31

Click here to load reader

A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Tradução de Hart, H.L.A. (1983). American Jurisprudence through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream. Em: Essays in Jurisprudence and Philosophy

Citation preview

Page 1: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

Hart, H.L.A. (1983). American Jurisprudence through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream. Em: Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford University Press.

Ensaio 4

A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses:O Pesadelo e o Nobre Sonho

Tradutor: Carlos A. Pimparel - [email protected]

1º Manuscrito: 25-03-071ª Revisão: 09-05-072ª Revisão: 18-09-07

1

Page 2: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

3ª Revisão: 15-12-07

2

Page 3: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

3

Page 4: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

Hart, H.L.A. (1983). American Jurisprudence through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream. Em: Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford University Press.

Ensaio 4

A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses:O Pesadelo e o Nobre Sonho

I

É como algum senso de atrevimento que arrisco a me dirigir a uma audiência Americana sobre o tema da Ciência do Direito americano. Pode-se até pensar que justiça não deve se realizar a um tema tão vasto, no confinamento de uma única palestra, e se for o caso de ser realizado por um americano, ao invés de um inglês visitante. Eu confesso que não tenho uma resposta muito convincente a essa objeção, exceto dizer que há detalhes importantes de grandes montanhas que não podem ser vistas por aqueles que moram nas mesmas, mas que facilmente são capturados por um simples olhar de longe.

É claro que reconheço que é necessário cuidado. No The American Scene, o maior romancista de seu país, Henry James, observa ‘the seer of great cities is liable to easy error, I know, when he finds this, that or the other caught glimpse the supremely significant one…’1 i

Isto é um aviso contra a apressada generalização e supersimplificação, e certamente o aviso é válido, pois, como variada e vasta, a América tem muitas vezes atraído observadores europeus, a fim de caracterizar parte da vida americana ou pensar em termos de um aspecto saliente, apresentando um forte contraste com a Europa. E devo confessar que me encontro fortemente inclinado a me render a esta tentação, de caracterizar a Ciência do Direito americano, isto é, como o pensamento especulativo americano a respeito da natureza do direito, por lhes dizer em termos inadequados, que é marcado pela concentração, quase a ponto de obsessão, no processo judicial, isto é, como os tribunais fazem ou deveriam fazer, como os juízes argumentam ou deveriam argumentar na decisão de casos particulares. E poderia citar como apoio, os mais proeminentes juristas ii americanos dos últimos 80 anos. Deste modo, o juiz Oliver Wendell Holmes, em 1894, disse: ‘As profecias de que os tribunais irão fazer de fato, e nada mais pretensioso, é o que eu quero dizer por Direito.’2 O grande jurista formado em Harvard, John Chipman Gray, escreveu na virada do século que ‘O Direito do Estado ou de qualquer corpo de homens organizados é composto de regras as quais os tribunais – que são órgãos judiciais deste corpo – delineiam para a determinação dos direitos e deveres legais.’3 Um jurista posterior, Karl Llewellyn, em 1930, disse: ‘O que estes oficiais públicos [que são, principalmente os juízes] decidem a respeito de uma contestação é para a minha mente o Direito em si mesmo.’4 Apenas há alguns anos atrás, o professor Jaffe de Harvard disse, enquanto palestrava para nós em Oxford, que a questão, o que é a função do judiciário em um Estado democrático, estava dividindo o elemento vital da capacidade iii do Direito americano.5 Mas as grandes áreas de pensamento não são avaliadas por meio de aforismos extraídos de seu contexto; relembrando o aviso de Henry James, devo, na dedicação da maior parte desta palestra, a concentração do pensamento americano sobre o processo

1 Henry James, The American Scene 99-100 (1907).2 Holmes, ‘The Path of the Law’, em O.W. Holmes, Collected Legal Papers 173 (1920).3 J.C. Gray, The Nature and Sources of the Law 84 (2ª ed. 1921).4 K. Llewellyn, The Bramble Bush 3 (1930). Mas veja a retratação na 2ª edição, destas palavras como ‘infelizes’ e ‘e na melhor hipótese como declaração parcial da verdade por completa’, Ibid, na 9 (2ª ed, 1951).5 L. Jaffe, English and American Judges as Law Makers 9 (1969).

1

Page 5: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

judicial, alegando que este é somente um aspecto da Ciência do Direito americano, contrastando fortemente com o nosso próprio.

A simples explicação desta concentração é, sem dúvida, o papel absolutamente extraordinário dos tribunais, e acima de qualquer um, a participação da Suprema Corte dos Estados Unidos no governo americano. Nas famosas palavras de Tocqueville, ‘raramente surge uma questão política nos Estados Unidos que não é resolvida, cedo ou tarde, em uma questão judicial.’6 Um jurista inglês nota que duas coisas determinaram o papel e o status da Suprema Corte, diferentemente de qualquer tribunal inglês e certamente de qualquer outro lugar. A primeira foi naturalmente a própria decisão da Suprema Corte, de que esta teria o poder de revisar e declarar inconstitucional qualquer lei e assim invalidar as leis do Congresso, assim como as legislações estaduais.7 A segunda foi sua interpretação sobre da 5ª Emenda,iv e posteriormente da 14ª Emenda,v provendo que nenhuma pessoa seria privada da vida, liberdade e da propriedade sem o due process of law,vi referente não meramente à matéria de forma ou de procedimento, mas também a de conteúdo da legislação; sendo assim, para a perplexidade de um jurista inglês, até o estatuto do Congresso, com sua impecável clareza, aprovado por uma opressiva maioria e conforme todos os requerimentos processuais especificados na Constituição, ainda pode ser considerado inválido por causa de sua interferência na liberdade individual, ou caso a propriedade não satisfaça o requerimento de um vago e indefinido padrão de razoabilidade ou de ser desejável; esta doutrina veio a ser chamada substantive due process.8 vii

Esta doutrina, uma vez adotada, assegura poderes de revisão de um vasto escopo e coloca os tribunais americanos desgovernados num mar de causas de valores controversos, e fica claro que, no exercício destes vastos poderes de monitorar, não somente a forma e as formalidades da legislação, mas também o seu conteúdo, os tribunais estavam fazendo algo bem diferente do que o pensamento legal convencional, onde todos os países concebem como função padrão judicial: a imparcial aplicação de determinado conjunto de leis existentes na resolução de conflitos. E o que os tribunais estavam fazendo parece a um jurista inglês, a primeira vista, particularmente difícil de se justificar em uma democracia.

De fato, as mais famosas decisões da Suprema Corte têm sido de tal importância e tão controversas em sua natureza, diferentemente dos tribunais comuns, que ordinariamente decidem lides, que nenhuma Ciência do Direito ou Filosofia do Direito, sérias, poderiam se esquivar de perguntar com qual concepção da Natureza do Direito, tais poderes judiciais são compatíveis. Certamente, a Ciência do Direito americana não escapou desta questão, mas no desenvolvimento de teorias para explicar, ou dar satisfação, a este extraordinário fenômeno judicial tem oscilado entre dois extremos com várias paradas intermediárias. Por estas razões,

6 A. De Tocqueville, Democracy in America 280 (P. Bradley ed., 1945).7 Veja McCulloch v. Maryland, 17 U.S. (4 Wheat.) 316 (1819); Maryland v. Madison, 5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803).8 Para o desenvolvimento desta doutrina veja Allgeyer v. Lousiana, 165 U.S. 578 (1897) (14ª Emenda ‘liberdade de contrato’ proibi o estado de regular os proprietários de contratar seguro marinho com uma seguradora estrangeira); Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905) (14ª Emenda ‘liberdade de contrato’ proibi o estado de regular o número máximo de horas trabalhadas por dia ou semana de um empregado de confeitaria); Adair v. United States, 208 U.S. 161 (1908) (5ª Emenda ‘liberdade de contrato’ barra a proibição federal de contratação de ‘yellow dog’ NT em ferrovias inter-estaduais); Coppage v. Kansas, 236 U.S. 1 (1915) (14ª Emenda ‘liberdade de contrato’ barra a proibição estadual de contratação de ‘yellow dog’; Adkins v. Children’s Hosp., 261 U.S. 525 (1923) (5ª Emenda ‘liberdade de contrato’ proibi o Distrito de Columbia de prescrever o salário mínimo para mulheres).NT: Yellow-dog contract. Forma de contrato entre empregado em empregador, onde o primeiro concorda com a condição de contratação, seja a de não ser participante de sindicato. Tipo de contrato vastamente utilizado até a década de 30 nos E.U.A. Wikipedia. Yellow-dog clause. Acessado em 23/02/07, no site da Wikipedia: <http://en.wikipedia.org/wiki/Yellow-dog_contract>.

2

Page 6: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

que espero que fiquem claras, devo chamar estes extremos, respectivamente, de Pesadelo e Nobre Sonho.

O Pesadelo é este. Demandantes em casos legais consideram-se intitulados a ter, dos juízes, a aplicação do direito corrente em seus litígios, e não de um novo direito construído para o caso. E claro, é aceito que o direito existente não é necessário existir, e freqüentemente isto não é óbvio, e a perícia de um jurista treinado pode ser necessária para extrair este das devidas fontes. Mas para o pensamento convencional, a imagem do juiz – usando a frase de um eminente juiz inglês, Lorde Radcliffe – é de ‘objetivo, imparcial, erudito, e experiente declarante da lei’,9 não para ser confundida com a muito diferente imagem do legislador. O Pesadelo é que esta imagem do juiz, distinguindo ele do legislador, é uma ilusão, e as expectativas que despertam, estão condenadas ao desapontamento – num ponto de vista

9 Radcliffe, The Path of the Law from 1967, 14 (1968).i ‘O observador de grandes cidades é passível de um simples erro, sei, que quando encontra este, aquele ou outro, vislumbra o erro supremo e significante...’ (NT)

ii lawyer s.advogado, jurista, jurisconsulto m. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

iii faculty s. 1. faculdade f.: a) poder de fazer, b) direito, c) capacidade, habilidade, d) potência moral. e) talento, aptidão, f) qualidade natural, disposição, g) permissão, h) liberdade, privilégio, (for para, de), (E.U.A.) competência... 3. (E.U.A.) classe profissional. Pietzschke, Fritz. (1979). Novo Michaelis – Dicionário Ilustrado. 25ª ed. Edições Melhoramentos, São Paulo.

iv U.S. Constitution - Amendment 5 - Trial and Punishment, Compensation for TakingsNo person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation . Estados Unidos, 5ª Emenda Constitucional de 1791.

Disponível em <http://www.usconstitution.net/xconst_Am5.html>. Acesso em 03/03/07.

v U.S. Constitution - Amendment 14 - Citizenship Rights1. All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws.2. Representatives shall be apportioned among the several States according to their respective numbers, counting the whole number of persons in each State, excluding Indians not taxed. But when the right to vote at any election for the choice of electors for President and Vice-President of the United States, Representatives in Congress, the Executive and Judicial officers of a State, or the members of the Legislature thereof, is denied to any of the male inhabitants of such State, being twenty-one years of age, and citizens of the United States, or in any way abridged, except for participation in rebellion, or other crime, the basis of representation therein shall be reduced in the proportion which the number of such male citizens shall bear to the whole number of male citizens twenty-one years of age in such State.3. No person shall be a Senator or Representative in Congress, or elector of President and Vice-President, or hold any office, civil or military, under the United States, or under any State, who, having previously taken an oath, as a member of Congress, or as an officer of the United States, or as a member of any State legislature, or as an executive or judicial officer of any State, to support the Constitution of the United States, shall have engaged in insurrection or rebellion against the same, or given aid or comfort to the enemies thereof. But Congress may by a vote of two-thirds of each House, remove such disability.4. The validity of the public debt of the United States, authorized by law, including debts incurred for payment of pensions and bounties for services in suppressing insurrection or rebellion, shall not be

3

Page 7: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

extremo, sempre, ou moderado, freqüentemente. Certamente um escrutínio desobstruído do progresso das decisões constitucionais americanas parece suportar a visão do Pesadelo das coisas e sugere a um inglês uma interpretação cínica da observação de Tocqueville, que as questões políticas nos Estados Unidos, cedo ou tarde, se tornarão questões judiciais. ‘Possivelmente elas assim o sejam’, um inglês pode dizer, ‘mas o fato de que elas são decididas em tribunais americanos, por juízes, não significa que estas, lá, não são decididas politicamente. Assim, se sua Constituição construiu o Direito, que em qualquer outro lugar, seria político, o fez assim ao risco de politizar seus tribunais.’

Assim, um inglês habituado a uma atividade, menos espetacular, dos tribunais ingleses, fica tentado a concordar com muitos juristas contemporâneos americanos que acusam juízesviii de agir como uma terceira câmara legislativa, quando no primeiro período de ativismo da Suprema Corte, entre a Guerra Civil e o New Deal,ix julgando inconstitucionalmente, sob a due process clause,x legislações sociais e econômicas de bem-estar de qualquer tipo, estatutos fixando horas máximas, salário-mínimo, controle de preços e muito mais.10 Os juízes daquele período, de acordo com seus muitos críticos, estavam se 10 Verificar nota 8.

questioned. But neither the United States nor any State shall assume or pay any debt or obligation incurred in aid of insurrection or rebellion against the United States, or any claim for the loss or emancipation of any slave; but all such debts, obligations and claims shall be held illegal and void.5. The Congress shall have power to enforce, by appropriate legislation, the provisions of this article . Estados Unidos, 14ª Emenda Constitucional de 1868.

Disponível em <http://www.usconstitution.net/xconst_Am14.html>. Acesso em 03/03/07.

vi Due Process of Law. Processo legal justo. Expressão que não tem sentido fixo, determinado, mas que introduzida pela Emenda Constitucional nº 5 à Constituição norte-americana, visando disciplinar a ação do Governo Federal e posteriormente, através da Emenda nº 14, estendida à ação dos Governos Estaduais, transformou-se na mais generosa fonte de jurisprudência constitucional-sociológica norte-americana. Protege os direitos individuais de estrangeiros e nativos, garantido-lhes a prestação de uma verdadeira justiça, não somente amparando-os em juízo, mas protegendo-os desde o momento da elaboração das leis. O conteúdo da cláusula se biparte, portanto, nos sentidos substantivo e processual. No primeiro caso ela constitui um limite ao próprio Poder Legislativo americano, impondo que as leis, que federais quer estaduais, sejam elaboradas com justiça e racionalidade, e que a ação estatal, ao procurar atender aos interesses públicos, restrinja ao máximo possíveis lesões de interesses privados. Procura, assim, intentar que as leis se revistam de caráter justo, sob pena de serem declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana. No seu sentido processual ela garante ao indivíduo um procedimento judicial justo, com direito de acesso aos mais amplos meios de defesa. A clausula, que se inspirou na expressão inglesa Law of the Land (Direito da terra, em oposição ao Direito Romano), usada pela primeira vez na Magna Charta, tem sido invocada para amparar, entre outros, o direito ao defensor público, a liberdade de expressão, a privacidade, ou reprimir a discriminação de raça e sexo. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

vii Substantive Due Process. Direito substantivo justo. A outra face da cláusula constitucional norte-americana do Due Process of Law – processo legal justo –, e que visa garantir a promulgação e leis justas, impondo que tanto as leis federais como as estaduais sejam elaboradas em obediência aos padrões e racionalidade consagrados pelo povo; e que a ação estatal, ao procurar atender ao interesse público, restrinja, ao máximo, possíveis lesões do interesse privado, sob pena de serem declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

viii Justice. v. Fazer justiça; provocar a prestação da justiça. Justice1. Ministro do tribunal; juiz. Justice2. Justiça. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

ix Período que começa em 1861-1867 e acaba em 1933-37. New Deal: Série de planos econômicos do Presidente Franklin D. Roosevelt, baseados em argumentos keynesianos, com objetivo de suplantar a Grande Depressão. (NT)

x Due Process Clause. Cláusula constitucional norte-americana que garante a prestação de um processo legal justo. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

4

Page 8: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

beneficiando dos mitos convencionais sobre o processo judicial, para passar suas doutrinas pessoais, políticas e econômicas do laissez-faire, erguendo uma Magna Carta para os grandes empresários americanos, como se isto fosse a aplicação imparcial de determinado dispositivo legal, de alguma maneira já latente na frase due process e supostamente, acima do nível da política ou meramente do julgamento político. Mas liberdades econômicas não eram as únicas formas de liberdade e, em seu segundo período moderno de ativismo – em nossos próprios dias – os tribunais usam de seus poderes de revisão para forçar grandes reformas legais, as quais em outros países foram trazidas à tona, se mesmo trazidas, somente após amargas batalhas parlamentares; tem provido uma série diferente de exemplos para suportar a visão do Pesadelo a respeito do processo judicial, como mera cripto-legislação. Para um inglês, a mais impressionante instância moderna é a decisão da Suprema Corte de 1973, eliminando completamente a secular legislação contra o aborto em diversos estados-membros da União, em um debate, onde muitas opiniões morais eram contra a reforma.11 Alcançando em um único golpe judicial mais do que os últimos oito embates parlamentares asseguraram em um período maior do que 50 anos, em meu país. E foi feito em nome do direito da privacidade da mãe, a qual não é mencionada em nenhum lugar da Constituição, mas foi lida no due process clause como uma liberdade fundamental. O Juiz Oliver Wendell Holmes, em uma famosa opinião discorrida, protestou contra as decisões laissez-faire de seus dias, e que a 14ª Emenda não legalizara, o Social Statics de Herbert Spencer, e sua filosofia laissez-faire.12 Caso ele tivesse sobrevivido até o período moderno, ele poderia ter protestado que a 14ª Emenda não legalizou o ‘Sobre a Liberdade’, de John Stuart Mill.

Exposto este histórico, não é surpreendente que um ramo de pensamento jurisprudencial americano deveria estar preocupado com a visão presente do Pesadelo, que apesar de suas pretensões contrárias, juízes produzem Direito, que eles aplicam aos litigantes e não são imparciais, declarantes intencionais do direito existente. Tudo isto é compreensivo ao jurista inglês, após ele ter se inteirado com a história constitucional relevante. O que remanesce, surpreendente, é que em algumas variações dessa teoria jurídicaxi da visão do Pesadelo tenha sido apresentada por sérios juristas americanos, não meramente como um aspecto de certos tipos de difícil adjunção – como no caso de decisão judicialxii constitucional na qual imensas frases genéricas como ‘due process’ ou ‘equal protection of the laws’ foram encaixadas em casos particulares – mas como se decisão judicial fosse essencialmente uma forma de fazer direito, e nunca uma questão de declarar o direito existente, e com a sugestão de que até a verdade a ser compreendida e os mitos convencionais, que a obscureceram, tenham se dissipado, a Natureza do Direito não poderia ter sido entendida. Tenho dito que juristas sérios escreveram como este fosse o caso, não que eles acreditassem nisto; pelo que concordo com um historiador recente, que o que é chamado de Movimento Realista Americano das décadas de 20 e 30, com a qual a visão do Pesadelo se identifica mais, que muitos que aparentemente pregavam esta mensagem e encaminharam-na com audaciosos e provocativos slogans, quase sempre queriam dizer algo bem menos extravagante que estes slogans pareciam dizer.13 Isto é certamente verdadeiro a respeito da famosa observação de Holmes de que, ‘As profecias de que os tribunais irão fazer de fato, e nada mais pretensioso, são o que eu entendo por Direito.’14 E é também, sem dúvida verdadeiro, Karl Llewellyn: ‘O

11 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973); Doe v. Bolton, 410 U.S. 179 (1973).12 Lochnet v. New York, 198 U.S. 45, 75 (1905) (Holmes, J.).13 Veja W. Twining, Karl Llewellyn and the Realist Movement 380 (1973).14 Holmes, ‘The Path of the Law’, supra nº 2, em 173.xi Jurisprudence. Ciência Jurídica; jurisprudência. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

xii Adjudication. Decisão Judicial; decisão administrativa; sentença. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

5

Page 9: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

que [os juízes] fazem a respeito dos litígios é... Direito’, ainda que seja escassamente possível de retirar a mesma visão de Jerome Frank em Law and the Modern Mind,15 aclamado como clássico na década de 1930, no qual a crença de que poderia haver regras legais restringindo os juízes, a serem aplicadas e não produzidas por eles, em casos concretos é estigmatizada como uma forma imatura de fetichismo ou uma fixação paterna chamando por uma terapia analítica.

Holmes certamente nunca chegou a estes extremos. Ainda que ele tenha proclamado que os juízes o fazem, e precisam legislar em certos pontos, ele admitiu que a vasta área do direito positivadoxiii e muitas doutrinas firmemente estabelecidas do common law,xiv como os requisitos de consideração para contratos, e as demandas de ajustar a frouxa teoria americana comparativa de unir precedentes, foram suficientemente determinantes para fazer absurdo de se representar o juiz com primariamente um law-maker. Assim, para Holmes, a função do juiz de legislar era mais ‘intersticial’.16 A teoria de Holmes não era a filosofia do ‘todo vapor à frente e para o inferno com os silogismos’.

Todavia, de uma maneira em que um jurista inglês acha enigmática e sem paralelo em sua própria literatura, o impulso em direção à visão do Pesadelo, referente ao processo judicial como um ato legal incontrolável de legislar tem, em tempos, figurado largamente na teoria legal americana, ainda que os escritores apanhados dentro desta discussão têm freqüentemente modificado esta conclusão em face de fatos recalcitrantes. Um exemplo bem impressionante da influência dessa teoria nos juristas americanos é o The Nature and Sources of the Law, de John Chipman Gray, que apareceu em primeiro lugar no ano de 1909. Este é muito mais como um manual da Ciência do Direito, cobrindo vários tópicos diferentes, do que qualquer outro livro americano, e o autor, um distinto graduado de Harvard, fora exposto e reconheceu a influência de Betham e Austin. Como livro, ele examina um vasto espectro de tópicos – direitos e deveres legais, normas,xv precedentes, equidade, direito e moral – mas busca através destes tópicos um tema mais não-inglês possível: que o Direito consistente das regras impostas pelos tribunais, usadas para decidir casos e tudo o mais; normas e incluindo precedentes, são meramente fontes do Direito. Por esta teoria, as palavras do século XVIII de Bishop Hoadly, são evocadas três vezes em auxílio: ‘Seja quem for que tiver a autoridade absoluta para interpretar qualquer lei dita ou escrita, é ele quem é verdadeiramente o Law-

15 Veja J. Frank, ‘Law and the Modern Mind’ 175, 178, 193, 203, 244, 264 (1930).16 Southern Pacific Co. v. Jensen, 244 U.S. 205, 221 (1917) (Holmes, Jr., descordando).

xiii Statutory. Legislado; escrito; positivo. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

xiv Common Law. 1: Direito Comum, em oposição aos direitos especiais; 2: Direito Consuetudinário, não escrito ou costumeiro (em oposição ao direito legislado, é o antigo direito nacional inglês que nasceu e se desenvolveu na Inglaterra, estendendo-se aos demais povos do tronco anglo-saxão e cuja a eficácia deriva dos usos e costumes imemoriais e não de formas emanadas do Legislativo); 3: Direito Costumeiro (a parte do direito positivo de qualquer país que deriva dos usos e costumes); 4: Direito Estrito, em oposição ao segundo ordenamento jurídico inglês, a Equidade; 5: Direito Secular, em oposição ao Direito Canônico. A Common Law forma o fundo do direito civil norte-americano e compreende a parte do direito inglês transplantada para as colônias e que não foi ab-rogada após a independência, incorporando-se a todos os estados-membros, à exceção do estado de Louisiana que, antiga colônia francesa, conservou o Civil Law originário do Direito Romano. Na sua feição moderna o Common Law apresenta-se quase totalmente codificado nos Estados Unidos, conservando o seu caráter de lei não escrita quase apenas no que toca aos atos ilícitos, e na Inglaterra compreende também milhares de “statutes”. Nos dois sistemas ele também abrange a Equity, onde os juízes têm competência para decidir segundo o Common Law e segundo a Equidade. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

xv Statute. Lei (emanada do Legislativo); lei escrita; ato legislativo; norma legal legislada; lei legislada. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

6

Page 10: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

giver para todas as intenções e propósitos, e não a pessoa que primeiro escreveu ou enunciou a lei’.17 É verdade que até mesmo no livro de Gray este tema radical é obscurecido por inconsistências e concessões a meios ordinários de pensamento e expressão, como se o senso comum irá se igualar em um trabalho de Ciência do Direito. Mas o fato de um extremamente capaz jurista, de grande prática, assim como experiência acadêmica, ter se engajado tão profundamente a este método de expressar visões gerais sobre a Natureza do Direito, manifesta o forte suporte sobre a imaginação legal americana da visão do Pesadelo das coisas.

Entrelaçado com o Pesadelo, há outro tema persistente. Talvez a mais mal-utilizada citação, de qualquer jurista americano, seja a observação de Holmes em 1884 de ‘a vida do Direito não tem sido lógica: tem sido experiência’.18 Esta, em seu contexto, foi um protesto contra a superstição racionalista (como Holmes pensava) de que o desenvolvimento histórico do Direito nos tribunais poderia ser explicado como um desdobrar de conseqüências lógicas contidas no Direito em suas fases anteriores.19 Mudança judicial e desenvolvimento do Direito foram, insistiu Holmes, a expressão dos juízes, ‘preferências instintivas e convicções inarticuladas’, em resposta, como ele disse, às ‘necessidades sentidas’20 de seu tempo. E seu protesto foi feito para assegurar o reconhecimento consciente dos juristas, dos poderes legislativos dos tribunais; assim, a mudança judicial e o reajuste do Direito deveriam ser realizados após uma explícita ponderação, que ele chamou de ‘considerações de vantagem social’.21 Mas para um filósofo-historiador americano, Professor Morton White, as observações de Holmes sobre lógica têm sido pegas como um exemplo de um grande movimento do pensamento americano, o qual ele classifica de ‘Revolta contra o Formalismo’, e Holmes, junto com John Dewey na filosofia, Thorsten Veblen na economia, entre outros, são pegos como um exemplo de uma grande reação contra a excessiva confiança em um pensamento que é dedutivo, formal, abstrato ou dividido em disciplinas firmemente separadas.22 A revolta nasceu de um desejo de cortar divisões estéreis, arbitrárias, acadêmicas e de substituir pelo formalismo, uma vívida, realística atenção à experiência, vida, crescimento, processo, contexto e função. Qualquer que seja a verdade, desta interessante peça da história cultural americana, ataques à ‘lógica’ ou ao ‘uso excessivo’ da lógica feitos por alguns juristas americanos, discutindo o raciocínio judicial, se tornaram de qualquer modo, para o jurista inglês tentando entender o cenário americano, o mais confuso e confundido tema. Assim, a interpretação laissez-faire do ‘due process clause’ da Constituição, erigindo liberdade de contrato em um quase absoluto princípio e derrubando em seu nome muito da progressiva legislação de bem-estar social, foi estigmatizada como um exemplo dos vícios do formalismo, black letter law,NT e do uso excessivo da lógica ou do ‘caça-níqueis’ ou Ciência do Direito mecânica.23 Mas a lógica não dita, naturalmente, a interpretação de leis ou de qualquer outra coisa, e a falta ou demasiada confiança nisto, por outro lado, pode responder pela Suprema Corte, no período em questão, lendo na Constituição as doutrinas laissez-faire. Mas o que os críticos estavam atacando desta maneira confusa era na realidade, não o método pelos quais os tribunais chegaram às interpretações da Constituição, mas sim o congelamento de qualquer interpretação de uma regra positivada em uma premissa fixa, imune de revisão e para ser utilizada nos próximos casos aplicáveis.

17 J.C. Gray, supra n. 3, em 102, 125, 172.18 O.W. Holmes, The Common Law 1 (1881).19 Ibid, em 36.20 Ibid, em 1.21 Holmes, The Path of the Law, supra n.2; em 184.22 Morton White, Social Thought in América: The Revolt Against Formalism (2ª ed. 1957).NT black letter law. Princípio do direito, o qual é vulgarmente conhecido e livre de dúvida ou discussão. Letric Law Library Lexicon. Black Letter Law. Acessado em 10/03/03, no site da Letric Law Library <http://www.lectlaw.com/def/b033.htm>.23 Veja, exemplo Pound, ‘Mechanical Jurisprudence’, 605, 609-10, 616 (1908).

7

Page 11: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

Assim, denunciaram, agitando o estandarte do pragmatismo, uma pura e retrógrada maneira de sentenciar, de acordo com decisões particulares, em casos particulares que deviam sua justificação legal exclusivamente a sua relação com o significado predeterminado da regra legal existente; e incitavam os juízes a uma forma avançada de sentenciar, de acordo com as regras legais, sendo tratadas como presunções descartáveis ou hipóteses trabalháveis, a serem modificadas ou rejeitadas se os resultados previsíveis de sua aplicação em um contexto social de mudança se provassem insatisfatórias.24

Os temas que descrevi, apesar de se originarem antes, todos figuraram no movimento chamado Realismo Legal de 1920 a 1930.25 Mas em que o realismo dos Realistas consiste? Acho muito difícil dizer porque estes grupos ativos de juristas diferem tanto quanto se assemelham. Todos, certamente, estavam preocupados em enfatizar as oportunidades legislativas dos tribunais e de dissipar os mitos do pensamento convencional, os quais acreditavam que os escureciam. Alguns acompanharam este pensamento com uma insistência inflexível; que para entender o Direito, tudo o que importava era o que os tribunais realizavam e a possibilidade de predizê-lo, não que as regras positivas diziam e nem as razões apresentadas pelos juízes. Alguns alegavam que o conhecimento da personalidade do juiz, hábitos da vida, visões políticas, sociais ou econômicas, até mesmo sua saúde, eram pelo menos tão importantes, como base para uma previsão de sucesso de uma decisão, do que a doutrina legal. Outros apreciavam a visão pé-no-chão, verdadeiramente científica, inspirada pela crença que o único lucrativo ou até mesmo racional estudo da lei, eram as investigações, usando os métodos das ciências naturais, no curso da decisão judicial e de seus efeitos no comportamento humano.

O que tudo isto realizou? Visto de longe, parece a muitos juristas ingleses não ter se avançado tanto na teoria legal ou não ter sido adicionado muito ao estoque de idéias jurisprudenciais valiosas. Mas as virtudes e a benéfica influência do Movimento Realista jaz em outro lugar. Para o jurista inglês, o melhor trabalho, dos menos extremistas realistas, não foi encontrado em noções teóricas explícitas sobre a natureza do Direito e da sentença, mas freqüentemente implícita em seus escritos em diversos temas do substantive law.xvi Isto teve uma larga e ainda visível influência no estilo de sentenciar nos tribunais americanos e no ensino do Direito, o que de qualquer forma, muitos juristas ingleses invejam. Seu efeito principal foi de convencer muitos juízes e juristas, práticos e acadêmicos, de duas coisas: primeiro, de que eles devem sempre suspeitar, embora não sempre rejeitar ao fim, qualquer reivindicação de que as regras legais existentes ou precedentes seriam constrangimentos fortes e completos o bastante para determinar que as decisões dos tribunais deveriam ser sem outras considerações extra-legislativa; segundo, que os juízes não deveriam buscar se encerrar silenciosamente no Direito, suas próprias concepções dos objetivos do Direito, ou justiça, ou política social, ou outro elemento extra-legal requerido pela decisão, mas deveriam abertamente identificar e discuti-las.

II

24 Veja J. Dewey, Logical Method and Law, 10 Cornell L. Rev. 17 (1924).25 A respeito de Realismo Legal veja W. Rumble, American Legal Realism (1968); G. Tarello, Il Realismo Giuridico Americano (1962); W. Twining, Karl Llewellyn and the Realist Movement, supra n. 13, pág 70 (endossando o protesto de Llewellyn – veja Llewellyn, ‘Some Realism About Realism – Respondendo a Dean Pound’, 44 Harv. L. Ver. 1222 (1930), reimpresso em K. Llewellyn, Jurisprudence, Realism in Theory and Practice 42 (1962) – contra a alegada má interpretação de Pound e outros).xvi Substantive Law. Direito Substantivo. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

8

Page 12: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

Viro-me ao pólo oposto, o qual chamei de Nobre Sonho. Como sua antítese, o Pesadelo, tem muitas variantes, mas todas as formas representam a crença, talvez a fé, de que apesar das aparições superficiais para o contrário, e apesar de períodos completos de aberrações e erros judiciais, ainda assim, uma explicação e uma justificação podem ser proporcionadas para as expectativas comuns dos litigantes de que os juízes devem aplicar em seus casos o direito existente e não produzir um novo para os mesmos, ainda que provisões particulares do texto constitucional, estatutos, ou precedentes disponíveis aparentam oferecer um guia não conclusivo. E com isto, concorre a crença na possibilidade de justificar muitas outras coisas, como a forma de argumentação dos juristas, a qual deve entreter as mesmas expectativas, dirigidas nos tribunais aos juízes, como se este estivesse procurando por, e não criando o direito; o fato de que, quando os tribunais revogam alguma decisão anterior, esta última nova decisão é normalmente tratada como se exprimisse o que a lei sempre fora, é como se um erro fosse corrigido, e lhe é dada uma operação retroativa; e finalmente, o fato de que a linguagem da decisão do juiz não é tratada, como se fosse a linguagem de uma norma positivada, como em um texto oficial canônico de um ato verbal de law-making.

É claro que a Declaração da Independência falou a linguagem dos direitos naturais universais e de um jusnaturalismo universal.xvii E a concepção de que por trás ou acima do direito positivo existe um direito natural universal que se pode descobrir pelo raciocínio humano, sendo aplicável a todos os homens em qualquer tempo e lugar; tem de fato tido seu lugar na Ciência do Direito americana, especialmente nos primeiros anos da República. Embora, possa adicionar que sua importância não é fora de ter sido julgado julgada pelo fato que o periódico que começou a vida, como o Natural Law Forum, e agora se chama American Journal of Jurisprudence. Mas talvez, surpreendentemente, o Nobre Sonho, que até mesmo quando uma provisão individual no direito positivo é indeterminadaindeterminado, ao menos haverá uma lei existente em algum lugar, a qualque os juízes podem e devem aplicar para resolver o caso, e nos trabalhos dos mais renomados juristas americanos, não toma a forma de uma invocação do direito universal natural. O Nobre Sonho americano tem sido, de um modo geral, algo não universal, mas especificamente relacionado com as preocupações e a forma de um sistema legal individual, seus fins específicos, e os valores perseguidos através daquela lei, em uma sociedade em particular.

Esta idéia particularista, de que a orientação para uma sociedade em particular deve, como Llewellyn disse, ‘fincar seus pés’26 nesta sociedade e em suas práticas vigentes; é uma característica comum a todas as formas do Nobre Sonho americano. Outra característica comum é a rejeição à crença que tem sustentado a visão do Pesadelo de sentenciar. Esta crença que, se uma regra particular legal se provar indeterminada em um dado caso, sendo que o tribunal não seja capaz de justificar sua decisão, como uma conclusão estritamente dedutiva de um silogismo, no qual aparece como uma premissa maior, então a decisão que o tribunal der, só pode ser a escolha incontestável do juiz. Llewellyn ataca essa crença quando, peticionando por uma decisão judicial em ‘grande estilo’, ele denunciou como um erro ofuscante, a suposição de que o resultado de um litígio não é, como ele chamou, ‘condenado em lógica’,27 sendo produto único da vontade incontestável do juiz. Então, um juiz em face de uma indeterminação de uma regra legal, não tem como seu recurso único, o que Holmes chamava de ‘prerrogativa soberana de escolha’.28 Ele não é, de uma só vez, forçado à posição de ‘law-maker’, ou até mesmo intersticial ‘law-maker’. A ilusão de que ele é então forçado, é

26 K. Llewellyn, Jurisprudence, Realism in Theory and Practice, supra n.25, em 114.27 K. Llewellyn, The Common Law Tradition, Deciding Appeals 4 (1960).28 Holmes, ‘Law in Science and Science in Law’, em O.W. Holmes, Collected Legal Papers, 239 (1920).xvii Aqui para distinguir ‘universal natural rights’, onde o ‘rights’ é em contra-ponto a deveres, e o ‘universal natural law’, onde preferi chamar o segundo de jusnaturalismo em vez de simplesmente direito natural, a fim de evitar confusão. (NT)

Est

e fr

ase

não

me

faz

o m

enor

se

ntid

o,

tant

o em

in

glês

co

mo

em

port

uguê

s.

Rec

omen

do ex

clus

ão,

pois

o af

eta

o en

tend

ime

nto

do

pará

graf

o.

9

Page 13: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

decorrente de uma falha de dar o devido peso ao fato, pois o processo de decisão legal não procede in vacuo, mas sempre se configura sob o pano de fundo de um sistema de regras, princípios, critérios e valores relativamente bem estabelecidos. Por si própria, uma dada provisão legal, em sua formulação, pode gerar uma direção não-confluente com o ordenamento; mas em um sistema, como um todo, no qual dada provisão é parte, podendo ser expressa ou implícita; provisão ou princípios, os quais são consistentemente aplicados devendo gerar direção confluente.

Ambas as características as quais determinei – as quais podemos chamar particularismo e holística – estas a serem encontradas, entre muitas outras, no trabalho de Roscoe Pound, cuja extensa produção se estendendo através de 70 anos de pesquisa, culminou na publicação, em 1959, quando o autor tinha 89 anos, de um trabalho de 3.000 páginas sobre Ciência do Direito.29 Na década de 1920, Pound introduziu a noção, muito enfatizada e desenvolvida por outros juristas, de que um sistema legal era muito estreitamente concebido, e fora representado como contendo unicamente regras ligando conseqüências legais estritamente definidas a estritamente definidas e detalhadas situações factuais, habilitando decisões, a serem alcançadas e justificadas por uma simples subordinação dos casos particulares a tais regras.30 Além de regras deste tipo, sistemas legais contêm princípios gerais em ampla-escala: alguns destes são explicitamente reconhecidos ou até mesmo legalizados, enquanto que outros têm de ser entendidos como as hipóteses mais plausíveis, explicando a existência das regras claramente estabelecidas. Como princípios não servem meramente para explicar as regras, nas quais elas se manifestam, mas constituem linhas-guia gerais para decisão, quando as regras particulares parecem indeterminadas e/ou ambíguas, ou onde nenhuma regra, explicitamente formulada, relevante e oficial, parece disponível. Os tribunais não devem se considerar livres para legislar em tais casos, nem mesmo de acordo com sua concepção de justiça ou bem social, mas devem procurar no sistema existente por um princípio ou princípios, os quais singularmente ou coletivamente irão servir para explicar as claras regras existentes e gerar um resultado determinado para o caso imediato.

Para um jurista inglês, essa receita sugerida para a eliminação da escolha judicialxviii

pode parecer demasiado, ou esperar demasiado de um muito admirado estilo de decisão judicial, seguido por alguns grandes juízes ingleses de common law. No exemplo moderno mais famoso, Lorde Atkin, na nossa Câmara de Lordes, encarou uma questão: se um fabricante era responsável a um consumidor com o qual ele não teve nenhuma relação contratual direta, por danos causados devido a um produto fabricado negligentemente. Neste famoso caso inglês, Donoghue v. Stevenson,31 o produto era uma garrafa de cerveja de gengibre contendo os restos tóxicos de uma lesma morta. Antes desta decisão, as situações em que uma pessoa era responsável à outra por ferimentos causados por descuido eram matéria de inúmeras de regras esparsas, especificando relacionamentos onde, o que um jurista inglês chama ‘dever legal de cuidado’, era dito de existir. Tais regras especificavam, por exemplo, a responsabilidade dos proprietários ou ocupantes de um imóvel às pessoas que vinham a estes; das partes diante das relações contratuais; e de pessoas usando rodovias; mas não incluíam, nem claramente excluíam a responsabilidade de um fabricante a um consumidor, com o qual ele não tinha contrato. Nem havia um princípio explícito, e claro expondo em termos gerais, o que era comum a todos estes casos, mostrando as considerações gerais que estabeleceriam se ou não o relacionamento promovia um dever. Lorde Atkin, neste precedente,xix decidiu que o fabricante era responsável, sob o amplo princípio de quem quer que empreenda qualquer atividade que possa previsivelmente ser perigosa aos que são passíveis de serem afetados pelas mesmas, deve ter um cuidado razoável para evitar infligir tal dano previsível nos que

29 R. Pound, Jurisprudence (1959).30 Veja Pound, ‘The Theory of Judicial Decision’, 36 Harv. L. Ver. 641 (1923).31 [1932] A.C. 562.

10

Page 14: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

serão seus consumidores, assim entendido. Ainda que esmiuçado e restringido em casos subseqüentes, este amplo princípio, primeiramente enunciado por Lorde Atkin, serviu tanto para definir as relações, e assim explicar as claras regras estabelecidas, como para prover uma resposta no caso imediato não-resolvido.

Este estilo de decisão é característico da aproximação holística geral instigada por Pound e por outros juristas posteriores, os quais, as teorias de decisão judicial ao menos se aproximam do Nobre Sonho, e são suficientes para refutar as teorias superficiais, de que quando uma regra legal particular se prova indeterminada, o juiz só pode empurrar de lado os livros de Direito e proceder legislando. Mas claramente, somente adotar este estilo de decisão não é suficiente em si mesmo para banir o Pesadelo. Muitas questões se levantam. Não pode o sistema legal conter princípios conflitantes? Não pode uma dada regra ou conjunto de regras específicas serem igualmente explicadas por um número diferente de hipóteses alternativas? Se sim, não haveria a necessidade de escolha nos altos níveis judiciais, em caso afirmativo, a decisão judicial ainda não seria suficiente para atingir o Nobre Sonho, desde que tal escolha seria um ato de law-making, e não uma adicional descoberta na lei existente? Pound, em sua longa vida, dirigiu-se intermitentemente a tais questões, e uma de suas respostas parece ter sido, que ainda nos altos níveis do sistema legal, acima dos princípios, existem os valores recebidos ou ideais do sistema, de novo, explicitamente reconhecidos ou dedutíveis de suas regras e princípios estabelecidos, e o auxílio a estes já seria suficiente para determinar quais de um número de conflitantes ou princípios alternativos deveriam prevalecer. Mas é claro que as mesmas questões podem ser levadas adiante. Os mesmos conflitos ou alternativas não se apresentariam neste mais alto nível de valores recebidos e ideais? Quais são as bases de pensamento de que lá, deva haver alguma resolução específica de tais conflitos esperando sua Descoberta pelo juiz e não a utilização de suas escolhas? Para ser justo com Pound, deve ser dito que ele provavelmente concebeu a idéia de que um sistema como um todo, com seus princípios e valores recebidos, deveria prover uma determinada e específica resposta quando as regras legais particulares se esgotam, não como uma verdade literal sobre os sistemas legais, mas sim como um ideal regulador para os juízes perseguirem; este processo iria ditar um estilo benéfico de decisão judicial e operar como um poderoso constrangimento sobre a escolha judicial, sem eliminar por completo a necessidade de tal escolha. Esta relativamente modesta versão do Nobre Sonho, como um constrangimento sobre, ao invés do sempre disponível substituto para a escolha judicial é, penso, no fim, também a mensagem pregada por Karl Llewellyn, em sua rica e turbulenta defesa do que ele chamou de grande estilo de decisão judicial. Esta mensagem está presente não em termos teóricos gerais, pelo qual ele tinha um grande dissabor, mas na terminologia de um artesão. O juiz, em casos onde regras particulares – regras de papel, como são às vezes depreciativamente chamadas – se provam indeterminadas, deve ‘esculpir’ sua decisão com a ‘cunha’ no sistema, como em um todo,32 xx

isto é, em acordo com os amplos princípios e valores estabelecidos. De face com as

32 Veja K. Llewellyn, The Common Law Tradition, supra n. 27, em 222, onde escrevendo em ‘Appeliate Judging as a Craft of Law’, Llewellyn declara que, ‘Eu tenho tentado alcançar a idéia em termos de trabalhar com do que obliquamente ou contra o ‘grain’. ... ‘to carve with the grain’ ... revelar o latente invés de impor nova forma, muito menos de obstruir uma vontade externa.’xviii Judicial Choice. Decisão Judicial, mas em um sinônimo mas para a escolha, em relação a uma livre utilização de parâmetros. (NT)

xix Leading case. Caso que cria jurisprudência. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

xx ‘to carve with the grain’ (texto retirado da nota 32) é um termo de carpintaria. Porém sem conhecimento sobre a área, traduzi como: ‘gravar’ com a ‘cunha’, em um sentido de imprimir sua marca, utilizando-se de seus instrumentos. (NT)

11

Page 15: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

indeterminações da lei positivada, o juiz não tem de simplesmente decidir, sem ulterior atenção ao sistema, como ele pensar melhor. Este é o constrangimento mais importante sobre a escolha judicial e o que conta em grande medida de previsibilidade na escolha judicial em casos recursórios.xxi Confesso que há muito no trabalho escrito de Llewellyn sobre o assunto, o qual não entendo por completo, apesar da paciência, lucidez e exaustiva examinação desta, pelo compassivo interprete inglês, Professor Twining.33 Penso, porém, que na versão de Llewellyn do Nobre Sonho, é suficiente que quando os juízes escolham como eles devem ter, de nos mais altos níveis de princípios ou valores recebidos, as alternativas a eles apresentadas neste nível; irão todas ter apoio de grandes áreas do sistema legal compreendido sob elas, e então, qualquer alternativa escolhida, terá seus pés firmemente plantados no sistema existente e pode ser classificada como decisão garantida, porque é controlada pela lei.

A versão contemporânea do Nobre Sonho, de Professor Ronald Dworkin,34 não faz tal compromisso nestes pontos, e ele é, caso ele e Shakespeare me permitissem dizer, o mais nobre sonhador de todos, com uma ampla e mais versada base filosófica que seus predecessores, concentrando poderes formidáveis de argumentação na defesa de sua teoria. Sua teoria de decisão judicial é marcada pela força em muitas novas distinções, tal como argumentos de princípio sobre a existência de títulosxxii ou direitos, o qual pensa que é o próprio negócio dos juízes usar em suporte das decisões, contrastando com argumentos de política sobre bem-estar agregado ou objetivos coletivos, que não são o negócio do juiz, mas sim do legislador. Todavia, sua teoria nos moldes que já expliquei, é holística e particularista. Como Pound, ele rejeita a idéia que um sistema legal consiste somente em sua regras autoritárias, explícitas e enfatiza a importância dos princípios implícitos não-formulados; e como Llewellyn, ele rejeita a idéia, a qual ele atribui à Ciência do Direito positivista, de que o juiz deve, quando as regras explícitas se provam indeterminadas, por de lado seu livros de Direito, e começar a legislar de acordo com sua moral pessoal ou concepções de bem-social ou justiça.

Assim, para Dworkin, até mesmo nos casos mais difíceis, onde cada uma de duas interpretações alternativas em um ordenamento, ou de dois princípios conflitantes parecem se encaixar bem na clara lei estabelecida, o juiz nunca deve produzir Direito. Deste modo, Oliver Wendell Holmes estava, na visão de Dworkin, errado em defender que em determinados pontos o juiz deve exercer o que ele chamava de ‘a prerrogativa soberana de escolha’35 e deve legislar, ainda que somente ‘intersticialmente’. De acordo com a nova teoria, o juiz, por mais que o caso seja difícil, nunca deve determinar o que o Direito deve ser; ele é confinado a dizer o que acredita ser o Direito antes de sua decisão, porém, é claro, ele pode estar errado. Isto significa que ele deve sempre supor que para todo caso concebível há alguma solução, que já seja o Direito antes de ele decidir e que espera sua descoberta. Ele não deve supor que o Direito seja sempre incompleto, inconsistente, ou indeterminado; se ele aparecer assim, a falha não é nele, mas nos limitados e humanos poderes do juiz de discernimento; assim, não há espaço para um juiz produzir o Direito pela escolha entre alternativas como o que deveria ser o Direito.

33 Veja W. Twining, supra n. 13.34 Veja Dworkin, ‘Hard Cases’, 88 Harv. L. Ver. 0157 (1975), reimpresso em R. Dworkin, Taking Rights Seriously 81 (1977).35 Holmes, ‘Law in Science and Science in Law’, supra n. 28, em 239.xxi Appellate. Adj. Recursório(a). de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

xxii Entitlement. Título (fundamento de um direito). de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

12

Page 16: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

É claro que nesta visão o juiz tem de apresentar argumentos para o que ele acredita ser o Direito. Muito freqüentemente seu raciocínio irá tomar justamente a forma que ilustrei do grande caso inglês sobre responsabilidades dos produtos. Isto é, ele tem de construir um princípio geral, o qual irá justificar e explicar o curso da decisão prévia em relação a este assunto-substância e também produzir uma resposta definitiva para o novo caso. Mas é claro que é só o início de seu questionamento, pois poderá haver uma pluralidade de tais princípios que se ajustam igualmente bem ao Direito existente, mas produzindo soluções diferentes para o caso imediato. Essa posição foi atingida nos tribunais ingleses, quando o princípio geral anunciado por Lorde Atkins em relação à negligência chegou a ser aplicado a casos de declarações negligentes, nas quais pessoas agiram em seu detrimento.36 Professor Dworkin reconhece que em qualquer nível de inquérito, dentro do sistema e aos princípios gerais, que podem ser ditos que são imanentes no Direito existente, podem existir questões não resolvidas deste tipo. Para lidar com elas, o juiz deve, idealmente, de qualquer modo, abrir um questionamento amplo de justiça e moralidade política. Nas palavras do Professor Dworkin:

Deve desenvolver uma teoria da Constituição, no formato de um conjunto complexo de princípios e políticas que justificam aquele esquema de governo. (...) Deve desenvolver esta teoria referindo-se alternadamente a filosofia política e ao detalhe institucional. Deve gerar teorias possíveis justificando aspectos diferentes do esquema e testar as teorias contra a instituição principal.37

Quando o poder descriminante deste teste é exaurido, deve ‘elaborar o conceito contestado que a teoria bem sucedida emprega’.38 O juiz, deste modo, deve decidir qual concepção dos valores fundamentais protegida pelo sistema, tal como a liberdade, ou dignidade pessoal, ou igualdade, é superior. Claramente esta é uma tarefa hercúlea e o Professor Dworkin corretamente, chama o juiz, o qual ele imagina que embarcou na construção de tal teoria, Hércules. Ele admite que diferentes juízes, vindos de diferentes formações, podem construir diferentes e conflitantes teorias hercúleas e, quando acontece, não pode ser demonstrado que uma destas é a única correta e as outras erradas. De fato, todas podem estar erradas. Todavia, para tirar sentido do que eles fazem, os juízes devem acreditar que exista alguma teoria única, porém complexa, e alguma única solução para o caso imediato derivado disto, o qual é unicamente correto.

A teoria do Professor Dworkin irá, estou certo, despertar e estimular em muito tanto os juízes, como os filósofos, por muito tempo, em ambos os lados do Atlântico. E de fato já adicionou muito ao estoque de valiosas idéias jurisprudenciais. Mas se posso aventurar uma profecia, penso que a principal crítica que irá atrair será sua insistência, mesmo que não haja caminho de demonstrar qual das duas soluções conflitantes sendo ambas igualmente amparadas pelo Direito existente ser correta ainda que deva sempre existir uma única resposta correta esperando ser descoberta. Juristas podem pensar que se um juiz adequou-se a todos estes constrangimentos, antes de decidir, os quais distinguem ‘law-making judicial de ‘law-making’ por um legislador, acima de tudo se considerou conscientemente e imparcialmente o que Professor Dworkin bem chama de ‘força gravitacional’39 do Direito, claramente estabelecida, e chegou à conclusão de qual das alternativas abertas a ele é a mais imparcial ou justa, nenhum propósito é servido pela insistência que se um juiz irmão chega, após o mesmo processo consciente, à conclusão diferente, pois há uma única resposta correta, a qual deveria mostrar qual dos dois juízes, se algum está certo; porém esta resposta está armazenada no santuário dos juristas, e ninguém pode demonstrar qual é.

36 Mutual Life & Citizens Assurance Co. v. Evatt, [1971] A.C. 793.37 Dworkin, ‘Hard Cases’, supra n. 34, em 1085; Taking Rights Seriously em 107.38 Ibid.39 Ibid, em 1089, Taking Rights Seriously em 111.

13

Page 17: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

Similarmente, filósofos podem disputar a reivindicação como uma matéria de lógica coerente, qualquer um que tentar responder a uma questão de valor, quer seja ela a questão da qual duas respostas legais a uma reivindicação de um litigante são mais justas ou imparciais, ou qual de dois competidores em uma competição de beleza é mais belo, ou qual das comédias de Shakespeare é a mais engraçada, precisa, em ordem de dar senso a tais questões, assumir que há uma única e objetiva resposta correta em todos estes casos. O corolário, no caso da lei, é que os litigantes são sempre intitulados a ter do juiz a resposta correta (embora não haja maneira de demonstrar qual é esta), justo como eles deveriam ser intitulados a ter uma resposta correta à questão, qual de dois construtores é o mais alto, onde é claro que a veracidade da resposta pode ser demonstrada por um teste público objetivo. Talvez, tanto filósofos como juristas possam concordar com Professor Kent Greenawalt de Columbia Law School, que após uma paciente examine do ataque de Professor Dworkin à idéia de que juízes têm a discrição em casos difíceis, conclui que ‘discrição existe somente enquanto não há um procedimento prático para determinar se o resultado é correto; juristas informados discordam sobre o resultado particular, e uma decisão do juiz em qualquer direção, não irá ser amplamente considerada como uma falha de praticar suas responsabilidades judiciais’.40

A versão do Professor Dworkin dos desafios do Nobre Sonho, em dois pontos cruciais, dois temas os quais dominaram a Ciência do Direito inglesa desde Jeremy Bentham, no ano da Independência Americana, quando este publicou seu primeiro livro, dispõe suas fundações.41 O primeiro tema se refere à questão discutida. É a insistência que, ainda que o Direito pode ser em determinados pontos incompleto ou indeterminado, enquanto for determinado, existem meios de demonstrar o que é através de referência ao critério do sistema legal de validade ou de suas provisões básicas concernentes as fontes do Direito. Todas as variantes do positivismo inglês consentem com esta visão. O segundo tema que tanto domina a Ciência do Direito inglesa, é o conceito utilitarista que tanto os juízes como legisladores, considerando o que a lei deveria ser, podem e de fato precisam, em muitos pontos, tomar em consideração a utilidade geral e qual mais irá avançar o bem-estar geral. Até mesmo um juiz, ainda que objeto de muitos constrangimentos, aos quais a legislação é livre, pode, apropriadamente permitir sua decisão entre respostas concorrentes, cada uma suportada por uma lei existente, sendo influenciada por tal consideração utilitarista. Isto é, ele não está confinado a perguntar qual é o mais imparcial ou o mais justo de acordo com princípios distributivos de justiça. Mas para o Professor Dworkin, um juiz que pisa na área, a qual ele chama de políticas públicas, como distinção de princípios que determinam direitos individuais, está caminhando em terreno proibido, reservado à legislatura eleita. Isto é assim porque para ele, não somente a lei é um sistema sem lapsos, como também um sistema de direitos e deveres sem lapsos, determinando o que as pessoas são intituladas de ter como matéria da justiça distributiva, não o que eles deveriam ter, porque é vantajoso que eles o tenham. Esta exclusão das ‘considerações políticas’ irá, penso, novamente correr contrária às convicções de muitos juristas, que é perfeitamente próprio e de fato necessário, em determinados momentos, para os juízes, levar em consideração o impacto de suas decisões no bem-estar geral da comunidade.42

A exclusão, de Professor Dworkin, a tais considerações da competência do juiz é parte da hostilidade geral ao utilitarismo que caracteriza seu trabalho, e este ponto me leva de volta ao meu tema principal. Parece que para o observador inglês, nos Estados Unidos, o utilitarismo está atualmente na defensiva, em face não somente do trabalho do Professor Dworkin, mas também de duas, muito importantes, contribuições à filosofia política feita pelo 40 Greenwalt, ‘Discretion and Judicial Decision: The Elusive Quest for the Fetters that Bind judges’, 75 Collum. L. Rev.359, 386 (1975).41 J. Bentham, A Fragment on Government (1776).42 Outros chegaram a mesma conclusão. Veja Greenawalt, supra n.40, em 391; John Umana, ‘Dworkin’s “Rights Thesis” ’, 74 Mich. L. Rev 1167, 1179-83 (1976)..

14

Page 18: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

Professor Rawl em Theory of Justice43 e em Anarchy, State, and Utopia,44 do Professor Nozcik. Estes trabalhos têm muita afinidade com as doutrinas, do século XVIII, de direitos inalienáveis do homem. Em qualquer caso, utilitarismo como uma crítica do Direito e da sociedade tem geralmente sido encoberta na América pelas doutrinas dos direitos individuais. Ainda que, tenha penetrado, porém não muito longe, nas teorias americanas de processo judicial. Isto tem sido realizado principalmente sob uma forma que conduz facilmente à economia de bem-estar, onde a utilidade agregada a ser maximizada é definida não em termos de satisfação, como no utilitarismo clássico, mas em termos de satisfação de desejos expressos ou preferências reveladas. Desta forma, é para ser encontrada em dicas dispersas, expostas por Oliver Wendell Holmes, que juízes podem ter ao seu dispor para guiá-los em suas necessárias tarefas de law-making, na Ciência do Direito, a qual irá ‘determinar, até onde puder, o valor relativo dos nossos diferentes fins sociais’,45 ou, como ele mesmo expôs, irá estabelecer postulados do Direito sobre ‘desejos sociais pontualmente medidos’,46 e isto acabaria por substituir os inarticulados e intuitivos métodos atuais de law-making judiciais. Neste contexto, Holmes fala do homem do futuro como o homem das estatísticas e o mestre da economia.47

Uma concepção similar da ciência aplicada ao Direito parece estar subordinada a Ciência do Direito sociológica de Pound e sua tentativa de analisar conflitos, os quais o Direito é chamado para resolver em termos de interesses subordinados, isto é, em termos de vontades ou desejos expressos como reivindicações ao reconhecimento legal e sua execução.xxiii Muitas das páginas deste prolífico escritor são dedicadas à classificação de tais interesses como individual, social e público.48 Mas associada a esta análise está a concepção de uma ciência de engenharia social, a qual mostraria como conflitos de interesses deveriam ser ordenados, com o que Pound chama de o mínimo de fricção ou desperdício, ou com o mínimo de sacrifício do esquema total de interesses como um todo.49 Para fazer isto, Pound reconhece que precisa existir algum método de pesar ou valorar os itens conflitantes, e então alguma forma de quantificar, mas sua (de Pound) discussão não a providencia.

Se estes dois flertes com a idéia de ciência do law-making, tanto pelo legislador como pelo juiz se abriga em qualquer filosofia coerente, é no utilitarismo. Mas o utilitarismo é bem explicitamente reconhecido como inspiração da contemporânea Escola nascida em Chicago da análise econômica do Direito,50 que atualmente tem grande influência sobre os ensinamentos americanos do Direito Civil. Esta escola de pensamento reivindica ter exposto um profundo relacionamento entre Direito e a ordem econômica. Como teoria explicativa, tem a alegação de que grandes áreas do common law podem ser claramente vistas como imitando o mercado econômico, pois muitas regras legais estabelecidas são consistentes com a concepção de Direito como um sistema de incentivos, usados para garantir que recursos econômicos sejam alocados para usos, os quais são economicamente mais eficientes, onde eficiência é definida como maximização do agregado desejo-satisfação. Isto é dito como

43 J. Rawls, A Theory of Justice (1971).44 R. Nozick, Anarchy, State, and Utopia (1974).45 Holmes, ‘Law in Science and Science in Law’, supra n.28, em 242.46 Ibid, em 226.47 Holmes, ‘The Path of Law’, supra n.2, em 187.48 3 R. Pound, Jurisprudence 16-324 (1959).49 1 R. Pound, Jurisprudence 545 (1959); 3 R. Pound, Jurisprudence 330-1; R. Pound, Justice According to Law 3 (1951); R. Pound, Social Control Through Law 64-5 (1942).50 Veja R. Posner, Economic Analysis of Law (1972). O Professor Posner tem desde então distinguido sua teoria do utilitarismo nas bases de que ela não requer a maximização da utilidade agregada, mas da maximização da riqueza. Veja ‘Utilitarianism, Economics and Legal Theory’ em 8 J. Legal Study 104 (1979).xxiii Enforcement. Execução; cumprimento; desempenho. de Mello, Maria. (1994). Dicionário Jurídico. 6ª ed. Editora Pergaminho. Lisboa.

15

Page 19: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

sendo a lógica econômica implícita do Direito. Mas em seu lado crítico ou normativo, a teoria alega prover um racional, imparcial e objetivo critério para a determinação de disputas legais, onde a questão deve ser, quem é que deve carregar o peso da perda. Assim, utilizando seu mais simples exemplo, nesta teoria, o ponto de imposição das responsabilidades legais por negligência causadora de dano a outrem, é prover um incentivo de aceitação economicamente justificada, precauções maximizadoras de utilidade, contra a causa de tal dano, isto é, precauções de custo, que é menor que a perda causada pela sua negligência, descontada a probabilidade de sua ocorrência. Esta teoria de incentivos corre fortemente contra não somente a teoria de Professor Dworkin, que o juiz não deve se preocupar com considerações de utilidade geral, mas também com a idéia convencional, que a responsabilidade na negligência é ao menos, algumas vezes, imposta como meio de justiça entre as partes, ao pé que a vítima da negligência de outro tem o direito moral de ter suas perdas reparadas pela parte negligente, até então, a compensação monetária pode fazê-lo. Para a questão, se porque o Direito está somente preocupado com a provisão de incentivos, isto não deveria ser realizada através de multas pagas ao Estado, em contrapartida aos danos pagos, em litígios privados às vítimas, a teoria responde, talvez mais ingenuamente que convincente, que o posterior (danos pagos às vítimas), em seu lugar, é um incentivo as mesmas a trazer casos de negligência a público, e que o resultado irá ser bem mais efetivo em detrimento do qual poderia se prover a partir de qualquer tipo de agência central de controle criminal, inspecionando conduta negligente e estipulando multas.51

Ninguém que tenha lido o elaborado e refinado trabalho de Professor Posner, e a larga literatura que cresceu a partir dela, designada para estabelecer estas bases utilitaristas do Direito, podem falhar a lucrar. Isto não é, penso, por causa de seu sucesso em seu ostensivo propósito, mas por causa de sua detalhada ingenuidade, admiravelmente, força alguém a pensar sobre o que é mais preciso, além de uma teoria de utilidade para uma satisfatória, explicadora e crítica, teoria de decisões legais. Torna-se claro que, em geral, o que é necessário é a teoria de direitos morais individuais e seu relacionamento com outros valores perseguidos pelo Direito, uma teoria de muito maior compreensão e detalhada articulação que as providas até agora.

Concluindo, permita-me dizer isto: Retratei a Ciência do Direito americana como cercada por dois extremos, o Pesadelo e o Nobre Sonho, a visão que os juízes sempre produzem e nunca descobrem o Direito, que impõem aos litigantes, e a visão oposta, onde eles nunca o produzem. Como qualquer outro pesadelo e qualquer outro sonho, estes dois são, em minha visão, ilusões, ainda que elas tenham muito valor a ensinar ao jurista em suas horas de vigília. A verdade, talvez não tão excitante, é que às vezes os juízes seguem uma e às vezes a outra. É claro que não é objeto de indiferença, mas de enorme importância qual eles seguem, quando e como eles a seguem. Isto é tópico para outra ocasião.

51 Veja Posner, ‘A Theory of negligence’, 1 J. Legal Stud. 29, 48 (1972).

16

Page 20: A Ciência do Direito Americano Através de Olhos Ingleses

A CIÊNCIA DO DIREITO AMERICANO ATRAVÉS DE OLHOS INGLESES

17