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UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Faculdade de Direito
DENIS DOMINGUES HERMIDA
A ETICIDADE COMO INSTRUMENTO DE
ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA EM ESTADOS
DEMOCRÁTICOS
2014
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................................4
Capítulo I – INTERPRETAÇÃO E MUTAÇÃO NORMATIVA..........................................7
1 Norma jurídica. Conceito e Estrutura...................................................................................7
2. Interpretação Jurídica. Conceito e Características..............................................................12
2.1. Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica...................................18
2.2. A interpretação constitucional e seus princípios.................................................................21
2.3 A interpretação de direitos fundamentais.............................................................................26
2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais...................................................................26
2.4.2 A interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais.....30
II – A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE MIGUEL REALE, A ETICIDADE COMO
PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO E O FENÔMENO DA MUTAÇÃO
NORMATIVA................................................................................................................................34
1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito................34
2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito.......................................................................38
2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do direito........................................................38
2.2 A Tridimensionalidade Específica.........................................................................................40
2.2.1 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale..........................41
3 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale............46
3.1 Análise semântica do termo “Eticidade”...............................................................................46
3.1.2 A polissemia da palavra “Ética”.........................................................................................48
3.1.3 A definição de “ética” para Miguel Reale .........................................................................53
3.1.3.1 Conduta e valor.................................................................................................................53
3.1.3.2 Fins e categorias do agir...................................................................................................54
3
3.4.3.3 Momentos da conduta.......................................................................................................58
3.1.3.4 Especificidade da conduta ética.......................................................................................59
3.1.3.5 Modalidades de conduta...................................................................................................61
3.1.3.6 O conceito e a aplicabilidade de “Eticidade” em Miguel Reale....................................66
3.1.4 A “Eticidade” como instrumento de “mutação normativa”............................................68
Capítulo III – EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA “ETICIDADE” COMO INSTRUMENTO DE
ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA: AS NOVAS TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA E A MUTAÇÃO
NORMATIVA DO ARTIGO 62, I, DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO NO
BRASIL.........................................................................................................................................72
1 Espaço Ampliado. Conceito e características..........................................................................72
1.1 O regime de visibilidade como “valor” e fonte de “mutação normativa”.........................78
2 A mutação normativa do artigo 62, I, da CLT em função da mudança do regime de
Visibilidade....................................................................................................................................80
2.1 O contrato de trabalho e a jornada laboral..........................................................................80
2.2 Análise histórica do enunciado prescritivo constante do inciso I do artigo 62 da CLT....86
2.3 A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e
as hipóteses interpretativas...........................................................................................................89
2.4 Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os Direitos Fundamentais
contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição Federal Brasileira........................................91
2.5 Aplicação do princípio da unidade do Direito Positivo Brasileiro. Necessidade de interpretação do
inciso I do artigo 62 da CLT frente ao conteúdo das demais normas jurídicas
vigentes............................................................................................................................................93
2.5.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa Humana” como fundamentos da
República Federativa do Brasil e, consequentemente, das normas jurídicas vigentes.............94
2.5.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana.............................................................. ............................96
2.5.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do Trabalho Humano”.................101
3 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do inciso I do artigo 62 da
CLT.....................................................................................................................................................115
CONCLUSÃO....................................................................................................................................120
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. ..............................121
4
INTRODUÇÃO
Primeiramente, fixamos que a despeito da existência na doutrina de
pluralidade de significado para a expressão “Estado Democrático de Direito”,
adotaremos, ao longo desta exposição e como premissa do desenvolvimento do
raciocínio, o conceito defendido por José Afonso da Silva, no sentido de que a
configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente
os conceitos de Estado Democrático e Estado de direito, consistindo, em realidade,
num conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas
os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de
transformação do status quo1 vez que a democracia que o Estado Democrático de
Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa
e solidária, em que o poder emana do povo, que deve ser exercido em proveito do
povo, diretamente ou por representantes eleitos, participativa, porque envolve a
participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de
governo pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e
pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade
de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de
ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não
depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e
sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de
favorecer o seu pleno exercício2.
A democracia, enquanto característica de um Estado, tem como uma de
suas pilastras a compatibilidade das normas jurídicas vigentes com os valores
cultuados pela respectiva Sociedade. Os Estados que adotam sistema jurídico baseado
no modelo romano-germânico baseiam os seus respectivos direitos positivos em
enunciados prescritivos (leis). Referidas leis, produzidas pelo povo direta ou
indiretamente, caracterizam-se pela tendência à perenidade, vez que a manutenção do
1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.
2 Ibidem, p.108.
5
texto normativo produzido mantém-se até a prática de ato de derrogação (revogação
parcial) ou abrogação (revogação total), mediante novo procedimento
legiferante(produtor de novas leis).
A oportunidade e o tempo necessários à prática de novos atos legiferantes
pelo poder constituído objetivando modificar enunciados prescritivos existentes
(derrogando-os ou os abrogando) nem sempre acompanham a evolução/modificação
dos valores sociais incidentes sobre os fatos-hipóteses submetidas às leis existentes ( o
que ocorre não só em razão da rapidez como, no mundo contemporâneo, os valores se
alteram – o que tem como algumas de suas razões a globalização e o impacto da
velocidade da disseminação de informações – , como também a demora na tramitação
de projetos de lei – por exemplo, o projeto de lei que deu origem ao atual Código Civil
Brasileiro cuja vigência iniciou-se no ano de 2003 teve o seu primeiro anteprojeto
apresentado em 1972-), o que gera instabilidade normativa sob os aspectos das
exigências democráticas.
Objetivando-se a manutenção da democracia no sentido da compatibilidade
das normas jurídicas com os valores cultuados pela Sociedade, propõe-se a
normatividade concreta baseada na Teoria Tridimensional do Direito como
instrumento de aplicabilidade dos enunciados prescritivos existentes, capaz de
promover o que denominamos “mutação normativa”, tida como modificação do
conteúdo de uma norma jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe
serve de fonte, o que ocorre graças à “eticidade”(procedimento de incidência do
“valor” ao fato gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto
normativo interpretado levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”,
realizando-se, assim, a experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento
tridimensional de Miguel Reale).
Pretende-se com a presente pesquisa buscar solução para o seguinte
problema sendo a compatibilidade das normas jurídicas vigentes com os valores
cultuados pela sociedade uma das pilastras de um Estado democrático e, nos Estados
que adotam o modelo romano-germânico de direito, a oportunidade e o tempo
necessários para a prática de atos legiferantes objetivando a modificação de
enunciados prescritivos existentes nem sempre acompanham a evolução/modificação
6
dos valores sociais incidentes sobre os fatos-hipóteses, o que é capaz de gerar
instabilidade normativa sob os aspectos das exigências democráticas, existe
mecanismo de aplicabilidade de enunciados prescritivos que seja capaz de afastar
referida instabilidade?
No intuito de solucionar o problema apresentado, levantamos a seguinte
hipótese cuja veracidade objetivamos demonstrar ao longo desta exposição:
objetivando-se a manutenção da democracia no sentido da compatibilidade das normas
jurídicas com os valores cultuados pela Sociedade, propõe-se a normatividade concreta
baseada na Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale como instrumento de
aplicabilidade dos enunciados prescritivos existentes, capaz de promover o que
denominamos “mutação normativa”, tida como modificação do conteúdo de uma
norma jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, o que
ocorre graças à “eticidade”(procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a
escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado
levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a
experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de
Miguel Reale).
7
Capítulo I – INTERPRETAÇÃO E MUTAÇÃO NORMATIVA
A mutação normativa é fenômeno jurídico produto da interpretação
jurídica. A compreensão de como a interpretação jurídica é capaz de produzir a
mutação normativa impõe prévias reflexões a respeito não só da estrutura das normas
jurídicas, como também em relação ao conteúdo da interpretação jurídica e a relação
entre a “eticidade”, procedimento inerente à visão fenomenológica do Direito sob o
enfoque da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, e a modificação do
conteúdo da norma jurídica sem a alteração do seu respectivo enunciado prescritivo
(texto de lei).
1 Norma jurídica. Conceito e Estrutura
Num Estado dirigido pelo princípio da legalidade realiza-se o Direito
quando se aplica, a um caso concreto, uma norma jurídica, que é produto de
interpretação de enunciados prescritivos, interpretação essa que leva em consideração
os valores adotados pela sociedade e busca a justiça para o caso concreto.
Isto é, no processo de realização do Direito (experiência jurídica) em sua
concretude, têm-se alguns fatores que devem ser harmonizados. Esses fatores devem
ser analisados frente às características de um Estado Democrático de Direito”, classe
essa de Estado que possui nuances específicas que interferem diretamente na
composição e na harmonização dos fatores que instrumentalizam o Direito. Para tal
demonstração, apresentamos o conceito e as características do Estado Democrático de
Direito no Brasil através do magistério de José Afonso da Silva:
A configuração do Estado Democrático de Direito não significa
apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e
Estado de direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito
novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes,
mas os supera na medida em que incorpora um componente
revolucionário de transformação do status quo3.
3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.
8
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser
um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e
solidária (...), em que o poder emana do povo, que deve ser exercido
em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (...);
participativa, porque envolve a participação crescente do povo no
processo decisório e na formação dos atos de governo pluralista,
porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe
assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a
possibilidade de convivência de formas de organização e interesses
diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa
humana das formas de opressão que não depende apenas do
reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e
sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas
suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício4.
Dessas palavras podemos extrair que o papel do “Estado Democrático de
Direito” é a preservação da convivência social (possibilitar a vida harmoniosa em
sociedade), numa sociedade livre (não oprimida, livre para cultuar os seus valores) e
justa (como realização da justiça vista na forma exposta por Alcides Telles Júnior
como “adaptação recíproca da pluralidade dos entes, sua conexão e harmonia”5).
O papel da lei no Estado Democrático de Direito também é enfocado por
José Afonso da Silva:
O princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado
Democrático de Direito. É da essência de seu conceito subordinar-se à
Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como
todo Estado de direito, ao império da lei, mas da lei que realize o
princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela
busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Deve,
pois, ser destacada a relevância da lei no Estado Democrático de
Direito, não apenas quanto ao seu conceito, forma de ato jurídico
abstrato, geral, obrigatório e modificativo da ordem jurídica existente,
mas também à sua função de regulamentação fundamental, produzida
segundo um procedimento constitucional qualificado. A lei é
efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de
decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da
atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver
social modos predeterminados de conduta, de maneira que os
membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na
realização de seus interesses.6
4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.
5 TELLES JÚNIOR, Alcides. Discurso, Linguagem e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 33.
6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edição. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 110.
9
O instrumento de formação da norma jurídica é exatamente a interpretação,
vista como procedimento de obtenção da significação de um determinado enunciado
prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação (o texto legal) e a
coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo
como finalidade a prática do Direito.
A interpretação jurídica é verdadeiro ato de enunciação7, nos moldes
expostos por José Luiz Fiorin8, que realiza a função de harmonizar os instrumentos de
realização do direito em determinado caso concreto, tendo como seu produto
(enunciado) a norma jurídica.
A norma jurídica é o resultado de um processo de harmonização de
fatores(interpretação) e que essa harmonização, para a construção da norma jurídica, é
feita levando em consideração, inclusive, as características do caso concreto em
análise. Isto é, o caso concreto assume um duplo papel passivo, um primeiro de
incidência de valores sociais e da justiça para efeito do alcance da norma jurídica e um
segundo, posterior, de incidência da própria norma jurídica, regulando o
comportamento. Nesse sentido, transcreve-se o magistério de Celso Ribeiro Bastos:
Distinguem-se, claramente, no processo de efetivação da norma
jurídica, dois momentos distintos. Num primeiro momento, tem-se a
seleção da norma aplicável ao caso, dentre as várias potencialmente
incidentes. Num segundo momento, há então sua efetiva aplicação.
Contudo, antes desta... é necessário interpretar a regra. E, também, no
processo de seleção da norma aplicável, há um processo
interpretativo, ainda que não seja “exauriente”.9
Passamos, agora, a nos atentar ao processo de incidência da norma jurídica
ao caso concreto, especificamente no sentido de se investigar a estrutura interna da
7 Enunciação é o ato de enunciar, que é a enunciação, é a “colocação do homem na história”, isto é,
temporalizar, especializar e actorizar a linguagem (tempo, espaço e ator como categorias enunciativas) ou, como ensina Benviste, citado por Fiorin, a enunciação é essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização, é o ato de produzir enunciado, “é a instância de mediação, que assegura a discursivização da língua, que permite a passagem da competência à performance, das estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma de discurso”. Conforme FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 31. 8 FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo:
Editora Ática, 1998, p. 31. 9 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editor:
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 46.
10
norma jurídica. Afinal, de que forma a norma jurídica incide ao caso concreto?
Através da implicação existente entre o antecedente e o consequente dessa norma, que
é bem analisada por Lourival Vilanova:
O revestimento verbal das normas jurídicas positivas não obedece a
uma forma padrão. Vertem-se nas peculiaridades de cada idioma e em
estruturas gramaticais variadas. Geralmente, usam o indicativo-
presente ou indicativo-futuro, modo verbal esse que oculta o verbo
propriamente deôntico. O dever-ser transparece no verbo ser
acompanhado de adjetivo participial: “está obrigado”, “está facultado
ou permitido”, “está proibido”(sem falar em outros verbos, como
“poder” no presente ou futuro do indicativo), Transparece, mas não
aparece com evidência normal. É preciso reduzir às últimas
modalidades verbas à estrutura formalizada de linguagem lógica para
se obter a fórmula “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito S’”,
deve fazer ou deve omitir ou poder fazer ou omitir conduta C ante
outro sujeito S’’’, que representa o primeiro membro da proposição
jurídica completa.
Como se vê, no interior desta fórmula, destacamos a hipótese e a tese
(ou o pressuposto e a consequência). A estrutura interna desse
primeiro membro da proposição jurídica articula-se em forma lógica
de implicação: a hipótese implica a tese ou o antecedente (em sentido
formal) implica o consequente. A hipótese é o descritor de possível
situação fática do mundo (natural ou social, inclusive), cuja ocorrência
na realidade verifica o descrito na hipótese. Não cabe (...) interpretar a
hipótese como proposição prescritiva(“se alguém morre, deve ser a
sucessão de seus bens”: nada se prescreve na hipótese). É descritiva,
mas sem valor veritativo. Quer dizer, verificado o fato jurídico, no
suporte fático, ou não verificado, a hipótese não adquire valor-de-
verdade. Mas a hipótese da proposição normativa do Direito tem um
valer específico: vale, tem validade jurídica, foi posta consoante
processo previsto no interior do sistema jurídico. (...) Diremos: o
deôntico não reside na hipótese como tal, mas no vínculo entre a
hipótese e a tese. Deve ser o vínculo implicacional. Em outro giro:
deve ser a implicação entre hipótese e tese.10
Assim, temos que, após a interpretação, encontramos uma estrutura lógica
(que é a própria norma jurídica) composta de dois fragmentos, o antecedente – que
descreve uma situação de fato permitida, proibida ou obrigatória – e o consequente –
que impõe determinado comportamento ou efeito jurídico – sendo que ambos os
fragmentos estão unidos por uma relação de implicação (se acontecer o antecedente,
então deve ser o consequente) gerada pelo modal deôntico genérico “deve ser”. No 10
VILLANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 95-96 .
11
interior do consequente (tese) temos a incidência de modal deôntico específico, que
pode ser “é proibido”(V), é “obrigatório”(O) e “é permitido”(P).
Há, assim, esquematicamente, a seguinte estrutura primária:
“D( h c)”11
Chama-se de “estrutura primária” em razão da existência de uma “estrutura
secundária” da norma jurídica, sobre a qual apresentamos as palavras de Villanova:
Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas
partes, que se denominam norma primária e norma secundária.
Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como
conseqüência da verificação de pressupostos, fixados na proposição
descritiva de situações fáticas ou situações já juridicamente
qualificadas; nesta, preceituam-se as conseqüências sancionatórias, no
pressuposto do não-cumprimento do estatuído na norma determinante
da conduta juridicamente devida.
(...) O Direito-norma, em sua integralidade constitutiva,
compõe-se de duas partes. Denominemos, em sentido inverso do da
teoria kelseniana, norma primária a que estatui
direitos/deveres(sentido amplo) e norma secundária a que vem em
conseqüência da inobservância da conduta devida, justamente para
sancionar seu inadimplemento (impô-la coativamente ou dar-lhe
conduta substitutiva reparadora). As denominações adjetivas
“primária” e “secundária” não exprimem relações de ordem temporal
ou causal, mas de antecedente lógico para consequente lógico.”12
Finalizando a análise da norma jurídica como “estrutura lógica”,
apresentamos a “fórmula” completa da norma jurídica (primária mais secundária):
“D|{- [D( h c)]13
} -> s14
|”.
11
Tal que “D” simboliza o modal deôntico genérico “Deve ser”, “H” a hipótese, “C” o conseqüente e “ ” o conector lógico condicional (que, na linguagem não formalizada, significa “se...., então....”. 12
VILLANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 111-112.
13
Tal que “D” simboliza o modal deôntico genérico “Deve ser”, “H” a hipótese, “C” o conseqüente e “ ” o conector lógico condicional (que, na linguagem não formalizada, significa “se...., então....”. 14
Tal que “s” simboliza a norma secundária, de conteúdo sancionatório pelo não cumprimento da norma primária, o “-“ simboliza “não”, isto é, o não cumprimento da norma primária “D(h->c)”, o primeiro “D” simboliza o modal deôntico genérico (Deve-ser) que implica o não cumprimento da norma primária à norma secundária.
12
O que pretendemos com essa exposição é formar a estrutura conceitual
necessária para o estudo de como a interpretação é capaz de, sem alteração necessária
da estrutura do enunciado prescritivo (texto de lei), realizar a modificação da norma
jurídica, dando origem ao fenômeno da mutação normativa.
2. Interpretação Jurídica. Conceito e Características
Primeiramente, partimos da premissa de que a interpretação não deve ser
realizada tendo como base a visão de Direito como algo abstrato e exclusivamente
sistêmico, como vem sendo feito, por exemplo, por grande parte da comunidade
jurídica brasileira, debruçando-se numa normatividade abstrata que gera prejuízos não
só ao próprio Direito, que acaba não cumprindo o seu desiderato, como também, e
principalmente, à sociedade, que não vê o Estado cumprindo o seu papel de “construir
uma sociedade livre, justa e solidária”, com a promoção do “bem de todos”. Nesse
sentido, importante a transcrição de reflexão realizada por Lenio Luiz Streck:
Como saber “operacional”, domina no âmbito do campo jurídico o
modelo assentado na idéia de que o processo interpretativo possibilita
que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do-pensamento-pensante,
enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance a
“interpretação correta”, o “exato sentido da norma”, “ o exclusivo
conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro significado do vocábulo”, “o
real sentido da regra jurídica” etc. Pode-se dizer que o pensamento
dogmático do Direito acredita na possibilidade de que o intérprete
extrai o sentido da norma, como se estivesse contido na própria
norma, enfim, como se fosse possível extrair o sentido-em-si-mesmo.
Trabalha, pois, com os textos no plano meramente epistemológico,
olvidando o processo ontológico da compreensão.
(...) é possível afirmar que, explícita ou implicitamente, parcela
expressiva da doutrina brasileira sofre influência da hermenêutica de
cunho objetivista de Emilio Betti, baseada na forma metódica e
disciplinada da compreensão, onde a própria interpretação é fruto de
um processo triplo que parte de uma abordagem objetivo-idealista.
Com isso, a interpretação é um processo reprodutivo, pelo fato de
interiorizar e traduzir para a sua própria linguagem objetificações da
mente, através de uma realidade que é análoga à que originou uma
forma significativa. Assim, a atribuição de sentido e a interpretação
são tratadas separadamente, pois Betti acredita que só isso vai garantir
a objetividade dos resultados da interpretação.15
15
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.48.
13
Nesse ponto da investigação, procuramos responder à pergunta “O que é a
interpretação jurídica?”, no sentido de conhecermos o objeto de nosso estudo, sendo
que um trabalho que aborde a análise de um caso concreto de interpretação não
poderia ser satisfatoriamente desenvolvido sem que, preliminarmente, tivéssemos a
noção do que significa “interpretação jurídica”.
Todos interpretam as leis ou até mesmo a Constituição, mas pouquíssimos
são capazes de afirmar, com bases sólidas, qual o procedimento por eles utilizado, qual
fora a finalidade do procedimento interpretativo e o que se perseguiu com o trabalho
interpretativo. E mais, no trabalho interpretativo, em raras oportunidades há a reflexão
do papel da interpretação na realização do Direito.
A questão que se coloca é: em que incide a interpretação, sobre que objeto
incide o trabalho interpretativo? Interpreta-se o “Direito” ou interpretam-se
“enunciados prescritivos” (entendendo-se “enunciados” como “produto da atividade
psicofísica de enunciação, que se apresenta como um conjunto de fonemas ou de
grafonemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma,
consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo
destinatário”16
). Importante, neste ponto, distinguirmos o Direito e as Leis (enunciados
prescritivos) e, com tal objetivo, transcrevemos trechos das lições de Friederich
August Von Hayek:
O Direito, no sentido de normas de conduta aplicadas, é
indubitavelmente tão antigo quanto a sociedade; só a observância de
normas comuns torna possível a existência pacífica de indivíduos em
sociedade. Muito antes que o homem desenvolvesse a linguagem ao
ponto de esta lhe permitir enunciar determinações gerais, um
indivíduo só seria aceito como membro de um grupo na medida em
que se conformasse às suas normas.17
(...) para o homem moderno, por outro lado, a ideia de que toda lei
que governa a ação humana é produto de legislação parece tão óbvia,
que a afirmação de que o Direito é mais antigo que a legislação se lhe
afigura quase paradoxal. No entanto, não pode haver dúvida de que
existiam leis séculos antes de ocorrer ao homem que ele podia fazê-las
ou alterá-las. A ideia de que era capaz disso praticamente não surgiu
16
CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila do curso “Filosofia do Direito I. Lógica Jurídica”, lecionado no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, capítulo II, p. 13.
17 HAYEK, Friederich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais
de justiça e economia política. São Paulo: Visão, s.d., p. 93.
14
antes da era clássica grega; posteriormente desapareceu, ressurgindo
no final da Idade Média, quando gradualmente obteve aceitação mais
geral.18
Se o Direito e a Lei (vista essa num sentido lato, como “enunciado
prescritivo”) não mantêm entre si uma relação de identidade, não podemos deixar de
reconhecer que a “Lei” é adotada, pelos Estados Democráticos de Direito que adotam
sistema jurídico baseado no modelo romano-germânico, como o principal instrumento
de prática do Direito.
Assim, desde já fixamos a premissa de que se interpretam os enunciados
prescritivos (leis) e não o Direito!
Se fixamos o objeto sobre o qual incide a interpretação, é importante
traçarmos mais alguns pontos a respeito desses enunciados prescritivos, buscando
sabedoria no magistério de José Luiz Fiorin, para quem:
O primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do enunciado.
Benviste diz que “a enunciação é essa colocação em funcionamento da
língua por um ato individual de utilização”. Ascombre e Ducrot
afirmam que “A enunciação será para nós a atividade linguageira
exercida por aquele que fala no momento que fala. Se a enunciação é a
instância constitutiva do enunciado, ela é a “instância linguística
logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado (que
comporta seus traços e suas marcas” (...) O enunciado, por oposição à
enunciação, deve ser concebido como o “estado que ela resulta,
independentemente de suas dimensões sintagmáticas”...
Considerando dessa forma enunciação e enunciado, este comporta
frequentemente elementos que remetem à instância de enunciação: de
um lado, prenomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e
advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais – em síntese,
elementos cuja eliminação produz os chamados textos enuncivos, isto
é, sem nenhuma marca de enunciação; de outro lado, termos que
descrevem a enunciação, enunciados e reportados no enunciado...19
Aplicando os ensinamentos de Fiorin para o nosso objeto de estudo,
necessário termos o conhecimento da existência de um fenômeno de produção
linguística denominado “enunciação”, em que determinado indivíduo através de
18
HAYEK, Friederich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, s.d., p. 93.
19
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 36.
15
trabalho intelectual e físico produz, sob a forma escrita ou falada, enunciados, que são,
em realidade, além de, por óbvio, produtos da enunciação, um conjunto de
signos(fonemas ou grafonemas) que, dispostos sob uma determinada forma (sintaxe),
são capazes de gerar significados (semântica), criando uma mensagem.
Ainda aproveitando as lições do renomado linguista, o enunciado, sob o
ponto de vista daquele que o recebe (o intérprete), é o suporte físico, do qual se extrai
o significado e a significação com o fim de se obter a mensagem. Sobre a relação entre
suporte físico, significado e significação, transcrevem-se as palavras de Paulo de
Barros Carvalho:
O falar em linguagem remete o pensamento, forçosamente, para o
sentido de outro vocábulo: signo. Como unidade de um sistema que
permite a comunicação inter-humana, signo é um ente que tem o
status lógico de relação. Nele, um suporte físico se associa a um
significado e a uma significação, para aplicarmos a terminologia
husserliana. O suporte físico, da linguagem idiomática, é a palavra
falada (ondas sonoras, que são matéria, provocadas pela
movimentação de nossas cordas vocais, no aparelho fonético) ou a
palavra escrita (depósito de tinta no papel ou de giz na lousa). Esse
dado, que integra a relação sígnica, como o próprio nome indica, tem
natureza física, material. Refere-se a algo do mundo exterior ou
interior, de existência concreta ou imaginária, atual ou passada, que é
seu significado; e suscita em nossa mente uma noção, ideia ou
conceito, que chamamos de significação.20
Isto é, através do contato do receptor21
com o enunciado (código utilizado)
se é capaz de extrair um significado (a “coisa”, de existência concreta ou imaginária, a
que se vincula o signo utilizado no enunciado) e uma significação (que é o conceito, a
noção que é suscitada na mente do receptor da mensagem – intérprete).
Do que já foi apresentado, percebe-se que começamos a tocar na
interpretação através da análise dos signos, do significado e da significação. E nesse
20
CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila do curso “Filosofia do Direito I. Lógica Jurídica”, lecionado no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, capítulo II, p. 12.
21
Estamos utilizando os termos apresentados por Roman Jakobson (em sua obra Linguística e Comunicação, p. 19) como fatores fundamentais da comunicação linguística com seus 4(quatro) elementos: o emissor, o receptor, o tema da mensagem e o código utilizado.
16
ponto, indaga-se: a interpretação é um ato produtor ou meramente um ato reprodutor?
Ou, utilizando-nos dos termos de Roman Jakobson, a interpretação se identifica com a
“tradução” ou é um fenômeno próprio que, a partir de um enunciado, produz novos
enunciados dirigidos a um determinado fim, no caso, a prática do Direito?
Nicola Abbagnano apresenta dois momentos do significado do termo
“interpretação”, um ligado à “Escolástica Latina”, sob a influência dos ensinamentos
de Aristóteles, e outro vinculado à “Semiótica Americana”, da seguinte forma:
Aristóteles denominou I.22
o livro em que estudou a relação entre os
signos linguísticos e os pensamentos e entre os pensamentos e as
coisas. Ele de fato considerava as palavras como “sinais de afeição da
alma, que são as mesmas para todos e constituem as imagens dos
objetos que são idênticos para todos”, considerando ademais como
sujeito ativo dessa referência a alma ou o intelecto.
Boécio, graças a quem essa doutrina passou para a Escolástica
Latina, entendia por I. os substantivos, os verbos e as preposições, e
excluindo as conjunções, as proposições e em geral os termos
gramaticais, que não significam nada por si mesmos. Para ele,
referência do signo ao que ele designa era o essencial da
interpretação...
Conquanto não falte hoje quem considera a I. um processo mental
(...), a semiótica americana apresentou outra doutrina fundamental da
I., que toma como base o comportamento. Os pressupostos dessa
doutrina são encontrados na obra de Pierce, que entendeu a I. como
um processo triádico que se dá entre um signo, seu objeto e seu
interpretante, constituindo este último a relação entre o primeiro e o
segundo termo...23
Nessa maturação de raciocínio, importante a transcrição do pensamento do
linguista russo Roman Jakobson, que diferencia “interpretação” de “tradução”:
É claro que os interpretarei e não serei uma máquina de tradução
que, como o mostrou de modo excelente nosso amigo Y.Bar-Hillel,
não compreende e por conseguinte traduz literalmente. Desde que haja
interpretação, emerge o princípio da complementariedade,
promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa
observada.24
Da lição acima, conclui-se claramente que a interpretação, no sentido que se
deve adotar para o Direito (que tem como objeto os comportamentos humanos
intersubjetivos) não é uma mera tradução, não é uma mera enunciação que apresenta,
22
Abreviatura de “Interpretação”. Nota nossa. 23
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 579. 24
JAKOBSON, Nicolla. Linguística e Comunicação. 24ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 19.
17
com signos diversos, o mesmo significado do texto interpretado, mas é um processo
que contém não só a apreensão do significação do enunciado analisado, mas que
possui o efetivo caráter de “complementariedade”, promovendo a adequação do
significado do enunciado ao objeto sob o prisma do qual é procedida à interpretação.
Ora, se desde que haja interpretação, emerge o princípio da
complementariedade, não é difícil afirmar, com convicção, que o resultado da
interpretação não se prende ao exato significado do enunciado analisado, mas,
promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa observada, expande
os seus horizontes a uma finalidade, dirigida à coisa que será o “foco” da
interpretação.
Já sob o enfoque eminentemente jurídico, Luís Roberto Barroso afirma que
a interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de
uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir num caso concreto. Tal conceito de
interpretação jurídica apresentado por Barroso é feito sob um contexto em que a
“hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação,
o estudo e a sistematização dos princípios e das regras de interpretação do direito” e a
“aplicação da norma jurídica” é o momento final do processo interpretativo, é a sua
concretização pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato25
.
Das simples, porém relevantes, palavras de Barroso, atentamo-nos para a
finalidade da interpretação no Direito, que é fazer incidir num caso concreto a norma
jurídica. Assim, se a interpretação atua promovendo a interação do instrumento de
observação e da coisa observada, temos que, para o direito, o “instrumento de
observação” é o enunciado prescritivo e a “coisa observada” é o caso concreto sob
análise jurídica.
Do todo exposto, concluímos, como nosso conceito de “interpretação
jurídica”, o procedimento de obtenção da significação de um determinado enunciado
prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação (o texto legal) e a
coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo
como finalidade a prática do Direito. Dessa forma, uma interpretação de enunciado
25
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 107.
18
prescritivo não deve ser afastar jamais da realidade concreta para a qual é realizada,
isto é, a interpretação, sob o enfoque que ora analisamos, é uma atividade
eminentemente construtiva e re-construtiva26
, o que pode ser constatado da transcrição
abaixo dos ensinamentos de Alexandre de Moraes que, apesar de se referir à
interpretação constitucional, pode ser estendida à interpretação de qualquer norma
jurídica:
A Constituição Federal há de ser sempre interpretada, pois somente
por meio da conjugação da letra do texto com as características
históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor
sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade
sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.27
2.1. Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica
Os princípios são valores, ideias centrais de um sistema, que lhe dão sentido
lógico, harmônico, racional, permitindo a compreensão do modo de organizar-se do
sistema28
, são regras-mestras dentro do sistema positivo, que identificam as estruturas
básicas, os fundamentos e os alicerces desse sistema29
, iluminando a compreensão de
setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade e servindo, em virtude dessa
mesma unidade, de fator de agregação das normas integrantes dos respectivos setores
normativos30
. Ou, como descreve Miguel Reale, são verdades fundantes de um sistema
de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido
26
A característica de “reconstrução” é encontrada na interpretação nas oportunidades em que a modificação dos fatos normados ou até mesmo a modificação dos valores sociais incidentes sobre os fatos normados pode levar à modificação do conteúdo da norma jurídica (modificação frente à uma significação anterior que compunha a norma jurídica), o que se caracteriza como mutação normativa. 27
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 15. 28
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 137. 29
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 59.
30
CONRADO, Paulo César. Introdução à Teoria Geral do Processo. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 25.
19
comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto
é, como pressupostos exigidos pelas necessidades de pesquisa e da praxis31
.
Ensina Mauricio Godinho Delgado que os princípios podem ser comuns a
todo o fenômeno jurídico ou especiais a um ou alguns dos segmentos particularizados
do fenômeno jurídico, sendo construídos a partir de certa realidade, direcionando a
compreensão da realidade examinada, atuando no processo de exame sistemático
acerca de certa realidade – processo que é típico das ciências – conduzindo tal
processo32
.
Explorando mais profundamente as funções dos princípios frente ao sistema
jurídico, tem-se a atuação dos mesmos não só na construção dos enunciados
prescritivos (textos legais), atuando, pois, na fase pré-jurídica, de natureza
eminentemente política, como também na fase jurídica propriamente dita,
desempenhando função interpretativa (também denominada descritiva ou
informativa), função normativa subsidiária (atuando como fontes normativas frente à
ausência de outras regras jurídicas utilizáveis pelo intérprete e aplicador do Direito
Positivo frente a um determinado caso concreto) ou função normativa concorrente
(inerente aos princípios essenciais do sistema jurídico, com status até mesmo
prevalecente sobre o papel normativo característico das demais normas jurídicas)33
.
No que se refere à função interpretativa, que é de mais importante análise
no presente momento de construção desta tese, Maurício Godinho Delgado ensina que:
A mais comum e recorrente dessas funções é a descritiva ou
interpretativa (ou, ainda, informativa), atada ao processo de revelação
e compreensão do próprio direito.
De fato, os princípios atuam, na fase jurídica, contínua e
incessantemente, como proposições ideais propiciadoras de uma
direção coerente na interpretação da regra de direito. São veios
iluminadores à compreensão da regra jurídica construída.
31
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 299. 32
DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 14-15.
33
Ibidem, p. 17-18.
20
Os princípios cumprem, aqui, sem dúvida, sua função mais clássica e
recorrente, como veículo de auxílio à intepretação. Nesse papel,
contribuem no processo de compreensão da regra, balizando-a à
essência do conjunto do sistema jurídico. São chamados princípios
descritivos ou informativos (ou interpretativos), à medida que
propiciam uma leitura reveladora das direções essenciais da ordem
jurídica analisada. Os princípios informativos ou descritivos não
atuam, pois, como fonte formal do Direito, mas como instrumental de
auxílio à interpretação jurídica.34
É de se concluir que, uma vez realizada a técnica gramatical de
interpretação, extraindo-se as várias possibilidades semânticas do texto legal
(enunciado prescritivo) sob procedimento interpretativo, os princípios atuarão como
meio de seleção das hipóteses interpretativas que se compatibilizem não só com os
valores incidentes sobre o Direito Positivo como um todo (dentre eles, principalmente,
os valores constitucionais), como também os valores incidentes sobre o setor
normativo específico (como, por exemplo, o Direito do Trabalho) em que esteja
inserido o texto legal em interpretação, oferecendo efetiva unidade ao sistema jurídico,
como destacado por Maria Helena Diniz:
O rigor científico requer que o jurista, ao estudar e ao interpretar
normas, estabeleça um entrelaçamento entre elas, de tal sorte que haja
unidade e coerência lógica do sistema normativo por ele criado
epistemologicamente.
O sistema apresentará unidade se as várias normas forem conformes
à norma-origem (Constituição); consequentemente haverá uma
coerência, ante a impossibilidade lógica de existirem preceitos
infraconstitucionais antagônicos à Lei Maior. Isto é assim pelo critério
hierárquico (lex superior derrogat legi inferior), baseado na
superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra. O
princípio lex superior quer dizer que, num conflito entre normas de
diferentes níveis, a de escalão mais alto, qualquer que seja a ordem
cronológica, terá a preferência em relação à de nível mais baixo.
Logo, a norma constitucional que deu início à ordem jurídica, por ser
norma-origem, prevalece sobre todas as disposições normativas
subconstitucionais. Daí falar-se em inconstitucionalidade da lei.
Portanto, a ordem hierárquica entre as fontes servirá de guia para
solucionar conflitos de normas de diferentes escalões. Kelsen ensina-
nos... que não pode haver, no sistema, em normas de diversos níveis,
34
DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 17.
21
contradição, porque a norma inferior retira seu fundamento de
validade da superior. Só será válida a norma inferior se estiver em
harmonia com a do escalão superior.
O sistema apresentará incoerência lógica se houver divórcio
entre suas normas no que atina ao processo de sua elaboração ou ao
seu conteúdo empírico.35
Daí a necessidade de se buscar interpretação que não só seja compatível
com a realidade social e tecnológica atual, como também com os ditames
constitucionais e valores que sistematizam o sistema jurídico de um Estado
Democrático de Direito.
Passamos, agora, a apreciar não só os princípios inerentes à interpretação
constitucional.
2.2. A interpretação constitucional e seus princípios
Willis Santiago Guerra Filho afirma que uma tarefa de importância
inexcedível que se apresenta no momento para quem lida profissionalmente com o
Direito é a de tomar consciência das peculiaridades da hermenêutica constitucional36
.
Ainda segundo o referido Professor, praticar a “intepretação constitucional”
é diferente de interpretar a Constituição de acordo om os cânones tradicionais da
hermenêutica jurídica, desenvolvidos, aliás, numa época em que as matrizes do
pensamento jurídico assentavam-se em bases privatísticas37
.
Celso Ribeiro Bastos ensina que a interpretação constitucional não despreza
a interpretação jurídica de um modo geral, mas apresenta uma série de particularidades
que justificam seu tratamento diferenciado, num estudo de certa forma autônomo dos
demais métodos interpretativos presentes no sistema jurídico38
, além de compreender o
35
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 120. 36
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Da interpretação especificamente constitucional. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 32, n
o128, out/dez.1995, p. 255.
37
Idem. 38
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 49.
22
campo de atuação da “interpretação constitucional” sob um espectro mais amplo,
envolvendo não só a atividade interpretativa dos enunciados prescritivos constantes da
Constituição, mas também a interpretação dos enunciados infraconstitucionais
segundo a Constituição:
... a interpretação constitucional não pode ser simplesmente
considerada como a interpretação da Constituição, exclusivamente. O
que se pode dizer, é certo, é que só haverá interpretação constitucional
quando a Constituição estiver envolvida.39
Dentre as razões que levam à essa diferenciação interpretativa dos
enunciados prescritivos40
constitucionais, estão: a ”inicialidade” fundante das normas
constitucionais, sendo a Constituição o fundamento de todas as demais normas do
ordenamento jurídico e o caráter aberto das normas constitucionais e sua atualização,
vez que a norma constitucional, muito frequentemente, apresenta-se como uma petição
de direitos ou mesmo como uma norma pragmática sem conteúdo preciso ou
delimitado41
.
Objetivando a plena eficácia constitucional, a doutrina constitucionalista
construiu diversos princípios interpretativos das normas constitucionais, sendo que
nesta tese adotamos, por entendê-lo como o mais completo e suficiente para o nosso
objetivo, o rol apresentado por J.J. Gomes Canotilho, acrescentando-lhe somente o
princípio da supremacia da Constituição, destacado por Celso Ribeiro Bastos.
Segundo Canotilho, têm-se os seguintes princípios de interpretação
constitucional: princípio da unidade da Constituição, princípio da máxima efetividade,
princípio da justeza ou da conformidade funcional, princípio da concordância prática
ou da harmonização e princípio da força normativa da Constituição. Analisemos cada
um deles:
39
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 87. 40
Referimo-nos às diferenças entre as interpretações de enunciados normativos infraconstitucionais e constitucionais. 41
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 53-54.
23
Por princípio da unidade da Constituição entende-se a obrigação do
intérprete de considerar a Constituição na sua globalidade e de procurar harmonizar os
espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Trata-se de
uma consequência de uma visão sistêmica das normas constitucionais, em que todas
são elementos de um mesmo sistema, harmonizando-se e se inter-relacionando. Daí
que o intérprete deve sempre considerar as normas constitucionais não como normas
isoladas, mas sim como preceitos integrados num mesmo sistema interno, unitário de
normas e princípios42
. Sobre esse princípio, transcrevemos os ensinamentos de Celso
Ribeiro Bastos:
Como consequência deste princípio, as normas constitucionais
devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente
imbricadas. Não se poderá jamais tomar determinada norma
isoladamente, como suficiente em si mesma. É que a Constituição
pode perfeitamente prever determinada solução jurídica num
determinado passo seu, para noutro tomar posição contrária, dando
lugar a uma relação entre norma geral e outra específica. Esta
predomina no espaço que abrange. Não há, pois, qualquer fratura
constitucional. E isso porque se a Constituição é uma, e se é ela o
documento supremo da nação, todas as normas que contempla
encontram-se em igualdade de condições, nenhuma podendo se
sobrepor à outra para lhe afastar o cumprimento. As duas normas
vigem por inteiro, apenas que em situações diversas (nunca para a
mesma situação). Assim, cada uma vige em seu campo próprio, do
que resulta a aplicação de ambas.43
Como princípio do efeito integrador, temos que na resolução dos problemas
jurídico-constitucionais deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que
favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Trata-se de
princípio muitas vezes associado ao princípio da unidade44
.
42
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1096-1097.
43
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 103.
44
CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 1097-1098.
24
O princípio da justeza, também denominado princípio da conformidade
funcional, visa impedir que, em sede de concretização da Constituição, a alteração da
repartição de funções constitucionalmente estabelecidas. Hoje, este princípio tende a
ser considerado mais como um princípio autônomo de competência45
.
Quanto ao princípio da máxima efetividade, à uma norma deve ser atribuído
o sentido que maior eficácia lhe dê, sendo que a eficácia de que trata esse princípio é a
eficácia social46
, isto é, deve-se preferir interpretações que maximizem a sua atuação
efetiva no mundo social concreto47
, principalmente quando se trata de Direitos
Fundamentais.
O princípio da concordância prática, também denominado “princípio da
harmonização” é, na realidade, uma forma de superação de tensões entre normas
jurídicas que introduzem Direitos Fundamentais. Esse princípio impõe a coordenação
e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de
uns em relação aos outros. Subjacente a este princípio está a ideia de igual valor dos
bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o
sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e
condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou
concordância prática entre estes bens48
.
Segundo o princípio da força normativa da Constituição, na solução dos
problemas jurídico-constitucionais deve-se dar prevalência aos pontos de vista que,
tendo em conta os pressupostos da Constituição (normativa), contribuem para uma
eficácia ótima da lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às
45
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1097-1098 46
Ibidem, p. 1097-1098. 47
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72.
48
CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 1098.
25
soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas
constitucionais, possibilitam a atualização normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua
eficácia e permanência49
.
Finalmente, temos o princípio da supremacia da Constituição, segundo o
qual, pelo fato da Constituição ser a norma superior do ordenamento jurídico, não se
dá conteúdo à Constituição a partir das leis. A forma a adotar-se para a explicação de
conceitos opera sempre “de cima para baixo”, o que serve para dar segurança em suas
definições. Esse princípio repele todo o tipo de interpretação que venha de baixo, é
dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da lei50
, bem como
dá origem ao princípio da interpretação conforme a Constituição, destinado
principalmente à interpretação de textos infraconstitucionais, que é detalhadamente
descrito por Glauco Barreira Magalhães Filho no trecho abaixo, extraído de sua obra
Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição:
Princípio da interpretação conforme à Constituição – De acordo com
esse princípio, a Constituição deve ser interpretada segundo os seus
valores básicos, e a norma infraconstitucional deve ser compreendida
a partir da Constituição. Assim, se uma norma infraconstitucional
admite várias interpretações, dar-se-á preferência àquela que
reconheça a constitucionalidade da norma e realize melhor os fins
constitucionais.
As normas definidoras de direitos fundamentais trazem a enunciação
de valores e não reportam aos fatos sobre os quais incidem, sendo
estes previstos nas normas infraconstitucionais ou identificados no
caso concreto. Embora tragam a previsão de um fato, as normas
infraconstitucionais (regras) não enunciam um valor, embora o
pressuponham. No caso, deve-se preferir a interpretação que vai ao
encontro de um valor constitucionalmente almejado.
Atingindo a norma infraconstitucional os fins constitucionais em
situações típicas (aquelas que, pela sua ocorrência habitual, podem ser
previstas pelo legislador), apenas em uma situação atípica (situação
limite ou situação não habitual), a norma será afastada para que se
possa fazer valer diretamente o preceito constitucional.
49
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1099.
50 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos
Editora, 1999, p. 101-102.
26
A interpretação conforme à Constituição está limitada pela
literalidade do texto normativo, ou seja, não pode, sob o pretexto de
economia normativa, dar a uma norma um sentido que contrarie suas
potencialidades linguísticas, a fim de que ela possa ser conciliada com
a Constituição e ter a sua validade preservada. Também não será
válida a regra infraconstitucional que, apesar de não agredir
diretamente um preceito da Constituição, tire a sua funcionalidade,
pois aí terá ocorrido violação ao princípio da proporcionalidade e ao
da razoabilidade.51
2.3 A interpretação de direitos fundamentais
Aos Direitos Fundamentais, termo que utilizamos nesta tese como sinônimo
de Direitos Humanos, agregam-se técnicas de interpretação que objetivam a maior
efetividade possível das normas jurídicas qualificadas como introdutoras dessas
espécies de Direito.
2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais
O conceito jurídico atual de “vida” é produto da evolução da sociedade, não
se restringindo ao conceito então pensado pelo Poder Constituinte Originário, mas se
ampliando a cada dia. Pietro de Jesus Lora Alarcón aponta a existência de 4(quatro)
acepções de “vida” na Constituição Federal de 1988, quais sejam: a integridade física
do ser humano (manutenção da anatomia e da fisiologia que caracterizam o corpo
humano); a liberdade (o homem como sujeito livre e autodeterminado); vida digna, no
sentido do homem poder contar com os recursos, inclusive materiais, necessários ao
alcance de sua felicidade (homem como sujeito social); e a tutela da vida a partir da
ótica genética52
. Todas essas acepções de vida não surgiram ao acaso, mas foram
resultado de um longo processo histórico em que foi se dilatando o conceito de vida e,
consequentemente, viu-se a necessidade de uma proteção mais ampla pelo Direito.
Nesse sentido, as lições de Airton Ferreira Pinto que, inclusive, utiliza a expressão
51
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72-73.
52
ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 167-219.
27
“homem total” (modelo de ser humano, com todas as suas necessidades e fragilidades,
que necessitam de proteção) como a referência para a construção dos Direitos
Fundamentais:
Um direito humano é aquele que é construído e que tem como
verdade pragmática a construção da igualdade entre os humanos, a
liberdade dignificante e respeitosa nas relações promovidas e
garantidas pelo Estado. Ele é legítimo pelo processo democrático de
sua construção que se realiza onde o princípio da razoabilidade
acontece. O direito é o que traz na própria essência o sentido real e
último do justo, e tendo o homem total no centro de sua preocupação,
trata a dignidade como expressão singular a ser promovida e
protegida. É preciso empreender, finalmente, que o direito individual
somente existe no conjunto social. Sem este aquele deixa sua condição
para ser exclusivo.53
A proteção da vida humana é dialética, confundindo-se a sua evolução com
a do Direito e, particularmente, com a evolução do Direito Constitucional, o que se
comprova examinando-se a preocupação da positivação constitucional, a partir da
Magna Carta, passando pelas Declarações de Direitos, por Constituições consideradas
marcos na história jurídica do mundo, como a Constituição soviética e a Constituição
de Weimar, finalizando com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a
proteção do direito à vida. Pode-se até afirmar que o conjunto positivado de liberdades
e garantias forma o desdobramento do direito a viver, seja direito a existir, direito a
conviver, ou direito a viver protegido dos impactos e choques do convulsionado
mundo contemporâneo54
.
Francisco Pedro Jucá, dissertando sobre os direitos fundamentais do
trabalhador, conceitua Direitos Fundamentais como um conjunto de direitos que, por
sua natureza e papel desempenhado no contexto, servem de fundamento para a
construção do ser qualificado como humano, isto é, aqueles sem os quais não se pode
53
PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 243.
54
ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 85.
28
entender a condição humana desse ser55
e acrescenta, Jucá, a respeito da variação do
conteúdo do direito à vida no tempo, que:
... os valores, especial e destacadamente o Justo, sobrepairam,
integram o universo fundamentalmente da organização cultural da
sociedade, pertinindo ao seu imaginário, ao seu caldo de cultura como
categoria ideal e, em razão disso, serve de referência à matriz na
formulação das normas de conduta que são obrigatórias aos membros
daquela comunidade, na medida em que estas normas buscam...
materializar, como representação, este valor nas suas repercussões e
rebatimentos às necessidades da vida social.56
De acordo com o raciocínio até aqui seguido, entendemos direitos
fundamentais como sendo o conjunto de normas jurídicas que têm por objetivo a
proteção do direito à vida em todas as suas acepções absorvidas pelo Direito, contendo
no seu antecedente normativo a descrição abstrata de um comportamento, obrigatório,
proibido ou permitido, que realiza a proteção do direito à vida sob cada uma das suas
acepções absorvidas pelo Direito. Em consonância com o conceito por nós
apresentado, Airton Pereira Pinto conclui que:
Os direitos que tratam da vida humana, em todos os seus aspectos,
complexidades e dimensões, não são algo dado, mas construído. Os
direitos humanos são o resultado do esforço e do engenho humano, em
dar conta da proteção da vida coletiva do homem – animal político.
Por isso, os direitos humanos não são separáveis, fragmentados e
estanques, e sim formam um todo conexo, enfeixado.57
A despeito do caráter de sistema dos Direitos Fundamentais, o que afasta
a possibilidade da compreensão efetiva dos mesmos de forma individualizada ou
fragmentada, o doutrina, com objetivos eminentemente didáticos, agrupa os Direitos
Fundamentais em subclasses que são denominadas gerações ou famílias de Direitos
Fundamentais, com as seguintes características:
55
JUCÁ, Francisco Pedro. Os direitos individuais fundamentais do trabalhador. In: NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Coord.). A transição do Direito do Trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 1999, p. 264.
56
Ibidem, p. 266. 57
PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 241.
29
- Direitos Fundamentais de Primeira Geração: conjunto de normas jurídicas que têm
por objetivo a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “liberdade
individual”, prendendo-se à ideia de que o poder central (estatal) deve se afastar de
tudo aquilo que não seja essencial para manter os Direitos individuais do ser humano,
passando a ter importância o indivíduo e o individualismo, a liberdade e a propriedade;
- Direitos Fundamentais de Segunda Geração: conjunto de normas jurídicas que têm
por objetivo a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “vida com qualidade”,
a vida com dignidade, a necessidade de intervenção do Estado nas relações jurídicas
no sentido de tentar igualar os diversos polos dessas relações, caracterizados por
efetiva diferença, oriunda da situação de fato em que são construídas e desenvolvidas
essas relações, no que tange a poder (político, econômico e/cultural) e privilégios.
Essas normas jurídicas (Direitos Fundamentais de Segunda Geração), que também são
denominadas “Direitos Sociais”, buscam equilíbrio nas relações jurídicas, garantindo
direitos mínimos à parte vulnerável. Sobre tal geração, Manoel Messias Peixinho
ensina que:
A dimensão social dos direitos fundamentais não suplantou a ideia
clássica dos direitos individuais, mas imprimiu profundas
transformações no conceito oriundo do liberalismo. Dentre outros
fatores responsáveis por essas mudanças, constata-se a influência da
ideologia marxista, segundo a qual as liberdades normais são, na
verdade, ficção jurídica, que tem o objetivo de mascarar a dominação
de uma classe por outra. A liberdade deve ser a de participação, na
qual os indivíduos são atores sociais da transformação. A
característica fundamental responsável pela mudança no conceito de
liberdade é a inclusão, na dimensão inseparável das liberdades, dos
direitos econômicos e sociais, que objetivam assegurar aos cidadãos as
condições materiais que lhes permitam exercer a cidadania plena. Não
se trata, aqui, ao contrário da concepção clássica, de proteger as
liberdades negativas e formais, mas garantir a intervenção do Estado
para que tutele as políticas públicas, concretize-as e torne acessíveis
aos cidadãos as garantias mínimas para que possam viver com
dignidade.58
58
PEIXINHO, Manoel Messias. As Teorias e os Métodos de Interpretação Aplicados aos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 27-28.
30
- Direitos Fundamentais de Terceira Geração: conjunto de normas jurídicas que têm
por finalidade a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “proteção da
humanidade como um todo”, visto que os avanços tecnológicos, com a maior
capacidade do homem de intervir na natureza, explorando-a, juntamente com uma
realidade retratada na irresponsabilidade do homem em seu ato de exploração dos
recursos naturais, fez com que surgisse a preocupação com a manutenção da existência
humana, mas não somente sob um referencial individual, mas sob toda a humanidade
- Outras gerações de Direitos Fundamentais: há Autores que já se referem a Direitos
Fundamentais de quarta, quinta e sexta gerações59
, sendo certo que tais gerações ainda
não se encontram consolidadas na doutrina, valendo, para os contornos da presente
tese, somente a indicação do início de construção das mesmas.
2.4.2 A interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais
Os Direitos Fundamentais, como classe formada por normas jurídicas que
têm em comum o objetivo da proteção da vida sob cada uma das acepções absorvidas
pelo Direito, possuem características uniformes, dentre elas a universalidade (no
sentido de que os Direitos Fundamentais devem ser aplicados a todas as pessoas, sem
distinção de qualquer espécie), indivisibilidade e interdependência (um direito
fundamental somente alcança a plenitude de sua realização quando os demais direitos
fundamentais são respeitados60
; como afirma Flávia Piovesan, “todos os direitos
humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes
59
Como Pietro de Jesús Lora Alarcon, que cita a existência de Direitos Fundamentais de quarta geração -cujo foco é a proteção do ser humano no campo genético, frente à biotecnologia – (Cf. ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 87-100) e Arion Sayão Romita, que indica a existência de Direitos Fundamentais de Quinta Geração - cujo objetivo é a proteção da vida humana frente à utilização dos conhecimentos fornecidos pela cibernética e pela informática – e de Sexta Geração – cuja finalidade é a proteção da vida humana frente aos efeitos decorrentes da globalização – (Cf. ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 107-108). 60
ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p.68.
31
direitos estão necessariamente inter-relacionados e são interdependentes entre si”61
),
historicidade (entre os Direitos Fundamentais não são um dado, mas um construído) e
unidade (os Direitos Fundamentais, apesar de compreenderem diversas famílias ou
gerações, estabelece-se uma interação pela qual uma geração de Direitos
Fundamentais se relaciona com outra e dela recebe influência62
).
Ora, na interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais, em especial na exploração da elasticidade semântica dos enunciados, há
que se atentar para a manutenção de todas as características típicas dessa espécie de
norma jurídica, incluindo-se no procedimento interpretativo as seguintes limitações:
a) excluir hipóteses interpretativas que criem limitação subjetiva à aplicabilidade da
norma jurídica, destinando a aplicação da norma jurídica somente a determinados
sujeitos, excluindo a aplicação sobre outros sujeitos que se encontrem na mesma
situação objetiva. Dessa forma, garante-se a manutenção da “universalidade” do
Direito Fundamental;
b) levar em consideração o “Sistema de Direitos Fundamentais”, não se permitindo a
interpretação de um texto introdutor de Direito Fundamental sem levar em
consideração os demais Direitos Fundamentais aplicáveis no Direito Pátrio, evitando-
se, assim, ao máximo possível, a colisão entre Direitos Fundamentais. Utilizando-se tal
procedimento busca-se garantir a unidade, a indivisibilidade e a interdependência dos
Direitos Fundamentais;
c) dentre as hipóteses interpretativas que se apresentarem frente à elasticidade
semântica do enunciado prescritivo, deve-se adotar aquela que melhor se compatibilize
com o real conteúdo do Direito Fundamental frente ao seu processo de criação e
desenvolvimento até a data da realização da interpretação. Garante-se, assim, a
historicidade.
61
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5ª edição. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 151.
62
ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p.77.
32
É de se destacar, também, o princípio interpretativo da máxima
efetividade que, apesar de já apresentado por nós no item 2.2 deste Capítulo como
princípio aplicável à interpretação constitucional em geral, tem peculiar aplicabilidade
na interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais.
Impõe referido princípio que, à uma norma deve ser atribuído o sentido que maior
eficácia lhe dê, sendo que a eficácia de que trata esse princípio é a eficácia social63
,
isto é, deve-se preferir interpretações que maximizem a sua atuação efetiva no mundo
social concreto64
. Sobre este princípio, cabe transcrição dos ensinamentos de Luís
Roberto Barroso:
A ideia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente
recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos
últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição,
e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a
efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação
constitucional. A doutrina contemporânea refere-se à necessidade de
dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista
que levem às normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias
de cada caso.
É oportuno, aqui, para a operatividade do princípio, um
aprofundamento conceitual da efetividade. Os fatos jurídicos
resultantes de uma manifestação de vontade denominam-se atos
jurídicos. Quando emanados do Poder Público, tais atos serão
legislativos, administrativos ou judiciais. Classicamente, os atos
jurídicos comportam análise científica em três planos distintos e
inconfundíveis: o da existência, o da validade e o da eficácia. Não é
possível, nesta instância, aprofundar esses conceitos. Faz-se apenas o
registro de que a existência do ato jurídico está ligada à presença de
seus elementos constitutivos (normalmente, agente, objeto e forma) e
a validade decorre do preenchimento de determinados requisitos, de
atributos ditados pela lei. A ausência de algum dos requisitos conduz à
invalidade do ato, à qual o ordenamento, considerando a maior ou
menor gravidade, comina as sanções de nulidade ou anulabilidade.
De maior interesse para os fins aqui visados é a eficácia dos atos
jurídicos, o terceiro plano de análise, que se traduz na sua aptidão para
a produção de efeitos, para a irradiação das consequências que lhe são
próprias. Eficaz é o ato idôneo pra atingir a finalidade para a qual foi
gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a
63
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1097-1098.
64
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72.
33
qualidade de produzir, em maior ou menor grau, os seus efeitos
típicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e
comportamentos nela indicados; neste sentido, a eficácia diz respeito à
aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma. Atente-se
bem: a eficácia refere-se à aptidão, à idoneidade do ato para a
produção de seus efeitos.65
Por fim, frente à universalidade dos Direitos Fundamentais e à máxima eficácia
que deve ser buscada na interpretação e na aplicação dos Direitos Fundamentais, surge
questão importante no que tange à interpretação de textos legais infraconstitucionais
introdutores de normas jurídicas limitadoras da aplicação objetiva de Direitos Fundamentais.
Tais enunciados prescritivos devem ser interpretados restritivamente, limitando a
idoneidade das hipóteses interpretativas (surgidas frente à elasticidade semântica do texto
normativo) àquelas que indiquem a não aplicação, num caso concreto específico, de
determinado Direito Fundamental em razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de
verificação quantitativa (constatação da quantidade) e/ou de verificação qualitativa
(constatação da qualidade) de fatos do mundo fenomênico capazes de se enquadrar no
antecedente de uma norma jurídica introdutora de Direito Fundamental.
65
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253-254.
34
II – A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE MIGUEL REALE, A
ETICIDADE COMO PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO E O
FENÔMENO DA MUTAÇÃO NORMATIVA
A “Eticidade”, no contexto da ciência do direito, é fenômeno resultante do
desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito, daí a necessidade de, para a
efetiva comprovação da veracidade da hipótese por nós levantada nesta tese,
aprofundarmo-nos nas características de tal “Teoria”.
1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito
A mentalidade do século XIX foi fundamentalmente analítica ou
reducionista, sempre atentada a encontrar uma solução unilinear ou monocórdica para
os problemas sociais e históricos, ao passo que em nossa época prevalece um sentido
concreto de totalidade ou de integração, na acepção plena destas palavras, superadas as
pseudototalizações realizadas em função de um elemento ou fator destacado do
contexto da realidade66
. A suposta correspondência entre a infraestrutura social e o
sistema de normas vigentes levava, por conseguinte, o jurista a concentrar a sua
atenção nos elementos conceituais ou lógico-formais, não havendo razões para
distinguir entre Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito67
.
Impõe-se reconhecer que houve plausíveis razões históricas para que, no
século XIX, por exemplo, predominasse a imagem do Direito com base na certeza
objetiva da lei. É que as estruturas jurídicas do Estado de Direito, modelado sob o
influxo do individualismo liberal dominante na cultura burguesa, cujos valores se
impunham como expressão natural de toda uma época histórica, correspondiam,
consoante crença generalizada, às necessidades e tendências da sociedade oitocentista.
Dominando entre os juristas a convicção de uma correspondência essencial entre a
66
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 10. 67
Ibidem, p. 5.
35
realidade socioeconômica e os modelos jurídicos consagrados nas leis, era natural que
o problema da validade fosse posto em termos de validade formal ou de vigência68
.
Sobretudo a partir do segundo pós-guerra, uma generalizada aspiração no
sentido da compreensão global e unitária dos problemas jurídicos, abandonadas as
predileções reducionistas que levam a pseudototalizações69
. Se é certo que as
estruturas lógicas da Dogmática Jurídica tradicional não correspondem mais às
transformações operadas na sociedade atual, nem às exigências morais e técnicas do
Estado do Bem-Estar Social ou da Justiça Social – expressões com as quais se
reclamada um Estado de Direito concebido em função de uma comunidade humana
plural e, ao mesmo tempo, solidária-, também é verdade que ao lado de salutar crise de
ordem metodológica, põe-se outro problema não menos essencial: o da nova
determinação do significado da Ciência do Direito para o destino do homem70
.
Reconhecido, com efeito, o desajuste entre os sistemas normativos e as
correntes subjacentes da vida social, os domínios da Ciência do Direito viram-se
agitados por uma nova “ventania romântica”, tal como qualificado o movimento do
“Direito Livre”(Freis Recht) ou da libre recherche du droit, chegando a ser postos em
xeque os elementos de certeza indispensáveis à ordem jurídica positiva. Foi através
dos debates sobre a teoria geral da interpretação que as inquietações filosófico-
jurídicas penetraram nos redutos da Ciência Jurídica. Ao mesmo tempo, a Filosofia do
Direito embebia-se de problemática positivista, achegando-se mais concretamente às
exigências práticas do direito71
. Eis as palavras de Gény, destacadas por Miguel Reale:
“É, pois, na essência e na vida mesma do Direito Positivo que, antes de mais nada, nos
cabe penetrar, recolocando-o no meio do mundo social, do qual ele é um elemento
68
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 16. 69
Ibidem, p. 20. 70
Ibidem, p. 10. 71
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 6.
36
integrante, para estudá-lo em função das forças intelectuais e morais da humanidade,
que, somente elas, lhe podem dar real valor”72
.
A busca do essencial e do concreto surge, assim, como uma exigência
indeclinável dos novos tempos. Há um chamado vivo para a Filosofia do Direito,
porque está em jogo o destino mesmo das hierarquias axiológicas de cuja estabilidade
os códigos eram ou ainda se pretende sejam reflexos73
. Nem é demais observar que,
paralelamente ao crescente interesse pelos estudos filosófico-jurídicos, o que afirma
cada vez mais é a exigência de uma Ciência Jurídica concreta, permanentemente
ligada aos processos axiológicos e históricos, econômicos e sociais, o que se pode
observar em múltiplas direções, sob variadas formas e expressões, amiúde empregadas
pelos diversos autores, tais como “infraestrutura econômica”, “experiência jurídica”,
“realidade do direito”, “fato normativo”, “jus vivens”, “direito como conduta”, “direito
como ordenamento”, “direito como fato, valor e norma”, “socialidade do direito”,
“jurisprudência dos interesses”, “jurisprudência dos valores”etc74
.
Se os juristas, porém, interessam-se cada vez mais pela Filosofia, a
recíproca também o é, visto como os filósofos do direito abandonaram também os seus
esquemas formais e abstratos para tomarem contato cada vez mais vivo com a
positividade do direito, aprendendo a dar valor ao particular, ao contingente e ao
empírico, tal como se desenrola e se dramatiza a vida dos advogados e dos juízes, em
suma, da experiência jurídica75
.
Quem assume, porém, uma posição tridimensionalista já está a meio
caminho andado da compreensão do Direito em termos de “experiência concreta”,
pois, até mesmo quando o estudioso se contenta com a articulação final dos pontos de
vista do filósofo, do sociólogo e do jurista, já está revelando salutar repúdio a
quaisquer imagens parciais ou setorizadas, com o reconhecimento da insuficiência das
72
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 6. 73
Ibidem, p. 7. 74
Ibidem, p. 8. 75
Idem.
37
perspectivas resultantes da consideração isolada do que há de fático, de axiológico ou
ideal, ou de normativo na vida do Direito. Se, como adverte Recasén Siches, o Direito
é essencialmente tridimensional, essa qualidade não pode existir só para o jurista, no
plano de sua atividade científico-positiva, mas deve constituir antes um pressuposto de
validade transcendental, condicionando, por conseguinte, todas as estruturas e modelos
que compõem a experiência do direito. Se assim não fora, começaria a existir, nos
domínios da Filosofia do Direito, um pernicioso divórcio entre filósofos e juristas76
.
Nesse contexto, vê-se que a Filosofia do Direito não pode se alienar dos
problemas da Ciência do Direito, mas, ao contrário, deve achegar-se a eles,
convertendo-os em seus problemas, sob outro prisma que não o da Ciência, empregada
a palavra problema no seu sentido original, como algo posto como objeto de análise,
implicando a possibilidade de alternativas77
. É claro que, nessa procura de novos
caminhos, visando atingir o direito concreto, o problema da efetividade ou da eficácia
assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas a se preocupar com soluções
forjadas ao calor da experiência social, ainda que com os sacrifícios dos valores da
certeza e da segurança78
. É nesse amplo contexto histórico que se situam as diversas
formas de tridimensionalismo jurídico, infensos a interpretações setorizadas ou
unilaterais da experiência jurídica, a soluções, em suma, que impliquem a
desarticulação de uma estrutura, fora da qual os conceitos de vigência, eficácia e
fundamento resultariam mutilados79
.
Na visão de Reale, vigência, eficácia e fundamento são qualidades inerentes
a todas as formas de experiência jurídica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela,
segundo as circunstâncias, sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo,
como é próprio da estrutura do Direito80
, devendo-se correlacioná-los segundo uma
76
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 11. 77
Ibidem, p.12. 78
Ibidem, p.17-18. 79
Ibidem, p.20. 80
Ibidem, p.21.
38
compreensão dialética de complementariedade81
. Tudo isto está a demonstrar como a
pesquisa filosófica, penetrando no âmago da validez formal, anima e fecunda, dando-
lhe um novo sentido de integralidade e concreção, a Ciência Dogmática do Direito,
colaborando com os juristas positivistas em sua difícil e árdua tarefa de determinar e
sistematizar as categorias jurídicas reclamadas por um mundo em mudanças82
.
2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito
São múltiplas as teorias que põem em relevo a natureza tridimensional da
experiência jurídica, nela discriminando três “elementos”, “fatores” ou “momentos” (a
diversidade dos termos já denota as diferenças de concepção), usualmente indicados
com as palavras fato, valor e norma83
. Analisemos algumas dessas teorias para, ao fim,
apontar aquela que se identifica com o pensamento de Reale.
2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do direito
Destacam-se a posições de Emil Lask e Gustav Radbrucj, mestres da Escola
Sud-Ocidental Alemã, que recorreram a um elemento intermédio ou de ligação posto
entre os valores ideais e os dados da experiência jurídica: esse ponto de conexão entre
a realidade empírica e o ideal do Direito seria o mundo da cultura ou da história, isto
é, o complexo de bens espirituais e materiais constituído pela espécie humana através
dos tempos84
. Plano do valor ou do dever ser, plano da realidade causalmente
determinada e plano da cultura ou do ser referido ao dever ser, eis aí assentes as bases
de um tipo de tridimensionalidade, segundo três ordens lógicas distintas,
correspondentes, respectivamente, a juízos de valor, juízos de realidade e juízos
81
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.22. 82
Idem. 83
Ibidem, p.23. 84
Ibidem, p. 24.
39
referidos a valores85
. Destarte, procuravam Lask e Radbruch superar a antinomia posta
entre a historiciedade de um valor transcendental (do qual o jusnaturalismo pretendera
deduzir artificialmente todo o sistema das normas positivas) e o mero significado
contingente das relações de fato, insuscetíveis de compreensão de validade universal,
como sustentavam os positivistas86
.
Lask e Radbruch apontavam cômoda distribuição de pesquisas entre o
filósofo, o sociólogo e o jurista, o primeiro incumbido de estudar a transcendentalidade
dos valores jurídicos, ou os valores jurídicos em si mesmos, com a consequente
redução da Filosofia do Direito numa Axiologia Jurídica Fundamental, o segundo,
com a tarefa de indagar das leis que regem as estruturas e os processos fáticos do
direito, isto é, o direito como fato social, nos quadros da Sociologia e o terceiro,
finalmente, empenhado na análise do Direito enquanto realidade impregnada de
significações normativas, segundo os cânones da Jurisprudência ou Ciência do Direito,
distinta pela especificidade do método jurídico-dogmático87
. Desdobra-se, nos
raciocínios de Lask e Radbruch, de maneira mais nítida neste último, o que Miguel
Reale denomina Tridimensionalidade Genérica ou Abstrata do Direito, visto como a
análise ôntica do fenômeno jurídico que os conduz a conceber, abstrata e
separadamente, cada um dos três elementos encontrados, fazendo corresponder a cada
um deles, singularmente considerado, respectivamente, um objeto, um método e uma
ordem particular de conhecimentos: a Ciência Integral do Direito seria obtida graças à
integração dos três estudos(na forma apontada por Lask), ou em virtude de simples
justaposição de três perspectivas entre si irreconciliáveis e antinômicas (como na visão
de Radbruch)88
. Ainda no campo do tridimensionalismo genérico, interessantes são as
palavras de Josef L. Kunz, que, segundo Miguel Reale, evidenciam sobremaneira as
características de tal espécie de tridimensionalidade:
85
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.23. 86
Ibidem, p.25. 87
Idem. 88
Ibidem, p. 25-26.
40
Eu sempre defendi a opinião – escreve Kunz – que há três ramos da
Filosofia do Direito e que esses ramos existem atualmente: o Analítico
(que inclui a Teoria Jurídica Pura), o Sociológico e o
Axiológico(Direito Natural). A Escola Analítica é de maior
importância para o Juiz, o Advogado e o Jurista teórico: concebe o
direito como norma, como sistema de normas, de um ponto de vista
analítico, teórico, formal, construtivo. Porém, para compreender o
direito, em toda a sua complexidade, não é menos necessário estudá-lo
do ponto de vista sociológico e axiológico. O enfoque sociológico do
direito é uma ciência causal: mais do que o direito mesmo, examina a
sua criação, e esta é, naturalmente, um fato histórico, social e político:
pertence ao reino do ser, enquanto as normas criadas em tal processo
se acham inseridas no reino do dever ser. A filosofia sociológica
considera também a efetividade do direito, e aqui se trata igualmente
de investigações causais. A filosofia jurídica axiológica, de seu lado,
critica o direito e toma como parte dessa crítica uma série de normas
extrajurídicas: o Direito Natural não é direito, mas sim Ética. Esta
tripartição, desejo acrescentar logo, corresponde às ideias de Verdross,
que reconheceu a necessidade de combinar as três direções, não
obstante as suas grandes diferenças metodológicas, para compreender
o direito em toda a sua complexidade89
.
2.2 A Tridimensionalidade Específica
Afirma Miguel Reale que era natural que, num dado momento dos estudos,
parecesse insustentável a posição correspondente à uma concepção tridimensional
genérica ou abstrata, vacilante entre uma justa posição extrínseca de perspectivas e
uma confessada antinomia ou aporia entre os três pontos de vista possíveis suscitados
pela experiência do Direito. Foi por volta de 1940 que surgiram as primeiras tentativas
no sentido de se mostrar a ilogicidade das teorias que, apresentando a realidade
jurídica como sendo constituída de três elementos, isto não obstante, continuavam a
conferir plena juridicidade a cada um deles, abstraído dos demais90
. Tal concepção
(tridimensionalidade específica) cessa de apreciar fato, valor e norma como elementos
separáveis da experiência jurídica e passa a concebê-los, ou como perspectivas ou
89
KUNZ, Josef L. La Filosofia Del Derecho de Alfred Verdross, 1962, p. 213. Apud REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38-39.
90
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38-39.
41
como fatores e momentos “inilimináveis” do Direito: é o que Reale denomina
“tridimensionalidade específica”91
.
Mesmo o tridimensionalismo específico oferece múltiplas e até mesmo
contrastantes formulações, de tal sorte que uma doutrina não pode se distinguir das
demais pelo simples afirmar-se de uma tricotomia essencial92
. Jerome Hall, após
considerar profunda a compreensão dos “realistas” norte-americanos quando
reclamavam uma base fática para as ciências sociais, afirmava que, segundo uma
perspectiva sociológico-humanística, o Direito não é puro fato, mas um tipo distinto de
realidade social: uma certa conduta que representa a fusão de ideias legais (normas)
com fatos e valores. O problema que fica em aberto consiste em saber como é que os
três elementos(fato, valor e norma) correlacionam-se na unidade essencial à
experiência jurídica, pois sem unidade de integração não há “dimensões”, mas simples
“perspectivas” ou “pontos de vista”, sendo que, conforme ensinamentos de Reale, é só
graças à compreensão dialética dos três fatores que se torna possível atingir uma
compreensão concreta da estrutura tridimensional do Direito, na sua natural
temporalidade93
.
2.2.1 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale
Pensa Reale que o saber jurídico não se apresenta, em seu todo, como uma
espécie de scientia omnibus, na qual todas as investigações se justaponham, mas que
ele se desdobra em planos lógicos que não podem e não devem ser confundidos, o
plano transcendental e o plano empírico-positivo, e, mais ainda, que, no segundo,
discriminam-se âmbitos ou campos distintos de pesquisa, que dão título de autonomia
à Sociologia do Direito, à Política do Direito, à Ciência Dogmática do Direito, ou à
História do Direito. O Direito é, por certo, um só para todos os que o estudam,
91
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 48-49. 92
Ibidem, p.49. 93
Ibidem, p. 50.
42
havendo necessidade de que os diversos especialistas se mantenham em permanente
contato, suprimindo e complementando as respectivas indagações, mas isto não quer
dizer que, em sentido próprio, possa-se falar numa única Ciência do Direito, a não ser
dando ao termo “ciência” a conotação genérica de “conhecimento” ou “saber”
suscetível de desdobrar-se em múltiplas “formas de saber”, em função dos vários
“objetos” de cognição que a experiência do Direito logicamente possibilita94
.
A unidade do Direito é uma unidade de processos, essencialmente dialética
e histórica, e não apenas uma distinta aglutinação de fatores na conduta humana, como
se esta pudesse ser conduta jurídica abstraída daqueles três elementos (fato, valor e
norma), que são o que a tornam pensável como conduta e, mais ainda, como conduta
jurídica. Não se deve pensar, portanto, na conduta jurídica como uma espécie de
mansão onde se hospedam três personagens, pois a conduta é a implicação daqueles
três fatores e com eles se confunde, ou não passa de falaciosa abstração, de uma
inconcebível atividade desprovida de sentido e de conteúdo95
.
Quando se fala em conduta jurídica não devemos pensar em algo de
substancial ou de “substante”, capaz de receber os timbres exteriores de um sentido
axiológico ou de uma diretriz normativa: ela, ao contrário, só é conduta jurídica
enquanto e na medida em que é experiência social dotada daquele sentido e daquela
diretriz, ou seja, enquanto se revela fático-axiológico-normativamente, distinguindo-se
das demais espécies de conduta ética por ser o momento bilateral-atributivo da
experiência social96
.
A Teoria Tridimensional do Direito desenvolvida por Miguel Reale
distingue-se das demais, de caráter genérico ou específico, por ser concreta e
dinâmica, isto é, por afirmar que:
94
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.56. 95
Idem. 96
Ibidem, p. 57.
43
c.1) Fato, Valor e Norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer
expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou sociólogo do direito ou
pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata,
caberia ao filósofo somente o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da
norma. Tem-se, assim, na forma desenvolvida por Reale, a Tridimensionalidade como
requisito essencial ao Direito97
.
c.2) A correlação entre os três elementos (fato, valor e norma) é de natureza funcional
e dialética, dada a “implicação-polaridade” existente entre fato e valor, de cuja tensão
resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites
circunstanciais de lugar e de tempo. Trata-se da concreção histórica do processo
jurídico numa dialética de complementariedade98
.
Seria absolutamente falho, portanto, reduzir o pensamento de Miguel Reale
sobre o Direito, como ele próprio destacou, aos dois enunciados discriminados acima,
omitindo-se outros pontos não menos relevantes, sem os quais a concepção do
Tridimensionalismo de Miguel Reale ficaria irremediavelmente mutilada, podendo-se
exemplificar com o acréscimo das seguintes proposições:
c.3) As diferentes ciências, destinadas à pesquisa do direito, não se distinguem umas
das outras por se distribuírem entre si fato, valor e norma, como se fossem fatias de
algo divisível, mas sim pelo sentido dialético das respectivas investigações, pois ora se
pode ter em vista prevalentemente o momento normativo, ora o momento fático, ora o
axiológico, mas sempre em função dos outros dois. É o que Reale reduz como
tridimensionalidade funcional do saber jurídico99
.
c.4) A Jurisprudência é uma ciência normativa (mais precisamente, compreensivo-
normativa), devendo, porém, entender-se por norma jurídica bem mais que uma
simples proposição lógica de natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero
97
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994,p. 57 98
Idem. 99
Idem.
44
instrumento técnico de medida no plano ético da conduta, pois nela e através dela se
compõem os conflitos de interesses, e se integram renovadas tensões fático-
axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência. Trata-se do normativismo
jurídico concreto ou integrante100
.
c.5) A elaboração de uma determinada e particular norma de direito não é mera
expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão
fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-social: é antes um dos
momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere
positivamente o poder (quer o poder individualizado de um órgão do Estado, quer o
poder anônimo difuso do corpo social, como ocorre na hipótese das normas
consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo de fatos
e valores, em função das quais é feita a opção por uma das soluções regulativas
possíveis, armando-se de garantia específica. Trata-se da institucionalização ou
jurisficação do poder na monogênese jurídica101
.
c.6) A experiência jurídica deve ser compreendida como um processo de objetivação e
discriminação de modelos de organização e de conduta, sem perda de seu sentido de
unidade, que vai desde as “representações jurídicas”, que são formas espontâneas e
elementares de juridicidade (experiência jurídica pré-categorial), até o grau máximo de
expansão e incidência normativas representado pelo direito objetivo estatal, com o
qual coexistem múltiplos círculos intermédios de juridicidade, segundo formas
diversificadas e autônomas de integração social, com a concomitante e complementar
determinação de situações e direitos subjetivos. Trata-se da teoria dos meios jurídicos
e da pluralidade gradativa dos ordenamentos jurídicos102
.
c.7) A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser
interpretada com abstração dos fatos e valores supervenientes, assim como da
totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que torna superados os esquemas
100
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.61. 101
Idem. 102
Ibidem, p. 61-62.
45
lógicos tradicionais de compreensão do direito. É o que Reale denomina como
elasticidade normativa e semântica jurídica103
.
c.8) A sentença judicial deve ser compreendida como uma experiência axiológica
concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo, verificando-se
nela, se bem que no sentido da aplicação da norma, um processo análogo ao da
integração normativa104
.
c.9) Há uma correlação funcional entre fundamento, eficácia e vigência, cujo
significado só é possível numa teoria integral da validade do Direito105
.
c.10) A compreensão da problemática jurídica pressupõe a consideração do valor
como objeto autônomo, irredutível aos objetos ideais, cujo prisma é dado pela
categoria do ser. Sendo os valores fundantes do dever ser, a sua objetividade é
impensável sem ser referida ao plano da história, entendida como “experiência
espiritual”, na qual são discerníveis certas invariantes axiológicas, expressões de um
valor-fonte (a pessoa humana), que condiciona todas as formas de convivência
juridicamente ordenada. Trata-se do historicismo axiológico106
.
c.11) Reale aponta consequente reformulação do conceito de experiência jurídica
como modalidade de experiência histórico-cultural, na qual o valor atua como um dos
fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitantemente, como
prisma de compreensão da realidade por ela constituída (função gnoseológica) e como
razão determinante da conduta (função deontológica)107
.
c.12) Em virtude da natureza trivalente do valor e da tripla função por ele exercida na
experiência histórica, o Direito é uma realidade in fieri, refletindo, no seu dinamismo,
a historiciedade mesma do ser do homem, que é o único ente que, de maneira
103
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 62. 104
Idem. 105
Idem. 106
Idem 107
Ibidem, p. 62-63.
46
originária, é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental de
toda experiência ético-jurídica. Trata-se do personalismo jurídico108
.
c.13) Há a necessidade de uma Jurisprudência que, no plano epistemológico,
desenvolva-se como experiência cognoscitiva, na qual sujeito e objeto se co-implicam
e, no plano deontológico, não se perca em setorizações axiológicas, mas atenda sempre
à solidariedade que une entre si todos os valores, assim como à sua condicionalidade
histórica. Trata-se da Jurisprudência histórico-cultural ou axiológica109
.
3 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel
Reale
Apresentados, através de breve descrição, o fundamento e as características
da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, importante destacar, frente ao
objetivo por nós quisto – explicar cientificamente, tendo como pano de fundo a Teoria
Tridimensional do Direito de Miguel Reale, como a modificação do regime de
visibilidade cultuado por uma sociedade implica na modificação das normas jurídicas
postas, mesmo sem a eventual alteração de texto de lei – a “Eticidade” como uma das
consequências da aplicação da Teoria Tridimensional do Direito no Direito posto.
3.1 Análise semântica do termo “Eticidade”
Objetivando a busca do conceito do “Eticidade”, entendemos importante
iniciar pelo estudo semântico da palavra que representa tal instituto, do suporte físico
introdutor do instituto no mundo da linguagem. O termo “Eticidade” é a soma da
palavra “ética”, que pode ser utilizada, na língua portuguesa tanto como substantivo
como sob a modalidade de adjetivo, com o sufixo “idade”. Referido sufixo tem
relevante e específico papel na língua portuguesa ao atuar como formador de
substantivos abstratos derivados de adjetivos, com o significado de “qualidade ou
108
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.63. 109
Idem.
47
característica do que x”(em que x corresponde ao adjetivo que serve de base)110
. Sobre
o tema, vale transcrever as lições de Adriana Cristina Chan-Vianna e Maria Aparecida
Curupaná da Rocha Mello:
Em português, a formação de substantivos a partir de adjetivos faz-se
por sufixação, estando entre as estruturas mais produtivas aquelas
formadas por –idade (juntamente com –eza e –ice). O sufixo –idade é
o sufixo mais utilizado para a formação de substantivos a partir de
adjetivos, dado que, embora possa ocorrer em qualquer tipo de
construção, adiciona-se sobretudo a formas já derivadas a partir de
adjetivos com as estruturas X–al, X-vel, X-ico, X-ário. O sufixo
normalizador –idade, do português, é classificado como sufixo
categorial não significativo, pois determina transposição da classe dos
adjetivos para a classe dos substantivos abstratos, sem especificar
qualquer acréscimo semântico além daquele da base.111
No caso específico do termo “Eticidade”, aplicando-se o quanto acima
exposto, podemos afirmar que tal termo é substantivo abstrato que significa qualidade
ou característica de ser ético. Essa conclusão não é muito diferente daquela apontada
pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa ao trazer o sentido denotativo da
palavra “Eticidade”, qual seja: qualidade ou caráter do que é condizente com a
moral112
. No entanto, parece-nos que a definição apresentada no referido dicionário
não pode ser simplesmente transposta para o raciocínio que travamos nesta pesquisa,
vez que parte da sinonímia entre “ética” e “moral” que, parece-nos, não é o sentido
utilizado para o radical “ética” no termo derivado “Eticidade” quando utilizado por
Miguel Reale.
Para que possamos ter uma definição mais profunda do que vem a ser
Eticidade é necessário que investiguemos o significado do adjetivo que serve de
radical para a formação de tal termo, isto é, o significado em que o adjetivo “ética” é
utilizado.
110
“Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”. 2008. Disponível em: <http://ciberduvidas.sapo.pt/pergunta.php?id=21193>. Acesso em 12.set.2008.
111
CHAN-VIANNA, Adriana Cristina e MELLO, Maria Aparecida Curupaná da Rocha. A construção da gramática guineense. 2008. Disponível em: <http://www.abecs.net/papia/docs/17/Chan-Vianna%20&%20Melo%202007.pdf>. Acesso em: 12.set. 2008.
112
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: <www.uol.com.br>. Acesso em 12.set. 2008.
48
3.1.2 A polissemia da palavra “Ética”
O termo “ética” é, sem dúvida alguma, polissêmico, podendo, a partir do
seu mesmo suporte físico, gerar grande quantidade de significados. Passamos, nos
próximos parágrafos, a apontar alguns significados que são utilizados para o referido
termo para que, num passo seguinte, possamos investigar, de forma certeira o sentido
do adjetivo “ética” que se encontra qualificado pelo sufixo “idade” formando o
substantivo abstrato “Eticidade” sob o enfoque do raciocínio desenvolvido por Miguel
Reale.
O Homem diferencia-se dos demais animais pela sua racionalidade, pela
sua capacidade de, tendo conhecimento da realidade que o envolve e da potencialidade
de seus atos, exercer a sua própria razão. Esse processo de atuação racional do Homem
envolve o livre-arbítrio, entendido como a liberdade de praticar os atos desejados, mas
que tem como baliza os efeitos potenciais dos atos realizados sob a permissão do livre
agir. Esses efeitos potenciais do agir humano se dirigem não só à individualidade do
ser atuante, mas também à comunidade que o cerca, motivo pelo qual o binômio
liberdade-responsabilidade interessa não só à cada cidadão, mas à sociedade.
A manutenção da sociedade e o seu funcionamento harmônico dependem
diretamente da responsabilidade, do cuidado de cada indivíduo no exercício de seu
livre arbítrio. O Homem, frente à uma determinada situação concreta que é enfrentada,
realiza o seu juízo de valor, que é a parte da psique humana onde reside o
discernimento primordial entre o erro e a verdade. É o hábito mental de apreciar as
coisas, as pessoas e as situações. Através do juízo de valor, há a efetiva análise das
possibilidades que tem o Homem, naquele momento, de agir, isto é, dos
comportamentos possíveis frente à situação, bem como dos efeitos potenciais que
cada um desses comportamentos possíveis é capaz de gerar na sua individualidade e
no mundo que o rodeia. Exemplifiquemos: atrasado para o serviço, o Homem trafega
pela via pública, quando avista um idoso caído ao chão em razão de um acidente
automobilístico sem que qualquer pessoa estivesse por perto para ajudá-lo. Nesse
momento, o Homem tem a liberdade de agir, praticando o ato que bem entender. Aqui
começa a agir o seu livre-arbítrio. Munido pelo juízo de valor, o Homem passa a
49
enumerar os comportamentos que lhe são possíveis naquela situação, como continuar o
seu percurso sem auxiliar o ferido, continuar o percurso e telefonar para que alguém
socorra o ferido, entre outros. Para cada um desses comportamentos possíveis, o
Homem analisa os efeitos potenciais de cada um deles: se continuar o seu percurso, o
idoso poderá vir a falecer por omissão de socorro; se suspender o seu percurso, poderá
sofrer punições de seu empregador em razão do atraso; entre outras possibilidades.
Aberta na mente humana essa virtualidade de possibilidades e seus potenciais efeitos,
cabe ao homem optar por um dos comportamentos possíveis, realizando-os e se
responsabilizando por seus efeitos.
A relação entre o livre arbítrio e os efeitos por ele gerados resulta na
necessidade de existência de parâmetros, de balizas, de limites para o livre agir
humano. Tais parâmetros são gerados pelo próprio Homem, vez que, sentindo no seu
interior que foi criado para aperfeiçoar a sua essência, passa a direcionar o seu juízo de
valor para a realização do bem, buscando a sua auto-perfeição, perfeição essa que
também é buscada pela sociedade, que impulsiona o indivíduo para a realização de
comportamentos que não desarmonizem a vida social. Através da experiência, do
conviver e da observação do mundo que o rodeia, o homem acumula um grupo de
regras que acredita serem eficazes e úteis para o seu aperfeiçoamento. A formulação
dessas regras, bem como o conjunto sistemático de normas oriundas dessa formulação,
recebem a denominação de moral113
.
Assim, por moral entende-se não só a formulação das normas morais, como
também a “moral positiva”, que é o conjunto de normas e valores morais de fato
aceitos por uma comunidade para regular as relações entre os seus membros114
. E
mais, se a moral está diretamente relacionada à comunidade a que é inerente, a
variedade de contextos históricos, sociais e culturais leva à uma pluralidade de morais,
significando dizer que morais concretas podem coexistir ou suceder uma às outras,
113
DROPA, Romualdo Flávio. Ética, Política e Justiça. 2006. Disponível em: < http://dropa.sites.uol.com.br/etica3.htm>. Acesso em 15.mar.2006.
114
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel e SAAD, Alya (organizadores). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 122-123.
50
sendo nessa pluralidade que o Homem, como sujeito moral, expressa seu papel ativo e
criador115
. Essa teoria é percebida na prática ao, por exemplo, verificarmos que numa
mesma cidade existem bairros com diferentes características, gerando morais positivas
diferentes em cada um desses.
Apresentado o conceito de moral, partimos para o conhecimento da ética.
Muitos estudiosos não conseguem constatar a diferença entre a ética (que advém do
grego ethos, que significa modo de ser) e moral (que tem origem no latim mores, cujo
significado é costumes), tratando-as, em razão da semelhança semântica dos termos,
como sinônimos116
. Essa, entretanto, não será a forma que compreenderemos ética e
moral. Tratando-se o presente texto de um estudo científico, devemos nos atentar à
precisão dos termos, que é uma característica da ciência, evitando-se a ambiguidade
dos vocábulos, já que a delimitação do objeto é pressuposto do controle da incidência
das proposições descritivas produzidas pelo conhecimento científico117
.
A ética é a ciência que tem como objeto a moral, é um conhecimento
racional que, a partir da análise de comportamentos concretos, caracteriza-se pela
preocupação em definir o que é bom, enquanto a moral preocupa-se com a escolha da
ação que, em determinada situação, deve ser empreendida118
. A ética foi
profundamente tratada pelos filósofos gregos, sendo que para eles a ética se
subordinava à ideia de felicidade da vida presente e do soberano bem, entendendo que
o objetivo supremo era encontrar uma definição desse bem, de tal maneira que o sábio
se bastasse a si mesmo, isto é, que dependesse dele mesmo para ser feliz, estando a
115
SOARES, André Marcelo M. e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p.25.
116
Ibidem, p.21. 117
CARVALHO, Paulo de Barros. Língua e Linguagem – Signos Linguísticos – Funções, Formas e Tipos de Linguagem – Hierarquia de Linguagem. In Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica), utilizada como material de apoio na cadeira de “Lógica Jurídica” no curso de pós-graduação stricto sensu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no 2º semestre do ano de 2002, p. 33.
118
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel e SAAD, Alya (organizadores). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p.24.
51
felicidade ao alcance de todo homem racional119
. Para muitos, ética e moral não se
excluem e não estão separadas, embora os problemas teóricos e práticos se
diferenciem, de maneira que decidir e agir concretamente é um problema prático e,
portanto, moral. Investigar essa decisão e essa ação, a responsabilidade que a elas é
inerente, e o grau de liberdade e de determinismo aí envolvidos é um problema teórico
e, portanto, ético120
.
Hoje, muito se fala sobre a “crise da ética”, fenômeno gerado em nome da
modernidade, do avanço tecnológico ou das novas tendências em que se verifica a
existência de um modo de pensar, de agir, de viver fora dos princípios morais que até
pouco tempo eram respeitados e aceitos, essa é a chamada crise ética. E a aceitação
natural e constante dessa nova situação caracteriza a denominada crise da ética, ao
arrepio das regras que regem os atos humanos, tanto particulares, como públicos,
existindo uma superestimação das coisas em detrimento do sentido da vida121
. A ética
se divide em dois grandes campos de estudo, quais sejam: a Deontologia (que é a
“ciência dos deveres”) e a Diceologia (que é a “ciência dos direitos”). Como a ética
cobra o comportamento moral, abre, por consequência, caminho para o exercício de
direitos e cumprimento de obrigações. No campo da ética, o que pode ser feito ou
realizado é chamado direito, no sentido do que é autorizado, aceito ou admitido, e o
que não pode é denominado dever, no sentido de obrigação122
.
Diversos são os tipos de moral ou de sistema ético, vez que, como já
tratamos, a moral está diretamente relacionada à comunidade a que é inerente, sendo
que a variedade de contextos históricos, sociais e culturais leva à uma pluralidade de
morais. Assim, cada tipo de moral, que leva, respectivamente, a diversos sistemas
119
BARONI, Robison. Cartilha de ética profissional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 23.
120
SOARES, André Marcelo M. e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 24-25.
121
BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 27.
122
BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 43.
52
éticos, possui características próprias, onde cada uma delas foca-se em questões
particulares. Assim, têm-se as “éticas grupais”, as “éticas profissionais”, entre
outras123
.
Importante também a distinção que é feita entre “ética formal” e “ética de
valores”. Em relação à primeira, segue-se a visão kantiana, em sua filosofia prática, no
sentido de que a significação moral do comportamento não reside em seus resultados
externos, mas na pureza da vontade e na retidão dos propósitos do agente considerado.
Afere-se a moralidade de um ato a partir do foro íntimo da pessoa. A boa vontade não
é boa pelo que efetue ou realize, não é boa por sua adequação para alcançar algum fim
que nos tenhamos proposto, é boa só pelo querer, isto é, é boa em si mesma.
Considerada por si mesma, é, sem comparação, muitíssimo mais valiosa do que tudo
aquilo que por meio dela pudéssemos realizar em proveito ou graça de alguma
inclinação124
. A compatibilidade externa entre a conduta e a norma é mera legalidade,
sem repercussão no valor ético da ação. Moralmente valioso é o atuar que, além da
concordância com aquilo que a norma impõe, exprime o cumprimento do dever pelo
dever, ou seja, por respeito à exigência ética125
.
O fundamento da lei moral, para a ética formal, não está na experiência,
mas se apoia em princípios racionais apriorísticos. A lei cuja representação deve
representar o móvel da conduta eticamente boa é o imperativo categórico, o critério
supremo da moralidade: “age sempre de tal modo que a máxima de tua ação possa ser
elevada, por sua vontade, à categoria de lei de universal observância”126
.
Já a “ética de valores” é uma inversão da tese kantiana. Para Kant, o valor
de uma ação depende da relação da conduta com o princípio do dever, o imperativo
123
BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 24.
124
KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão castelhana de Manuel García Morrente, Madrid: Caple, 1921, p. 22. Tradução nossa.
125
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 53-54. 126
KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão castelhana de Manuel García Morrente, Madrid: Caple, 1921, p. 67. Tradução nossa.
53
categórico. Para a filosofia valorativa, o valor moral não se baseia na ideia de dever,
mas dá-se o inverso: todo dever encontra fundamento num valor127
. Só deve ser aquilo
que é valioso e tudo o que é valioso deve ser. A noção de valor passa a ser o conceito
ético essencial, o valor não arbitrariamente convencionado, pois, o que é valioso vale
por si, ainda quando seu valor não seja reconhecido nem apreciado.
Frente à essa multiplicidade de significados de “ética”, é necessário que
investiguemos, de forma específica, aquele que é utilizado no termo “eticidade” nos
moldes delineados por Miguel Reale, vez que é exatamente essa a definição que nos
levará à correta conclusão quanto ao conteúdo e a aplicabilidade da “eticidade” no
sentido em que o termo é ora estudado.
3.1.3 A definição de “ética” para Miguel Reale
“Ética” é vista por Reale como uma espécie de conduta, havendo
necessidade, portanto, de uma leitura sobre a relação feita pelo referido Mestre entre
conduta e valor e, posteriormente, os tipos de conduta por ele apresentados.
3.1.3.1 Conduta e valor
Afirma Reale que o Homem, enquanto meramente causado, não se
distingue dos outros animais, a não ser pela consciência de sua determinação,
porquanto realiza os mesmos atos de que participam todos os seres do mesmo gênero.
O específico do Homem é conduzir-se, é escolher fins e pôr em correspondência meios
e fins128
. A ação dirigida finalisticamente (o ato propriamente dito ou a ação em seu
sentido próprio e específico) é algo que só pertence ao Homem. Não se pode falar, a
não ser por metáfora, de ação ou de ato de um cão ou de um cavalo. O “ato” é algo
pertinente, exclusivamente, ao ser humano. Ação, em seu sentido rigoroso, ou o ato, é
energia dirigida para algo, que sempre é um valor. O valor, portanto, é aquilo a que a
ação humana tende, porque se reconhece, num determinado momento, ser motivo, 127
NALINI, José Renato. op.cit., p.57. 128
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 378.
54
positivo ou negativo da ação mesma (a que se denomina relatividade temporal do
valor). Atuar sem motivo é próprio do alienado. Alienado é aquele que está alheio ao
seu conduzir-se, é o que perdeu o sentido de sua direção e de sua dignidade129
.
Valor e dever ser implicam-se e se exigem reciprocamente. Sem a idéia de
valor, não temos a compreensão do dever ser. Quando o dever ser se origina do valor,
e é recebido e reconhecido racionalmente como motivo da atuação ou do ato, temos
aquilo a que se chama fim, que é o dever ser do valor reconhecido racionalmente como
motivo de agir130
. O que se declara fim não é senão um momento de valor abrangido
por nossa racionalidade limitada, implicando um problema de meio adequado à sua
realização. O nexo ou relação de meio e fim é, não pode deixar de ser, de natureza
racional, mas a referibilidade ou imantação a um valor pode ser ditada por motivos que
a razão não explica. A História humana é um processo dramático de conversão de
valores e fins e de crises culturais resultantes da perda de força axiológica, verificada
em fins que uma nova geração se recusa a “reconhecer”131
.
3.1.3.2 Fins e categorias do agir
Sendo diversos os valores e, por consequência, os fins que o Homem se
propõe, ensina Reale que a ação teleologicamente determinada, ou o ato, pode ser
discriminada segundo tenha por fim:
- conhecer ou realizar algo, sem visar direta e necessariamente a outras ações possíveis
(ações de natureza teorética, ou de natureza estética);
- conhecer ou realizar algo, visando direta e necessariamente a outras ações possíveis
(ações de natureza prática: ou econômicas, ou éticas)132
.
129
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.379. 130
Idem. 131
Ibidem, p. 379. 132
Ibidem, p.380.
55
Na primeira categoria (atividades teoréticas e estéticas), a lei e a forma
constituem, de certo modo, a plenitude do agir, delas não brota uma atitude necessária
para a ação, pois são ambas modalidades de conhecimento, de explicação ou de
compreensão, mas não postulam fins em razão do fim já atingido pelo conhecimento.
Na segunda categoria (ações de natureza prática – econômicas ou éticas), o que
distingue é o fato de não visarem a um resultado como tal, mas como simples
momento que conduz a outros comportamentos possíveis: não é senão ponto de partida
para novas ações complementares. Assim, por exemplo, o alcance de um bem
econômico é condição ou estímulo para novas atividades tendentes à conquista de
novas utilidades, pois, na realidade, só é econômica uma ação enquanto é momento ou
elo no processo da produção das riquezas. Como se trata de ações que são base ou
condição de ações sucessivas da mesma natureza, dizemos que são ações práticas133
.
Neste tipo de ações (ações práticas) cabe distinguir, porém, as que sucedem segundo
um nexo opcional de conveniência ou de oportunidade, o que lhes dá um cunho
técnico (ações econômicas), e aquelas que se ligam por uma necessidade deontológica
reconhecida pelo agente como razão essencial de seu agir (ações éticas)134
.
Desse modo, podemos distinguir certas ações ou atividades, as de ordem
ética, que, ao atingirem um termo visado, subordinam-se a normas ou a regras, abrem-
se para o campo das ações possíveis, como uma flor que se vai converter em fruto: a
ação possível é, no fundo, o conteúdo mesmo da norma ética, o seu destino, o seu
significado. Sem referibilidade à praxis, a norma não tem significado, vez que
erradicada do processo de que provém e do processo a que se destina, não é
compreendida em sua verdadeira natureza, daí se originando o equívoco dos que a
concebem como puro juízo lógico ou mera forma sem conteúdo135
.
Momento da dinâmica social e da existência coletiva, em seu projetar-se
como linha entre passado e o futuro, a norma exprime sempre a congruência e a
133
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.381. 134
Ibidem, p.383. 135
Idem.
56
integração de dois elementos: o valor e a ação. Há, por conseguinte, uma modalidade
de ação que é de tipo normativo. É a essa categoria de ação que se dá o nome de
conduta ética, que pode ser religiosa, moral, política, jurídica136
.
Eis uma ilustração do exposto até o presente momento:
Integração e congruência AÇÃO de tipo Religiosa
entre VALOR e AÇÃO NORMATIVO CONDUTA ÉTICA Moral
Política
Jurídica
NORMA NÃO É MERO JUÍZO LÓGICO OU FORMA SEM CONTEÚDO
NORMA É FRUTO DA CONGRUÊNCIA ENTRE VALOR E AÇÃO
Se a ação humana subordina-se a um fim ou a um alvo, há direção, ou pauta
assinalando a via ou a linha de desenvolvimento do ato. A expressão dessa pauta de
comportamento é o que se chama de norma ou de regra. Não existe possibilidade de
“comportamento social” sem forma ou pauta que não lhe corresponda. A cada forma
de conduta corresponde a norma que lhe é própria. A conduta religiosa implica normas
ou regras religiosas, assim como a conduta moral implica regras ou normas de origem
moral. Em geral, somos levados a confundir conduta com a sua norma, tão difícil é
separar o problema do comportamento ético da sua medida137
.
Comportar-se, de certa forma, é proporcionar-se uma regra, é integrar, no
processo da ação, aquela pauta que marca a sua razão de ser. É por tais motivos que
não podemos compreender o estudo das regras jurídicas ou morais como simples
136
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 383. 137
Ibidem, p. 384.
57
entidades lógicas, como meras noções, sem a referência necessária ao problema da
ação, ao problema da realidade social138
. Tem-se, assim, uma necessária relação entre
a norma e a realidade social, isto é, a impossibilidade de análise normativa meramente
abstrata.
Contesta Reale que uma regra possa ser erradicada da conduta a que se
refere, porque, se fizermos abstração do problema da conduta, não estaremos fazendo
Ciência Jurídica, mas, sim, Lógica Jurídica, por esforço de abstração (não
desqualificando o estudo de ordem lógica, que é legítimo e necessário, mas deve ser
completado com a implicação da realidade social ordenada, sem a qual a norma não
tem valor de norma jurídica). Norma e conduta são, portanto, termos que se exigem e
se implicam, mas sem se reduzirem um ao outro, subsistindo cada um deles em
implicação recíproca, segundo o que Miguel Reale identifica como “dialética de
complementariedade”, que caracteriza e governa todo o processo histórico-cultural139
.
Elucidada a correspondência entre norma e conduta, podemos esclarecer
que a Ética não é a doutrina da ação em geral, mas propriamente a doutrina da
conduta enquanto inseparável de sua razão ou critério de medida, de sua norma,
mediante a qual se expressa teleologicamente um valor. A Ética é, em suma, a
ordenação da conduta, o que equivale a dizer: a teoria normativa da ação140
. Eis a
definição de Ética para Miguel Reale.
Fica, assim, delineada uma distinção essencial entre Economia (atividade
prática de cunho opcional e técnico) e Ética (atividade não subordinada a fins
particulares, e de caráter obrigatório), compondo ambas a esfera de estudos
denominada Teoria da Conduta141
. Quando o homem age, desloca-se em relação a
outros homens, toma uma posição nova perante os demais, assume uma “dimensão”
nos planos social e histórico, e o faz sempre na dependência de suas circunstâncias. A
138
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 384. 139
Ibidem, p.385. 140
Idem. 141
Idem.
58
conduta, portanto, é sempre um fato social e humano, um acontecer no “habitat”
natural do homem, que é a sociedade, embora, como já se verificou, nem toda ação
seja “conduta”. A sociedade não é simples dado da natureza, mas também um
“construído”, algo que a espécie humana veio modelando através do tempo, tendo
como fator inicial o instinto de socialidade, a força que levou o Homem à convivência,
dada a sua estrutura ou conformação biopsíquica142
. A socialidade é tendência natural
do homem, mas a sociedade é permanentemente “construída”, algo que uma geração
recebe e transmite a outra, quando mais não seja pelo fato fundamental da linguagem,
sendo uma das gerações mais felizes por poderem transferir proporcionalmente mais
do que receberam. Portanto, toda conduta é um fato social e histórico, porque envolve
sempre um enlace concreto do Homem com outros Homens, ou uma posição do
Homem com referência a outros homens e a seus bens, numa trama de interesses e de
fins que se desenrola no tempo143
.
3.4.3.3 Momentos da conduta
O Homem reconhece nas verdades encontradas um motivo preferencial de
ação, caso em que o verdadeiro é estimado como bem144
. A meta da atividade ética é
dada pelo valor do bem que pode ser de cunho moral, religioso, jurídico, econômico,
estético etc, desde que posto como razão essencial do agir. Certos valores assumem
uma espécie de dupla valoração, como se passa, por exemplo, quando o valor
puramente lógico da verdade, tornando-se também objeto de uma valoração ética,
reveste o caráter de um bem moral, dando lugar a um dever, cujo cumprimento é uma
virtude que se chama veracidade145
.
142
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.386. 143
Ibidem, p.387. 144
Ibidem, p.388. 145
Ibidem, p.389.
59
Na realidade, atribuir a um valor a força determinante da conduta é, no
domínio da “prática”, convertê-lo em fim ético, o que explica possam o esteticismo, o
utilitarismo ou o cientificismo assumir a dignidade de concepções morais da vida. Em
tais casos temos valores objetivados nas ciências, nas artes, nas instituições jurídicas,
valendo como bens morais, sem alteração de seu conteúdo axiológico específico146
. O
certo é que o bem ético implica sempre “medida”, ou seja, regras ou normas,
postulando nesse sentido de comportamento, com possibilidade de livre escolha por
parte dos obrigados, exatamente pelo caráter de dever ser e não de necessidade física
(ter que ser) de seus imperativos147
. Tem-se, assim, a norma como “medida” do
comportamento, compreendendo-se “medida” como atribuição de valor.
Em geral, o bem, que na conduta ética se atinge, representa um momento
maravilhoso de plenitude do ser, não deixa de ser um momento cuja atualização gera
novos ideais, o que demonstra o caráter transcendental dos valores148
, podendo-se
concluir pela relatividade temporal do bem, com a consequente modificabilidade
natural frente a novos ideais.
3.1.3.4 Especificidade da conduta ética
É no plano específico da conduta ética, mais do que no plano da ação
prático-econômica, exatamente em razão de seu projetar-se obrigatório e geral para
ações futuras, que a tridimensionalidade se mantém como característica ou traço
essencial, sem jamais se resolver em unidade capaz de pôr termo à tensão entre fato e
valor. Não se trata, em tal caso, de se expressar um juízo, de se formular uma lei, nem
tampouco de se subordinar um conteúdo à plasticidade de uma forma. Trata-se de se
modelar o Homem mesmo, de legalizar-se ou de formalizar-se, daí o caráter
146
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 389. 147
Idem. 148
Idem.
60
provisório, insuficiente de toda norma ética particular, cuja universalidade ética reside
na tensão inevitável que a liberdade espiritual estabelece entre a realidade e o ideal149
.
O Homem jamais se desprende do meio social e histórico, das
circunstâncias que o envolvem no momento de agir. Delas participa e sobre elas reage,
são forças do passado que atuam como processos e hábitos lentamente constituídos,
como laços tradicionais e linguísticos, que a educação preserva e transmite, são forças
do presente com seu peso histórico imediato, são forças do futuro que se projetam
como ideias-força, antecipações e programas de existência envolvendo
dominadoramente a psique individual e coletiva150
. Esse elemento que cerca o Homem
e lhe impõe limites, que é de certa maneira negativo perante uma liberdade criadora
sem peias, é o que se denomina fato. Não há conduta humana (e o “humano” aqui é
redundante) que não se desenvolva condicionalmente a um complexo de fatos (físicos,
econômicos, históricos, estéticos, jurídicos, morais, religiosos) de maneira que sempre
o valor é atingido ou negado, não só na proporção da capacidade realizadora subjetiva
do agente, mas também em função da totalidade das circunstâncias em que o seu agir
se situa, a norma representa tensão entre fato e valor, e o sentido concreto e unitário
dessa relação151
.
Quando Reale afirma que o processo cultural só é compreensível segundo
uma dialética de implicação e polaridade, ou de complementariedade, quer o mesmo
se referir à tensão fato-valor, pois estes elementos não são suscetíveis de se resolverem
um no outro, mas tão somente de se comporem em implicação ou integração, quer
através de formas estéticas, quer através de normas éticas. Daí a impossibilidade de se
compreender a norma como algo per se stante, fora do processo em que se instaura e
que lhe dá conteúdo, de seus pressupostos fáticos e axiológicos. Isto posto, se toda
espécie de conduta ética é tridimensional, não bastará apontar a existência de três
elementos ou fatores para caracterizar e distinguir qualquer de suas modalidades, a
diferença deverá resultar do modo de enlace que se constitui entre os elementos fático
149
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 391-392. 150
Ibidem, p.392. 151
Idem.
61
e o axiológico para dar nascimento a distintas espécies de normas morais, religiosas ou
jurídicas152
.
3.1.3.5 Modalidades de conduta
Afirma Reale que as principais modalidades de conduta que compõem o
amplo domínio da ética são as condutas religiosa, moral, costumeira e jurídica,
passando a analisar cada uma delas:
a) conduta religiosa: o Homem, em primeiro lugar, pode agir sem encontrar em si
mesmo a razão de agir, nem tampouco nos demais, mas adaptando a sua conduta ou
comportamento a algo que é posto acima dos homens individualmente considerados ou
de sua totalidade. Tais valores não se referem também à “sociedade” tomada como um
todo distinto de seus elementos componentes ou à síntese das aspirações humanas. Em
tais casos, tem-se que o valor determinante da ação transcende aos indivíduos e à
sociedade. Quando o Homem age no pressuposto dessa direção transcendente, tem-se
a conduta religiosa. Manifesta-se, pois, um valor transcendente, que não se refere ao
indivíduo, ao social ou ao histórico. Trata-se da conduta religiosa, que se desenvolve
no espaço e no tempo, como toda conduta, mas subordinada intencionalmente a
valores não temporais153
.
b) conduta moral: os homens não se vinculam em seu agir apenas por valores de
transcendência, mas também se ligam por algo que está neles mesmos ou, então, nos
outros homens. Praticamos determinado ato e sentimos que é reflexo ou expressão de
nossa personalidade e que, portanto, o motivo de nosso agir é um motivo que se põe
radicalmente em nós. A última instância do agir é o Homem na sua subjetividade
consciente. Quando a ação se dirige para um valor, cuja instância é dada por nossa
própria subjetividade, estamos perante um ato de natureza moral. O que distingue a
conduta moral é esta pertinência da estimativa ao sujeito mesmo da ação. De certa
forma, poder-se-ia dizer que, no plano da conduta moral, o Homem tende a ser o
legislador de si mesmo. Não é preciso, porém, que ele mesmo tenha posto a regra
152
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.393. 153
Ibidem, p.394.
62
obedecida, porque basta que a tenha tornado sua. Quando o nosso comportamento se
conforma a uma regra e nós a recebemos espontaneamente, como regra autêntica e
legítima de nosso agir, o nosso ato é moral154
.
O que importa, pois, é que haja sempre recepção e assentimento. Ninguém
pode praticar um ato moral pela força ou pela coação. A moral é compatível com
qualquer ideia ou plano de natureza coercitiva, quer de ordem física, quer de ordem
psíquica. No ato moral é essencial a espontaneidade, de tal maneira que a educação
para o bem tem de ser sempre uma transmissibilidade espontânea de valores, uma
adesão ao valioso, que não implica nenhuma subordinação que violente a vontade ou a
personalidade. A ideia de pessoa vem exatamente desse reconhecimento do Homem
como um ser que deve ser autenticamente ele mesmo. O Homem é pessoa enquanto
age segundo sua natureza e seus motivos, na totalidade de seu ser, sem se alienar a
outrem. O indivíduo é o Homem enquanto casualmente determinado, mas a pessoa é o
Homem enquanto se propõe fins de ação, sendo raiz inicial do processo estimativo.
Por outras palavras, o Homem enquanto mero indivíduo, como ser puramente
biológico, não foge às regras determinadas causalmente, só superando o plano
naturalístico quando se põe como instaurador de valores e fins. O homem, visto na
essência de sua finalidade, é pessoa, isto é, um ser com possibilidade de escolha
constitutiva de valores155
.
Portanto, existe uma modalidade de conduta cuja direção se encontra no
Homem mesmo como instância que valora o agir e dá a pauta do comportamento: é a
conduta moral156
. O ato moral é um ato que encontra no plano da existência do sujeito-
agente a sua razão de ser e, mais propriamente, tem sua instância axiológica no plano
da existência do sujeito que pratica a ação. A instância valorativa, a medida axiológica
da ação, é dada, em última análise, pelo foro do sujeito, que, no fundo, é o juiz último
154
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002 p.396. 155
Ibidem, p.397. 156
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.397.
63
que mede, com seu critério, a ação moral, que não é possível ser concebida sem adesão
e assentimento157
.
c) conduta costumeira: é possível conceber-se e se admitir uma outra espécie de
conduta ética, que é aquela em que a instância valorativa ou medida fundamental do
agir não se encontra propriamente no sujeito que age, mas, ao contrário, no outro
sujeito, nos demais sujeitos. Esse campo vastíssimo das ações que se referem aos
costumes sociais, às regras consuetudinárias de trato social, ou de civilidade, tais como
as de etiqueta, cortesia ou cavalheirismo. Efetivamente, existem condutas que o
homem segue em razão do que lhe dita a convivência social, sendo mais guiado pelos
outros do que por si mesmo, mais se espelhando na opinião alheia do que na própria
opinião, recebendo do todo social a medida de seu comportamento, donde falar-se em
moral social, na qual a força dos usos e hábitos é relevante158
.
O costume coloca o Homem na atitude de quem está se conformando ao
viver comum e, em certos casos, fá-lo partícipe do comportamento dos demais,
subordinando-se ao estalão apreciativo dominante no seio do grupo social. Pelas regras
de costume se situa o Homem na sociedade, por sua maneira de ser e de se conduzir,
de participar dos bens da vida, assim como em suas reações perante o mal sofrido, em
sucessivos atos de participação. O que nessas regras sobreleva é a “conformidade
exterior”. Não é dito que não seja possível nesse domínio haver espontaneidade e
sinceridade, ciência e consciência de sua legitimidade, mas estes não são requisitos
essenciais. Há, nesse domínio das regras de trato ou civilidade social, certa nota
dominante de exterioridade, porquanto a pauta do julgamento, a instância axiológica
do agir, é mais dada pela pessoa dos outros do que por nossa própria pessoa. Pode
haver coincidência entre nossa sinceridade e o nosso agir, mas o elemento intencional,
em tal caso, é acessório. O ato de cortesia ou de gentileza, por exemplo, subsiste desde
que a exterioridade do gesto ou do comportamento seja observada159
.
157
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 298-399. 158
Ibidem, p.399. 159
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.400.
64
Comparando a conduta costumeira com a conduta moral, podemos observar
que ambas são bilaterais, no sentido de que pressupõem sempre a presença de dois ou
mais homens. Trata-se, porém, de bilateralidade diversa do ponto de vista estimativo,
porquanto o ato moral não prescinde jamais da íntima e sincera participação do sujeito
da ação160
.
d) conduta jurídica: a palavra bilateralidade pode ser usada ou em sentido ôntico ou em
sentido axiológico, ora levando-se em conta a relação ou nexo entre dois ou mais
indivíduos, ora atendendo-se mais propriamente o sentido dessa relação mesma. Tanto
o Direito quanto a Moral são bilaterais, porquanto são sempre fatos sociais que
implicam a presença de dois ou mais indivíduos. Não existe ato moral fora do meio
social. Quando se fala, portanto, em bilateralidade do Direito, o que se visa é mais o
sentido dessa relação, a instância valorativa ou deontológica que nela se verifica, e não
o seu aspecto de puro enlace social que também existe na moral161
.
Segundo o prisma valorativo ou deôntico é que podemos falar em
unilateralidade ou bilateralidade. No plano moral, como é o sujeito mesmo a medida
de seu agir, a regra diz-se axiologicamente unilateral. Já no campo dos costumes
sociais, como o indivíduo encontra na sociedade, no outro sujeito, a pauta de seu agir,
deve-se dizer que, axiologicamente, as respectivas regras são bilaterais, mas de uma
bilateralidade não exigível. Não podemos ser obrigados a cumprimentar alguém, nem
haverá obediência às regras de cortesia se nos coagirem a sermos gentis. Acontece,
porém, coisa diversa quando devemos cumprimento a um magistrado em audiência ou
quando o soldado deve continência ao capitão. Já aí o tratamento de Excelência devido
ao magistrado não é mero tratamento de cortesia, embora o homem bem-educado não
precise de regras obrigatórias para ser cavalheiro. Trata-se de obrigação que Reale
reconhece como sendo jurídica162
. O fato é que o capitão pode exigir que o soldado lhe
preste continência e, ante a recusa, pode e deve aplicar-lhe uma pena. Aquilo que para
160
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 400-401. 161
Ibidem, p.401. 162
Ibidem, p.402-403.
65
os demais homens é uma simples convenção ou costume, para determinado campo da
atividade humana passa a ser obrigação jurídica. A medida deste comportamento,
porém, não é dada nem pelo sujeito que age, nem pelo outro sujeito a que se destina,
mas é dada por algo que os entrelaça numa objetividade discriminadora de pretensões,
muitas vezes, mas nem sempre e necessariamente, recíprocas. A razão de medir do
Direito não se polariza num sujeito ou no outro sujeito, mas é transobjetiva. A relação
jurídica apresenta sempre a característica de unir duas pessoas entre si, em razão de
algo que atribui às duas certo comportamento e certas exigibilidades. O enlace
objetivo de conduta que constitui e delimita exigibilidades entre dois ou mais sujeitos,
ambos integrados por algo que os supera, é o que Reale chama de bilateralidade
atributiva. A essência do fenômeno jurídico é dada por esse elemento que não se
encontra nas outras formas de conduta163
.
É de se notar que não se trata de transcendência para além do real, mas de
superação da subjetividade no plano social, razão pela qual se fala em
transubjetividade. Na relação jurídica há sempre um valor que integra os
comportamentos de dois ou mais indivíduos, permitindo-lhes e lhes assegurando um
âmbito de pretensões exibíveis. É da essência da vida jurídica a exigibilidade
objetiva164
.
Do quanto exposto, pode-se concluir que o termo Ética, para Reale, não tem
relação de sinonímia com moral (apesar de versarem sobre ideias intimamente
relacionadas, de difícil distinção, chegando a ser empregadas como sinônimos, mesmo
porque, do ponto de vista etimológico, tanto em grego quanto no latim, ambas provêm
da palavra costume, que indica as diretrizes de conduta a serem seguidas165
),
refletindo, portanto, gênero de conduta onde se inserem as espécies condutas religiosa,
moral, costumeira e jurídica, sendo certo que toda conduta tem relação com
determinado valor (conduta como ação finalisticamente dirigida, tendo valor
163
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 403. 164
Ibidem, p. 403-404. 165
REALE, Miguel. Variações sobre Ética e Moral. 2005. Disponível em: < www.miguelreale.com.br>. Acesso em: 12. Setembro.2008.
66
significado daquilo que a ação humana tende, porque se reconhece, num determinado
momento, ser motivo, positivo ou negativo, da ação mesma).
Dessa forma, podemos afirmar que o termo Ética, sob o sentido de adjetivo
e de acordo com a visão de Miguel Reale, é a qualidade da ação finalisticamente
dirigida, que se compatibiliza com os valores que levaram à sua prática e caracterizada
pela obrigatoriedade (dever ser). Portanto, qualquer conduta ética não pode ser
apreciada sem o devido relevo ao valor que a dirigiu, restando afastada a construção
ou a análise de qualquer conduta ética de forma abstrata, desvinculada dos valores a
ela inerentes ante a sua finalidade, havendo clara vinculação de Reale à visão de ética
de valores.
3.1.3.6 O conceito e a aplicabilidade de “Eticidade” em Miguel Reale
Frente às informações colhidas nos itens anteriores, possível é afirmarmos o
conceito de “Eticidade” como método de incidência, na construção da norma jurídica
(que envolve não só a atividade legislativa de produção de enunciados prescritivos,
como também a atividade de interpretação com vistas à aplicação da norma jurídica ao
caso concreto) de valores incidentes na realidade fatual (no momento da aplicação da
norma jurídica) sob o prisma do fato a ser normado e do sistema jurídico como um
todo, afastando-se, dessa forma, qualquer visão abstrata ou pseudototalizante da norma
jurídica, bem como qualquer método mecanicista de mera subsunção do texto legal ao
caso concreto.
No que se refere à sua aplicabilidade, é de se afirmar que:
- No campo da produção legislativa: a elaboração de uma determinada e particular
norma de direito não é mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e
automaticamente da tensão fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-
social: é antes um dos momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo
processo se insere positivamente o poder (quer o poder individualizado num órgão do
Estado, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipótese das
67
normas consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo
de fatos e valores, em função dos quais é feita a opção por uma das soluções
regulativas possíveis, armando-se de garantia específica166
.
- No campo da interpretação jurídica: sintetiza-se a “Eticidade” como incidência do
“valor” ao fato gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto
normativo interpretado (tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato
concreto em análise) levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua
polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico referir-se a mais de um
significado), realizando-se, assim, a experiência jurídica nos moldes compatíveis com
o pensamento tridimensional de Miguel Reale, que bem pode ser caracterizada através
dos seguintes trechos de sua obra:
... sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência
histórico-cultural, compreende-se que a implicação polar fato-valor se
resolve, a meu ver, num processo normativo de natureza integrante,
cada norma ou conjunto de normas representado, em dado momento
histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão
operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os
fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e
a sua aplicação.167
A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode
ser interpretada com abstração dos fatos e valores supervenientes,
assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que
torna superados os esquemas lógicos tradicionais de compreensão do
direito (elasticidade normativa e semântica jurídica).168
... não destaco a experiência jurídica da experiência social, da qual é
uma das formas ou expressões fundamentais, distinguindo-se pela
nota específica de “bilateralidade-atributiva” que lhe é própria, isto é,
por implicar, em cada uma das relações que a constituem, sempre um
nexo de validade objetiva que correlaciona entre si duas ou mais
pessoas, conferindo-lhes e assegurando-lhes pretensões ou
competências que podem ser de reciprocidade contratual, ou de tipo
166
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 61. 167
Ibidem, p. 74. 168
Ibidem, p. 62.
68
institucional, sob forma de coordenação, subordinação ou
integração.169
...como a experiência jurídica não se destaca da experiência social, da
qual é uma das formas ou expressões fundamentais, distinguindo-se
pela nora específica de “bilateralidade-atributiva”170
... ela só pode ser
compreendida em termos de normativismo concreto,
consubstanciando-se às regras de direito toda a gama de valores,
interesses e motivos de que se compõe a vida humana, e que o
intérprete deve procurar captar, não apenas segundo as significações
particulares emergentes da “praxis social”, mas também na unidade
sistemática e objetiva do ordenamento vigente.171
3.1.4 A “Eticidade” como instrumento de “mutação normativa”
Sendo o Direito Positivo um conjunto de normas jurídicas aplicáveis num
determinado Estado, num determinado momento, objetivando a organização social, é
indiscutível a necessidade de tais normas jurídicas acompanharem a evolução da
sociedade e, mais especificamente, as mudanças dos valores sociais, principalmente
num Estado Democrático de Direito, sob pena de falta de eficácia social172
. Tal
necessária compatibilização entre valores sociais e comandos normativos impõe tantas
modificações normativas quantas forem as alterações dos valores sociais, sendo que
tais modificações normativas podem se realizar de 2(duas) formas:
- alteração do enunciado prescritivo(texto legal), o que se faz através de emendas
constitucionais (obviamente nas hipóteses de alteração textual da Constituição) ou de
produção de novas leis infraconstitucionais que tácica ou expressamente alterem textos
legais anteriores (nas hipóteses de alteração dos textos legais infraconstitucionais);
169
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 75. 170
Idem. 171
Ibidem, p. 77. 172
A eficácia social é a capacidade de uma norma jurídica de ser efetivamente cumprida pela sociedade, tendo em vista a compatibilidade da mesma com os valores cultuados pela sociedade que lhe é sujeita. Como afirma Luís Roberto Barroso, a eficácia social, a que denomina efetividade (utilizando os termos como sinônimos), simboliza a “aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social”. Conforme BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 375.
69
- opção por nova hipótese interpretativa, explorando a elasticidade semântica173
do
texto normativo vigente.
É exatamente nesta segunda forma de atualização das normas jurídicas que
se enquadra a “mutação normativa”, isto é, a modificação da norma jurídica sem a
alteração do texto legal da qual origina (necessariamente, em razão do princípio da
legalidade, imposto pelo art. 5º, II, da Constituição Federal), através de técnicas de
interpretação que, explorando a elasticidade semântica dos textos legais, passa a
selecionar, para fins de aplicabilidade, hipótese interpretativa compatível com novos
valores sociais.
A figura da “mutação normativa” é objeto de estudo do Direito
Constitucional há muito tempo, normalmente sob a denominação de “mutação
constitucional” que é, conforme conceito de Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires
Coelho e Paulo Gustavo Gonet:
... as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em
decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-
axiológico em que se concretiza a sua aplicação...decorrentes da
conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica
e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social
e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta
regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras
sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.174
O que busca esta tese, no atual momento de desenvolvimento do raciocínio
de seu objeto, é generalizar o conceito de “mutação constitucional”, estendendo-o às
normas jurídicas infraconstitucionais, afastando a sua limitação às normas
constitucionais, sob o enfoque de que a modificação do conteúdo de uma norma
jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, é fenômeno
típico da experiência jurídica e não característica inerente exclusivamente as normas
constitucionais. Daí a utilização, neste trabalho, da expressão “mutação normativa”.
173
A elasticidade semântica é a capacidade de um determinado enunciado (no caso, um texto de lei) de gerar vários significados possíveis em razão da ambiguidade das palavras que o compõem. 174
MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 129-130.
70
Importante destacar que vários Autores já se referiram ao objeto a que ora
denominamos “mutação normativa”, utilizando-se de outras denominações, como, por
exemplo, Celso Ribeiro Bastos, que faz uso do termo interpretação evolutiva, como se
verifica da transcrição a seguir:
O desenvolvimento técnico da ciência em geral, com as repercussões
que acarreta na vida do indivíduo em sociedade, e que a legislação
muitas vezes não é capaz de acompanhar, acaba por propiciar um
substrato favorável ao desenvolvimento da interpretação evolutiva.
Esta forma de interpretação baseia-se na realidade para, a partir dela,
mas sem se descurar dos limites normativos do texto legal, chegar a
resultados mais satisfatórios do ponto de vista do nível evolutivo em
que se encontra a sociedade.175
Vê-se, na realização da mutação normativa, a aplicação da “Eticidade” (que
já conceituamos como procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a
escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado
levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a
experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de
Miguel Reale), daí que a mutação normativa somente pode ser efetivamente
compreendida quando inserido o Jurista numa visão “normativista concreta”176
do
Direito, valendo, mais uma vez, a transcrição do magistério de Celso Ribeiro Bastos:
Não é apenas no sentido de incorporação dos avanços técnicos que
o dado empírico deve ser incorporado à norma para fins de lhe revelar
a plenitude de sua significação.
175
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 157.
176
O normativismo concreto se caracteriza pela compreensão do ato normativo e do ato interpretativo como elementos que se co-implicam e se integram, não se podendo, senão como abstração e linha de orientação de pesquisa, separar a regra e a situação regulada, a norma e a situação normada (Cf. COELHO, Inocêncio Mártires. Legado de Miguel Reale – IV : O tridimensionalismo jurídico concreto e o problema da interpretação/apliação do direito. 2007. Disponível em: <www.lubjus.com.br/bjur.php?artigos&ver=2.10356>. Acesso em 01.outubro.2011). Em contraposição ao normativismo concreto, tem-se o normativismo abstrato, caracterizado pela visão de que o Direito se confunde com a lei, e que somente a lei positiva é Direito, fazendo surgir a exegese, o silogismo, a dogmática analítia, o servilismo do Poder Judiciário ao Poder Legislativo, já que, para os positivistas (normativistas abstratos), o julgador deve buscar exclusivamente na lei (sempre justa e absoluta) a vontade do legislador e que é exatamente essa vontade do produtor do enunciado prescritivo a referência para a interpretação do respectivo texto, sem qualquer interferência do valores incidentes sobre o fato concreto sujeito à normatização (Cf. WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 82).
71
É que o intérprete simplesmente não pode cindir a norma do caso a
ser solucionado (ainda que seja hipotético). Ao analisar a norma, o
intérprete está estudando-a em relação a um caso. Consequentemente,
o dado decorrente deste caso entra no processo interpretativo.
Para se chegar a uma interpretação de uma norma, ter-se-á de estar
levando em consideração uma hipótese, sob pena de não ser possível
enunciar, decidir nada, caso não se esteja decidindo sobre alguma
hipótese... A interpretação é fruto dessa atividade de cotejo da norma
com o fato ou caso hipotético, e com o próprio valor, aqui substituído
pelo princípio. Isso porque não se consegue interpretar em abstrato. É
necessário olhar a norma e imaginar situações sobre as quais se passe
a emitir opiniões. É isto que permite a variedade muito grande de
interpretação. É porque muitas vezes o que está variando não é o
aspecto normativo, mas o aspecto fático. Pode haver divergência
numa interpretação num caso concreto, sobre o aspecto da
qualificação fática.
Cumpre anotar ainda que os valores não são passíveis de
concretização, no sentido de se elaborar um rol taxativo das hipóteses
de sua aplicação. E isso é assim por contemplarem eles, em si
mesmos, as mais variadas e amplas situações, dada sua abstratividade
exacerbada.177
177
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 157-158.
72
Capítulo III – EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA “ETICIDADE” COMO
INSTRUMENTO DE ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA: AS NOVAS
TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA E A MUTAÇÃO NORMATIVA DO
ARTIGO 62, I, DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO NO
BRASIL
Neste capítulo demonstraremos a aplicação prática da “eticidade” como
instrumento de estabilização normativa frente à modificação de valores sociais. Tal
demonstração será realizada através da apreciação da mutação normativa do artigo 62,
I, da Consolidação das Leis do Trabalho no Brasil (dispositivo que afasta o direito de
percepção de horas extras trabalhadores que realizam atividade laboral externa
incompatível com controle da jornada de trabalho) frente à modificação do “regime de
visibilidade” cultuado pela sociedade brasileira, ocorrida através da incorporação das
novas tecnologias de transmissão de dados sem fio e de locação de objetos e pessoas
(principalmente através do sistema GPS – Global Position System-).
1 Espaço Ampliado. Conceito e características
Como ensinam Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino em
recente estudo intitulado “Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação”178
, os parâmetros e os limites a partir dos quais estava a sociedade
habituada a ordenar os comportamentos de “ver” e de “ser visto” estão em plena
mutação, vez que as margens do visível ampliam-se e se modificam, o mesmo
ocorrendo em relação à forma de ser visto, graças a técnicas e instrumentos como as
tecnologias de geolocalização (como o GPS – Global Position System - e o GIS –
Sistema de Informações Geográficas), visualização miniaturizada e individualizada
das pequenas telas de celulares, palmtops e laptops, passando pelas câmeras de vídeo-
vigilância cada vez mais presentes tanto nos espaços públicos quanto privados, ou
ainda pelos discretos sensores e tecnologias que monitoram o espaço físico e o
178
BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo. Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010.
73
informacional, tornando sensíveis processos usualmente desapercebidos e criando o
que se convenciona chamar de “realidade ou espaço ampliados”, assim como formas
sutis de vigilância de dados179
.
A existência de “espaços ampliados” tem direta relação com os dispositivos
de vigilância, que participam ativamente desses múltiplos e concorrentes modos de
fazer ver e de ser visto na nossa sociedade, articulando tais modos de visibilidade com
procedimentos mais ou menos explícitos de monitoramento, identificação, controle,
coleta e produção de informações sobre os indivíduos e suas ações180
.
As tecnologias fundadas em dispositivos móveis (como telefones celulares,
smartphones, módulos GPS), redes telemáticas sem fio (Wi-Fi, Wi-Max, Bluetooth181
)
e sensores geraram uma mudança no regime de visibilidade antes existente, criando
um regime que se baseia não exclusivamente no espaço físico ou nos limites do
alcance do olho humano, mas também fundado no espaço informacional (constituído
por serviços e tecnologias baseados em localização que estão em franca expansão e
que possibilitam aliar localização, vigilância e mobilidades física e informacional -
capacidade de consumir, produzir e distribuir informação -)182
.
Se, antes de tais tecnologias, o regime de visibilidade (entendido como
forma pela qual “se vê e se é visto” na sociedade) baseava-se exclusivamente no
alcance do campo ocular, isto é, no alcance visual do olho humano, hoje tal regime se
179
BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo. Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.7.
180
Idem, p.8. 181
Wi-Fi significa é uma marca registrada da Wi-Fi Alliance, que é utilizada por produtos certificados que pertencem à classe de dispositivos de rede local sem fios (WLAN) baseados no padrão IEEE 802.11. Wi-Max(Worldwide Interoperability for Microwave Access/Interoperabilidade Mundial para Acesso de Micro-ondas) trata-se de tecnologia de comunicação sem fio para redes metropolitanas. Bluetooth é uma especificação industrial para áreas de redes pessoais sem fio (Wireless personal area networks – PANs) que provê uma maneira de conectar e trocar informações entre dispositivos como telefones celulares, notebooks, computadores, impressoras, câmeras digitais e consoles de videogames digitais através de uma frequência de rádio de curto alcance globalmente não licenciada e segura. 182
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.61.
74
baseia em “espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos limites do
alcance do olho humano, mas sim em espaço informacional (que é o resultado de
serviços e tecnologias baseados em localização e transmissão de dados). Sobre regimes
de visibilidade, vale transcrever ensinamento de Michel Foucault:
Cada sociedade tem seu próprio regime de verdades, sua própria
“política geral”: os tipos de discursos que suportam e quais são
considerados como verdadeiros; os mecanismos e os grupos que
permitem distinguir as posições verdadeiras das falsas, o modo como
as pessoas são sancionadas; as tecnologias e os procedimentos válidos
para a obtenção da verdade; o status dos encarregados de dizer o que é
considerado verdade.183
Se antes o cidadão somente percebia aquilo que naturalmente se encontrava
à mostra em seu campo visual, agora esse mesmo cidadão, sem qualquer necessária
evolução de seu sentido visual, vê de forma ampliada, vez que representações (sob a
forma de imagem, sons ou até mesmo sensações táteis) de uma realidade que lhe é
fisicamente distante (e seria inatingível naturalmente pela visão) lhe são apresentadas,
inclusive em tempo real e com altos graus de acurácia e fidedignidade, passando não
só o cidadão a ter acesso à tal realidade, mas também podendo com ela interagir.
Inaugura-se, portanto, um novo regime de visibilidade. Cabe, neste ponto do
desenvolvimento do raciocínio, transcrever o magistério de Fábio Duarte e Rodrigo
Firmino:
Se as câmeras de vigilância representam a cidade fragmentariamente
sem se constituir um campo de ação direta, os mapas
georreferenciados alimentados pelas imagens de satélite buscam a
compreensão do espaço em sua totalidade e em suas minúcias, e sua
compressão em uma representação extremamente codificada, onde
qualquer existência ou manifestação no espaço de origem será
“significada” apenas se suas características estiverem previamente
inscritas no código desse espaço informacional (...) uma vez que o que
interessa à análise informacional, assim, não é saber o que diz uma
mensagem, mas quantas dúvidas ela elimina – e nesses mapas a
existência de um signo implica que qualquer dúvida sobre a natureza
foi eliminada ao não ser filtrado pelos tamises do código constituinte
desse espaço.
183
FOUCAULT, Michel. La fonction politique de l’intellectuel (entrevista com P. Rabinow). Radical Philosophy, vol. 17, 1977, p. 12-14. Tradução nossa.
75
A alimentação constante e reconstituinte das imagens de satélite sobre
uma base informacional georreferenciada cria a “aura” de uma
espacialidade mais que abrangente, plena; a ilusão de que a
representação é “fidedigna” e supremamente descritiva, com aspectos
que não são vistos a olhos nus (temperatura da superfície, intensidade
de luminescência etc) cria um espaço mais completo que o próprio
espaço “vivido”: a hiperespacialidade. Tal ilusão descritiva é tamanha
que essa hiperespacialidade torna-se o campo exclusivo de análise e
de ações: movimentos populacionais, padrões de ocupações urbanas
ou análises socioeconômicas prescindem da “ida a campo”, e ações de
rearranjo urbanos têm decisões tomadas com referência à hiper
espacialidade codificada.184
Nesse sentido, deve ser fixado para regular apreciação científica, o conceito
de “espaço ampliado”, qual seja: representações, sob a forma de imagem, sons e até
mesmo de sensações táteis, de uma realidade que é fisicamente distante do cidadão
comum (isto é, realidade que lhe seria inatingível naturalmente pela visão), permitindo
ao cidadão não só ter efetivo acesso à essa realidade, como também com ela interagir.
No que se refere às características do novo regime de visibilidade, baseado
no conceito de “espaço ampliado”, ensina André Lemos que as mídias locativas, onde
localização e mobilidade significam possibilidades de produção de sentido no espaço e
nos lugares, são também instrumentos de controle, monitoramento e vigilância de
lugares, espaços e indivíduos enredados em bancos de dados moduláveis, sensores
ubíquos e onipresentes, redes sem fios fluidas e inteligentes, dispositivos de
localização, associando mobilidade e localização, podendo ser utilizada para monitorar
movimentos, vigiar pessoas e controlar ações no dia-a-dia.”185
. Não se trata mais de
fechar e imobilizar para vigiar, mas de deixar fluir o movimento, monitorando,
184
DUARTE, Fábio; FIRMINO, Rodrigo. Espaço, visibilidade e tecnologias: (Re)caracterizando a experiência urbana. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 105.
185
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.71.
76
controlando e vigiando pessoas, objetos e informações para prever consequências e
exercer domínio186
.
Tem-se, pois, como uma das principais características do novo regime de
visibilidade, a realização do monitoramento do comportamento de pessoas sem a
necessidade de fixar a elas um espaço físico próprio de vigilância, sendo que o “espaço
informacional” acompanha o ser vigiado independentemente do local físico onde se
encontre. E mais, o novo regime permite o efetivo controle do controlado à distância e
independentemente das características do espaço físico que ocupa quando da
realização de cada um de seus comportamentos.
O novo regime de visibilidade também cria um novo conceito de território,
o “território informacional”, constituído por áreas de controle de fluxo informacional
digital em uma zona de intersecção entre o ciberespaço (i.e. espaço cibernético,
caracterizado por representações geradas por instrumentos tecnológicos de última
geração) e o espaço urbano. No “território informacional” o acesso e o controle se
realizam a partir de dispositivos móveis e de redes sem fio, caracterizando-se como um
espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço eletrônico e o espaço
físico187
. Para demonstração, utilizamos exemplo trabalhado por André Lemos: o lugar
de acesso sem fio num parque por redes Wi-Fi é um território informacional, distinto
do espaço físico parque e do espaço eletrônico internet. Ao acessar a internet por essa
rede Wi-Fi, o usuário está num território informacional imbricado no território físico
(e político, cultural, imaginário etc) do parque, e no espaço das redes telemáticas.
Assim, o território informacional cria um lugar, dependente dos espaços físico e
eletrônico a que ele se vincula188
. É criada uma nova tensão de controle, logo um novo
território, informacional, criado por redes sem fio e dispositivos digitais nos lugares.
Posso, assim, ser monitorado, controlado ou vigiado num “café” se estiver usando o
186
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.72. 187
LEMOS, André. A cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massivas e territórios informacionais. In Matizes, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Computação, Universidade de São Paulo, ano 1, no. 1, São Paulo, 2007, p. 128.
188
Ibidem, p. 128.
77
celular, o laptop, ou se houver um reader que acione a etiqueta RFID189
da minha
caneta190
.
Se de um lado o “território informacional” depende do “território físico,
tradicional”191
, de outro lado, conceitualmente, aquele é uma evolução deste. Entende-
se “território físico, tradicional” como “extensão da superfície terrestre”192
, “área certa
e delimitada da superfície da terra”193
, delimitado e fixo por si só. No contexto do
território físico, ou o cidadão encontra-se no interior do território ou no exterior do
território, diferentemente do que ocorre no contexto do território informacional, em
que o território acompanha o vigiado onde quer que o mesmo se encontre.
Laurent Beslay194
e Hannu Hakala195
introduzem, no texto intitulado
“Digital Territory: Bubbles”196
, o conceito de “bolha digital”, afirmando que o
território digital deve ser pensado em vários níveis, com permeabilidades
diferenciadas, sendo que bolhas informacionais podem evitar que informações
“pinguem” para fora desses níveis. Um primeiro território seria o pessoal (o corpo e a
189 Identificação por radiofrequência ou RFID é um método de identificação automática através de sinais de
rádio, recuperando e armazenando dados remotamente através de dispositivos denominados etiquetas RFID. Uma etiqueta ou tag RFID é um transpondedor, pequeno objeto que pode ser colocado em uma pessoa, animal, equipamento, embalagem ou produto, dentre outros. Contém chips de silício e antenas que lhe permite responder aos sinais de rádio enviados por uma base transmissora. Além das etiquetas passivas, que respondem ao sinal enviado pela base transmissora, existem ainda as etiquetas semipassivas e as ativas, dotadas de bateria, que lhes permite enviar o próprio sinal. São bem mais caras que do que as etiquetas passivas.
190 LEMOS, André. Op. Cit., p. 128.
191
Tal “dependência” se faz em razão de que o “território informacional” é representação do “território físico”. 192
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Volume IV. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 1547. 193
NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. Volume II, 8ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974, p. 1179.
194
Consultor de tecnologia da Autoridade Europeia para a Proteção de Dados, em Bruxelas, com pós-doutorado em Gestão Global de Riscos Tecnológicos e Crise pela Universidade de Paris, Sorbone. 195
Diretor de computação da Elektrobit Ltd, tendo já desenvolvido atividades junto ao “Centro de Pesquisa Técnica da Finlândia” na área de ferramentas de sistema móvel, soluções integradas e telemática para automóveis. 196
BESLAY, Laurent; HAKALA, Hannu. Digital Territory: Bubbles. 2009. Disponível em: <Http://cybersecurity.jrc.ec.europa.eu/docs/DigitalTerritoryBubbles.pdf>. Acesso em: 10. Jul.2011.
78
subjetividade), a casa é o segundo nível de isolamento e controle de fronteiras e o
espaço público o terceiro nível territorial, onde as pessoas negociam proximidade e
distanciamento. O design do território digital isolaria os três tipos de espaço,
protegendo o indivíduo, disponibilizando uma ferramenta que permite aos usuários
gerenciarem proximidades e distâncias entre si nesse espaço de inteligência ambiente,
no sentido social e legal, assim como no mundo físico197
. A imagem da bolha tem por
objetivo constituir uma camada de isolamento, de controle informacional, dando aos
usuários o poder sobre o que sai ou entra198
.
Como afirma André Lemos, conceito similar ao de “bolha digital” é de
“paredes digitais”, pensadas como sistemas que permitem que os usuários controlem
as suas pegadas digitais. Essas paredes virtuais atestam, como as bolhas digitais, a
nova territorialidade dos lugares como zona de controle informacional, de forma que o
controle entre as “bordas eletrônicas” que compõem os espaços de lugar devem
garantir a privacidade, o anonimato e a liberdade199
. Tanto as “bolhas” quanto as
“paredes” digitais surgem como instrumento de contenção do “território digital”,
evitando que o mesmo se torne espaço sem controle, local de liberdade ilimitada.
1.1 O regime de visibilidade como “valor” e fonte de “mutação normativa”
Tem-se como “regime de visibilidade” a forma pela qual “se vê ou se é
visto” na sociedade, que se caracteriza como a forma como certa sociedade considera
verdadeiro discurso baseado numa determinada imagem, numa determinada exposição
produzida a partir dos recursos tecnológicos disponíveis na respectiva época.
197
BESLAY, Laurent; HAKALA, Hannu. Digital Territory: Bubbles. 2009. Disponível em: <Http://cybersecurity.jrc.ec.europa.eu/docs/DigitalTerritoryBubbles.pdf>. Acesso em: 10. Jul.2011.
198
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.84.
199
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.87.
79
Como já apontado anteriormente, se antes das tecnologias de
monitoramento, de transmissão de dados através de redes sem fio, o regime de
visibilidade baseava-se exclusiva ou preponderantemente no alcance do campo ocular
(isto é, no alcance visual do olho humano), hoje tal regime se baseia também em
“espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos limites do alcance do
olho humano, mas sim em espaço informacional (que é o resultado de serviços e
tecnologias baseados em localização e transmissão de dados).
Inequívoco, pois, que o “regime de visibilidade” é próprio de determinada
sociedade e de certo “momento histórico”, é um valor cultuado pela sociedade em
realidades fatuais que se apresentem e que, portanto, faz parte da experiência jurídica,
devendo, frente à “Eticidade”, incidir sobre os fatos normados, gerando a escolha de
uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado (tal escolha terá
como vertente a incidência do “valor” ao fato concreto em análise) levando-se em
consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua polissemia, capacidade de um
mesmo suporte físico referir-se a mais de um significado).
A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar
mutação normativa - entendida como modificação do conteúdo da norma jurídica, a
despeito da manutenção do enunciado prescritivo (texto legislativo) -, especialmente
naquelas normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade200
(capacidade de ser ver
ou ser visto). A mutação normativa tem como principal instrumento a interpretação
jurídica.
Nesse sentido, importa grave equívoco a interpretação de texto legislativo
considerando “valor desatualizado” da sociedade e, mais especificamente, regime de
visibilidade já ultrapassado. Citado equívoco desnatura o direito, afasta as “soluções
jurídicas” impostas da experiência jurídica vivenciada.
200
A expressão “normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade” é aqui utilizada para se referir a normas jurídicas cujo antecedente é formado pela descrição de um comportamento abstrato (proibido, obrigatório ou proibido) que deve ser objeto de fiscalização ou observação por terceira pessoa. Isto é, para a ocorrência do antecedente de tais normas jurídicas é necessária a ocorrência do evento “realização ou possibilidade de realização de fiscalização ou observação por terceiro”.
80
2 A mutação normativa do artigo 62, I, da CLT em função da mudança do regime
de visibilidade
Neste tópico dedicar-nos-emos à análise da mutação normativa sofrida
pelo inciso I do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em razão da
mudança de regime de visibilidade cultuado na sociedade atual e que é por demais
diverso do regime de visibilidade cultuado em 01 de maio de 1943 quando da
introdução da CLT (Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943) no Direito Positivo
Brasileiro.
Para uma efetiva apreciação da mutação normativa do artigo 62, I, da CLT,
apresentaremos, como anteparo preparatório, a descrição do tratamento jurídico dado
pela Constituição Federal de 1988 e pela CLT à duração da jornada de trabalho, o que
nos permitirá uma efetiva análise sistemática da mutação normativa noticiada.
2.1 O contrato de trabalho e a jornada laboral
Importante destacar que o conteúdo a seguir é de caráter eminentemente
descritivo, objetivando apontar as principais características da normatização da
duração do trabalho no direito positivo brasileiro, daí a inexistência de preocupação
crítica, nesse momento, em relação ao conteúdo apontado.
No que se refere à duração da atividade dedicada pelo empregado ao
empregador, a doutrina destaca a existência de três institutos que, a despeito de serem
características de um mesmo objeto sob prismas diversos, merecem, todos, ser
apontados, quais sejam:
- jornada de trabalho: que é o lapso temporal diário em que o empregado se coloca à
disposição do empregador em virtude do respectivo contrato de trabalho, sendo a
medida principal do tempo diário de disponibilidade do obreiro em face de seu
empregador como resultado do cumprimento do contrato de trabalho que os vincula201.
Aliás, como destacado por Sergio Pinto Martins, a expressão “jornada” tem a sua raiz
201
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 831.
81
etimológica no vocábulo italiano giornatta, que significa dia, acrescentando-se que em
francês utiliza-se a expressão jour para significar “dia” e journeé para se referir à
“jornada”202. Em suma, originalmente a expressão “jornada de trabalho” refere-se ao
lapso de prestação de atividade laboral durante um determinado dia, o número de horas
diários de trabalho que o empregado presta ao empregador.
- duração do trabalho: que é o lapso temporal de trabalho ou disponibilidade do
empregado perante seu empregador em virtude do contrato de trabalho, considerados
distintos parâmetros de mensuração: dia (duração diária ou jornada), mês (duração
mensal) ou ano (duração anual)203.
- horário de trabalho: que se refere ao lapso temporal entre o início e o fim de certa
jornada laborativa, à delimitação do início e fim da duração diária de trabalho com os
respectivos dias semanais de trabalho e correspondentes intervalos intrajornadas.
Utilizaremos na presente tese os termos “jornada de trabalho” e “duração de
trabalho” como sinônimos, indicando período de tempo em que o empregado encontra-
se exercendo as suas atividades laborais junto ao empregador e/ou tempo à disposição
do empregador aguardando ordens. Já o termo “horário de trabalho” será por nós
utilizado como fixação de horários de início e término da prestação laboral.
No que se refere aos critérios para fixação da jornada de trabalho, aponta-se
a existência de 3(três) critérios básicos, quais sejam: “tempo efetivamente trabalhado”
(que considera como componente da jornada de trabalho apenas o tempo efetivamente
trabalhado pelo empregado, excluindo-se do cômputo da duração da jornada eventual
tempo à disposição do empregador aguardando ordens mas sem labor efetivo, qualquer
tipo de intervalo intrajornada, e paralisações da atividade empresarial que inviabilizem
a prestação laboral204), “tempo à disposição (critério que determina que na jornada de
trabalho inclui-se o tempo em que o empregado encontra-se à disposição do
202
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 488. 203
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004., p.835. 204
Ibidem, p.838.
82
empregador a partir do momento em que o empregado chega à sede do empregador até
o momento em que dela se retira205. Como afirma Amauri Mascaro Nascimento, o
critério sob análise fundamenta-se na natureza do trabalho do empregado, isto é, na
subordinação contratual, de modo que o empregado é remunerado por estar sob a
dependência jurídica do empregador e não somente por que e quando está
trabalhando206). Finalmente, o critério do “tempo in itinere” (que computa a jornada de
trabalho desde o momento em que o empregado sai de sua residência para realização
da atividade laboral até quando a ela regressa ao fim da prestação laboral207).
Frente à exposição introdutória pode-se afirmar que o Direito Positivo
brasileiro adota, como constata Sergio Pinto Martins, um sistema híbrido das teorias
do tempo à disposição do empregador e do tempo in itinere (neste último somente para
a hipótese em que o local de trabalho seja de difícil acesso ou não servido por
transporte público e o empregador forneça a condução) para identificar a jornada de
trabalho do empregado208, como se verifica, por exemplo, da leitura do caput do artigo
4º e do parágrafo 2º do artigo 58, todos da CLT, abaixo transcritos:
CLT. Art. 4º. Considera-se como de serviço efetivo o período em que
o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou
executando ordens, salvo disposição especial expressamente
consignada.
CLT. Art. 58... §2º. O tempo despendido pelo empregado até o local
de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não
será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de
local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o
empregador fornecer a condução.
No que se refere à composição da jornada de trabalho, seguimos, nessa
descrição, o raciocínio de Maurício Godinho Delgado, para quem tal composição se
205
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 489. 206
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 627.
207
MARTINS, Sergio Pinto. op.cit.. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p.489. 208
Ibidem, p. 489.
83
faz por um “tronco básico” (cujo conteúdo é o lapso temporal situado nos limites da
duração do trabalho pactuada entre as partes, isto é, aquilo que a prática designa como
jornada normal de trabalho209) e por “componentes suplementares” (nesses incluindo-
se todos os demais períodos trabalhados – designados pela prática como jornada
suplementar ou extraordinária - ou apenas à disposição plena ou parcial do
empregador reconhecidos pelos critérios de composição da jornada impostos pelo
direito positivo pátrio, assim como os intervalos remunerados210).
Em relação à jornada normal de trabalho, a Constituição Federal Brasileira
vigente impõe como regra geral a duração de trabalho diária de 8(oito) horas e semanal
de 44 (quarenta e quatro) horas, conforme inciso XIII do artigo 7º constitucional, o que
é acompanhado, no que se refere à fixação diária, pelo artigo 58, caput, da CLT.
Seguem transcrições dos dispositivos comentados:
CF/88. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...) XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas
diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de
horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção
coletiva de trabalho;
CLT. Art. 58. A duração normal do trabalho, para os empregados em
qualquer atividade privada, não excederá de 8(oito) horas diárias,
desde que não seja fixado expressamente outro limite.
É verdadeiro também que a própria Constituição Federal aponta exceção à
regra geral, como o faz em relação à duração normal da jornada de trabalho realizado
em turno ininterrupto de revezamento, conforme inciso XIV do artigo 7º
constitucional. Outras exceções também são feitas pela legislação infraconstitucional
como se verifica, por exemplo, em relação aos jornalistas profissionais e radialistas
(em que a jornada normal é de 5 horas diárias, conforme artigo 303 da CLT), aos
telefonistas sujeitos a horários variáveis (a quem é fixada jornada normal de 7 horas,
conforme artigo 229, caput, da CLT) e aos professores (para quem é fixada duração 209
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 846. 210
Idem.
84
normal de trabalho de 6 horas, como determina o artigo 318 da CLT). Vale transcrever
os enunciados prescritivos acima indicados:
CF/88. Art. 7º (...) XIV- jornada de seis horas para o trabalho
realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação
coletiva;
CLT. Art. 303. A duração normal do trabalho dos empregados
compreendidos nesta Seção211
não deverá exceder de 5(cinco) horas,
tanto de dia como à noite.
CLT. Art. 229. Para os empregados212
sujeitos a horário variáveis, fica
estabelecida a duração máxima de 7(sete) horas diárias de trabalho e
17(dezessete) horas de folga, deduzindo-se desse tempo 20(vinte)
minutos para descanso, de cada um dos empregados, sempre que se
verificar um esforço contínuo de mais de 3(três) horas.
CLT. Art. 318. Num mesmo estabelecimento de ensino, não poderá o
professor dar, por dia, mais de 4(quatro) aulas consecutivas, nem mais
de 6(seis) intercaladas.
No que se refere aos “componentes suplementares” da jornada de
trabalho, destaca-se o labor em lapso de tempo superior à jornada-padrão tida como
“normal” pelo direito positivo vigente, lapso esse intitulado pela legislação, pela
doutrina e pela jurisprudência como “serviço extraordinário” ou “jornada
extraordinária” e a que a Constituição Federal fixa remuneração diferenciada de, no
mínimo, 50% superior ao valor da hora normal, conforme texto do inciso XVI do
artigo 7º constitucional abaixo transcrito:
CF/88. Art. 7º (...) XVI- remuneração do serviço extraordinário
superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;
E mais, a legislação infraconstitucional afasta a incidência de normas
referentes à duração do trabalho e à imposição de pagamento por serviço
extraordinário a atividades cuja realização não seja controlável pelo empregador. Daí
surgindo classificação das jornadas de trabalho em Controláveis e Não-
211
Trata-se da Seção XI do Capítulo I do Título III da CLT, que trata dos “jornalistas profissionais”. 212
O referido dispositivo refere-se àqueles que trabalham em atividade de Telefonia, de Telegrafia Submarina e Subfluvial, de Radiotelegrafia e Radiotelefonia.
85
Controláveis213, pedindo-se vênia para transcrição, nesse ponto, do magistério de
Mauricio Godinho Delgado:
A presença ou não de controle e fiscalização pelo empregador é...
um marco distintivo fundamental entre as jornadas laborativas
obreiras. Em consequência, o Direito do Trabalho diferencia entre
jornadas controladas e não controladas. As primeiras (jornadas
controladas), em que a prestação do trabalho é submetida a efetivo
controle e fiscalização do empregador, podem ensejar a prestação de
horas extraordinárias, caso evidenciada a extrapolação da fronteira
temporal regular da jornada padrão incidente sobre o caso concreto.
As segundas (jornadas não controladas), em que a prestação do
trabalho não é submetida a real controle e fiscalização pelo
empregador, não ensejam o cálculo de horas extraordinárias, dado que
não se pode aferir sequer a efetiva duração do trabalho no caso
concreto.214
A regra geral, no Direito brasileiro, é que são controladas as
jornadas laborativas do empregado. E isso é lógico, à medida que
incide em benefício do empregador um amplo conjunto de
prerrogativas autorizadoras de sua direção, fiscalização e controle
sobre a prestação de serviços contratada (art. 2º, caput, CLT). Nesse
quadro, presume-se que tal poder de direção, fiscalização e controle
manifestar-se-á cotidianamente, ao longo da prestação laboral, quer no
tocante à sua qualidade, quer no tocante à sua intensidade, quer no
tocante à sua frequência.215
A ordem jurídica reconhece que a aferição de uma efetiva jornada de
trabalho cumprida pelo empregado supõe um mínimo de fiscalização e
controle por parte do empregador sobre a prestação concreta dos
serviços ou sobre o período de disponibilidade perante a empresa. O
critério é estritamente prático: trabalho não fiscalizado nem
minimamente controlado é insuscetível de proporcionar a aferição da
prestação (ou não) de horas extraordinárias pelo trabalhador. Nesse
quadro, as jornadas não controladas não ensejam cálculo de horas
extraordinárias, dado que não se pode aferir sequer a efetiva prestação
da jornada padrão incidente sobre o caso concreto.216
213
Vale esclarecer que, apesar de muitos Autores utilizarem as expressões jornadas “controladas” e “não controladas”, como o faz, por exemplo, Mauricio Godinho Delgado na sua obra “Curso de Direito do Trabalho”, optamos pela utilização dos termos “controláveis” e “não controláveis”, vez entendermos que o regime jurídico especial conferido pelo artigo 62, inciso I, da CLT leva em consideração à impossibilidade de controle da jornada de trabalho (isto é, a características da jornada não ser controlável) e não simples faculdade do empregador em controlar ou não controlar a jornada desenvolvida pelo obreiro. 214
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 872. 215
Ibidem, p. 873. 216
Ibidem, p. 874.
86
Quanto à previsão normativa, em caráter de exceção, de jornada não
controlável, a CLT prevê duas hipóteses específicas no seu artigo 62 da CLT, quais
sejam: a hipótese de “empregados que exercem atividade externa incompatíveis com a
fixação de horário de trabalho” e a situação dos daqueles exercentes de cargo de
confiança e, mais especificamente, “os gerentes, assim considerados os exercentes de
cargos de gestão, aos quais se equiparam ... os diretores e chefes de departamento ou
filial”, afastando tais empregados do regime de “Duração do Trabalho” fixado no
Capítulo II do Título II da CLT (compreendendo os artigos 57 a 75). Vale transcrição
do artigo 62 da CLT:
CLT. Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste
Capítulo:
I- os empregados que exercem atividade externa incompatível com a
fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na
Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de
empregados;
II- os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão,
aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os
diretores e chefes de departamento ou filial.
Parágrafo único. O regime previsto neste Capítulo será aplicável aos
empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário
do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se
houve, for inferir ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de
40%(quarenta por cento).
2.2 Análise histórica do enunciado prescritivo constante do inciso I do artigo 62
da CLT
Quando do início de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho
(Decreto-Lei no. 5.452, de 1º de maio de 1943) tinha originalmente o artigo 62 a
seguinte redação:
CLT. Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:
a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral,
funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal
condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no
87
livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo
assegurado o repouso semanal;
b) os vigias, cujo horário, entretanto, não deverá exceder de dez horas,
e que não estarão obrigados à prestação de outros serviços, ficando-
lhes, ainda, assegurado o descanso semanal;
c) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em
forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado
de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes,
entretanto, assegurado o descanso semanal;
d) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos
portos sujeitos a regime especial.
Em 17 de maio de 1985 foi publicada a Lei Federal Ordinária 7.313/85, que
suprimiu a original alínea “b” da redação original, determinando a renumeração das
demais alíneas do dispositivo que, então, passou a ter a seguinte redação:
CLT. Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:
a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral,
funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal
condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no
livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo
assegurado o repouso semanal;
b) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em
forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado
de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes,
entretanto, assegurado o descanso semanal;
c) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos
portos sujeitos a regime especial.
Em 27 de dezembro de 1994 foi publicada a Lei Federal Ordinária 8.966/94
que, revogando a redação anterior do artigo 62 da CLT, inaugurou nova redação, com
o seguinte conteúdo:
88
CLT. Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste
Capítulo:
I- os empregados que exercem atividade externa incompatível com a
fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na
Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de
empregados;
II- os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão,
aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os
diretores e chefes de departamento ou filial.
Parágrafo único. O regime previsto neste Capítulo será aplicável aos
empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário
do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se
houver, for inferir ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de
40%(quarenta por cento).
Do quanto acima exposto, importante é a constatação de que o não
enquadramento dos “trabalhadores externos” no regime jurídico de controle de jornada
de trabalho e pagamento de horas extraordinárias sempre fez parte do conteúdo do
artigo 62 da CLT, desde o seu nascedouro, a despeito das modificações legislativas
realizadas em 1985 e 1994, havendo, no entanto, com a redação lavrada pela Lei
8.966/94, a qualificação da atividade externa como “incompatível com a fixação de
horário” em substituição à anterior expressão “não subordinado a horário”.
A modificação do qualificativo do trabalho externo para efeito de não
enquadramento no regime jurídico de horas extras (de “não subordinado a horário”
para “incompatível com a fixação de horário”) gerou uma maior vinculação ao
“regime de visibilidade”. Mais especificamente, por “não subordinado a horário”
podemos compreender situação em que, independentemente do motivo, a jornada de
trabalho do empregado não é controlada pelo empregador, ainda que fosse esta
controlável, fiscalizável, considerando-se como “direito potestativo”217
do empregador
a decisão de controlar ou não a jornada de trabalho. Nessa qualificação histórica do
“trabalhador externo”, a possibilidade ou impossibilidade de fiscalização e controle da
217
A expressão “direito potestativo” é aqui tratada sob o conceito de direito subjetivo sobre o qual não cabe contestação, caracterizando-se como prerrogativa jurídica de impor a outrem, unilateralmente, a sujeição ao seu exercício.
89
jornada de trabalho não é uma referência para o enquadramento do caso concreto ao
dispositivo legal de exceção. Já sob o manto do adjetivo “incompatível com o controle
de jornada”, o foco do enquadramento normativo afasta-se do exercício de mero
direito potestativo do empregador e passa a ser a possibilidade ou impossibilidade
fática do empregador fiscalizar e controlar a jornada realizada externamente pelo
empregado, daí a absoluta necessidade de compatibilidade do conteúdo normativo com
o regime de visibilidade (valor incidente) cultuado pela sociedade no momento da
subsunção normativa.
2.3 A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e as
hipóteses interpretativas
Como afirma Gregorio Robles, o texto jurídico é um texto prescritivo, o que
significa, sobretudo, que o texto jurídico está dotado, como uma totalidade, de uma
função pragmática determinada que o converte num conjunto de mensagens, cujo
sentido intrínseco é dirigir, é orientar, é regular as ações humanas218
. Assim, não se
poderia iniciar o procedimento de interpretação do artigo 62, I, da CLT, senão através
de sua análise gramatical que tem a característica de ser ponto de início da atividade
interpretativa, valendo transcrição do pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior
sobre tal técnica interpretativa:
Quando se enfrenta uma questão léxica, a doutrina costuma falar em
interpretação gramatical. Parte-se do pressuposto de que a ordem das
palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para
obter-se o correto significado da norma. Assim, dúvidas podem existir
quando a norma conecta substantivos e adjetivos ou usa pronomes
relativos. Ao valer-se da língua natural, o legislador está sujeito a
equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor
(como na ciência), produzem perplexidades... É óbvio que as
exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem essas dúvidas.
A análise das conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical,
não se reduz, pois, a meras regras da concordância, mas exige regras
de decidibilidade... No fundo, pois, a chamada interpretação
218
ROBLES, Gegorio. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005, p. 29.
90
gramatical tem na análise léxica apenas um instrumento para mostrar e
demonstrar o problema, não para resolvê-lo219
.
Procedendo-se à técnica gramatical de interpretação do enunciado
prescritivo constante do inciso I do artigo 62 da CLT (CLT. Art. 62. Não são abrangidos
pelo regime previsto neste Capítulo: os empregados que exercem atividade externa
incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na
Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;), explorando-se, em
especial, a pluralidade semântica dos termos “incompatível” e “fixação de horário de
trabalho” extraem-se as seguintes hipóteses interpretativas:
a) Estão afastados do direito à percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional
noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do território
físico do estabelecimento do empregador) e não se encontram submetidos a controle
de horário, independentemente da possibilidade ou não de efetivo controle de jornada,
vez que, em relação à atividade externa, a realização de fiscalização da jornada de
trabalho é faculdade do Empregador;
b) Estão afastados do direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e
adicional noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do
território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a possibilidade
concreta do empregador realizar, in loco (isto é, fisicamente, através da interação
direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da visão do Empregador
ou de preposto seu) e a qualquer momento, a fiscalização da atividade laboral
desempenhada pelo Empregado;
c) Estão afastados do direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e
adicional noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do 219
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 289-290.
91
território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a possibilidade
concreta do Empregador realizar, a qualquer momento, in loco (isto é, fisicamente,
através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da
visão do Empregador ou de preposto seu) ou através de sistemas que ofereçam “espaço
ampliado” que permitam não só a identificação do empregado no exercício de sua
atividade laboral, como também a verificação da qualidade e da quantidade do serviço,
a transmissão de ordens e a verificação do cumprimento de ordens.
Apresentadas as hipóteses interpretativas do dispositivo em análise, é de se
apreciar cada uma dessas hipóteses frente às demais técnicas e princípios
interpretativos.
2.4 Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os
Direitos Fundamentais contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição Federal
Como já exposto no capítulo I desta pesquisa, são Direitos Fundamentais de
Segunda Geração não só os direitos trabalhistas mínimos contidos nos incisos do
artigo 7º da Constituição Federal, como também as demais normas jurídicas que
regulam os direitos mínimos dos trabalhadores na relação de emprego constantes da
legislação infraconstitucional. Tem-se, pois, que a norma jurídica contida no artigo 7º,
XVI, da Constituição Federal220
, que assegura como direito de todos os trabalhadores a
percepção de horas extras (com um adicional de, no mínimo, cinquenta por cento) na
hipótese de prestação laboral em excesso ao módulo diário/semanal normal, é um
Direito Fundamental, possuindo, por corolário, as características de universalidade,
indivisibilidade e interdependência, historicidade e unidade, bem como se submete às
técnicas de interpretação típicas de tal gênero de normas jurídicas.
Dentre as limitações no procedimento de interpretação de enunciados
prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais, já concluímos que se deve “excluir
220
Constituição Federal. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ... XVI- remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;”
92
hipóteses interpretativas que criem limitação subjetiva à aplicabilidade da norma
jurídica, destinando a aplicação da norma jurídica somente a determinados sujeitos,
excluindo a aplicação sobre outros sujeitos que se encontrem na mesma situação
objetiva”, garantindo-se, dessa forma, a “universalidade” do direito fundamental.
Ora, o fato objetivo gerador do direito de percepção de horas extras ( que,
na verdade, é o antecedente221
da norma jurídica contida no artigo 7º, XVI, da
Constituição Federal) é a prestação de atividade laboral em excesso (em quantidade
superior aos limites legais tidos como “normais”), sendo, a priori, equivocado o
afastamento de tal Direito Fundamental a determinados sujeitos que, objetivamente,
praticaram o antecedente da norma jurídica sob análise. Merece igual raciocínio a
norma jurídica contida no artigo 7º, IX, da Constituição Federal222
, que assegura o
direito a adicional noturno.
O artigo 62, I, da CLT, ao prever o afastamento dos Empregados que
“exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalhos” do
regime jurídico do Capítulo II (“Da duração do trabalho”) do Título I (“Das normas
gerais de tutela do trabalho”) da Consolidação das Leis do Trabalho, que contém os
artigos 57 a 75, cria exceção à universalidade dos Direitos Fundamentais à percepção
de horas extraordinárias(art. 7º, XVI, da Constituição Federal) e de adicional noturno
(art. 7º, IX, da Constituição Federal), vez que os artigos 58 a 61 e 73, de aplicabilidade
afastada na hipótese do artigo 62, I, da CLT, referem-se, respectivamente, ao regime
de jornadas normal e extraordinária e ao trabalho noturno, respectivamente.
O enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT enquadra-se na
classe dos “textos legais infraconstitucionais introdutores de normas jurídicas
limitadoras da aplicação objetiva de Direitos Fundamentais”, razão pela qual, frente à
universalidade e à busca da máxima efetividade dos Direitos Fundamentais, deve ser
interpretado restritivamente, limitando a idoneidade das hipóteses interpretativas
(surgidas frente à elasticidade semântica do texto normativo) àquelas que indiquem a
221
Sobre o conceito de “antecedente da norma jurídica”, remete-se o Leitor ao Capítulo I desta pesquisa. 222
Constituição Federal. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ...IX- remuneração do trabalho noturno superior à do noturno;”
93
não aplicação, num caso concreto específico, de determinado Direito Fundamental em
razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de verificação quantitativa
(constatação da quantidade) e/ou verificação quantitativa (constatação da qualidade)
de fatos do mundo fenomênico capazes de se enquadrarem no antecedente de uma
norma jurídica introdutora de Direito Fundamental.
Especificamente em relação ao artigo 62, I, da CLT, somente há de se
considerar, para efeito da construção da norma jurídica, hipóteses interpretativas que
evidenciem, no mundo fenomênico, a efetiva impossibilidade de controle da jornada
de trabalho (isto é, a impossibilidade efetiva, em concreto, de verificação quantitativa
do fato do fato do mundo fenomênico no caso, tempo de prestação de atividade laboral
no exercício das obrigações inerentes à relação de emprego – que preenche o
antecedente da norma jurídica introdutora do Direito Fundamental de percepção de
horas extras). Fixamos, assim, entendimento de que qualquer norma jurídica
construída a partir do enunciado prescritivo do artigo 62, I, da CLT que se baseie em
hipótese interpretativa que não se enquadre como idônea (na forma acima apontada)
será materialmente inconstitucional.
2.5 Aplicação do princípio da unidade do Direito Positivo Brasileiro. Necessidade
de interpretação do inciso I do artigo 62 da CLT frente ao conteúdo das demais
normas jurídicas vigentes
Já tivemos a oportunidade de, em estudo anterior já publicado223, afirmar
que o direito positivo é um sistema, um conjunto de elementos que se inter-relacionam
e se harmonizam em razão de uma determinada referência, de um determinado valor.
Analisado como um sistema, o Direito Positivo abrange, como elementos
constitutivos, as normas jurídicas que se inter-relacionam não só pelo aspecto formal,
ante a obediência às regras de construção normativa, como também pelo aspecto
material, ante o respeito à regra da hierarquia das fontes do direito, onde aparece,
223
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
94
como suprema, a Constituição Federal224, conforme princípio da supremacia da
Constituição225.
E são exatamente essas necessárias inter-relação e harmonização que nos
impedem de realizar uma interpretação levando em consideração tão somente o
aspecto gramatical do texto normativo, tão somente a letra crua e isolada do texto
normativo226. Frente a tais fundamentos, e na forma do princípio interpretativo da
unidade da Constituição227, passamos a fazer uma análise sistemática dos termos do
inciso I do artigo 62 da Constituição Federal, levando em consideração não só as
normas constitucionais como também as normas infraconstitucionais de potencial
influência na atividade interpretativa do citado dispositivo ante o tema do mesmo.
2.5.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa Humana” como
fundamentos da República Federativa do Brasil e, consequentemente, das normas
jurídicas vigentes
Determina o artigo 1º da Constituição Federal Brasileira que “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa;...”.
Não se pode deixar de destacar a importância da “dignidade da pessoa
humana” e dos “valores sociais do trabalho” na estrutura constitucional do Estado
224
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 176.
225
Determina o princípio da supremacia da Constituição que, pelo fato da Constituição ser a norma superior do ordenamento jurídico, não se dá conteúdo à Constituição a partir das leis, mas destas a partir da Constituição. A forma a ser adotada para a descrição de conceitos deve operar sempre “de cima para baixo”, o que serve para dar efetiva segurança às conceituações jurídicas. 226
HERMIDA, Denis Domingues. Op. Cit., p. 176. 227
Por princípio da Unidade da Constituição entende-se a obrigação do intérprete de considerar a Constituição na sua globalidade e de procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Trata-se de uma consequência de uma visão sistêmica das normas constitucionais, em que todas elas são elementos de um mesmo sistema, harmonizando-se e se inter-relacionando.
95
brasileiro, definido como Estado Democrático de Direito pelo artigo 1º acima
transcrito parcialmente, que aponta tais institutos como uns dos fundamentos da
República Federativa do Brasil. A qualidade de “fundamento” do Estado brasileiro
somente pode, verdadeiramente, ser valorizada quando buscamos o real significado do
termo “fundamento” que, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é “base,
alicerce, razões em que se funda, razão, motivo”228. Assim, não há como se admitir,
seja política, seja juridicamente, qualquer ato jurídico229 praticado no Brasil que não
cumpra o requisito de reconhecer e proteger a dignidade da pessoa humana e os
valores sociais do trabalho e, partindo-se do princípio de que o funcionamento estatal
não depende exclusivamente dos atos da administração pública, todos os atos dos
cidadãos, em especial os caracterizados pela intersubjetividade (onde age o Direito),
devem, da mesma forma, zelar pela dignidade da pessoa humana e pelos valores
sociais do trabalho230. É de se acrescentar que a Constituição Federal, no caput de seu
artigo 170, abaixo transcrito, insere a “valorização do trabalho humano”, juntamente
com a “livre iniciativa” como fundamentos da ordem econômica nacional.
CF/88. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social...
228
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 3ª edição, 1993, p. 413.
229
Sobre o conceito de ato jurídico, Marcos Bernardes de Mello afirma existirem os conceitos lato sensu e stricto sensu de ato jurídico, aquele como sendo “o fato jurídico cujo suporte fático tenha como cerne uma exteriorização consciente da vontade, dirigida a obter um resultado juridicamente protegido ou não-proibido e possível” e este (stricto sensu) como “fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fático manifestação ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas (Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 115 e 135). Custódio da Piedade Ubaldino Miranda esclarece que quando se falar em ato jurídico sem qualquer outra designação complementar, tanto se pode querer significar uma simples atuação da vontade, um comportamento de que resultam certos efeitos jurídicos por exclusiva obra da lei, ainda que o seu autor os não tenha querido ou previsto, como se pode querer significar o negócio jurídico, que consiste numa declaração que exterioriza um certo conteúdo de vontade e mediante a qual o seu autor se propõe obter determinados efeitos que a lei dota de juridicidade (Cf. MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. São Paulo: Atlas, 1991, p. 21-22). Esclarece-se também que nesse trabalho utilizados o termo ato jurídico tanto como ato jurídico lato sensu quanto como ato jurídico stricto sensu ou negócio jurídico, envolvendo não só os atos de particulares, como também os estatais, inclusive aqueles referentes à produção normativa. 230
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 41 e 42.
96
E, assim, claro que tais fundamentos são valores que devem ser
considerados na interpretação dos enunciados prescritivos vigentes no direito positivo
brasileiro. Passamos a seguir, de forma específica, a apreciar a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho, encontrando, de forma objetiva, o
significado de cada um deles para posterior aplicação na interpretação do atual
enunciado do artigo 62, I, da CLT.
2.5.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana
Em nossa pesquisa intitulada “O direito à vida como limitação material à
negociação coletiva de trabalho” desenvolvida em sede de mestrado e publicada sob o
título “As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua
proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho”231, já desenvolvemos estudo
buscando o significado de tal princípio e a sua aplicabilidade interpretativa, apontando
a seguir os dados por nós coletados e as conclusões resultantes.
A inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana nas Constituições é
tendência que tomou força no período pós-Segunda Guerra Mundial como forma de
responder às atrocidades nazistas que até hoje marcam a consciência humana,
reconhecendo o ser humano como o centro e o fim do direito. Essa informação
histórica é bastante relevante para constatarmos que a proteção da dignidade da pessoa
humana surge como uma resposta ao estigma da destruição humana patrocinada pelo
nazismo, que influenciará a conceituação do princípio em discussão. Ganha vulto no
mundo a importância da pessoa humana – expressão que melhor evoca os valores
éticos de que os temos indivíduo, cidadão, homem – como categoria filosófica porque
muitas vezes é o próprio valor do ser humano que está sendo posto em causa. Assim, a
pessoa humana é hoje considerada como o mais notável, senão raiz, de todos os
valores, devendo por isso mesmo e dentro de uma visão antropocêntrica, ser o objetivo
231
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
97
final da norma jurídica, ser a base do Direito, revelando, assim, critério essencial para
conferir legitimidade a toda ordem jurídica232.
Se de um lado é incontestável a importância da dignidade da pessoa
humana, de outro há que se destacar a abstração que circunda o conceito desse
instituto, principalmente porque o artigo 1º da CF/88, a despeito de introduzi-lo como
fundamento do Estado brasileiro, não apresenta o seu conceito, deixando ao intérprete
essa função. Aliás, esse modelo de omissão é adotado pelos Constituintes de vários
Estados. Para tal constatação, basta leitura do artigo 3º da Constituição da República
Italiana (“Tutti cittadini hanno pari dignitá sociale e sono eguali davante allá
lege...”233), do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa (“Portugal é uma
República soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e
na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e
solidária”), do artigo 1º, item 1, da Constituição Alemã (“Die würde des Menschen ist
unantastbar. Si zu achten und zu scützen is verpflichtung aller staalichen Gewalt”234) e
do artigo 1ª, item 1, da Constituição Espanhola (“La dignidad de la persona, los
derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrolo de la personalidad, el
respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de
la paz sociale”235).
Nesse sentido, cabe ao intérprete da Constituição a busca do real conteúdo
do princípio da dignidade da pessoa humana, não sendo fácil tal missão ante a
polissemia da expressão. Fernando Ferreira dos Santos apresenta a existência de
232
FAGUNDES JÚNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 271 .
233
Tradução nossa: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são protegidos perante a lei...”. 234
Tradução nossa: “A dignidade do ser humano é intangível. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e a proteger.” 235
Tradução nossa: “a dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social.”
98
3(três) concepções da dignidade da pessoa humana: o individualismo, o
transpersonalismo e o personalismo, com as seguintes características236:
- o individualismo, que se caracteriza pelo entendimento de que cada homem,
cuidando dos seus interesses, protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos.
Seu ponto de partida é, portanto, o indivíduo. Trata-se de uma concepção liberalista
(individualismo burguês), onde os direitos fundamentais seriam inatos e anteriores ao
próprio Estado e impostos como limites à atividade estatal. Por essa concepção,
interpretar-se-á a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo,
preservando-o da autonomia do Poder Público. Num conflito entre o Indivíduo e o
Estado, privilegia-se o indivíduo.
- o transpersonalismo, que é uma concepção oposta ao individualismo, defendendo que
é realizando o bem de todos que se salvaguardam os interesses individuais. Inexistindo
harmonia espontânea entre o bem do indivíduo e o bem do todo, devem prosperar,
sempre, os valores coletivos. Nega-se, por essa concepção, a pessoa humana como
valor supremo e tem como consequência a tendência de, na interpretação do direito,
limitar-se a liberdade em favor da igualdade237.
- o personalismo, que rejeita as concepções individualista e coletivista, negando a
espontaneidade da harmonia entre indivíduo e sociedade. Busca a compatibilização
entre valores individuais e valores coletivos, partindo da distinção entre indivíduo e
pessoa. Se no individualismo exalta-se o homem abstrato, típico do liberalismo-
burguês, no personalismo, o indivíduo “não é apenas uma parte. Como uma pedra-de-
edifício no todo, ele é, não obstante, uma forma do mais alto gênero, uma pessoa, em
sentido amplo – o que uma unidade coletiva jamais pode ser”238.
236
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 2001. Disponível em: <http://jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 22.jun. 2002.
237
Idem. 238
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 2001. Disponível em: <http://jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 22.jun. 2002.
99
Importante, nesse momento, apontarmos uma modificação na nossa forma
de conceber o princípio da dignidade da pessoa humana. Mais especificamente,
quando da apresentação de nossa dissertação239 de mestrado junto ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu da PUC/SP, em fevereiro de 2006, entendíamos por uma
concepção de dignidade da pessoa humana concentrada no “individualismo”, como se
verifica do trecho abaixo transcrito, extraído da citada dissertação:
A despeito de opiniões diversas, entendemos que a concepção
individualista é a que melhor se compatibiliza com a dignidade da
pessoa humana prevista na CF/88. Manoel Gonçalves Ferreira Filho
relaciona a dignidade da pessoa humana como o reconhecimento de
que, para o direito constitucional brasileiro, a pessoa humana tem uma
dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser
sacrificado a qualquer interesse coletivo240
.
Nesse sentido, o conceito de dignidade da pessoa humana aproxima-
se do direito que cada indivíduo tem de alcançar a própria
“felicidade”, não de simplesmente existir, mas de lhe ser garantida a
busca por uma existência feliz, como explica Luiz Alberto David
Araujo:
A vida em sociedade objetiva deve permitir que os indivíduos
encontrem sua felicidade, seu bem-estar. E, no caso do transexual, a
felicidade só poderá ser conquistada com a cirurgia para a mudança de
sexo, caso seja de seu interesse. Ao analisar os pedidos, portanto, o
Poder Judiciário deve interpretar a Constituição, conforme os
princípios constitucionais, especialmente o fundamento do Estado
Democrático de direito, que tem como objetivo assegurar a dignidade
da pessoa humana.241
Neste momento, em especial frente ao aprofundamento no estudo da Teoria
Tridimensional do Direito, entendemos a concepção “personalista” como a mais
adequada à caracterização da dignidade da pessoa humana. Expliquemos: a dignidade
da pessoa humana enquadra-se, na forma da Teoria Tridimensional, como um “valor”,
sendo que este não tem a sua raiz única e exclusivamente na individualidade exclusiva
239
HERMIDA, Denis Domingues. O direito à vida como limitação material à negociação coletiva de trabalho. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora em 16 de fevereiro de 2006, sob orientação da Dra. Carla Tereza Martins Romar.
240
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição do Brasil. Volume I. São Paulo: Saraiva, 1990, p.19.
241
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2003, p.105.
100
de cada ser humano, mas na coletividade. É a interação entre os interesses individuais
e os coletivos que, em última instância, fixa os “valores” que, juntamente com o fato e
a norma, constituirão a experiência jurídica em sua completude. Nesse sentido,
vincular-se um “valor” única e exclusivamente a um interesse individual exclusivo
seria efetivo equívoco, devendo-se construir o conceito de “dignidade da pessoa
humana” a partir da composição entre o individual e o coletivo. Nesse
desenvolvimento do raciocínio, vale transcrição de trecho de estudo realizado por
Viviane Machado de Paiva que, apreciando o princípio da dignidade da pessoa
humana frente ao personalismo destacado por Miguel Reale, conclui que:
É a dignidade que faz do homem um ser acima das coisas, dotado
de consciência racional e moral. Sendo assim, o Estado não pode se
colocar no mesmo plano que o indivíduo, nem limitá-lo aos mesmos
direitos e obrigações. Pois, “o dever resulta da necessidade de dar-se
significação prática ao exercício de um outro direito”242
. Nesse
sentido, o Estado existe em função das pessoas e não as pessoas em
função do Estado. (...)Pelas inúmeras dúvidas que surgem ao tentar-se
individualizar ou coletivizar a essência da dignidade humana é que
Miguel Reale constata a existência de três concepções, quais sejam, o
individualismo, transpersonalismo e personalismo.(...) Na última
concepção, o personalismo, a que melhor se encaixa em nosso
ordenamento jurídico, não existe uma preponderância entre o
indivíduo e o coletivo, e sim o reconhecimento do valor da pessoa
humana. “O indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja
ferido o valor da pessoal, ou seja, a plenitude do homem enquanto
homem”243
. O que vale ressaltar, nesta concepção, é que não existe o
melhor para uma coletividade e nem para um indivíduo sozinho, mas
sim, o valor do indivíduo como pessoa fazendo tudo para uma vida
harmoniosa consigo mesma e com o próximo.
Com tudo isso, chega-se à conclusão que o importante é a
satisfação humana e que “todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é:
algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser”244
. Sendo
assim, o que prevalece é o livre arbítrio que cada indivíduo tem para
saber até onde os direitos do outro não excedem os seus próprios
limites. Pois, a própria dignidade humana é a limitação da vontade.245
242
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.276. 243
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 279. 244
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.194.
245
PAIVA, Viviane Machado de. A dignidade da pessoa humana. 2007. Disponível em:<www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=405>. Acesso em: 08.out. 2011.
101
2.5.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do Trabalho Humano”
Como já apontado anteriormente, a valorização do trabalho é identificada
pela Constituição Federal precipuamente em 2(dois) panoramas:
- como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, IV, da CF/88) sob um enfoque social
caracterizado pela expressão “valores sociais do trabalho” e vinculado à necessidade
de composição com os valores da “livre iniciativa”;
- como fundamento da ordem econômica brasileira (art. 170, caput, da CF/88) sob
enfoque individual fundado na expressão “valorização do trabalho humano”.
Nosso foco é tornar, no máximo possível, objetivo o conteúdo desses
valores constitucionais, facilitando a sua aplicação no processo interpretativo-
normativo principalmente em relação ao dispositivo legal que discutimos na presente
pesquisa: o artigo 62, I, da CLT.
Partimos, a fim de alcançar o objetivo traçado, da relação entre “trabalho” e
“ser humano”, abeberando-nos nos ensinamentos de Orlando Teixeira da Costa no
sentido de que o Homem, defrontando-se com a natureza, conseguiu dominá-la para,
aproveitando-se da mesma, alcançar a sua subsistência e a satisfação de suas
necessidades, sendo que essa atividade de domínio do homem sobre a natureza é que
se constitui o “trabalho”. O trabalho, portanto, não passa de uma forma de dominação:
a dominação do homem sobre a natureza. Essa atividade humana importa no dispêndio
de energias e, consequentemente, em cansaço. Para amenizá-lo, o homem associou o
seu esforço ao de outros animais e constatou que de todos os seres vivos aquele que
mais lhe oferecia vantagens no trabalho era o seu semelhante, porque dispunha de
raciocínio, daí ter concebido uma estrutura social de dominação para poder satisfazer
às suas necessidades sem o dispêndio de energias próprias, que seriam supridas pela
subjugação de outros homens, e foi nessa manifestação mais primitiva do trabalho
subordinado que se encontra entranhada a etimologia da palavra “trabalho”, oriunda da
raiz latina trabs, trabis, que designava a trave ou carga que se impunha aos escravos
para obrigá-los ao serviço. Os povos mais ligados ao regime da escravidão buscaram
na raiz trabs, trabis, a denominação para o trabalho. Outros povos que associaram
102
mais frequentemente a atividade humana à força de animais irracionais, como o
cavalo, o jumento ou o boi, optaram por outra raiz latina – labor, laboris – associada
às atividades nobres, daí labour, em inglês, e lavoro, em italiano246.
Com o advento do cristianismo, portador de mensagem doutrinária de
respeito à dignidade da pessoa humana e de fraternidade universal, começou um lento
processo de aniquilamento da escravidão, apesar dela ter persistido e até se
incrementado com os descobrimentos marítimos. Evoluída a civilização, a
Organização Internacional do Trabalho, através das Convenções 29/1930 e 105/1957 e
das Recomendações 36/1930 e 136/1970, reprimiu o trabalho forçado, principalmente
pela citada Convenção 136/1970, que obrigou os Estados ratificadores a não fazerem
uso de nenhuma forma de trabalho forçado. Assim, hoje a escravidão é
internacionalmente condenada247.
Nos países em que a escravidão foi sendo aniquilada em razão dos escravos
adquirirem aos poucos a qualidade de “pessoa” e, consequentemente, a capacidade de
serem sujeitos de relações jurídicas, surgiu um novo regime de trabalho: a servidão,
caracterizada pela vinculação do servo à terra, não podendo dela ser desapossado, nem
abandoná-la. A condição de servo é hereditária, isto é, determinada pelo nascimento e
se transmite de geração em geração, sujeitando-se os servos aos poderes econômico e
político do senhor feudal, sendo aqueles uma fonte de rendimento e uma reserva
militar deste248.
Nos meados da Idade Média Europeia ocorre a transição para o trabalho
livre no âmbito das corporações de ofício, quando, então, o Homem trabalhador, que
até então trabalhava com exclusividade para o senhor da terra, passa a exercer sua
atividade profissional de forma organizada através de grêmios ou corporações
medievais, que associavam trabalhadores por conta própria e empresários de
trabalhadores por conta alheia, livres. Nesse sistema, a relação de trabalho não se
246
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.15. 247
Idem, p. 16 e 17. 248
Ibidem, p.17.
103
estabelece entre o trabalhador e o grêmio, mas entre o empresário e o trabalhador,
ambos componentes do grêmio. Com o tempo, as relações de trabalho individual nas
corporações transcenderam para os tipos coletivos de regulamentação, o que ocorreu
por meio do estabelecimento de uma hierarquia profissional e da instituição da
aprendizagem. O contrato de aprendizagem gremial conferia fortes poderes
disciplinares ao mestre sobre o aprendiz. A duração da aprendizagem era longa e, uma
vez concluída, o aprendiz alcançava o grau imediatamente superior, que era o de
oficial, e assim ocorrendo sucessivamente até alcançar o último escalão, que era o de
mestre, somente adquirido depois de rigoroso exame de aptidão249.
A corporação caracterizava-se como um grupo social auto-regulamentado,
vez que estabelecia a própria regulamentação das condições de trabalho. A
regulamentação, entretanto, era baixada pelo mestre e dela não participavam os
oficiais e muito menos os aprendizes. Com o passar do tempo, o caráter autônomo da
regulamentação vai perdendo consistência, à medida que se passa a exigir a sua
aprovação por órgãos públicos. A luta entre as corporações pela garantia de privilégios
levou esses organismos à crise que acabou por extingui-los250. Descreve, ainda,
Orlando Teixeira da Costa, que a gênese mais próxima da atual forma de trabalho
regulada pelo Direito do Trabalho decorreu da invenção da máquina, a ferramenta que
era utilizada pelo trabalhador foi substituída pela máquina, daí decorrendo a
concentração dos meios de produção. Ao mesmo tempo em que se operava essa
mudança, a produção aumentava e barateava, desestimulando as atividades meramente
artesanais, o que resultou na privação dos instrumentos de trabalho dos antigos
artesões, pois o custo da maquinaria só se tornou acessível a quem podia dispor de
capital vultoso. Concomitantemente, os proprietários das máquinas só puderam operá-
las recrutando mão-de-obra indispensável. Como, entretanto, essa mão de obra era
abundante, a contratação passou a ser feita preço vil, vez que sujeita às leis da oferta e
da procura, em que o trabalho humano é visto como uma mercadoria. As condições e
os locais de trabalho eram os piores possíveis, o que implicava verdadeira afronta à
249
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p. 17. 250
Idem.
104
dignidade da pessoa humana do trabalhador e, com isso, o nível de vida do obreiro
reduziu-se a níveis nunca antes atingidos. A tudo isso o Estado assistia impassível,
como mero espectador encarregado de manter a ordem quando necessário, pois o seu
papel resumia-se a garantir o livre exercício da economia segundo os padrões liberais
vigentes à época251.
Havia a necessidade de proporcionar uma acomodação, em face da ausência
do Estado para resolver a chamada questão social emergente. Tal processo de
acomodação foi operado pelos próprios interessados, mediante a adoção de
procedimentos negociais capazes de solucionar o conflito existente em termos
razoáveis, e foi dessas negociações que resultaram as primitivas formas de pactuação
laboral coletiva, que acabaram por criar as primeiras normas jurídicas genuinamente
trabalhista, vez que aplicáveis a quem prestasse trabalho subordinado ou a quem o
recrutasse, daí surgindo o Direito do Trabalho. Com isso, estabeleceu-se um modus
vivendi amparado por um preceito ético, que era a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores; uma preocupação, caracterizada pela proteção jurídica daqueles que se
apresentavam numa posição extremamente desvantajosa no contexto de uma relação; e
por uma técnica, consubstanciada na superação relativa da inferioridade econômica do
trabalhador, ante a superioridade econômica do patrão, por meio de uma forma de
compensação jurídica, que acabou por esboçar a função essencial do Estado junto às
relações de trabalho252.
É de se afirmar, frente à observação da realidade fática que nos aparece no
mundo atual, que a obtenção dos recursos econômicos necessários para o indivíduo
garantir a sua subsistência, bem como alcançar os seus mais diversos objetivos
materiais, ordinariamente tem como origem: o exercício pelo indivíduo de atividade
econômica em caráter individual ou em sociedade (isto é, sendo detentor dos meios de
produção), a prática de atividade laboral em caráter autônomo, sem vínculo
empregatício (em que, apesar de não ser o indivíduo detentor dos meios de produção,
251
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.18. 252
Ibidem, p. 18 e 19.
105
não há o preenchimento dos requisitos para a caracterização de relação jurídica
empregatícia) ou a manutenção de vínculo empregatício253. O que levará determinado
indivíduo a percorrer uma dessas alternativas de obtenção de recursos materiais serão,
entre outros, as oportunidades que lhe forem oferecidas, a vocação que lhe é inata ou
até mesmo a condição financeira a que se expõe. Tem-se, portanto, que,
independentemente de qualquer caráter enobrecedor do trabalho, o que leva o
indivíduo à sua prática é a necessidade de subsistência, de angariar recursos materiais
que, na sociedade atual, são absolutamente necessários não só à manutenção de sua
existência, mas também ao alcance de uma vida digna.
É esse mesmo trabalho, em especial aquele realizado como objeto de uma
relação jurídica empregatícia (que é a espécie de relação em que se foca esta pesquisa),
que pode ser, em razão da própria subordinação que o caracteriza, instrumento de
afronta à dignidade da pessoa humana do trabalhador. Isso porque, frente ao princípio
da livre iniciativa254 (que também é um dos fundamentos do Estado e da ordem
econômica brasileiros, conforme artigos 1º, IV, e 170, caput, ambos da Constituição
Federal), cabe ao empregador a determinação do processo de trabalho, isto é, o
conjunto de atos praticados com o objetivo de se realizar determinada tarefa, processo
esse que se desenvolve num posto de trabalho(local onde o trabalhador executa a sua
tarefa, bem como os componentes que formam a estrutura física do local e com os
253
Vínculo de emprego ou relação jurídica empregatícia são aqui considerados, na forma dos artigos 2o e 3o da CLT, como espécie do gênero relação de trabalho e corresponde à prestação de serviço subordinado por uma determinada pessoa, sendo tal elemento (subordinação) indissociável da relação de emprego, não se podendo esquecer dos demais requisitos para a sua formação, isto é, a habitualidade na prestação da atividade laboral, a necessária pessoalidade no exercício das atividades inerentes à relação, além da remuneração. 254
Livre iniciativa é aqui conceituada como a faculdade, daquele que pretende desenvolver ou já desenvolve uma atividade econômica, de não só escolher a atividade a ser realizada, como também de organizar essa atividade da forma que melhor lhe aprouver, obedecendo, é claro, os limites normativos impostos pelo direito pátrio, com o fito de alcançar os melhores resultados possíveis. A livre iniciativa não é absoluta, mas relativa, no sentido de que demais normas jurídicas limitam a extensão dessa liberdade, como, por exemplo, as normas de natureza trabalhista que garantem condições mínimas ao empregado no contrato de trabalho (dentre elas as constantes do artigo 7º da Constituição Federal), a necessária “valorização do trabalho humano” (conforme caput do artigo 170 da Constituição Federal que, inclusive, eleva à mesma condição de fundamentos da ordem econômica a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano, demonstrando efetivo objetivo do Constituinte em impor, na seara empresarial e trabalhista, uma efetiva harmonização entre esses dois valores que, a priori, poderiam se mostrar diametralmente opostos) e a imposição de que sejam respeitados os “valores sociais do trabalho” (que, conforme artigo 1º, IV, da Constituição Federal é um dos fundamentos do Estado brasileiro, também num mesmo grau de importância da “livre iniciativa”).
106
quais os obreiros interagem diretamente) mediante uma determinada organização do
trabalho (forma pela qual o trabalho é distribuído no tempo e a maneira pela qual a
prestação laboral deve ser executada, definindo-se quem faz o quê, como, quando,
onde e em que condições físicas, organizacionais e gerenciais), oferece ao trabalhador
certa condição de trabalho (são as condições físicas, químicas, biológicas e sociais a
que estão expostos os trabalhadores durante o processo do trabalho, em razão de uma
determinada organização do trabalho) e uma condição econômica (que é a resultante
da contraprestação econômica do empregador frente à atividade laboral prestada pelo
empregado num determinado lapso de tempo).
Ora, apresentados os conhecimentos preliminares referentes à natureza do
“trabalho”, formas de sua realização e a livre iniciativa como instrumento de fixação
do processo de trabalho dirigido ao empregado, sentimo-nos preparados para buscar o
sentido das expressões constitucionais “valores sociais do trabalho” e “valorização do
trabalho humano”, iniciando-se pela análise semântica que, por óbvio, não pode deixar
de apreciar o conteúdo das palavras “valor” e “valorização”.
Constam, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa255, como
significados possíveis do suporte físico “valor”, dentre outros: “recebimento ou paga
em bens, serviços ou dinheiro por algo trocado”, “quantidade monetária equivalente a
uma mercadoria, em função de sua capacidade de ser negociada no mercado”, “
qualidade que confere a um objeto material a natureza de bem econômico, em
decorrência de satisfazer necessidades humanas e ser trocável por outros bens”, “
medida variável de importância que se atribui a um objeto ou serviço necessário aos
desígnios humanos e que, embora condicione o seu preço monetário, frequentemente
não lhe é idêntico”, “ determinação quantitativa obtida através de cálculo ou
mensuração”, “qualidade humana de natureza física, intelectual ou moral, que desperta
admiração ou respeito”, “reconhecimento, de um ponto de vista afetivo, da
importância ou da necessidade (de algo ou alguém)”. E, o termo “valorização”,
segundo a mesma edição, tem como significado “ato de valorizar”.
255
DICIONÁRIO HOAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Versão eletrônica. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm>. Acesso em: 09.out. 2011.
107
Frente ao próprio princípio da unidade da Constituição, não devemos, no
ato de interpretação de dispositivo constitucional, deixar de levar em consideração os
demais suportes físicos que formam a Constituição Federal e, inclusive, seu
preâmbulo, onde consta:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercícios dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil.
Mostra-se absolutamente pertinente também, em razão da temática, a
apreciação da valorização do trabalho sob a égide dos objetivos fundamentais do
Estado brasileiro fixados no artigo 3º, além dos direitos sociais mínimos descritos no
artigo 6º e as necessidades básicas de que trata o artigo 7º, IV, todos da Constituição
Federal:
CF/88. Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil:
I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II- garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
CF/88. Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.”
CF/88. Art. 7º. (...) IV- salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente
unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de
sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes
periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua
vinculação para qualquer efeito;
108
Conjugando-se os objetivos do Estado brasileiro com os direitos sociais
mínimos que são, na forma da Constituição, garantidos a todo cidadão, e o próprio
princípio da dignidade da pessoa humana (cujo conteúdo já foi objeto de análise),
podemos extrair algumas conclusões preliminares, quais sejam:
- valorizar o “trabalho humano” é proibição de tratamento de tal atividade como
“coisa”, “como objeto”, afastando-se a condição de “escravização”, bem como
qualquer tipo de tratamento desumano ou degradante à figura do trabalhador,
assegurando-se a integridade física e mental;
- valorizar o “trabalho humano” é reconhecer, de um ponto de vista afetivo, a
importância e a necessidade da atividade laboral exercida pelo indivíduo;
- valorizar o “trabalho humano” é determinar a sua extensão, de forma quantitativa e
qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o fito de contraprestação justa.
Não se duvida que os “valores sociais do trabalho”, a que se refere o
artigo 1º, IV, da Constituição Federal tratam do trabalho humano (agregando-se ao seu
conteúdo o quanto já exposto em relação à “valorização do trabalho humano”) que,
além de dever ser valorizado frente ao indivíduo que o exerce, também deve destinar-
se ao alcance daquilo que a sociedade é capaz de extrair da atividade laboral, dentre
outros:
- realização dos direitos sociais mínimos previstos nos artigos 6º e 7º, IV, da
Constituição Federal, a saber: educação, saúde, moradia, lazer, segurança, previdência
social, higiene, alimentação, vestuário e transporte;
- a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, compreendendo-se, nesse
ponto, justiça e solidariedade como proibição de exploração do ser humano, de sua
exposição e utilização como objeto, assim como a imposição de atividade ativa, não só
pelo Poder Publico, mas também por toda a coletividade, no sentido de colaboração
mútua entre todos os membros da sociedade, a fim de se construir a sociedade livre
que a Constituição Federal pretende;
109
- o desenvolvimento nacional, sendo o trabalho juntamente com o capital as válvulas
propulsoras do desenvolvimento, seja econômico, seja social, da nação brasileira, deles
dependendo a realização do objetivo contido no artigo 3º, II, da Constituição Federal;
- a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das
desigualdades sociais e regionais, o que só pode ser efetivamente realizado através de
uma situação de pleno emprego em todas as regiões do país, com contraprestações
remuneratórias justas e plenas condições de trabalho; e
- promover o bem de todos, que é o principal objetivo do Estado, permitindo que todos
tenham os recursos materiais e sociais necessários ao alcance da própria felicidade.
No que se refere à valorização do trabalho no atual grau de
desenvolvimento de nosso raciocínio, importante é a transcrição do magistério de
Amauri Mascaro Nascimento em sua obra “Direito Contemporâneo do Trabalho”,
onde, analisando os diversos conceitos de justiça, busca apontar aquela que é
objetivada pelo direito do trabalho:
O direito do trabalho tem como fim a realização da justiça. As leis
trabalhistas são justas? Os estudos sobre o conceito de justiça são
antigos (Platão, 427-346 a. C) e sua polêmica com os sofistas a
célebre A República, na qual vincula à maneira como deve ser
organizado o Estado e compreendendo-a em caráter essencialmente
moral como virtude.
Compara o Estado a um organismo animal no qual haverá uma
relação harmônica entre os seus diferentes órgãos, cada qual
exercendo a função que lhe compete, sem se intrometer em funções de
outros órgãos. Assim como no indivíduo existem três faculdades – a
inteligência, que esclarece; a vontade, que obra; e os sentimentos, que
obedecem -, no Estado há três classes: os filósofos, que com sua
inteligência são destinados a mandar; os guerreiros, que com a força o
defendem; e os artesões, que devem nutrir o organismo social.
A justiça é compreendida também de outros modos:
a) como virtude específica do social, no qual se destaca a nota da
alteridade, que tem como princípio reitor a igualdade (Aristóteles,
384 – 322 a.C., Ética a Nicômaco) em suas duas espécies: a justiça
distributiva, segundo a qual cada um deve receber na proporção de seu
mérito, com o que igualdade exige proporcionalidade, e a justiça
corretiva ou equiparadora, tanto nas relações entre particulares (justiça
comutativa), com a equivalência de trocas, como na justiça social,
quando o juiz procede a esse tipo de equiparação;
110
b) como alteridade e igualdade (Santo Tomás de Aquino, 1225-1275),
sendo distributiva a justiça devida pela comunidade aos seus membros
e comutativa aquela em que os particulares se devem entre si;
c) como ideia reguladora permanente de harmonia na conduta social
(Stammler), valor absoluto e universal e ideia transcendente do nível
empírico da experiência, sendo comutativa a justiça de uma
comunidade de homens livres.
(...) Não há uniformidade na ideia de justiça. O direito do trabalho
tenta promover a realização da justiça social. A expressão vem do
jusnaturalismo, para a qual a sua realização leva em conta três
aspectos: as necessidades do trabalhador, as possibilidades do
empregador e o bem comum. O qualificativo social está associado à
imagem da dívida que tem a sociedade para aqueles que são chamados
excluídos e que vivem em nível de pobreza. No direito do trabalho, o
social refere-se aos trabalhadores e aos direitos que devem ter. Se por
justiça individual o que se deve entender é dar a cada um é que é seu,
justiça social é dar aos trabalhadores aquilo que é seu.256
Entendemos que a característica de ter o Direito do Trabalho o objetivo de
realização de “justiça social” no sentido de dar ao trabalhador aquilo que é dele, como
apontado por Amauri Mascaro Nascimento, é extraída da própria necessidade do
Direito do Trabalho (visto como divisão didática da ciência do direito e/ou como parte
específica do Direito Positivo pátrio) ter que cumprir os objetivos fixados ao Estado
brasileiro no artigo 3º da Constituição Federal.
Temos na “valorização do trabalho” sob o enfoque de determinação da sua
extensão, de forma quantitativa e qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o
fito de contraprestação justa, um elemento absolutamente importante na interpretação
dos enunciados prescritivos típicos do direito do trabalho e, mais especificamente, do
conteúdo do inciso I do artigo 62 da CLT. A proporcionalidade entre a extensão da
atividade laboral desenvolvida (pelo empregado) e a contraprestação remuneratória
(prestada pelo empregador ao empregado) é um dos instrumentos essenciais para
realização, na relação de emprego, da justiça social pretendida constitucionalmente,
daí entendermos que o caráter sinalagmático da relação de emprego é absolutamente
necessário, sob pena de inconstitucionalidade. O caráter sinalagmático da relação de
256
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito Contemporâneo do Trabalho. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35 e 36.
111
emprego, no contexto ora apresentado, quer representar não somente a bilateralidade
do negócio jurídico257 que dá origem à relação, mas também à sua comutatividade, no
sentido de que para cada dever de uma parte há uma contraprestação recíproca da
outra. Somente uma efetiva comutatividade entre atividades laborais e
contraprestações dos empregados e dos empregadores é capaz de gerar o cumprimento
da “valorização do trabalho humano” e a consagração dos “valores sociais do
contrato”.
Portanto, frente a várias interpretações possíveis a um determinado
enunciado prescritivo de natureza trabalhista/empregatícia, há de se escolher, para
efetiva aplicação ao caso concreto, somente aquelas que sejam capazes de garantir
efetiva reciprocidade entre os interesses, inclusive e principalmente – frente ao
contexto da presente exposição – econômicos, do empregado e do empregador,
realizando-se efetiva interpretação conforme a Constituição e respeitando os princípios
interpretativos da unidade e da supremacia da Constituição. A respeito do instituto da
“interpretação conforme a Constituição”, vale transcrição dos ensinamentos de Lênio
Luiz Streck e Rui Medeiros:
A interpretação conforme a Constituição constitui-se em mecanismo
de fundamental importância para a constitucionalização dos textos
normativos infraconstitucionais. A verfassungskonforme Auslegung,
como é denominada na Alemanha, é um princípio constitucional,
justamente em face da força normativa da Constituição, no dizer de
Hesse, para quem, "segundo esse princípio, uma lei não deve ser
declarada nula quando pode ser interpretada em consonância com a
Constituição. Essa consonância existe não só então, quando a lei, sem
a consideração de pontos de vista jurídico-constitucionais, admite uma
interpretação que é compatível com a Constituição. No quadro da
interpretação conforme a Constituição, normas constitucionais são,
portanto, não só normas de exame, mas também normas materiais para
a determinação do conteúdo das leis ordinárias".
Entendo que, alçada à categoria de princípio, a interpretação
conforme a Constituição é mais do que princípio imanente da
Constituição, até porque não há nada mais imanente a um
257 De origem da palavra grega "synnalagmatikos", significa uma relação de obrigação contraída entre duas
partes de comum acordo de vontades, onde cada parte condiciona a sua prestação à contraprestação da outra. Além da bilateralidade, há destaque também para a comutatividade dessa relação, no sentido de efetiva proporcionalidade entre direitos e deveres das partes que caracterizam a relação sinalagmática.
112
Constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos do
sistema sejam interpretados de acordo com ela. Desse modo, em sendo
um princípio (imanente), os juízes e tribunais não podem (continuar a)
(só)negar a sua aplicação, sob pena de violação da própria
Constituição.258
Veja-se o caso de uma decisão que estenda os direitos de uma
categoria profissional a outra ou que deixe de considerar como
incidente determinada alíquota de imposto; no primeiro caso houve
uma adição de sentido, que tanto pode receber chancela de
interpretação conforme como de uma sentença aditiva; no segundo
caso, houve nulidade, sem a redução do texto, de uma hipótese de
incidência, o que pode configurar uma sentença redutiva. Uma
questão, entretanto, parece indiscutível, qual seja, a de que processo
hermenêutico é sempre produtivo. Quando se adiciona sentido ou se
reduz o sentido (ou a própria incidência de uma norma), estar-se-á
fazendo algo que vai além ou aquém do texto da lei, o que não
significa afirmar que o Tribunal estará legislando. Pelo contrário. Ao
adaptar o texto legal à Constituição, a partir de diversos mecanismos
interpretativos existentes, o juiz ou tribunal estará tão-somente
cumprindo sua tarefa de guardião da constitucionalidade das leis. 259
A supremacia da Constituição, sua força normativa e seu papel de
topos conformador da atividade hermenêutica pode ser entendida,
segundo Medeiros, sob quatro diferentes funções: 1o) uma função de
apoio ou de confirmação de um sentido da norma já sugerido pelos
restantes elementos de interpretação; 2o) uma função de escolha entre
várias soluções que não se mostram incompatíveis com a letra da lei,
servindo para excluir um sentido possível e para optar por um outro
igualmente compatível com a letra da lei; 3a) uma função de correção
dos sentidos literais possíveis; 4o) uma função de revisão da lei
através da atribuição à Constituição de um peso decisivo e superior
aos demais elementos tradicionais de interpretação”260 261
258 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p.443. 259
Ibidem, p. 444-445. 260
MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 2000, p.301. Apud STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 445
. 261
STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit., p. 445.
113
2.5.2 A inexistência de exceção constitucional expressa aos termos do artigo 7º,
XVI, da Constituição Federal além da hipótese do parágrafo único do mesmo
artigo 7o
Outro ponto que entendemos absolutamente necessário como condição
prévia para a interpretação do artigo 62, I, da CLT é a constatação de que o texto
constitucional especifica “padrões” para a duração normal de trabalho (conforme art.
7º, XIII e XIV, da CF/88, já transcritos e analisados no item”1” deste capítulo), bem
como “padrão mínimo” para a remuneração do “serviço extraordinário”(lapso de
tempo superior à jornada-padrão tida como “normal” para determinada categoria
profissional) no importe de 50%(cinqüenta por cento) superior ao valor da hora
trabalhada durante a “jornada normal”, como se verifica do inciso XVI do artigo 7º da
Constituição (também já transcrito e analisado no item “1” deste capítulo).
A exceção constitucional à aplicação da regra de que o labor realizado em
sobrejornada (serviço extraordinário) seja remunerado, inclusive, em valor superior ao
do “serviço normal” é taxativamente prevista no parágrafo único do artigo 7º da
Constituição Federal e dirigida exclusivamente à categoria dos trabalhadores
domésticos, como abaixo transcrito:
CF/88. Art. 7º. (...) Parágrafo único. São assegurados à categoria dos
trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI,
VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua
integração à previdência social.262
Muitos argumentariam que não caberia à Constituição Federal traçar
minúcias a respeito de exceções às regras gerais construídas pelo Constituinte,
cabendo tal tarefa ao legislador infraconstitucional na tarefa de regulamentar as
normas constitucionais. No entanto, frente ao quanto já exposto no item 2.5.1 deste
capítulo (incidência necessária do princípio da dignidade da pessoa humana e a
necessária “valorização do trabalho humano” e busca dos “valores sociais do
262
É de se observar que o parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal limita, do ponto de vista constitucional, os direitos trabalhistas dos empregados domésticos àqueles constantes dos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, excluindo de tal categoria a “jornada-padrão” do inciso XIII e o direito à percepção pelo serviço extraordinário previsto no inciso XVI.
114
trabalho”, gerando necessária comutatividade entre as atividades do empregado e a
contraprestação oferecida pelo empregador), entendemos que qualquer exceção
infraconstitucional à regra de direito à percepção de contraprestação pelo empregado
em razão de sobrejornada somente pode se justificar pela extraordinariedade do fato
excetuado. Nesse sentido, vale transcrição dos ensinamentos de Mauricio Godinho
Delgado sobre “jornada não controlada”:
A ordem jurídica reconhece que a aferição de uma efetiva jornada de
trabalho cumprida pelo empregado supõe um mínimo de fiscalização e
controle por parte do empregador sobre a prestação concreta dos
serviços ou sobre o período de disponibilidade perante a empresa. O
critério é estritamente prático: trabalho não fiscalizado nem
minimamente controlado é insuscetível de propiciar a aferição da real
jornada laborada pelo obreiro – por essa razão é insuscetível de
proporcionar a aferição da prestação (ou não) de horas extraordinárias
pelo trabalhador. Nesse quadro, as jornadas não controladas não
ensejam cálculo de horas extraordinárias, dado que não se pode aferir
sequer a efetiva prestação da jornada padrão incidente sobre o caso
concreto.
Critério prático – reconhecido pelo Direito, como síntese de lógica e
sensatez socialmente ajustadas. Não critério de eleição de
discriminação – que seria, de todo modo, inconstitucional (art. 5º,
caput, e 7º, XIII e XVI, CF/88).263
A contrario sensu, inexistindo “extraordinariedade” (caracterizada pela
efetiva impossibilidade de controle da jornada de trabalho, seja por absoluta
impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia de vigilância disponível no
mercado e acessível a todos os empregadores), resta absolutamente inconstitucional
qualquer exceção prevista em normas infraconstitucionais que afaste do trabalhador o
direito à percepção das horas extras efetivamente laboradas (a não ser na hipótese de
empregado doméstico, a que a própria Constituição Federal destina caráter de
exceção).
263
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p.874.
115
3 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do inciso I do
artigo 62 da CLT
O avanço tecnológico impresso principalmente na última década, em
especial no que tange aos sistemas de localização de coisas e pessoas, e à transmissão
de dados à distância através de redes sem fio, criou uma nova forma dos seres
humanos verem e serem vistos, forma essa que conceitualmente denominou-se
“espaço ampliado”, que é caracterizado por representações sob a forma de imagens,
sons e até mesmo sensações táteis, de uma realidade que é fisicamente distante do
cidadão comum (isto é, realidade que lhe seria inatingível naturalmente pela visão),
permitindo ao cidadão não só ter efetivo acesso à essa realidade, como também com
ela interagir.
Houve, pois, na sociedade moderna, uma modificação no denominado
“regime de visibilidade”(entendido como forma pela qual “se vê e se é visto” na
sociedade) que, antes, baseava-se exclusivamente no alcance do campo ocular humano
frente a situações fáticas que se encontravam à sua volta, sendo que hoje tal regime se
baseia também em “espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos
limites do alcance do olho humano, mas, sim, em espaço informacional (que é o
resultado de serviços e tecnologias baseados em localização e transmissão de dados).
Integrando-se tal mudança do “regime de visibilidade” à experiência
jurídica, já fixamos que um “regime de visibilidade” é próprio de determinada
sociedade e de certo “momento histórico”, é um valor cultuado pela sociedade em
realidades factuais que se apresentem e que, portanto, fazem parte da experiência
jurídica, devendo, frente ao princípio da “Eticidade” (método de incidência, na
construção da norma jurídica – que envolve não somente a atividade legislativa de
produção de enunciados prescritivos, como também a atividade de interpretação com
vistas à aplicação da norma jurídica ao caso concreto – de valores incidentes na
realidade factual no momento da aplicação da norma jurídica), incidir sobre os fatos
normados gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo
interpretado (sendo que tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato
concreto em análise) levando em consideração a sua “elasticidade semântica”(a sua
116
polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico referir-se a mais de um
significado).
A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar
“mutação normativa”264 (entendida como modificação do conteúdo de uma norma
jurídica, a despeito da manutenção do enunciado prescritivo – texto legislativo -, e que
tem como principal instrumento a interpretação jurídica) especialmente naquelas
normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade. Assim, tendo em vista que a
norma extraível do inciso I do artigo 62 da CLT enquadra-se perfeitamente no
conjunto das “normas cujos elementos se baseiam na visibilidade” (e a expressão
“atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho”, que
entendemos ser o principal elemento do texto normativo em análise, não gera dúvida
quanto à essencialidade da “visibilidade” no ato de sua concretização), não há como se
deixar de concluir pela existência de mutação normativa do citado dispositivo.
Mais especificamente, a interpretação da expressão “atividade externa
incompatível com a fixação de horário de trabalho” não pode ser realizada sem levar-
se em consideração o novo “regime de visibilidade” baseado em “espaço ampliado”,
sob pena de incompatibilidade da norma construída com a experiência jurídica
vivenciada no momento de sua aplicação. Prosseguindo tal raciocínio, uma vez sendo
possível, através de “espaço ampliado”, o controle da atividade laboral realizada
externamente, não há como se cogitar o enquadramento do caso fático à norma de
exceção capsulada no inciso I do artigo 62 da CLT.
Com base no presente raciocínio, não há como prosperar a hipótese
interpretativa descrita sob a letra “b” do item “2.1” deste Capítulo (“Estão afastados do
264
O conceito de “mutação normativa” apresentado por nós nesse contexto é uma generalização (com o objetivo de aplicabilidade em qualquer espécie de norma jurídica e não exclusivamente às constitucionais) do instituto da “mutação constitucional” conceituado como nada mais que “as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação... são decorrentes... da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.” (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 129-130).
117
direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional noturno todos os
empregados que exercem atividade externamente -fora do território físico do estabelecimento
do empregador-, sem que haja a possibilidade concreta do Empregador realizar, in loco - isto
é, fisicamente, através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o
órgão da visão do Empregador ou de preposto seu - e a qualquer momento, a fiscalização da
atividade laboral desempenhada pelo Empregado;”).
É de se acrescentar, ainda, que, sendo possível o “controle da jornada de
trabalho” através de “espaço ampliado”, restaria absolutamente inconstitucional
qualquer conclusão normativa no sentido de se afastar do empregado controlado o seu
direito à percepção de horas extras laboradas, sendo que tal conclusão resulta das
seguintes premissas já descritas neste Capítulo:
- frente ao princípio interpretativo da unidade da Constituição e, mais especificamente,
frente à necessária compatibilização do inciso I do artigo 62 da CLT com os “valores
sociais do trabalho”(art. 1º, IV, da CF/88) e com a “valorização do trabalho humano
(art. 170, caput, da CF/88), que, como já vimos, leva-nos à conclusão da absoluta
necessidade de, em regra, a relação jurídica empregatícia ser comutativa (no sentido de
que para cada atividade laboral do empregado deve haver a devida contraprestação
remuneratória do empregador);
- tendo em vista que a Constituição Federal especifica “padrões” para a duração
normal de trabalho (conforme art. 7º, XIII e XIV, da CF/88), bem como “padrão
mínimo” para a remuneração do “serviço extraordinário” (tido como lapso de tempo
superior à jornada padrão tida como “normal” para determinada categoria profissional)
no importe de 50%(cinquenta por cento) superior ao valor da hora trabalhada durante a
“jornada normal” (como se verifica do art. 7º, XVI, da CF/88), apontando como única
exceção de inaplicabilidade de tais dispositivos a categoria dos
“domésticos”(conforme art. 7º, parágrafo único, da CF/88) e que somente uma
“extraordinariedade” (no sentido de efetiva impossibilidade de controle da jornada de
trabalho, seja por absoluta impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia
de vigilância disponível no mercado e acessível aos empregadores) seria capaz de
118
permitir à legislação infraconstitucional criar exceções à percepção de horas extras
além daquela (exceção) prevista constitucionalmente.
No que se refere ao efetivo potencial de exercício de “Poder de Controle”
do empregador em relação à atividade externa do empregado, através de sistemas
informáticos de espaço ampliado, como, por exemplo, através de AVL [sigla que
representa a expressão ”Automatic Vehicle Location”, que se refere a um conjunto de
equipamentos e técnicas interrelacionadas que permite não só o rastreamento de um veículo
(isto é, o fornecimento e gerenciamento sistemático da posição e do estado do veículo, com
variados níveis de exatidão e intervalo de tempo265
), mas também o oferecimento de
informações em tempo real sobre todas as atividades realizadas pelo condutor no interior do
veículo e sobre as condições gerais do veículo)], softwares e equipamentos de
rastreamento de pessoas vinculados a aparelhos celulares, entre outros, que são
capazes de:
- de forma fidedigna e precisa, a localização, a qualquer momento, da pessoa
monitorada com o efetivo controle do cumprimento de rota pré-determinada;
- permitir a visualização do executante de atividade laboral em quaisquer dos
momentos da operação, vez que tal verificação pode ser realizada através de imagem
fotográfica obtida instantaneamente pelo sistema ou até mesmo através de vídeo
transmitido em tempo real;
- manter comunicação com o executante da atividade laboral;
Ora, o “Poder de Controle” típico da relação jurídica empregatícia
caracteriza-se como conjunto de prerrogativas do empregador dirigidas a propiciar o
acompanhamento contínuo da prestação do trabalho e a própria vigilância efetiva,
vinculando não só o caráter fiscalizatório (acompanhamento contínuo das atividades
do empregado), como também a efetiva capacidade do empregador interagir com o
265
RODRIGUES, Marcos et alli. Rastreamento de Veículos. São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 15.
119
empregado e coagi-lo no sentido de cumprimento efetivo dos comandos externados266.
Em relação ao “rastreamento e monitoramento” permitidos através dos modernos
sistemas sem fio de comunicação, rastreamento e envio de dados, verificam-se:
- efetivo poder de fiscalização das atividades do empregado, permitindo a verificação
da sua identidade, da sua real localização e dos movimentos realizados;
- efetivo poder de comunicação entre o empregador e o empregado durante todo o
período de labor externo, seja através de contatos sonoros, seja através de mensagens
escritas, o que permite não só a transmissão de ordens a qualquer momento e em
tempo real, como também a reprimenda imediata pelo não cumprimento de eventual
ordem exteriorizada;
Tem-se, portanto, que através dos sistemas capacitadores de “espaço
ampliado” disponíveis atualmente no mercado brasileiro, e de acordo com o atual
estado da técnica de tais sistemas, é absolutamente possível ao empregador controlar a
frequência, o cumprimento de ordens e a qualidade do serviço do empregado com
atividade externa, não se justificando mais o afastamento do direito a horas extras a
essa categoria de empregados sob fundamento de enquadramento no inciso I do artigo
62 da CLT.
Eis a demonstração de como a “eticidade” é capaz de proceder à estabilização
normativa em Estados Democráticos de Direito.
266
Nesse ponto, afirma Amauri Mascaro Nascimento que “O poder de controle dá ao empregador o direito de fiscalizar o trabalho do empregado. A atividade deste, sendo subordinada e mediante direção do empregador, não é exercitada do modo que o empregado pretende, mas daquele que é imposto pelo empregador. A fiscalização é inerente ao poder diretivo e alcança, desde que razoável, o modo como o trabalho é prestado e o comportamento do trabalhador”. Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 344.
120
CONCLUSÃO
Frente ao problema apresentado e todos os pontos detalhadamente
apresentados nesta pesquisa, concluímos que se objetivando a manutenção da
democracia no sentido da compatibilidade das normas jurídicas com os valores
cultuados pela Sociedade, a normatividade concreta baseada na Teoria Tridimensional
do Direito de Miguel Reale instrumento eficaz de aplicabilidade dos enunciados
prescritivos existentes, vez ser capaz de promover o que denominamos “mutação
normativa”, tida como modificação do conteúdo de uma norma jurídica, sem a
alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, o que ocorre graças à
“eticidade”(procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a escolha de uma
das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado levando-se em
consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a experiência
jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de Miguel Reale).
os quatro capítulos desta tese, concluímos que a “eticidade”, que é um método de
incidência, na construção da norma jurídica (que envolve não só a atividade legislativa
de produção de enunciados prescritivos, como também a atividade de interpretação
com vistas à aplicação da norma jurídica ao caso concreto), de valores incidentes na
realidade fatual(no momento da aplicação da norma jurídica) sob o prisma do fato a
ser normado e do sistema jurídico como um todo, permite a compatibilização de textos
normativos vigentes a novos valores cultuados pela sociedade em Estados
Democráticos de Direito
121
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