilizou para analisar a Magia parece a melhor forma de abordar este complexo
universo que, assim como a Magia, é de difícil delimitação e possui fronteiras
imprecisas. Assim, a dissertação é estruturada a partir da análise maussiana que
considera como elementos da Magia os agentes, as práticas e as representações.
Para compreender o tipo de envolvimento dos agentes da ES, a noção weberiana
de “profissional da política” é um outro instrumento valioso (WEBER, 1970). Ele
permite considerar a definição que os próprios agentes têm da atividade e,
principalmente, o sentido que essa atividade (a política para Weber, a economia
solidária neste trabalho) tem para os indivíduos que com ela se envolvem, e os
mecanismos através dos quais eles dão sentido ao mundo consagrando-se à economia
solidária. Como observou Weber sobre os profissionais da política, o envolvimento dos
agentes com a ES pode ser definido por estes viverem “da” e “para” ela.
A ES é um fato social novo. A expressão foi usado pela primeira vez em 1996
por Paul Singer e foi em torno dela que, no fim da década de 1990, várias iniciativas
passam a ser reconhecidas como pertencentes a uma “outra economia” e os indivíduos e
entidades envolvidas com elas passam a se reconhecer como parte de um universo
comum. No I Fórum Social Mundial (FSM), em 2001, diversos agentes entre vários
tipos de organizações e indivíduos começam a dar forma a um grupo que a partir daí se
expande, ao mesmo tempo que cresce frente ao cenário nacional e se mostra
internacionalmente.
A significado do FSM (nas suas três edições em 2001, 2002 e 2003) para a
constituição deste mundo não está apenas no fato de ter se transformado em um espaço
de articulação nacional e internacional (o que absolutamente não é pouco), mas também
por ser um evento que mostra e constrói um “espírito” da crítica ao chamado
3
neoliberalismo como face contemporânea do capitalismo. As propostas de uma
globalização mais justa e a valorização da diversidade e dentro disso da possibilidade de
também a crítica se globalizar, constituem este espírito no qual a ES surge e que ela
também constrói.
Com a iminência da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência da
república no final de 2002, os profissionais da ES vêem um novo espaço se abrir para
suas atividades. Um pouco antes do segundo turno das eleições, quando a vitória de
Lula era quase certa, a I Plenária Nacional de Economia Solidária dá o primeiro passo
para a reivindicação pública por espaço no futuro governo (com a elaboração da Carta
ao Governo Lula) e para a criação de uma organização nacional que pretende ser o
porta-voz da ES no país.
Em junho de 2003, Paul Singer toma posse como titular da Secretaria Nacional
de Economia Solidária (SENAES), que fora criada pouco antes como estrutura
subordinada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). No dia seguinte da posse, a
poucos quilômetros de onde ela ocorreu, começa a III Plenária Nacional de Economia
Solidária, cujo principal objetivo era criar o Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
O objetivo desta dissertação é estabelecer um primeiro mapa sociológico do
mundo da ES e oferecer elementos que permitam compreender as dinâmicas de um
universo em formação, que parece ganhar cada vez mais adeptos, que influi nas
políticas públicas e que se insere num tipo recente de organização da crítica, que tem
expressão no Fórum Social Mundial. É dentro deste universo onde também se
identificam atividades econômicas que significam o sustento de muitos indivíduos e das
quais cada vez mais pessoas tomam parte.
Este trabalho se baseou em pesquisas realizadas durante o ano de 2003, através
da observação e participação em alguns eventos, do levantamento de toda a literatura
escrita no Brasil sobre a ES (impressos e na Internet), do levantamento dos indivíduos e
instituições que fazem parte do mundo da ES, da leitura e análise deste material, da
participação num curso sobre ES na UFRJ e de conversas e entrevistas com alguns
profissionais da ES.
O primeiro evento de que participei foi o III Fórum Social Mundial, realizado
em Porto Alegre (RS) do dia 23 ao dia 28 de janeiro. Durante o III FSM ocorreu um
seminário sobre ES, várias oficinas e a II Plenária Nacional de Economia Solidária.
4
O segundo evento foi a Plenária Estadual de Economia Solidária do Rio de
Janeiro, ocorrida nos dias 30 e 31 de maio e 1º de junho, na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Esta plenária era preparatória para a III Plenária
Nacional de Economia Solidária da qual também participei. Outras plenárias estaduais
foram realizadas em mais dezessete estados brasileiros.
A Plenária Nacional de Economia Solidária ocorreu nos dias 27, 28 e 29 de
junho em Brasília, D.F.. Neste evento, foi criado o Fórum Brasileiro de Economia
Solidária (FBES). Um dia antes do começo da plenária também pude presenciar a posse
de Paul Singer como titular da SENAES.
Além destes eventos, também estive presente no Encontro Internacional de
Economia Solidária ocorrida nos dias 25 e 26 de julho na Universidade de São Paulo. O
encontro foi organizado pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da
USP e pelo NESOL (Núcleo de Economia Solidária), que havia sido criado
recentemente na mesma universidade.
Outro evento de que participei foi o seminário “O Papel da Universidade no
combate às causas estruturais da pobreza através do Cooperativismo Popular”, ocorrido
na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no dia 6 de outubro. O seminário foi
organizado pela a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da
COPPE - UFRJ (Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Também estive presente, como ouvinte, na maioria das aulas do curso
“Economia Solidária e Autogestão”, oferecido no segundo semestre letivo de 2003
como disciplina optativa no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Este curso tinha como titular o professor José Ricardo Tauile e foi organizado
em conjunto com a ITCP da COPPE - UFRJ.
Outra fonte utilizada para a pesquisa foram inúmeros textos, livros e documentos
sobre ES. Muitos foram conseguidos diretamente nos encontros, outros através da
Internet (o que revela alguns dos mecanismos principais de circulação das idéias na ES).
Esta dissertação está dividida em três capítulos, cada qual tratando de um
elemento do mundo da ES como fato social, de acordo com as análise de Mauss sobre a
Magia: agentes, práticas e representações.
O primeiro capítulo está centrado na descrição de três eventos. Estes são tratados
5
como “situações” a exemplo do que Gluckman chama de “situação social”
(GLUCKMAN in FELDMAN-BIANCO, 1987), na medida em que são momentos
condensadores, capazes de revelar várias características do mundo da ES da mesma
forma que as situações descritas por Gluckman revelavam a organização social da
Zululândia moderna.
As três situações permitem uma aproximação em relação a classificações,
hierarquias e representações presentes. As práticas ritualizadas, os cenários construídos
e o vocabulário usado nas situações são elementos que permitem lançar um olhar sobre
a ES através da etnografia.
O segundo capítulo está focado nos agentes que fazem parte do mundo da ES.
Mostrarei que existem diversas atividades que se constituem como forma de pertencer a
ele. As formas de classificar os indivíduos revelam características fundamentais da ES,
hierarquias e tensões. Também neste capítulo tratarei das relações da ES com o Estado,
com as ONGs e a universidade, todos esses espaços importantes na sua construção.
O terceiro capítulo trata das “representações” no mundo da ES. Considera-se
“representações” todas aquelas idéias sobre a ES produzidas em diversos espaços como
a academia, os encontros, as ONGs, os princípios morais defendidos e a forma com que
se constrói a ES como crítica do capitalismo e como teoria econômica. É também neste
capítulo que tratarei das origens da expressão no Brasil.
A dissertação também conta com quatro anexos que tornam mais fácil a leitura.
O primeiro anexo é uma pequena cronologia, que contém os principais fatos relatados
na dissertação. O segundo traz fotografias de dois eventos descritos. No terceiro estão
informações sobre entidades citadas e no quarto anexo estão todas as siglas utilizadas no
texto, com seu significado por extenso.
Esta dissertação é uma primeira aproximação ao mundo da ES enquanto fato
social e provavelmente algumas análises são provisórias e incompletas na medida das
possibilidades da pesquisa e da complexidade do objeto. De qualquer maneira, estas
análises são um primeiro passo, sempre necessário, para uma aprofundamento futuro do
tema e para a compreensão mais minuciosa deste universo.
6
CAPÍTULO 1. A CONSTRUÇÃO DA COESÃO
Situação 1:
III Fórum Social Mundial (FSM)
de 23 a 28 de janeiro de 2003 - Porto Alegre, RS
Esta foi a terceira edição do FSM. Segundo seus organizadores, o número de
participantes superou em muito o das edições anteriores.
Durante o Fórum, ocorreram vários eventos ligados à ES. Inúmeras Oficinas, um
painel (cujo acesso só era permitido a delegados) e um evento principal: o seminário
“Economia Solidária como estratégia de Desenvolvimento Humano”, realizado nos dias
24, 25 e 26, num grande teatro da PUC - RS.
O centro do seminário foi a interlocução internacional, através do relato de
experiências em diversos países. A principal questão, como o próprio título demonstra,
era o debate sobre o alcance das propostas de ES. Houve discussões sobre comércio
justo, políticas públicas, sistema financeiro solidário e sobre autogestão, em todas as
mesas1 havia representantes de entidades e organizações brasileiras e de diversos países.
Estiveram presentes representantes de organizações internacionais e nacionais ligadas à
ES, fazendo com que houvesse, durante o seminário, palestrantes de toda a América
(com destaque para a América Latina e Canada), Ásia, África e Europa (principalmente
França e Espanha).
Havia uma grande quantidade de material de divulgação na entrada do auditório,
muitos deles em inglês e francês.
Mas o que mais chamava atenção durante o Fórum acontecia do lado de fora da
reuniões. Dentro do campus da PUC, onde se realizou a maior parte dos eventos e por
onde milhares de pessoas circularam, havia um local reservado para alimentação e outro
para a venda de artesanato. Nas extremidades dos dois grandes corredores havia uma
faixa que identificava-os como pertencentes a uma “Rede de Economia Solidária”,
1 “Mesa” é uma forma de organizar explanações. Uma Mesa pode ter um tema, sobre o qual diversaspessoas escolhidas para tal debatem frente a uma platéia que pode eventualmente participar, geralmentepor meio de perguntas no final das explanações. Também se dá este nome ao conjuntos de pessoas quefrente a uma platéia fazem alguma explanação. Pode-se dizer que tais pessoas compuseram uma “mesa”.
7
formada por empresas solidárias, na maioria cooperativas (ver fotografias 1 e 2 no
anexo 2). Havia outros locais para comer e barraquinhas que vendiam todo tipo de
coisas, mas a parte que foi trazida pelos organizadores era toda de “empreendimentos
solidários”.
O “acampamento da juventude” também foi todo organizado a partir das
concepções da ES, sendo administrado de forma autogestionária e havendo uma moeda
social que era usada em mercadorias vendidas dentro do acampamento. Esta moeda se
chamava “Sol”, o seu valor era equivalente a R$ 1,00 e podia ser trocada por qualquer
moeda estrangeira.
Muitas pessoas que circulavam no evento tinham no peito adesivos. Sobre a ES
existiam dois tipos: um apenas com o símbolo da ES e as palavras Economia Solidária e
outro que além disso continha a frase: “Eu pratico”.
Durante o III FSM ocorreu a II Plenária Nacional de Economia Solidária. Ela foi
realizada num teatro da PUC, onde centenas de pessoas ocuparam todas as cadeiras, os
corredores e as portas. Foi durante o evento que Paul Singer foi oficialmente anunciado
como futuro titular da SENAES, subordinada ao Ministério de Trabalho e Emprego. Na
entrada do teatro, antes da Plenária, era distribuído um livreto cujo título era Do Fórum
Social Mundial ao Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
Depois de sua falação Singer mal conseguiu deixar o teatro, tal era o número de
pessoas que lhe pedia autógrafos e queriam tirar fotografias com ele.
No corredor que dava acesso ao teatro várias bancas foram montadas para a
venda de livros. Entre eles, dois foram lançados lá: A outra Economia, organizado por
Antonio David Cattani, e Economia popular solidária e políticas públicas: a
experiência pioneira do Rio Grande do Sul, de Paulo Leboutte.
Situação 2:
Plenária Estadual de Economia Solidária do Rio de Janeiro
30 e 31 de maio e 1º de junho de 2003
PUC - Rio, Rio de Janeiro
A Plenária Estadual de Economia Solidária começou numa sexta-feira a noite e
8
foi realizada num ginásio de esportes da PUC – RJ. Foi um encontro preparatório para a
Plenária Nacional de ES que ocorreria de 27 a 29 de junho em Brasília. Várias plenárias
foram realizadas em diferentes estados com o mesmo fim.
Ao chegar ao local, os participantes deviam assinar uma lista elaborada a partir
das fichas de inscrição, com as informações: nome e “instituição ou grupo”. Recebiam
uma bolsa que continha uma publicação sobre uma plenária anterior realizada em
Mendes em 2002, a programação do evento, lápis e bloco de notas. Além disso, cada
um recebia um crachá e um saquinho plástico transparente, amarrado com uma cordinha
escura com algumas sementes. Os participantes eram alertados para que não perdessem
as sementes, pois elas seriam importantes durante a plenária.
Ao subir a escada que levava ao ginásio, podia-se ver bandeirinhas de festa
junina atravessando todo a quadra, onde se ouvia um disco de Milton Nascimento. As
muitas cadeiras estavam colocadas bem longe do palco, do lado oposto, em que estava
montada uma mesa cuja frente era ocupada com um grande faixa com o logotipo da
plenária, sua data e local, e algumas instituições apoiadoras e promotoras. Tendo sido
chamados para que pudessem começar as atividades do dia, todos entraram no ginásio e
o que se ouvia, então, era um agitado forró. Um animador2, ao microfone, logo chamou
a todos para que formassem uma grande roda e dançassem juntos uma quadrilha. Uma
grande roda se formou e os que ainda resistiam a entrar na dança eram insistentemente
convidados pelos que dançavam e pelo animador. Em pouco tempo, todos estavam
dançando e a quadrilha seguiu alternando danças em pares ou roda.
Num certo momento o animador pediu para que todos buscassem suas sementes
e as erguessem. Cada um então deveria procurar as outras pessoas que tinham nas mãos
o mesmo tipo de semente. Formaram-se então doze pequenas quadrilhas, de dez a doze
pessoas cada uma. A quadrilha do milho, do arroz, da soja, do girassol, da canjica, do
feijão preto e do feijão vermelho... Orientadas a seguir com a dança, cada pequena
quadrilha recebeu uma folha de papel pardo grande e uma caneta. A primeira atividade
seria que cada indivíduo escrevesse no papel pardo duas palavras que representassem o
que cada um entendia por Economia Solidária. Algumas delas foram: “Igualdade”,
2 O “animador” é aquele indivíduo que comanda as atividades lúdicas e as dinâmicas, geralmente aomicrofone. Também é chamado de animador aquele que, num grupo de discussão é escolhido paracoordenar as discussões, organizando a ordem das falas e ajudando no desenvolvimento da discussão,principalmente no que se refere aos temas que devem ser abordados e ao tempo disponível para cada umdeles.
9
“espiritualidade”, “amor”, “autonomia”, “autogestão”. Depois disso cada grupo deveria
pendurar nas redes que circundavam a quadra, com pregadores de madeira, os seus
painéis, indicando a que quadrilha cada um pertencia.
Seguiu-se a formação de uma mesa no palco, composta por um representante da
reitoria da PUC, um representante do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de
Janeiro (uma das principais entidades organizadoras) e por uma representante de um
grupo de mulheres artesãs da Baixada Fluminense. Muito rapidamente cada um deles
falou, saudando os participantes. Depois disso, algumas orientações foram dadas aos
que precisariam de alojamento na cidade e a hora do café-da-manhã do dia seguinte foi
anunciada: 7:30h. Após algumas reclamações, uma tolerância até as 8:15h foi
estabelecida. As pessoas que tinham consigo filhos pequenos (informação contida na
ficha de inscrição) foram orientadas a levar, no dia seguinte, uma sacola com toalha,
sabonete, escova e pasta de dente e roupas limpas, pois recreadoras tomariam conta das
crianças durante o dia todo.
Durante esta explicação foi distribuída uma folha que continha a letra de uma
música. Convidados a acompanhar o autor da música que também tocava violão, todos
cantaram o “Xote da Vitória” e dançaram.
Depois da dança todos os presentes foram convidados a partilhar de uma sopa,
acompanhada de pão. Também havia sacos plásticos com frutas. Assim se encerrou o
primeiro dia da plenária.
No sábado, mais uma vez, se ouvia a música de Milton Nascimento, já a muitos
metros de distância do ginásio. Às 9:00h o café-da-manhã ainda estava sendo servido e,
meia hora depois, mais dança ao som de forró. A grande roda, as sementes erguidas e as
pequenas quadrilhas formadas. Depois de encerrada a música, os grupos3 deveriam se
sentar em círculo para debater os temas propostos. Os resultados das discussões
deveriam ser reproduzidos em grandes painéis de papel pardo, como os do dia anterior.
Na quadrilha do girassol, à qual eu pertencia, seguiram-se falações sobre as atividades
de cada um dos participantes. Uma interrupção fez todos atentarem a Marcos Arruda,
que faz parte da ONG PACS (Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul) e que,
com o microfone na mão, dizia que não era possível que num evento como aquele as
3 Chama-se de “grupos” conjuntos de participantes que se reúnem para discutir um tema. A divisão emgrupos pode seguir diversos critérios, sempre sendo estes pré-estabelecidos pela organização do evento.
10
pessoas usassem o copo em que bebiam água apenas uma vez e os jogassem fora.
Apelou para que todos guardassem os copos descartáveis e os usassem, de preferência,
até o final do encontro. Obedecido. Quando terminou o trabalho em grupos, a maioria
das pessoas carregava copos vazios nas mãos ou tentava guardá-los de alguma maneira
em suas bolsas.
Durante a manhã, foram montadas algumas bancas na entrada do ginásio, que
vendiam artesanato “solidário”. Eram principalmente roupas, acessórios, bonecos e
utilidades para a cozinha. Muitos dos produtos eram feitos de material reciclado.
O almoço, como o café-da-manhã e o jantar, foi servido num refeitório da
Universidade. A comida não agradou à maioria dos participantes, muitos criticando a
organização pelo fato de não ser produzida por empresa solidária.
Depois do almoço e depois de mais uma quadrilha, as cadeiras foram colocadas
à frente do palco. Três pessoas foram convidadas para uma mesa: Robson, membro do
PACS e do Grupo de Trabalho de Cadeias Produtivas do Fórum de Cooperativismo do
Rio de Janeiro, que falou sobre a história do Fórum; Francisco Lara, da ONG CAPINA
(Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa), falou sobre os conceitos de
rede e fórum; Dione Manetti, assessor especial de Paul Singer na SENAES,
representando esta. As falações foram breves. Robson fez um histórico a partir de datas
marcantes, começando com o ano de 1994, destacando reuniões importantes e adesões
durante a história do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro (FCP - RJ).
Chico Lara mostrou como era necessário resignificar o conceito de rede já que este “não
era um conceito democrático”, mas ligado ao capitalismo (rede de farmácias, de postos
de gasolina, etc). Chico também falou da origem grega da palavra fórum, dando ênfase
à característica de espaço aberto e livre de debate. Dione Manetti, aparentemente era o
orador mais esperado, tendo despertado vários olhares e falas desconfiadas: “Quero ver
o que esse cara vai dizer...”. A expectativa e a desconfiança em relação à fala de Dione
representa a conflitividade existente e demonstrada várias vezes em relação àqueles que
ocupam cargos em governos. Dione também falou pouco, tendo privilegiado as
propostas inicias da SENAES e destacando o importante papel que teria o Fórum
Brasileiro de ES na interlocução com a Secretaria.
Depois das falações, todos foram orientados a formar grupos de mais ou menos
11
dez pessoas, aleatoriamente, para fazer um “cochicho” 4 e elaborar perguntar para os
oradores. A quase totalidade das perguntas foi dirigida ao representante da SENAES e
se referiam principalmente a políticas públicas. Dione Manetti pediu desculpas e se
retirou alegando que teria que pegar um vôo logo em seguida. Mais comentário da
platéia: “Esses caras de governo sempre saem correndo”, “Eu acho que eles marcam o
vôo para em cima da hora para não ter que ficar mesmo.”
Após a mesa houve um intervalo e na parte de baixo do ginásio foi servido um
lanche. Café, suco e, desta vez sim, “pão solidário”. Uma grande quantidade de pães,
salgados, doces, de muitas formas e tamanhos. O tema das conversas eram as falações
que precederam a pausa. Principalmente a de Dione.
Na volta do lanche, mais uma vez as quadrilhas se reuniram e mais debates
sobre os temas propostos ocorreram. Resultados das discussões em painéis. Ao final do
dia, todas as redes que rodeavam a quadra estava apinhadas de painéis. Cercados o
tempo todos dos resultados da discussão, não era raro que os participantes
aproveitassem algum intervalo para ler os painéis.
Às 19:30h encerraram-se os trabalhos e todos seguiram para o jantar.
No domingo, o último dia da plenária, as atividades começaram ainda mais
atrasadas. Todos estavam cansados, mais havia uma agitação no ar. Naquele dia seriam
escolhidos os representantes que iriam a Brasília, com direito a voto na plenária
nacional. Neste dia havia mais pessoas que nos dois primeiros, o que causou certo
desconforto nos que participaram desde o começo.
Depois de uma breve dança (poucas pessoas participaram), todos se reuniram na
platéia. A moça que falava ao microfone disse que, diferente do programado, a escolha
dos representantes seria antes da discussão em plenária5 dos resultados da discussão em
grupo. Muitos protestaram, alegando que não teria sentido escolher primeiro os
representantes e depois as idéias que estes defenderiam. A equipe que fazia a síntese6
4 O “cochicho” é um momento rápido em que não existem regras para as falas (nem tempo neminscrições, por exemplo). O termo remete ao som gerado pelas falas desordenadas.5 Dá-se o nome de plenária ao conjunto dos participantes, quando estes estão todos reunidos e voltadospara uma só atividade que envolve a todos, existindo sempre um número pequeno de pessoas que dealguma maneira conduzem os trabalhos. É o mesmo nome que se dá a um tipo de reunião, como asdescritas, em que existe tomada de decisão.6 “Síntese” é um texto escritos por pessoas designadas especialmente para a tarefa, em que devem constaros principais pontos discutidos em um grupo, as propostas e as divergências. De todas as discussões emgrupo resultam “síntese” que depois servem como base para aquilo que vai ser colocado em votação na
12
das discussões não tinha conseguido terminar seus trabalhos e teria que ser feito desta
maneira.
Foi esclarecido que como definido pelo GT-Brasileiro (Grupo de Trabalho
Brasileiro de Economia Solidária do FSM), o número de representantes deveria ser de
10% do total de participantes. Estiveram presentes 246 pessoas na plenária, assim, 25
deveriam ser os enviados a Brasília. Além disso, foi definida pelos organizadores uma
proporção que também causou comentários contrariados: dos representantes que iriam a
Brasília, 60% deveria pertencer a “grupos de produção”, 30% deveriam ser de
“ assessoria e pesquisa” e 10% de “outros movimentos sociais”. Na verdade, o último
10%, segundo indicação da organização nacional, deveria ser de “gestores públicos”,
em não havendo ninguém que se encaixasse nesta categoria, dedicou-se esta parcela aos
“outros movimentos sociais”. Outro esclarecimento: os que estavam sendo escolhidos
não eram “delegados”, pois ninguém tinha delegado a eles qualquer poder. Além disso
não estavam representando o estado do Rio de Janeiro, mas aquela plenária, pois não se
podia assegurar que toda a ES do estado estava ali representada. Por último, foi
lembrado que a composição do grupo de representantes deveria contemplar os critérios
de gênero, raça e moradia (interior e capital).
No dia anterior, as quadrilhas deveriam ter indicado nomes para serem
apreciados em plenária e aprovados como representantes. Dois grupos não o fizeram,
inclusive o meu. No caso da quadrilha do Girassol (da qual participei) o que ocorreu foi
uma falta de organização e algumas pessoas não entenderam o que deveria ser feito. O
outro grupo, porém, não escolheu seus indicados por entender (pelo menos foi o que
disse um dos componentes que se dirigiu à plenária – pesquisador da COPPE, UFRJ,
ITCP) que algumas coisas não estavam claras. No dia anterior foi dito que cada grupo
deveria indicar uma ou duas pessoas, depois foi dito que poderia ser o número que
quisessem. Além disso, também no dia anterior foi dito que os que desejassem ir à
plenária nacional não deveriam contar com qualquer financiamento da viagem e
deveriam levar isso em consideração. No domingo porém, foi dito que “é claro que não
existe isso de critério financeiro” e que as entidades fariam o possível para conseguir
recursos.
plenária para que se transforme em “resolução”. Pode existir uma “comissão de síntese” no caso de sernecessário produzir uma síntese de várias outras sínteses de cada grupo.
13
Diante disso, foi proposto que os grupos voltassem a se reunir e mais uma vez
discutissem os nomes que seriam indicados. Meu grupo adotou uma solução
conciliatória. Todos os que desejavam ser indicados o foram.
Foi composta então uma grande roda, ao redor da quadra. Os indicados pelos
grupos deveriam se apresentar no centro da roda e se agrupar nas três “categorias” que
comporiam a proporção dos delegados. Nas três categorias havia mais indicados do que
o número que deveria ser enviado a Brasília. Depois de constatada por todos que a
composição dos grupos estava bem equilibrada entre homens e mulheres, negros e
brancos e moradores do interior e do Grande Rio, mais uma polêmica. Os representantes
seriam escolhidos pelo conjunto da plenária ou dentro do grupo de indicados de cada
“categoria”? Depois de breve votação, ficou decidido que seriam escolhidos dentro das
categorias. Os indicados permaneceram no ginásio para a discussão dos nomes enquanto
o restante dos participantes foi almoçar.
Quando estava chegando ao refeitório acompanhada de outra pessoas da minha
quadrilha, fomos informadas de que a comida estava estragada. Tivemos que procurar
um lugar fora da universidade para comer.
Depois desse almoço confuso, todos voltaram ao ginásio para conhecer,
finalmente, os representantes que iriam a Brasília. Antes disso, uma cooperativa de
artesãs promoveu um desfile das roupas que elas faziam. Cerca de 12 mulheres, entre
crianças e idosas caminharam ao centro do grande círculo exibindo as roupas feitas com
fuxico e com retalhos, sendo muito fotografadas. Seguiu-se um jogo. Enquanto tocava
uma música, uma bola de plástico era passada de mão em mão e a pessoa com quem
estivesse a bola quando a música parasse, deveria falar uma palavra que achasse que
tinha a ver com a economia solidária. Só depois disso os indicados se apresentaram à
plenária. Todos se apresentaram com nome e grupo a que pertenciam.
A comissão de síntese tinha terminado seus trabalhos e apresentou seus
relatórios. Depois disso, reunidas as quadrilhas, duas a duas, seis grandes círculos se
formaram e houve debate em torno da síntese feita pela comissão. Foram apresentadas
algumas idéias de alteração do texto. Mais uma vez formou-se a plenária e cada grupo
apresentou, através de um relator7 o que tinha sido discutido.
7 O “relator” tem um papel parecido com aquele que faz sínteses. Parece existir um sutil diferença entre“relatório” e “síntese”, sendo o primeiro praticamente um resumo do que foi falado e a síntese já apontarquais foram os pontos de consenso e as discordâncias. Apesar disso é comum que se use um termo pelo
14
Enquanto os relatores terminavam o seu trabalho frente a plenária, foram
distribuídas a todos pequenas velas. Formando-se, novamente um grande círculo,
seguiu-se a apresentação da quadrilha das crianças. As recreadoras, que acompanharam
as crianças durante o fim de semana prepararam uma coreografia. As crianças, ao centro
da grande roda dançam frente aos sorrisos e palmas dos adultos. Ao fim, foram todos
convidados a formar uma grande quadrilha e se juntar às crianças. Na dança, muito
animada desta vez, todos se deram as mãos dançando em círculo e depois fizeram um
“caracol”.
Quando terminou, todos acenderam suas velas, umas nas outras. Foi lido um
poema e todos se postaram em círculo, de velas nas mãos. Ao som de “Cio da terra”,
todos começaram a se dar os braços e, cantando, se aproximavam ao centro do círculo,
num momento grave e solene. Muitos se emocionaram. Uma procissão que não era em
direção a nenhuma igreja ou imagem de santo, mas ao centro, a si mesmo, à
coletividade. Sem poder bater palma por estarem segurando as velas, a música terminou
num grande silêncio que foi lentamente sendo povoado com as vozes num tom de
alegria. Saindo pela porta estreita do ginásio, alguns com as velas ainda acesas, muitos
risos em direção à festa que já estava montada.
Do lado de fora uma grande mesa com quentão, vinho e muita comida aguardava
os participantes. Uma outra mesa foi colocada para que todos pudessem expor os
objetos que fariam parte da troca que ali aconteceria. Outra mesa ainda foi montada
onde estavam expostos vários trabalhos das crianças com material reciclado. Grande
euforia tomou conta do lugar e logo o som das conversas e dos risos tomou conta da
festa. Os que iam aos poucos saindo trocavam telefones, e-mails e prometiam se ver de
novo. Muitos “foi um prazer te conhecer”, abraços, beijos e “vamos nos falar!”.
Situação 3:
Plenária Nacional de Economia Solidária
de 27 a 29 de junho de 2003
Brasília, D.F.
outro sem que esta distinção seja relevante.
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A entrada do Minas Brasília Tênis Clube estava agitada. Apesar de ter sido
pedido para quem quisesse participar da plenária, não sendo delegado eleito no seu
estado, fizesse uma pré-inscrição, a maioria das pessoas que ali estava preenchia sua
ficha naquele momento. Quando inscritos para a participação na Plenária, todos
recebiam um crachá e uma sacolinha de pano, estampada com o logotipo da ES e com
os dizeres que norteariam as discussões:
Fórum Brasileiro de Economia Solidária. III Plenária Nacional. 27 a 29de junho. Minas Brasília Tênis Clube. O Direito ao trabalho solidário. Odesenvolvimento de cadeias produtivas solidárias: produção,comercialização, consumo. Um sistema de Finanças Solidárias.Conhecimento tecnológico a serviço da vida. Educação para o trabalhosolidário. A inserção dos trabalhadores/as da Economia solidária comoatores das políticas públicas. Uma outra economia é possível!
Cada crachá recebia um adesivo circular, cuja cor indicava o pertencimento a
uma das três categorias: “empreendedor”, “assessor” ou “gestor público”.
No corredor que levava ao espaço em que seriam realizadas a maioria das
atividades, um feira dos mais variados produtos já começava a ser montada. Algumas
pessoas da organização começavam a distribuir lenços triangulares brancos, estampados
com corações vermelhos e com as siglas dos diversos estados. Todos queriam um
lencinho com a sigla de seu estado. Dali a pouco, podia-se ver que a maioria dos
participantes ostentava amarrados ao pescoço, nas suas bolsas e sacolas, o lencinho
cheio de corações.
O grande auditório e os principais corredores do clube estavam cobertos de
faixas de saudação de diversas entidades e organização. Durante o evento, estas faixas
foram se multiplicando, de modo que, ao final, não havia qualquer espaço nas paredes
das áreas de maior circulação.
Às 9:45h inicia-se a abertura dos trabalhos. Na mesa, representantes das
principais entidades e organizações que compõem o GT-Brasileiro: IBase (Instituto
Brasileiro de Análises Socioeconômicas) , FASE (Federação dos Órgãos para
Assistência Social e Educacional), Anteag (Associação Nacional de Trabalhadores em
Empresas de Autogestão e de Participação Acionária), PACS (Instituto de Políticas
Alternativas para o Cone Sul), RUITCP (Rede Universitária de Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares), Cáritas, Unitrabalho, MST - Concrab
16
(Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - Confederação Nacional das
Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), CUT - ADS (Central Única dos
Trabalhadores - Agência de Desenvolvimento Solidário), Rede de Gestores Públicos em
ES e ABCred (Associação Brasileira dos Dirigentes de Entidades Gestoras e
Operadoras de Microcrédito) (ver fotografias 3 e 4 no anexo 2). Depois de uma breve
saudação do Núcleo de ES de Brasília começa a primeira dinâmica8 do evento.
Os animadores dizem que dentro da sacola que cada um recebeu, existe uma
bola de encher e um pedacinho de papel em branco. Cada participante deve escrever
neste papel uma palavra que represente a sua expectativa em relação ao encontro.
Enrolado o papelzinho, devem colocá-lo dentro da bola e soprá-la até que fique cheia e
dar um nó na ponta para fechá-la. Feito isto, os animadores dizem para os participantes
balançarem as bolas para cima, com a mão esquerda. Depois, com a mão direita. As
bolas deveriam, então, ser jogadas para o alto. Entre risos, as bolas são jogadas para lá e
para cá. Cada um então deveria pegar qualquer bola que estivesse perto. Os animadores,
então indicam aos participantes que coloquem esta nova bola sobre o colo e, curvados
sobre ela silenciosamente reflita sobre as suas expectativas e dos que estavam a sua
volta. Depois disso, cada participante deveria “tirar o papelzinho que esta dentro da
bola” que pegou. Segue-se então uma série de estouros, assemelhando o conjunto de
sons a fogos de artifício. Cada um com um papel na mão, deveria ir falando alto aquilo
que nele estava escrito. Aleatoriamente as pessoas gritavam: “vida!”, “comunhão!”,
“solidariedade!”. Por fim, todos de mãos dadas gritaram, ao mesmo tempo, num grande
estrondo, aquela palavra que cada um encontrara dentro da bola,.
Após esta dinâmica, muito aplaudida, os animadores chamavam pelo nome dos
estados e a “bancada” 9 deste estado deveria de levantar. Cada grupo, com seus
lencinhos, levantava-se animado e barulhento ao ouvir o nome de seu estado de origem.
As maiores bancadas eram as de São Paulo e do Pará. Eram ao todo 18 estados da
Federação representados na Plenária, cada um deles tendo organizado plenárias
estaduais, a partir das quais foram indicados os delegados que teriam direito a voto na
plenária nacional.
Seguiu-se uma apresentação geral sobre a história do GT-Brasileiro. Desde o
8 As “dinâmicas”, como será tratado a seguir, são atividades que envolvem todos os participantes, sãomarcadas no tempo e geralmente são combinações entre jogos, danças e músicas.9 Deu-se o nome de “bancada” ou “delegação” ao conjunto de participantes provenientes da cada estado.
17
primeiro Fórum Social Mundial, as duas outras plenárias nacionais (a primeira em São
Paulo, a segunda no III FSM), e as negociações para a criação da SENAES.
Ao final da apresentação, os organizadores pedem que cada estado indique um
representante para participar de uma reunião que comporia a partir daí a organização10
da plenária. É feita uma leitura da programação do evento e a plenária é consultada para
saber se existe consenso.
Mais palavras de saudação, principalmente aos que vinham de longe, aos que
enfrentaram longas horas em viagens de ônibus para chagar a Brasília. Explicações
sobre como funcionariam as discussões e sobre a infraestrutura do evento.
Depois de um lanche, os participantes deveriam se dividir em grupos de acordo
com sua “categoria”. Cinco grupos de “empreendimentos”, cinco de “ assessoria” e
cinco de “gestores públicos”. Estes grupos, por sua vez, deveriam se subdividir em
grupos ainda menores. Ao final, dezenas de grupo de aproximadamente oito pessoas
cada um, se espalharam pelo enorme auditório e pelos corredores do clube (ver
fotografia 5 no anexo 2).
Cada sub-grupo deveria discutir as questões previstas na programação e depois
se reunir nos grupos maiores para produzir uma sistematização dos debates. A dinâmica
das discussões se daria a partir dos resultados das plenárias estaduais. Cada pessoa
deveria escolher, dentro do tema proposto, a idéia que considerava mais importante
entre as que constavam das relatorias da plenária de seu estado. Esta idéia deveria ser
transcrita num pedaço de cartolina colorida e colada no painel disponibilizado para os
trabalhos de seu grupo.
No almoço, formou-se uma enorme fila para que todos se servissem. Muita
conversa, reencontros e reclamações sobre a demora. Três enormes mesas compridas, de
mais de vinte metros cada uma foram postas paralelamente num canto do auditório.
Nestas mesas seriam feitas todas as refeições dos três dias (ver fotografia 6 no anexo 2).
À tarde continuam as discussões nos sub-grupos. Depois, nos grupos maiores,
era preciso sistematizar as discussões anteriores a partir de “convergências”, “diferenças
e especificidades” e “divergências”. Assim como observado na plenária estadual do Rio
de Janeiro, através da visualização das idéias escritas nos cartões, que eram pregados
10 A “organização” é uma comissão composta por várias pessoas que é responsável por todo o evento,desde a discussão dos temas, formação dos grupos etc. até a alimentação, e toda o logística de transporte eacomodação.
18
nos painéis (ver fotografia 7 do anexo 2).
Para o final da tarde estava programada uma palestra com integrantes da
SENAES sobre o PPA (Plano Plurianual). Por volta das 17:00h. Paul Singer chega ao
local da plenária. Enquanto sua presença não foi notada, ficou discretamente sentado
fora do ginásio conversando com poucas pessoas. Tão logo se notou sua presença,
várias pessoas se dirigiram a ele para falar-lhe e tirar uma fotografia a seu lado. A
agitação em torno dele não pareceu causar-lhe qualquer incômodo.
A Mesa é composta por inúmeros integrantes da SENAES. Singer começa sua
fala destacando o momento histórico que representa aquela plenária e a existência, de
fato, da SENAES. A posse oficial de Singer aconteceu no dia anterior ao início da
plenária, também em Brasília. Esta coincidência, segundo ele, aconteceu porque “Deus
quis assim”.
Sobre a recém criada SENAES e sua relação com a proposta de criação do
Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Singer diz que vai ser função do
Fórum dar “capilaridade” à ES no País. Entre os papéis que devem ser cumpridos pela
Secretaria está a divulgação da ES e o estudo, inclusive já havendo contatos com o
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) para a realização de pesquisas.
Singer chama atenção para o fato de que, oficialmente, deverá se constituir um
Conselho de ES ligado à SENAES. Para ele, o conselho deve ser o mais amplo possível
e deverão estar representados todos aqueles que têm envolvimento com a ES, incluindo
o SEBRAE (Serviço de Apoio as Micro e Pequenas Empresas), a OCB (Organização
das Cooperativas Brasileiras) e a SESCOOP (Serviço Nacional de Aprendizagem do
Cooperativismo). Singer diz que não é objetivo da Secretaria defender o monopólio da
luta contra a exclusão e a pobreza, “só queremos que nos reconheçam” como atores
significativos nesta luta e “reconheceremos os outros também, guardadas as devidas
diferenças”. “Governar é atender demandas que a gente não espera e lidar com conflitos
que se espera menos ainda”, diz Singer sobre as dificuldades de fazer parte do governo
Federal. E encerra mais ou menos assim: Que tenhamos forças para mudar o que é
possível, para nos conformar com o que não é possível mudar e sabedoria para
distinguir as duas coisas.
Outras pessoas que trabalham com Singer na SENAES também falam.
19
Após as falas dos componentes da mesa, seguem-se algumas intervenções da
plenária. Marcos Arruda aponta a importância da inserção da “educação cooperativa e
solidária” nos sistemas formal e informal de educação, desde o ensino fundamental ao
ensino superior.
A importância da articulação entre gestores e parlamentares é apontada pelo
Secretário de Economia da Prefeitura de Belém. Paul Singer comenta que já havia sido
criada uma subcomissão de ES na Câmara de Deputados (dentro da Comissão sobre
trabalho) e que outras iniciativas deste tipo estavam sendo tomadas como a Frente
parlamentar na Câmara de Deputados de São Paulo. (Inclusive alguns parlamentares
paulistas e assessores presentes distribuíram no dia seguinte a diversos representantes de
cada estado uma proposta que tinha como modelo o da Câmara de São Paulo, para que
se propusesse Frentes Parlamentares semelhantes em outros estados e cidades.)
Às 18:50h, Yvone, representante da Comissão de Organização da Plenária no
DF, numa homenagem a Singer, entrega a sacolinha com o material da plenária, sob
intensos aplausos dos participantes.
Finda a mesa, muitos “invadem” o palco e mais uma vez uma pequena multidão
se forma ao redor de Singer, em busca de uma lembrança, quase sempre uma foto. O
jantar é servido. Muitos grupos se formam nos espaços do clube para conversar. No bar
do clube começa uma noite de música e poesia.
Uma grande quantidade de pessoas continuou chegando durante todo o primeiro
dia da plenária. Estavam sendo esperadas cerca de 450 pessoas no evento. A estrutura
montada no clube, no que dizia respeito a alimentação e alojamento, estava planejada
para cerca de 600 participantes. No fim do primeiro dia já eram 800.
Manhã do segundo dia. No corredor que levava ao grande auditório várias
bancas estavam sendo montadas, onde se começava a vender comidas (principalmente
vindas do Pará, como bombons de cupuaçú, castanhas-do-pará, açaí), artesanato, livros
e discos (ver fotografia 8 no anexo 2). A maioria dos livros tratava de assuntos
relacionados ao tema do evento e os discos eram, na sua maioria, de música brasileira e
das diferentes regiões do país. Os alimentos vendidos eram todos artesanais e produzido
por empreendimentos solidários, cujos representantes participavam das discussões da
Plenária. Em todo o entorno do grande auditório havia painéis, cada um com o nome de
um estado brasileiro, onde cada delegação montou uma pequena exposição com
20
fotografias, cartazes e panfletos. Em frente a alguns painéis montou-se pequenas bancas,
onde havia material escrito para distribuir aos participantes, ou mesmo venda de alguns
produtos. Estes painéis foram sendo montados aos poucos na medida que o evento
ocorria (ver fotografia 9 no anexo 2).
Às 9:15h começa-se a ouvir músicas de ciranda. No imenso auditório os
participantes são orientados a dançarem formando uma grande roda, de mãos dadas.
Sucessivamente a roda vai se dividindo em rodas cada vez menores. Tudo ao som da
música de ciranda e com muita dança. Ao final formaram-se grupos de três pessoas.
Estas deveriam se posicionar de forma que, duas delas dessem as mãos uma para outra e
a terceira ficasse no círculo formado pelas outras duas. Os animadores dizem como é a
brincadeira. As duas pessoas de mãos dadas e erguidas seriam a “casa”. A pessoa que
ficou no meio seria o “inquilino”. Durante a música todos deveriam dançar e, quando o
animador dissesse “inquilino!”, estes deveriam deixar sua “casa” e rapidamente
procurar outra. Da mesma forma, quando o animador dissesse “casa!” as “casas”
deveriam abandonar seu “inquilino”, que ficaria parado e procurar outro. Por fim,
quando a palavra fosse “terremoto” todos deveriam se reorganizar, formando novas
“casas” e novos “inquilinos”. Neste momento havia cerca de 500 pessoas no auditório e
a cada palavra do animador uma grande correria se instalava. Quase todos os presentes
participaram da brincadeira, inclusive idosos e algumas pessoas que precisavam de
muletas para andar. Uma grande euforia. Todos pareciam se divertir muito.
Segue-se um momento de reflexão. Formaram-se dois círculos concêntricos de
pessoas de mãos dadas. Os participantes que compunham o círculo interno deveriam se
voltar para o lado de fora, de modo ficassem de frente com as pessoas do círculo mais
exterior. O animador diz que, em silêncio, todos deveriam olhar, observar aquele que
estava a sua frente. Depois de se olharem, todos deveriam abraçar o “companheiro” que
estava a sua frente. Os abraços se perpetuaram para além dos pares e num momento
todos se abraçavam e cumprimentavam.
Segue o evento com o encaminhamento das discussões que ocorreram nos
grupos no dia anterior. Todos se sentam a frente do palco. Antes de começarem os
trabalhos algumas pessoas se dirigem ao microfone e relatam o sumiço de pertences.
Uma delas lembra que se apropriar de coisas alheias é um comportamento identificado
com valores capitalistas, o que estava em desacordo com os propósitos gerais do
21
encontro, o de construir uma outra economia.
Ademar Sato, professor universitário no D.F. chama os responsáveis por
conduzir os trabalhos daquela manhã. A cada cumprimento de “Bom dia” a plenária
respondia em coro: “Bom dia!”. Aliás, todos os cumprimentos eram respondidos
coletivamente e de forma animada pela platéia. Sato informa que, no dia anterior foram
formados três grupo de “assessores”, dois grupos de “gestores públicos” e cinco grupos
de “empreendimentos”. O número de grupos foi diferente do previsto (cinco grupos
para cada uma das categorias), adaptando-se ao número de pessoas em cada categoria.
Sato lembra ainda que as relatorias das discussões não são tão ricas quanto a discussão
que houve no dia anterior. Por melhor que fossem não poderiam reproduzir a riqueza
dos debates dos quais foram fruto.
Depois da leitura dos relatórios e discussão de alguns pontos seguiram-se
algumas falações da platéia com comentários e propostas. Sandra Mairink Veiga
reivindica que a palavra “socialismo” esteja presente na resoluções da plenária, já que o
ponto discutido era “Princípios e Plataforma do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária”. Afinal, “nós somos um movimento social que quer a transformação”. E esta
transformação “provavelmente seremos nós a fazer. Nós e o MST”
Seguem-se propostas de que se realizem passeatas em todo Brasil, no mesmo
dia, para chamar atenção sobre a ES, que se utilize os canais de TV comunitários para
divulgação. Um trabalhador de empreendimento solidário se dirige ao microfone e fala
da importância de mudar as palavras e dá um exemplo: “Lá no Pará estamos
conseguindo mudar o nome ‘camelô’ para ‘empreendedor popular’”. E propõe ainda
que não se fale mais em “sociedade carente”, mas em “sociedade trabalhadora que
sempre sofreu com a economia capitalista”. Ainda há falas contra a ALCA e a favor do
socialismo e críticas a políticas assistencialistas.
Almoço. Fila enorme. Já eram quase 900 os participantes.
Depois do almoço, ao som de uma música animada, todos dançaram no imenso
auditório. Foram se organizando grupo “mistos” de discussão. “Mistos” pois nesta etapa
os grupos não teriam que obedecer às categorias “gestores”, “Assessores”, e
“empreendimentos”. Foram organizados vários grupos, com cerca de 40 pessoas, que
por sua vez se dividiram em quatro ou cinco. Todo o clube foi ocupado por pequenos
círculos de pessoas que discutiriam os pontos indicados. Assim, além de ocuparem toda
22
a parte interna do prédio, alguns grupos sentaram sobre o gramado, em volta da piscina
e lá realizaram as atividades da tarde. Cada sub-grupo tinha um tema para discutir,
depois apresentaria o resultado de suas discussões ao grupo maior e daí seria feita uma
síntese.
Depois do trabalho nos grupos, um lanche foi servido e todos voltaram ao
auditório para deliberar sobre outros pontos. Às 18:40h a mesa estava formada e
deveriam começar as discussões, mas a relatoria não estava pronta. A condutora dos
trabalhos, Ângela, da prefeitura de São Paulo, propõe então que quem quisesse
declamar um poema ou cantar poderia fazê-lo enquanto os relatórios eram finalizados.
Uma “companheira” canta uma música sobre as maravilhas do Brasil. Um
“companheiro” paraense declama um poema de sua autoria sobre a mulher madura e a
mulher paraense, outro conta uma piada sobre mineiros. A condutora dos trabalhos
pergunta se os relatórios já estavam prontos. Nada ainda. Mais um poema, desta vez
sobre meninos e meninas de rua e termina: “Viva a cultura solidária!”. Um poema sobre
reforma agrária.
Finalmente, às 19:30h os relatórios ficam prontos. Durante as discussões muitos
reclamam sobre os relatórios, que estariam mal feitos. Mais tarde, depois do jantar uma
festa junina anima a noite até tarde.
Domingo, terceiro e último dia da plenária. O cansaço das pessoas é evidente. O
dia começa agitado. Os trabalhos devem terminar na hora prevista, 14:00h, já que
muitas delegações já tinham hora marcada para partir para seus lugares de origem e
autoridades eram esperadas para a mesa de encerramento, como a Ministra Marina
Silva.
Às 9:20h todos estavam no auditório. A animadora diz que todos formem um
grande círculo para cantar o hino nacional. Sugere também que todos coloquem a mão
direita no peito, sobre o coração, mas que também coloquem a mão esquerda. Com as
duas mãos no peito, todos começam a cantar o hino que era puxado ao microfone por
uma mulher. Estrofes trocas, mas não houve problema. O momento foi solene assim
mesmo. Ao fim do hino, muitas palmas. Segue-se o que o animador chama de
“exercício de energização”. Ainda no grande círculo, no ritmo da musica todos devem
bater um pé no chão com força e gritar “ rá!”. A música, instrumental se desenvolve num
crescente de volume e intensidade. A cada batida de pé no chão, com força, os gritos
23
vão ficando mais altos. Ao fim, de mãos dadas, todos dão as mãos e gritam, juntos,
“solidariedade!”. Mais uma vez muitas palmas e todos começam a arrumar as cadeiras
em frente ao palco para começarem os trabalhos de votação.
Durante a noite anterior a comissão de organização sintetizou os relatórios de
forma que a discussão fosse mais dinâmica e se pudesse concluir a tempo. Quem
conduz os trabalhos são João Roberto Lopes do IBase (Rio de Janeiro) e Luiz Inácio
Gaiger, professor da Unisinos (Universidade do Vale do Rio Sinos) e um dos principais
animadores da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária. Uma das indicações da
mesa11 era que se discutisse prioritariamente a criação do Fórum Brasileiro de
Economia Solidária (motivo pelo qual fora organizada a plenária) e sua composição.
Às 10:07h é aprovada, por aclamação e com muita festa a criação do Fórum.
A seguir, Gaiger expõe a sistematização de quais teriam sido as principais
divergências que surgiram nos debates. Uma das grandes polêmicas (já clara no dia
anterior quando os grupos discutiram o assunto) foi se os “gestores públicos” deveriam
ou não compor o FBES. Um momento de certa tensão toma conta da plenária. Pede-se
que se conte o número de delegados presentes e que se compare com os números da
organização do evento. Os comentários eram de que os suplentes de delegados dos
estados também tinham recebido crachás que lhes dava direito a voto sem que o titular
estivesse ausente. João Roberto lembra que “Não vamos transformar a ES num processo
de perda e ganho. O objetivo é o consenso.” Aplausos.
A mesa indica que devem se apresentar duas pessoas para defender cada posição
(participação ou não dos gestores). Chagam os números da organização: 264 delegados.
Ainda murmurinhos sobre a possível discrepância. Mas segue o processo. Depois das
defesas segue-se um momento de certa confusão. Muitos se dirigem ao microfone. A
votação então é feita e a propostas de os gestores participarem do Fórum é aprovada
“ por contraste”, ou seja, era possível identificar visualmente (e sem necessidade de
contar os votos) qual tinha sido a proposta mais votada.
A discussão prossegue sobre a composição da coordenação do Fórum. Várias
propostas são encaminhadas e algumas apontam a representação por estado. Um lanche
é servido e as bancadas dos estados se reúnem par escolher quem será seu representante
11 Dá-se o nome de “mesa” também ao indivíduo ou ao conjunto de indivíduos que dirigem os trabalhosem plenária. Muitas vezes existe preferência por referir-se a estes como “coordenadores”
24
caso a propostas de representação por estado vença. Por fim, reunida novamente a
plenária é aprovada a proposta de que a composição provisória do Fórum será feita
pelas entidades que compunham o GT Brasileiro mais representantes por estado.
Às 13:00h começa a composição da mesa de encerramento. Integram a mesa:
Marcio Pochman, Secretário de Trabalho, Assistência Social e ES da prefeitura de São
Paulo, o vice-governador do Mato Grosso do Sul representado o governador Zeca do
PT, Remigio Todeschini, da Secretaria de Emprego do Ministério do Trabalho e
Emprego do governo Lula, um representante da Ministra Marina Silva (do Meio
Ambiente), um representante do Ministro Jacques Wagner (MTE) e, é claro, Paul
Singer. Às 14:25h encerra-se a plenária com as desculpas da organização do evento,
pois, pelo avançar da hora não poderia ser feito um encerramento mais animado.
1.1. As práticas, as instâncias e o vocabulário da coesão
A Economia Solidária é um mundo de diversidade. As diferentes formas de
engajamento e as diferenças em relação ao perfil de seus profissionais torna a criação de
vínculos e objetivos comuns uma questão crucial. As situações descritas anteriormente
revelam, de forma condensada, como as diferenças entre os participantes são
reconhecidas, valorizadas ou negadas e como estes se constituem como coletividade,
compartilhando valores, condutas, símbolos e vocabulários. Como trata John Comerford
das “reuniões”, os encontros são “espaços de sociabilidade”, onde a matéria debatida é
mais um aspecto, entre outros, que constituem estes espaços como elementos importante
na construção de um universo social (COMERFORD, 1999).
Principalmente na segunda e terceira situações, inúmeras práticas estão voltadas
à criação de coesão e identidade. Muitas destas práticas têm um tempo marcado durante
os eventos e se apresentam de forma ritualizada, se diferenciando dos momentos de
discussão de propostas, votações e elaboração dos documentos. As chamadas
“dinâmicas” são estes momentos marcados durante os eventos, reconhecidas como
distintos dos outros pelos participantes.
Outras práticas e símbolos estão ligados ao esforço de produção de coesão e de
evitar conflitos abertos. A criação da ES nas situações descritas também se dá a partir
do esforço para afirmar um vocabulário comum, condutas e comportamentos
considerados adequados à teoria defendida. As formas de agir individuais em todos os
25
momentos, tanto nas discussões em plenária quanto nas refeições e até na hora de
dormir, são objeto da “pedagogia” da ES exercida nos encontros. Isto se dá através da
fala de componentes da mesa (participantes que em alguns momentos assumem papéis
de destaque e se dirigem à platéia ao microfone), mas também de participantes sem
papel destacado, além de dizeres escritos em lugares de grande visibilidade.
Uma outra forma de criação de laços de identidade é o da valorização de certo
tipo de diversidade. Existem princípios de diferenciação legítimos e permitidos, divisões
que são valorizadas e, em alguns momentos muito marcadas (por exemplo quando, na
situação 2, a plenária é convidada a analisar se os grupos de delegados possuem uma
boa proporção de homens e mulheres, brancos e negros, jovens e velhos, etc). As
diferenças em relação a cor da pele, idade, gênero e lugar de origem são festejadas de
maneira explícita. A valorização dessa diversidade é apresentada como importante
característica da ES, demonstrando sua capacidade de unir o diferente, de construir
consenso e de se apresentar como algo “bom para todos”. Existem momentos
específicos para falar sobre, ou festejar a diversidade.
Paralelamente, as formas de organização dentro do mundo da ES seguiriam as
idéias de coesão, de criação de identidade comum e de rejeição à hierarquia, parte
fundamental das representações da ES. Junto à valorização de certo tipo de diversidade
negam-se diferenças que criariam competição, hierarquização e individualismo,
diferenças estas reconhecidas como pertencentes ao mundo da economia de mercado, à
qual a ES se contrapõe.
Nas duas últimas situações as danças, os cantos e as brincadeiras marcam o
ritmo dos trabalhos, como “preparação” para as atividades que se seguem. Também é
nestes espaços que os momentos de euforia, através da dança animada, do grito e da
brincadeira se alternam aos momentos de circunspecção, fazendo com que se crie um
ritmo comum entre os participantes. Através destas atividades, as pessoas compartilham
de diferentes formas de agir, pensar e se comportar, o que parece estabelecer uma
disposição comum, uma coletividade no sentido forte do termo, reafirmada
constantemente.
Durante várias atividades o toque físico entre os participantes é estimulado,
como quando os participantes ficam de mãos dadas, os abraços e algumas brincadeiras.
A criação de proximidade com o outro se dá também através do corpo tanto no que diz
26
respeito ao toque como no encorajamento ao movimento, à liberação da voz. Ver o
outro em situações que não se veria no cotidiano e que em outro momento pareceriam
até ridículas, permite que as pessoas fiquem mais a vontade umas com as outras, criando
um clima de intimidade e de auto-reconhecimento neste outro. Da mesma forma,
quando na terceira situação estimulou-se os participantes a se observarem mutuamente
em silêncio, o momento permitiu algo que no convívio normal, cotidiano, não seria
possível nem mesmo considerado educado. Retirando, num momento especial, os
constrangimentos cotidianos, foi possível travar um contato muito próximo, o do olhar
atento ao outro, criando uma certa intimidade não apenas entre os que se olhavam, mas
entre todos que participavam da dinâmica.
A coletividade também é reafirmada durante as discussões em plenária, através
dos aplausos a quase todas as intervenções, das respostas coletivas (por exemplo aos
cumprimentos de componentes da mesa) e das falas que relembram a necessidade de
“solidariedade” e de reconhecimento ao esforço do outro, que ocorrem nos momentos
de tensão.
A “visualidade” é um recurso muito utilizado. As propostas, resoluções e
sínteses das discussões ficam sempre inscritas a vista de todos. O esforço de possibilitar
o compartilhamento por todos daquilo que está sendo discutido, falado, também é uma
forma de estabelecer formas comuns de organizar idéias e hierarquias. Mais uma vez,
também se pode reconhecer nisto a demonstração visual da coletividade, através da
exibição do produto da discussão comum. No caso da terceira situação, como cada um
escrevia num cartão a sua contribuição, era possível ver que o resultado da discussão
coletiva era a soma das idéias individuais, através da colocação dos cartões num painel.
Este tipo de recurso não deve ser visto apenas como uma metáfora do esforço mais geral
que pode ser reconhecido no campo da ES para organizar palavras e idéias, mas o fazer
em si deste vocabulário e classificação comuns, como parte de uma verdadeira
pedagogia dos encontros.
Os painéis colocados envolta dos locais em que as atividades ocorriam iam
compondo o espaço daquela coletividade e estavam em transformação e construção
também. No caso da segunda situação o “cenário” do evento ia sendo construído no
ritmo dos próprios debates, quando a cada etapa do evento mais e mais painéis iam
sendo pendurados. Na terceira, os painéis com fotografias, produtos e cartazes de cada
27
estado foram sendo compostos pouco a pouco, tendo sido a densidade visual crescente a
medida que transcorria o evento.
Alguns simbolismos são recorrentes e marcaram os eventos sendo o do círculo
um dos mais destacados. Todas as danças começavam em “grandes rodas”, os grupos se
reuniam em círculo e, num momento crítico, quando surgiram polêmicas no caso da
plenária do Rio de Janeiro, e haveria votação a plenária também se arrumou em círculo.
A idéia do círculo remete a princípios fundamentais defendidos pelos
profissionais da ES. Nele, não há lugar de destaque, não se vê qualquer hierarquia.
Além disso, todos podem ver uns aos outros, conhecer e falar de forma direta com os
outros participantes. Isto não é casual ou apenas espontâneo, mas faz parte da pedagogia
explícita inclusive em textos escritos. Num livro organizado por Euclides Mance, que
trata de como formar as redes de ES, formar uma cooperativa, etc, existem dois
capítulos sobre dinâmicas de grupo e o círculo é apontado como elemento fundamental
e mesmo indispensável em momentos de discussão e “troca” (MANCE, 2003a). Não
por acaso, o logotipo da ES, que estampava adesivos no III FSM, em camisetas e
também símbolo de várias entidades, representa figuras humanas em círculo, geralmente
envolta de um globo terrestre:
Chamam atenção também as imagens ligadas à terra e à produção agrícola. A
organização da plenária do Rio de Janeiro como festa junina não se deveu apenas à
proximidade destes festejos, mas carregava a idéia do elogio ao homem simples do meio
rural que tira da terra o seu sustento. O reconhecimento deste significado ficou claro
quando no relatório final de discussão de um dos grupos a escolha do tema foi elogiada
por estas razões, além de pelo fato de a festa ser genuinamente brasileira.
O uso das sementes para dividir os grupos também acabou sendo um recurso
muito forte, sendo que os participantes passaram a se identificar a partir delas: “eu sou
girassol”, “eu sou soja”. Mais uma vez está presente a questão do plantar, do produzir.
28
Além disso, a semente é um símbolo de potência, daquilo que pode se tornar coisa viva
quando o homem para isso trabalha.
O encerramento da plenária do Rio foi o momento de maior circunspecção deste
encontro, quando com rostos sérios, todos velavam e cantaram juntos “Cio da terra”,
música que fala justamente da delicadeza e sensibilidade da relação entre o homem e a
terra. Com as velas acesas e caminhando ao centro do círculo, a música toma um tom de
oração. Os braços dados fazem com que ao final todos estejam bem juntos e se tocando.
Uma procissão sem santo e sem igreja.
Muitas das “dinâmicas” tem sua origem nas experiências da chamada educação
popular. Estas formas estão ligadas claramente à atuação da Igreja Católica e daquelas
organizações que Leilah Landim aponta como sendo as bases para a formação das
ONGs (LANDIM, 1998). Não existe porém, uma tentativa de identificar a ES, e suas
práticas de integração com qualquer religião especifica, mas sem dúvida a um
sentimento que se poderia chamar de religioso, no sentido de se dirigir a um bem
comum, a uma ligação transcendente e a igualdades supostas.
A ligação com a terra não deixa de assumir um caráter de ligação com a nação.
O Hino Nacional, cantado em círculo, mais uma vez, marcou os momentos finais da
terceira situação. Mas a posição sentido (postura militar formal de entoação do hino) foi
substituída pela mão direita do lado esquerdo do peito sobre o coração (postura formal
de entoação de hinos nacionais em vários países e usado de forma bastante freqüente
pelos brasileiros), tendo a oradora pedido a todos que, além da mão direita, a mão
esquerda também estivesse sobre o coração, numa evocação sobre as posições políticas
em que se basearia a ES.
Na terceira situação, além da questão nacional, simbolizada pela entoação do
Hino Nacional, as regionalidades e as características e identidades dos diversos estados
foram destacadas. A distribuição de lenços com a sigla de cada estado para cada um dos
participantes de acordo com o local de origem marcou bem este aspecto. Além disso,
era motivo de orgulho para paraenses e paulistas que estes tenham representados as
maiores “delegações”. A valorização da identidade de cada estado ficou clara desde os
primeiros momentos do evento, quando cada delegação se apresentou, levantando-se e
gritando ao chamado por cada estado. Mais uma vez contou-se com um recurso de
visualização através dos lenços.
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Um outro papel cumprido pelo destaque aos estados e sua representação foi o de
demonstrar o caráter nacional e amplo da ES, lembrado várias vezes nas intervenções.
Além disso houve também a celebração e valorização, expressa em diversas
intervenções na plenária, do esforço de muitos para virem de longe, às vezes com
grande sacrifício, num gesto de exaltação de toda a coletividade.
A ES se constitui como “nacional” de várias formas. A primeira delas é
justamente a capacidade de agregar indivíduos e organizações de muitos lugares do
país, com a valorização deste aspecto através de vários símbolos e representações, como
mostrado anteriormente. Outro caráter significativo é a valorização do país através de
elogios constantes à “cultura Brasileira”, “à riqueza do país”. Além disso, a música
ouvida nos eventos e os poemas declamados têm um forte apelo ao que se identifica
como genuinamente nacional e autêntico (como a Festa Junina, a música de Milton
Nascimento, e o fato de a maioria dos CDs a venda no evento descrito na situação 3
serem de música do interior do país, de várias regiões). Existe um grande cuidado para
não se utilizarem palavras estrangeiras, principalmente em inglês, mesmo as que se
referem a informática (correio eletrônico em vez de e-mail, sítio em vez de site, por
exemplo).
O outro aspecto da construção da ES como nacional é a sua relação com a
dimensão internacional. Como descrito na situação 1, e como demonstra o nome GT-
Brasileiro, a ES no Brasil se constitui como nacional a partir da existência e da relação
com o internacional. Este aspecto é marcado na medida em que profissionais da ES
provenientes de vários países participam, a convite do GT-Brasileiro, das discussões nas
três edições do Fórum Social Mundial.
O GT-Brasileiro foi a primeira organização a congregar entidades que se
identificavam com a ES no Brasil e foi formada logo depois da primeira edição do FSM
(GT-Brasileiro significa Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária do Fórum
Social Mundial). Foi também a partir desta organização que se constituiu, em junho de
2003, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Levando isso em consideração, pode-
se perceber que a dimensão internacional, representada pelo FSM e seus espaços de
articulação, têm grande importância na construção do mundo da ES.
Os debates entre profissionais e representantes de entidades de diversos países,
como descrito na situação 1, são um recurso importante. É muito comum que
30
profissionais evoquem exemplos considerados exitosos de outros países para
argumentar em favor da ES ou de seus pontos de vista, como será tratado mais adiante
no capítulo 3.
Outro aspecto importante das relações internacionais estabelecidas pelos
profissionais (e para as quais o FSM é espaço privilegiado) é o do financiamento.
Algumas publicações (como o livreto Do Fórum Social Mundial ao Fórum Brasileiro
de Economia Solidária) têm financiamento de entidades internacionais (no caso a Fréres
des Hommes), além eventos e ações levadas a cabo por organizações que trabalham
com ES. Outras dimensões das relações internacionais da ES serão tratadas no capítulo
2.
Os eventos descritos carregam uma marca comum que é uma noção central no
mundo da ES, sempre evocada por seus profissionais. Esta é a idéia de que a “prática
deve estar de acordo com a teoria”. As formas de organização presentes na ES são parte
desta representação. As formas devem estar de acordo com os ideais defendidos pelos
profissionais da ES, como a “democracia participativa”, a “horizontalidade” e a
“autonomia”.
Dois tipos de organização presentes no mundo da ES se apresentam como
formas “práticas” que seriam coerentes com as idéias centrais de horizontalidade e
democracia participativa: as redes e os fóruns.
Existem várias organizações que têm o nome de rede: Rede Universitária de
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares e Rede de Gestores Públicos em
ES, entre outras. Existem também redes de troca e redes de cooperativas. Como se pode
ver, rede pode denotar um conjunto de atores com a mesma atividade, ou conjuntos de
atores com atividades diferentes e que se complementam.
No que diz respeito ao primeiro tipo de rede, sua base está no fato de que não
deve existir hierarquia e que cada elemento se comunica com todos os outros, sem haver
um centro, sendo compostas por “iguais”.
No caso das redes de cooperativas, muitas delas têm o objetivo de colocar em
contato diversos “fases” da produção. Ou seja, em vez de uma cooperativa de produção
agrícola, por exemplo, vender seus produtos diretamente no mercado, ela pode fornecer
insumos para outra cooperativa, que pode fornecer alimentos prontos a uma associação
de consumo solidário. Na verdade, ao que parece, existem poucas experiências deste
31
nível. Mas formar este tipo de rede é um dos grandes objetivos apontados pelos
profissionais, pois pode fazer com que a sustentabilidade proposta pela ES se dê de fato,
com a complexificação cada vez maior, visando a que comunidades inteiras possam
produzir, consumir e trabalhar num sistema “solidário” e, quem sabe, o mundo. A este
tipo de preocupação se dá o nome de “cadeia produtiva” (integração produção e
consumo).
Também ligada ao conceito de rede é e idéia da expansão. Numa rede a inclusão
de um elemento novo não desequilibra todo o sistema, já que não existem posições
rígidas ou hierarquia. É mesmo próprio da rede que ela deva crescer sempre. Note-se
que qualquer pessoa poderia participar dos eventos descritos, tendo como critério mais
relevante seu interesse pelo tema. A idéia de não restringir a participação de nenhuma
pessoa está ligada à possibilidade e desejo de expansão e da aceitação da diversidade.
Também a isso está ligada a idéia de que a ES pode trazer benefícios para todos.
A noção de Rede coloca a ênfase nas relações entre diversidades que seintegram, nos fluxos de elementos que circulam nessas relações, no laçosque potencializam a sinergia coletiva, no movimento de autopoiese emque cada elemento concorre para a reprodução de cada outro, napotencialidade de transformação de cada parte pela sua relação com asdemais e do conjunto pelos fluxos que circulam através de toda a rede.(MANCE, 2000)
O segundo termo que descreve uma forma de organização central da ES é o de
fórum. Os fóruns são espaços de debate. De um fórum podem fazer parte entidades e
organizações de diferentes tipos, tamanhos e área de atuação. A idéia que envolve o
fórum é justamente a da diversidade, de possibilitar a participação daqueles que
desejam. Mais uma vez a ausência de hierarquia é um dos pontos mais marcados.
Este tipo de organização permite que uma mesma pessoa ou entidade faça parte
de diferentes associações. Muitas entidades e organizações de assessoria (ONGs, por
exemplo) fazem parte das redes de entidades similares, compõem fóruns de
cooperativismo e participam de redes de troca, por exemplo. A relevância do conceito
pode ser reconhecida no fato de que a entidade nacional que pretende congregar todos
os agentes da ES é o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. A idéia de fórum também
valoriza a autonomia das partes que o compõem, princípios que parece ser muito caro a
todas as entidades e associações envolvidas.
32
A delegação de poderes é algo que tem carga negativa entre os profissionais da
ES. A democracia representativa deve ser substituída pela democracia participativa. Os
conceitos de rede e fórum contemplam esta idéia.
Uma outra estrutura de organização que vale também destacar é o Grupo de
Trabalho (GT). Desde 2001 a organização nacional que trava os debates sobre ES é um
Grupo de Trabalho. O Fórum de Cooperativismo do Rio de Janeiro se organiza em GTs,
que seriam o equivalente a secretarias (GTs jurídico, de cadeias produtivas,
comunicação, finanças solidárias, educação, relações institucionais e captação de
recursos) a exemplo de outras organizações. Um GT, no primeiro caso, não representa
ninguém. É um espaço de discussão e elaboração. No segundo caso o GT assume o
papel do que seria uma secretaria. Mas numa secretaria existe um secretário e num GT
só existe gente que trabalha.
Nas situações apresentadas e a partir da análise das formas de organização
presentes no mundo da ES, pode-se perceber uma preocupação de seus profissionais
para que as atividades e as formas de agir estejam de acordo com os princípios de
solidariedade, respeito à diversidade, ao meio ambiente, e de rejeição a valores como
competição e hierarquia. Um dos aspectos destas preocupações é também provar que é
possível, mesmo dentro de um mundo que eles consideram como dominado pela
competição, o lucro a qualquer preço e a dominação, estabelecer relações de outro tipo.
Isto está de acordo com a construção da ES como teoria econômica, segundo a qual é
possível, dentro do mercado capitalista, criar relações econômicas que não sejam
guiadas pelos valores do mercado.
Conclusões
A busca por estabelecer uma identidade comum é uma forma de ultrapassar
aquelas diferenças que em outros espaços afastam socialmente os indivíduos. A
afirmação de valores e formas de agir defendidas pela ES, colocadas em prática,
ritualizadas e teatralizadas, envolve e supõe também a construção das fronteiras da
própria ES, estabelecendo o que pertence a seu mundo e o que por ele é negado. Isto se
dá através de uma “pedagogia” nas situações apresentadas que toma forma em
diferentes recursos, como a visualidade, a construção de cenários, a música e o corpo.
Os encontros e os tipos de organização como os fóruns e as redes fazem parte da
33
própria construção da ES, condensando as relações existentes neste mundo e as formas
ideais defendidas por seus profissionais. Essas demonstrações práticas da possibilidade
de uma relação diferente entre pessoas, e entre pessoas e coisas, embora por fora da
atividade tida como central na teoria da ES, que são os empreendimentos, são cruciais
para a legitimação ‘prática’ da teoria sobre a ES.
A partir do que é descrito por John Comerford sobre organizações de
trabalhadores rurais (1999) e de observações de Leilah Landim (1998) sobre o universo
das ONGs é possível encontrar, no mundo da ES elementos comuns. Uma grande parte
da formas que Comerford analisa nas “reuniões” também estão presentes nos encontros
da ES, como a existência de uma “organização” nos eventos, de “dinâmicas”, cantos,
momentos de conversas como as refeições etc. No caso do trabalho de Landim, muitos
aspectos marcantes da ES são também constituintes do universo das ONGs enquanto um
espaço particular. A existência de práticas que são comuns e possivelmente têm origem
em outros espaços sociais remetem à idéia de bricolagem (LÉVI-STRAUSS, 1970), que
será tratada no capítulo 3 e das fronteiras vazadas da ES também em relação às práticas,
a partir da circulação dos profissionais, o que será tratado no capítulo 2.
A partir das análises de Norbert Elias (2000), é possível tomar a busca por
coesão como uma dimensão da luta pelo poder. Elias aponta que a principal
característica que constitui os estabelecidos enquanto dominantes e capazes de conferir
aos dominados o autoreconhecimento como seres humanos inferiores é justamente sua
coesão. Neste sentido o esforço quase obsessivo dos profissionais da ES em construir
coesão pode ser visto como uma dimensão de aumentar seu poder e sua influência. O
mundo da ES participa de um embate num espaço global político e econômico (contra o
neoliberalismo, a opressão sofrida pelos países pobres), mas também ético e moral. Mas
além disso também participa da disputa pela legitimidade das idéias sobre o combate à
pobreza e à “exclusão”. Em todos os casos a construção de coesão, seguindo as análises
de Elias, seria fundamental para construir a possibilidade de se “estabelecer” no campo
da política e no campo da gestão estatal.
Uma hipótese que será examinada no capítulo seguinte é a de que o mundo da
ES, constituído por outsiders, tanto no que diz respeito aos trabalhadores pobres, mas
também a outros profissionais que ocupam posições dominadas em seu espaço de
atuação (na academia por exemplo), seja um universo cuja coesão pode permitir a eles
34
“revidar” (como diz Elias) e alterar os gradientes de poder.
É também a partir das situações descritas que se pode reconhecer a maneira pela
qual a diversidade e as diferenças entre os participantes das situações descritas são
tratadas no mundo da ES. Pode-se reconhecer que algumas diferenças são consideradas
positivas e são festejadas (como a diversidade de faixas etárias, de origem, de cor etc),
enquanto outro tipo de diferença é negada (de poder, de capacidade de formulação, de
profissão etc).
Existe uma quase obsessão por fazer com estas diferenças não sejam
significativas. A capacidade de formulação e os diferenciais de poder estão ligados ao
capital escolar, que permite maior ou menos acesso a espaços de formulação e de
relação internacional ou com o Estado. São estas as diferenças que estão na base da
diversidade entre os profissionais da ES, o que gera tensão no que diz respeito à criação
de coesão Para avançar na compreensão dessas tensões nada melhor do que focalizar
nos agentes, suas relações, propriedades sociais e trajetórias. Esse será o objetivo do
capítulo seguinte.
35
CAPÍTULO 2. OS PROFISSIONAIS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Para compreender o mundo da ES é indispensável focar o olhar sobre os agentes,
suas trajetórias, capitais e espaços por onde circulam. A classificações das quais os
profissionais partilham e segundo as quais são eles próprios classificados revelam várias
faces do mundo da ES, as hierarquias reconhecidas e necessárias, as diferenças veladas
e os capitais relevantes em diferentes situações.
As situações descritas no capítulo 1 demonstram a existência de três categorias
em que se dividem os indivíduos. Elas são: “empreendedor” (ou empreendimento),
“assessor” (ou assessoria) e “gestor público”. As três categorias se apresentam como
formas de classificar os profissionais que pertencem ao mundo da ES segundo critérios
considerados socialmente relevantes. Porém, estas categorias não são fixas, podendo um
mesmo indivíduo se reconhecer como pertencente a uma ou outra em situações ou
contextos diversos ou podendo provisoriamente ser reconhecido por características
externas a estas classificações.
As diversas formas de classificar, marcar diferenças e hierarquizar, particulares
ao mundo da ES são acionadas de forma diferente em momentos e espaços diversos.
Nas diferentes atividades durante os encontros, pode-se reconhecer que os capitais e o
tipo de autoridade evocados são distintos, o mesmo ocorrendo em relação à elaboração
de textos, quando a autoridade e os capitais mais relevantes se diferem daqueles
acionados durante os encontros.
Existem também indivíduos que se destacam frente aos outros profissionais
sendo reconhecidos como figuras destacadas, cujas palavras e ações assumem
significado especial. Estes são figuras carismáticas, pois são reconhecidas como
especiais, como exemplos e têm maior legitimidade enquanto porta vozes e lideranças.
É na diversidade das formas de pertencer e atuar de seus profissionais que a ES
constitui-se como um universo de fronteiras vazadas. É comum, como se poderá ver a
seguir, que os profissionais da ES se constituam enquanto tais justamente na medida em
que atuam nas interseções entre o mundo da ES e outras esferas da vida social. A ES é
um espaço social novo, que difere das outras esferas com que faz fronteira, mas das
quais precisa para existir, como as ONGs, a academia e o Estado. Uma das suas
particularidades, é se apresentar como um espaço de articulação entre essas outras
36
esferas, o que se dá através da atuação de seus profissionais.
Como a ES se constitui num espaço de interseção entre mundos sociais
relativamente autônomos ou nos quais a autonomia é um assunto relevante, a atividade
de um profissional muitas vezes tem caráter ambíguo, tornando possível que uma
questão (e que é motivo de julgamento dos outros dentro do próprio mundo da ES) seja
justamente a definição do espaço ao qual ele pertence. Esse é notadamente o caso dos
“gestores”, cuja participação é freqüentemente questionada, por supostamente fazerem
parte de um universo (o Estado) do qual a ES deveria, segundo seus profissionais e as
representações por eles compartilhadas, se manter autônoma.
A relação com as outras esferas com as quais a ES se comunica não se dá apenas
de fora para dentro. No mundo da ES também se geram idéias, profissionais e capitais
que têm importância fora dele, oferecendo desta forma instrumentos e acumulação de
capitais valorizados e reconhecidos em outros espaços.
A palavra escrita tem uma grande importância na ES já que é o principal meio
pelo qual circulam as idéias e é uma das formas pelas quais diversos profissionais
participam deste mundo. Os livros, panfletos, revistas, resoluções de encontros e a
Internet são as formas que a palavra escrita assume, revelando alguns aspectos
importantes.
O dinamismo se revela na circulação dos profissionais entre esferas fronteiriças
à ES, mas também nas diferentes formas de organização e de circulação de idéias. As
entidades e organizações são reconhecidos como agentes e as diversas formas de
articulação entre estes também marcam profundamente o mundo da ES. Entidades e
organizações se relacionam de diversas formas, estabelecendo convênios, constituindo
outras organizações, editando publicações conjuntas e criando alianças.
A relação com as políticas públicas é uma dimensão da tensão revelada pelos
profissionais no que diz respeito a uma definição das fronteiras com Estado. A
importância dada ao reconhecimento pelo Estado se confronta constantemente com a
desconfiança em relação aos burocratas estatais (o que também é revelado na categoria
“gestores públicos”)
2.1. Empreendedores, gestores e assessores
As três categoria básicas de classificação dos indivíduos presentes no mundo da
37
ES marcam as representações sobre quais são as diferenças que são consideradas
relevantes e necessárias, hierarquias e as relações tensas que marcam a interseção com
outros universos sociais. A relevância desta classificação focou clara durante a segunda
e a terceira situações.
Apesar de representações sobre a negação de hierarquia estarem presentes de
diversas formas durante as situações e de que a busca por coesão seja um dos aspectos
mais fortes dos encontros, a divisão nas três categorias é aceita como uma diferenciação
legítima e necessária.
Na terceira situação em especial a distinção através do pertencimento a cada
uma das categorias foi muito marcada. Por meio de adesivos de diferentes cores nos
crachás, os participantes eram obrigados a uma classificação prévia, durante a inscrição
para o evento. Foi também na terceira situação que os participantes foram separados em
três grupos, de acordo com cada uma das categorias e algumas discussões foram feitas
apenas entre “empreendedores”, “gestores” ou “assessores”.
No mesmo evento, numa das discussões mais polêmicas, a divisão nas três
categorias foi um recurso marcante, na medida em que, primeiramente, houve consenso
de que os “empreendimentos” deveriam ser os mais representados no futuro FBES e,
segundo, pela polêmica em torno da participação, ou não, dos “gestores públicos” na
mesma entidade, discussão na qual estava em jogo a autonomia e a separação em
relação ao Estado.
São reconhecidos como “empreendedores” aqueles que trabalham em
empreendimentos considerados solidários, como as cooperativas e as fábricas
autogestionárias. O termo “empreendimento” pode substituir o termo “empreendedor”,
como forma de despersonalizar a categoria em alguns momentos, como na terceira
situação quando os profissionais se referiam à necessidade de maior representação dos
“empreendimentos” no Fórum.
A centralidade dos “empreendimentos” e dos “empreendedores” no mundo da
ES é demonstrada pela maior presença numérica desta categoria em diversos níveis de
representação e foi lembrada de diversas formas nas situações descritas. Isto tem relação
com a própria construção da ES como teoria econômica, na medida em que, como
veremos no capítulo 3, os empreendimentos são o centro da análise dos profissionais.
No caso da segunda situação, esta hierarquização pode ser reconhecida pela
38
maior proporção da categoria “empreendedor” no conjunto de delegados que seriam
enviados à plenária nacional (60%), tendo esta sido previamente firmada.
A categoria “assessor” designa aqueles que atuam através de assistência aos
empreendimentos, como os profissionais das ONGs e universidades que prestam
serviços de formação profissional, assessoria jurídica e incubagem. É nesta categoria
que se encaixa a maioria dos profissionais que atuam nas fronteiras com a academia e
com o mundo das ONGs.
Na categoria “assessor” está implicada a idéia de que a ele cabe ajudar, assistir,
mas que o centro está nos empreendimentos e nas pessoas que neles trabalham,
prevalecendo sobre ela a representação de que sua ação é desinteressada e está “a
serviço” dos empreendedores. É notável que pertençam à categoria “assessor” aqueles
profissionais que possuem mais recursos de circulação em várias esferas, capacidade de
captação de recursos e de relações internacionais e maior capital escolar. Estas
características parecem fazer com que uma das preocupações dos profissionais seja, de
certa maneira, compensar este diferencial através das representações sobre todos
estarem a serviço daqueles que possuem a forma mais nobre de pertencimento ao
mundo da ES: fazer parte de um empreendimento solidário.
Por fim, os “gestores públicos” são os profissionais que atuam em esferas
governamentais, como assessores de parlamentares e funcionários de governos estaduais
e prefeituras, cuja atividade está ligada a programas de ES. A categoria “gestor público”
envolve uma questão crítica no mundo da ES: a relação com o Estado. A participação
destes indivíduos é marcada pelo reconhecimento de uma ambigüidade, muitas vezes
considerada negativa. A autonomia do “movimento” frente ao Estado foi evocada, na
situação 3, para defender que os gestores não participassem do FBES. A possibilidade
de uma exploração eleitoral das propostas da ES e o compromisso fugaz que pode
representar um governo, faz com que esta categoria seja alvo de desconfiança. Uma das
coisas que contribui para esta tensão é a grande importância atribuída pelos
profissionais da ES à existência de políticas públicas e ao reconhecimento da ES por
parte do Estado. Se dá importância à necessidade do reconhecimento pelo Estado,
enquanto entidade, mas desconfia-se de seus burocratas, não se percebendo neles um
canal privilegiado para ter acesso a este reconhecimento.
As três categorias, são fortes, no sentido de se apresentarem como formas
39
necessárias de organização no mundo da ES, mas são bastante plásticas no que diz
respeito à identificação dos indivíduos particulares. Isto se dá, em parte, pelos diversos
tipos de participação que um mesmo profissional pode exercer dentro do mundo da ES e
fora dele, e também pelo fato de que algumas entidades e organizações das quais eles
fazem parte atuam em várias frentes. O que prevalece, na classificação nas três
categorias é o autoreconhecimento e o reconhecimento dos outros profissionais.
Na segunda situação apresentada no capítulo 1, a plasticidade destas categorias
foi revelada a partir da dificuldade em separar, nos três grupos, candidatos a delegados
correspondentes a cada uma delas. Pôde-se observar que alguns indivíduos mudaram de
grupo, fazendo notar que as três categorias não são identidades fixas.
Não é em todos os momentos, porém, que as três categorias operam. As
dinâmicas e as celebrações coletivas são os momentos justamente de negar qualquer
diferença. Nestes momentos todos os indivíduos partilham igualmente dos recursos que
são valorizados e dão sentido às próprias práticas: estar ali, estar ali por nenhum outro
motivo que não seja o desejo de estar ali e a disposição para ser um igual. Neste sentido,
a disposição que permite estas práticas é o próprio sentido delas, como se elas
existissem apenas para organizar aqueles sentimentos que já estivessem presentes.
Outras categorias, que poderíamos considerar como “provisórias”, por operarem
em momentos específicos, também estão presentes durante os eventos. Estas categorias
provisórias não são nomeadas e na maioria das vezes não concorrem com as três
categorias fundamentais. É possível que uma pessoa, compondo uma mesa ou sendo
palestrante seja identificado como representante de uma entidade ou instância de
governo (como na mesa de abertura dos trabalhos na terceira situação), sendo neste caso
a personificação da entidade ou organização. Neste momento a entidade ou organização
fala através daquela pessoa. Suas particularidades como indivíduos são apagadas e ela
passa a ser a encarnação de uma coletividade. Mas isto acontece apenas enquanto está
na mesa.
Também é possível que o indivíduo seja apresentado como especialista para
tratar de um assunto específico, mesmo que isso não seja explicitado como aquilo que o
leva a estar numa posição de destaque, como por exemplo, Francisco Lara, na segunda
situação. Esta é a situação em que os atributos individuais em termos estritos, são
destacados. Naquele momento, o profissional é um indivíduo em particular, cujas
40
qualidades e capitais são aquilo que o fazem ocupar esta posição.
Assim, um mesmo indivíduo pode ter um papel, por exemplo, quando discute
nos grupos (de um participante como qualquer outro) e outro quando está na “mesa”. A
eficiente manipulação dos diversos papéis e dos tempos em que cada classificação é
relevante está fortemente ligada ao ritmo dos eventos, alternando os diversos momentos
de forma marcada.
2.2. Figuras carismáticas
Existem indivíduos especiais que são reconhecidos por características pessoais
de comportamento e de trajetória. Uma dessas figuras carismáticas é Marcos Arruda,
economista e um dos fundadores do PACS. Marcos Arruda se intitula hoje
“ socioeconomista e educador” e é mestre em Economia do Desenvolvimento pela The
American University e doutor em educação pela Universidade Federal Fluminense.
Esteve exilado na Suíça, onde trabalhou com Paulo Freire no Instituto de Ação Cultural.
Neste mesmo período foi consultor dos Ministérios da Educação da Guiné Bissau e
Cabo Verde e também consultor do Ministério da Educação da Nicarágua, durante o
governo sandinista (1979 a 1988). Foi consultor econômico do Conselho Mundial de
Igrejas entre 1979 e 1982 em Genebra. É membro da equipe internacional de animação
do Polo de Socioeconomia Solidária da Aliança por um Mundo Responsável, Plural e
Solidário, e participa do Movimento Fé e Política, do qual faz parte também Leonardo
Boff.
Apesar de não ter ocupado lugar de destaque como mediador de debates em
nenhuma das situações descritas, Marcos Arruda é considerado pelos participantes
como uma pessoa digna de respeito e confiança, tendo sido eleito como delegado para a
plenária nacional e, também, como representante do Rio de Janeiro na coordenação
provisória do FBES. Seu carisma pode ser constatado no momento em que, na segunda
situação alerta a todos que usem seus copos descartáveis mais de uma vez, tendo a
maioria dos participantes seguido o conselho. Além disso, o encerramento do segundo
evento descrito, com canto e velas acesas ao que parece é inspirado por suas idéias:
As forças da luz começam a fazer-se sentir com maior potência do queantes. Elas não precisam, para prevalecer, perseguir, amordaçar,esmagar, eliminar. Precisam apenas brilhar, como uma vela simples e
41
humilde que transmite sua chama a outras velas, e estas a outras mais,até que, num tempo não tão longo quanto se teme, as sombras ficamcontaminadas pela luz e todo o ambiente se ilumina. (ARRUDA inBOFF, ARRUDA, 2000: 142-143)
Outro exemplo de figura carismática é o maior teórico de ES e o inventor da
expressão: Paul Singer. Singer, de mais de setenta anos, é um dos fundadores do PT e
hoje ocupa o cargo de Secretário Nacional de Economia Solidária no governo federal.
Singer é graduado em economia e doutor em sociologia (ambos pela USP). Foi um dos
fundadores do Cebrap (Centro Brasileiro de Análises e Planejamento), foi Secretário de
Planejamento da Prefeitura de São Paulo de 1989 a 1992, na gestão de Luiza Erundina.
Além disso é o responsável pela formulação aceita pelos profissionais da ES sobre a
história da ES e o autor mais citado na bibliografia sobre o tema. Quando chegou ao
evento descrito na terceira situação, foi cercado por várias pessoas que desejavam
guardar uma lembrança daquele encontro, principalmente fotografias ao lado dele.
Singer, pacientemente atendeu a todos sem ao menos alterar o semblante sereno.
No Encontro Internacional de Economia Solidária, ocorrido na USP, um
doutorando em Ciência Política pela USP, que já havia sido orientado por Singer e foi,
ao que parece, um dos primeiros estudantes a se engajar com a ES, encerrando sua fala
disse: “Nós somos os meninos e as meninas do Singer”, referindo-se aos estudantes que
atuam na Incubadora da Universidade ou que de alguma forma estão envolvidos com os
espaços institucionais da ES existentes. Esta fala deixa bem claro qual o sentimento que
alimenta muitos dos profissionais da ES, especialmente os estudantes e jovens, que não
raro explicitam sua relação emocional com Singer, vendo nele uma figura de “ guru” e
de certa forma, paternal.
A partir do que foi observado, pode-se destacar o fato de que nenhum dos dois,
Singer ou Arruda, assumiram qualquer papel durante as situações, em que teriam que
assumir postura dura ou de autoridade, como controlar as falações ou administrar
conflitos sobre propostas divergentes. Os dois são teóricos significativos, embora
tenham focos bastante diferentes quanto às idéias sobre a ES.
(...) Decorre desta percepção o reconhecimento de que somos seresamorosos, seres chamados a edificar conscientemente relações departilha, solidariedade e comunhão com o Outro, a Terra e o universo. É
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justamente a consciência reflexiva que nos permite superar a “lei daselva” que domina nossa dimensão animal e instintiva - sobrevive o maisforte e o melhor equipado para a competição - e introduzir a “lei doamor” em todas as relações que constituem nosso “ir sendo” e existência.(ARRUDA in BOFF, ARRUDA, 2000: 125-126)
Em todos os sentidos, é possível considerar a organização deempreendimentos solidários o início de revoluções locais, que mudam orelacionamento entre os cooperadores e destes com a família, vizinhos,autoridades públicas, religiosas, intelectuais, etc. Trata-se de revoluçõestanto no nível individual como social. A cooperativa passa a ser modelode organização democrática e igualitária que contrasta com modeloshierárquicos e autoritários, como os da polícia e dos contraventores, porexemplo. (SINGER in SINGER, SOUZA, 2000: 28)
Os dois demonstraram modéstia e paciência com todos que deles se
aproximavam, apesar do assédio a Singer ser muito maior. O carisma dos dois parece
residir no fato de que representam, com seu comportamento, um exemplo para todos,
além da grande e destacada dedicação à causa. No caso de Singer, o carisma está
associado a sua legitimidade frente aos profissionais da ES enquanto porta-voz e
formulador. Vale lembrar que, segundo o que narram os profissionais, Singer foi o
nome de consenso escolhido pelo conjunto dos profissionais e entidades para ser
indicado como titular da SENAES.
O fato de os dois serem economistas sugere que seu capital acadêmico tenha
relação com a legitimidade reconhecida em suas palavras. Uma pista para isto foi uma
das resoluções do evento descrito na segunda situação, que tratava da necessidade de
conquistar mais economistas para a ES, pois era necessário aumentar a viabilidade
econômica dos empreendimentos. Ao que parece, se reconhece uma relação entre os
economistas e a ES como se esses fossem especialistas habilitados para tratar dela.
Outra característica que se destaca em relação a ambos é que têm uma longa
trajetória de militância. Os dois foram fundadores do Partido dos Trabalhadores, por
exemplo, tendo sido anteriormente perseguidos pela ditadura militar brasileira. Seu
prestígio em outras esferas, como na política e na academia, também parece contribuir
para constituir o carisma de ambos.
Sua capacidade de articulação internacional, através de contatos em diversos
países também lhes confere importância no mundo da ES. Como se pode notar, capitais
acumulados antes de estes pertencerem ao mundo da ES têm importância no
43
reconhecimento de que possuem características extraordinárias.
Note-se por fim, que Singer foi o primeiro a usar o termo economia solidária e
Marcos Arruda, mesmo antes dele, já tratava de uma proposta alternativa à economia de
mercado: a socioeconomia. O fato de serem precursores das idéias sobre uma nova
economia também marca seu reconhecimento como lideranças especiais.
2.3. Entidades, organizações e associações
As entidades, organizações e associações reconhecidas como agentes da ES
representam um universo muito diversificado, para o qual a idéia de rede parece a
melhor descrição. As diferentes conexões, formas e meios de associação tornam o
mundo da ES um grande emaranhado cujas unidades são de difícil identificação. Estas
complexa rede se expande por outros espaços sociais, ligando-os através da ES. A
complexidade destas conexões e a impossibilidade de estabelecer os limites da ES são
uma das características que a tornam um mundo peculiar.
Existem diversas formas de articulação e associação entre as entidades e
organizações, além de espaços como o GT-Brasileiro e, mais recentemente o Fórum
Brasileiro de Economia Solidária. O GT-Brasileiro contava, na II Plenária Nacional de
Economia Solidária, ocorrida durante o III Fórum Social Mundial (janeiro de 2003) com
doze entidades de caráter nacional: Cáritas Brasileira, ABCred, Concrab (MST), ADS -
CUT, Rede de Gestores Públicos em Economia Solidária, Rede Universitária de
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), Unitrabalho, Rede
Brasileira de Socioeconomia Solidária, IBase, FASE, PACS e Anteag (sobre as
entidades ver anexo 3). Outras entidades estão representadas nos encontros, como
entidades estaduais, regionais e municipais, todas elas com alguma relação com estas
doze.
A atuação destas entidades no mundo da ES também se dá a partir de relações
entre duas ou mais delas, ou mesmo, uma mesma entidade sendo membro de uma
organização, como por exemplo o PACS, ONG que faz parte da Rede Brasileira de
Socioeconomia Solidária, ou através de convênio com governos. A RBSES também é
um exemplo de organização que congrega diferentes tipos de entidades, entre ONGs,
cooperativas e instituições universitárias. Além disso as relações podem se dar através
de convênios e outras associações conjuntas, como a publicação de livros. Em 2000, por
44
exemplo, o IBase passa a tratar do tema da ES através de um convênio com a Anteag,
que por sua vez tinha um convênio com o Governo do Rio Grande do Sul.
As organizações podem congregar diversos elementos semelhantes, como a
Rede de ITCPs, ou se caracterizar justamente por congregar diferentes tipos de
associações e grupos como é o caso da RBSES. Existe outro caso, como o da Anteag,
que pretende representar as empresas autogestionárias e os trabalhadores de empresas
autogestionárias. Como se pode perceber os elementos que compõem organizações,
associações e redes não são homogêneos, como o mundo da ES também não é
homogêneo e tem isto como uma marca de singularidade.
A publicação conjunta de livros também é uma forma comum de “encontro” das
entidades e organizações. Além disso, publicações de responsabilidade de uma só
entidade contam com textos de participantes de outras, como no caso de dois números
da revista Proposta, da FASE em 2003 dedicadas à ES.
2.4. A palavra escrita
O mundo da ES está também constituído pela palavra escrita. Neste sentido,
deve-se destacar três formas diferentes de escrever. Existem livros e textos assinados
pelos autores, em que nome e sobrenome estão presente e não raro, alguns livros contam
com uma pequena bibliografia do autor ou dos autores. Pode-se dizer que a autoria é
plenamente identificada, tendo relevância uma parte da trajetória (muitas vezes
acadêmica) do autor, e as diversas atividades relacionadas ao tema. Outro tipo de texto é
aquele assinado pelas entidades e organizações. A autoria é identificada como coletiva,
dizendo respeito às posições daquela organização, seja ela uma entidade, ou um
conjunto de entidades (é o caso, por exemplo, dos textos assinados pelo GT-Brasileiro).
Por fim existem os textos não assinados, que são resoluções de encontros.
Contando com um universo limitado de formuladores, um mesmo profissional
da ES pode ter participação na elaboração de textos com tipos diferentes de autoria. Ou
seja, pode escrever um texto em que é identificado como autor, mas também escrever
outro texto em que a assinatura que nele conste seja a da entidade à qual pertence.
Ainda, pode ser o relator de um encontro e participar da elaboração das resoluções, um
texto sem qualquer assinatura.
Uma das formas de circulação das idéias é através de livros e revistas e
45
fortemente pela Internet. Além de a maioria das entidades terem páginas na rede (ver
anexo 3), existem páginas onde é possível baixar textos e se informar sobre os eventos
ligados ao assunto. Na rede existe até um cadastro de empresas solidárias. Uma destas
páginas é mantida pelo Grupo de Pesquisa Economia Solidária Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(www.ecosol.org.br), onde é possível ter acesso a uma vasta bibliografia sobre o
assunto, os debates e textos mais atuais. Além disso, uma grande parte da comunicação
entre os profissionais se dá via correio eletrônico. A Internet tem uma ligação com o
próprio conceito de “rede” tão caro aos profissionais da ES. Através dela é possível
estabelecer comunicação entre indivíduos e instituições em todo o país e no mundo.
Keith Hart (2001) aponta a grande afinidade dos movimentos anti-globalização (dos
quais a ES provavelmente seria um exemplo) com a Internet. Segundo Hart este meio de
comunicação, na mesma medida que serve à acumulação pode ser instrumento de
democratização.
Entre os livros se destacam coletâneas de ensaios e relatos de experiências
consideradas bem sucedidas, além de publicações sobre as experiências de entidades,
como os livros: Vinte anos de Economia Popular Solidária: Trajetória da Cáritas dos
PACs à EPS e Autogestão: construindo uma nova cultura nas relações de trabalho, da
Anteag. Entre os periódicos estão as revistas de algumas entidades, como a revista
Proposta, da FASE, que, em 2003 dedicou dois números a textos sobre ES e autogestão.
Nas situações descritas no capítulo 1, havia muitos livros e revistas a venda,
tanto os especificamente voltados para a ES, como outros de temas considerados
correlatos, fazendo parte, inclusive, do cenário das situações. Esta parece ser uma das
principais vias através das quais os profissionais da ES têm acesso a livros e revistas.
Além disso, vários panfletos e folders circulavam durante os três eventos, sendo uma
das principais formas de divulgação usadas por entidades e organizações. Existem
algumas editoras que predominam na publicação dos livros sobre a ES que são,
principalmente as ONGs (FASE, IBase, PACS), editoras universitárias como a da USP
e outras como a Vozes, de Petrópolis (RJ), que tem ligação com a Igreja católica.
Os textos de caráter acadêmico ou ligados às atividades e especialidades
acadêmicas são espaços importantes de formulação, na medida em que fornecem
argumentos, vocabulários, e inserem no debate acadêmico as problemáticas da ES.
46
2.5. Espaços e capitais
Ligados à produção deste tipo de texto, está a existência de inúmeros espaços de
discussão sobre a ES, tornando a universidade e a academia espaços relevantes da ação
de certos profissionais.
As Universidades e as discussões acadêmicas geram uma grande possibilidade
de circulação de idéias e pessoas. Através da estrutura universitárias e das trajetórias
acadêmicas é possível a este tipo de profissional da ES circular entre várias áreas do
conhecimento, várias cidades, estados e países. As atividades acadêmicas e
universitárias propiciam difusão de idéias e a conquista de novos profissionais para o
mundo da ES. Além disso conta com espaços e estruturas que possibilitam o contato
internacional, inclusive a partir das trajetórias pessoais, como as pós-graduações no
exterior. Um exemplo destacado é o de Marcos Arruda, que hoje não atua dentro da
universidade, mas fez uma pós-graduação nos EUA, morou na Europa, assessorou
entidades internacionais e governos de vários países.
A circulação dos profissionais da ES está concentrada em alguns países. Na
Europa sem dúvida a França é um dos pólos desta circulação, mas também a Alemanha,
onde a língua dificulta bastante o acesso dos profissionais brasileiros. A América Latina
também é um espaço de intensa circulação, principalmente a Argentina, de onde são
originários ou onde trabalham hoje, alguns dos principais interlocutores teóricos da ES
no Brasil, como José Luis Coraggio e Heloisa Primavera.
Entre os profissionais que possuem maior capital escolar (nível superior ou
mais) estão os economistas e sociólogos, que atuam na Universidade, e também
fortemente por meio das ONGs. Os advogados também tem papel importante. As
discussões sobre a legislação são consideradas centrais pelos profissionais da ES, o que
torna a presença destes especialistas bastante importante para eles. Além desta
atividade, os advogados assessoram associações e cooperativas na legalização de seus
empreendimentos, o que é uma atividade fundamental no que se chama de incubagem.
Muitas vezes é a partir dos profissionais que atuam na interface com as
universidade que se estabelece comunicação entre o campo político e a academia, entre
movimentos sociais e o governo, entre o Brasil e o mundo (tanto na política, como no
governo e na academia). Além disso os universitários estabelecem relações com o
47
Estado, na medida em que, primeiramente fornecem subsídios legitimados pela
academia para as políticas públicas e, segundo, porque constituem a maior fonte para os
funcionários de governo.
O acesso a espaços diversos de debate, a diferentes realidades nacionais parece
ser um instrumento significativo. Não se pode perder de vista também que, a partir da
circulação internacional os acadêmicos têm ou tiveram acesso a debates e idéias vindas
de outros países, notadamente da Europa, principalmente da França, e tiveram contato
com realidades nacionais diversas, além de, é claro, tornarem-se importantes porta-
vozes e contatos no exterior. Uma grande parte da ES, através das ONGs e das
universidades principalmente, é financiada com dinheiro proveniente de outros países
(principalmente Europa e América do Norte) fazendo com que este contato com o
exterior tenha uma relevância também bastante prática. Leilah Landim mostra que, em
1993, mais de 80% do financiamento das ONGs se dava por recursos internacionais
LANDIM, 1998) e ao que tudo indica o quadro não se modificou muito desde então.
Apesar de a ES não ser reconhecida como assunto particular dos economistas
(existem universitários de outras áreas que escrevem e debatem o assunto), existe um
tipo particular de esforço da parte dos economistas que fazem parte do mundo da ES de
construir espaço dentro da academia. Este esforço se traduz no oferecimento de
disciplinas sobre ES.
Paul Singer, reconhecido como maior teórico brasileiro da ES, oferece uma
disciplina sobre ES na Pós-graduação em Economia da USP. Na UFRJ, no segundo
semestre letivo de 2003 foi oferecida uma disciplina, na graduação, com o nome:
“Economia Solidária e Autogestão”, pelo professor José Ricardo Tauile, em parceria
com a ITCP - COPPE12. Apesar de não ser privilégio de economistas e destes não
constituírem sequer a maioria absoluta dos profissionais acadêmicos da ES, a maioria
das tentativas de institucionalizar a ES no que diz respeito ao ensino, parte de
economistas e são realizadas em instituições dedicadas à disciplina.
Os dados coletados até agora permitem formular a hipótese de que os capitais
acumulados no mundo da ES e como profissionais e formuladores podem ser
significativos nas disputas dentro das disciplinas acadêmicas, principalmente no que diz
respeito ao campo dos economistas, isto sugerido pelo esforço de institucionalização e
12 Ao que parece, esta foi a primeira vez que foi oferecida uma disciplina no Brasil, na graduação, sobre
48
reconhecimento da ES enquanto questão “de economia”.
A maioria dos profissionais acadêmicos da ES ocupa posições marginais em
suas disciplinas. Segundo o que mostra Maria Rita Loureiro sobre o campo dos
economistas (LOUREIRO, 1997), podemos constatar que o tipo de carreira e as
instituições a que pertencem ou pertenceram, os economistas da ES ocupam posições
dominadas. Seu engajamento e capitais acumulados na ES podem constituir (ou ser
reconhecido por eles como) capital dentro da disputa na disciplina. A partir disso é
possível supor que estes profissionais não apenas transportem os seus capitais
acumulados enquanto acadêmicos para o mundo da ES, mas que o mundo da ES
também ofereça recursos para suas atividades na academia, como seria o caso do
sucesso em se instituir um novo nicho dentro da disciplina econômica.
Os espaços acadêmicos que possibilitam a estes profissionais exercer sua
atividade enquanto teóricos e difusores da ES são vários. Um destes espaços é o dos
encontros acadêmicos, onde a temática da ES é debatida entre estudiosos. Segundo
Lechat (2002), um dos eventos que constituem marcos para o surgimento da ES no
Brasil foi a Mesa Redonda “Formas de combate e resistência à pobreza”, ocorrida em
1995 no 7º Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia. A temática da ES continuou
na pauta no 11º Encontro da SBS, em 2003 em dois Grupos de trabalho: “GT Dádiva,
Política e Novas Formas associativas” e “Sociólogos do Futuro: Dádiva, Política e
Novas Formas”, tratando da mesma temática, mas direcionado a jovens sociólogos.
Nestes dois GTs se concentraram os especialistas e pesquisadores da ES. Outro espaço
universitário do mundo da ES são os encontros realizados nas universidades sobre o
tema como o “Encontro Internacional de Economia Solidária” na USP 13, e o seminário
“O Papel da Universidade no Combate às Causas estruturais da Pobreza através do
Cooperativismo Popular” na COPPE - UFRJ 14.
Além destes há espaços institucionais nas Universidades que fazem parte do
mundo da ES, como grupos de estudo, núcleos etc. Dentre eles se destacam as
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP).
As ITCPs são programas de extensão universitária multidisciplinares, cujo papel
é auxiliar através de assistência especializada a constituição de cooperativas por
ES especificamente.13 Ocorrido nos dias 25 e 26 de julho de 2003 na USP14 Seminário ocorrido no dia 06 de outubro de 2003 na ITCP da COPPE - UFRJ, Rio de Janeiro
49
trabalhadores pobres e, na maioria das vezes, desempregados. A primeira ITCP foi
criada em 1995 na UFRJ. Ligada à COPPE (Coordenação dos Programas Pós-graduação
em Engenharia), a incubadora foi criada a exemplo da já existente Incubadora de
Empresas da mesma instituição e por estímulo do COEP (Comitê de Entidades Públicas
de Combate à Fome e pela Vida). Segundo relato de João Guerreiro, atual coordenador
da ITCP - COPPE, Betinho “lançou o desafio” de se criar na COPPE uma incubadora
voltada para gerar renda para população de baixa renda, numa reunião do COEP. O
“desafio” foi aceito por Luiz Pinguelli Rosa, então diretor da COPPE. Uma experiência
da Fiocruz também estimulou a criação da ITCP. Cercada pela favela da Maré, a
Fiocruz se confrontava com problemas sérios de segurança e pensava-se, inclusive, na
mudança de endereço da instituição. A solução foi criar uma cooperativa (Cooperativa
de Manguinhos) que empregasse parte da comunidade vizinha. Para o trabalho, foi feito
um convênio com a Universidade de Santa Maria (RS), que possuía um curso sobre
cooperativismo. A experiência é considerada um sucesso (SINGER in SINGER,
SOUZA, 2000).
Existem ITCPs, nem todas com este nome, mas reconhecidas como tal, em 15
universidades brasileiras15, organizadas na Rede Universitária de Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares, que é uma entidade bastante atuante no campo
da ES, que compunha o GT-Brasileiro. A Rede foi criada em 1998 e conta com uma
coordenação nacional e três coordenações regionais (Nordeste, Sudeste e Sul).
Através das ITCPs, por exemplo, a universidade atua como legitimador de ações
ligadas à ES. Um exemplo é que as cooperativas incubadas pela ITCP - COPPE eram
reconhecidas no mercado como prestadoras de serviços de qualidade. Isto se apresentou,
inclusive, como problema, já que o espaço de atuação destas cooperativas se retraía
muito depois que elas deixavam de contar com a marca de qualidade que era o
acompanhamento pela ITCP.
Segundo as pessoas com elas envolvidas, as incubadoras têm o papel de
intervenção social que é dever da Universidade, além de serem espaços onde se
conjugam os três princípios básicos da Universidade pública brasileira: ensino, pesquisa
e extensão. A tentativa de se colocarem como instrumento importante de combate à
15 Nas Universidades: Federal do Ceará, Federal Rural de Pernambuco, do Estado da Bahia, Federal deJuiz de Fora, Federal de São João Del Rei, Federal do Rio de Janeiro, Federal de São Carlos, Federal doParaná, Estadual de Campinas, de São Paulo, Fundação Universidade Regional de Blumenau,
50
pobreza se revela no nome de um seminário promovido pela ITPC - COPPE.
As ITCPs, a partir do que foi observado em encontro organizado pela ITCP da
Universidade de São Paulo, cumprem um papel de difusão entre estudantes
universitários da ES. A maioria dos estudantes que trabalham na Incubadora, no caso da
USP, estavam produzindo trabalhos acadêmicos sobre o tema, entre monografias de
final de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado de várias áreas do
conhecimento, entre elas engenharia de produção, economia, ciências sociais, psicologia
e pedagogia. A partir deste tipo de processo acaba por haver um trabalho de difusão da
chamada ES no meio acadêmico, além da formação de “quadros” jovens que carregarão
para sua atividade profissional o envolvimento com a ES.
A opção do estudante de trabalhar numa favela ou numa cooperativapopular, ao invés de investir numa carreira no Estado ou numa grandeempresa, é muito forte, porque não é uma coisa trivial, pode-se olharpara isso como algo interessante. (Gonçalo Guimarães, entrevista dadaem 2000, ao Jornal da Universidade da UFRGS)
Segundo Gonçalo Guimarães e outros membros de ITCPs, a Universidade é um
local privilegiado para o desenvolvimento de políticas de ES, pois não estaria sujeita aos
mesmos constrangimentos que outros espaços, como governos, por exemplo, nem
estaria atendendo a interesses particulares (em contraposição a instituições privadas), ou
a interesses eleitorais. Além disso a continuidade dos programas poderia ser melhor
garantida, diferente dos governo que mudam periodicamente e com freqüência vários
programas são abandonados (o que parece ter sido o caso do RS depois da derrota do PT
nas eleições de 2002).
Na universidade - apesar e por causa da diversidade -, temos quadros,gente nova, o caráter interdisciplinar e a busca do conhecimento. Auniversidade possibilita o crescimento de grupos. (...) É decisivo tudoacontecer na universidade por ser também um espaço que possibilita aneutralidade, embora existam naturalmente correntes políticas eideológicas que interagem, às vezes, de formas até conflitantes. Mas sualegitimidade social permite uma aproximação muito mais ágil, aocontrário, por exemplo, de quando o contato com as comunidades é feitoem nome de governos. (GUIMARÃES in SINGER, SOUZA, 2000: 113)
Universidade Católica de Pelotas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Fundação Getúlio Vargas (SP)
51
A Universidade é espaço de formulação de políticas públicas, seja através de
convênios, ou na participação de especialistas acadêmicos em programas
governamentais. A Universidade é um espaço de interseção entre o mundo da ES e a
academia, mas também da ES com o Estado, através das atividades dos profissionais
acadêmicos, que são chamados, levando em conta também seu capital acadêmico, a
formular políticas públicas diretamente ou produzem trabalhos que as criticam ou
embasam.
Além disso, particularmente no governo Lula, vários destes acadêmicos exercem
cargos no governo federal. Sem contar com os membros da SENAES, todos
profissionais da ES e, na sua maioria acadêmicos, outros profissionais acadêmicos da
ES foram chamados a participar do governo. Entre eles Gonçalo Guimarães, um dos
fundadores da ITCP – COPPE, e Euclides Mance, um dos idealizadores da RBSES, que
estão no Ministério das Cidades, cujo titular é Olívio Dutra, ex-governador do Rio
Grande do Sul, cujo governo é considerado pelos profissionais da ES pioneiro no que
diz respeito a políticas públicas de economia solidária. Remígio Todeschini, um dos
idealizadores da ADS-CUT também ocupa cargo no Ministério do Trabalho e Emprego.
As ONGs são espaços importantes para a atuação dos profissionais. Sua
capacidade de articulação com outras ONGs, a grande presença de profissionais com
grande capital acadêmico e, principalmente a suposta autonomia de atuação com que
contam por seu caráter essencial de independência em relação ao Estado, fazem delas
espaços férteis da construção da ES.
Leilah Landim aponta algumas características e condições de existência de um
universo particular das ONGs que ajudam a compreender em grande parte as dinâmicas
do mundo da ES e o espaço de fronteira com as ONGs.
Landim (1998 e 1993) aponta que a gênese das ONGs está ligada à atuação de
indivíduos que circularam internacionalmente, tanto por meio de exílio durante a
ditadura militar quanto em outras atividades. Estes indivíduos passaram a ter contato
com agências financiadoras, políticas e idéias que constituíram um importante capital na
construção das ONGs. A circulação internacional, não só dos indivíduos que fazem
partes das ONGs que atuam na ES, é uma condição importante também na constituição
do mundo da ES.
Outra idéia apontada por Landim como constitutiva do mundo das ONGs é a
52
rejeição às formas “tradicionais” de representação e militância como os partidos e os
sindicatos. A vocação das ONGs “servir a”, seja aos movimentos sociais ou aos
“pobres” está presente no mundo da ES, principalmente no que diz respeito às
representações que envolvem a categoria “assessor", à qual inclusive se reconhece o
pertencimento dos profissionais que atuam na fronteira entre o mundo da ES e o mundo
das ONGs.
Leilah Landim também aponta a influência de militantes da Igreja católica
progressista como uma das categorias que vieram a compor o conjunto de indivíduos a
partir dos quais se constituíram as ONGs. A Cáritas brasileira, órgão da CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) é uma das entidades mais atuantes dentro
das organizações da ES. As mesmas características apontadas por Landim como capitais
relevantes na constituição das ONGs parece também atuar no mundo da ES.
A relevância do universo das ONGs através de suas fronteiras com o mundo da
ES está justamente no fato de que este se constituiu em grande parte através das
experiências das ONGs (que atuam, mesmo antes de terem este nome, desde a década
de 1960), de uma visão de mundo informada por suas categorias e representações. Além
disso as ONGs, como as Universidades, são os espaços através dos quais a circulação
internacional se dá, sendo esta uma condição para a constituição da ES como universo
particular.
2.6. Economia Solidária e políticas públicas
A história da ES no Brasil é inseparável do Estado. Entre os principais
organizadores e patrocinadores da organização da ES no país estiveram os governos
petistas do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre, quando da organização do I Fórum
Social Mundial.
Além disso, como já foi mostrado anteriormente, o próprio termo parece ter
aparecido pelas primeiras vezes voltado a programas de governo.
Apesar de a maior parte da teoria sobre a ES indicarem um caminho autonomista
e de auto-organização, muitos autores destacam que não se pode prescindir do Estado
para a construção da ES.
“O avanço da economia solidária não prescinde inteiramente do apoio doEstado e do fundo público, sobretudo para o resgate de comunidades
53
miseráveis, destituídas do mínimo de recursos que permita encetar algumprocesso de auto-emancipação.” ( SINGER, 2002: 112)
Inúmeras resoluções de encontros e as discussões nas duas plenárias descritas
demonstram uma preocupação muito grande para a proposição de políticas públicas que
contemplem as propostas da ES.
Para analisar a relação da ES com as políticas públicas é preciso entender o
Estado na sua dupla dimensão. Como entidade agente e como espaço social onde os
agentes são indivíduos. Esta é a abordagem que L’Estoile, Neiburg e Sigaud (2002)
utilizam para tratar das relações entre a Antropologia e o Estado.
A dimensão do Estado enquanto entidade que age no mundo social
“reconhecendo direitos e estabelecendo relações e hierarquias”, seria a dimensão
durkheimiana. A esta se somaria a dimensão weberiana do Estado, em que os agentes
são os indivíduos e o Estado é um espaço social, onde estes mantêm relações de
“concorrência e interdependência, elaboram e implementam políticas” ( L’ESTOILE,
NEIBURG, SIGAUD, 2002)
Em relação à ES, pode-se analisar sua relação com o Estado na sua dimensão
durkheimiana quando está envolvida a criação de leis e regulações que fazem
reconhecer a ES. Existe uma preocupação muito grande dos profissionais da ES para
que esta não só seja reconhecida como um tipo diferente de relação econômica que já
existe, mas como base para políticas públicas ligada ao desenvolvimento.
A dimensão weberiana está presente na medida em que as dinâmicas do mundo
da ES se relacionam com disputas e interdependência dentro do campo da burocracia
estatal, quando existe disputa em torno de quem são os porta-vozes legítimos do
cooperativismo ou “dos pobres”.
O esforço pela criação de novas leis, discussão denominada pelos profissionais
como “marco legal” apela para a capacidade de o Estado, através dos meios jurídicos
reconhecer a existência da ES. Como aponta Bourdieu (1996), o Estado, como entidade,
tem a capacidade de criar realidades, nomeando, regulando e controlando. Os
profissionais da ES reconhecem nesta capacidade do Estado um importante instrumento
de “fazer existir” a ES.
É recorrente que os profissionais da ES digam que a ES não deve ser vista como
“assistência” ou como “questão social”. É o que revela Leboutte (2003), quando
54
justifica a existência do Programa de ES do Governo do Rio Grande do Sul dentro da
Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais (SEDAI). O reconhecimento
do Estado deveria passar, para os profissionais da ES, pelo reconhecimento desta como
questão de “desenvolvimento”. Isto não deixa de ter relação com o esforço dos
economistas de tornar a ES uma assunto de sua competência.
A proposta inicial da equipe de transição de Lula era que a ES ocupasse algum
departamento no BNDES. Não querendo associar a ES apenas à concessão de crédito, o
“movimento” pleiteou uma secretaria interministerial, subordinada diretamente à
presidência da República. Isto lhes foi negado, mas a Secretaria ganhou ares de política
estratégica ao estar subordinada ao Ministério do Trabalho e Emprego. Neste caso as
reivindicações dirigiam ao reconhecimento do Estado, enquanto entidade criadora de
realidades e relações, mas os meios pelos quais estas reivindicações foram levadas a
frente e o resultado do pleito estão ligadas às dinâmicas do campo da burocracia estatal.
Aliada às discussões e propostas sobre políticas públicas está a discussão sobre
as leis que regem o funcionamento de empresas e cooperativas. Contemplada na
Plenária Nacional sob o título “direito ao trabalho solidário”, a criação a modificação de
leis é um dos temas mais caros aos militantes da ES. Na discussão sobre a legislação
estão desde a regulação oficial das cooperativas, a unicidade de representação das
cooperativas pela OCB até os impostos e direitos sociais.
A lei que rege, até hoje, as cooperativas é de 1971. Existem propostas para
mudá-la e o “movimento” da ES é um dos atores que disputam novas leis. A
regulamentação legal das cooperativas, trata-as como uma forma entre outras de
constituição de uma empresa, ou seja, uma empresa pode ser uma Sociedade Anônima,
uma Sociedade de Responsabilidade Limitada ou uma cooperativa. Apesar de existirem
empreendimentos considerados solidários e autogestionários sob diferentes formas
jurídicas16 e de alegarem os profissionais da ES que o que importa é como a empresa
funciona de fato, existe um esforço para mudar a lei de forma a diferenciar as
cooperativas “autênticas” ou “verdadeiras” das chamadas “ coopergatos” ou
16 Na Espanha existem as chamadas “sociedades anônimas laborales”, que formalmente são sociedadesanônimas, mas funcionariam de forma “solidária” e autogestionária. Ao que parece, a opção dostrabalhadores por constituir empresas na forma de sociedade anônima deve-se ao fato de que istopermitiria que os trabalhadores recebessem o seguro desemprego, o que com a constituição oficial decooperativas seria impossível, por ser esta uma “associação de pessoas”. A S.A., sendo uma sociedade decapitais, permitiria o recebimentos pelos associados de remuneração a título de seus direitos trabalhistas.
55
“ cooperfraudes” e de fornecer às primeiras vantagens devido a seu aspecto “solidário”.
Este esforço tem base na idéia de que as cooperativas não são todas solidárias. Existem
aquelas, que devem ser combatidas e denunciadas pois funcionam como uma empresa
capitalista como outra qualquer, que só que com o nome de cooperativa, ou pior, uma
forma de empresários mascararem a subcontratação se eximindo do pagamento de
direitos trabalhistas.
Os militantes da ES reivindicam uma legislação que diferencia empreendimento
solidários das “ coopergatos”. Também reivindicam tratamento diferenciado em relação
aos impostos e exigências legais. Para eles não é justo que pequenos empreendimentos
com pouco ou nenhum capital sejam onerados da mesma forma que uma empresa
capitalista.
Quem se encarrega da “ assessoria jurídica” aos “empreendimentos” geralmente
são advogados, principalmente nas Incubadoras, pois é preciso registrar oficialmente os
empreendimentos, o que exige assistência especializada. Uma outra atividade que
alguns advogados profissionais da ES exercem é o estudo da legislação atual, dos
projetos de lei que tramitam nas instâncias legislativas, além da elaboração de propostas
para novas leis que favoreçam a ES. As discussão das leis em tramitação e de propostas
de novas leis não são exclusividade dos advogados. Alguns assessores parlamentares e
“gestores públicos” também participam desta discussão com freqüência.
A seguridade social é outro tema tratado, ainda que bem menos que os outros
assinalados. Os trabalhadores de cooperativas e afins são considerados donos de
empresa e por isso não são protegidos pela CLT. Isto se torna crítico na medida em que
se trata de trabalhadores pobres e de empresas, em sua maioria, pouco estáveis. Existe
por parte de alguns profissionais um certo desprezo pela seguridade social provida pelo
Estado, pois segundo sua teoria a seguridade também deveria ser fruto de estruturas
“solidárias”. A Anteag, apesar de ter um claro posicionamento de defesa dos direitos e
do respeito aos trabalhadores assalariados usa o termo “escravos da CLT” (ANTEAG,
2000: 10) para designar aqueles que não conseguem imaginar um ideal diferente do de
ser um trabalhador formal com carteira assinada. Existem aqueles, porém, que
acreditam que deve haver um tipo de seguridade social, garantida pelo Estado, mas
especificamente voltada para os trabalhadores da ES.
A definição de o que seja, em termos quantificáveis e verificáveis um
56
empreendimento solidário é uma questão que permeia toda o debate e as reivindicações
pelo reconhecimento pelo Estado da ES. Os instrumentos de que dispõe o Estado para
reconhecer e “fazer existir” são as leis e também as estatísticas, que são reconhecidas
como importantes pelos profissionais da ES.
A SENAES, poderíamos dizer, é até agora o reconhecimento do governo da ES
como uma questão relevante e pode ser um dos caminhos (certamente é nisto que
acreditam os profissionais da ES) para o reconhecimento pelo Estado, que só se daria,
também segundo eles, através de políticas que permanecessem a despeito de quem
ocupasse o aparelho estatal.
A criação da SENAES se deu no âmbito das disputas dentro do Estado e
começou no final do ano de 2002, quando o quadro eleitoral já estava consolidado com
a vitória certa de Lula e o GT-Brasileiro elaborou a chamada Carta ao Governo Lula
(GRUPO DE TRABALHO BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA/FSM, 2003),
onde defende a ES como política de Estado para o desenvolvimento e o combate à
pobreza, assim como propõe a criação da Secretaria de ES.
A efetiva criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária é considerada
uma vitória do “movimento de ES”, mas, como visto anteriormente, as disputas dentro
do Estado não permitiram que a ES tivesse o status que pretendiam seus profissionais.
Segundo os militantes, Paul Singer foi indicado pelo “movimento” como nome de
consenso para ocupar o cargo de titular da Secretaria.
A experiência do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul (1998 - 2002) é
considerada pioneira no Brasil no que diz respeito a políticas públicas de ES. Segundo
Paulo Leboutte, ex-sindicalista que trabalhou no programa de ES do Governo de Olívio
Dutra, as propostas sobre a ES já estavam presentes no programa de governo da Frente
Popular em 1994, quando esta não foi vitoriosa. O programa é instituído oficialmente
em 2001, mas já começara suas atividades desde o começo do mandato. As políticas de
ES estavam subordinadas à Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais do
governo do estado do RS. É destacado que as políticas para a ES não estavam no
domínio da assistência social, mas do desenvolvimento, num esforço de diferenciar a ES
em relação a outros programas de combate à pobreza e lhe conferir caráter estratégico
(LEBOUTTE, 2003).
Outro aspecto legal importante discutido nos pontos chamados “marco legal”
57
nas plenárias e encontros, diz respeito à unicidade de representação pela OCB. Segundo
os militantes da ES, a OCB representa o cooperativismo “tradicional”, de grandes
empreendimentos e sua política não é diferente das representações de empresas
capitalistas. Existe até uma expressão usada pelos militantes que é “cooperativismo da
OCB”. As entidades que compõem o campo da ES, principalmente a Anteag
reivindicam que a legislação permita que os trabalhadores e cooperativas possam ter
direito a outro tipo de representação.17 Neste caso fica claro que existe uma disputa
também por lugar no aparelho do Estado, não dentro do governo, mas dentro das
estruturas de decisão e acesso a recursos.
O reconhecimento pelo Estado da ES, principalmente no âmbito dos programas
de governo especificamente voltados para a ES abre espaço para que diversos
profissionais da ES ocupem cargos. Vários profissionais da ES que participaram do
governo Olívio Dutra (com cargos diretos ou como assessores através dos convênios)
passaram a ocupar cargos no governo federal, fora da SENAES. Isto demonstra que a
ES fornece capitais sociais, através da relação com, por exemplo, políticos profissionais
dos partidos, que possibilitam o acesso a cargos na burocracia estatal que não têm
relação direta com os programas de ES (é o caso, por exemplo de Euclides Mance, que
ocupa cargo no Ministério da Cidades, cujo titular é Olívio Dutra).
Não deixam de existir, no mundo da ES, representações acerca das tensões
reveladas na sua relação com esta dupla dimensão do Estado. A categoria “gestores
públicos” é o centro destas tensões na medida em que revela que apesar de o
reconhecimento pelo Estado ser uma questão crucial, aqueles que estão inseridos nas
estruturas deste mesmo Estado não são reconhecidos como canais de acesso a estas
pretensões.
Conclusões
A partir da observação sobre os diversos profissionais da economia solidária, as
formas e instrumentos através dos quais eles constróem e participam deste mundo,
pode-se perceber o quanto o dinamismo e a fluidez são condições de existência da ES.
As fronteiras com os mundos da ONGs, do Estado e da academia estão
entremeadas pela atuação de diversos profissionais, pela dinâmica de circulação de
17 A OCB representa, legalmente, as cooperativas e os trabalhadores de cooperativas do Brasil.
58
informação e pelos recursos operados em cada esfera. As interseções podem ser vistas
também no que diz respeito às diversas formas de associação existentes, formando uma
complexa teia que se confunde com outros espaços. É nesta fluidez e polissemia que a
ES existe e a especificidade de seus profissionais é reafirmada.
As formas de classificação dos indivíduos neste universo revelam quais são os
critérios de legitimidade que existem dentro e fora da ES e nas diversas formas que
existem de participar.
Capitais diferentes dos profissionais são acionados nas formas diversas de
pertencimento e espaços da ES. As figuras carismáticas parecem transcender em grande
parte estas diferenças.
As relações do mundo da ES com as políticas públicas só podem ser
compreendidas se considerados o Estado na sua dupla dimensão “ durkheimiana” e
“ weberiana”. Frente ao Estado como entidade capaz de, através da regulação e da
estatística, fazer existir a ES, os profissionais defendem que a ES seja reconhecida como
uma forma diferente de economia. O reconhecimento dos empreendimentos solidários e
dos seus trabalhadores como fazendo parte de um sistema essencialmente diverso
daquele que o estado reconhece como sendo “economia” e “mercado” é a principal
questão no que diz respeito a esta dimensão. Mas o mundo da ES também se relaciona
com o Estado através dos profissionais que atuam na interseção com os dois mundos,
fazendo com que as dinâmicas dentro das instituições estatais tenham importância no
mundo da ES.
59
3. TEORIA E REPRESENTAÇÃO
Este capítulo trata das teorias e idéias sobre a ES produzidas e compartilhadas
por seus profissionais. Todas as discussões e debates que ocorrem no mundo da ES
estão baseadas em construções teóricas e idéias sobre a relação entre pessoas e entre
pessoas e coisas. Como mostrou Albert Hirshman em As paixões e os Interesses, a
teoria econômica é construída a partir das idéias sobre estas relações, a natureza
humana, o que leva as pessoas a agir de certa forma e não de outra. Hirschman oferece
instrumentos interessantes para compreender as representações sobre a ES e como esta
se constitui como teoria econômica. A teoria da ES supõe um novo homem, em que a
idéia de “interesse” também está presente, mas o interesse, como veremos a seguir é um
“interesse geral”, segundo o qual a solidariedade é melhor para todos. O ser humano
“solidário” é aquele que compreende, racional e logicamente que só pode ser feliz se o
mundo a seu redor estiver bem. Mais do que propor que as pessoas se comportem desta
maneira, a ES encontra na própria essência do homem esta capacidade, que foi
deturpada pelo capitalismo e pelo egoísmo, mas à qual os homens retornam quando este
mesmo capitalismo os empurra para fora (exclusão) de suas benesses. Quando Louis
Dumont discute a relação entre economia, teoria econômica, ideologia e ciência
(DUMONT, 1977) também oferece instrumentos analíticos interessantes, na medida em
que sugere que estas “esferas” não sejam vistas como autônomas. Como será possível
ver a seguir, se se fosse procurar, no caso da ES o que pertence a cada uma destas
esferas, com certeza o risco seria o de tomar as categorias nativas como categorias
analíticas (considerar a ES como ciência) ou recusar-se a reconhecer a eficácia e o poder
performático que tem esta teoria (considerar como ideologia).
Estas idéias e pressupostos teóricos estão sendo construídos na mesma medida
em que este mundo se constitui como universo particular. As representações na ES não
se limitam a formulações teóricas elaboradas segundo cânones acadêmicos e sob forma
de texto escrito. Os supostos morais, os princípios éticos e as idéias de uma natureza
humana e de um bem coletivo são produzidos tanto nas formas escritas através dos
diversos meios disponíveis (como visto no capítulo 2) como nos encontros, através de
práticas ritualizadas (como visto no capítulo 1).
A ES é também um autêntico campo de discurso (FOUCAULT, 1971),
60
estabelece um vocabulário comum e conexões particulares entre idéias e argumentos,
dos quais os profissionais compartilham de uma maneira geral, existindo, como visto no
capítulo 1, um esforço para a interiorização deste conjunto. A produção de um
vocabulário particular e de formas peculiares de organizar o mundo através de idéias
está ligada a uma visão de mundo e a uma ética.
Os espaços como as situações descritas no capítulo 1 se constituem como
formas de fazer com que este compartilhamento de vocabulário, argumentos e teoria
sobre a ES se transformem nos termos legítimos para a discussão do tema, além de
encenarem a outra forma de vida defendida pelos profissionais, de forma que assumem
o papel de comprovar suas idéias sobre a possibilidade de uma moral diferente.
É a partir de um consenso sobre certas idéias que pode haver e há discordâncias
e disputas em torno do que seja ou deva ser a ES.
Por outro lado, a produção de teorias e representações é marcada pela
diversidade própria do mundo da ES. Fragmentos de formulações que já existiam, de
teorias antigas são reorganizadas, de modo a produzirem um todo particular. A teoria
sobre a ES é uma bricolagem (LÉVI-STRAUSS, 1970), ou seja, a partir de fragmentos
de várias formulações, de experiências diversas, produz-se um todo que não é apenas a
justaposição de pedaços, mas um rearranjo que dá origem a um conjunto novo. Esta
bricolagem está associada aos diversos tipos de profissionais, organizações e espaços
institucionais da ES.
3.1. As três obras
Três obras marcam a produção teórica da ES. Elas são exemplares no sentido de
refletir as preocupações dos profissionais em estabelecer as fronteiras da ES. Apesar de
não serem os únicos livros a tratarem dos temas abordados, eles são condensadores das
preocupações e esforços de legitimação e construção de um corpo de idéias e
representações.
Uma hipótese, cuja confirmação exigiria um estudo mais aprofundado, é a de
que cada obra também seja exemplar no sentido de oferecer uma visão de quais eram,
em cada um dos momentos ou conjunturas em que foram produzidas, as principais
questões enfrentadas no mundo da ES.
Dos três, o primeiro livro a ser publicado foi A Economia Solidária no Brasil: A
61
Autogestão como resposta ao desemprego, em 2000, organizado por Paul Singer e o
então mestrando em sociologia pela USP, André Ricardo Souza. O livro é um coletânea
de artigos sobre experiências consideradas exitosas e também examina a constituição de
entidades e organizações que fazem parte do mundo da ES.
Esta obra é a primeira que se dedica a organizar aquilo que já vem ocorrendo no
Brasil e que passa a ser considerado como pertencente à ES. O surgimento da ES tem
uma complicada cronologia, que vai sendo construída a partir do reconhecimento de
supostas raízes históricas e experiências contemporâneas exemplares. Desta forma,
apesar de ser possível constatar que o surgimento da expressão ES (como veremos a
seguir) na segunda metade nos anos 1990 a narrativa histórica dos profissionais
incorpora fatos e experiências bem anteriores. Este é o caso de algumas das experiências
relatadas no livro. Um exemplo é o da Anteag. Esta entidade é apontada no livro (e em
outros livros, espaços e encontros posteriores) como um dos agentes de maior
importância no mundo da ES, inclusive tendo sido uma das organizações que mais
contribuíram para o “renascimento” da ES no Brasil. A Anteag foi criada em 1994 e não
utilizava a expressão ES para identificar o universo a qual pertencia.
No livro, existem relatos sobre experiências do MST, da Anteag, da CUT e das
ITCPs. As origens destas organizações e sua ligação com a ES estão presentes nos
textos que não deixam de fora o reconhecimento de outros atores, como as ONGs
PACS, IBase e FASE. Esta obra foi um dos primeiros espaços em que os diversos
agentes que constituem o mundo da ES foram considerados como pertencentes a um
mesmo universo, precedendo a primeira edição do Fórum Social Mundial e a criação do
GT-Brasileiro.
A obra também conta com uma pequena biografia de cada um dos vinte e três
autores. Nelas figura, em primeiro lugar a titulação universitária do autor (com exceção
de apenas um deles). Todos têm ensino superior completo e os que são pesquisadores na
universidade trataram, no textos, de temas ligados a sua produção acadêmica. Destes,
dezenove são pós-graduados ou pós-graduandos. Nota-se que, no casos em que as
titulações não são apresentadas, o autor tratou, no artigo, de um assunto que não tem
ligação com sua atividade profissional. Na biografia de três autores que são pós-
graduados, não consta esta informação. Eles são: Gonçalo Guimarães, Marcos Arruda e
Paul Singer. A ausência desta informação parece remeter ao fato de que a legitimidade
62
de suas palavras não reside nos títulos acadêmicos, ao menos no que diz respeito à
representação dos profissionais da ES. No caso de Gonçalo Guimarães, a sua titulação
universitária é omitida e apenas o cargo de coordenador nacional da Rede de ITCPs e de
coordenador da ITCP - COPPE já parecem ser credenciais bastante satisfatórias.
As biografias possibilitam compreender alguns aspectos deste mundo da ES. O
primeiro deles é aquele que já foi apontado no capítulo 2, qual seja da relação entre a ES
e o mundo da academia. A interseção entre as atividades acadêmicas e a produção de
teoria da ES fica bem clara nesta obra. O destaque aos títulos universitários e das
publicações dos autores é demonstrador de que o capital acadêmico tem influência na
legitimidade daquilo que os profissionais escrevem. A omissão das informações sobre
os títulos acadêmicos de lideranças carismáticas também sugere a negação de que
diferencial de capital educacional seja aquilo que os torna especiais.
Pode-se reconhecer também que a maioria dos relatos trata de experiências e
organizações dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, locais de
trabalho e atuação da maioria dos autores. No ano de publicação do livro, através da
atuação de seus profissionais enquanto teóricos e da presença de iniciativas e
empreendimentos, o mundo da ES estava concentrado nestes locais, tendo porém, nos
anos seguintes se espalhado por outros estados.
A segunda obra foi publicada em 2002, e se intitula Introdução à Economia
Solidária. O livro foi publicado pela Fundação Perseu Abramo, que pertence ao Partido
dos Trabalhadores. Nele, Paul Singer traça a história da ES e seus fundamentos teóricos.
Esta obra é a primeira que aponta aquelas que vão ser consideradas
posteriormente pelos profissionais as raízes mais antigas da ES, no século XIX. O
esforço de Singer, diferente da primeira obra tratada, é o de traçar uma história,
estabelecer marcos teóricos e relações com diversas outras formulações, como as do
socialismo utópico francês.
A busca por legitimidade está ligada, nesta obra, e provavelmente neste
momento da constituição do mundo da ES, ao estabelecimento das suas raízes e de que
idéias a ES é a herdeira legítima. Este livro inaugura o esforço em inserir tudo aquilo
que é considerado pelos profissionais como ES dentro de uma mesma história, ao
mesmo tempo fazendo com que os elementos mais remotos aos quais esta história está
ligada, sejam incorporados. Este duplo movimento produz uma “história da economia
63
solidária” (apesar de seus profissionais não usarem a expressão), estabelecendo-a como
núcleo possível de análise teórica.
A terceira obra é, como a primeira, uma coletânea de artigos e se chama A outra
economia, organizada por Antonio David Cattani. O livro é organizado em verbetes,
cada um tratando de conceitos e idéias que compõem o campo de discurso da ES. O
esforço do livro é, claramente, refinar os conceitos teóricos que estão relacionados à ES,
estabelecendo diálogo com várias teorias e organizando o arcabouço teórico.
Cada verbete é escrito por um ou dois autores e conta com uma bibliografia no
final. Nestas bibliografias, constam autores clássicos do pensamento social, documentos
e outros textos de autores do livro.
Também esta publicação conta com uma pequena biografia de cada autor onde
se destacam os títulos acadêmicos e publicações. A maioria deles é de acadêmicos
especialistas no assunto de que tratam no verbete.
Alguns dos verbetes presentes no livro são: Associativismo, Cadeias Produtivas
Solidárias, Capital Social, Desenvolvimento Local, Economia da dádiva, Economia do
trabalho, Economia Moral, Economia popular, Identidade e trabalho autogestionário,
Socialismo autogestionário, Solidariedade, Trabalho emancipado e Utopia.
A centralidade de Singer mais uma vez é apontada através, não apenas das
inúmeras citações a seus textos, mas pelo fato de que foi reservado a ele o verbete
“Economia Solidária”.
A preocupação não é mais, como no primeiro livro, estabelecer quem são os
legítimos participantes do mundo da ES, nem, como no segundo livro, quais as suas
raízes históricas, mas quais as suas filiações teóricas.
A partir da análise das três obras é possível reconhecer algumas características
da produção das representações e teorias sobre a ES. Primeiramente, os livros, e
especialmente a quantidade de coletâneas e livros coletivos, são um espaço de encontro
de profissionais, principalmente daqueles que têm sua atuação nas fronteiras entre a
academia e a ES.
Uma hipótese que surge a partir da análise destas três obras e da produção
teórica em livros sobre a ES é que estas não só fazem parte da construção da ES, mas
marcam preocupações diferentes em momentos distintos de conformação e organização
do mundo da ES. A primeira obra tem como principal preocupação identificar quem são
64
os legítimos porta-vozes e representantes da ES no Brasil, como entidades, organizações
e empreendimentos. Na segunda obra o esforço é de encaixar a ES numa história de
longo prazo. No caso, a legitimidade das idéias da ES está ligada à herança de
experiências e teorias antigas e no fato de que a sua existência teria coerência histórica.
No terceiro livro a preocupação central é a de estabelecer em que campo teórico e
discursivo mais amplo se inscreve a ES.
Se fosse possível apontar quais são as principais questões de cada obra e, talvez,
de cada momento da constituição do mundo da ES teríamos, respectivamente: “Quem
somos?”, “Quais são nossas raízes?” e “O que pensamos?”.
3.2. A origem da expressão “economia solidária”
A expressão ES possibilitou o junção de diversos tipos de experiência num
mesmo campo de idéias e o agrupamento de diversas entidades, instituições e pessoas
em torno de objetivos comuns.
A expressão não permite, apenas, a organização de fatos e agentes
contemporâneos a sua criação. Muitos empreendimentos e idéias que na época em que
existiam ou foram criados não eram reconhecido por este nome passam, a posteriori a
ser reconhecidos como pertencentes ao mundo da ES. O termo reorganiza uma
variedade de idéias, conceitos, ao mesmo tempo que se constrói a partir deles. Pode-se
dizer que o que a ES traz de original é justamente uma forma particular de organizar
elementos já existentes, como as experiências de educação popular, a ação da Igreja
católica junto a comunidades, as propostas de empresas autogeridas, o cooperativismo,
etc.
Não é fácil traçar a história da expressão “Economia Solidária” no Brasil. Os
profissionais privilegiam a construção de uma história, no Brasil, a partir do surgimento
de empreendimentos considerados “solidários”, sem que a invenção do termo seja
considerada significativa. Ao que parece, privilegiar, ou mesmo apontar as origens da
ES enquanto ligada a uma construção teórica, “intelectual” e sua relação com a
academia e com as ONGs poderia deslegitimar a ES como construção popular, a partir
dos pobres. No “Encontro Internacional de Economia Solidária”, perguntado
explicitamente sobre a origem do uso da expressão no Brasil, Paul Singer remete sua
origem aos franceses, no século XIX.
65
Paul Singer é o criador da expressão. Segundo Lechat (2000) a primeira
elaboração do autor, aparece num artigo publicado no jornal Folha de São Paulo de
1996 intitulado Economia solidária contra o desemprego. Neste artigo, publicado em
11 de julho, Singer trata da definição da ES como projeto de governo para a prefeitura
de São Paulo na campanha de Luiza Erundina, então candidata à reeleição e em cujo
primeiro governo Singer foi Secretário de Planejamento. A expressão ainda não tinha
assumido a forma que assumiria mais tarde nos textos do autor. Em 1998, no livro
Globalização e Desemprego: Diagnósticos e Alternativas, Singer já trata de elaborar
mais o conceito como proposta teórica de amplo alcance, capaz de mitigar o problema
da falta de emprego em termos mais gerais
A exemplo deste artigo de Singer, podemos constatar a relação entre a criação
do conceito e a formulação de políticas públicas. Da mesma forma, o governo de Olivio
Dutra no Rio Grande do Sul (1999 - 2002) teve participação importante na conformação
da ES, principalmente no estímulo ao debate sobre o tema a partir do I Fórum Social
Mundial (2001), realizado em Porto Alegre.
Outros termos, como socioeconomia, economia popular (ou economia popular
solidária), economia de comunhão, economia pluralista, economia social, também são
considerados como parte do campo de discurso da ES. Claramente, o uso de diferentes
termos não é acidental ou neutro. Diferentes visões estão implicadas no uso dos
diferentes termos, muitas vezes dando a forma a disputas em torno de projetos.
Várias outras concepções estão presentes, muitas vezes contrárias ao uso do
termo, mas não se negam a estarem representadas em espaços que levam este nome,
como os encontros, e as atividades dentro das universidades.
Mas também não é por acaso que a expressão Economia Solidária se afirma
como a principal. Ela é objeto de um certo consenso no que diz respeito à delimitação
de um mundo particular e de um tipo de proposta. Consenso necessário para que as
diversas disputas possam ocorrer no seu interior.
A suposta carga moral do termo solidariedade leva muitos a criticar seu uso.
José Luiz Coraggio, economista argentino que figura como uma das referências teóricas
no Brasil, por exemplo, discorda do termo ES porque este encarnaria uma perspectiva
fortemente moral e utópica ao centrar-se na contraposição ao capitalismo por seu caráter
egoísta. Para Coraggio, a expressão Economia do Trabalho revelaria melhor a
66
contraposição mais importante, que é ao capital (CORAGGIO in CATTANI, 2003).
Mas a discordância não impede a participação de Coraggio num evento que leve o nome
ES.18
Euclides Mance, por sua vez, reconhece na expressão ES uma ambigüidade
muito grande e considera a expressão “colaboração solidária”, cuja forma prática seriam
as “redes solidárias”, como mais adequada conceitualmente (MANCE, 2000).
Outras vezes, o uso de termos como “ socioeconomia” (ou socioeconomia
solidária) marca diferentes fontes teóricas. No caso da Rede Brasileira de
Socioeconomia Solidária, ele está claramente ligado à linha de trabalho da ONG PACS
e de seu maior teórico, Marcos Arruda. No caso, o centro da crítica dos profissionais da
ES é o caráter assumido pela economia como relação entre iguais, mediada por coisas,
trocadas livremente no mercado e marcada pela busca individual por vantagens
materiais. Por isso este termo - economia - deve ser substituído por outro termo.
No caso da Cáritas, não se abre mão do termo “popular” (Economia Popular
Solidária - EPS). Claramente relacionado à tradição da Igreja Católica, de forte ligação
com as comunidades e com os pobres, o termo “popular” marca as raízes e fundamentos
da participação da Cáritas na ES.
3.3. Os sentidos da economia e da solidariedade
O termo “economia” que compõe a expressão Economia Solidária assume, nos
diversos espaços de discurso (escrito ou não) dois sentidos. O sentido mais comum é
que “economia” se refere aos processos e relações sociais envolvidas na produção,
circulação e consumo de bens materiais e serviços, geralmente mediados pelo dinheiro.
Noutro sentido a “economia” é considerada como entidade separada do social,
autônoma, fria e desumanizada. Ganha o sentido daquele espaço em que prevalecem
relações de competição e concorrência, como equivalente de “mercado”.
No mundo em que vivemos, “economia” significa economia de mercado.Mercado significa viver da exploração voltada exclusivamente a obtercada vez mais lucro, baseando-se essencialmente na competição,concorrência e, conseqüentemente, na exclusão dos menos competitivos eperdedores. Assim, de certa forma, as palavras “economia” e
18 Um dos espaços em que o debate relatado ocorreu foi no evento já mencionado “Encontro Internacionalde ES” ocorrido na USP nos dias 25 e 26 de julho de 2003, organizado pela ITCP-USP e pelo NESOL(Núcleo de ES da USP)
67
“solidariedade” representam duas áreas antagônicas. ( VERARDO, 2003)
Alguns profissionais defendem que o sentido “original” e etimológico da
palavra economia seja resgatado, ou seja, o de administração da casa. Assim seria
possível acentuar o caráter mais “humano”. Neste sentido, não deixa de estar implícito
que a economia que se pratica hoje, seria uma perversão de um suposto sentido
primordial.
Este novo paradigma desponta, relacionando a economia com sua funçãooriginal, a ‘gestão da casa’, referida aqui a todas as casas em quehabitamos nesta existência, desde o nosso corpo até o planeta Terra,passando pelas comunidades que nos situam, o município, o estado, o paísa macro-região, o continente. (GT-BRASILEIRO, 2002:12)
O termo mais significativo que compõe a expressão “economia solidária” é
justamente o segundo, que qualifica o primeiro. Existem múltiplos sentidos implicados
na palavra “solidário(a)”. Ela reflete as muitas concepções sobre a ES que convivem
neste campo. Num certo sentido, os termos “solidário (a)” e “solidariedade” carregam
em si a polissemia e a pluralidade que caracterizam o mundo da ES.
Segundo a definição do dicionário Aurélio para “solidariedade” destacam-se três
matrizes de idéias: 1) “ Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses, às
responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade”; 2)
Relações de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns (…)”; 3)
(verbete “solidário”): “Que partilha o sofrimento alheio, ou se propõe a mitigá-lo”
(grifos meus) (FERREIRA, 1986:1607). Pode-se dizer que são estas, também, as três
matrizes de sentido atribuídas aos termos “solidariedade” e “solidário (a)” no discurso
dos profissionais da ES.
Estes três sentidos da solidariedade podem ser associados a três visões distintas
que se apresentam por vezes como concorrentes, por outras como complementares no
que diz respeito às representações sobre a ES. A estas três idéias seria possível associar,
respectivamente, as seguintes formulações: 1) O compromisso com a localidade
(desenvolvimento local) e com o meio ambiente, a superação do racismo e da
desigualdade entre homens e mulheres; 2) Associação das pessoas para produzirem ou
consumirem (praticar economia) de forma mais vantajosa, num sentido amplo, para
68
todos os envolvidos; 3) Oferecer àqueles que não têm acesso a trabalho e a meios de
vida necessários para a sobrevivência (“excluídos”), uma forma de obter renda e
pertencer a uma coletividade.
Pode-se perceber que o termo “solidariedade” assume diferentes sentidos de
acordo com aquele que o enuncia e com o espaço em que enuncia. Nos encontros, por
exemplo, muitas vezes a solidariedade é evocada num sentido que poderia se dizer
“ organizativo”. Ou seja, nos apelos para que todos tenham direito à palavra, para que
ninguém pegue muitos pãezinhos e deixem para os demais, e para que ninguém pegue
mais de um colchão para dormir. (Na quadra de esportes que serviu de alojamento na III
Plenária Nacional de Economia Solidária se lia uma faixa: “Ser solidário é dividir o pão
e o chão”.)
Além disso, o termo “solidariedade” pode assumir um sentido de ligação
transcendental entre os homens e deles com a natureza e o universo.
Em vez de conceber a nós mesmos como seres isolados, absolutamenteindividuais, vinculado apenas ao nosso próprios Ego, e aos nossosinteresses e desejos, perceber-nos como seres indissoluvelmenteinterconectados, entre nós, com a natureza e com todo o cosmos, pelanossa origem e destino evolutivo. (ARRUDA in BOFF, ARRUDA,2000:125)
Outro caráter da “solidariedade” mais comum em textos escritos e de explicação
sobre as origens da ES é o da solidariedade de classe. Na maioria das construções que
apontam a origem histórica da ES, uma das principais fontes é a organização sindical
(SINGER, 2002).
Uma análise mais geral das representações no mundo da ES, levando em
consideração sua diversidade e as práticas que deram origem a ela (como o trabalho das
ONGs e da Igreja Católica, por exemplo), pode perceber que a solidariedade é um
sentimento ou uma idéia que dá sentido a todo este universo. A solidariedade é aquilo
que permite colocar em relação os que são desiguais. A solidariedade não é apenas um
termo em torno do qual gravitam as representações deste mundo, mas a possibilidade de
sua existência como universo de diversidade.
Cabe ressaltar também que “solidário (a)” é uma qualificação que, em boa parte
das vezes, significa “ter relação com” ou “ser relativo a” Economia Solidária, ou seja,
não remete a um significado da palavra mas a uma relação com um conjunto de idéias e
69
práticas. Assim, é possível falar em “ software solidário”, “fundos solidários de
desenvolvimento local”, ou “cartão de crédito solidário” ( MANCE, 2003 b).
3.4. Narrativas sobre a origem da Economia Solidária
As narrativas sobre sua origem constituem um elemento central na ES. Elas não
se confundem com a origem da expressão “economia solidária”, nem mesmo com a
existência deste universo de profissionais e entidades que passaram a atuar em nome
dela. Elas tratam, como apontado anteriormente sobre o livro Introdução à Economia
Solidária, da determinação daquelas que seriam suas raízes sociais e históricas. É destas
representações, destes “mitos de origem” que tratarei a seguir.
A origem da ES é associada pelos seus profissionais à pobreza e à necessidade
de os trabalhadores sobreviverem ao desemprego. A ES surgiria como alternativa
possível à situação de necessidade imposta pelo capitalismo aos trabalhadores. Alguns
autores consideram, inclusive, que a solidariedade é um sentimento que surge apenas
quando existe uma situação extrema de necessidade: “Solidariedade é um sentimento
que se manifesta em tempos de crise.” (LOPEZ, 2000)
A partir desta concepção, os profissionais da ES traçam um paralelo entre as
condições vividas pelos trabalhadores europeus no fim do século XVIII e começo do
século XIX e os trabalhadores brasileiros nos anos 1980 e principalmente nos anos 1990
(SINGER, 2002), daí sendo possível mostrar aquilo que existe hoje como tendo suas
raízes na Europa há quase dois séculos. A partir deste paralelo, seria possível ainda,
demonstrar que as soluções que os trabalhadores buscariam, quase que naturalmente,
seriam justamente às ligadas à cooperação. Estando isso suposto, seria possível atribuir
o mesmo nome às práticas contemporâneas e àquelas mais antigas. Assim, aquelas
práticas e idéias defendidas no século XIX recebem o nome de “economia solidária”
hoje, apesar de não terem sido assim reconhecidas por seus ideólogos.
Apesar de a teoria de origem da ES destacar os fundamentos essencialmente
espontâneos de organização dos trabalhadores, também os teóricos do chamado
“socialismo utópico” são considerados uma das suas fontes. Trata-se principalmente de
Charles Fourier, Pierre Proudhon e, principalmente Robert Owen e suas propostas sobre
comunidades alternativas, organizadas segundo princípios igualitários (SINGER in
CATTANI, 2003).
70
A economia solidária não é a criação intelectual de alguém, embora osgrandes autores socialistas denominados ‘utópicos’ da primeira metade doséculo XIX (Owen, Fourier, Buchez e Proudhon etc.) tenham dadocontribuições decisivas ao seu desenvolvimento. A economia solidária éuma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra ocapitalismo. Como tal, ela não poderia preceder o capitalismo industrial,mas o acompanha como uma sombra, em toda sua evolução. (SINGER inSINGER, SOUZA, 2000:13) (grifo do autor)
A economia solidária do trabalho apresenta-se como um marco de resgatede inúmeras experiências do movimento das classes trabalhadoras que, nocoração da crise de hegemonia do capitalismo global e na busca dereconstrução de paradigmas de emancipação, combina as aspirações deliberdade com a materialidade da igualdade, através da revalorização daautonomia e da cooperação horizontal entre os cidadãos e cidadãs, comoprodutores e reprodutores da forma de riqueza material e imaterial nasdiferentes sociedades. (BOCAYUVA in GTBRASILEIRO, 2002)
A economia Solidária ressurge hoje como resgate da luta históricas dos(as) trabalhadores (as), como defesa contra a exploração do trabalhohumano e como propostas de superação ao modo capitalista de organizaras relações sociais dos seres humanos entre si e com a natureza.(documento guia para a discussão de preparação para a II PlenáriaNacional de Economia Solidária)
Uma das experiências que vai, por um lado, marcar historicamente as teorias
sobre o surgimento da ES e, por outro, tornar-se paradigma de organização solidária é a
dos chamados “pioneiros de Rochdale”. Esta experiência, criada em 1844 por
trabalhadores de Rochdale fornece, até hoje, os princípios de igualdade e democracia
considerados como base do cooperativismo “autêntico”. Os “Pioneiros Equitativos de
Rochdale” eram inicialmente uma cooperativa de consumo. A partir do dinheiro
depositado como poupança, foi possível criar inúmeras outras cooperativas, e absorver
outras mais. Mas a grande importância atribuída a este empreendimento é o lançamento
dos chamados “princípios de Rochdale” que forneceram as bases, segundo Singer, da
ES. (SINGER in CATTANI, 2003)
Segundo Singer, existe um lapso na história da ES. Entre o desenvolvimento de
experiências como a de Rochdale, as idéias de Owen e o nascente cooperativismo
operário o início do século XIX, há um grande período de “degeneração” do
cooperativismo, quando os valores fundamentais que nortearam seu surgimento teriam
71
sido esquecidos e as cooperativas teriam passado a ser mais uma forma de organizar o
capital. Singer atribui isto, em parte, à capacidade do capitalismo de absorver estes
trabalhadores, principalmente através do Estado de Bem-estar Social e de políticas de
pleno emprego.
Com o fim do Welfare State e o domínio das políticas neo-liberais,
principalmente na década de 1990, a ES ressurgiria. No Brasil, o desemprego e a
chamada reestruturação produtiva seriam os responsáveis por marginalizar e excluir
uma grande massa de trabalhadores que, sem outra opção (como os operário do século
XIX), buscariam outras formas de produzir e garantir trabalho e renda. Do ponto de
vista destas narrativas, um dos principais processos associados tanto ao neoliberalismo
quanto ao surgimento da ES no Brasil seria o grande número de empresas que fecharam
as portas. Algumas empresas falidas passam a ser geridas pelos trabalhadores, antes
seus empregados, constituindo empresas autogestionárias, um dos elementos de grande
importância na ES.
Principalmente no caso do Brasil, a ES apareceria como fruto do desemprego e
da exclusão, num certo sentido, como única opção disponível.
Com a crise social das décadas perdidas de 1980 e 1990, em que o país sedesindustrializou, milhões de postos de trabalho foram perdidos,acarretando desemprego em massa e acentuada exclusão social, aeconomia solidária reviveu no Brasil. (SINGER, 2002: 122)
Como em outras partes do mundo, o tema economia solidária é retomadono Brasil em meio a um contexto de crise do emprego e de reestruturaçãoprodutiva na economia capitalista. (IBASE, 2003)
No início da década passada, com a intensificação do processo de aberturada economia brasileira aos mercados internacionais, surgiu um novodesafio no mundo do trabalho: o desemprego estrutural ou tecnológico, ouseja, o desemprego sem retorno. (...) Foi neste processo de mudança queapareceram no Brasil, se não os primeiros, significativos projetos deautogestão, onde os trabalhadores passaram a assumir o controle dosativos das empresas de produção industrial e, principalmente, o controleda gestão. (ANTEAG in GTBRASILEIRO, 2002:18)
Existem dois tipos de argumentos que se articulam na busca por legitimidade no
que diz respeito às representações sobre as origens da ES. Um deles é o da antigüidade.
A ES não seria algo absolutamente novo, uma “invenção”, mas teria raízes. Articulado
72
a isto está o argumento da “naturalidade” com que surge a ES e de suas origens
populares por excelência.
Existe também um outro nível do “mito de origem”. Ele também não se
confunde, aos olhos dos profissionais da ES, com o surgimento da expressão, com sua
relação com a academia ou com a origem da ES enquanto suposto fenômeno histórico.
Menos comum entre os profissionais da ES, o centro desta narrativa gira em trono da
idéia de “movimento”.
Singer identifica como o “movimento pela ES” o conjunto de iniciativas e
organizações que tinham em comum a idéia de que empreendimentos econômicos
baseados em princípios igualitários poderiam ser um instrumento de combate à pobreza
e ao desemprego (SINGER in SINGER, SOUZA, 2000 b: 123). A idéia de
“movimento”, no caso, também remete à idéia de reivindicação e à inserção deste
debate no campo político.
A campanha Ação da Cidadania Contra a Fome e pela Vida que teve início em
1992 também é destacada por Singer como um espaço importante para o surgimento (ou
“ressurgimento”) da ES no Brasil. Segundo o autor, já em 1993 a campanha toma novos
rumos, assumindo que não bastava distribuir alimentos, mas era preciso gerar trabalho e
renda para os pobres (SINGER in SINGER, SOUZA, 2000 b). A influência é clara
quando se trata da criação das ITCPs com o financiamento pela Finep e Fundação
Banco do Brasil no âmbito de um Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e
pela Vida (COEP) da campanha.
A criação da Anteag, em 1994 também seria um momento importante, pois pela
primeira vez se colocaria, a partir de uma entidade organizada, a questão do controle
pelos trabalhadores de empresas falidas. A ação da Cáritas através dos PACs seria, da
mesma forma uma das sementes do movimento pela ES.
Outro ponto que aparece como marco na narrativa dos profissionais sobre o
“movimento” pela ES é a inclusão deste tipo de proposta em vários programas de
governo, já em 1996 (eleições municipais), quando não havia ainda espaços nacionais
de articulação em torno da ES e que a maioria das entidades ainda não usavam o termo
ES, mesmo que já praticassem algumas das atividades que posteriormente seriam
classificadas como de ES.
73
3.5. Economia Solidária como teoria econômica
Os profissionais da ES consideram-na como um teoria econômica, ou seja,
baseada nas considerações acerca das relações que são construídas tendo como base as
formas de produzir, fazer circular e consumir produtos e serviços.
Este fato, como dito anteriormente, se comprova na medida em que o centro da
representações acerca do que seja a ES se encontram nos empreendimentos solidários. É
a partir destas representações que os profissionais da ES constróem todo uma arcabouço
de argumentos e idéias em que baseiam suas concepções sobre a possibilidade de uma
outra economia.
Seguindo as análises de Hirshman e Dumont, já apontas, pode-se buscar a
compreensão da ES como teoria econômica. Seguindo as análises de Hirshman, deve-se
atentar, primeiramente para o fato de que a teoria econômica está baseada em
concepções sobre a essência dos humano, as motivações que levam pessoas agir de certa
forma e não de outra. Como mostra o autor, as estas concepções são históricas e
marcadas por uma relação com a prática econômica. Dumont oferece os instrumentos
para que a teoria econômica não seja abordada a partir de supostas separações entre a
política, a ciência e a ideologia. É a partir deste arcabouço que é possível entender de
que forma a ES se constrói como teoria econômica.
A ES nega a concepção de que os seres humanos se comportariam naturalmente
com base no desejo de maximizar o seu lucro de forma absolutamente racional e
individualista. Este comportamento seria fruto não de uma suposta essência, mas do
capitalismo que, ao contrário, vai contra a natureza essencialmente solidária. Esta
concepção às vezes está baseada no argumento de que a natureza funciona de forma
solidária e cooperativa.
A comprovação disso seria o fato de que, quando “excluídos” do capitalismo, os
indivíduos tenderiam naturalmente à cooperação (como apontado anteriormente, um
argumento central da ES).
Mas o “homem solidário”, não diferiria do “homem econômico” por sua falta de
racionalidade. A racionalidade solidária estaria no fato de que só é possível ao indivíduo
estar bem quando o mundo a sua volta também está. Além disso, residiria no fato de
que, para ser feliz, não basta ao homem ter dinheiro, mas precisa pertencer a uma
comunidade, ter laços de afeição pelos que são próximos e desfrutar de uma segurança
74
que só o sentimento da solidariedade, num sentido forte, poderia oferecer.
A preocupação com o meio ambiente também se insere na racionalidade do
homem solidário. Para os profissionais da ES não existe nenhuma racionalidade em, em
nome do lucro, destruir a ambiente que o cerca, já que esta destruição impediria o
próprio usufruto do lucro.
Diferente do argumento da teoria econômica que justifica o capitalismo, a ES
supõe que o interesse comum deve ser buscado, mas não porque ele seja uma pretensão
que fugisse da natureza dos homens, mas porque esta natureza estaria reprimida.
Os profissionais da ES vão encontrar as fontes da desigualdade e da pobreza,
não nas supostas falhas exteriores ao capitalismo, mas na sua própria lógica que tende a
excluir.
Os fundamentos dos argumentos da ES não diferem em natureza dos argumentos
da teoria econômica que justifica o capitalismo. Ou seja, recorre da mesma forma a uma
suposta natureza humana, às práticas econômicas como estruturadoras da sociedade e
capazes de produzir bem estar para todos. Pode-se dizer que a ES como teoria
econômica é uma tentativa de “jogar no mesmo campo” do suposto adversário.
Os profissionais da ES reconhecem que as relações econômicas são a base de
um sistema injusto. Também reconhecem que as relações econômicas se realizam nas
unidades econômicas (empresas, bancos, etc). A partir disso, compreende-se a
centralidade dos empreendimentos, que como locus da ES, podem transformar as
relações econômicas que por sua vez podem construir a base da um sistema justo.
3.6. Práticas econômicas
O centro das propostas da economia solidária é o sistema econômico. Existem
alguns empreendimentos que são considerados como pertencentes ao âmbito da ES.
Vistas como meios da luta política por muitos de seus profissionais, as formas
defendidas não são caracterizadas por aspectos formais. Poderia-se dizer que a
cooperativa, aliada ao princípio da autogestão, é um dos núcleos do ideário da ES e de
sua construção enquanto teoria econômica. A Anteag parece ser a única entidade que
possui um critério explícito, objetivo, para considerar uma empresa como
autogestinária. Apesar disso existem alguns princípios consensuais que caracterizam um
empreendimento solidário, e existem também critérios para definir o que não é
75
solidário.
3.6.1. Cooperativas
As cooperativas são o paradigma principal da ES. Elas seriam o locus do
trabalho coletivo, não alienado, voltado não para o lucro, mas para a satisfação de cada
um e da comunidade. Na cooperativa existiria a realização do sentido da solidariedade.
É na cooperativa também que os valores como democracia participativa, ética e
confiança são fundamentais.
É também a partir das cooperativas que se produz um importante recurso de
legitimação por parte dos teóricos. A antigüidade da ES é atrelada à existência, há
muito, de cooperativas.
A ES é vista como o “outro” da produção capitalista. Enquanto na empresa
capitalista o poder de decisão se define a partir da quantidade de ações e só os donos
podem decidir, além de, é claro. os trabalhadores não terem qualquer poder, na
cooperativa, enquanto ideal a ser atingido, todos tomam as decisões coletivamente, cada
pessoa tem direito a um voto e o lucro é proibido.
Hoje existem muitos empreendimentos que se chamam cooperativas. Mas para
os profissionais da ES nem todas as cooperativas são cooperativas de verdade. As falsas
cooperativas seriam aquelas que não seguem os princípios do cooperativismo autêntico
inaugurado pelos “pioneiros de Rochdale”. A marcação desta diferença é fundamental.
Uma cooperativa não é, para os militantes da ES, apenas uma forma jurídica. A
cooperativa é uma forma de organizar o trabalho e a produção, mas com bases e
princípios morais e ideológicos definidos.
As “ coopergatos” ou “ cooperfraudes”, segundo os profissionais da ES, são
cooperativas apenas no nome, mas não seguem os princípios cooperativistas. À ES
pertenceriam apenas as cooperativas “autênticas” ou “de novo tipo”. A aparente
contradição entre os termos “autêntico” e “de novo tipo” se deve às duas formas de
explicar o surgimento da ES. A “autenticidade” se remeteria à origem mais longínqua e
aos “princípios de Rochdale”. “Novo tipo” remeteria ao cooperativismo chamado
“oficial”, que existiria hoje no Brasil e do qual a ES quer se distinguir.
76
3.6.2. Gestão pelo trabalhadores de empresas falidas (ou autogestão)
Para os profissionais da ES este tipo de experiência surge no Brasil na década de
1990 devido ao grande número de falências. Depois da empresa falida, os trabalhadores
passam a gerenciá-la de forma autogestionária. Semelhante ao fenômeno das
“recuperadas” na Argentina, o começo deste processo no Brasil é considerado como um
dos marcos do surgimento da ES no Brasil.
Este processo tem sua origem principalmente na falta de perspectiva de os
trabalhadores de uma empresa falida terem oportunidade de conseguir outro emprego
aliado a pouca chance de receberem aquilo que a empresa deve a eles no que diz
respeito aos direitos trabalhistas de forma rápida. Por isso alguns grupos de
trabalhadores optam por aceitar a estrutura da fábrica (geralmente são fábricas) como
pagamento dos direitos trabalhistas, se associam em forma de cooperativa e continuam a
produção.
A autogestão é um tipo de experiência que suscita muitos debates e levanta
questões importantes. Uma delas é a de se tentar estabelecer uma relação igualitária de
trabalho no lugar por excelência da relação capitalista: a fábrica. Além disso os
trabalhadores que produziam na empresa capitalista, na maioria das vezes são os
mesmos que trabalham depois na autogestão, o que levanta questões sobre a
possibilidade de mudança de uma mentalidade de empregado a uma mentalidade de
cooperado. Estes debates podem ser vistos principalmente nas questões reconhecidas
como “gargalos” pelos profissionais da ES (dificuldade em convencer os trabalhadores
que trabalhar “sem carteira assinada” pode ser interessante) e nas dificuldades
apontadas principalmente pela Anteag em construir uma “nova cultura do trabalho”
(ANTEAG, 2000)
3.6.3. Clubes de troca e Moeda Social
Através dos clubes de troca é possível estabelecer intercâmbios de bens e
serviços sem a mediação de dinheiro oficial.
Estes clubes têm um número definido de participantes e regras para a
participação. Existem vários sistemas diferentes. No Brasil são poucas as experiências
de clubes de troca. Muitas vezes eles ocorrem associados a outros tipos de
empreendimento, como cooperativas. O clube de troca tem como objeto imprimir
77
também à esfera da circulação, um caráter solidário. Sem a mediação do dinheiro oficial
é possível estabelecer outros parâmetros para a troca, que não o do lucro pelo lucro.
A moeda social também se inscreve na esfera da circulação das mercadorias e é
um instrumento complexo, que exige uma organização maior e mesmo um
conhecimento contábil significativo. As moedas sociais circulam também em grupos
restritos e podem ou não ter seu equivalente em dinheiro oficial. Os clubes de troca e as
moedas sociais suscitam discussões complexas sobre valor e sobre as possibilidades de
estabelecer trocas “solidárias” em grande escala.
3.6.4. Consumo ético (ou solidário)
Faz parte do projeto da ES imprimir um caráter “militante” ao consumo. É claro
que o estímulo à compra de produtos “solidários” tem como uma das finalidades a
viabilização financeira dos empreendimentos, mas o sentido do consumo solidário (ou
ético, ou consciente) não se restringe a este fator. Na verdade, o que se propõe é que o
consumo seja tão engajado quanto a produção cooperativa.
A idéia de tornar o consumo uma ferramenta política não é nova. Muitos
movimentos políticos já se utilizaram da proposta de consumo engajado. Ultimamente,
por exemplo, uma das bandeiras dos diversos movimentos sociais que se contrapuseram
à guerra no Iraque era o boicote a produtos americanos, notadamente a Coca-cola e o
McDonald’s, considerados ícones da cultura norte-americana e o boicote aos produtos
da Nike, denunciada por utilizar mão-de-obra infantil, semi-escrava na produção de
tênis na Indonésia19. Por outro lado, associações de consumidores tampouco são
novidades (principalmente na Europa). As vantagens de compras em maior quantidade,
fazem com que se formem grupos que podem comprar juntos alguns produtos e,
eventualmente, até diretamente com os produtores, obtendo vantagens financeiras.
O que a ES propõe é que o consumo, coletivo ou não, seja militante. Ou seja,
que se torne relevante para os consumidores a forma como aquela mercadoria é
produzida. Num sentido, pode-se facilmente associar esta idéia aos selos de qualidade,
muitas vezes adotados por associações de produtores ou por governos (geralmente
estimulados por aqueles) com o objetivo de fazer com que o comprador reconheça um
19 Nota-se aí também que não se trata meramente do poder de provocar perdas financeiras às empresas,mas numa forma de negar idéias através dos seus símbolos.
78
valor “a mais” num produto atestado.
A proposta de consumo ético é a de tornar um valor importante agregado ao
produto, a forma como se dão as relações de trabalho e de troca que o fizeram chegar a
suas mão. Note-se que, mesmo os selos “sociais” (trabalho infantil e poluição), estão
atestando valores estabelecidos e, eventualmente, regras legais. O consumo ético, no
Brasil, não conta com meios que permitam critérios quantificáveis ou reguláveis por
leis.
Na proposta de consumo solidário o ato de comprar passa a ser ativo, podendo
se tornar uma forma de solidariedade e de protestar ao mesmo tempo. Um aspecto
relevante do consumo ético é fazer com que qualquer pessoa possa ser parte da ES
mesmo que diretamente não esteja associada para este fim.
Como já foi mencionado, os selos são um instrumento importante para atestar
certas qualidades a mercadorias. Também é uma importante reivindicação dos
profissionais da ES que se crie (principalmente através da SENAES) um selo de ES.
Marcar os produtos solidários seria um recurso de propaganda e divulgação da ES,
inclusive porque, por causa da escala de produção muitas vezes reduzida, produtos
solidários podem ser mais caros. Para convencer a comprar um produto mais caro é
preciso mostrar que este possui uma qualidade especial.
O ato de consumo, portanto, não é apenas econômico, mas é tambémético e político. Trata-se de um exercício de poder pelo qualefetivamente podemos apoiar a exploração de seres humanos, adestruição progressiva do planeta, a concentração de riquezas e aexclusão social ou nos contrapor a esse modo lesivo de produção,promovendo, pela prática do consumo solidário, a ampliação dasliberdades públicas e privadas, a desconcentração da riqueza e odesenvolvimento ecológica e socialmente sustentável. Ao selecionar econsumir produtos identificados pelas marcas das redes solidárias nóscontribuímos para que o processo produtivo solidário encontre seuacabamento e que o valor por nós dispendido em tal consumo possarealimentar a produção solidária em função do bem viver de todos queintegram as redes de produtores e consumidores. (MANCE, 2000)
3.6.5. Comércio Justo (Fair Trade)
O comércio justo ou fair trade diz respeito ao comércio internacional. Seu foco
principal são as relações comerciais entre países pobres e países ricos. Esta proposta
79
parte da idéia de que se deve pagar ao produtor um “preço justo” pelos seus produtos.
Além disso as relações comerciais seriam também produtoras de desigualdades, sendo
possível minimizá-las transformando o comércio numa forma de solidariedade aos
países pobres e seus produtores pobres. Este tipo de comércio tem como base a
produção em países latino-americanos e africanos e o consumo principalmente na
Europa, mas também nos Estados Unidos e Canadá.
Existem várias entidades e ONGs que praticam o comércio justo, importando,
elas mesmas os produtos dos países sub-desenvolvidos para países desenvolvidos.
Existe uma organização internacional que certifica os produtos do fair trade através de
critérios que têm como centro as condições sociais em que aquelas mercadorias são
produzidas, mas também a qualidade dos produtos. Existem lojas de produtos do
comércio justo principalmente na Europa. A maior parta do comércio é de produtos
agrícolas e artesanato. No Brasil existe uma loja de comércio justo em São Paulo.
O comércio justo seria a internacionalização das trocas solidárias, com um
caráter claro de solidariedade entre países desenvolvidos do Norte e países pobres do
Sul, já que uma das críticas da ES é justamente a desigualdade entre o norte rico e o sul
pobre.
3.6.6. Crédito Solidário
Geralmente se dá o nome de crédito solidário ao crédito que é dado a
empreendimentos solidários. Ou seja, a origem em si do dinheiro não é considerada,
mas o alvo do crédito, podendo partir de governos, de entidades como a ADS - CUT ou
de bancos.
Porém, os profissionais da ES vêem a possibilidade de construir um sistema
financeiro solidário a exemplo dos bancos solidários europeus. Estes bancos contam
com capital de trabalhadores, que depositam seu dinheiro e são ao mesmo tempo donos
do banco, podendo decidir a que tipo de empresa e iniciativa se destinam seus
investimentos (também podendo ser chamados de cooperativas de crédito). Estima-se
que em alguns países da Europa uma parte significativa do sistema financeiro funciona
desta forma (SINGER, 2002).
Constituir um sistema financeiro solidário seria uma forma de completar as
“cadeias produtivas solidárias”, possibilitando que toda uma parte da economia só
80
circulasse em empresas e associações solidárias.
Segundo relatos, antes do golpe militar em 1964, a maioria das cooperativas que
existiam no Brasil era de crédito. Mudanças nas leis que regiam o sistema financeiro
extinguiu ente tipo de iniciativa. Uma das reivindicações é uma mudança nas leis sobre
sistema financeiro que permita a existência de bancos solidários, o que seria importante
para que a ES tivesse existência autônoma.
3.7. A construção da crítica e os “gargalos”
Neste item tratarei da representações no mundo da ES como crítica ao
capitalismo tendo como base as reflexões de Boltanski e Chiapello no livro Le Nouvel
Esprit du Capitalisme (1999). As análises dos autores serve como base para reconhecer
a ES como crítica ao capitalismo, ao mesmo tempo que permite organizar seu arcabouço
argumentativo.
Como visto anteriormente é comum que os profissionais da ES atribuam o
surgimento da ES com o desemprego e à "exclusão". É recorrente o argumento de que o
surgimento destas práticas alternativas se dá quase que naturalmente como resposta a
demandas essenciais e mesmo de sobrevivência. Ou seja, a fonte da crítica é
apresentada como fruto natural do capitalismo. Neste sentido a crítica é apresentada
como a busca de solução para problemas imediatos daqueles que estão "fora". Um dos
fortes argumentos que vão dar força à crítica é justamente o da naturalidade com que
surge a ES. O fato de a ES nascer de uma suposto não cumprimento da promessa do
capitalismo em oferecer bem estar para todos seria uma forma de apontar uma
contradição demolidora, como se o capitalismo fornecesse ele mesmo as provas de sua
ineficiência.
Os profissionais da ES, como visto anteriormente, reconhecem que as relações
econômicas são a base do sistema injusto e por isso podem ser também a base de sua
crítica.
O que fica bastante explícito na teoria na ES é que existe um reconhecimento de
que exista um "espírito do capitalismo", no sentido apontado por Weber (2001). Isto
significa que faz parte do instrumental argumentativo da ES a percepção de que o
capitalismo possui dimensões diversas e que é preciso também disputar no terreno das
motivações pessoais. Pode-se reconhecer isso a partir de uma tentativa de, também na
81
crítica por parte da ES, propor um outro "espírito". Assim, como aponta Weber e
reafirmam Boltanski e Chiapello, uma suposta compensação pelo lucro não são
suficientes para que o capitalismo exista e seja justificado, também não é no plano dos
ganhos materiais que a argumentação da ES se constrói. Talvez seja uma das
características mais marcantes da ES a tentativa de associar a mudança social
justamente a diversos níveis e esferas: do pessoal ao nacional e internacional, do local
ao global.
Como visto anteriormente em relação à ES como uma teoria econômica que
tenta se contrapor à teoria econômica que justifica o capitalismo, da mesma forma pode-
se dizer que os profissionais da ES propõem um “espírito da economia solidária” a
partir da confrontação com as principais “argumentos” do capitalismo.
Boltanki e Chiapello mostram que as críticas ao capitalismo correm o risco de
endogenização. Reconhecem na capacidade de o capitalismo de absorver as críticas sua
maior vitalidade e capacidade de renovação. Assim, a crítica pode servir para fortalecer
o capitalismo, renovando-o.
É interessante apontar que os profissionais da ES têm preocupação com o fato de
suas reivindicações por um mundo mais justo sejam incorporadas e a crítica seja aos
poucos esvaziada. Henri Rouillé d'Orfeuil mostra que esta é uma questão delicada. A
partir do momento, por exemplo, em que várias empresas cumprem exigências dos
movimentos de crítica (movimento sindical, ambientalista, etc) e se tornam "empresas
socialmente responsáveis" elas parece não só anular a crítica, mas "virar o jogo". É
assim que d'Orfeuil coloca o problema:
Sem acabar com a convicção real de inúmeros atores, dirigentes ouempregados, a empresa cidadã parece ser apenas um argumento de apoiopara demonstrar que o lucro, de um lado, e a defesa dos interesses dosempregados de outro, são criadores de interesse geral. (D'ORFEUIL,2002:120)
Dois outros conceito apontados por Boltanki e Chiapello ajudam a compreender
as representações no mundo da ES. Eles são as “ordens de indignação” e as “provas”.
A crítica ao capitalismo pode se dar a partir de quatro ordens de indignação. A
primeira é de o capitalismo como fonte de desencantamento e inautenticidade, a
segunda do capitalismo como fonte de opressão, a terceira como fonte de miséria e
82
desigualdade e, por último, como fonte de oportunismo e egoísmo pessoais. Os autores
fazem ainda um distinção entre dois tipos de crítica: a crítica artística e a crítica social.
A crítica artística estaria associada principalmente à idéia de desencantamento e
inautenticidade por um lado e da opressão característica do modo de vida burguês por
outro. Por sua vez, a crítica social, herdeira do socialismo e posteriormente do
marxismo, está associada às seguintes fontes de indignação: o egoísmo gerado na
sociedade burguesa e a desigualdade, ou seja, a existência de miséria numa sociedade
tão rica.
Podemos dizer que a ES se inscreveria na segunda categoria: a da crítica social.
Apesar disso, ela também apresenta traços das duas outras fontes de indignação
associadas à crítica artística. As quatro fontes de indignação, ou quatro pontos principais
de crítica são um instrumento muito interessante quando se analisa as diferenças entre
os diversos tipos de entidades e profissionais da ES. Pode-se reconhecer na diversidade
de sua abordagem, apontada anteriormente, a maior ou menor importância de cada
ordem de indignação.
O conceito de prova pode ser entendido num sentido parecido com o sentido
jurídico, mas também no sentido de desafio e crítica: pôr a prova. No que diz respeito às
provas, podemos lançar luz a idéia muito presente no mundo da ES sobre a necessidade
de a prática estar de acordo com a teoria. Quando argumentam estar colocando em
prática a solidariedade que defendem na teoria (durante os encontros, por exemplo) a ES
"prova" que, sim, é possível que outros princípios, diferentes dos princípios do
capitalismo, ordenem a relação entre as pessoas, o que iria de encontro ao que parece
ser uma das principais “provas” do capitalismo: os homens são naturalmente
competitivos e agem unicamente de acordo com seus próprios interesses, ou seja, o
capitalismo é “natural”. Desta forma o capitalismo é posto “a prova” através da própria
existência da ES, supostamente desafiado pela possibilidade de existir outra forma de
relação entre as pessoas diferente da capitalista com valores como egoísmo,
estranhamento do outro e hierarquia social.
Um ponto muito interessante do trabalho de Boltanski e Chiapello e que serve
como base para a reflexão sobre a ES é o da mudança do conceito de exploração para o
conceito de “exclusão”. Os autores vão mostrar que o conceito de exploração vem sendo
posto de lado em favor do de exclusão (Boltanski e Chiapello, 1999: 426). O uso do
83
conceito de exclusão estaria inserido numa forma de crítica que abre mão da acusação,
negando o conceito de luta de classes. Parece ser o caso da ES, que tem como inimigo a
“globalização excludente”, a competição, o lucro acima de qualquer coisa, mas não tem
um inimigo personalizado como classe. Esta mudança se apresentaria também como
rejeição às formas "tradicionais" de fazer política como no partidos políticos
(burocratizados e hierarquizados) e nos sindicatos, rejeição esta que pode ser
reconhecida em várias dimensões do mundo da ES.
Os profissionais da ES chamam de "gargalos" aquelas questões que eles
consideram problemáticas e como questões a serem enfrentadas. Nas resoluções de
encontros é comum que haja um seção com este nome. Os “gargalos” são as questões
sobre as quais geralmente há maiores debates e discordância entre os profissionais. Os
“gargalos” não deixam de ser aquelas questões que se apresentam como problemáticas
também no interior do mundo da ES, representando algumas dificuldades em construir
consenso.
O trabalho formal, com carteira assinada, vem diminuindo sensivelmente no
Brasil. Esta é uma das justificativas apresentadas pelos defensores da ES para a
constituição da nova economia como uma forma de oferecer trabalho e renda aos
desempregados. Isto estabelece o primeiro “gargalo”. O trabalho com carteira assinada
oferece garantias sociais (como aposentadoria etc) que o trabalho cooperado não
oferece. Assim, o trabalhador “solidário” ficaria em certa desvantagem. Este dilema se
apresenta com mais força aos sindicalistas, que têm como objeto de disputa justamente
os direitos trabalhistas e o aumento do emprego.
Uma das questões mais debatidas, principalmente no que diz respeito às
cooperativas, é a racionalidade necessária ao bom desempenho empresarial
(competitividade) e a sua relação com o caráter “solidário” da empresa. Os
investimentos, a divisão de trabalho e a própria gestão financeira devem estar de acordo
com os princípios democráticos, mas sem deixar de ser uma empresa inserida no
mercado. Como aponta Paul Singer, muitos críticos da ES dizem que ou a cooperativa
dá errado e acaba, ou se transforma numa empresa capitalista (SINGER, 2002).
Nos clubes de troca e em relação às moedas sociais o “gargalo” da convivência
entre a ES e o mercado também aparece. Os clubes de troca e as moedas sociais têm
alcance restrito a um número determinado de pessoas e mercadorias. É difícil que nestes
84
sistemas haja total independência em relação a bens e serviços que circulam no
mercado. Assim, há sempre uma tensão entre os sistemas, que pode ser sentida no
próprio dia-a-dia de seus participantes. Mais uma vez aparece o problema do estímulo à
participação já que se reconhece uma grande resistência em não ter em mãos dinheiro
oficial.
Também relacionada a esta polêmica está a discussão das condições e
possibilidades de convivência entre dois sistemas econômicos aparentemente
conflitantes. Não há duvida de que ES, pelo menos por algum tempo, possa conviver
sim com a economia capitalista. A questão é que a ES poderia se apresentar como
alternativa de transformação gradativa e ir se “infiltrando” nas áreas anteriormente
dominadas apenas por empresas capitalistas, ou então, ser um acessório (provavelmente
muito útil ao capital) da economia de mercado, responsável por afastar da completa
marginalidade pelo menos uma parte do grande contingente dos chamados excluídos.
Ao que parece, este questão é pano de fundo para muitas das divergências e críticas
apresentadas e também da elaboração dos profissionais. Henri d’Orfeuil inclusive
aponta que uma das “acusações” feitas aos defensores da ES é que estes seriam os
socialistas utópicos de hoje, acreditando que é possível mudar o mundo a partir do
reconhecimento de interesses gerais, comuns a todos (D’ORFEUIL, 2002).
A questão da escala também é apontada como problemática. Quando um
empreendimento capitalista tem êxito, ele cresce, expande as suas atividades, se
diversifica e emprega mais pessoas. No caso de empreendimentos cooperativos ou
autogestionários isto é bastante crítico. Existiria um risco de que relações de trabalho
assalariadas sejam inseridas nos empreendimento solidários, o que vai contra os
princípios genuínos da cooperação. Existe também um princípio segundo o qual os
empreendimentos não podem crescer além daquilo que seus cooperados são capazes de
administrar.
Um outro “gargalo” é justamente a relação com os gestores públicos e com as
políticas públicas, reveladas em vários conflitos, já apontados.
Conclusões
As teorias e representações presentes no mundo da ES revelam seu caráter
diverso, composto por um grande mosaico de diferentes elementos e pressupostos
85
teóricos. O termo ES e alguns princípios mais gerais, porém, são compartilhados,
fazendo com que haja um acordo mínimo que permite uma identificação entre os
diversos profissionais e entidades.
As representações no mundo da ES se assentam em pressupostos morais, de
idéias sobre o que é a essência humana e o que deve ser a relação entre as pessoas e
delas com o mundo que as cerca, concepções estas nas quais se baseia a construção da
ES como teoria econômica. Estes supostos são articulados através das relações
“econômicas”, o que gera uma conotação particular do termo “economia”.
A “solidariedade” como centro da ES é o termo que transforma outros a ela
associados. A polissemia que o termo “solidariedade” assume é a polissemia do próprio
mundo da ES. Os sentidos da “solidariedade” são tão diversos quanto o são os
profissionais da ES, as organizações, as formas de pertencimento etc. Mas a expressão
“economia solidária” parece gerar acordo sobre quais são os inimigos: a exclusão, o
egoísmo e a busca sem limites pelo lucro.
O trabalho permanente de produção de um vocabulário comum e da construção
de uma história que atribuam coerência a ES, inclusive como teoria econômica são uma
marca no que diz respeito às representações da ES.
86
CONCLUSÕES
A fluidez, a polissemia e ambigüidade, a diversidade e ausência de fronteiras
explícitas são as principais características do mundo da ES, assim como sua condição de
existência.
Os eventos que congregam os diversos tipos de profissionais são condensadores
de várias destas características e condições sociais de existência. A partir deles é
possível reconhecer quais são as classificações e hierarquias presentes, reconhecidas ou
veladas, quais as representações operadas pelos indivíduos que participam da ES.
As práticas observadas durante os eventos são uma fonte para que se reconheça
quais os princípios de organização do mundo da ES. O uso intenso de formas
ritualizadas e teatralizadas de produção de coesão, revelam o esforço em criar
identidade, num espaço em que a diversidade é a principal marca. O círculo é o símbolo
maior das idéias sobre ausência de hierarquia e comunhão.
As representações sobre a ligação com a terra e a nação, por exemplo, mostram
o esforço em se reconhecer dentro de um campo simbólico que não deixa de remeter às
origens múltiplas da ES no Brasil.
A plasticidade das formas de participar da ES, durante os eventos, e
reconhecidas na atuação dos diversos profissionais, confere à ES uma dinâmica que se
estende às formas de organização das entidades, e às formas de comunicação e de
interrelação entre os indivíduos e coletividades.
Existem diferenças reconhecidas como legítimas, outras que são festejadas e
objeto de orgulho. Outras devem ser superadas, outras são negadas. A diferença parece
ser a própria condição de existência da “solidariedade”, na medida em que é um
sentimento que une pobres e ricos, educados e deseducados, homens e mulheres.
As diferentes identidades presentes no mundo da ES parecem ser superadas
pelas lideranças carismáticas, ou talvez seja esta justamente a condição para que
exerçam este papel. As figuras carismáticas possuem capitais e agem de forma a serem
reconhecidos como pessoas com qualidades extraordinárias, cujas palavras têm especial
valor e cujo comportamento é exemplar.
As fronteiras da ES são espaços de interseção com os mundos da academia, do
Estado e das ONGs. Vários profissionais da ES atuam neste mundo transitando entre
87
esses espaços e sendo elementos de comunicação entre eles. Isto faz com que a ES seja
um elo de comunicação entre diversas esferas sociais.
A interseção entre Estado, academia e ONGs não se faz sentir apenas na ES.
Este é um espaço particular, onde é possível acumular capitais e adquirir legitimidade
para além da ES.
As maneiras existentes de circulação de informações também são muitas: desde
jornais, revistas, livros, panfletos até, e intensamente a Internet, os fóruns, os encontros,
etc. A Internet parece ser um instrumento especialmente afim à própria forma em rede
de organização da ES.
As teorias e representações presentes na ES são uma bricolagem, uma junção de
diversos elementos preexistentes, reorganizados num todo novo e particular. Mais uma
vez, a diversidade de profissionais e organizações se faz sentir.
As representações e teorias da ES se assentam em idéias sobre como o mundo
funciona hoje, qual a essência humana, sobre a história e, finalmente, sobre qual seriam
os princípios capazes de articular todos estes elementos de forma a produzir um projeto
de mudança social. Na construção da ES como teoria econômica e como crítica ao
capitalismo estas representações também estão implicadas.
Os “gargalos” reconhecidos pelos profissionais da ES não deixam de tentar o
observador a levantar algumas questões. A principal delas é a complexidade da relações
entre o Estado e os chamados movimentos sociais. Principalmente na conjuntura do
primeiro ano do governo de Lula (2003), a partir do que se pôde perceber em relação à
ES caberia se perguntar sobre as formas de transformar demandas e reivindicações em
políticas de governo se é que isso é possível, já que as políticas públicas são elaboradas
segundo dinâmicas diferentes da organização de demandas, ao mesmo tempo em que só
existem políticas se elas estiverem sendo demandadas por alguém.
Particularmente quando o Brasil conta pela primeira vez com um governo e um
presidente claramente identificados com as organizações populares (e que também pela
pela primeira vez com uma grande quantidades de quadros do movimento social
ocupando cargos no governo federal), a tensão entre as diversas formas de intervenção
política se confrontam.
O mundo da ES conta hoje com um braço no governo. As dificuldades são
muitas, na medida em que a dinâmica da ES, apesar de ter uma ligação grande com a
88
formulação de políticas públicas, não conta com instrumentos necessários para a
elaboração de uma política nacional.
Analisar este mundo em formação, cuja origem está tão próxima historicamente,
é uma oportunidade de observar dinâmicas que não seria possível em uma profundidade
temporal maior. Os participantes dos primeiros momentos, os que fizeram as primeiras
formulações estão atuantes, o que permite o acesso às formas como este mundo
efetivamente foi sendo criado.
A ES pretende se construir como um mundo diferente daquele das empresas
capitalistas tradicionais e também do mundo do trabalho informal. A ES propõe uma
economia na qual as pessoas se relacionem a partir de laços de cooperação e
solidariedade. Uma das singularidades da ES é que seus profissionais a consideram
como uma forma de mudar as relações imediatamente, o que confere um sentimento de
orgulho muito grande, principalmente aqueles que trabalham nos empreendimentos, por
reconhecerem que sua atividade como trabalhador transforma as relações ali e naquele
momento e não amanhã, num momento em que tudo envolta também tem que ser
diferente.
Independentemente de a ES poder ser ou não uma “alternativa ao capitalismo”,
ela á capaz de transformar o sentido das atividades de muitos indivíduos, que vão
reconhecer na participação neste mundo uma forma de contribuir para um mundo
melhor que, acima de tudo, é um mundo “possível”. Este sentimento é compartilhado
por vários tipos de profissionais, desde cooperados até acadêmicos, o que talvez seja o
que faça com que se reconheçam como pertencentes a um mesmo universo.
Para compreender o mundo da ES foi preciso afartar-se da idéia de que a ES se
constitui unicamente dos empreendimentos solidários e as relações econômicas que
ocorrem a partir deles. Desta forma foi possível aproximar-se das dinâmicas que tornam
possível a existência da ES e, inclusive, destes empreendimentos como tais.
89
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93
Anexo 1
Breve Cronologia dos principais acontecimentos tratados na dissertação
1994 Criação da Anteag
1995 Criação da primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares(ITCP - COPPE - UFRJ)
1996 jun Artigo de Singer na Folha de São Paulo (“Economia solidária contra odesemprego”)
out / nov Eleições Municipais
1998 Criação da ADS - CUT
filiação da Rede Universitária de ITCPs à Unitrabalho
out / nov Eleições Estaduais e presidencial
Olívio Dutra eleito governador do RS
2000 Publicação do livro “Economia Solidária no Brasil” organizado por PaulSinger e André Ricardo de Souza
jun Criação da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária (RBSES)
2001 jan I Fórum Social Mundial em Porto Alegre, RS
2002 Criação da Rede de Gestores Públicos em Economia Solidária
Publicação do livro “Introdução à Economia Solidária” de Paul Singer
jan II Fórum Social Mundial
out I Plenária Nacional de Economia Solidária em São Paulo (elaboração da“Carta ao Governo Lula”)
Eleições estaduais e presidencial
Eleição de Lula para presidente
2003 jan III Fórum Social Mundial
Publicação do livro “A Outra Economia”(lançamento durante o III FSM)
II Plenária Nacional de Economia Solidária (durante o II FSM)
Anúncio Público da criação da SENAES (durante o II Plenária Nacional deEconomia Solidária) e de Singer como seu titular
mai Plenária Estadual de Economia Solidária do Rio de Janeiro
jun Posse de Singer como titular da SENAES
III Plenária Nacional de Economia Solidária
Criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (durante a III PlenáriaNacional)
94
Anexo 2
Fotografias
Fotografia 1 - Visão exterior da área de alimentação
Fotografia 2 - Visão exterior da área de venda de artesanato
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Fotografia 3 - Abertura da III Plenária Nacional de Economia Solidária (ao fundo,sentados à mesa, os primeiros oradores do evento)
Fotografia 4 - Abertura da III Plenária Nacional de Economia Solidária. Visão da platéia(pode-se ver alguns participantes usando os lencinhos com as siglas dos estados nacabeça)
96
Fotografia 5 - Grupos em momento de discussão. Ao fundo se vêem faixas de saudaçãoe os painéis de alguns estados ainda sendo montados.
Fotografia 6 - Local onde eram feitas as refeições durante o evento.
97
Fotografia 7 - Grupo em momento em que se elabora a síntese das discussões. Pode-sever os painéis com as cartolinas onde estão escritas as propostas.
Fotografia 8 - Corredor que leva ao auditório. Pode-se ver as diversas barraquinhas comprodutos e faixas de saudação.
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Anexo 3
Entidades que compõem o Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidáriado Fórum Social Mundial (GT-Brasileiro)
(em junho de 2003)
ABCredAssociação Brasileira dos Dirigentes de Entidades Gestoras e Operadoras deMicrocréditoCaráter: nacionalSede: São Paulo, SP
ADS - CUTAgência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos TrabalhadoresCriada em 1998Caráter: órgão de entidade nacional (Central Única dos Trabalhadores)Sede: São PauloPágina na Internet: www.ads.org.br
AnteagAssociação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e ParticipaçãoAcionáriaCriada em 1994Caráter: NacionalSede: São PauloPágina na Internet: www.anteag.org.br
Cáritas BrasileiraCriada em 1956Caráter: seção nacional de organização internacional (Cáritas Internacional)Sede: Brasília, DFPágina na Internet: www.caritasbrasileira.orgPublicações periódicas: Revista Cáritas
Concrab - MSTConfederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil - Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem TerraCriada em 1992Caráter: órgão de entidade nacional (MST)Sede: São Paulo, SPPágina na Internet: www.mst.org.brPublicações periódicas (MST): Jornal Sem Terra (mensal) MST Informa (quinzenal)
FASE NacionalFederação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional
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Criada em 1961Caráter: ONG com atuação nacionalSede: Rio de JaneiroPágina na Internet: www.fase.org.brPublicação periódica: Revista Proposta (trimestral)
IBaseInstituto Brasileiro de Análises Sócio-EconômicasCriado em 1981Caráter: ONG com atuação nacionalSede: Rio de Janeiro, RJPágina na Internet: www.ibase.brPublicações periódicas: Revista Democracia Viva Jornal da Cidadania (bimestral)
PACSInstituto de Políticas Alternativas para o Cone SulCriado emCaráter: ONG de atuação nacionalSede: Rio de Janeiro, RJPágina na Internet: www.pacs.org.brPublicações periódicas: Informativo PACS (trimestral) Massa Crítica (sem periodicidade definida)
RBSESRede Brasileira de Sócioeconomia SolidáriaCriada em 2000Caráter: organização nacionalPágina na Internet: www.redesolidaria.com.brPublicação periódica: Jornal Girassol
Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares:Criada em 1998Caráter: organização nacional (congrega incubadoras universitárias de 16 universidades:Sede: São Paulo, SP (USP)
Rede de Gestores em políticas públicas de Economia SolidáriaCriada em 2002Caráter: organização nacional (congrega funcionários de prefeituras das seguintescidades: Santo André, São Paulo, Jaboticabal, Porto Alegre e Belém)Sede: São Paulo, SP
UnitrabalhoRede InteruniversitáriaCriada em 1995Caráter: nacional (congrega pesquisadores em 86 universidades e intituições)Sede: São Paulo, SPPágina na Internet: www.unitrabalho.org.br
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Anexo 4
Siglas
ABCred - Associação Brasileira dos Dirigentes de Entidades Gestoras eOperadoras de Microcrédito
ADS - CUT - Agência de Desenvolvimento Solidário - Central Única dosTrabalhadores
ALCA - Área de Livre Comércio das Américas
Anteag - Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão ede Participação Acionária
Cebrap - Centro Brasileiro de Análises e Planejamento
CLT - Consolidação da Leis do Trabalho
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
COEP - Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida
Concrab - Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil
COPPE - Coordenação das Programas de Pós-graduação em Engenharia
DIEESE - Departamento Instersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-econômicos
EPS - Economia Popular Solidária
FASE - Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional
FBES - Fórum Brasileiro de Economia Solidária
FCP - RJ - Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro
FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos
FSM - Fórum Social Mundial
GT - Grupo de Trabalho
GT Brasileiro - Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária (do FSM)
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IBase - Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ITCP - Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares
MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MTE - Ministério de Trabalho e Emprego
OCB - Organização das Cooperativas Brasileiras
ONG - Organização Não Governamental
PACS - Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul
PACs - Projetos Alternativos Comunitários
PPA - Plano Plurianual
PT - Partido dos Trabalhadores
RBSES - Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária
SBS - Sociedade Brasileira de Sociologia
SEBRAE - Serviço de Apoio as Micro e Pequenas Empresas
SEDAI - Secretaria de desenvolvimento e Assuntos Internacionais
SENAES - Secretaria Nacional de Economia Solidária
SESCOOP - Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo
UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos