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85270669 Elogio Do Grande Publico Dominique Wolton

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Dominique Wolton

Elogiodo grandepúblico

Uma teoria crítica da televisão

Tradução deJosé Rubens Siqueira

editora áíica

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Woltorií Dominique

Elogio do grande publico uma teoria critica da televisão

Série

lemasVolume 52

654.19/WS69e(18747S/O3)

EditorNelson dos Reis

Editor-assistenteIvany Picasso Batista

Preparação dos originaisAntivan Guimarães Mendes

RevisãoMárcia Cruz LemeIrene Catarina Migro

Projeto GráficoMargarete Gomes

Editoração EletrônicaValdemir Carlos Patinho

CapaEttore Bottini

Impressão: Gráfica Palas Athena

©Flammarion, 1990Título original: Eloge du grand public — Une théoríe critique de Ia télévision

ISBN 85 08 05909 4

1996

Todos os direitos reservados pela Editora ÁticaRua Barão de Iguape, 110 - CEP 01507-900Caixa Postal 8656 - CEP 01065-970São Paulo - SPTel.: (011) 278-9322 - Fax: (011) 277-4146Internet: http^www.atica.com.bre-mail: [email protected]

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SumárioPrefácio à edição brasileira, 5

Prefácio, 9

Introdução, 11

PRIMEIRAPARTE

SEGUNDAPARTE

TERCEIRAPARTE

A televisão: um objeto não pensado, 21Introdução: A televisão entre as paixões, a política e as modas, 23

1. Do monopólio da televisão pública aotriunfo da televisão privada, 25O domínio, o desgaste e o declínio do modelo da televisão pública, 25;O contexto atual: bale ideológico, convivência, crise da reflexão, 33

2. A televisão: um objeto difícil de analisar, 43Uma mídia difícil de apreender e complexa de analisar, 44; O con-formismo crítico, 48

A unidade teórica da televisão, 63Introdução: Elogio do grande público, 65

3. A unidade teórica da televisão, 67A imagem, 67; Um meio de massa, 74

4. As ideologias da televisão, 81A televisão entre a ideologia técnica e a ideologia política, 82; A ideo-logia da comunicação, 90 v

O desafio fundamental: televisão geralista ou televisão fragmentada, 97Introdução: Televisão, laço social e espaço público, 99

5. Televisão fragmentada contra televisão geralista, 103A televisão fragmentada, ouio "menu" contra o "à Ia carte", 103; Atelevisão geralista contra o espaço público fracionado, 111; Por que atelevisão fragmentada é uma má solução para os problemas da tele-visão geralista?, 115

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ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO

fÒ. Televisão e laço social, 122O inapreensível e indispensável grande público ou a superação do fra-

I cionamento social, 125; A televisão: o laço entre o indivíduo e a mas-i sã, o particular e o geral, 132l 7. A televisão no espaço da comunicação, 139\ A televisão, um instrumento nacional de comunicação, 139; Por umi lugar modesto da televisão no espaço público, 147

8. A televisão brasileira, 153! História, 153; O lugar da televisão na sociedade brasileira, 155; TV

Globo, 159; O sistema audiovisual no seu conjunto, 161; Telenovelasou o caráter brasileiro, 163

9. O sistema audiovisual europeu, 167O contexto geral, 167; As televisões da união européia, 169; As políti-cas européias em matéria de televisão, 172

QUARTA

PARTE

A ilusão da televisão cultural ou o espaço público fragmentado, 177Introdução: A cultura no espaço público "midiatizado", 17910. Cultura e televisão: entre a convivência e o apartheid, 181

Os encantos do gueto cultural, 185; A superioridade da televisão ge-ralista, 193

11. Cultura: os limites da comunicação, 207A relação de força: cultura de elite — cultura de massa, 210; A cul-tura seduzida pelo individualismo midiático, 214; As quatro relaçõespossíveis entre cultura e televisão, 226

QUINTA

' PARTE

As sereias da televisão européia, 231Introdução: Entre o voluntarismo e a História, 23312. A televisão sem fronteiras ou o triunfo da tecnocracia, 237

Televisão européia: a eurocracia além dos seus limites, 237; Tardedemais ou cedo demais, 249; A Europa Oriental sempre bate duasvezes, 261

13. Televisão, identidade e nacionalismo, 275Qual identidade, qual cultura, qual Europa?, 281; O retorno do na-cionalismo, 292; O que fazer, o que não fazer, 298

Conclusão, 315

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Prefácio à edição brasileiraA televisão constitui uma mudança radical na história da comunicação. A im-

prensa escrita, a partir da metade do século XIX, já havia permitido que um númerosempre maior de cidadãos tivesse acesso a informações, mas havia sempre a barreira daleitura. O rádio, depois da Primeira Guerra Mundial, foi uma outra revolução, maisdemocrática. Leve, barato, podia ser escutado por todo o mundo e o seu sucesso cons-tante fez dele, sem dúvida, em nível mundial, o instrumento de comunicação maisdemocrático de todos, quase sempre inseparável da luta pela liberdade. A chegada datelevisão na década de 1950 veio revolucionar uma comunicação que, com o rádio, jáse havia libertado das limitações de distância. Com a televisão foi o milagre da imagem.Seu sucesso imediato, como eco do sucesso do cinema no decênio de 1940 antes, colo-cou a imagem no primeiro plano da civilização ocidental. Não só o espetáculo em ima-gem seduzia imediatamente, como também a janela para o mundo proporcionada pelainformação, pelos documentários, filmes e espetáculos estrangeiros fizeram da televisãoum dos meios instrumentais da emancipação cultural.

E é nesse sentido que a conceberam os que primeiro a promoveram. A tele-visão, mais do que o seu papel de distração, devia assumir um papel cultural e de edu-cação em sentido amplo. Exceto nos Estados Unidos, onde o modelo exclusivo foi o datelevisão comercial, deliberadamente oposto a toda problemática cultural. No resto domundo, e sobretudo na Europa, a televisão ligava-se ao serviço público, com um dese-jo de promoção cultural. Na realidade, o surgimento da televisão há meio século e oseu sucesso são inseparáveis do surgimento da democracia de massa e da progressivaabertura para o mundo. Historicamente, a televisão é, até hoje, um instrumento na lon-ga história da emancipação e da democracia. Devido ao seu próprio status: acessível atodos, gratuita, com possibilidade de oferecer mensagens de todas as naturezas, aber-tura para o mundo através das informações, dos documentários e dos filmes, ela é con-siderada por muitos, de direita e de esquerda, pelos liberais, pelos progressistas e porcertos conservadores, como um instrumento de emancipação. Daí os debates violentosque, depois de cinqüenta anos, opõem os partidários da televisão pública, que queremfazê-la desempenhar um papel cultural em sentido amplo, e os partidários da televisãocomercial, que querem ver nela um instrumento de divertimento e rentabilidade.

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ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

Ospoderespúblicos, em quase todas as partes, tiveram medo da influência datelevisão sobre os públicos. Quiseram exercer controle sobre ela para evitar efeitos ne-gativos, assim como quiseram dela se servir na maioria das vezes para influenciar oscidadãos! Aí encontramos, sem dúvida, uma das conclusões mais interessantes do pon-to de vista da teoria da recepção e da influência das mídias. A televisão não manipulaos cidadãos. Evidentemente os influencia, mas todas as pesquisas, ao longo de meioséculo, provam que o público sabe assistir às imagens que recebe. Não é jamais passi-vo. Nem neutro. O público filtra as imagens em função dos seus valores, ideologias,lembranças, conhecimentos...

Em poucas palavras, o público é inteligente. E nisso está todo o sentido destelivro: mostrar, ao mesmo tempo, que a televisão é um instrumento democrático fun-damental e que o público é inteligente. Daí o título Elogio do grande público, que in-dica, de qualquer forma, que a televisão, do ponto de vista do seu status teórico nãopode ser dissociada de uma teoria da democracia e da inteligência do cidadão, ou doespectador, porque são o mesmo indivíduo. Basear a democracia na soberania doscidadãos significa reconhecer a inteligência dos espectadores. Deve-se evitar oferecer aeles programas de má qualidade.

É, portanto, por essas razões teóricas, pelo laço muito forte entre democraciade massa e comunicação de massa proporcionado pela televisão, que faço parte da pe-quena minoria de intelectuais europeus favoráveis à televisão. A maior parte deles des-confia dela, vendo-a como fator de alienação e de embrutecimento do povo, emboranão hesitem jamais participar dela...

Na realidade, a televisão é elemento central da democracia de massa e exigeum verdadeiro investimento intelectual para que se compreenda o seu papel. No en-tanto, durante muito tempo, o mundo acadêmico não refletiu o suficiente sobre a tele-visão, como se ela não fosse um objeto de conhecimento "nobre"! Muitos conside-ravam que tudo era simples: não havia nada a se esperar da televisão! Na realidade, aelite cultural e intelectual não se interessava muito pela televisão porque tinha outrosinstrumentos culturais à sua disposição! Esse, porém, não é o caso de milhões de pes-soas para quem ela é, ao contrário, o principal instrumento de informação, de culturae de distração.

O que venho buscando através das minhas pesquisas e de diversos livros, aolongo de 20 anos, é demonstrar a importância da televisão numa teoria da sociedadedemocrática de massa, compreender o que é possível fazer e a partir de que ponto cer-tas facilidades, ou o jogo dos interesses econômicos, ameaçam criar consideráveis danosno plano social, cultural e político. Os desafios mais fortes que temos diante de nós sãoa constituição desse imenso mercado da comunicação, a chegada de novas técnicas de

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- PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA -

comunicação, a interconexão da informática, das telecomunicações e do audiovisual,e a mundialização da comunicação.

Além dos problemas das relações entre televisão pública e televisão priva-da, que não se colocam da mesma maneira em diferentes países, uma questão co-mum a todas é o futuro da televisão geralista. Essa forma de televisão é adaptada àdemocracia de massa, no sentido em que visa oferecer a todo o mundo o maiornúmero possível de programas, garantindo assim uma certa igualdade cultural. Masa dificuldade em fazer bem essa televisão geralista vem levando, hoje, muitos paí-ses a preferirem, graças às novas técnicas de comunicação, a televisão temática, commaior garantia de sucesso mais fácil porque dirige-se diretamente a públicos-alvo.

/ No entanto, a maior força das mídias consistiu sempre em dirigir-se a todos os públi-"\ cos. Se assistirmos a uma fragmentação das mídias, paralela às desigualdades e fra-

turas sociais da sociedade, a televisão perderá o seu papel essencial de laço social.^Ós desafios financeiros, técnicos, econômicos, políticos, mas talvez sobretudo so-

ciais e culturais ligados à televisão, serão consideráveis no futuro na medida do portedo mercado. Importamo-nos mais com o tamanho do mercado do que com a questãosocial e cultural! E no entanto as duas palavras são indissociáveis. Daí a urgência deuma reflexão teórica que construa análises que possam ser utilizadas para resistir àpressão crescente dos acontecimentos e dos interesses econômicos que irão se ace-lerar por toda parte.

Esse é o sentido deste livro. Contribuir para o nascimento de uma reflexão críti-ca sobre o papel da televisão nas sociedades democráticas.

Desse ponto de vista, a experiência do Brasil, para um europeu, é essencial erica de ensinamentos. Um país imenso, novo, com uma riqueza de convivência de di-versas culturas, que amou imediatamente a televisão e que, sem contar com nenhumatelevisão pública importante, conseguiu, dominado pelo modelo privado, fazer umatelevisão de qualidade, inteligente e chegada à sociedade e às suas evoluções. Desseponto de vista, o Brasil é um caso exemplar. A televisão privada, grande, dominante,conseguiu, no geral, atingir o papel de laço social proporcionado pelas televisões públi-cas na Europa! Muito aprendi trabalhando sobre a experiência brasileira. E a inteligên-cia de certos programas conhecidos no mundo inteiro, assim como o número e a di-versidade dos seus programas de debates comprovam a extrema vitalidade desse povo.E não só das elites. A própria qualidade desse sucesso de massa vem confirmar as mi-nhas escolhas teóricas. Em poucas palavras, o Brasil não é os Estados Unidos. E tantomelhor. É como se esse país tivesse sabido fazer uma síntese entre a Europa e a América!Este livro é, portanto, ao mesmo tempo um apelo por uma reflexão teórica sobre a tele-visão e a manifestação de uma vontade de valorizar a originalidade do sistema áudio-

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— ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

visual brasileiro, dominado pelos interesses das mídias privadas. O que prova como asdicotomias são insuficientes para pensar a realidade!

O Brasil é uma das sociedades mais complexas, ricas, dinâmicas e inovadorasdo mundo, e a sua televisão reflete isso, pelo que pude perceber. Desejo simplesmente,ao mostrar aqui o papel essencial da televisão nas nossas sociedades complexas, con-tribuir, modestamente, com os muitos que querem fazer da televisão brasileira um ins-trumento de liberdade e emancipação

O público é inteligente, e muitas vezes, no mundo todo, os programas não es-tão à altura das suas demandas e capacidades. São as elites que se enganam sobre aqualidade do olhar! O público assiste ao que lhe oferecemos, mas não é bobo e sim tri-butário da oferta. A responsabilidade essencial é, portanto, sempre daqueles que fa-bricam e dirigem a televisão. São esses que muitas vezes não estão à altura das aspi-rações e da capacidade do público... Limitar as ambições da televisão é limitar as am-bições da democracia de massa. O regime mais belo, mas também o mais frágil dahistória da humanidade.

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PrefácioEste livro encerra um período de doze anos de pesquisa sobre a televisão.

Iniciado como uma análise do seu papel nas sociedades democráticas, esse traba-lho expandiu-se,ao estudo do lugar ocupado pela televisão no espaço público, nacomunicaçãgjjolítica, para chegar, com esta obrarão jstudo do seu papel social ecultural,

Pesquisas futuras irão se ocupar das condições e do status da comunicação nassociedades democráticas, mas, por enquanto, este livro é uma ampliação da perspecti-va escolhida por La folie du logis, Ia télévision dans lês sodétés démocratiques(Gallimard, 1983), escrito em colaboração com Jean-Louis Missika. Essa obra exami-nava o papel político que podia desempenhar a televisão nas democracias pluralistas ea sua tese principal era de que a televisão não é, no final das contas, um instrumentoprejudicial à democracia, mas, ao contrário, como escrevíamos, "o instrumento maisdemocrático das sociedades democráticas". Posição que, na época, não era majoritáriae que ainda hoje não o é...

Veio, em seguida, um livro, escrito com Michel Wieviorka, sobre o papel dasmídias no terrorismo: Terrorismo à Ia Une. Médias, terrorisme et démocratie(Gallimard, 1987). Sua conclusão era que, aí também, contrariando a idéia mais di-fundida, as mídias não desempenham necessariamente um papel de auxiliares objetivosdo terrorismo internacional. E que, quando o desempenham, devemos ver nisso maisa revelação das disfunções das instituições de uma democracia: polícia, justiça, homenspolíticos, serviços secretos, do que o resultado de um efeito perverso intrinsecamenteligado ao status das mídias.

A obra que irão ler é, de certa forma, o terceiro volume do trfpücqJila ampliade uma abordagejnjnais-cultural, procurando_^s^lare£êra_eip.e.ciflcid.a,de

e4ade4ejn^um papel essencial. A questão é saber o que podemos exigir da televisão, o que ela podenos trazer, a que serve, mas, ao mesmo tempo, o que não se pode dela exigir, nem es-perar. De fato, o meu propósito é elaborar uma teoria crítica da televisão buscando com-preender o seu papel no espaço ampliado da comunicação.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

Falemos francamente: adoro a televisão, aquilo que ela mobiliza e aprecio osque nela trabalham. E não será possível agradecer aqui a todos aqueles que conheci, al-guns dos quais se tornaram meus amigos. Contudo, gostaria de mencionar muito par-ticularmente o nome de Jean-Pierre Elkabbach, que foi o primeiro a nos abrir as portasda Antenne 2 quando era seu diretor de informações, em 1978, e a nos facilitar a en-trada nesse universo, ao fim das contas caloroso, que evocamos em La folie du logisaofalarde "redoma"... Martine Allain-Regnault, Paul Amar, Pierre-Henri Arnstam, BernardBenyamin, Robert Bobert, Paul Ceuzin, François de Closets, Catherine Lamour, JeanLabib, Jean Cazeneuve, Claude Garre, Paul Nahon, Patrick Poivre d'Arvor, ChristineOckrent, Bernard Rapp, Claude Sérillon foram interlocutores freqüentes. Agradeço tam-bém aos dois diretores presidentes gerais da Antenne 2, Maurice Ulrich e ClaudeContamine, assim como a Xavier Larère e a Henri Perez por haverem dado o seu "deacordo" à produção na Antenne 2, e na Télé-image e Simone Harari, de duas séries deprogramas. Uma sobre "'Raymond Aron, lê spectateur engagê', em 1981, a outra so-bre "Jean-Maríe Lustiger, lê choix de Dieif, em 1988. Ambas nos permitiram com-preender por dentro o trabalho da televisão. Quanto ao estudo conduzido em 1985com Pierre Desgraupes, sobre uma cadeia de televisão européia, ele me permitiu mu-dar de estágio e descobrir os temas que viriam a entrar na moda alguns anos mais tarde.

Este trabalho se insere numa perspectiva empírica crítica que já afirmei muitasvezes ser menos desenvolvida na França do que no estrangeiro e cujas figuras intelec-tuais mais marcantes são L. Bogard, G. J. Blumler, E. Katz, J. P. Klapper, H. Lasswell,P. Lazardfeld, D. Mac Quail.

Agradeço igualmente aos meus colegas Jean-Marie Charon, Daniel Dayan, Jean-Marc Ferry, Isabelle Veyrat-Masson, Jacques Semelin, Yves Winkin por suas leituras domanuscrito. Por último, agradeço a Nadine Dardenne, sem a qual o manuscrito sim-plesmente não teria sido concluído na data marcada.

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IntroduçãoA televisão, ou o desejo de não saber

Poucas atividades tão amplamente utilizadas têm sido, há tanto tempo, objetode uma tal preguiça intelectual, de um tal conformismo crítico e, por último, de umatal submissão às modas de momento. A televisão é, portanto, um dos símbolos mais e_SL

_jetaailares-da-demoGraGia-dejnass.a_e constitui. sejnjlúvida._uma das razões detestarinvestida de todas as esperariças,,jem_g_er capaz de satisfazêjas,.

Televisão sempre frustrante e decepcionante... Por isso continuamos anos servirdela sem estarmos satisfeitos e sem querer verdadeiramente conhecê-la, pois ela con-tinua a ser companheira das nossas solidões, testemunha de nossa vida cotidiana,memória do tempo imóvel. A televisão ou o objeto mal amado da nossa "sociedade in-dividualista de massa", da qual nos protegemos emitindo a seu respeito uns bons e ve-lhos estereótipos, deixando sempre para amanhã uma análise mais razoável. Ela temtudo contra si. Ser popular, mas escapar tanto daqueles que a fazem, como daquelesque a controlam e daqueles que a assistem.séculos subestimada no pensamentQ-ücidental. despertar a identificação e legitimar onarcisisrj^Jaz£LsJ3nhar_^_fazer_egquecer, sem jamais deixar vestíggj,_ajjmagensjd_eum dia que se desfazem diante_^asJmageiiSJÍP--ainanM. Em resumo. aJeleyMgjaão éumj)bielo_nQbie..-È-anibieiLte_de discursos convejicj:onais.jdejcli.chês,.,A-teleyisãO-0.iL opreço míniino dasjdéias.

Tal é a impressão dominante que se forma para um pesquisador que, como eu,a estuda há mais de dez anos. Qual outra atividade cultural e social mobiliza tantaspaixões, tão pouca reflexão e tantos lugares-comuns sobre o seu poder, a sua influên-cia, a burrice do seu público, a passividade do espectador, a alienação da imagem? E,no entanto, há mais de trinta anos, os estudos, as pesquisas sobre todos esses aspectosfornecem respostas, em última análise, matizadas e modestas. Mas quem está interes-sado em modéstia e matiz quando se trata da televisão, ou seja, do maior projetor quetemos voltado sobre nós mesmos?

Como caracterizar o contexto atual? Pelo bale ideológico entre a televisão públi-ca e a televisão privada. O mal de ontem, a televisão privada, tornou-se o bem de hoje

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

e vice-versa: vilipendiamos a televisão pública, identificada como controle político esinônimo de arcaísmo... Depois de haver sido envolvida por um discurso bastante críti-co, a televisão se vê hoje objeto de dois discursos eufóricos e, no fim das contas, tãoideológicos quanto o de ontem: o discurso técnico que não pára de prometer revoluçõese mudanças, e para o qual a televisão geralista é uma sobrevivência do passado; e o dis-curso econômico para o qual o mercado continua a ser o melhor princípio de regu-lagem. É mais ou menos como se a televisão pública tivesse sido "necessária" no começoe inútil hoje em dia.

Um conformismo persegue o outro. Ontem, a televisão era considerada comoum meio de influência política direta, hoje, achamos que ela deve, simplesmente, serdeixada nas "mãos invisíveis" do mercado. Confundimos assim, alegremente, o fim deuma tutela político-estatal com o fim de uma política de orientação, a rejeição da poli-tização da televisão com o abandono de uma política da televisão.

O objeto deste livro é demonstrar que se a_televisão_continua ..senclo^ geraL-m^ntejam^j^r^pejT^o^xiste espaço para um discursojeóriço-crítico quejDer-mita suplantar j)s_dojs_modêl0s-e-xistentes, o modelo liberal norte-americano e o mo-delo^ejtatal eurQpeu._Mas como os dois estão mais ou menos em crise, temos a im-pressão de que não há mais uma linha diretriz para orientar as quatro grandes trans-formações em curso: a mudança de técnica com uma multiplicação e diversificação doscanais, a mudança política com a privatização e o desvinculamento do Estado, a mu-dança econômica com a constituição de grandes grupos, a mudança de público queexige, mais e mais, imagens.

O que é fundamentalmente a televisão? Imagens e laço social. Odiverümentoe o espetáculo remetem à imagem, isà comunicação, isto é, à dimensão social. Tal é a unidade teórica da televisão: asso-ciar duas dimensões, ajécnicaj! a_social, que, como veremos neste livro, estão naorigem de duas grandes ideologias que traduzem, ambas, uma desproporção noacerto de contas das duas dimensões. A ideologia técnica superestima o papel do ins-trumento; a ideologia política, ao contrário, superestima o papel que podemos fazF

lã~de^sempenhar. A história da televisão éTm's!orià"dã alternârKiaJ!jeju^do_a_éppca,defuma oujiejHitra dessas duas ideologias. Essa definição teórica tem a vantagem dedemonstrar o papel essencial desempenhado pela televisão geralista, que melhor as-sume essas duas dimensões, mesmo sendo essa forma de televisão considerada, ho-je, ultrapassada. '

Qual o desafio daj^pe£üyj_d^jm^j:ejeyM^^uma dimensão social e umajécnica? Saber se ela continuará sendo essa mídia geralistadestinada a todos os públicos, assumindo, portanto, o papel fundamental de laço social

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- INTRODUÇÃO -

numa sociedade de sojidões organizadas, ou então se ela se transformará numajele-vfeãojragmentada, ao sabor das diferentes demandas de públicos abonados, oferecen-do a cada um aquilo que ele deseja, mas apenas aquilo que ele deseja. O reino da de-manda contra o da oferta. O indivíduo ou o público, essa é a escolha. A televisão con-tinuará a ser uma mídia geralista ou se tomará uma mídia segmentada?

Minha preferência pela televisão geralista tem duas conseqüências impor-tantes. Inicialmente, xpjgssar uma-conflaaça-naJelevisão e no julgamento dos públi-cos. quando os _dois são muito freqüentemente e muito simplistamente desvaloriza-jdos. Em seguida, demonstrar que, uma vez que é incapaz de satisfazer a todas as as-pirações, ela não pode ocupar todo o espaço da comunicação. Ela deixa, assim, muitolugar para outras práticas de comunicação. A televisão geralista e o lugar limitado datelevisão no espaço público caminham, portanto, lado a lado. O grande mistério datelevisão continua sendo essa dualidade irredutível entiejicaráter essencialmente pri-vadg_doj:onsunio de uma atividade ,,que_continua a L ser _fundameritalmente coletiva,tanto_no_glano das condições econômicas,de.sua.pEodução,_quanto no de sua difusão.A televisão é caracterizada pela tensão entre essas duas escalas contraditórias, indi-vidual e coletiva.

Este livro não é, portanto, uma crítica do dia-a-dia da televisão e de seus pro-gramas. É, isto sim, uma tentativa de caracterizar o seu status teórico. Todavia, comocidadão e consumidor, tenho uma percepção da evolução da televisão na Europa, e par-ticularmente na França, que me leva, como a todo mundo, a não estar nada satisfeitocom um sistema audiovisual em que a mulüplicaçã^e^anais,,^gipêito_clas_p_romes-

_sasjiã£aumgntou a diversidade dos programasj_emjue a concorrência^gue devia es-

^Para retornar à questão básica, percebemos muito bem como a cultura e aEuropa, que são hoje apresentadas como os dois grandes terrenos de aventura da tele-visão, ilustram muito bem as duas grandes contradições da televisão. _A_teley]são_cjiL,tural é apresentada como o nieiojiejíyiterjmarginalizac^^cultura_meiiiana. Mas a televisão cultural poderá aproximar a cultura minoritária dacultura mediana, supondo-se que ela devesse fazer isso? E, se ela o conseguir, não es-taria se arriscando, ao fazê-lo, a aumentar o seu poder, quando a questão é mais de li-mitá-lo? No caso da televisão européia, imaginada para acelerar a integração, ela pre-tende negar as diferenças radicais entre identidades e culturas, esperando assim se de-sembaraçar daquela questão de identidades nacionais que será, ao contrário, umacondição essencial da integração européia. O nacionalismo, onternportador_dg_ódio^edeexclusão, torna-se hoje^ao^ontrário, um fator deintegração, e o papel da televisãoé o de destacar essg espaço de identldades_e_de comunicação jnaisdoquejiegájas.

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• ELOGIO DO GRANDE PUBLICO

Este livro privilegia, portanto, uma abordagem sociológica e cultural da tele-visão, buscando compreender o seu papel central e demonstrar que este deve ser com-preendido mais pelo lado da comunicação do que pelo lado do laço social.

Existe na televisão de massa, a despeito das montanhas de críticas de que é ví-tima, uma grandeza e uma estética insuficientemente percebidas. Talvez pelo fato dese relacionar com aquela classe e aquela cultura medianas que, mesmo constituindo ainfra-estrutura das nossas sociedades, dos nossos valores e do nosso sistema político,ainda não têm a legitimidade e a dignidade que deviam acompanhá-las...

Só mais duas palavras. A primeira diz respeito ao domínio de aplicação dessateoria da televisão. Ela concerne à Europa, aos Estados Unidos, mas, de qualquer for-ma, não se aplica ao Terceiro Mundo. Assim, embora eu não seja de modo algum es-pecialista em Terceiro Mundo, mas por ter visto aí a televisão e tirado algumas con-clusões, parece-me, a priori, que esta tese sobre a televisão, visando privilegiar a di-mensão do laço social e da comunicação nacional, poderá não lhe ser totalmente ina-dequada. Vimos, sobretudo na televisão do "Terceiro Mund^jimfatordeabertura.coisa que de fato existg^massu^sümarric^j^fatoresde desequilíbrios graves que delargsn1ta.ni.Jj. também sãojsjógigas políticas e^depojs. mais e mais, as econômicasfflepredominam, arriscandojlesestabilizar ainda mals.pigQs_]'á^bastante desestabilizados.Parece, portanto, que a televisão deveria, ao menos, debruçar-se tanto sobre o passa-do, sobre os fatores de tradições e iderrtificações coletivas, quanto sobre os fatores deinovação. Esses parâmetros desempenham, em nossos países de cultura antiga, ondea mudança histórica se dá ao longo de mais de um século, um papel suficientementeimportante para que possamos adivinhar o papel ao menos tão capital quanto o quepoderiam desempenhar em países onde tudo se desestabiliza em uma geração. Não é,pois, impossível que uma parte da argumentação referente ao status da televisão nospaíses desenvolvidos aplique-se também alhures.

Uma segunda observação é sobre a relação entre o status teórico do livro eo tom de certas passagens, mais vivo do que é normal nesse tipo de escritos. É pre-ciso que se saiba que este trabalho repousa sobre doze anos de análise da televisão,aos quais integramos os trabalhos precedentes sobre a imprensa escrita e as novas téc-nicas de comunicação, o que explica, talvez, um certo desânimo diante do con-formismo dos políticos, bem como dos tecnocratas, dos intelectuais e, agora, dos em-presários da comunicação. Todos sucessiva e simultaneamente sabem peremptoria-mente tudo sobre tudo. Sem dúvida. Trata-se provavelmente da consciência da de-fasagem entre a importância dos desafios sociais — e sobretudo culturais — ligadosà televisão e o conteúdo das análises mais freqüentemente desenvolvidas que expli-ca o tom de certas passagens, tom derrogatório ao estilo acadêmico do meu meio

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L_

- INTRODUÇÃO -

profissional. Como para despertar o leitor, sacudir um pouco as consciências tran-qüilas e tentar se fazer entender num fluxo ininterrupto de discursos sobre "a co-municação".

Dezenas de citações poderiam ter sido acrescentadas a este texto: elas não fa-riam senão tornar pesada a leitura, uma vez que o objetivo deste livro não é o de re-censear todos os discursos sobre a televisão, mas fazer uma análise crítica das princi-pais estruturas de argumentação a seu propósito e construir uma tppria crítica guejgrivilegie a dimensão geralista._ — -- • —O caráter da televisão

j) caráter da televisão? Reunir indivíduos e públicos que tudo tende ade uma atividade

coletiva. J aalianayjgmjjarJlaQ^ faz dessa téc-nicamna aüyjdade cojistLtutiYa da .sociedade contemporânea.

Outro elemento capital: o_espectador é o mesmo indivíduo que o cidadão, oque implica atribuir-lhe_^j^e.smas^qualldad^_Se_jCjgdjta.mos que o público da tele-visão é influenciável e manipulávd.jLBrj£iso-adrMtii^^^ o é. Ouque a aposta da democracia é que, a despeito de consideráveis desigualdades sociocul-turais, de prodigiosas diferenças entre as aspirações coletivas e individuais, o cidadãopode ser a fonte da legitimidade democrática. A mesma aposta se encontra na origemda televisão geralista: a despeito de tudo aquilo que separa uns dos/outros, existe, nosprogramas oferecidos, a possibilidade de participar de uma forma de comunicação co-letiva. A teleyjsão_é,_alémjdisso,-a üniga_atividade que, ao lado do voto, reúne uma talpartic^ação_co^tiva. Mas,_ap_contrário do voto, ela ocorre várias vezes por semana.Nisso é que a inte]igên_da_dg_i£pj^ aocidadão.

Esconder-se por trás dos "bons" resultados de "maus" programas só compro-va uma coisa que sempre soubemos: é mais fácil jogar os cidadãos e espectadores parabaixo do que para cima. E se o público assiste a maus programas não é tanto porquegosta deles, e sim porque eles lhes são oferecidos. Os maus programas dizem menos so-bre o público do que sobre a representação que se fazem aqueles que os produzem edifundem. Em resumo, digam-me quais os programas_as.si§tídQs_e_eu lhes_direi qual_aconcepção de público gue existe na cabeça dos que os produziram^

Por tudo isso, a pesquisa de audiência avalia menos a demanda do que a reaçãoà oferta. Por tudo isso, a-televisão torna-se indissociável da democracia de massa e re-pousa sobre a mesma aposta: resjejtai^jndjv^u^_£roy^a££idadão, isto é, &OJ&pectadojJ_osJ3i£ios-de-compr.e.endeL.o,m^undomemmqüe-ele-we, Por tudo isso, a tele-

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ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO

visão é em nossas sociedades uma questão tão importante quanto a educação, a saúdeou a defesa. Por tudo isso é que eké urna das grandes conquistas da democracia.

Mas como cada um a consome individualmente e principalmente para se dis-trair, ela é muito menos prestigiada do que as outras funções coletivas! E, no entanto,ela é ao menos tão importante quanto essas funções, mesmo que as elites não lheatribuam a legitimidade que merece. As elites a esnobaram porque acreditaram, er-roneamente, ver nela uma ameaça, ao mesmo tempo que um instrumento indispen-sável para atender ao objetivo perseguido de outras maneiras por essas mesmas elites:elevar o nível cultural das populações. Seu sucesso popular acabou por desvalorizá-ladiante dessas mesmas elites...

{ A questão fundamental é: para que serve a televisão a um indivíduo que nãoé jamais passivo diante da imagem e que não retém senão aquilo que quer reter? Elaserve para se conversar. A televisão é um formidável instrumento de comunicação en-

, tre os indivíduos. O mais importante não é o que se vê, mas o fato de se falar sobre is-' so^Atelevisão é um objeto de conversação.\Falamos entre nós e depois fora de casa.

Nisso é quTèla é mnlã^stnrf^ridispeTTsavel numa sociedade onde os indivíduos fi-cam freqüentemente isolados e, às vezes, solitários. Não foi a televisão que criou asolidão, o êxodo rural, que multiplicou os intermináveis arrabaldes, que destruiu ostecidos locais e desmembrou as famílias. Ela fez foi amortecer os efeitos negativosdessas profundas mutações, oferecendo um novo laço social numa sociedade indivi-dualista de massal Ou seja, na qual é promovida a liberdade individual, mas onde, si-multaneamente, tudo é organizado numa escala de massa. A força da televisão estáno religamento dos níveis da experiência individual e da coletiva. Ela é a única ativi-dade a faze£a ligação igualitária entre ricos e pobres, jovens e velhos, rurais e urbanos,entre os cultos e os menos cultos. Todo mundo assiste à televisão e fala sobre ela. QualoutTã~ItiviaiüFè7Tíõ]e7tãotransversal? e_ ajelevisão não existisse.,, niuita^gente-so-nharia em inventar um instrumento capaz de reunir todos os,püblicos. Isso é o que éa unidade teórica da televisão.

Suajmportância é, portanto, tão grande política quanto socialmente. Alémdisso, é esta segündã~dimensão-quê vai se tornar primordial, uma vez eliminada, nospaíses democráticos, a tentação inútil de um controle político da televisão. Pois todasas maiorias, de esquerda e de direita, vivenciaram ao longo de trinta anos o fato de quenão basta ter a televisão para ganhar uma eleição. O_CMiü^le^sjmagejisjilo_garjjiteo controle das cons.ciências-

Do ponto de vista de uma teoria sociológica, qual é, hoje, o problema essen-cial da televisão? Conservar a tensão entre essas duas dimensões contraditórias, causado seu sucesso: o consumo individual de uma atividade coletiva.

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Qual é o risco? Romper essa dimensão contraditória, abandonar o objetivo co-letivo, não mais interessar senão na dimensão individual. E é aí que aparece o perigode uma má utilização das novas técnicas, Estas, e a abertura do mercado, correm o riscode favorecer a degradação dos canais geralistas em proveito de uma multidão de canaistemáticos com o argumento da "escolha" e da "liberdade individual". O risco não é odesaparecimento das televisões geralistas, mas a queda de sua qualidade, em proveitodo deslocamento dos programas mais interessantes para os canais temáticos. Qual aconseqüência disso? Uma televisão de duas marchas, geralista e pobre de opções paraos públicos populares e uma miríade de programas mais interessantes nas redes temáti-cas. Se o público se dissipa nas mídias do segundo tipo, desaparecem muitas ocasiõesde conversar, pois uns e outros não assistirão à mesma coisa.

A evolução empurra, portanto, para a individualização sempre considerada co-mo um progresso, porém, este é ambíguo no domínio da comunicação, pois o êxito ésempre mais fácil em uma mídia temática do que numa mídia geralista. Todos_os profls-

jiLuit£Lbje^continuajsendo a conquista_do grande júblico. A tal ponto que as mídias temáticas (rá-dio, imprensa, televisão...) que se dão bem têm apenas um objetivo: ampliar o seu âm-bito para ir ao encontro do "grande público". Por que apresentar a satisfação de pe-quenos públicos como melhor do que a conquista do grande público?

Com a fragmentação, tocamos também no papel central da televisão comolaço social. O que restará se cada laço social e cultural se encerrar no consumo dosprogramas que lhe concerne? O que resta de uma atividade de "comunicação" quesupera as diferenças, se a comunicação reproduz a massa folhada das diferenças so-ciais? A liberdade de escolha torna-se aqui o prêmio da indiferença ao outro. Em ou-tras palavras, depois de ter evitado, na Europa, o fim da televisão pública e a falta derumo da desregulamentação, a televisão, essa atividade tão jovem na história da co-municação, vê-se confrontada com um desafio não menos importante: o de resistirao triunfo da fragmentação possibilitada pela técnica e apresentada como um pro-gresso.

O deslumbramento pelas televisões temáticas é um bom exemplo da parca cul-tura teórica no que diz respeito ao status da televisão. Basta aparecerem técnicas quepermitam segmentar a oferta de programas para que isso seja apresentado como umprogresso. Televisão temática, por que não, mas com a condição de que reconheça osseus limites. Ou então, isso quer dizer que a relação entre a finalidade de uma ativi-dade e a técnica se inverteram. Não se trata mais de um projeto ou de uma concepçãoda televisão que utiliza técnicas, mas sim a evolução das técnicas que determina umaconcepção da televisão. No fundo, o deslumbramento pelo mercado e pelas novas téc-

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ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO

nicas de comunicação são sintoma de uma ausência de reflexão teórica sobre o statusda televisão e o seu lugar na sociedade individualista de massa. A televisão continuasendo, em grande parte, um objeto não pensado.

Voltemos à característica essencial da televisão que é a de se colocar na arti-culação entre dois níveis, o individual e o coletivo. Essa posição não corre o risco deprovocar uma certa insatisfação?

Talvez. Mas a frustração e a decepção fazem parte da relação com a televisão.Elas permitem, justamente, apagar instantaneamente as imagens, desligar o aparelho,buscar outras formas de comunicação claramente interpessoais. Pois não é preciso ne-gar que um dos problemas, no futuro, será uma certa tirania da imagem. O melhormeio de limitar esses efeitos não será, talvez, conservar um objetivo para a televisãopara que ela não estenda o seu reino e a sua lógica ao conjunto das situações de co-municação? O tipo de comunicação induzido pela televisão deverá ser aplicado a to-das as situações sociais como constatamos decênio após decênio? A imagem da tele-visão poderá, pela multiplicação de suportes e de programas especializados, vir a setornar onipresente em todos os momentos da vida, em todas as atividades? Conservaruma certa ambição para a televisão não será também saber o limite além do qual sua"passagem perde a validade"?

Quanto mais fácil for segmentar a oferta, mais os mercados se abrirão, mais astécnicas permitirão sintonizar as demandas potenciais e mais a questão de uma reflexãoglobal sobre o papel da televisão numa sociedade irá se impor.

O progresso não consiste em ter cinqüenta canais em casa, nem em se colocardiante de uma parede de imagens, pois não podemos vê-las todas. Quanto mais imagenshá, mais se coloca o problema da sua organização e, portanto, da existência de uma pro-gramação. A abundância de imagens não suprime o interesse de uma programação, massim reforça-a. É disso que se esquece aquele argumento um pouco demagógico de que. "oespectador escolhe o que quer". Sim, o espectador escolhe, mas a partir de uma oferta or-ganizada. O espectador não é o programador. É nisso que a televisão geralista não se vêcondenada pela evolução atual, mas ao contrário. Ela corresponde a uma escolha e a umaconcepção teórica do status da televisão e não a um simples estado das técnicas.

De modo geral, não podemos ao mesmo tempo constatar uma presença cadavez mais forte das imagens, nem nos inquietarmos sobre a "influência" da televisão,sem disso tirar conclusões em matéria de organização. Aí também, ao contrário da idéiadominante, uma visão de conjunto da televisão é, hoje, tão necessária quanto há quarentaanos. Justamente por causa dessa abundância de imagens e de suportes. Além disso, ahipocrisia sobre a liberdade do espectador é um contra-senso sobre a estrutura das nos-sas sociedades.

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- INTRODUÇÃO-

A individualização dos comportamentos é apresentada como o contrapontonecessário à existência de uma sociedade de massa, mas esta, ao contrário da idéiadominante, está menos ameaçada pelo processo de "massificação" do que pelos as-pectos perversos da individualização e da segmentação social. A ameaça se chama, is-so sim, solidão organizada, egoísmo institucionalizado e narcisismo rotulado. Torna-se essencial conceber atividades que permitam atingir "os dois objetivos", a dimen-são individual e a coletiva. A televisão contribuiu para isso, sobretudo na sua formageralista. Por quê? Porque ela não nos obriga a nos interessarmos por aquilo que in-teressa aos outros, mas, no mínimo, a reconhecermos a sua legitimidade. E reconhecero lugar do outro não é já um primeiro passo de socialização? A coexistência de pro-gramas no seio de um canal é uma das imagens da coexistência social. A televisão nãopode garantir sozinha uma socialização de que carecemos, mas a sua presença podecontribuir para reduzir certos aspectos negativos. Os programas de televisão são, paramilhões de espectadores, a única aventura da semana e, para milhões de indivíduos,ela é a única luz em casa. No sentido literal e no figurado. Isso cria obrigações que vãoalém das regras do mercado e do fascínio pelas técnicas. Se não, as dimensões positi-vas da televisão — oferecer uma comunicação na escala das nossas sociedades, seruma janela aberta para o mundo, ser o principal meio de informação e divertimentodo grande público, oferecer um laço social e um fator de identidade nacional nummundo cada vez mais aberto — correm o risco de se esfacelar.

Há muito tempo faltam à televisão as ambições teóricas. Se não emergir naEuropa uma certa exigência em relação a isso, nada garante que essas dimensões po-sitivas sobrevivam. Não se pode mais ficar preso ao instrumento, mas sim aos respon-sáveis que, perdidos na contemplação de suas imagens, ainda não compreenderam quea televisão é mais importante do que eles.

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PRIMEIRAPARTE

A televisão: um objetonão pensado

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A televisão entre as paixões, a política e as modas

A televisão permanece, meio século depois de seu apareci-mento, um objeto não pensado. Ou talvez um objeto pensado, masem vão. Persistem os mesmos discursos, apesar de um número con-siderável de trabalhos empíricos realizados na América do Norte ena Europa: eles, ao fim das contas, não conseguiram pôr abaixo amuralha de estereótipos, de idéias prévias e meias verdades. Mesmoassim, sabemos um pouco mais sobre o papel da televisão, sua in-serção nas diferentes culturas, seus modos de funcionamento, suasrelações com o poder político, sua programação, sua audiência, ostatus dos seus jornalistas, sua influência... Ora, esses trabalhos ja-mais tiveram ressonância comparável àqueles que tratam de outrosdomínios como a economia, a política, a saúde, a educação...

Por quê? Simplesmente porque a televisão, por seu própriostatus, suscita fantasmas de poder relacionados com o fato de queas mesmas imagens são recebidas por todo o mundo. A complexi-dade da televisão, inerente a seu status de meio de massa, foireforçada por seu imenso sucesso popular, o que acentuou ostemores existentes em torno dela e que os trabalhos empíricos nãoconseguiram abordar. Aos fantasmas veiculados pelo discurso co-mum e à desconfiança dos políticos, acrescentou-se o discursobastante crítico dos intelectuais. Estes viram na televisão um instrumento de estandardização e de homogeneização culturais, deisolamento dos cidadãos num consumo solitário e passivo e o triun-fo das indústrias culturais. "~

A televisão viu-se então imobilizada, no curso de sua brevehistória, entre um sucesso incontestável e uma reticência, para di-zer o mínimo, das elites políticas encarregadas de definir o seumodo de funcionamento e os intelectuais encarregados de analisaro impacto desse instrumento incômodo na cultura de massa. É, semdúvida, essa mistura de paixões, de decepções e de ciúme que ex-plica esse tipo de imobilismo na reflexão e a grande dificuldade defazer surgir um discurso empírico crítico que escape a esse círculoinfernal. E essa ausência de cultura, de conhecimento, tem por con-seqüência dar crédito, a príorí, a todos os discursos críticos. Quantomais radical o discurso, mais verdadeiro é!

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

Esse caráter bastante crítico dos discursos não favoreceuuma adaptação progressiva da televisão e acabou conduzindo à in-versão completa das análises. O modelo da televisão pública de cer-ta forma se esfacelou, se desvitalizou, para não dizer que seanulou de todo, em proveito de um deslumbramento angélico pelatelevisão privada, subitamente investida de todos os encantos per-didos pela televisão pública. O mesmo movimento ocorreu tambémnos discursos elaborados sobre a televisão. Os políticos, tanto de di-reita quanto de esquerda, ontem concordes em sustentar a televisãopública, tornaram-se partidários de um regime em que a televisãoprivada é hoje majoritária e venerada. Quanto aos intelectuais, críti-cos, em sua maioria esmagadora, ei-los também seduzidos pela aven-tura da televisão privada. Os mesmos, ou quase, que ontem gri-tavam contra a intolerável invasão dos grupos de comunicação, nocaso americanos, são os primeiros a reclamar a constituição degrandes grupos de comunicação, desta vez europeus, "para resistiraos americanos e japoneses".

O anulamento progressivo do discurso sobre as vantagensda televisão pública juntou-se ao anulamento de um certo discursode esquerda, como pudemos constatar de maneira espetacular naFrança, no decênio de 1980 a 1990. Provavelmente, o drama datelevisão pública provém da sua identificação com um certo es-quema de esquerda — vigente entre 1950 a 1970, mas que deixoude ser verdadeiro depois disso. O risco de vê-la desaparecer comesse discurso, portanto, é grande, mesmo que aquilo que ela re-presenta vá bem além de uma clivagem política esquerda-direita. Oresultado, em todo caso, é o triunfo de uma ideologia empírica aofim da qual a televisão se transforma num faroeste moderno, ondeaqueles que atiram primeiro ganham a partida.

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Do monopólio da televisãopública ao triunfo da

televisão privada

O domínio, o desgaste e odeclínio do modelo da televisão pública

As idéias e as políticas relativas à televisão mudaram tanto, que temos dificul-dade em nos situar novamente no contexto ainda recente da década de 1950, que as-sistiu ao nascimento da televisão na Europa. É preciso, portanto, partir daí para com-preender o modelo original da televisão pública e a permanência da sua legitimidadeaté o decênio de 1980, quando a televisão privada, por longo tempo recusada, acabouse impondo. A história da televisão na Europa deveria, portanto, ser retomada à luzdessa oposição surda, mas bem real, que muito cedo colocou em oposição os dois mo-delos. Por outro lado, essa história deveria ser, num primeiro momento, construída enão retomada, porque não existe história da televisão na Europa. Na França, pelo menos,ela não existe: abundam livros de memórias, às vezes de fotos e obras sobre este ouaquele período, mas uma história sintética da aventura da televisão ainda não foi feita,desde a sua invenção, em 1935, por Barthélémy, até o seu extraordinário desenvolvi-mento cinqüenta anos depois.

A televisão pública na Europa origina-se, provavelmente, de três idéias do pós-guerra. De início, o temor suscitado pela nova mídia, ainda mais inquietante do que orádio, porque transmitia a imagem. Todo o mundo ainda tinha em mente, na época, autilização que fizeram do rádio os fascistas alemães e italianos, sem esquecer os ecosdistantes, vindos da América Latina, de sua utilização no Brasil por Getúlio Vargas e,sobretudo, na Argentina, por Perón. As mídias de massa eram, por isso, consideradasperigosas e deviam, portanto, ser controladas pelo poder público. Em seguida, houveuma espécie de relação negativa instintiva contra o modelo de organização privada datelevisão americana, que havia se desenvolvido muito durante a guerra. A "naciona-lização" da televisão era ainda mais justificada que a do rádio para se escapar aosdemônios do lucro. Por último, vem a idéia, difundida entre os primeiros profissionaisda televisão, políticos, intelectuais e elite culta em geral, de que a televisão, bem uti-

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

lizada, poderia ser um fantástico instrumento de democratização cultural. Nem todosos países reagiram da mesma maneira diante da "ameaça da comunicação". Se a França,assim como a Itália e a Bélgica, escolheram a lógica administrativa, política, centra-lizadora, a Alemanha Ocidental preferiu uma estrutura pública descentralizada.Enquanto os países latinos confiavam no Estado para garantir o bem público e a "inde-pendência" da televisão, a Grã-Bretanha e, sobretudo, a Alemanha, que acabava de ex-perimentar os piores excessos cometidos em nome do Estado, tiveram uma atitudemenos estatal1.

Essas atitudes também exprimem bastante bem a mistura de temor e fascinaçãoexercidos por uma nova mídia que todos sentem, intuitivamente, que será mais difícilde gerir do que o rádio. É, portanto, de um modo público, com a recusa da televisãoprivada, que se organizam as televisões na Europa, tanto na Grã-Bretanha, na AlemanhaOcidental, na França, como na Itália ou na Escandinávia.

A única discordância, no final da década de 1950, é a televisão regional. Se osingleses, alemães, belgas e, particularmente, os holandeses e italianos a experimentam,os franceses, por todas as razões conhecidas de uma tradição centralizadora, a ela seopõem. Mas o início da televisão regional nos diferentes países não modifica funda-mentalmente o equilíbrio geral. Este, na realidade, não será afetado senão pela decisãomuito precoce da Grã-Bretanha, de abrir uma televisão privada em 1954: o assunto jáé, em termos gerais, um pomo da discórdia.

Pode-se dizer que, a partir de 1955, existem na Europa dois modelos de organi-zação da televisão, dos quais ainda hoje vemos os vestígios: um modelo inglês, durantemuito tempo solitário, de coexistência relativamente equilibrada entre dois canais públi-cos e dois canais privados, e um modelo continental de televisão pública, do qual sãoexemplares a televisão francesa, numa versão de tradição pública centralizada, através dacriação da Rádio Televisão da França [RTF — Radio e Télévision de France] (1946), de-pois do Departamento de Radiodifusão Televisão Francesa [ORTF — Office deRadiodiffusion Télévision Française] (1964), ou a Associação das Emissoras daAlemanha/Segunda Televisão Alemã [ARD/ZDF — Allgeimeine RundfunkanstaltenDeutschlands/Zweites Deutsches Fernsehen] como modelo público descentralizado, oua Rádio Audição Italiana [RAI — Radio Auditione Italiana] como outro modelo de tipopúblico.

Os ingleses são considerados, na época, como originais e facilmente acusadosde terem se "vendido" aos seus primos privatizantes dos Estados Unidos, mesmo quetoda a tradição da televisão britânica, pública ou privada, para quem estiver disposto afazer o esforço da viagem, é, ao contrário, invenção e perpetuação de um modelo queprovavelmente continua sendo, até hoje, isto é, antes da imposição da Sra. Thatcher de

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- DO MONOPÓLIO DA TELEVISÃO PÚBLICA AO TRIUNFO DA TELEVISÃO PRIVADA -

quase desmantelamento da Companhia Britânica de Radiodifusão [BBC — BritishBroadcasting Corporation] e da Agência Independente de Radiodifusão [IBA —Indèpendent Broadcasting Agency], a melhor televisão do mundo. Fora a concepção in-glesa, o modelo dominante é o1 da televisão pública mais ou menos estatal ou descen-tralizada, modelo que, nas décadas de 1950 e 1960, não deixa de ter a sua grandezapor ser fruto de um projeto e de um certo entusiasmo.

No início da década de 1990, a história da televisão na Europa pode ser divi-dida em três épocas:

1950-1970: A dominação do modelo de televisão de serviço público

No princípio, é a era dos pioneiros. Eles inventam no dia-a-dia aquilo que viráa ser o primeiro instrumento de divertimento popular2. A ideologia de serviço públicoconsiste em fazer programas educativos e populares. O rápido sucesso da televisão nãopermitirá distinguir aquilo que era verdadeiramente desejado por essa orientação daqui-lo que revelava o sucesso da televisão propriamente dita. Em todo caso, esse primeirodecênio continua sendo a época de referência, nostalgicamente aureolada de todas asqualidades, à medida que a lembrança se distancia e que a extraordinária expansão doaudiovisual faz com que vá perdendo a sua unidade de origem.

Mas muito cedo a questão do controle político, sobretudo na França, veioobscurecer o entusiasmo e os projetos dos fundadores. O conflito "geômetra-saltim-banco" instala-se e resolve-se rapidamente em favor dos primeiros, na medida do suces-so da televisão controlada pelo poder político. É preciso lembrar que, na época, ninguémchocou-se com esse controle, achando normal que a nomeação dos dirigentes à frenteda televisão e da informação tivesse um caráter político3. O "controle" político eraainda o melhor meio para enquadrar um instrumento cujo sucesso, no mínimo, era in-trigante. Uma vez que o público, evidentemente, não tinha autonomia, e tampouco eraconsiderado adulto, cada um se proclamava o seu porta-voz.

A desconfiança acerca da televisão, e mais precisamente a dificuldade de se for-mar uma opinião sobre o que ela devia ser, ressurgiu quando, no decênio de 1960, per-guntou-se se havia necessidade de um segundo canal e em que prazo. Com exceção daGrã-Bretanha, o calendário de criação de um segundo canal de televisão pública, e atéde um terceiro canal, nos diferentes países europeus, mostra a prudência e a lentidãocom que se respondeu à demanda (na França, o segundo canal surgiu em 1964 e, em1971,o terceiro).

A hostilidade contra o "dinheiro corruptor" manifestou-se também na recusageneralizada da publicidade comercial. Os debates foram particularmente longos e tem-

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pestuosos, porquanto a publicidade não foi introduzida na França senão em 1968. Aindahoje, a BBC, por exemplo, segundo as conclusões do relatório Peacock (1988), não in-troduziu a publicidade e esta não existe também em numerosas televisões públicas donorte da Europa.

Por que evocar aqui as dificuldades de criação dos dois canais públicos, a hos-tilidade à publicidade e à televisão privada? Para lembrar qual era o contexto intelec-tual no qual a maior parte dos que tomavam decisões, mas também dos profissionaise de uma parte do público via, na época, "a questão da televisão"; e para mostrar as-sim com que rapidez, até mesmo com que brutalidade, evoluirão as idéias e as práti-cas no decênio de 1980.

1970-1980: O confronto dos dois modelos

Esse período é essencial para a reflexão sobre a história da televisão na Europa,visto que ele terminará com uma completa inversão dos espíritos: a televisão priva-da, até o presente unanimemente recusada, parecerá irresistível, e mesmo desejável.Por que essa inversão? Principalmente devido ao desgaste do modelo de televisãopública proporcionalmente ao seu sucesso. Talvez seja esse o ponto essencial: o suces-so quase incontrolável feito por um público que demandava mais e mais imagens. Opúblico não contestava a televisão pública, até a apreciava, e queria somente maisimagens à medida que aumentava o número de aparelhos vendidos4. Não foi senãomais tarde, diante da reticência da televisão pública em se abrir e renovar-se, que opúblico, a princípio bastante fiel, começou a sonhar com o fruto proibido. A conse-qüência foi um enrijecimento ainda maior do controle político sobre a televisão e atransformação do discurso sobre a televisão de serviço público numa retórica vazia,desligada do real.

De certa maneira, o sucesso da televisão criou um divórcio entre o público eas elites políticas e culturais. De fato, a realidade desse sucesso não suscitou senão críti-cas nas elites e desconfiança entre os políticos, pouco à vontade diante de uma mídiaque lhes escapava, no momento em que as promessas tecnológicas não cessavam —embora os prazos fossem sistematicamente falsos — de prometer um radiante futuromultimídia.

Essas possibilidades técnicas forneceram um alicerce aos sonhos de multipli-cação de canais. O discurso hostil dos partidários da televisão pública começou a pare-cer ultrapassado. "O imperialismo cultural americano" dava menos medo, suscitavamesmo o desejo "de ver", se julgarmos pelo sucesso imediato dos seriados americanos.Que ninguém se esqueça dos debates sem fim gerados pelo sucesso da série Dallasl O

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surgimento e o sucesso dos aparelhos de videocassete acentuou também o desejo deliberdade. A idéia de questionar a televisão de serviço público parecia menos icono-clasta, enquanto o poder político, atrasado diante da evolução das mentalidades, con-fundia cada vez mais televisão pública e televisão política. Ele se opunha, por exem-plo, de maneira caricatural, na França, às experiências das televisões regionais e co-munitárias, a ponto de, na década de 1980, a idéia de rádio e televisão "livres" sig-nificarem exatamente rádio e televisão privados — e não públicos! O Estado tinha tan-to medo da televisão comunitária que os projetos mais modestos pareciam "es-querdistas", afundavam nas exigências de autorizações, nas reticências administrati-vas, na resistência das imprensas regionais, na delonga dos resultados... Essa aütudegrotesca da França coloca em evidência o que, de maneira menos visível, ocorreu emoutros países.

No final da década de 1970, os grupos de comunicação se reforçaram eaproveitaram o abandono do monopólio de produção para tentar o audiovisual que,num primeiro momento, foi um abismo financeiro! Os espíritos hesitavam ainda, naépoca, entre uma modernização sustentada do serviço público e a aceitação do ine-lutável, a televisão pública. Nesse período, a atitude dos profissionais foi, provavel-mente, determinante. Favoráveis, em seu conjunto, à televisão pública, eles não sou-beram desenvolver um discurso autônomo, nem mostrar o que poderia ser uma mo-dernização da televisão pública, acabando por abandonar o discurso sobre o serviçopúblico ao monopólio dos sindicatos. Estes, então, misturaram mais e mais uma ideo-logia burocrática e igualitária, própria ao sindicalismo de todo o serviço público, comuma defesa mais argumentada do serviço público audiovisual.

Na realidade, a televisão pública sufocou-se porque foi incapaz de renovar opessoal, as equipes, os projetos e as produções. Na realidade, a responsabilidade por taiscoisas é dos poderes públicos e dirigentes: dos poderes políticos, porque quando o as-sunto naturalmente "esquentou", sobretudo depois de 1968, praticaram em todo o paísuma resistência passiva. Os dirigentes inteiramente ocupados "em controlar a televisão"ou em esgrimir contra os saltimbancos, não favoreceram a abertura da "redoma" queos profissionais contribuíram também grandemente para manter fechada.

A televisão pública foi então identificada com a politização e com a burocraciasindical; tornou-se um objeto permanente de antagonismos e polêmicas de igual má-féentre a esquerda e a direita, dando a sensação de que jamais conseguiria se regenerar.O fim do monopólio da televisão pública na Itália (1976-1982) e a explosão das tele-visões privadas tiveram, sem dúvida, o efeito de espantalhos, mas com menor impactodo que poderíamos pensar. Nada mais parecia capaz de se opor à idéia de que a tele-visão privada talvez não fosse o pesadelo por tanto tempo descrito5.

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1980-1990: A troca

É o decênio da inversão, e em quase toda parte a televisão privada se impõe,menos por suas virtudes próprias e mais por causa das repetidas insuficiências da tele-visão pública, que passa então, muito além do que seria necessário, a imitá-la: mesmaobsessão de audiência; mesma redução da diversidade da programação; mesmadiminuição de documentários científicos, culturais e sociais; mesmo aumento da di-mensão de "espetáculo" na política... E isso tudo bem antes de a concorrência consti-tuir uma ameaça e, por vezes, muito além daquilo que seria necessário! Chegamos as-sim a uma espécie de desvitalização do modelo, e mesmo de alienação em relação àtelevisão privada, por tanto tempo combatida. Mais cultura, maior capacidade deproposições dos profissionais, dos políticos, dos pesquisadores, dos centros de estudo,talvez tivessem evitado que essa adaptação se transformasse num alinhamento, numaadesão!

A idéia principal que prevaleceu, então, foi a de "desatrelar a televisão da políti-ca" e do Estado, para tentar "libertá-la". O dinheiro privado surgia como uma garantiamuito maior de liberdade do que o dinheiro público! Essa idéia fundadora, evidente-mente falsa em parte, se impôs no decênio de 1980-90.0 público, saturado de discur-so, e menos amnésico do que pensamos a respeito dos múltiplos exemplos de controlepolítico, reclamou imagens, mais imagens, sempre imagens. Que elas fossem públicasou privadas, pouco lhe importava. E a hostilidade ao modelo público se traduziu por umesquecimento sobre os inconvenientes do dinheiro privado. Os acontecimentos e as crisesse encarregarão de demonstrar que o poder econômico não traz necessariamente maisliberdade do que o poder político, mas, no momento, ainda não chegamos lá.

Os dirigentes continuavam a não ver que a inversão da atitude do públicotraduzia, na verdade, uma maturidade, e, sobretudo, uma reprovação à incapacidadedesses mesmos dirigentes, como também da dos profissionais de televisão, em saberreformar a televisão pública. De certa maneira, depois de trinta anos o público decidiuformar sua própria opinião. Se a televisão pública não merece o desprestígio de que éobjeto desde a década de 1980 e se, ao contrário, existe um certo temor de se ver im-posta a lei da televisão privada, forçoso é reconhecer que o público, exigindo que o jo-go da concorrência lhe permita julgar as partes, não faz senão exercer uma atitude sim-ples e razoável.

Os grupos de comunicação, sentindo a reviravolta progressiva da opinião públi-ca, aproveitaram-se do movimento, não tanto para possibilitar a penetração dos famosos"interesses americanos" — pressuposto que nega sempre às empresas privadas qual-quer identidade nacional — e sim para explorar esse novo terreno de aventura. Istoporque o fascínio da televisão não se limitou exclusivamente apenas aos Estados, aos

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poderes políticos, aos altos funcionários. Ela fascina também os capitães de indústria,convencidos de encontrar nela um instrumento incomparável de influência e promoção,

'i A televisão não podia permanecer como o único domínio da comunicação in-terditado ao capital privado, uma vez que este, de modo geral, domina a imprensa es-crita, a publicidade, o movimento editorial e o rádio. Essa idéia de bom senso, emboraimpensável no decênio de 1970, acabou se impondo. A interdição já havia durado tem-po demais. A inversão foi completa. Aquilo que havia sido rejeitado tornou-se desejá-vel, o que ontem era respeitado e valorizado tornou-se "cafona". A televisão privada setransformava em símbolo de liberdade e progresso!

Tal é o sentido profundo da mutação dos espíritos em relação à televisão pri-vada e pública na Europa nesse decênio de 1980-1990. Ela se deu mais ou menosrapidamente, segundo o país, fornecendo a França e a Itália os atalhos mais surpreen-dentes. Foram, de fato, os socialistas que, em 1984, quebraram o tabu da televisão pri-vada, criando o Canal Plus (1984) depois La Cinq e a TV6 (1985), contrapondo-seassim à direita que convertia-se lentamente à idéia de televisão privada. O consensopolítico que existira na França, assim como em todos os países continentais, entre adireita e a esquerda a favor da televisão pública, ruiu por terra. A direita, retornando aopoder de 1986 a 1988, não pôde senão ampliar o movimento, privatizando a TF1 ecriando a M6( 1986).

Em menos de cinco anos, o equilíbrio completo do sistema audiovisual francêsliteralmente se inverteu. Em 1983, havia somente três canais, todos públicos. Em1988, havia sete, quatro deles privados e um codificado. Falta ainda avaliar essa reali-dade: os quatro canais privados compreendem o primeiro canal em audiência (TF1) eos três públicos compreendem, é claro, o Antenne 2, mas também o FR3, bem maisfraco, e La Sept, o canal cultural, cuja recepção é muito limitada e de destino aindaincerto.

É, portanto, numa autêntica reviravolta que um dos países mais ferrenhos —ao lado da Suécia, da Noruega e da Dinamarca — na defesa da televisão pública, doserviço público e do papel do Estado, multiplicou o número de seus canais, instituindoum sistema em que a televisão pública se tornou minoritária! A ideologia da concor-rência derrotou-a e nós nos confortamos pensando que a maneira como a televisão públi-ca resistia à televisão privada na Bélgica, com a Rádio Televisão Belga Francófona[RTBF/BRT — Radio Télévision Belge Francophone] e na Itália, com a RAI, compro-vava que, de qualquer maneira, a televisão pública tinha recursos.

Uma continuidade dessa grande confusão: a criação de uma instituição regu-ladora (a Haute Autorité de 1983 a 1986, a Comissão Nacional de Comunicações e deLiberdades [CNCL — Commission Nationale dês Communications et dês Libertes] de

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1986 a 1988 e o Conselho Superior do Audiovisual [CSA — Conseil Superieur de1'Audiovisuel] a partir de 1989) encarregada de arbitrar o funcionamento desse novosistema audiovisual, que reforçava em todos a idéia de que a independência da tele-visão não era para amanhã! Ao longo de sete anos, cada mudança decorrente da maio-ria vinha acompanhada de uma nova instituição, naturalmente intangível e autônoma,composta, em sua quase unanimidade e "com total independência" de membros querefletiam a maioria política do momento... Essa idéia unanimemente aceita de criar umlaço de direito entre o Estado e a televisão foi, como sempre num país como a França,que não acredita no Direito, desviada da sua finalidade. A ponto de os excessos reaisconstatados no funcionamento dessa instituição reguladora depois de 1983 fazeremcair no esquecimento, o que ela de fato conseguiu, desacreditando depressa demais esseprincípio decididamente fundamental de que o sistema audiovisual deverá, um dia, serrealmente controlado por um regime de direito.

Por outro lado, os socialistas constituíram, por duas vezes, comissões consul-tivas nacionais: a comissão Moinot, em 1981, e a comissão Tasca, em 1988. Elas de-veriam ajudar o governo a "orientar" a sua política. Nos dois casos, não fizeram nada:as arbitragens políticas e as lutas de gabinete ocuparam o espaço de todo o trabalho in-telectual. Essas comissões serviram, sobretudo, de trampolim para certos profissionaisque ambicionavam nomeações posteriores, feitas também com total independência.Mas em ambos os casos, esse trabalho, inútil, foi devotado — e discretamente — edi-tado pela Documentation Française6, assim como todos os outros relatórios solicitadosao longo de dez anos pelo poder político.

Foi essa súbita adesão à televisão privada sob a égide dos socialistas, e o dese-quilíbrio que se seguiu com prejuízos para a televisão pública, ao menos no que se re-fere aos excessos das três instituições encarregadas de arbitrar o jogo audiovisual, quesurpreenderam, para não dizer chocaram, a maioria dos outros países.

A França ocupava, assim, um lugar essencial no esquema europeu da televisãopública, por isso sua mudança imprevista inquietou países menores como a Holanda, aSuécia, a Noruega, a Dinamarca, a Áustria, que sabem que não terão os meios e ossatélites necessários para se opor por muito tempo à televisão privada, sem, por ora, tera certeza de poder controlar os seus efeitos negativos. Esses países tiveram, além disso,a sensação de terem sido traídos e abandonados, pois internamente a pressão do públi-co é a favor da televisão privada.

Assim é que a Europa, no final da década de 1980, entrou, desordenada e talveztardiamente, numa lógica de concorrência e em condições que não permitem vislum-brar, pelo menos no início do decênio de 1990, a capacidade das televisões públicaspara enfrentarem essa concorrência.

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Essa é a situação hoje, mas as coisas caminham tão depressa no setor da tele-visão que o déficit atual da televisão pública poderá se transformar, possivelmente sobo efeito da concorrência e do despertar de uma geração de profissionais, numa situa-ção vantajosa no fim do decênio. A menos que a televisão pública não tenha, daquiaté lá, praticamente desaparecido, não restando dela, a exemplo da PBS nos EstadosUnidos, senão o vestígio um pouco caricato de uma outra organização da televisão.Em suma, a televisão pública será um traço mnêmico da primeira etapa da história datelevisão!

O contexto atual: bale ideológico, convivência, crise da reflexão

Por que não se satisfazer com o consenso atual? Por que insistir na análise doesfacelamento progressivo do modelo de televisão pública na Europa e na vitória, emproporções impensáveis em 1970, de um sistema audiovisual amplamente dominadopela televisão privada?

Porque, do meu ponto de vista, esse estado de coisas é emblemático do statusda televisão como objeto não pensado. Uma certa recusa de conhecimentos, amanutenção de discursos mais e mais dogmáticos sobre as virtudes da televisão públi-ca, a ausência de renovação na reflexão e na avaliação dos resultados de numerosos es-tudos, a negação da realidade levaram, finalmente, ao esfacelamento de um sistema, osistema público, que continuava a esconder o rosto e a gaguejar as palavras.

O argumento tampouco visa afirmar que se a televisão tivesse sido levada asério desde o começo, se ela tivesse sido objeto de menos paixões e de fascinações pu-ramente políticas, não teria havido privatização, leia-se: criação de um setor privadodominante. O que ele pretende afirmar é que uma tal mudança teria ocorrido de maneiradiferente, talvez com mais debates. Não se trata, portanto, de contestar a idéia de umatelevisão privada — cuja existência defendi muito favoravelmente já em 1983, nummomento em que os socialistas ainda empregavam seus chavões na defesa da televisãopública — mas sim de tomar a maneira como tudo isso ocorreu, na França e em ou-tros países, como sintoma do pouco que se reflete sobre a televisão em geral.

O desafio ultrapassa em muito o fato de saber se é necessário um sistema con-corrente, o que é evidente; trata-se, antes, da proporção que se deve estabelecer entreesses dois setores, assim como as missões a se atribuir à televisão de serviço público, eas orientações mínimas a se impor à televisão privada. Em lugar disso, sofremos sim-plesmente a inversão da relação de forças, sem formular a menor idéia realmente dire-tiva, nem para a televisão privada — além do seu objetivo normal de conquistar au-diência e lucro — nem para a televisão pública — além de um estímulo um pouco

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frouxo e titubeante para se colocar em ação as três missões que continuam fundamen-tais desde a década de 1960, e que envelheceram menos do que gostamos de admitir:informar, distrair, educar.

O percentual entre os dois tipos de televisão e a orientação geral para os sis-temas audiovisuais mistos, dois problemas fundamentais, são tratados com o mesmosilêncio. É um pouco como se chegássemos, também aí, à idéia tão pouco convincentedo "fim da história". Não houve reflexão crítica sobre a televisão privada, além das ob-jeções já conhecidas, nem reflexão sobre o aumento e diversificação da demanda dopúblico, nem sobre o sentido a se atribuir à multiplicação de canais.

O que passamos progressivamente a chamar de "modelo de televisão privada"nada mais foi do que a aplicação bruta de uma regra elementar, em que a demanda re-gula a oferta e o conhecimento dos gostos do público acaba se tornando a única condiçãolevada em conta pela produção. A audiência, graças às técnicas mais e mais sofisticadasde medição, torna-se bíblia política da programação, tanto nas televisões públicas quan-to nas privadas. Em outras palavras, a televisão acabou vítima de três limitações, aeconômica, a de consumo e a tecnológica, sem outra orientação exceto a da simplesadaptação de bom senso.

Quais são as caraterísticas da situação atual na França e em quase todos os paí-ses da Europa? Há cinco fatores principais:

/. Um bale ideológico

Este primeiro fator não levou à emergência de um novo modelo de televisão.A batalha pela criação de uma televisão privada foi tão difícil que todos acreditaram quenela se resumia a questão da televisão. O resultado foi que se diluiu a idéia de umapolítica de orientação, ao mesmo tempo que era contestado o papel do Estado e o dadominação política. Como as três coisas estavam ligadas, todas pareciam pertencer aopassado. O que fizemos então foi "jogar fora o bebê junto com a água do banho", emque o banho era um certo modelo de televisão de serviço público e o bebê, a idéia deuma reflexão sobre os respectivos papéis da televisão privada e pública num espaçocompetitivo.

Em vez de admitir a necessidade de uma outra política de orientação da tele-visão, chegamos à idéia de que se tratava simplesmente de uma "prótese" da boa e ve-lha política da televisão de Estado e não de uma necessidade que se impunha por si atoda a sociedade democrática.

O desejo de se livrar de uma reflexão difícil e incerta — o papel da televisão— possibilitou a instituição do "laisser-faire laisser-passer" como nova regra de condu-

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tá. O modernismo empirista tornou-se a ideologia de base, ao passo que o pragmatismo,as leis do mercado e as promessas sempre renovadas dos prodígios futuros das novastecnologias moldaram o credo de um pensamento enfim adulto sobre o status e o pa-pel da televisão...

Considerar uma simples política de adaptação e as regras elementares que paraisso concorrem como sinal de uma política sofisticada, liberta dos demônios do dirigis-mo, apresenta, evidentemente, a vantagem de não ter de refletir sobre o status e o pa-pel desse objeto tão complexo que é a televisão. A desregulamentação7 seria então aforma rematada de uma política de regulamentação...

Seguir o rumo das coisas, lucrar com as indústrias culturais em plena expan-são, limitar os imperativos "de outra época" tornou-se a lei. Já que nos enganamos tan-to ao desejar orientar a televisão, não será melhor reduzir ao mínimo as limitações edeixar às leis do mercado è ao talento dos profissionais a tarefa de desenhar o perfil datelevisão de amanhã?

2. O consenso do "empirismo modernista"O empirismo modernista postula a vitória do melhor e a ausência de restrições

inúteis. Em resumo, é preciso banalizar a televisão, reduzi-la àquilo que é, ou seja, umespetáculo e uma indústria do espetáculo, que mobiliza os melhores profissionais esabe aproveitar-se das novas possibilidades técnicas, da demanda do público e de umsetor em expansão. E como os grandes canais de televisão privada na França, na Grã-Bretanha, na Bélgica, em Luxemburgo e na Itália não são francamente piores do quemuitas das televisões públicas sonolentas e moralizadoras, por que tentar recomeçaruma guerra superada? Haverá mesmo ainda alguma diferença entre as televisões públi-cas e privadas, que buscam igualmente aquela audiência indispensável na captação deorçamentos publicitários, que ocupam quase o mesmo lugar nas gestões públicas e pri-vadas?

É preciso ser "moderno e empreendedor", inventar a televisão de amanhã eparar de se esconder atrás de "um projeto de televisão" cuja superada sedução tudodeve à nostalgia. Entre o arcaísmo da televisão estatal, muitas vezes politizada, e o jo-go da concorrência aberta, todos parecem preferir o segundo. Isto significa que a mo-dernidade aprova os riscos.

A idéia dominante do modernismo em voga é, portanto, promover uma tele-visão que satisfaça a dois objetivos simples: informação e programas espetaculares, ca-pazes de proporcionar uma boa audiência. A grande maioria dos profissionais e políti-cos pensa que tal objetivo já define muito bem a política da televisão.

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3. A mudança de paradigma: do modelopolítico dominante ao modelo econômico dominante

Para a televisão, o paradigma era político nos dois sentidos da palavra: por umlado, desconfiava-se da influência política e cultural que ela podia ter, por outro, pen-sava-se que a sua importância, enquanto meio de massa, impunha que fosse objeto deuma política de orientação e que escapasse às leis do mercado.

Hoje, o paradigma dominante é econômico, e também nos dois sentidos dapalavra. A televisão não deve mais ser uma atividade de exceção, mas como todas asoutras atividades, inclusive as culturais, deve ser regida pelas leis do mercado, compreços reais, veto aos produtos que não vão ao encontro do público, lucro, recurso àpublicidade, um mínimo de rentabilidade. Nada justifica que a televisão escape da leieconômica geral, pois o passado demonstra que tal comportamento não garantia a me-lhor qualidade dos programas. Ao contrário, a submissão às leis do mercado, comoatesta o sucesso dos seriados americanos pelo mundo afora, não resulta necessariamenteem maus produtos.

Este paradigma também é atividade econômica no segundo sentido da palavra,isto é, a televisão é uma indústria como as outras, cultural, sem dúvida, mas mesmo as-sim indústria, e por isso submetida às leis inerentes ao mercado — fusões, concentração,falências, alianças, conquistas de mercado, como vemos no movimento editorial, na in-dústria do disco, do cinema...

Essa transformação vem acompanhada de uma mudança de tom: de um dis-curso político bastante tímido sobre a televisão, desconfiado mesmo, passamos a umdiscurso otimista, aberto, empreendedor8. Essa mudança de paradigma na Europacorresponde a uma abertura, quase uma "liberação", da qual não vemos, de mo-mento, senão as vantagens e nada dos inconvenientes. O movimento é orquestradopor uma literatura "parda", ligada aos centros de pesquisa públicos e privados, cujacriação é função direta da desregulamentação. As pesquisas acadêmicas jamais tive-ram uma grande influência, porém, as pesquisas ligadas a esse mercado da comuni-cação são naturalmente "legítimas" e ouvidas obsequiosamente em virtude de seuisomorfismo em relação à nova ideologia da racionalidade econômica. Servem aosque mais falam de taxas, de cotas de mercado, audiência... A linguagem do mar-keting invadiu o mundo da televisão com os seus sacerdotes, os seus encarregadosde pesquisas. Essa multiplicação de pesquisas tem uma dupla vantagem: tomar atelevisão um objeto como outro qualquer Q dar a sensação de que é inútil sobrecar-regar-se com grandes questões, sendo o essencial, como em toda atividade econômi-ca, que a coisa progrida!

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Essa abertura se traduz por um fenômeno impensável há apenas dez anos: urnacuriosidade benevolente, ou seja, uma fascinação pelos bales industriais e financeirosde que, mais e mais, a Europa se torna palco. Isso não veio, como ontem se temia, daparte dos gigantes americanos Time, Viacom ou qualquer outro que preocupe, mas dojogo de grupos europeus como a CLT Multimídia S. A.*, Berlusconi, Hersant, DeBenedetti, Bertelsman... Foi mais ou menos como se, depois de quarenta anos de frus-tração, os europeus estivessem, afinal, contentes de poder fazer como "os grandes" econstituir grupos de comunicação multinacionais capazes de estar presentes em dife-rentes países da Europa. Jogar, enfim, na quadra dos grandes e falar de milhões dedólares!... Quanto tempo será necessário para que se perceba os limites do modelo li-beral estrito, os perigos da concentração, cujos prejuízos já podemos ver na Itália, ondeos poderes públicos tentam a duras penas conter os efeitos das participações cruzadasda imprensa, das editoras e da televisão, modelo que colocará em breve para a Françaum problema idêntico? Quanto tempo será necessário para se perceber os efeitos dessaconcentração sobre o controle do mercado da publicidade, para medir os perigos da leido lucro, cuja conseqüência é, inevitavelmente, reduzir as produções que não são lu-crativas?

Ainda não chegamos lá! No momento, se considerarmos o caso da França, ondeo mercado publicitário é muito acanhado para os três canais privados (TFl, La Cinq,M6), todo mundo parece deleitar-se com a aproximação dos grupos privados, mesmoque isso coloque em risco a fusão A2-FR3, já bastante complicada.

Essa conversão ao economismo, para não dizer "economicismo", retoma a ideo-logia geral da construção européia, em que as virtudes insubstituíveis do mercado sãocelebradas todos os dias em plebiscito e até santificadas como sendo, afinal, os únicosvalores de base. E não foi o entusiástico religamento da Europa Oriental à economia demercado, ao longo do ano de 1989, que ameaçou introduzir uma dimensão crítica!

4. A fascinação pelas novas tecnologiasEm vinte anos, a curiosidade pelas novas tecnologias de comunicação (NTC),

cabo, satélite, televisão de alta definição, não parou de crescer. Os engenheiros prome-tem "para amanhã", quer dizer, hoje, uma nova revolução na televisão. Esse movi-mento foi, sem dúvida, reforçado pela crise econômica que abalou o Ocidente a partirde 1973: durante mais de dez anos, as tecnologias de informação foram apresentadascomo o meio de "sair da crise". O economicismo e o tecnicismo se reforçaram, então,

* CLT Multi Média S. A.: grupo de emissoras de rádio, sendo a Rádio Televisão Luxemburgo [RTL — Radio TélévisionLuxemburg] a mais importante. (N.E.)

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graças ao sentimento, clássico na história dos trabalhos de prospecção técnica9, de queamanhã se abrirá uma nova era que não se pode absolutamente frustrar, sob pena deficar ultrapassado, ridículo. "Nada será mais como hoje e é preciso livrar-se dos modosde apreensão da televisão tais como os conhecemos desde o pós-guerra, pois eles cor-respondem à pré-história": esse é o propósito dominante. Essa espécie de urgência domodernismo técnico, que desqualifica todos os outros discursos com o pretexto de queeles "não estão mais na moda", é sempre um procedimento vencedor. Porque o queamamos na prospecção técnica e científica não é que ela prediga realmente o futuro,visto que jamais pesquisamos retrospectivamente a validade ou invalidade das suaspredições, mas sim que ela nos dê, hoje, sentido para o futuro. Ela nos dá garantias so-bre o futuro sempre angustiante, mesmo que aparentemente este devesse ser melhor.Ela é, na realidade, uma empresa de garantias, cujo sucesso recente — uns cinqüentaanos — remete diretamente ao triunfo de uma certa ideologia racionalista.

Em todo caso, no domínio da comunicação e, mais particularmente, da tele-visão, as promessas referentes a serviços futuros são quase ilimitadas, amplificando,por um estrito processo de analogia, as mudanças sofridas pelos domínios das teleco-municações e da informática10. Nesses dois setores, as tecnologias e desempenhos mu-daram, de fato, consideravelmente em quarenta anos, e as promessas para o amanhãapóiam-se em larga medida no raciocínio implícito de que a mesma coisa ocorrerá coma televisão. Isso significa simplesmente esquecer a diferença radical que existe entreas telecomunicações, a informática e o audiovisual, e acreditar que a comunicação pro-porcionada pela informática e pelas telecomunicações é idêntica à proporcionada pelatelevisão".

O interesse da prospecção é de apagar a diferença entre as diversas técnicas decomunicação e de "globalizar" essas mudanças sob o título derrisório, cuja ênfase mas-cara a indigência, de "revolução da comunicação". É exatamente isso a que assistimosna televisão, onde uma espécie de urgência tecnológica se impôs a todos, numa alegreconfusão entre a guerra industrial a ser travada essencialmente contra os americanos ejaponeses, e os problemas colocados pela natureza dos modelos de comunicação ofe-recidos amanhã, seja quem for o vencedor. O sentimento que se impõe é que dentrode dez anos "tudo terá mudado" e que é preciso, a qualquer custo e em passo acelera-do, preparar-se, mexer-se, adaptar-se, projetar-se à frente, fabricar o novo e, sobretudo,não persistir nos esquemas de hoje, e muito menos nos de ontem!

Existe qualquer coisa sufocante, para não dizer angustiante, nesse movimentode antecipação permanente, que lança os atores, já consideravelmente apupadós poruma realidade caótica, num futuro inescapável, ao qual têm de se adaptar sob pena deficarem ultrapassados. Não "estar mais na moda", esse é o temor maior. E existe tanta

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coisa a pensar para amanhã, que o hoje e, mais ainda, o ontem, acabam desqualifica-dos. Ser moderno, esse é o "imperativo categórico"...

Por outro lado, seria preciso se perguntar — mas isto é uma outra história —se, afinal, esses trabalhos de prospecção, que aparentemente têm uma função de tran-qüilizar, não constituem fatores de angústia suplementar, uma vez que o futuro quenos desenham parece implacável, racional e, principalmente, superpoderoso em relaçãoa um presente que a pesquisa desacredita. Segundo ela, é sempre urgente agir, trans-formar, arrancar-se do presente para se projetar num futuro que, mesmo na sua versãoconciliadora, não pode chegar senão depois de uma fase de doloroso parto. Maneirabastante discutível de viver a sua época...

5. A televisão entre o tecnicismo e o economicismoHoje, as duas correntes se reforçam, as perspectivas técnicas, grandes con-

sumidoras de capitais, encontram na abertura do mercado privado da comunicaçãomeios na justa medida da sua expansão. Os desafios técnicos e, sobretudo, o calendárioextremamente curto que estes impõem no tocante à decisão, à mobilização de capitais,à guerra impiedosa em que se empenham a Europa, o Japão e os Estados Unidos, con-ferem, com um só golpe, um ar caduco, perigosamente estéril a todas as reflexões so-bre o status da televisão, à necessidade de uma política de orientação...

Tudo segue na direção do modernismo, um pouco como se o binômio, on-tem antagonista, televisão pública-televisão privada, desse lugar a um outro, destavez mais sinérgico, técnico-econômico. O único problema é saber se essa atividadeeminentemente complexa que é a televisão pode se deixar prender por esse duplodiscurso econômico e tecnicista. O público, num primeiro momento, se beneficia comisso, mas será durável e satisfatório? É como se abandonássemos à lei única do mer-cado toda a política de saúde, de educação, dos transportes, do gerencimento do ter-ritório, do meio ambiente. Tudo isso está, decerto, a ela submetida, mas todos ad-mitem, ainda assim, a necessidade de um mínimo não apenas de regulamentação,mas também de orientação.

Questões como: televisão, para quê? Para qual projeto cultural? Para ocuparqual lugar num processo ampliado da comunicação e da cultura de massa? Estarãodefinitivamente "caducas", demodées, inúteis? Essas perguntas não parecem atuais efoi, evidentemente, para relembrar a sua atualidade que este livro foi escrito, para seopor à ideologia do modernismo empírico dominante e relembrar que a televisão, vin-culada à comunicação humana e social, exige outras ambições e outros projetos, alémdaqueles regidos por uma ideologia puramente econômica e técnica.

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Tais são, em traços rápidos, o que poderíamos chamar de linhas de força, oude fuga, que se definem na Europa. Mas existe um perigo nessa ideologia modernista:não é pelo fato de a televisão ter desenvolvido um papel inconstestavelmente positivona Europa Ocidental — e, por extensão, na Europa Oriental, para os países que a re-cebiam ou que recebiam o rádio — que ela o desempenhará naturalmente no futuro.Não existe uma lei que faça da televisão "por natureza" um instrumento de informaçãoe promoção cultural, como o foi depois da guerra. Se determinadas condições históri-cas lhe permitiram conquistar esse papel, a maior parte delas está, hoje em dia, ultra-passada. A presença de novas possibilidades técnicas, de novos serviços de imagens ede um mercado em plena expansão, não bastam para definir as linhas de força do quedeverá ser amanhã a televisão.

Em outras palavras, a questão é saber se a "liberação" da televisão de todos oslimites de orientação e as perspectivas de um futuro promissor no plano tecnológico, so-cial e financeiro, bastam para garantir o futuro, ou se, levando-se em conta a natureza domeio, a sua importância social e o seu papel no espaço ampliado da comunicação, não sedeveria realizar uma nova pesquisa teórica. Tais são as duas posições do debate hoje.

Notas ao capítulo l

1. Para maiores detalhes sobre os debates ligados à reorganização da impren-sa, consultar a Histoire générale de Ia presse française, 5 t. Paris, PUF. Tomo 3,1972:de 1871 à 1940. 3e partie, P. Albert, "La presse française de 1871 à 1940". Tomo 4,1975: de 1940à 1958.4e parüe, C. Bellanger, "La presse française de Ia IVe republique".Tomo 5, 1976: de 1958 à nos jours. 3e partie, C. Bellanger, "La presse de Ia Ve

republique".2. Os elementos mais sintéticos encontram-se em ALBERT, P. & TUDESQ, A.-J.

Histoire de Ia radio-télévision. Paris, PUF, 1981. (Gol. Que sais-je.) ROUSSEAU, J. &BROCHAIN, Ch. Histoire de Ia télévision française. Paris, Nathan, 1981. MISSIKA, J. L. &WOLTON, D. La folie du logis; Ia télévision dans lês societés démocratiques. Paris,Gallimard, 1983. cap. l, p. 17-78. CLUZEL, J. La télévision aprés sixreformes. Paris, J.C. Lattès, 1988. BOURDON, J. La télévision sous de Gaulle. Paris, INA-Anthropos, 1990.JEANNENEY, J. N. & SAUVAGE, M. Télévision nouvelle mémoire, lês magazines de grandsreportages, 1959-1968. Paris, Seuil-INA, s.d. Para outros países: BRIGGS, A. A historyofbroadcasting in the United Kingdom London, Oxford University Press, 1961,1965,1970,1979. 4 v. DE GOURNAY, Ch.; Musso, P.; PINEAU, G. Télévisions déchamées; Iadéréglementation en Italie, Grande-Bretagne et aux Etats-Unis. Paris,INA/Documentation Française, 1985. RICHARD, R. La RFA et sã télévision. Paris,INA/Champvallon, 1989. Musso, P. & PINEAU, G. L'Italie et sã télévision. Paris,

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DO MONOPÓLIO DA TELEVISÃO PÚBLICA AO TRIUNFO DA TELEVISÃO PRIVADA

INA/Champvallon, 1989. OJALVO, A. La Grande-Bretagne et sã télévision. Paris,INA/Champvallon, 1988.

3. Foi a pressão estrangeira que obrigou a modificar o status da Agência FrancePresse [AFP], tratada durante muito tempo como uma administração cujo diretor eranomeado pelo governo. Consultar a respeito o livro de CHARON, J.-M. La presse au quo-tidien. Paris, Seuil, 1990. cap. 2.

4. Na França, 500 mil aparelhos em 1957, l milhão em 1960, 3 milhões em1963 contra 7,9 milhões de aparelhos na Alemanha Ocidental na mesma época e 12,5milhões na Grã-Bretanha. Hoje, existem 19 milhões de aparelhos de televisão na França,23 milhões na Alemanha Ocidental e 22 milhões na Grã-Bretanha, 17 milhões najtáliae 120 milhões na Europa (contra 85 milhões nos Estados Unidos), mas apenas entre 8e 10 milhões de assinantes de televisão a cabo.

5. Por isso, o fato de tomar o partido que tomamos, em 1983, em favor da tele-visão privada e de um sistema misto, em La folie du logis (op. cit.), foi ainda considera-do na época como uma posição "de direita". As coisas mudaram bastante em sete anos...

6. Cf. "Pour une reforme de l'audiovisuel", Relatório ao Primeiro-Ministro, daComissão de Reflexão e Orientação, presidida por P. Moinot. Paris, DocumentationFrançaise, 1981. "Uavenir du secteur audiovisuel public", Relatório do Governo aoParlamento. Paris, Documentation Française, 1988. Ver também: BREDIN, J.-D. "Lêsnouvelles télévisions hertziennes", Relatório ao Primeiro-Ministro. Paris,Documentation Française, 1985. PÉRICARD, P. "La politique audiovisuelle extérieure deIa France", Relatório ao Primeiro-Ministro. Paris, Documentation Française, 1987.POMONTI, J.-L. "Education et télévision", Relatório ao Ministro de Estado, Ministro daEducação e da Juventude e dos Esportes. Paris, Documentation Française, 1989.DECAUX, A. La politique télévisuelle extérieure de Ia France. Paris, DocumentationFrançaise, 1989. Seria um eufemismo dizer que na França nós adoramos os relatóriosde peritos ou de comissões ou de parlamentares, quase sempre dados a público bastantedemocraticamente, mas que continuam totalmente inúteis...

7. Cf. "La (dé)réglementation de Ia communication", Revista Quaderni, n. 7,primavera 1989.

8. GUILLOU, B. Lês stratégies multimédias dês groupes de communication.Paris, Documentation Française, 1985. LHOEST, H. "Lês multinatioriales de 1'audiovi-suel en Europe", Dossiers de 1'Institut de Recherche et d'Information sur lêsMultinationales, n. 8, Paris, PUF, 1986. BONNELL, R. La vingt-cinquième image, uneéconomie de l'audiovisuel. Paris, Gallimard-Femis, 1989.

9. A forma mais simples de se dar conta dos limites das promessas do discursoprospectivista, que anuncia sempre de maneira peremptória um calendário de mudança

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que se revela falso na maioria dos casos é reportar-se à citação que fazíamos, em 1983,em La folie du logis, p. 242-3, de uma evocação "Dês beaux dimanches de 1980" [Osbelos domingos de 1980], mencionados numa obra de 1967, Lê régne de Ia télévísion,de J. G. Moreau, Seuil: "O senhor Durand se diverte. Com um dedo negligente, ele 'pe-ga' sucessivamente uma partida de baseballem Boston, uma pesca submarina no Taiti,um festival de Mozart em Salzburgo, uma procissão de juncos chineses, o carnaval noRio, uma tourada em Madri e a final da Copa Davis, na Austrália. O mundo parecia-lheridiculamente pequeno. Uma olhada na programação: não, nada previsto para a noitede hoje e ainda não é hora do seu espetáculo favorito: a observação direta dos grandesleões da África, televisionados de noite graças às câmeras sensíveis ao infravermelho".Lembremo-nos também do prestígio e das previsões, por exemplo, do Clube de Roma,há quinze anos, e de todos os trabalhos de prospecção, sobretudo quando são feitos emescala mundial e com um tom no mais das vezes catastrófico. Ou mais simplesmentede obras como a de E. Toppler e outros que são best-sellersmundiais e, a cada dez anos,traçam de maneira impecável a realidade de amanhã.

10. Cf. GARRE, D., dir. "Révolutions, usages dês technologies de 1'information".Revista Autrement, n. 113, Paris, mar. 1990. BRETON, Ph. & PROULX, S. L'explosion deIa communication; naissance d'une nouvelle idéologie. Paris, La Découverte, 1989.Lemoine, Ph. "Lês technologies de l'information — Enjeu stratégique pour Ia moder-nisation économique etsociale", Relatório ao Primeiro-Ministro. Paris, DocumentationFrançaise, 1983. Du CASTEL, F.; CHAMBAT, P.; Musso, P., dir. 1'ordre communicationel;lês nouvelles technologies: enjeus et stratégies. Paris, Documentation Française, 1989.ARTERTON, F. E. Teledemocracy. London, Sage, 1987.

11. Cf. WOLTON, D. "La société de communication?", brochura do Lê Monde,"La révolution dês médias", Lê Monde, 1984. WOLTON, D. et alii. "Paradoxes et limi-tes de Ia communication instrumentale". In: . Une démocratie tech-nologique. Quebec, Université du Quebec, ACFAS, 1983.

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A televisão:um objeto difícil

de analisar

A reflexão sobre a televisão é objeto de um mal-entendido resultante do con-senso atual favorável à televisão privada. Se ele traduz uma mudança na relação deforças entre os dois modelos antagônicos, dá, por outro lado, a sensação de que tal mu-dança foi produto de um debate profundo. O fato de a televisão pública ter-se en-fraquecido hoje não significa que a televisão privada deva a sua vitória de fato a umareflexão mais aprofundada.

Estamos, na realidade, em uma posição intermediária, em que a fragilidade dosconhecimentos sobre a televisão, depois de 40 anos, e a indiferença relativamente aostrabalhos empíricos, deixam aqueles que tomam decisões sem outro referencial que nãoo simples bom senso elevado à condição de maturidade teórica. Se esse empirismo tema vantagem de não vir acompanhado de limitações, também tem o inconveniente de nãoorientar sobre o caráter que pode vir a ter uma televisão num espaço em que um númerocada vez maior de canais é dominado por uma lógica em grande parte econômica.

Por que insistir aqui nessa análise do desmantelamento do modelo de televisãopública e da vitória de Pirro da televisão privada? Não por hostilidade à televisão pri-vada, mas porque existe nesse bale ideológico — e na rapidez com que ele se produ-ziu — uma ilustração da flutuação teórica que caracteriza a televisão, em que o eco-nomicismo e o tecnicismo dominantes substituíram a ideologia política anterior.Curiosamente, esquecemos que há menos de dez anos, qualquer proposta a favor deuma televisão privada era "de direita", assim como toda proposta a favor de uma tele-visão pública era "de esquerda"... Em um decênio as coisas mudaram bastante...

A televisão merece mais que essa virada e a simples substituição de um para-digma majoritariamente favorável ao setor público pelo seu oposto. A despeito do de-sejo bastante generalizado de banalização da televisão, é difícil de lhe atribuir o statusde não importa qual indústria cultural, como quer o discurso liberal. A amplidão e arapidez das mudanças são um convite a um desvio reflexivo, na tentativa de encontraras características principais da televisão.

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Se as teorias jamais foram suficientes para aperfeiçoar o pensamento e o domínioda realidade, somos, ao menos, levados a pensar que a sua ausência, num domínio tãoimportante quanto o da televisão, a exemplo do setor da saúde ou da educação, não égarantia de uma análise mais bem-feita.

Em meio ao desmoronamento do modelo da televisão pública, à ausência deoutro modelo e ao triunfo incerto de um modelo da televisão privada, permanece aquestão: por que a televisão, depois de tanto tempo, não chega a ser um objeto de co-,nhecimentos? Por que os discursos sobre a televisão, quando existem, têm boa acolhi-!da se são radicalmente críticos e maniqueístas, e em grande parte negligenciados, quanjdo são mais matizados?

Este é o problema fundamental: por que uma tal resistência à análise da tele-visão? Há duas causas de naturezas diferentes, que se reforçam, mas que aparentementepodem ser desvinculadas.

As primeiras são as causas "objetivas" ligadas à própria natureza da televisão, ob-" " • " • - • ' - *•«_„

jeto complexo, inapreensível e cuja banalidade é enganadora. Ela faz parte daquelas rea-lidades em que o desejo de não saber é praticamente proporcional à importância cotidia-na de que ela se reveste. As segundas, mais "subjetivas", têm a ver com o modo como,desde a década de 1950, a maior parte dos agentes envolvidos — políticos, profissionais,intelectuais — falaram sobre a televisão. Excetuando-se as diferenças da maneira como ofizeram, o ponto comum foi, muitas vezes, uma perspectiva crítica que permaneceu subs-tancialmente a mesma ao longo de trinta anos, até se transformar no decênio passado.

Uma mídia difícil de apreender e complexa de analisarA televisão não é a única atividade social vitimada por uma certa "preguiça de

análise". Desde sempre, retalhos inteiros da realidade são objeto de uma superinfor-mação e outros de uma subinformação. Falta ainda distinguir informação de conheci-mentos. Existem assuntos que padecem de uma "subinformação", ou seja, a informaçãoa seu respeito fica enclausurada nos meios especializados; há outros assuntos sobre osquais existe uma informação normal, como no caso atual das mídias — mesmo que is-so só venha acontecendo, na maioria dos países, a partir das décadas de 1970 e 1980.

Sabemos, hoje em dia, tudo o que é necessário saber sobre as mídias: o rádio eos jornais esforçam-se sobremaneira para informar. Sabemos, mas não é por isso que de-sejamos conhecer. A resistência ao conhecimento, nesses domínios onde existem tqdasas informações, é, por outro lado, uma das questões mais interessantes para o futuro denossas sociedades "superinformadas", o que nos obriga a admitir duas idéias às. quais so-mos ainda pouco sensíveis: num universo onde a informação tornou-se uma espécie de

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ideologia, não existe informação sem rumor, pois os dois andam de mãos dadas. Quantoà outra idéia, ainda mais banal, mas constatada pela experiência na vida de cada um, elanos faz lembrar de que não existe relação direta entre informação e conhecimento1. Aocontrário do que ingenuamente pensamos, o desejo de saber nem sempre é o valor do-minante! O problema não é, pois, da "informação", mas do desejo de saber. Outrosdomínios também importantes — como o comércio, a cidade, a aposentadoria — sãoigualmente objeto de uma certa preguiça, da mesma forma que, durante muito tempo,o foi, em parte, o meio ambiente, antes de se tornar uma questão política.

O ponto comum entre esses diferentes domínios é que eles pertencem àquiloa que chamamos, em geral, de "maneira de viver". Talvez esteja aí a origem de umaexplicação. É difícil viver, isto é, adaptar-se a um certo contexto e, ao mesmo tempo,distanciar-se suficientemente dele para analisá-lo ininterruptamente. Ajelevisão cabeperfeitamente dentro dessa.definição, pois elapçupaum lugar_determinante-na.vidadecada um, tanto pela informação quanto pelo diveiíimento.quaprQp.QrciQna,_ constituindoassim a principal j,anela,,aberta para um outro mundo, diverso do da vida,cotidiana.«Eispor que. não temosjienhuma^yontadeJeM

O problema não era agudo enquanto houve apenas uma televisão e a oposiçãoentre televisão pública e televisão privada dependiam de uma retórica conhecida e clás-sica. A situação é mais delicada atualmente, pois a difusão da televisão e sua diversifi-cação exigem um esforço de reflexão. É aí que entra a "preguiça" intelectual. Essa di-ficuldade de pensar a televisão éi, tão jMural_p^r^ujj)4eu^mJei.popular e banaLtende

_ justamejitejiexduí^ Sua integraçãonatural à vida cotidiana reforça o sentimento de que é inútil refletir demais sobre ela:su^analidade_éjim. convite, a esquecê-la, mesmo que as mudanças que a acompa-nham constituam, ao contrário, um convite .em si. Atitude reforçada hoje pela multi-plicação de canais, entre os quais o espectador escolhe aquilo que deseja com a sen-sação de exercer efetivamente a sua liberdade.

AjegundjL^culdMe,jesseiicjal,jé o caráter contraditório de um objeto cujoconsumo é e^senciajmente^wâc?o,.mas que traduz uma atividade coletiva:, a televisãonão é apenas o espelho da sociedade, mas ngs^Qbriga, aléjn disso, a nos interessarmospelo mundo exterior. Existe, literalmente, alguma coisa de asfixiante nesse contraste,pois sabemos que estabelecer uma ligação entre esses dois mundos, que pouco têm emcomum, é uma tarefa cotidiana suficientemente complexa para que nos repugne aindamais refletir sobre o que é a televisão!

Seja como for, todos sabem muito bem — como é natural às atividades e ob-jetos cotidianos — que a televisão_não é. unfvoca. Ela é avaliada de maneira diferentepelos indivíduos, segundo os momentos da sua vida. É, ao mesmo tempo, testemunha,

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companhia, lembrança... em resumo, tudo o que está ligado às etapas de uma vida in-dividual e subjetiva, o que convida ainda menos a uma reflexão específica, yjstojjuê,najnaiorparte do tempOj ela funciona como fonte .de.evasão, O carro e as artes domés-ticas, por exemplo, também não constituem objeto de uma reflexão teórica particular2!

A idéia simples e dominante é que, sem dúvida, a escolha entre assistir ou nãotraduz uma opinião, uma análise que se bastam a si mesmas. O assunto parece tão com-plicado, tão cheio de coisas não ditas e de desafios implícitos que o público prefere uti-lizar a sua arma principal, a escolha, julgando no varejo aquilo que lhe propomos.

O contraste entre a televisão, instrumento da vida cotidiana, relógio do tempoimóvel, e, por outro lado, a extraordinária aceleração de que ela é objeto no plano ins-titucional, político, econômico, constitui a terceira contradição. Existe, de fato, mais doque uma defasagem entre o sentimento de que a televisão sempre existiu, parte ine-rente das histórias individuais — o que explica, portanto, a extrema popularidade dasestrelas da telinha que fazem parte das nossas vidas e envelhecem conosco — e essabagunça em plena efervescência que representa o sistema audiovisual onde, a cada seismeses, anuncia-se que, em menos de dez anos, tudo terá mudado...

Existe nesse contraste algo psicologicamente penoso de admitir. A televisão di-ficilmente poderá, ao mesmo tempo, escandir o tempo repetitivo e ritualizado da vidacotidiana e, como os relógios de Alice, indicar também a fugacidade do tempo que pas-sa. Definitivamente^ a^qni^ão^a_rjla_ç|o_eníre_,o .tempo .cotidiano e a televisão é,provavelmente, uma cias .questões mais interessantes e das mais complicadas3.

A coisa não se torna mais simples se nos colocarmos, agora, do ponto de vistadaqueles que fabricam a televisão, e que gostariam muito de conhecer esse público queconstitui hoje um dos sócios mais complexos da televisão. O público é, na verdade, ina-preensível, imprevisível, mas é aí que está, provavelmente — e voltaremos a isso naterceira parte — uma das grandes forças da televisão geralista que é a de nunca saberrealmente quem assiste à televisão, e, sobretudo, por quê. O público é, ao mesmo tem-po, o mistério e o eterno segredo da televisão, como em qualquer forma de espetácu-lo, mas em proporções que chegam quase a mudar a natureza.

Sem dúvida, as pesquisas de audiência, cada vez mais precisas, fornecem hojemuito mais informações do que ontem, mas a questão do público continua intacta, poisela não se deixa capturar, é difusa, móvel e anônima. Ele se desloca pela grade de pro-gramas de maneira sempre surpreendente. A oferta, através da construção da grade,predetermina boa parte da demanda, mas trata-se aí de uma estratégia aleatória que nãodá nenhuma garantia quanto aos resultados. Podemos avaliar quantos espectadores as-sistiram a um determinado programa, mas é muito mais difícil saber quem são eles, emais difícil ainda saber por que assistiram. Mesmo que instrumentos de melhor quali-

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dade pudessem refinar esses dados, eles não seriam suficientes para estabelecer umaprevisão, porque, até o presente, nenhum produtor, nenhum programador pode ante-cipar o volume, a composição, a'qualidade e o comportamento do público. A tarefa éainda mais malfadada quando se trata de um público vasto e quando a heterogeneidadeda oferta encontra, necessariamente, a heterogeneidade da demanda. Portanto, existesempre algo de inapreensível, de difícil delimitação nesse conhecimento do público, eque é uma das peças essenciais do dispositivo da televisão. E é provavelmente por ten-tar "racionalizar" esse conhecimento do público que os projetos de televisão fragmen-tada — quer dizer, os programas adaptados a públicos especializados (esportes, infan-tis, informação, cinema...) — conseguem tamanho sucesso. O público constitui uma

Mas grandes incógnitas da televisão desde o seu princípio, portanto, conhecê-lo melhorpara melhor dominá-lo é um desafio decisivo. A questão do status do público é umadas mais importantes para o futuro da televisão, porque ela catalisa as oposições entreaqueles que pensam que marchamos na direção de uma fragmentação desejável dessegrande público anônimo e heterogêneo, e daqueles que, ao contrário — como eu —,

| pensam que uma das grandes forças da televisão é a própria incerteza desse encontroCentre a oferta e a demanda.

Assim, passamos por duas fases do discurso sobre o público que ilustram a com-plexidade da televisão. Num primeiro momento, não havia ainda discurso: havia "ogrande público", geralmente indiferenciado. Essa concepção homogênea era, provavel-mente, uma condição necessária para o começo da televisão; rapidamente, com a pro-gramação, depois com a multiplicação dos canais, ela desapareceu, e todos reconhece-ram que, se a televisão se dirige ao "grande público", são vários os públicos4 que a as-sistem. A segunda etapa, iniciada, na realidade, depois de vinte anos, marcada pelo pe-so crescente da publicidade e acentuada pelas possibilidades oferecidas pelas novas tec-nologias de comunicação, leva a falar sobretudo de públicos fragmentados, cujos com-portamentos supomos que chegaremos a analisar racionalmente. Esta segunda etapaprefere evitar a encarar a questão de saber o que é o público geralista da televisão.

Enfim, a última complexidade inerente à televisão é que não existem adver-sários para ela. O único adversário são os telespectadores, mas eles se exprimem muitoindiretamente, por intermédio da escolha de programas. Essa ausência de contraposiçãoacentua a dificuldade de análise da atividade em seu conjunto, uma vez que não há "re-torno"5. E quando este ocorre pela via indireta da escolha, ele é difícil de compreender;portanto, a audiência continua a ser, fundamentalmente, objeto de uma medição quan-titativa e não qualitativa. De uma certa maneira, nada existe "após" a difusão, em faceda oferta. O meio profissional e o dos jornalistas têm, claro, uma opinião, mas ela équase sempre diferente da do público6. Trata-se de um ponto de vista técnico, que muitas

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vezes reflete, decerto, uma percepção muito boa do que pode ser a reação do "públi-co", mas que é também misturada com considerações profissionais ou outras que nãosão feitas.

Na realidade, é uma antropoloRia cultural da televisão que deveria7 ainda serempreendida. Ela provavelmente faria justiça a todos aqueles que pleiteiam uma per-cepção um pouco mais elaborada do "objeto televisão" do que aquela veiculada pelosdiscursos publicitários, políticos e críticos. Sobretudo, ela contribuiria para melhor com-preender a riqueza da relação que cada um mantém com ela. Uma tal abordagem, que,em seu conjunto, faz uma falta terrível na Europa, teria ainda como conseqüência tornarcaducas certas problemáticas sacralizadas em virtude de suas reiteradas indefinições.

O conformismo crítico

As causas inerentes ao objeto audiovisual não bastam para explicar a escassacultura a ele concernente: existem outras atividades tão complexas quanto a televisão,como a defesa, a educação e o gerenciamento do território que, apesar de fortementepolitizadas, mesmo assim deram origem a conhecimentos admitidos por todos e quedesempenham papel específico na análise dos problemas. Porém, o que caracteriza atelevisão é ser um objeto que não deixa ninguém indiferente, que é foco dê controvér-sias políticas desde a sua aparição, objeto de polêmicas contínuas, seja a propósito doseu status público ou privado, seja na nomeação dos seus dirigentes, seja pelo controleda informação, seja por sua influência, suposta ou real, sobre a sociedade. A televisãoencontra-se, portanto, encurralada entre os discursos apaixonados e os políticos, quenão contribuem, nem uns nem outros, para uma lógica do conhecimento.

Essa visão "naturalmente" politizada da televisão explica, talvez, o sucesso quetiveram, desde a década de 1950, todas as teses produzidas por intelectuais condenandoo seu papel nefasto. Teses_que,_ern sua esrnagadorajnaioria, encontraram eco favorá-vel junto às elites,,mesjnp que elas, supondo-se que tenham se questionado a si mej:mas, pudessem constatar um divórcio entra o seu .comportamento como telespectadore o seu discurso... Os trabalhos empíricos de conclusões prudentes e argumentadas ja-mais tiveram influência comparável à dos inúmeros livros e estudos que denunciavamos perigos, os prejuízos e as rnaléficas,estTatégias de poder„da televisão8. Essa despro-porção foi acentuada pelo fato de os profissionais das mídias não terem também teoriza-do sobre a sua experiência, apesar da imensa maioria ter visões matizadas sobre o "poder"da televisão. Eles preferiram o essencial, refugiar-se nas memórias, nas histórias, ou se-ja, aproveitar da sua notoriedade de mídia para obter sucesso em outros domínios, masraramente aproveitaram os seus conhecimentos do instrumento, nem da sua legitimi-dade para contrabalançar o peso dos discursos desabonadores.

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A fragilidade da tradição empírica críticaVamos experimentar partir do discurso empírico, crítico e minoritário na

Europa. Os trabalhos sobre as mídias começaram tarde em relação aos Estados Unidos,onde existia uma forte tradição de pesquisa empírica sobre os efeitos do rádio, depoissobre a televisão, desde a década de 1940. As mesmas questões foram colocadas sobreo papel da televisão na política, as relações entre a cultura de elite e a cultura de mas-sa, o status e a liberdade de informação, a influência sobre as crianças, o papel da vio-lência, os efeitos do consumo individual numa mídia de massa, os problemas de re-cepção, a reação do público, a passividade dos espectadores... Essas questões, e muitasoutras, foram colocadas com tanta força ou mais, visto que, lá também, o entusiasmosuscitado pela televisão inquieta com toda justiça as elites culturais.

Inúmeros estudos empíricos, alguns de vocação industrial, outros acadêmicos,forneceram, entre 1950 e 1965, quadros analíticos teóricos ainda hoje bastante valiosossobre os efeitos positivos e negativos das mídias, a construção da imagem, as teorias darecepção, do two stepflow, do gatekeeper, da "atenção seletiva", da "teoria de usos egratificações", da "espiral do silêncio"...

A maioria dos conceitos colocados nesses anos demonstraram, depois, a sua fe-cundidade. Os nomes de Lazarsfeld, Berelson, Katz, Gourevitch, Blumler9 estão liga-dos a esse formidável esforço teórico. Grande parte desses pesquisadores era de origemeuropéia.

A pesquisa empírica nos Estados Unidos foi, portanto, desde o início, ao mes-mo tempo universitária, acadêmica e comercial, o que explica, em parte, a sua fraca di-fusão na Europa. Os trabalhos puramente comerciais Iqram^pjD^o^pj^q^predomi-nando, depois do decênio de 1960, numa perspectiva mujtas vezes demasiado instru-mental e sem grande referência teórica, dando assim .a -Sensação:.de. que_a_abprdagem.empírica, era necessariamente não-crítica. O que, evidentemente, é falso, mas explicao sucesso encontrado pela terceira corrente de pesquisa americana, que viria a ser, narealidade, a mais bem conhecida na Europa e que é decididamente crítica, ligada a umaabordagem marxista. Adorno e, mais tarde, por associação, Herbert Marcuse, foramprovavelmente os seus símbolos e os seus representantes mais brilhantes. Os críticosabordaram ao mesmo tempo a indústria cultural, a ideologia da televisão, a crítica dasimagens, o comportamento dos espectadores com uma crítica do modelo democráticoamericano que hoje pode ser considerada radical.

Essas análises desempenharam papel essencial, sobretudo a partir da contes-tação estudantil entre 1965 e 1970, proporcionando os quadros ideológicos e teóricosnecessários para a crítica da televisão. E como na Europa, nem os trabalhos empíricoscríticos e menos ainda os trabalhos empíricos que apontavam os danos da televisão

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comercial eram conhecidos, foram essencialmente os trabalhos críticos marxistas daEscola de Frankfurt que se difundiram e tiveram um sucesso espetacular. Mas, enquantonos Estados Unidos as correntes empírica e empírico-crítica deram origem a um lastrode conhecimentos sobre o qual pôde-se apoiar o discurso crítico marxista, nada se deuna Europa, onde esse lastro de conhecimentos faz falta. Este é o principal handicappara se pensar as mudanças (cabo, satélite, videocassete, televisão por assinatura, frag-mentada, comunitária, a publicidade...) introduzidas depois da década de 1970.Triunfou apenas a atitude, para não dizer a ideologia crítica.

O insignificante número de trabalhos empíricos não permitiu que houvesseum consenso mínimo capaz de dar origem a uma espécie de fundo cultural comum.É, portanto, com essa desvantagem intelectual, em que a atitude crítica não se ali-mentou de trabalhos empíricos, que foram abordadas as questões do desenvolvi-mento da publicidade, do marketing, do crescimento da indústria de programas, dodeclínio da televisão pública, da comunicação política. Os trabalhos europeus, menosnumerosos que os trabalhos anglo-saxões, não favoreceram a elaboração desse ali-cerce cultural sem o qual não é nada fácil trabalhar sobre as mídias. Apenas a Grã-Bretanha escapou desse processo, pela precoce existência lá de um setor privadoque precisou de trabalhos sobre a audiência, os públicos, a publicidade... O que ex-plica, talvez, o fato de que a televisão inglesa seja, sem dúvida, a melhor, e que apesquisa inglesa, em matéria de mídias, a despeito do fato de sua posição ser alvode polêmicas no mundo acadêmico, produziu trabalhos muito bons. Na Europa con-tinental, pelo contrário, a situação exclusivamente pública da televisão durantemuitos anos provavelmente acentuou essa tendência em direção a uma atitude essen-cialmente crítica.

Aquilo que não era abordagem crítica, seja em termos econômicos, seja em ter-mos políticos ou ideológicos, constituía minoria, às vezes desqualificada, em prol deuma retomada caricatural dos temas fornecidos pela ala "esquerdista neo-marxista" daEscola de Frankfurt, refugiada nos Estados Unidos. Além disso, a causa foi adotada antesde ser fundamentada. Os outros trabalhos não foram lidos, sobretudo os trabalhos em-píricos críticos. O a priorípolítico era tal que, vale recordar, por mais de trinta anos osimples fato de falar da escolha do público ou do interesse apresentado pela televisãoprivada levava a catalogar como "de direita" o energúmeno que ousasse tocar nesse as-sunto, o que desqualificava imediatamente a sua capacidade de dizer qualquer coisa in-teligente! Se o público, além disso, metia os pés pelas mãos ao votar, ou seja, não se da-va conta dos seus vetos, o mesmo não ocorria nas elites políticas, culturais, inte-lectuais, onde reinava um verdadeiro terrorismo intelectual "de esquerda", cuja forçae violência hoje já esquecemos, de tal forma apagou-se depois.

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Em seus artigos e livros, e sobretudo na revista Communication, ele contribuiupara a divulgação dos trabalhos americanos, sintetizando as suas problemáticas e re-sultados. Mas a agitação de maio de 1968 foi vitoriosa em suas primeiras diretrizes eos estudos sobre os meios de massa tornaram a cair numa indiferença quase genera-lizada, tal era a aceitação no meio intelectual daquela dupla idéia de que as mídias nãoeram um assunto nobre e que não havia nelas grande coisa a ser pensada! A pesquisaempírica e empírico-crítica, conseqüentemente, não recomeçou de fato senão no fimda década de 1970, criando literalmente um vazio de conhecimentos sobre quasequinze anos.

Os discursos dos dirigentes da televisão e dos profissionaisOs dois discursos mais próximos do discurso empírico foram, nos primeiros

decênios, o dos tecnocratas e o dos profissionais. De 1950 a 1980, sobretudo na França,os dirigentes da televisão pública, única na época, são principalmente altos funcionários.Seu discurso sobre a televisão é bastante moderado, mas o crescimento dela e o surdoantagonismo entre eles e os "saltimbancos" vai retirando progressivamente a liberdadede tom que tinham no início. Sobretudo, a politização da questão que tende, perma-nentemente, a fazer todos os problemas remontarem ao plano político, suscita entreeles o reflexo de reserva próprio dos altos funcionários, uma vez que a sua nomeação,a maior parte das vezes política, não lhes garante a liberdade necessária. Com o passardos anos, eles foram cada vez mais identificados, certa ou erradamente, com uma tele-visão de Estado, controlada pelo poder, e perderam a legitimidade de discurso para oexterior. Gerindo difíceis contradições internas e externas, sem autonomia, tiveram,muitas vezes, uma visão perspicaz da realidade, mas nada disseram, fecharam-se numsilêncio que acabou se voltando contra eles. Assim, quando Pierre Desgraupes assu-miu a direção da Antenne 2 na França, em 1982, todo mundo teve a impressão, demaneira um tanto caricatural, que a era dos geômetras estava definitivamente encer-rada e que chegava enfim a desforra dos saltimbancos. De fato, a legitimação do dis-curso dos altos funcionários, em parte pelo poder político e pelo comportamento e con-texto, acabou sendo prejudicial a um conhecimento e a uma cultura da televisão.

O outro discurso, entre 1950 e 1970, é o dos profissionais. Mas depois de 1970,eles se tornam mais silenciosos, exatamente quando a fantástica explosão da televisão,a politização da questão e a perspectiva das televisões privadas deveriam incitá-los afalar mais. À exceção de algumas obras corajosas, a maior parte dos profissionais dasmídias calou-se durante esse período capital de 1970-1990, que assiste à oscilação umtanto generalizada da organização-dos sistemas de televisão. É preciso dizer, a seu fa-vor, que a partir das décadas de 1970 e 1980, haveria tantas reviravoltas nos discursos

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e nas práticas que, não sabendo bem em quem ou em quê se fiar, eles preferiram calar-se, de forma que o seu problema principal não seria o discurso, mas a possibilidade defazer televisão. Se o bale esquerda-direita abriu possibilidades e fracionou o discursoideológico, isso se deu numa tal confusão que os profissionais escolheram, em seu con-junto, garantir a própria posição e esperar para ver.

Os discursos dos profissionais se atenuaram, antes das grandes críticas da tele-visão, por volta de 1968, e misturaram diversos problemas de naturezas diferentes: amanutenção do poder político sobre a televisão, a rigidez do sistema, os conflitos entre"saltimbancos" e "geômetras", o controle da informação, a crítica dos programas...Engajados, em grande parte, na luta pela liberalização da televisão12, seriam favoráveis,na França, por exemplo, às reformas de 1974, 1981, 1986, mas lutariam em vão emduas frentes: contra o controle político da televisão e contra o discurso crítico, que sealimentava, parcialmente, das insuficiências do serviço público, mas sobretudo de umaanimosidade quase natural contra uma televisão sobrecarregada de todos os males.Acossados por ambos os lados, os profissionais calaram-se, marcados pelas numerosasexperiências de repressão, depois de haverem tentado contribuir para a abertura do sis-tema, sem conseguir, entretanto, defender a televisão dos ataques que os críticoslançavam contra ela.

E também não transmitiriam suficientemente os trabalhos empíricos, sem dúvi-da numa reação muito clássica do corporativismo — nenhum meio, e sobretudo o datelevisão, tão incerto da sua identidade e muito narcisista, gosta que se venha estudá-lo do exterior. À exceção talvez de Jean Cazeneuve13, que foi, sem dúvida, depois doperíodo dos pioneiros, o único dirigente de origem universitária a alimentar seus livroscom essa dupla formação. A maior parte dos outros profissionais, ao contrário, mesmonão concordando com os exageros do discurso crítico, encontraram nele uma espéciede benefício secundário: esse discurso crítico estava tão distante da realidade que só po-dia, ao fim das contas, favorecer aqueles que conheciam melhor a televisão! De qual-quer forma, no fim da década de 1970, na França, e mais ou menos na mesma épocana Itália e na Bélgica, depois na Alemanha Ocidental, as críticas contra a televisão doEstado, verdadeiro rascunho da televisão pública, a possível chegada das televisões pri-vadas e suas miríficas promessas de novas tecnologias modificaram o equilíbrio geral.A televisão tornou-se um faroeste onde cada um tinha de defender o seu território. Oproblema principal dos profissionais foi, portanto, o de se infiltrar, de garantir o seu lu-gar, ou melhor, de não escrever sobre o sistema, ou de não defendê-lo, pois, visto dedentro, era, às vezes, pior do que aquilo que dele se dizia de fora! Além disso, a faltade renovação do meio foi um freio para uma renovação da reflexão. Alguns dentre elestentaram, mesmo assim14, com sucesso infinitamente menor do que o daquelas outras

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estrelas da telinha que escreviam as suas memórias ou se serviam da própria notoriedadepara escrever sobre qualquer outra coisa.

A televisão só reencontrou uma parte da sua aura com a perspectiva das tele-visões privadas e a abertura do mercado à comunicação nos anos de 1985 a 1990. Issoexplica por que, no começo do decênio de 1990, há uma atitude nitidamente mais fa-vorável à televisão do que aquela que predominou durante vinte anos, embora uma dascausas principais desse otimismo seja a predominância do modelo de televisão privadaque foi durante muito tempo unanimemente criticado.

Os discursos críticos: a ameaça do conformismo da moda, da ideologia lO discurso crítico foi se tornando, portanto, progressivamente, um conformis-

mo crítico, do qual vimos as conseqüências importantes na década de 1980: a inca-pacidade de fazer uma triagem entre os aspectos positivos e negativos da televisão públi-ca, a globalização da crítica, a denúncia grotesca da televisão privada... Foi, de qual-quer forma, essa preguiça intelectual crítica que se tomou uma espécie de estereótipo,em todos calcavam o seu discurso literalmente num conjunto de clichês que tinha narepetição a base de sua legitimidade.

Seja como for, é preciso distinguir o discurso crítico dos políticos e dos inte-lectuais do discurso do público. O discurso cotidiano do público é, geralmente, crítico,porque existe sempre uma defasagem entre as expectativas e aquilo que a televisão real-mente fornece. A mesma coisa vale, muitas vezes, para a imprensa escrita. Ao comen-ÍE19ÜÍÍSJJ3U§ Assistiram, _ps espectadores- emitem juízos-sobre .a televisão.

juejde£jMjise^«sentído_ern_gu_e_ é, pe/manentem^ntel^e^de_^batesBVAqueles que acreditam.,Jm-perturbavelmente, em espectadores ..passivos e sem reações, nem .interesses, "zapean-

-^ fS Ct , do" aleatoriamente de um canal para.outro, deviam escutar,mais .as..conversas!5 nos^ ^ H -transportes públicos e nas empresas! Ficariam perplexos com a diversidade de juízos-> $ ', ;emitidos: os_p_rogramjs passam, litmta^r i. ^ |Esse duplo movimento, de .recepção-e. discussão,prova-não apenas que os espectadores^ ; não sãp^pj^sivos,jnas_queJeLes_sabem.criticar e julgar a televisão. Por isso é que, como

escrevíamos em La folie du logis, "aj^evisão éj)Jnsü.mesociedade,s.,demQa:ática§,".

A contrapartida dessa apropriação crítica é que todo o mundo tem uma opiniãosobre a televisão, e afirma saber aquilo que ela é. É o preço da sua popularidade numasociedade democrática: ajejjjyjsjiojisjsim^^gament£críücoido,2Úblicp. Existe, portanto, uma espécie de resistência natural à análiseintelectual, uma vez que todos cultivam o sentimento de "especialização" e que nada

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existe de substancial a ser apreendido dos outros. Se, por um lado, o público não seacha entendido em medicina, economia, arqueologia, por outro lado, no que se refereà televisão, ele está convencido de que é um expert e o demonstra. Nesse contexto,em que cada um é um perito no cotidiano, o_discursa,empírico;críticQ,é naturalmente

reforçar a in-satisfação.,dQ,.discursoxotidiano . $

Mas o discurso crítico do público apresenta uma segunda dimensão, ou seja,ele faz um juízo sobre a televisão justamente porque a assiste! Juízo do qual descon-fiamos, porque manifestam bem menos credulidade e ingenuidade a respeito do queé mostrado do que muita gente pensa. As sondagens, as reuniões ou os cadernos dereclamações feitos pelas associações de espectadores16 demonstram que o público nãoé bobo quanto à atual falta de inovação, à obsessão com a audiência, ao desapareci-mento dos documentários, à excessiva espetacularização da informação, à insuficiên-cia de programas científicos, culturais, à onipresença dos jogos... Mas quem quer ouviressas críticas, que são, no entanto, idéias para uma evolução da programação públicaou privada?

Certamente não os jornais especializados que fazem fortuna graças à tele-visão17 e a seu público, e cujo comportamento, pusilânime em seu conjunto, virá àtona mais tarde, quando a pressão do público os obrigar a fazer outra coisa além dapromoção fraudulenta da programação e das estrelas, como uma simples negativa dareflexão!

Outro grupo que também não quer ouvir as críticas são os dirigentes dos canais,que adoram esse querido público, contanto que ele seja sensato, dócil e, principalmente,reduzido à muda abstração de uma taxa de audiência que se pode manipular e que nãoeleva a voz! Tampouco os profissionais que, em sua maioria, não desejam encontraresse público que é seu parceiro imaginário. Isto é compreensível, já que, às vezes, émelhor que ele continue a sê-lo.

E, principalmente, os inúmeros grupos de estudo que se especializam na análiseda televisão, dos seus produtos, do público e que oferecem a chave de sua interpretaçãograças às suas análises estatísticas confiáveis e representativas, as quais esse tal de públi-co real bem que podia questionar.

Então, como ficamos? Na realidade, o único discurso crítico .ppsjtiyo sobre. at£lèvisãojuej_e_devia_ aceitar e analisar é p do público.,. .e.,. no mais das vezes, o consi-deramos apenas como conversa de botequim!™ Existe uma terceira dimensão do discurso crítico do público que remete ao lu-gar ocupado pela televisão na vida cotidiana de cada um: a emissão de um discurso críti-co é a maneira de se proteger e de se distanciar de um instrumento desejável, mas em-

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baraçoso e onipresente. Criticar para se desligar e conservar a própria liberdade. O dis-curso crítico do público é, portanto, interessante sob mais de um aspecto, uma vez queele, evidentemente, varia segundo os meios sociais e culturais. E, no entanto, ele é omenos aceito e o menos ouvido...

O terceiro discurso é o dos altos funcionários. De modo geral, não é nem a cu-riosidade, nem a modéstia diante da complexidade do objeto da televisão que os levaa se tornarem membros do gabinete que se ocupa do setor audiovisual. Existe uma de-fasagem bastante nítida entre esse discurso tecnocrata, muito seguro de si, invariavel-mente adotado pelos políticos, e a prudência maior do discurso dos dirigentes do au-diovisual e, sobretudo, dos profissionais. Os altos funcionários são, além disso, quasesempre mais peremptórios do que os políticos. E a consciência tranqüila com que le-gislam num domínio de que a maioria nada conhece, nos remete diretamente a umadas chagas da democracia pluralista: o totalitarismo dos tecnocratas e a sua impunidade.A idéia dominante é que, de qualquer forma, eles sabem o que é preciso fazer. E pode-mos ver no que deu isso depois de trinta anos...

O resultado é que depois de cada eleição importante, os políticos e seus con-selheiros "zeram" a questão da televisão e se propõem a reformá-la "definitivamente",ao menos enquanto durar o mandato daquela maioria política. A consciência tranqüilae a certeza do saber predominam a maior parte do tempo juntamente com uma des-confiança atávica em relação à experiência do pessoal do ramo, apesar das piedosas edemagógicas declarações sobre a necessidade "de se permitir, afinal, que os profissio-nais façam televisão"...

Mas, se na Europa a televisão, infelizmente, é inseparável dos discursos políti-cos e das freqüentes mudanças de legislação e das imprecações nas assembléias, é forçosoreconhecer que esse discurso crítico, que sempre promete um melhor amanhã, perdeumuito de sua legitimidade. E isso por duas razões.

Em primeiro lugar, durante muito tempo os políticos utilizaram a televisãopara servir aos seus próprios interesses por meio da nomeação de dirigentes, do con-trole da informação e dos múltiplos casos de amizades profissionais plantadas noscanais. Se, progressivamente, desde 1970 até hoje, essa prática diminuiu na televisãopública francesa, ela continua intensa na Bélgica, na Alemanha Ocidental e na Itália,onde permanece mais direta a ligação entre a política e a televisão pública. Entretanto,ela não desapareceu inteiramente na França, como provam as múltiplas mudançasno audiovisual público posteriores à lei de 1982, que proclamava a "comunicaçãolivre".

Essa influência política não concerne apenas à televisão pública, mas tambémà televisão privada, como atesta o bale incessante em torno dos canais privados na

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Europa. Um contra-senso muito forte contamina as relações entre a televisão e os políti-cos, que não conseguem se libertar da idéia errônea de que se conduz melhor um paíscolocando os amigos à testa das televisões. As dificuldades e o fiasco, na França, dastrês instâncias de regulamento colocadas em ação depois de 1981 (Haute Autorité,CNCL, CSA), para garantir essa independência da televisão em relação ao poder políti-co, demonstram a dificuldade da tarefa.

A segunda razão pela qual o discurso dos políticos sobre a televisão é poucodigno de crédito hoje é que, em quarenta anos, eles assumiram todas as posturas pos-síveis em relação à televisão. Partidários de um controle estrito, eles foram progressi-vamente atraídos pela idéia de uma maior autonomia. Hostis à publicidade e às regrasdo mercado, filiaram-se, em seguida, a uma e outras. Favoráveis às novas tecnologiasque deveriam permitir decuplicar as possibilidades da televisão, eles tudo fizeram, ecom sucesso, para limitar as aplicações, temendo, sem dúvida, perder uma parcela depoder. Defensores ferrenhos da televisão estatal, distinta da televisão pública, eles foram,tanto à direita como à esquerda, radicalmente contrários à televisão privada para, emseguida, introduzi-la e chegar, às vezes, como no caso francês, a um sistema audiovi-sual dominado pelo setor privado.

Ao fazer da televisão um objeto político, os homens de posição, ou que a elaaspiram, tentaram domesticá-la e reduzi-la, embora permanecessem profundamentefascinados por esse meio que, ainda hoje, consideram, muitas vezes erroneamente,condição indispensável para a sua carreira política. Um pouco inquietos com os"poderes" dela, eles tentam banalizá-la ao mesmo tempo em que desejam dela servir-se e, finalmente, acabam "escorregando no tapete". Ajgleyjsãojps.. fascina,, mas eles a

Essa atitude ambígua tem como conseqüência politizar ainda mais a questão,inclusive para o setor privado. A maneira como foram criados, na França, o Canal Plus,La Cinq e a M6 não apresenta grandes diferenças em relação aos canais públicos.Navegando, portanto, a maior parte do tempo sem bússola intelectual ou teórica, os-cilando entre fascinação e repulsa, os políticos, pelo crédito que a eles atribuímos, são,em geral, verdadeiramente responsáveis pelas mudanças de orientação do audiovisual.Ainda mais que o meio profissional, bastante dependente das suas decisões, nem sem-pre se opõe a eles.

É, portanto, surpreendente ver que os políticos conservam, diante de umadas atividades mais novas e mais importantes das nossas sociedades, uma influên-cia manifesta, mas desprovida de qualquer sanção, visto que as leis se sucedem aoritmo das maiorias eleitas, desequilibrando, a cada vez, um universo que é semprefrágil.

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Quanto aosjntelectuais — e, mais amplamente, à elitepré, e em todos os países, elesvisão, à c\^\m^Jiê^'v^^^^émjíos^\K valores e às suas estrelas.^,

Existe nessa atitude frustração e amargura, até mesmo raiva, justificadas pelaascensão de um sistema de legitimação e valorização social que tende a marginalizarnão apenas os intelectuais, mas também uma boa parte da produção cultural que nãopode se exprimir "com clareza em 2 minutos e 30 segundos, quando não em l minu-to e 30 segundos". Mas além dessas razões de fundo, que serão examinadas na quartaparte deste livro, é forçoso reconhecer que o discurso intelectual e cultural em geralsempre foi majoritariamente hostil, sustentado por uma mistura de críticas políticas, so-ciológicas e culturais que não têm nem o mesmo peso, nem o mesmo valor, nem a mes-ma justiça.

A maior parte delas é bem conhecida e pode ser rapidamente relembrada aqui:s :o_espectador é passivo diante da imagem; perde o seu , senso crítico, e se torna jnfliien-; ;: ciável;.. j_sie,cç)nsumo«,indiyidual .debilita a_§Qclabilidade ...e. favorece^uma adação,,iL-,i refletida dos modelos culturais dominantes. Em resumo, a televisão aliena, -Quanto, à! - - - - ..,--,,.....,._.,. - > ......... ......' cultura de massa, ela marginaliza toda produção que não corresponde aos se_us^critér.ios

- ; conquisjamjlojejpjio q 'mundo. A_própjrja_info|maçãíj,não_é_poupada: ilusória aber-•• | tura parajmundo, ela,,M contrário,, imobiliza o cidadão numa jtltude,passivav.quan:

1 do nãpjLtransforma num mero espectador,,,distanciando-o ainda da cidade e reduzindo. .,-. . _ - - - - _ —--=.. . _J. . f „, - 1 ..u,jj._j»J,j.!.~=9_=_c. , .~~"=ja=--i --- "* ----- "

: [o homem pojfti£o-a_uma.marionete..manipulada ^eloj_diferentes^speciajistas de_c.o-^imunicj£ã^_^M.rl£í/n^,políüco.-Quajito,,a moderna dpsjogos"'ide circo, a_s_ua_prática é desfigurMa e seu ideal ttansjgrmadp ..numâjnaontanha .de

'dólares,Em resumo, não se deve esperar nada de positivo da televisão no campo da

política, da informação e da cultura, pelo contrário, há que abominá-la completamente.j^cebe-se^_cj)ntudo, nessa atitude geral, uma contradição de fundo raramente apon-

j^ijM Prodamar> ao mesmo tempo, a confiança no povo soberano, ator da históriai **« }e da democracia, herói do sufrágio universal, e dizer que esse mesmo povo é alienador S jejDassivo quando se transforma em público de massa que assiste à televisão. Pois o mes-

| mo povo é fundamento da JegitimjdadjjdjLjiemQÇ^'v alienação pela televisão,....

Essa ausência de senso crítico e autonomia_atóbuída_ao. status dejgspectadorpoderia voltatse perfeitamente também contra o-status .de,çi{ta.dãQ.L;Eor_que seria ele

, alienado, conformista 5uandQ,assiste_ltéeyjsãa? Ajngnos que se pense _que a política confere,. pQr.uma_espécieJie=1.gr.aça,J-um.

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ístatus à parte, o da emancipação; e_que a cultura de massa e de imagem confere ou-|tro, neste caso, a desvalorização^da pesssa,l: " ^ Definitivamente, essa contradição ainda não foi suficientemente expressa, co-mo se a violência e a radicalidade das posturas contra a televisão proibissem a sua ex-pressão. O mais extraordinário nessa argumentação crítica bastante conhecida, e aquicondensada, é que ela conseguiu se desenvolver ao infinito, sempre com o mesmocaráter fechado e inelutável. É, portanto, esse aspecto radical que explica o seu suces-so. A rigidez crítica impediu que se questionasse por que tantas pessoas assistem à tele-visão! A não ser para se falar sempre e sejn£re^dj_aliejna.çãD... A.^»utra_^aracterísücadesj^cnticjy^há^^ Ao longo de trinta anos, na-da veio matizar essa análise, nem o crescimento da televisão, nem a multiplicação decanais, nem o lento movimento de desengajamento do poder político da televisão, nema experiência que tivemos dos públicos, nem as crises internas e as mudanças. O opos-to ocorreu com mais freqüência, pois todo sucesso era interpretado como uma provasuplementar da alienação do público.

O que é interessante nessa atitude geralmente crítica dos meios intelec-tuais é que ela provém, essencialmente, dos meios de esquerda, enquanto, entreas duas guerras, foram mais os meios conservadores que manifestaram hostilidadeà chegada do rádio, pela ameaça que significava à civilização do livro, enquantoos intelectuais de esquerda o encaravam mais como um instrumento do "progressotécnico".

Depois da guerra, a mudança foi quase completa e, ao longo de mais de umageração, o discurso de esquerda é que será francamente crítico em relação à televisão,havendo, entretanto, duas ressalvas. Uma grande parte dos profissionais da televisão,sobretudo nos documentários, e mesmo na ficção, foi e continua sendo culturalmente"de esquerda", o que não modifica muito os discursos críticos emitidos de fora. EQLO.U-I **.

tecimentos graves para se dirigir à,op.iniã.Qjública,e,tentat,niobilizáJ.a..0.instrumento;de alienação torna-se, num toque de mágica, -instrumento, de,libmção,, juiuejlus.tra,;deresto muitobem, ajJupjaideolQgia^televisão1!..

Em outras palavras, a televisão é concebida como um conjunto de canais quedivulga, a maior parte do tempo, mensagens sem interesse, ou seja, alienantes e repro-dutoras da ideologia dominante. Masjodjejejoj^aium^^insfrumento bom'Ide difundir"mensagens^oasl"'. Quanto ao cidadão-espectador, este é meio-anjo, meio-demônio:velha problemática sobre a qual aqueles que a professam, nem sempre trazem na lem-brança os seus fundamentos teológicos.

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-ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

Notas ao capítulo 2

1. REVEL, J.-F. Z,a connaissance inutile. Paris, Grasset, 1988.2. Essa reflexão, todavia, ocorre na escola britânica de Cultural Studies e nos

trabalhos de Raymond Williams: cf. Television: technology and cultural form. New York,Schoken Books, 1975. Sobre o contexto "doméstico", ver os trabalhos mais recentes deTânia Modleski nos Estados Unidos. WILLIAMS, R. Television, technology and culturalform. New York, Oxford University Press, 1974. Ver também: MORLEY, D. Family tele-vision cultural power and domestic leisure. London, Comedia, 1986. SPIGEL, L. "Thedomestic economy of television viewing in postwar America". Criticai Studies in MassCommunication, dezembro 1989, v. 6. FISKE, J. Television culture. Methuen, 1987.

3. MODLESKI, Tânia. "The rythms of reception — Daytime television and wom-en's work". In: KAPLAN, E. Ann. Regarding television. Los Angeles, American FilmInstitute/University Publications of America, 1983.

4. SOUCHON, M. La television et son public — 1974-1977. Paris,Documentation Française/INA, 1978. Idem. Petit écran, grand public. Paris,Documentation Française/INA, 1980. Idem. "Qu'attend lê public de Ia television etdu service public?" Médiaspouvoirs, n. 14, Paris, 1989. SOUCHON, M. & LÊ DIBERDER,A. "Dês publics inséparables". Médiaspouvoirs, n. 14, Paris, 1989. BARWISE, P. &EHRENBERG, A. Television and its audience. London, Sage, 1988.

5. Há uma outra forma de "retorno" muito mais perniciosa, e que vem ocor-rendo progressivamente, que é a multiplicação de ações na justiça, cujo pioneirismo édos Estados Unidos. O "juridismo" e a onipresença dos advogados tornam mais e maisoportunistas as atividades de comunicações.

6. GITLIN, Todd. Inside prime time. New York, Pantheon Books, 1985.7. MEYROWITZ, J. No sense ofplace. New York, Oxford University Press, 1985.

DAYAN, D. & KATZ, E. Media events on the experience ofnot being there (no prelo).Sobre o problema da solidão ver: CAVELL, St. Thefact of television. Cambridge, Dedalus,1980. Ver também, por exemplo, o que diz Marc Auge em seu livro La traversée duLuxemburg. Paris, Hachette, 1984. p. 24-5. "Parênteses sobre a televisão: não é as-sim tão certo que ela imponha a cada espectador uma relação solitária e fascinada pelaimagem. Só tive exemplos desse acúmulo de solidões nos hospitais ou nos asilos, ondeela era ainda mais perceptível na sala de jantar ou no salão de leitura. Nos hotéis já ébem diferente, principalmente nos pequenos hotéis de província com clientela regu-lar: numa mesma mesa, entre colegas de trabalho ou viajantes a negócios, os comen-tários correm bem. Nas famílias, pelo menos nas famílias simples, vi muitas vezes atelevisão ser ligada em horários fixos; mas ela não chamava atenção a não ser de maneiraepisódica, fornecendo mesmo matéria para a conversação, companheira familiar, pouco

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- ATELEVISÃO: UM OBJETO DIFlCIL DE ANALISAR -

e bem informada. Funciona, em suma, como uma espécie de lareira acesa um poucotagarela."

8. Cf. publicações recentes em francês: MATTELART, A. Penser lês médias. Paris,La Découverte, 1986. MERMET, G. Démocrature—Comment lês médias transformentIa démocratie. Paris, Aubier, 1982. QUERE, L. Dês miroirs equivoques aux origines deIa communication moderne. Paris, Aubier, 1982. FLICHY, P. Lês industries de 1'imagi-naire. Grenoble, PUG, 1980. BEAUD, P. La société de connivence, médias, médiationset classes sociales. Paris, Aubier, 1982. SALAÜN, J. A qui appartient Ia television? Paris,Aubier, 1989. MIÈGE, B. La société conquise par Ia communication. Grenoble, PUG,1989. JEUDY, H.-P. Lês ruses de Ia communication. Paris, Plon, 1989.

9. Para uma análise dos principais trabalhos empíricos e críticos, ver os capí-tulos VI e VII e a bibliografia de La folie du logis (op. cit.). BALLE, F. Médias et société.4. éd. Paris, Montchrétien, 1987. LÊ DIBERDER, A. & GOSTE CERDAN, N. La television.Paris, La Découverte, 1986. BONNELL, R. La vingt-cinquième image, un économie de1'audiovisuel. Paris, Gallimard/Femis, 1989. CLUZEL, J. La television aprèssixreformes.Paris, J.-C. Lattès, 1988.

10. Por exemplo, estas obras célebres jamais foram traduzidas: BERELSON, B.Contents analysis in communication research. Glencoe, The Free Press, 1952. BOGART,L. The age oftelevision, a study of viewing habits and the impact of television on Americanlife. New York, Ungar, 1956. HOLLORAN, J. D. The effects oftelevision. London, Panther,1970. KLAPPER, J. T. The effects ofmass communication. New York, Free Press, 1960.KATZ, E. & LAZARSFELD, P. Personal influence, the parplayed by people in the flow of masscommunication. Glencoe, The Free Press, 1955. LAZARSFELD, P. & MACPHEE, W. Voting.Chicago University Press, 1954. LAZARSFELD, P.; BERELSON, B.; GAUDET, H. People's choice.New York, Columbia University Press, 1948. Como também não o foram osCommunication Yearbookseos Mass Communication Yearbooks publicados há quinzeanos pela Sage e que, modestamente, analisam os trabalhos empíricos e empírico-críticos.Exceção feita a Introduction aux Communications de masse, 1963, editado por W. K.Agee, Ph. H. Ault e E. Emery, traduzido em 1989, na Bélgica, em co-edição da EdiüonsUniversitaires com as Ediüons de Boeck. Por outro lado, as principais obras de Adorno,Horkheimer, Marcuse foram traduzidas para o francês.

11. FRIEDMANN, G. Cês merveilleux instruments. Paris, Denoèl, 1979.12. Seria preciso, também, entrar em maiores detalhes sobre o comportamen-

to dos diferentes grupos profissionais. Enquanto os jornalistas foram, em geral, favoráveisà idéia da liberação, sobretudo depois de 1973, os realizadores na França, assim comona Alemanha Ocidental e na Itália, partidários, muitos, das tradições da esquerda, foramtotalmente hostis à idéia da televisão privada.

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13. Cf. CAZENEUVE, J. Lês pouvoirs de Ia télévision. Paris, Gallimard, 1970, ouidem. La société de l'ubiquité. Paris, Denoèl, 1972.

14. Cf. de CLOSET, F. Lê système EPM. Paris, Grasset, 1986. ELKABBACH, J. P.Taisez-vous Elkabbach! Paris, Flammarion, 1982. CAVADA, J.-M. En toute liberte. Paris,Grasset, 1986. DE VIRIEU, F. H. La médiacratie. Paris, Flammarion, 1990.

15. BOULLIER, Dominique. La conversation "télé". LARES, Université de Rennes2,1987.

16. Cf. As associações de telespectadores: Antea [Associação Nacional deTelespectadores e Ouvintes]; Anadet [Associação Nacional de Defesa da Televisão]; Latélé est à nous [A televisão é nossa]; Lês pieds dans lê PAF; Linha de informações —CREPAC.

17. As publicações de televisão na França, assim como em numerosos países,têm grandes tiragens, sem consagrar qualquer espaço a esses problemas. Na França,por exemplo, a Télé 7 jours circula com 3 052 523 exemplares, a Télé Poche coml 731 093, enquanto o primeiro semanário de informações, ParisMatcfi, tem a tiragemde 875 392 exemplares.

18. Encontramos, também, esse desprezo relativo dos intelectuais pela tele-visão no pequeno espaço consagrado ao estudo das relações dos intelectuais com as mí-dias entre os numerosos livros consagrados aos intelectuais. Sem dúvida, menciona-se,às vezes, o fato de que eles utilizam a imprensa escrita, e também o rádio, mas rara-mente analisam a sua relação com a televisão, como se isso não fosse importante.

19. Encontramos também a mesma atitude em relação à imprensa escrita quan-do esta tinha grandes tiragens. A imprensa, como meio de massa, tendo sido superadapelo rádio, e sobretudo pela televisão, não está mais investida dessa função de "porta-voz" ou de "canal".

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SEGUNDAPARTE

A unidadeteórica da televisão

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Elogio do grande público

O sucesso incontestável da televisão há cinqüenta anos*exige uma reflexão sobre as razões para tanto entusiasmo. Ela é, aomesmo tempo, uma formidável abertura para o mundo, o principalinstrumento de informação e de divertimento da maior_partejlapopulação e, provavelmente, p mais igualitário e o mais democráti-co..,, Ela é também um instrumento de libertação, pois cada um seserve dela como quer, sem ter de prestar contas a ninguém: essaparticipação à distância, livre e sem restrições, reforça o sentimen-to de igualdade que ela busca e ilustra o seu papel de laço social.Mas esse sucesso não nos diz se é possível escapar da aporia queparece envolver a televisão: sua divisão entre um sucesso formidá-vel e uma não menos formidável resistência à análise.

Existem invariáveis na televisão, com exceção das mu-danças técnicas e econômicas? Tem ela uma unidade estrutural, ouserá preciso, afinal, admitir que ela se faz no dia-a-dia, sem princí-pios diretivos? As mudanças técnicas, econômicas e políticas estãointeiramente corretas no que se refere à perspectiva de sua orien-tação para a televisão? Resta ainda uma possibilidade de elaborarum projeto, ou devemos simplesmente nos resignar a um desin-vestimento teórico diretamente proporcional aos investimentos fi-nanceiros? Este é o problema básico. Nossa intuição é que, a des-peito da rapidez das mudanças tecnológicas, econômicas, políticase da importância do sucesso, os princípios diretivos ainda sãoaplicáveis.

A hipótese central dessa teoria crítica é que a televisão temduas dimensões indissociáveis, complementares e simétricas. Urnadimensão técnica ligada à imagem; uma dimensão social, ligada, aoseu statusáe meio de massa. A força da televisão e, a nosso^yer, afonte de seu sucesso, é justamente essa aliança entre uma dimen-são técnica e outra social. A técnica concerne à produção e à di-fusão de imagens relevantes de gêneros e status diferentes (infor-mações, espetáculos, esportes). A dimensão social remete à re-cepção de massa em condições sociais e culturais muito diferen-

*Em dezembro de 1989, um francês ficava em média 236 minutos diante do seu aparelho de televisão, ouseja, 8 minutos mais do que em 1988. (Cf. Lê Monde de 13 de fevereiro de 1990, fonte Mediamat).

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ciadas. Mas a constante dessa mistura continua sendo a questão deuma política da televisão, e em nada elucida o vaivém de meio sécu-lo entre os dois discursos ideológicos que, desde sempre, envolvema televisão: a ideologia tecnológica e a ideologia política, que são,inclusive, complementares uma à outra.

Insistir, hoje, na unidade teórica da televisão e em sua du-pla dimensão técnica e social, nos remete a uma velha tradição dafilosofia e da sociologia das ciências e das técnicas, a tradição em-pírico-crítica. Essa tradição procura pensar as relações entre as téc-nicas e a sua utilização social. Ela recusa, a um só tempo, a idéiade um "determinismo técnico", idéia cara a uma tradição impor-tante da filosofia das ciências e, de modo mais abrangente, dafilosofia social, ou seja, da sociologia; e a idéia inversa de uma "neu-tralidade da técnica", que permitiria sua utilização indiferenciadaem contextos sociais e políticos radicalmente diferentes.

Uma tentativa que procure combinar parte do determinis-mo técnico e uma maneira através da qual instrumentos e serviçospossam executar projetos por vezes inesperados, é uma atitude tipi-camente empírico-crítica. Evidentemente, na história das ciênciase das idéias, seu sucesso não foi tão grande quanto o das duas ou-tras teses, a do determinismo e a da neutralidade técnica. Refletirsobre o status teórico da televisão significa, portanto, reencontraras grandes orientações dessa tradição da filosofia e da sociologia dasciências e das técnicas.

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A unidade teóricada televisão

A imagem

A televisão é um espetáculo de um gênero particular, destinado a um públicoimenso, anônimo e heterogêneo, inseparável de uma programação que garante umaoferta quase contínua de imagens de gêneros e status diferentes. Esta é a razão funda-mental do sucesso da televisão e da sua unidade, ou seja, a continuidade e a misturadiversificada de imagens, cuja recepção e interpretação ninguém domina. Debruçar-sesobre o status da imagem de televisão é, portanto, debruçar-se sobre o que está naorigem do seu sucesso e que temos a tendência de esquecer, de tal forma banalizou-sea televisão. .

Liberdade - IgualdadeA televisão é um meio de imagens bem particular, no sentido de que as

condições de sua recepção por um público anônimo torna mais incertas as condiçõesde interpretação, sempre difíceis de analisar no caso da imagem animada.

Do lado da técnica, temos atualmente as condições de produção.— o vídeo, adifusão por cabo ou satélites — e as de recepção, muito em breve com receptores di-tos de alta definição, cuja qualidade aumentará ainda mais o poder de impacto da ima-gem e do som. Essas imagens podem ser transmitidas diretamente, gravadas em vídeo-jz&tis&r..

ou "estocadas", e abranger os mais variados domínios, da informação às ficções, do es-porte às variedades, dos programas infantis às atualidades religiosas. Elas podem refle-tir a realidade ou fantasiá-la, ou seja, serem totalmente artificiais. Existem, portanto,inúmeros gêneros de imagens televisivas, e não há limitação a priori quanto ao seunúmero e gênero.

Do lado dos emissores encontramos, além dos jornalistas, todos os produtoresprofissionais de projetos os mais variados, que são os autores, num sentido amplo, daoferta de programas.

Aqui termina aquilo que é quase controlável, porque entramos, em seguida,no mistério da recepção, com todas as defasagens possíveis da significação intencional

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do autor à percepção e interpretação do espectador, ao mesmo tempo idênticas e dife-rentes uma da outra.

A relação entre a intenção do autor, a polissemia da imagem, o som e ascondições de recepção são também condições constitutivas do jogo pouco racionaldo processo de comunicação. Sem dúvida, o essencial da mensagem é recebido, masconforme demonstram os estudos, o que fica faltando, à margem, é, muitas vezes,determinante. A ambigüidade inerente à mensagem reforça, então, o peso do con-texto cognitivo ou sociocultural do processo de significação e de interpretação. Emoutras palavras, na televisão, o significado vai além da intenção na maior parte dotempo.

O mesmo não ocorre com o cinema. Antes de tudo, porque no cinema osgêneros são mais limitados, a construção muito mais elaborada, as condições cul-turais mais estruturadas e, sobretudo, a recepção em um local específico por umpúblico limitado confere à obra cinematográfica um estilo e uma estética bem par-ticulares. De fato, se olharmos bem, as diferenças entre as imagens do cinema e datelevisão são, sem dúvida, tão importantes quanto as suas semelhanças. Na tele-visão, a diversidade de gêneros e o volume de imagens são maiores, mas sobretu-do o caráter maciço da recepção, em domicílio, introduz variantes na interpretaçãode uma imagem, cujo status se modifica. É difícil analisar em si uma imagem detelevisão, porque as condições de recepção praticamente fazem parte dela: naturezae uso da imagem são indissociáveis. É por isso que o sentido da imagem televisiva,mais ainda que o da imagem cinematográfica, exige que se leve em conta a inte-ração entre o emissor, o difusor e o receptor. Esse sentido é inseparável de um prag-matismo da imagem, ou seja, a dinâmica resultante das inevitáveis defasagens en-tre as condições de emissão (intenção e condições de produção) e as condições derecepção.

É por isso que a televisão é uma forma de comunicação bastante particular emnossa sociedade: a significação parcialmente aleatória da mensagem resulta de umainteração silenciosa com um público inapreensível.

^ Mas essas características que fazem da televisão um objeto de análise complexosão também as que fazem dela uma atividade livre e igualitária. Livre porque cada um"se liga" quando quer, sem ter de justificar a sua escolha diante de ninguém; igualitáriae livre também porque todo mundo assiste à mesma coisa, mas, quando a polissemiada imagem ajuda, não existe uma interpretação obrigatória, normativa ou ortodoxa. A

t^ | imagem deixa uma via de acesso ao sentido, principalmente por intermédio do ima-ginário, mais igualitário, por exemplo, do que aquele permitido pela leitura, pois o aces-

( só à imagem é mais fácil que o acesso ao texto.

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Nenhuma imagem sem contexto nem organização

A imagem da televisão, mais do que qualquer outra imagem animada, é, por-tanto, tributária de um contexto. É precisamente por isso que ela se distingue do cine-ma e constitui, realmente, uma atividade de comunicação social, pois remete a umquadro1 e a um contexto. Podemos compreender melhor o statusda. frágil imagem tele-visiva se considerarmos a televisão como uma tecnologia de contato bem como de ima-gens. Contato, além do mais, de um gênero particular, pois é um laço feito à distânciae de um gênero em si mesmo particular e especular. Dizer que não existem imagensde televisão sem contexto de produção e recepção enfatiza também a dimensão socialda televisão, que se encontra nas duas características de sua imagem: a identificação ea representação. Estas não lhe são próprias, aplicam-se a todas as imagens animadas,mas assumem também aqui uma dimensão particular, uma vez que a televisão é o prin-cipal instrumento de percepção do mundo da grande maioria da população.

A televisão contribui diretamente, portanto, para retratar e modificar as repre-sentações do mundo. Todavia, não é fácil determinar em que sentido ela o faz, a menosque se estabeleça unilateralmente o uso que os espectadores fazem das imagens rece-bidas! Uma coisa é certa: o choque que se produz entre a imagem e os quadros de re-cepção e de interpretação dos públicos impede uma leitura simples e unívoca. Assim,defasagem entre a própria estrutura da imagem e as estruturas de percepção e inter-pretação dos públicos é permanente. Como dissemos muitas vezes, nãp_éjorque_tQdí)mundo vê a mesma coisa que a mesma coisa é vista por tudo mundol Em resumo, osheróis que ela mostra ou retrata entram em concorrência direta com outros sistemasde construção de identidades moldados pela sociedade, pela escola... Essa dupla funçãode identificação e de representação não é passiva e resulta de uma espécie de interaçãoconstante entre os espectadores e aquilo que a televisão mostra sobre o mundo.

Essas características da comunicação televisual explicam por que a progra-mação é uma atividade essencial. Por programação, devemos entender três fenômenosde natureza diferente, mas por isso mesmo importantes. O primeiro é a função de ca-lendário, de estruturação, função importante sobretudo porque, como vimos,_a teje-visãoé uma espécie de relógio imutável davida.cjitidjana.

O segundo é a distinção muito nítida entre o que se depreende da informaçãoe o que se depreende do resto dos programas, pois a informação é aquilo que se rela-ciona com o mundo objetivo tal qual é, mobilizando o cidadão como espectador, en-quanto o resto dos programas — ficção, esporte, documentários, jogos — solicita-o maiscomo espectador.^AJnformação é aquilo que obriga o espectador a ver o mundo e a seinteressar, por pouco que seja, pela marcha da história da qual ele está, a

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

dojgmrjo^excluído como prótagonistejiias pela qual ele_é_resp_pnsável devido a seustatusàe cidadão de umadejnocracia^ejnassa.

Por essa razão, não é muito conveniente que se multipliquem programas emque as informações, cujas imagens não estão disponíveis, sejam apresentadas_s5bjjor-

jnajie ficção. Se não há imagens, melhor falar do que "inventar". A reconstituiçãohistórica é, às vezes, extremamente útil para fazer com que se tome consciência dahistória, como no caso de Holocausto, por exemplo, mas um tal expediente parecemuito discutível quando se trata da realidade cotidiana, pois ela induz a uma percepçãodifusa dos limites entre ficção e realidade.

O terceiro ponto trata da necessidade de respeitar os grandes gêneros da pro-gramação. Por mais arbitrários que sejam, eles constituem portas de entrada a uma ofer-ta de imagens de todo gênero. Convencional e, por vezes, artificial, a grade de progra-mas (informação, esportes, documentários, variedades, programas infantis...) ofereceuma espécie de modo de usar, de pré-grade de interpretação para esse fluxo de ima-gens, sem falar que a "codificação" feita pelo espectador modifica essa classificação, ouseja, esquece-a totalmente nos seus procederes de mudança de sentidos. Essa funçãode ordenamento da realidade não é necessária, a não ser pelo seu lado antiquado, tradi-cional e familiar que constitui, na realidade, uma espécie de proteção. Em outras palavras,imagem e organização — quer dizer, programação — ligam-se para não deixar o es-pectador sozinho diante da descontinuidade de imagens. O que amamos na televisãoé, principalmente, tanto o inesperado das imagens quanto o fato de sabermos que suaaparição é organizada numa grade, por definição insatisfatória, mas que constitui umaespécie de aquecimento temporário da percepção. Essa "codificação" das emissões temuma função essencial de ponto de referência cultural e relembra que a recepção não étotalmente livre. A importância da programação está, além disso, diretamente ligada aostatus da televisão geralista, sempre com um perigo de desnaturalização, se a progra-mação atinge uma adequação estrita entre a demanda e a oferta, como é tendência datelevisão privada e como será afortioridz televisão temática. A força da programaçãoresulta, de fato, da capacidade de manter uma autonomia da oferta em relação à de-manda, e, portanto, da possibilidade de apresentar programas que nem sempre têmgarantido o sucesso de audiência — duas condições que, a priorí, dão à televisão públi-ca a possibilidade de estabelecer a melhor programação, visto que a televisão privada éexcessivamente submetida a uma programação "econômica", em que a oferta deve ten-der a corresponder exatamente, por razões de rentabilidade, à demanda. Existe aí, por-tanto, um risco de empobrecimento da noção de programação, cujo extremo é a1 tele-visão temática, na qual, por definição, não existe defasagem entre a oferta e a deman-da. A mesma palavra pode, portanto, indicar práticas substancialmente diferentes.

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Igualdade e confiança: duas características de imagem de televisãoA programação tem também uma outra vantagem: ser a prova tangível da igual-

dade de acesso aos tipos de imagem. Ora, a igualdade desempenha um papel essencialno sucesso da televisão, pois proporciona, de modo incontestável, a informação quepermite a cada um ver e ouvir os políticos, o que, sabemos, é para eles uma provacruel de sinceridade! Pois se querem ser vistos para convencer, eles também se des-vendam ao se mostrarem, conseqüentemente, a distância entre o seu discurso e a ima-gem que ostentam de si mesmos não escapa aos espectadores, que não deixam de cen-surar aqueles que os tomam por tolos. Ao contrário do que se acredita, jjmagem_émuitasvezes menos rnenürosa_que_as_p_alavras.

Igualdade também em relação ao esporte, para o qual talvez nem se possa en-fatizar o bastante o quanto a televisão serve de incitação. Os espectadores não se con-tentam em "consumir o esporte" no seu sofá, mas nele encontram muitas vezes umconvite à prática. A imagem não é tão "esquizóide" quanto já se quis que fosse, poisse essa tese fosse verdadeira, as inúmeras imagens políticas e esportivas mostradas pelatelevisão teriam afastado os espectadores do exercício da política e do esporte. Ora,em quarenta anos de televisão, não parece que a participação nessas duas atividadestão diferentes e essenciais tenha diminuído. A televisão constituiu-se, ao contrário,num fator de estímulo. E deu-se o mesmo com a música pop, a música clássica, oteatro...

A maioria dos programas remete, portanto, àidéia dejjrqmoção culturajjugual-dade de_acesso que está no cerne da relação de confiança dopúblico com a_telêvi§âQi.Com muita freqüência esquecemos que a televisão foi e continua sendo um instrumentode promoção cultural e que é preciso ver nisso uma das causas do seu sucesso, mesmoque as elites, igualmente pertencentes a essa cultura de massa, a censurem sem cessarpor não lhes trazer uma produção cultural de elite. A televisão baseia-se e deve con-tinuar se baseando na ordem de produção do grande número, nisso está sua força etambém sua fraqueza.

É assim que passamos da idéia de igualdade àquela, também fundamental, deconfiança: o público confia na televisão e naqueles que a fazem, creditando a eles a von-tade de apresentar aquilo que existe de mais interessante e de mais importante. A con-fiança do público na televisão se traduz por esse sentimento difuso, mas essencial, deque os programas saberão oferecer a seleção mais coerente possível das grandes questõesdo momento2. Igualdade e confiança caminham lado a lado e a crise mais séria que atelevisão poderia conhecer seria aquela em que o público, privado da primeira, lhe re-tirasse a segunda.

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Por que insistir no laço entre a imagem da televisão, o contexto de emissão ede recepção, a organização das imagens numa grade de programas, a igualdade e a con-fiança? Porque são essas características, e não apenas a força de atração das imagensanimadas, que explicam a sedução e o sucesso da televisão.

É essa ligação entre uma lógica estética, a produção de imagens e os liames so-ciais inerentes a essa mesma produção e recepção de imagens que caracteriza, até omomento, a televisão, e explica, sem dúvida, o seu sucesso. É essa ligação que não le-vamos suficientemente em conta quando refletimos sobre o futuro da televisão: a se-dução das imagens e o seu sucesso são inseparáveis de uma certa representação sociale cultural. É nisso que o dado técnico, a imagem, está de alguma forma dissociado deum dado sociocultural, explicando, segundo pensamos, a unidade teórica fundamentalda televisão.

Mas por que essa ligação entre a imagem de televisão e certas condições so-ciais e culturais necessárias ao seu sucesso continua imperceptível? Isso mereceria umaanálise aprofundada que permitisse escapar do discurso convencional sobre o impacto"não controlado", que sempre receamos, das imagens sobre "o público". É, portanto,no coração da imagem, fator evidente de liberdade individual, que é preciso tambémbuscar o laço social.

Poucas análises da imagem: o preço do sucesso?Por que há poucos trabalhos sobre os laços entre imagem e contexto social? E,

de maneira geral, sobre a imagem de televisão3? Por que, tantas vezes, vemos na ima-gem aquilo que escapa ao socius ou aquilo que — e é a mesma coisa — o manipula?

As razões são numerosas. Para começar, na tradição ocidental, a imagem sem-pre foi considerada como um objeto menos digno de interesse do que a escrita. As des-confianças do discurso religioso em relação à idéia de representação, o temor da fo-tografia, depois do cinema, fazem da história da imagem, fixa e animada, o duplo menor,ou desvalorizado, da história do texto e mesmo da palavra. A imagem da televisão sofreuma desvalorização redobrada.

Ainda hoje, existe uma defasagem entre o grande número de trabalhos teóri-cos sobre a imagem de cinema e um número escasso sobre a imagem da televisão. Comose víssemos uma espécie de hierarquia no próprio seio das imagens. A mistura de gênerosnas imagens da televisão não suscita talvez o mesmo interesse estético da imagem decinema4, reforçando a idéia dominante de que a televisão é uma espécie de "fluxo con-tínuo de água morna". É mais ou menos como se ficássemos livres da questão do suces-so da imagem de televisão ao desvalorizá-la. Como se a profusão de imagens, e sua ba-nalização, não pudessem conduzir senão a essa desvalorização. A desconfiança em re-

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

gerais, a não ver nada de interessante nessa questão: a imagem continua sendo o ter-ritório não pensado da televisão.

Um meio de massaA dificuldade que se encontra na análise da imagem televisual reaparece quan-

do se examina a segunda dimensão da televisão, o seu caráter de meio de massa.Sem dúvida a televisão se impôs imediatamente como meio de massa, dando

origem, como vimos, a dois tipos de trabalhos, alguns ligados diretamente ao mercado,sobretudo norte-americano, outros, de caráter mais acadêmico, que se repartiram emorientações empírico-críticas ou exclusivamente críticas em proporções que variam se-gundo as épocas e os países. Até agora a reflexão sobre o meio de massa não se apro-fundou, como se ela fosse obscurecida por outro problema, o de número e de massa,surgido no fim do século XIX. Atividade de massa, a televisão retoma as questões decultura de massa colocadas pelo rádio entre as duas guerras, e, antes, pelo impulso daimprensa popular a partir de 1870.

Existem vários sentidos e conotações para a expressão "meio de massa", dosquais quatro se aplicam à televisão.

A primeira justificativa do termo é técnica, ou seja, a televisão é um meio demassa ligado a um efeito multiplicador propiciado pela difusão (hertziana-cabo-satélite) e pela recepção por muitos milhões de telespectadores no mundo. Qual ou-tra atividade, notadamente cultural, pode exibir um tal número de "receptores" damesma mensagem, sabendo-se que existem sempre diversas pessoas diante de cadareceptor?

AsegundaJ,jurídica. Em todos os países, a atividade da televisão é estritamenteregulamentada para permitir que todo mundo receba a sua imagem. Essa idéia, cuja ve-racidade aplica-se sobretudo à televisão de serviço público, vale também para a tele-visão privada, pois a lei _esüpula_que a televisão deve ser recebida por todos, mostran-dpj^sjârr^^ua^M^

AJsr£ejra_é_p_olítica. Em todos os países, os poderes públicos desejaram que atelevisão, ainda mais que o rádio, fosse objeto de um projeto global. Isso ia além da ideo-logia de serviço público e englobava o meio em seu conjunto, associando, talvez, aosprojetos de televisão, a idéia de uma coesão jqcja] §, ç$Ng^$^g&stâ^fa,$i^-palmente depois da guerra: q controle político dajtelevisão e.seu^derivado, a televisão

início ,J:anta,,arnbiçãoquanto a escola um século antes^

z^Tanto em relação aos equipamentos, quanto aos programas, pareceu indispensável pro-

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- A UNIDADE TEÓRICA DA TELEVISÃO -

£_duzjrjm^grandejs£a]a,pjarajp^ esse ponto de- massa. Existem economias de

escala a serem realizadas nos dois extremos (equipamentos e programas), em que arentabilidade, como em toda atividade de espetáculo a fortiori nessa escala, é indis-pensável8.

A dupla dimensãoMeio de massa significa também a mistura de uma dimensão técnica e de uma

dimensão social. Esse talvez seja o sentido mais original da expressão: não podendo atelevisão ser reduzida nem à dimensão técnica — a imagem — nem à dimensão social— a idéia de um meio de massa —, ela exprime, então, a indissociabilidade dessas duasdimensões, em que o termo "jneio" remete^_ma^rj^^termo "mass_a".;à_sj)ciedade.Essa ligação pode ser analisada em dois níveis:

O primeiro nível é a interação evidente e indispensável entre a dimensão téc-nica e a social. A tdeyjsjipjiãojjjj^ Odestinatário dessas imagens, isto é, o público de massa, retroage sobre as condições eo estilo de produção da televisão. Às limitações estritas da imagem-filme ou da imagem-vídeo, incorporam-se as limitações ligadas ao fato de que essas imagens são produzidaspara um público complexo demais para se caracterizar, pois não se trata de um públi-

de um público de_elite,j: tampouco um público "médio", mas umajs-pécie de mistura dos^^impjopriamente^cham caráter7;rnuItipõsHõnado", como dizemos no jargão de marketing, inerente ao público da tele-visão, faz a sua complexidade e a sua força: ^^^ma,^ort^Q_,MO^âsMLKÚ]&ç^a nenhuma das estjatificações,spdais,,^remetendo às três ap .mesmo Jempo,^^^ma_sMde,m.aneirajlguE^=de=mQdo«específi,co. Defato, quase todo mundo assiste à totalidade das produções audiovisuais. Essa carac-terística determinante e misteriosa do destinatário das imagens é que, de alguma for-ma, influencia previamente, mas de maneira não explícita, a maneira como as imagensdevem ser concebidas e montadas. Essa mistura de uma produção e de uma difusão deimagens de gêneros diferentes, que devem atrair a curiosidade de'um público multi-forme que as recebe no local mais privado, o domicílio, constrói uma configuração in-teiramente original.

As capacidades técnicas não bastam, portanto, para caracterizar a natureza domeio cuja apropriação coletiva constitui, de qualquer forma, um elemento-chave dadefinição, colocando um freio evidente em todas as outras prospecções tecnológicas,que confundem precipitadamente o surgimento de serviços com a possibilidade real dese fazer uso deles.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

Ao contrário, é exatamente a pressão de uma produção de imagens espetacu-lares e fascinantes que explica as dificuldades das televisões de bairro e comunitáriasque querem subordinar o instrumento televisual a um fim político de transformaçãodas relações sociais. O sentido não é apenas definido pela projeção de um projeto políti-co ou cultural contido nas imagens, mas resulta também da garantia de acolhimentona recepção que, se for má, invalida parcialmente as intenções dos autores.

Na realidade, a televisão é uma atividade coletiva, em que o número e a di-versidade de competências mobilizados garantem-lhe uma dimensão composta queimpede qualquer leitura única. Poder-se-ia acreditar que essa definição dupla, técni-ca e social, é uma espécie de "duplo laço", reduzindo de alguma maneira o valor datelevisão. Mas não é nada disso, pois trata-se menos de um duplo laço do que de umadupla liberdade, oferecendo ao espectador a possibilidade de conservar um livre ar-bítrio.

Veremos, além disso, na terceira parte deste livro, consagrada ao desafio datelevisão de massa, em que medida essa dupla definição da televisão constitui uma dascaracterísticas que pesa, a meu ver, em favor de uma concepção geralista da televisãocontra uma definição mais precisa pelo público especializado, justamente porque o pro-jeto aparentemente democrático da televisão fracionada corresponde, de fato, a um de-sequilíbrio no caráter da televisão ao hipertrofiar uma das suas dimensões em detri-mento da outra.

• O segundo nível da análise da televisão como meio de massa vem da interaçãoespecífica entre a polissemia da imagem e o contexto que lhe dá sentido. Dizer que ocontexto atribui sentido às imagens é uma verdade que se aplica tanto às informaçõesquanto aos outros programas. Quanto às informações, numerosíssimas pesquisasdemonstraram que os espectadores fazem uma triagem entre as milhares de informaçõesrecebidas, evitando assim serem sufocados e desorientados por aquelas que os pertur-bam: sua própria percepção política da realidade funciona como um filtro. São as suasopiniões ideológicas que lhes permitem escolher, aceitando mais aquilo que os conforteem suas opiniões e, muitas vezes, rejeitando o que os perturba. Além disso, é esse pro-cesso de integração filtrada de informações que explica a modificação muito lenta deopiniões, cujo contexto cultural de cada país desempenha um papel importante em facedas fiéis preferências dos espectadores. Certamente, as informações difundidas são maisou menos as mesmas e feitas da mesma maneira nos diferentes países, mas tudo é mo-dificado por essas múltiplas variações que fazem com que os pontos de vista político,ideológico, geográfico, cultural de um alemão, de um francês e de um italiano per-maneçam diferentes. Não é pelo fato de a "forma" da informação ser tristemente a mes-ma em todos os países, com o mesmo estilo de cenário, de elocução, diretamente in-

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- A UNIDADE TEÓRICA DA TELEVISÃO -

fluenciada pelo modelo de "informação gelada" americano, que deixam de existirnotáveis diferenças. E são essas diferenças de contexto que desempenham um papelessencial na apropriação das informações.

O mesmo fenômeno ocorre com os programas, nos quais as condições de re-cepção misturam lógicas diversas. Sem dúvida, o sucesso das séries americanas no mun-do inteiro podem fazer crer numa lógica de estandardização, mas a necessidade de umaprodução original nacional e, sobretudo, de um estilo de produtos e de programaçãoem que se possa mostrar as especificidades de cada país é igualmente forte. Pois o suces-so das séries americanas, definitivamente, não resulta do fato de serem internacionais,pelo contrário, elas fazem sucesso porque são profundamente americanas nos es-tereótipos que veiculam. Concluímos, portanto, que, a despeito das imensas seme-lhanças entre as televisões do mundo, são muito mais as diferenças, às vezes impalpáveisque, de certa maneira, organizam as condições de recepção dos programas nacionais einternacionais. Prova disso é que a presença dos mesmos programas de televisão ameri-canos em dois países deixa transparecer essa diferença, porque a programação não énecessariamente a mesma, seja pelo que vem antes ou depois desses programas, massobretudo pela diferença do quadro cultural da recepção. Os mesmos folhetins vistosem Caracas e Hong Kong não conseguem fazer esquecer que não estamos nos EstadosUnidos, mas em Hong Kong ou Caracas e que se trata de divertimento. Não é por sedivertirem, em parte, com os mesmos programas internacionais que os públicos na-cionais abdicam da sua identidade9.

Em outras palavras, o milagre da televisão é esse encontro entre imagens es-tandardizadas, apesar de polissêmicas, e de condições de recepção que criam uma ou-tra polissemia, ligadas ao contexto cultural e político da recepção.

É aí que reside a força da televisão como meio de massa: todo mundo assisteàs mesmas imagens, mas ninguém vê a mesma coisa! Quer dizer que o quadro dereferências é ao mesmo tempo dado e produzido pelo meio de massa. A escala de di-fusão esboça o cenário no qual as imagens ganham sentido, mas a recepção de mas-sa traz modificações que permitirão a essas imagens encontrarem o seu quadro dereferências. Existe, portanto, uma interação: o meio de massa não é apenas uma cor-reia de transmissão que permite que as imagens cheguem ao destino, mas contribui,ele próprio, com a evolução do quadro cultural no qual as imagens ganham sentido.Qual seria a capacidade técnica das imagens sem esse meio simultâneo de difusão demassa? Como seria esse quadro cultural comum ao qual as mídias de massa permitemo acesso se não houvesse a imagem para animá-lo, vivificá-lo e dinamizá-lo? É essa"solidariedade" que explica o fato de ser a televisão duas coisas indivisíveis ao mes-mo tempo.

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A confiança do públicoChave do sucesso e da legitimidade da televisão, o público se acha na con-

fluência do espetáculo de imagens e do meio de massa. Ele não constitui um dado es-trutural da televisão, mesmo sendo a condição para que o encontro entre a imagem eo meio possa ocorrer. Ele é mais uma conquista, um desafio, um resultado. Pois nãohá televisão sem o encontro improvável dessas imagens e desse público que se formae se deforma de hora em hora, sem ser jamais o mesmo e que precisa ser constituídoa cada vez. O público, esse conjunto heteróclito que se acha na outra ponta dos re-ceptores e das imagens, não é apenas a soma daqueles que assistem ao esporte, à in-formação ou às variedades, mas também esse conjunto que se agrega diante de diver-sos programas heterogêneos aleatoriamente. Daí a força da televisão estar nesse en-contro renovado a cada dia entre uma oferta heterogênea — mesmo que organizadanuma grade — e uma demanda heterogênea. Conforme eu já disse em uníssono comalguns outros na França (como Michel Souchon), o interesse da televisão é o de se di-rigir ao grande público, mesmo sabendo que são vários públicos que a assistem. Esseé o segredo da televisão: como meio de massa, ela está ao lado do geral e não do par-ticular. Essa lógica do geral contra a do particular é um componente essencial da ade-são do público à televisão: ele confia nela porque ela lhe oferece um pouco de tudo eele faz, portanto, aquilo que quer.

Além disso, é essa confiança na televisão que lhe confere o seu papel de laçosocial, apreciado sobretudo porque é livre e sem limitações de parte a parte. Uma con-fiança que é condição indispensável para aceitar esse "companheiro em domicílio".Pois este não é apenas um instrumento de divertimento mas também, graças à aber-tura ao mundo que ele oferece através da informação e de uma boa parte dos progra-mas, um sério fator de desequilíbrio! É indispensável, portanto, toda a confiança quese lhe atribui para aceitar essa intrusão cotidiana de um mundo muitas vezes selvageme violento, não amigável e caloroso. É, também, essa confiança que se mobiliza nasgrandes campanhas humanitárias: a Band Aid pela. Etiópia, pela Aids, os restaurantsdu coeurs, os téléthons*. Nada disso poderia ter sucesso não fosse o status de meiode massa da televisão, ao mesmo tempo laço social livre, objeto cotidiano e janela parao mundo.

*Restauram du coeur [Restaurante do coração]: associação filantrópica fundada pelo ator cômico Michel Colucci, já falecido,que tem como propósito fornecer aos desabrigados e pessoas pobres alimentação gratuita durante o inverno. Téléthom pro-grama de televisão de 48 horas de duração, retransmitido por todos os canais (menos as Ws a cabo), com o propósito dearrecadar fundos para combate à miopatia de Duchenne, doença que ataca o sistema muscular. (N.T.)

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A televisão de massa assume assim duas funções parcialmente contraditórias:manter o laço social numa sociedade estandardizada e oferecer esse laço num momentoem que existem mais e mais contradições. Na realidade, ela não é nem esse instrumentode estandardização que tão freqüentemente vilipendiamos, nem esse instrumento dediversificação que almejamos que seja. Ela é provavelmente as duas coisas ao mesmotempo, o que explica a sua profunda ambigüidade.

Notas ao capítulo 3

1. Para uma análise do "quadro" e do "contexto", ver GOFFMANN, E. Frameanalysis. New York, Harper and Row, 1974.

2. Essa confiança a priori em relação à programação é provavelmente um para-doxo quando constatamos, também, a desconfiança que parece caracterizar os france-ses com relação à informação, conforme demonstra, pelo terceiro ano consecutivo, asondagem Sofres—La Croix, Mediaspouvoirs. Cf. o comentário de D. Wolton,"Sondage: lês Français et leurs médias, Ia confiance reste partielle", Mediaspouvoirs,( l8) : 7-22, 1990.

3. CHESNAIS, R. Lês racines de 1'audiovisuel. Paris, Anthropos/Economica,1990; MOUNIER, M., dir. Comment vivre avec 1'image. Paris, PUF, 1989. Na França,foi em torno da semiologia e da revista Communication, na década de 1970, que sedeu com maior nitidez o investimento intelectual, principalmente com os trabalhos deEliseo Veron. Cf. "Uanalyse dês images et Ia bibliographie". RevistaiCommunications,n. 15. Paris, Seuil, 1970. "Psychanalyse et cinema". Revista Communication, n. 23,Paris, Seuil, 1975. WILLIAMS, R. Television, technology and cultural form. New York,ShokenBooks, 1975.

4. Cf. os trabalhos de Ch. Metz, resenhados e analisados em "Ch. Metz et Iathéorie du cinema". ÍRIS, n. l O, Méridien Klinscksieck, abril 1990. Cf. também DELEUZE,G. 1'ima.ge, mouvement, cinema 1. Paris, Editions de Minuit, 1983; idem. Uimage,temps, cinema 2. Paris, Editions de Minuit, 1985. Ver também, no âmbito americanoe inglês, os estudos de semiótica: FISKE, J. Television culture. London, Methuen, 1987.Idem. "British cultural studies and television". In: ALLEN, R. Channels of discourses.Chapei Hill, University of North Carolina Press, 1987. FISKE, J. & HARTLEY, J. Readingtelevision. London, Methuen, 1987. MAC CABE, C. High theory, low culture, analy-zing popular television and film. New York, St. Martin's Press. NICHOLS, B. Ideologyand the image. Bloomington, University of Indiana Press, 1981.

5. Cf. a problemática do número em "Masses et politique", revista Hermes,Cognition, Communication, Politique, n. 2, Editions du CNRS, 1988. "Vers une

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

problématique dês masses", "Naissance de Ia théorie dês masses", "Métamorphosede Ia problématique" e, no n. 5/6 da revista Hermes, Editions du CNRS, Paris, 1989,"Désordre individuel et désordre social", "Psychologie politique", "Psychanalyse etpolitique".

6. DAYAN, D. "A propôs de Ia théorie dês effets limites", revista Hermes, n. 4,Ediüons du CNRS, 1989.

7.0 Ocidente sempre desconfiou da imagem, como testemunham as querelassobre a representação no início do cristianismo, retomadas pelas igrejas da Reforma. Aofinal, o "discurso" e o "conceito" serão sempre os preferidos, ficando a aceitação dogesto talvez como elemento intermediário. O gesto será mais aceito do que a imagem,por causa da sua especificidade, ou seja, a relação entre aquilo que ele é e aquilo queele indica, e esta especificidade será muito trabalhada e admitida, principalmente porcausa dos gestos sacramentais. Por outro lado, a codificação dos gestos será mais fra-gilmente estruturada do que a das imagens, antes que a diferenciação social, crescentea partir dos séculos XIV e XV, passe a permitir uma "cartografia" dos gestos, da qualguardamos ainda um traço em nossa antropologia moderna. Na passagem da palavrapara a imagem, parece que o gesto é o "intermediário" até o ponto em que o Ocidenteaceitou chegar numa lógica da comunicação, inclusive a comunicação com Deus. Cf.:LÊ GOFF, J. La civilisation de 1'Occident medieval Paris, Arthaud, 1964. SCHMITT, J. C.La raison desgestes dans VOccident medieval Paris, Gallimard, 1989.

8. Além disso, a ruptura ocorrida no século XIX com a "revolução" da im-prensa escrita popular de "um tostão" permitiu pela primeira vez juntar um objetivodemocrático com um econômico. Cf. HELLANGER, Ch. Histoire de Ia presse. Paris, PUF,1972. t. 3.

9. LIEBES, T. & KATZ, E. Watching Dallas, the export ofmeaning. New York,Oxford University Press, 1990. RADWAY, J. "Reception studies: ethnography and theproblem of dispersed audiences and nomadic subjects". Cultural Studies, 2(3], 1988.

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v\(M

x

4As ideologias da

televisão -

A dificuldade de pensar a televisão, objeto onipresente mas inapreensível, fontede esperanças e de decepções, instrumento de liberdade constantemente embaraçadonos debates políticos, é uma incitação permanente aos discursos ideológicos.

Desses numerosos discursos sobre a televisão, dois se destacam pela sua coe-rência, sua organização e sua permanência. Eles são simétricos e complementares e dis-cutem a ideologia técnica e política sob formas diferentes há quarenta anos, à medidaque a televisão se transforma continuamente. Sua premência e a força da sua convicçãovêm, como sempre, do fato de fornecerem uma resposta simples a questões bastantecomplicadas: o que é a televisão? Como a vêem os indivíduos? Para que serve ela nasociedade?

A eficácia desses dois discursos vem também do fato de cada um deles, à suamaneira, pretender resolver a dificuldade, examinada no capítulo precedente, que con-siste em pensar em conjunto a dimensão écnica simbolizjid^_pjlajmagem e j^dimen;são social simbolizadajDela função de meio^dejnasja^.

A versão técnica pessimista vê na interconexão da televisão com as telecomu-nicações a fonte de um poder totalitário. A versão otimista concebe a interconexão datelevisão, informática Q telecomunicação como o instrumento global de uma modifi-cação radical das situações de trabalho, do funcionamento das organizações e do sis-tema de poder numa sociedade mais democrática.

A versão política pessimista vê nesses mesmos instrumentos o triunfo da aliena-ção do homem unidimensional e de uma racionalidade técnica colocada ao serviçoda lógica consumista e passiva. A versão política otimista, ao contrário, encontra na

f • Ineutralidade potencial desses instrumentos a ferramenta de reorganização das relaçõessociais.

Cada um deles tem em mente os inúmeros estudos e livros que nos prome-teram seja a sociedade policial, com uma televisão interativa controlando tudo, seja asociedade irênica, em que essas mesmas tecnologias permitem uma "comunicaçãoautêntica" entre pequenos grupos independentes da lógica do poder e da dominação.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

O sucesso dessas duas ideologias, além de buscar a satisfação de tornar com-preensível e coerente uma realidade inapreensível, provém também do fato de que sereferem à comunicação, que é um dos valores maiores da "sociedade individualista demassa". Esta, gerando simultaneamente duas realidades contraditórias, o indivíduo e amassa, coloca no centro do seu funcionamento a comunicação, realidade funcional evalor normativo.

A televisão entre a ideologia técnica e a ideologia política

Se, por um lado, as duas ideologias são consubstanciais à televisão, como vi-mos, por outro lado, elas foram se alternando no decorrer do tempo. Incontestavelmente,foi a ideologia política que dominou durante vinte anos, entre 1950 e 1970, os confli-tos a respeito da orientação e do conteúdo social e cultural a ser dado à televisão. Depoisdo decênio de 1970, a televisão passou a ser dominada principalmente pelo discursotécnico, com as novas tecnologias de comunicação, que parecem abrir um espaço in-finito de comunicação. É possível que amanhã, com os projetos de televisão fragmen-tada e sobretudo européia, o discurso político venha, de novo, a prevalecer.

A ideologia técnicaÉ de certa maneira a ideologia de base da televisão, diretamente ligada às fan-

tásticas possibilidades oferecidas por um instrumento que suplanta o domínio já presti-gioso do rádio. Quase sempre esquecemos o fantástico sucesso popular obtido pelo rá-dio entre 1935 e 1955, sucesso pouco esclarecido por falta de livros sintéticos sobre oassunto. Foi apoiando-se na primeira ruptura introduzida pelo rádio1 na ordem da co-municação à distância que a televisão pôde se implantar, trazendo com ela a imagem,ao mesmo tempo tão desejada e tão temida.

É mesmo provável que a sua acolhida tivesse sido muito diferente se não tivessehavido, antes, a ruptura introduzida pelo rádio. Além do que a mudança trazida pelaimagem televisiva foi, sem dúvida, sentida mais profundamente e, às vezes, maiscruelmente, pelos profissionais do rádio e também das variedades, do teatro e do circo,que pressentiram nessa generalização da imagem o fim de toda uma época do espetáculoe das relações com o público. O rádio já havia introduzido uma ruptura em relação aosespetáculos ao vivo dominantes (cabaré, music hall, circo...), mas ele conservava ain-da um pé no espetáculo ao vivo pelo tipo de papel que atribuía aos speakers, pelos jo-gos e pelo lugar reservado aos cantores. Com a televisão dava-se ao mesmo tempo oprolongamento do rádio e a ruptura, não só por causa da imagem, mas porque a tele-visão se inseria na economia de lazer de massa do pós-guerra.

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- AS IDEOLOGIAS DA TELEVISÃO -

As limitações técnicas eram inicialmente tão grandes que a cultura da televisãofoi, por muito tempo, uma cultura técnica no seio da qual os profissionais do "conteú-do" tiveram dificuldades em impor uma reflexão sobre o estilo das imagens. Já era umtal prodígio "gerar" imagens e "trasmiti-las" que, durante um certo tempo, todos se con-tentavam com isso, deixando que a realização técnica praticamente se bastasse a si mes-ma. Isso explica o caráter dominante do discurso dos engenheiros, sobretudo na Europa.Um pouco como se a tecnicalidade dos instrumentos e da linguagem constituísse umaespécie de garantia contra a polissemia das imagens, ou quase uma tela em que nadase via.

É talvez o peso dessa lógica técnica que explica o sucesso de M. Mc Luhan ede sua fórmula "o meio é a mensagem", fórmula que foi recebida como um ato de rup-tura e provocação em relação a toda uma tradição de comunicação e de pesquisa sobreas mídias, quando se tratava exatamente do contrário! Falar de uma "aldeia global" ex-prime exatamente um conceito técnico da televisão, uma vez que essa fórmula traduzimediatamente a mudança de escala que ela provoca, sem evocar uma segunda, quecontinua a separar as "aldeias" entre elas e que, do ponto de vista cultural, filosófico,religioso, histórico, é bem mais importante que as mudanças trazidas pelas técnicas decomunicação.

Essa tese, aparentemente provocativa, foi apenas modernizadora, pois elimi-nava a análise da complexidade da imagem audiovisual para subordiná-la ao conjuntode parâmetros técnicos mais conhecidos. Tecnicizar a televisão reafirmava o próprioconteúdo da atividade e permitiria abordar a questão do seu impacto social e culturalde um modo instrumental, muito próximo da linguagem do engenheiro. Além disso,jamais poderemos enfatizar o suficiente o quanto uma lógica de engenheiro tem de tran-qüilizador para a apreensão de técnica ou de aplicações novas de impacto social e cul-tural forte e diante das quais a racionalidade técnica é um fato tranqüilizador. :

O discurso técnico tem, em geral, a vantagem de simplificar os problemas so-ciais, sobretudo no domínio muito incerto da comunicação, ao falar essencialmente de"novos serviços" — o que faz supor que eles têm a resposta para uma demanda, comose não criassem de fato uma situação nova, mas preenchessem lacunas de uma situaçãoantiga, "que já estava lá".

A ideologia básica do discurso técnico é o modernismo, cujo corolário diz quetoda crítica aos produtos novos traduz um atraso cultural, uma mentalidade inadapta-da aos tempos modernos. O que tem o mérito de ser simples, quadrado, como os serviçospropostos por uma técnica.

A outra característica essencial desse discurso é a valorização dessas mudançase o modo positivo com que são apresentadas, ou seja, no que se refere ao seu apri-

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

moramento: a ideologia técnica raramente é pessimista ou catastroflsta, em contra-posição à ideologia política que examinaremos mais adiante. Ela insiste no desempe-nho e no progresso. Para perceber a amplitude desse discurso, seria necessário retomaros numerosíssimos trabalhos de prospecção tecnológica que pontuaram os anos de 1960a 1980, nos principais países ocidentais, prometendo a cada vez, com um calendárioimpecável, a programação de mudanças sempre radicais na perspectiva de um futuromais e mais radioso.

O discurso técnico do qual são objeto a informática, as telecomunicações, oaudiovisual e sua interconexão, foi amplificado pelo discurso tecnocrático que viu nacomunicação a ocasião de uma "mobilização modernista" sem precedente. Os poderespúblicos, tomados de vertigem "comunicativa", encomendaram a comissões parla-mentares, a peritos, a altos funcionários, a personalidades2, inúmeros relatórios desíntese, não para avaliar o calendário técnico, mas para redefinir as mudanças econômi-cas, sociais, culturais que era preciso colocar em cena simultaneamente para acom-panhar a "revolução da informação e da comunicação". Enquanto o poder nuclear sedesenvolvia em todos os países num silêncio quase militar, a comunicação era alvode uma fantástica logorréia tecnocrático-industrial, em que a linguagem já proféticae mágica dos engenheiros foi enfatizada pela linguagem dos tecnocratas, depois, dospolíticos e, enfim, das mídias. Todos enxergaram nas tecnologias da informação achave da economia de amanhã, a condição da reestruturação industrial, a base deuma nova sociedade em que a economia do simbólico suplantaria, enfim, aquela dosobjetos e da produção material, fazendo assim nascer uma nova gestão das relaçõessociais...

Era preciso, portanto, retomar aquela seriíssima bibliografia da prospecção téc-nica, econômica e política que vem acompanhando cada mudança importante há trin-ta anos, para ver como ela se engana, menos nos calendários do que a propósito do im-pacto previsto sobre as relações sociais3. As "revoluções" sucessivas que deviam todassuplantar a tecnologia precedente e, sobretudo, melhorar a comunicação, tiveram co-mo nome, sucessivamente, as telecomunicações, a telemática, os satélites de teleco-municação, o cabo coaxial, depois o de fibra ótica, os satélites de difusão direta e hojeem dia a televisão de alta definição. E a cada vez, os serviços mais competitivos e a in-tegração crescente das técnicas reforçaram a idéia de que os produtos estão cada vezmais próximos uns dos outros, favorecendo um conjunto complementar e harmoniosode serviços, da informática aos serviços telemáticos e depois ao audiovisual. É verdadeque, futuramente, a recepção de três tipos de produtos numa mesma tela dará credi-bilidade à idéia aparentemente sensata de que, estando no mesmo meio, não ficammuito afastados uns dos outros, visto que são complementares.

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Os desempenhos tecnológicos alimentam espontaneamente uma ideologia téc-nica que minimiza as diferenças de natureza existentes entre as atividades e os serviçosoferecidos pela informática, as telecomunicações e o audiovisual. A televisão é muitasvezes pensada em analogia com as telecomunicações e a informática, que abrangem so-bretudo a esfera de produção, de trabalho e, mais amplamente, de serviços, quando,na verdade, ela é outra coisa inteiramente diversa, a um só tempo divertimento e meiode informação privilegiado para a grande maioria da população.

Em resumo, seria preciso fazer todo um estudo crítico do discurso tecnocrá-tico-político sobre as técnicas de comunicação, tendo a França desempenhado nesse se-tor um papel essencial e complexo, uma vez que a sua história recente, nos séculosXVIII e XIX, foi, ao contrário da da Grã-Bretanha, da Alemanha e, evidentemente, dados Estados Unidos, marcada por uma grande reticência em relação à "comunicação".Isso se aplica não somente à imprensa escrita, mas também à estrada de ferro, ao rádioe ao telefone4. E, ao contrário, há vinte anos, a França tornou-se a grande provedora dediscurso e de política nesse domínio. Foi provavelmente Giscard d'Estaing que, de-cidindo em 1974 superar o atraso considerável da França em matéria de telefone, lançoua "moda política da comunicação" com o plano telefônico e depois telemático do quala poderosa DGT tornou-se o braço armado.

O grande colóquio "informática e sociedade" de 1979 teve repercussão mun-dial: a França, depois dos Estados Unidos, mas sobretudo do Canadá, tornou-se a pá-tria da reflexão teórica sobre a comunicação.

No que concerne à televisão, a ideologia técnica manifestou-se de duasmaneiras. De início, com o tema da televisão local e comunitária. Enquanto a televisãode massa era acusada de todos os pecados, a televisão local de bairro, gerada por "as-sociações" e "usuários", devia permitir que se encontrasse uma "comunicação autên-tica", sobretudo com o desenvolvimento do cabo — como se esse novo suporte, pelasua simples existência física, criasse uma espécie de laço novo entre os habitantes deum bairro ou de uma cidade. O favor de que goza a televisão local reflete eloqüente-mente o peso dos dotes técnicos nas representações ligadas à televisão e à comunicaçãoem geral. A diferença entre o rádio e a televisão a esse respeito é bastante interessante.O sucesso das rádios livres e locais — é preciso lembrar a situação na França entre 1979e 1981, quando a direita defendia ferozmente as rádios "livres" contra os "monopólios"públicos — brotou do caráter mágico da difusão hertziana. O entusiasmo pelas tele-visões locais, ao contrário, está mais ligado à idéia da televisão a cabo, como se o cabo,ao transportar a imagem comunitária, garantisse um laço mais autêntico do que as on-das que transportavam a imagem da televisão geralista. A transferência metafórica é evi-dente: existe, de fato, uma troca simbólica complexa entre as representações que faze-

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mos das diferentes técnicas de jcomunicação e a natureza dos seus suportes. Prova dacomplexa relação da técnica naquilojjue ela possa ter de físico com a comunicação,processo por natureza imateriaí e invisível.

Se esses projetos foram pouco numerosos na França, não foi por lucidez sobreos limites da "revolução da comunicação local", cujo apogeu foi marcado pelo projetonatimorto de sete cidades cabeadas na França, decidido sob a autoridade do primeiroministério de Pierre Messmer, em 1973: uma única realização veio à luz, em Grenoble,em condições rocambolescas e, afinal, muito modestas. Não, foi, ao contrário, por umaespécie de medo das conseqüências que uma tal multiplicação de televisões locais teriasobre o equilíbrio dos poderes regionais. Como sempre, na França, fizemos bem menosque antes, mas com uma dramatização política e ideológica extrema, dando aos paísesvizinhos, mais prosaicamente engajados em experiências concretas, a sensação de queeles nada tinham percebido dos desafios essenciais contidos nesses projetos de televisãolocal. E que só uma certa vigilância, à direita ou à esquerda, segundo o campo ondenos colocássemos, podia realmente enfrentar esses desafios.

É, além do mais, difícil distinguir o papel real desempenhado pela "comunidadelocal" em caso de movimento social. Se a experiência demonstra que não são nem asrádios, nem as televisões locais que conseguiram transformar realmente as relações deforça sociais e políticas, mesmo tendo reivindicado e vivido isso, não podemos tam-pouco afirmar que deixam de ter influência. É, na realidade, uma questão de contextohistórico. Em determinadas situações, a comunicação local, por influência do rádio ouda televisão, pode ter um papel de mobilização e favorecer uma identidade, um com-bate. Isso constatamos na maioria dos países, quando existe uma aproximação, numcombate, entre forças políticas ou culturais e o poder de comunicação. Mas nesses con-textos, raramente a comunicação é que é o motor: ela não faz senão substituir, ou se-ja, amplificar uma mobilização que existe previamente e que obedece à sua lógicaprópria.

O debate sobre a televisão local como condição básica da democracia não es-tá fechado: ele renasce regularmente quando alguém, constatando o vazio que há en-tre a comunicação "local" e a "nacional", deseja reconstituir uma "televisão regional"encarregada de "animar esse tecido regional indispensável" à vida democrática5.

O segundo exemplo da ideologia tecnicista manifesta-se na fascinação exerci-da pelas novas técnicas de comunicação que, desde a década de 1970, com a fibra óp-tica, o satélite, a difusão direta, a televisão de alta definição, servem literalmente deideologia de substituição à ideologia declinante de serviço público. Além do mais, istoé precisamente um arquétipo da vitória de uma ideologia técnica, pois que ela substi-tui um modelo político — a televisão pública — sem propor outro valor de substitui-

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cão que a aptidão de adaptar-se à mudança.'As novas técnicas de comunicação são van-tajosas porque não têm de responder a questões levantadas pelas "velhas tecnologias",como a televisão, porque, por definição, elas aorem um novo capítulo que torna relati-vamente superado, quer dizer, irritante, o discurse daqueles que insistem em colocarquestões "ora superadas".

As televisões locais e as novas técnicas de comunicação ilustram assim per-feitamente a ideologia tecnicista, no sentido de que, por "natureza", elas tornam su-peradas certas questões de ordem social ou cultural ligadas ao impacto, à divisão do tra-balho, à hierarquia, aos modelos culturais. Mas o modernismo, mesmo técnico, nãobasta para construir uma orientação social e cultural tanto no domínio da comunicaçãocomo em outros. Mesmo que o simples discurso da adaptação seja freqüentemente as-similado a uma idéia de projeto social...

A ideologia políticaA ideologia política é simétrica à ideologia técnica e não pode ser compreen-

dida senão em relação a ela, uma vez que deseja reduzir o determinismo técnico,preferindo a ele uma problemática colocada em termos de "utilidade social", comodizem Adam Smith ou Karl Marx. O técnico superestima a força de transformação dasrelações sociais ligadas à técnica; o ideólogo político superestima a capacidade de im-posição de um uso social sobre um dado estoque de instrumentos técnicos. Para ele,"o instrumento impõe nada ou muito pouco, contando apenas a utilização que a eleatribuímos". Não é mais "o meio que é a mensagem", como em Mc Luhan, mas sim oinverso: a mensagem é considerada determinante, com a idéia implícita de uma espé-cie de neutralidade do instrumento permitindo uma orientação outra que a puramente"técnica".

O paradoxo é que essas duas ideologias, inicialmente distintas, não podem fun-cionar uma sem a outra. A ideologia tecnicista impõe uma representação das relaçõessociais, isto é, ela extrapola, a partir de um certo número de serviços oferecidos, umareorganização das relações sociais, ou seja, das relações de poder. O mecanismo é idên-tico, mas inverso, na ideologia política: partimos de um projeto social que não faz senão"utilizar" as possibilidades de um estoque de técnicas, mesmo'que percebamos logoque a colocação em uso desse projeto depende das possibilidades técnicas!

As duas ideologias são espelhadas, com perspectivas muitas vezes opostas, geral-mente otimistas e abertas no discurso técnico, mais desconfiadas e críticas no discursopolítico, pois este teme o impacto inesperado das técnicas de comunicação sobre as re-lações sociais. O tema da "política da ciência e da tecnologia" deve, sem dúvida, muitodo seu sucesso atual à crença na capacidade de capitanear o desenvolvimento científl-

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co e técnico, colocando assim um fim a uma perigosa participação. As virtudes procla-madas de uma "política da ciência e da técnica" fazem parte do credo de todos os go-vernos, tanto de direita quanto de esquerda, no Leste assim como no Ocidente, tendocomo legitimação a idéia dupla — e ecumênica — de reduzir os riscos tecnológicos eindustriais simbolizados pelo poder nuclear e orientar os impactos sociais e culturaissimbolizados pelas técnicas de comunicação.

É mais ou menos como se o consenso sobre a necessidade de uma "política coe-rente" (já se viu alguém reivindicar uma política incoerente?...) tivesse a sua origem emdois domínios antitéticos: o nuclear para a visão hard, a comunicação para a visão soft.

A ótica a favor do domínio da tecnologia tem, portanto, uma base mais amplado que a vulgata marxista, mas traindo por vezes esse mesmo método Coué*, pois es-sa manobra não conseguiu impedir numerosos revezes, derrapagens, às vezes atécatástrofes no seio dos países desenvolvidos, provando, se necessário, que a ciência e atécnica não estão menos isentas da arbitrariedade de "paixões e interesses", segundo otítulo de um livro de A. Hirschmann6, do que qualquer outro domínio da realidade.

Quem, hoje em dia, além da Igreja — qualificada imediatamente de reacionária— ainda coloca a questão dos limites da ciência e da técnica, do caráter discutível da suacontribuição para o bem do futuro da humanidade? Além disso, mal essa questão é colo-cada, suscita imediatamente reações violentas — talvez tão violentas quanto aquelas le-vantadas no século XVII por aqueles que ousavam colocar a questão da existência deDeus. Quem mais? Sem dúvida os ecologistas, considerados pelo menos durante trintaanos como gentis sonhadores, mas cuja credibilidade cresce à proporção que aumentamcatástrofes técnicas e ecológicas. E alguns espíritos perturbados pelas manipulaçõesgenéticas — se bem que se trata aí de um domínio bastante particular ..Todos os outrossão tomados por tristes Cassandras e ninguém ousa, afinal, questionar a "ciência". Nomáximo, admitimos o interesse de uma "política" da qual se espera que a simples enun-ciação esgote o problema e permita formular uma interrogação sobre a finalidade & o sen-tido da mudança. Compreendemos porque a ideologia política dificilmente será contes-tada, de tal forma a sua crítica obrigaria, por mera repetição, a um questionamento so-bre o status da ciência e da técnica que estão hoje no fundamento da nossa cultura emesmo da nossa "civilização moderna", nascida nos séculos XVII e XVIII.

O discurso político sobre a ciência e a técnica tem, portanto, muito futuro, ede maneira complementar ao discurso técnico. Isso é particularmente claro para a co-

*Méthode Coué: método de autocondicionamento, baseado na repetição para si mesmo do resultado almejado. Ex.: "Vouganhar na supersena. Vou ganhar na supersena"... ou "Estou calmo. Estou calmo..." A expressão é, hoje, utilizada sempreironicamente. (N.T.)

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municação que, como vimos, está mais do lado das técnicas soft, não ameaçadoras parao meio ambiente e os grandes equilíbrios e, portanto, a conotação antropomórfica é detal ordem que todos lhe atribuem um papel quase mágico no melhoramento das re-lações sociais.

A comunicação tornou-se assim um dos domínios em que a idéia de uma políti-ca de orientação é mais bem aceita. Os poderes públicos compreenderam isso muitobem na Europa, onde o setor da comunicação (correios, telecomunicação, audiovisuale até, muitas vezes, a informática) foi um dos que recebeu mais numerosos discursosde orientação, mesmo que, na maior parte das vezes, essa orientação parecesse maisuma arbitragem da política industrial do que um verdadeiro projeto.

Concretamente, três estágios afloram desse paradigma do discurso político.O primeiro foi marcado pela desconfiança em relação à televisão de massa.O segundo estágio foi de atenção favorável às televisões locais e comunitárias,

das quais se esperava, sem dúvida, que limitassem a influência da televisão de massa.As múltiplas experiências tentadas na Holanda, no Canadá, na RFA, na França, Itália eBélgica — a maior parte das vezes com finalidades muito "políticas" de reorganizaçãodas relações de poder em nível local — terminaram menos por algum revés do que poruma profunda desilusão. A tomada da palavra, a organização da comunicação em ní-vel local7, a animação de comunidades, a afirmação pessoal e, muito raramente, a es-cuta do outro, demonstraram, ao longo de vinte anos, os limites de um projeto políti-co de televisão comunitária. Em poucas palavras, esses projetos quase sempre con-fundiram a "expressão" com a interação e, embora hoje todo o mundo queira se ex-primir, isso não constitui por si só uma comunicação.

O terceiro estágio é aquele em que entramos depois do decênio de 1980, ca-racterizado pela confiança nas possibilidades oferecidas pelas novas técnicas de co-municação para subverter a rigidez das relações sociais. É mais ou menos como se asdesilusões com os projetos de televisão locais tivessem suscitado um deslocamento afavor das possibilidades oferecidas pelas novas técnicas de comunicação (telemática,videotexto, videomática, interatividade...). É preciso também observar que a relaçãode força entre o discurso técnico e o discurso político inverteu-se, no momento, a fa-vor do primeiro. O discurso político foi, antes, desconfiado, para não dizer hostil, emrelação à televisão, enquanto o discurso técnico era mais otimista. E se este último su-plantou, atualmente, o discurso político, foi talvez porque as fantásticas melhorias sus-penderam ou simplesmente submergiram todas as desconfianças de ordem so-ciopolítica. Mais uma vez, a velha antinomia modernismo-conservadorismo aplicou-se a um domínio fazendo crer que o novo e o moderno são, em essência, melhores doque o antigo.

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A ideologia da comunicaçãoA comunicação: o ideal da televisão

Ao misturar as duas dimensões, técnica e social, a ideologia da comunicaçãotornou-se, finalmente, o ponto de Convergência dos dois discursos dominantes. Ela é,portanto, a mais perfeita expressão disso. Mas o sucesso da televisão, como encarnaçãodo sonho de comunicação, remete igualmente às contradições da sociedade de massa.Esta não resolveu senão com dificuldade os problemas fundamentais da escola, da saúde,da cidade, da democracia e, no contexto, a televisão apareceu como a única técnica decomunicação, ao lado do rádio, na mesma escala dos problemas da sociedade de mas-sa. Compreendemos, então, por que o sucesso da televisão se acha no coração da pro-blemática contemporânea da comunicação, que continua sendo uma das grandes aspi-rações, mesmo cheia de contradições, da sociedade de massa. Mas esse valor "comu-nicação" tem dois sentidos. O primeiro sentido é o da comunicação funcional, quer di-zer, necessária ao funcionamento da sociedade de massa, e o segundo sentido é o dacomunicação normativa, que valoriza uma das aspirações essenciais de uma sociedadecentrada na liberdade, na igualdade e na troca entre cidadãos.

Por que a comunicação ocupa efetivamente um tal lugar? Sem dúvida porqueela mistura as duas dimensões, funcional e normativa, mas também, e talvez prin-cipalmente, porque a comunicação é, acima de tudo, uma questão do ser humano.Qual a palavra mais próxima, de fato, daquilo que se encontra no fundamento doser humano e da vida em sociedade: a relação com o outro, a troca, a partilha. A co-municação é talvez aquilo que melhor define a situação do homem em sociedade,com seus sucessos e seus fracassos. A ideologia da comunicação apóia-se, assim, so-bre esse dado antropológico fundamental: não existe sociedade humana sem co-municação.

Mas todas as sociedades tiveram de organizar a comunicação. O que existe,portanto, de específico na nossa? Talvez o fato de se ver confrontada simultaneamentecom os dois problemas seguintes: organizar a comunicação indispensável ao funciona-mento da sociedade de massa, e colocar em prática um dos princípios da filosofia políti-ca, surgido no século XVIII — os seres são livres e iguais e estabelecem relações inter-subjetivas — fundamento de uma sociedade democrática.

Ao reconhecer o outro como sujeito, e como igual de si mesmo, e colocandocomo princípio que a cooperação entre os indivíduos é melhor do que a guerra, situa-mos a comunicação normativa como centro da vida, tanto pessoal quanto social. Ostemas da liberdade individual e da afirmação de si mesmo não fizeram, em seguida,senão amplificar essa problemática no seio da sociedade de massa. A comunicação é,

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portanto, a grande questão intersubjetiva8 e social, e nada existe de surpreendente naconstatação da significação dessa ideologia da comunicação no sucesso e no desen-volvimento da televisão. Esta, igualmente, não obteve o seu sucesso senão porque sedesenvolveu simultaneamente todo um setor da Comunicação, com as telecomuni-cações, a informática e sua interconexão com o audiovisual, dando a sensação de queamanhã, desde o trabalho até o lazer, da educação à saúde, das viagens à política, tu-do será apenas questão de comunicação. A comunicação tornou-se ao mesmo tempouma indústria e uma moda, um engodo, uma aspiração, um "direito", uma reivindi-cação que, de alto a baixo nas nossas sociedades .desenvolvidas, é sinônimo de mo-dernidade. Houve aí um investimento considerável, tanto do ponto de vista dos poderespúblicos quanto dos industriais e das elites, fazendo da comunicação o valor central dasociedade de amanhã.

De imediato, a questão da televisão se deslocou, tornando-se um aspecto dessaimensa rede comunicacional, ao mesmo tempo em que se viu confirmada no seu papelcentral uma vez que, de todas as técnicas produtoras e emissoras dessa nova "energia","a comunicação", ela era a única — ao lado do telefone — a existir em grande númerodentre uma variedade de técnicas e serviços cuja maior parte pertence mais à prospecçãotecnológica do que à realidade industrial. Para se poder medir o quanto a paisagem in-ternacional, política e industrial encontra-se hoje em dia tomada pelo tema da comu-nicação sob todos os seus aspectos, basta debruçar-se sobre o discurso dos anos de 1950a 1960. Nessa época, a questão era ainda de produção, de matérias-primas, de indús-tria e transformação, de classes e desigualdades sociais, de bens de equipamento, de in-fra-estruturas... Mas não se falava de comunicação, coisa que dá a sensação de que es-ses anos, apesar de próximos, pertencem a uma longínqua pré-história. Essa mudançade ponto de vista dá a impressão, evidentemente falsa, de que os problemas precedentes,"simples" demais, desapareceram em função de problemáticas mais "sofisticadas" quefalam de redes interconectadas, fluxos transfronteiras, dados de informação, robótica,domótica, bioética, monética... — como atividades e serviços que parecem simbolizara sociedade pós-industrial.

A "revolução" da comunicaçãoO setor da comunicação tornou-se, portanto, há vinte anos, um importante

meio de discursos utópicos reorganizadores do conjunto da sociedade. Os raros inte-lectuais mobilizados foram jogados à margem da estrada do progresso quando tiverama infelicidade de emitir algumas observações sobre o simplismo do esquema de relaçõessociais subjacentes a essa prospecção'! Quanto à minoria, que entoa o grande discursodo advento da sociedade da informação e da comunicação, ela encontrou, entre os políti-

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cos tanto de direita quanto de esquerda, uma aura e um prestígio pelo menos igualàquele, tão criticado, de que gozavam, antigamente, os príncipes da Igreja. Esses"tecno-intelectuais" tornaram-se os sacerdotes da ideologia da informação e da comu-nicação. Quando o tema da "revolução da comunicação" esvaziar, então virá à tonaque aquilo que era considerado como a racionalidade triunfante não era senão o fan-tasma de unia nova sociedade, com esquemas de organização das relações sociais tãosimplistas quanto as relações sociais sonhadas nas utopias do século XIX! Sob o pretextode que a "informação" assumiu um lugar mais e mais importante, mais e mais visívelna multiplicação das tecnologias que lhe estavam associadas, a idéia de que essas tec-nologias iriam modificar substancialmente a natureza e o funcionamento da sociedadetriunfou...

Na realidade, na base dessa revolução da informação e da comunicação, en-contramos o mesmo cientificismo que operava desde o século XIX, embora hoje ametáfora cibernética e a teoria de sistemas tenham substituído o positivismo do sécu-lo XIX.

A comunicação foi o grande delírio político-científico-tecnológico dos últimostrinta anos, com um mecanismo constante: a generalização, a partir de um nível da rea-lidade, de um modelo de transformação do conjunto de relações sociais. Resultado?Uma vasta operação de sinédoque, tecno-científica como gosta o Ocidente, visandotomar a parte pelo todo, com a boa consciência de não tornar a cometer os funestos er-ros da revolução industrial.

Essa revolução da informação teve, até o presente, a vantagem de ser pacífi-ca, consütuindo uma "nova fronteira" favorável a uma reestruturação industrial e auma reorientação dos investimentos públicos e privados em direção a um novo mun-do de aventura. Mas, provavelmente, o que seduz tanto quanto os possíveis lucros, éa idéia de que tudo isso vem acompanhado de um modelo de sociedade "com a chavena mão" em que todos os problemas, extremamente complicados relativos ao fun-cionamento de uma sociedade, reduzem-se aos conflitos envolvidos na produção eapropriação da informação.

Essa ideologia técnica, entendida como fundamento da construção de uma so-ciedade por analogia e extrapolação dos componentes científicos e técnicos do mo-mento, é ainda mais forte hoje do que ontem, e isso por duas razões. A primeira é queas técnicas de comunicação veiculam muito mais mensagens relativas à organização dasociedade do que há um século, quando o espaço social era mais fechado. A segunda éque as tecnologias de ponta hoje — informática, telecomunicação, audiovisual — es-tão diretamente sintonizadas com a realidade funcional da sociedade individualista demassa. Em todo caso, mais do que o estavam na época das máquinas a motor com a so-

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ciedade que vivia a revolução industrial. Poderíamos mesmo dizer que nunca houveantes um tal isomorfismo entre as estruturas de funcionamento de uma sociedade, osinstrumentos científicos e técnicos do momento e os discursos organizadores10. É, semdúvida, essa adequação que explica o formidável sjicesso econômico e sobretudo cul-tural das tecnologias de informação.

Mais do que nunca, podemos parafrasear o espírito da famosa expressão deKarl Marx: "O moinho de vento produz a sociedade feudal; a máquina a vapor, asociedade burguesa; a tecnologia da informação, a sociedade pós-industrial". Semdúvida, raramente as ligações entre as utopias sociais e uma certa organização cien-tífica e técnica foram tão fortes quanto hoje. E o mais surpreendente é que essa liga-ção no cerne da utopia tecno-científica de hoje não é nem percebida e ainda menoscriticada". Inúmeros espíritos esclarecidos foram incapazes de perceber os limitesdesse tecnicismo ambiente, tanto mais poderoso porque cada um tem plena cons-ciência da necessidade de organizar a sociedade e pensar as relações sociais: tendo-se conquistado hoje a natureza e a matéria, nada mais resta senão dominar a so-ciedade! É, portanto, com uma consciência perfeitamente tranqüila que numerososesquemas estabelecem uma correlação entre a realidade técnica e a ordem social.Em todo caso, os termos "sociedade da informação e/ou da comunicação"começaram a ser empregados12 recentemente e nenhum outro slogan teórico jamaisconheceu tamanho sucesso. Mesmo que a polissemia das palavras "informação" e"comunicação" devessem convidar a uma maior prudência, a menos que precisa-mente essa polissemia seja a causa de tal predileção. Muitos dos que agora louvamas virtudes da sociedade da informação são, muitas vezes, os mesmos que, ontem,afirmavam que o marxismo com o seu fetichismo da sociedade industrial e da classeoperária podia ter efeitos ideológicos muito negativos sobre o gerenciamento dessasociedade industrial. Como evitar que se faça com as técnicas de comunicação amesma coisa que censuramos nas atitudes de alguns com os instrumentos da so-ciedade industrial?

No final do século XX, as nações desenvolvidas investem enormementetécnica, financeira e sobretudo idealmente, para não dizer "ideologicamente", nas tec-nologias da informação, buscando desesperadamente nela encontrar o princípio de umaoutra forma de relações sociais. Mesmo que, muito mais modestas, porém essenciais,três questões que lhe dizem respeito continuem sem resposta. Que orientação será pre-ciso dar a essa mudança científica e técnica, cuja racionalidade interna não oferece ne-nhuma garantia de sua eficácia na ordem bem diferente da sociedade? Como evitar quea racionalidade parcial que a domina tenha, por uma espécie de capilarização das nor-mas e dos valores sociais, uma influência excessiva, levando a acreditar que uma so-

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ciedade organizada a partir desses valores científicos e técnicos seja menos perigosa doque as precedentes? Como articular o novo e o velho, sendo o novo, hoje, constituídopor uma certa racionalidade operacional de tecnologias de informação, e o velho pelasregras de funcionamento do modelo de sociedade industrial?

A "revolução da comunicação" parece assim ser o nosso horizonte. Ela vemdepois de ter a produção colocado em questão a sociedade capitalista, vem mesmo de-pois da ecologia que, defendendo os grandes equilíbrios, coloca-se ainda dentro de umalógica produtivista. Vem, enfim, depois do socialismo, depois dos chips passarem a serconsiderados, tanto no Oriente quanto no Ocidente, o instrumento primeiro de umasociedade que suplantará esses dois modelos. Parece, portanto, que a comunicação é oúnico horizonte de todos os amanhãs que foram cantados e decantados. Ela será aqui-lo que vem depois da política e é assim que, situando-se para além de "tudo", ela setorna um caso puro de ideologia técnica, como jamais existiu antes e que a própria so-ciedade industrial nascente jamais produziu. É, portanto, uma verdadeira arqueologiadas utopias sociais, coletivas, organizacionais, fundadas sobre o desempenho das tec-nologias da informação e da comunicação que se deve criticar. Esse trabalho crítico ain-da não foi feito, de tal forma está o ar do nosso tempo ainda impregnado dessas mes-mas representações. E não é o papel essencial — ou supostamente essencial — de-sempenhado pela informação e pelas mídias ao longo do ano de 1989 na China e emtoda a Europa Oriental que irá reduzir a dupla certeza de que a informação e a comu-nicação encontram-se, hoje, no coração da história e desempenham mesmo um papel"naturalmente" liberador!

O interesse da televisão é fazer parte integrante dessa ideologia da comuni-cação, mesmo demonstrando também que não está "à altura". Os seus limites em re-lação a esse ideal de "colocar em relação", relembram aquilo que distingue e separairremediavelmente os indivíduos e que constitui a condição de um processo de comu-nicação.

Notas ao capítulo 41. Cf. REMONTE, J. F. & DEPOUX, S. Lês années radio — 1949-1989. Paris,

UArpenteur/Gallimard, 1989.2. Que não se esqueça da importância atribuída, na França, ao relatório Nora-

Minc sobre a informatização da sociedade, depois à semana "informática e so-ciedade", organizada pelo presidente Valéry Giscard d'Estaing, e, finalmente, aosprojetos rapidamente abandonados de centro mundial da informática, no começodo setênio de François Mitterrand. A essas iniciativas devem se acrescentar os nu-

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merosíssimos relatórios que, em dez anos, relançaram regularmente o tema da co-municação, ao mesmo tempo como indústria para sair da crise e como futuro da so-ciedade industrial.

3. Os exemplos mais nítidos da defasagem de calendários são, sem dúvida,visíveis nos trabalhos de prospecção sobre o "teletrabalho" em que se anunciavapara a década de 1990 — graças à acoplagem da informática com as telecomuni-cações — a possibilidade de grande parte da população trabalhar em casa — o queteria a vantagem de reduzir os problemas de transporte, do trabalho feminino, dofuncionamento das grandes organizações, do gerenciamento do tempo de trabalho...mas que evidentemente deixava de lado o que era, talvez, essencial, ou seja, umareflexão antropológica sobre o que é o trabalho. Isso teria, talvez, permitido com-preender que, a despeito das enormes dificuldades práticas ligadas à vida moderna,ainda não se tem certeza — se é que isso será realmente possível — que uma partesubstancial da população deseja trabalhar em sua própria casa ou em centros espe-ciais mais próximos.

4. Cf. o quadro comparativo in Médiaspouvoirs, n. 12, p. 146. BERTHO, C.Télégraphes et téléphones; de Valmy au microprocesseur. Paris, Livre de Poche, 1981.

5. WOLTON, D. "La place de Ia télévision régionale, colloque international surlês télévisions communautaires locales et régionales dans Ia CEE". Namur, março1989.

6. HIRSCHMANN, A. PassíoTis et intérêts. Paris, Editions de Minuit, 1985.7. Seria preciso fazer, além disso, um estudo comparativo sobre as diferentes con-

cepções de democracia na televisão local na Bélgica, na PvFA, na França, na Grã-Bretanha...Se todos os projetos foram interpretados nessa perspectiva de uma reorganização das re-lações sociais, é forçoso reconhecer que as modalidades concretas sempre refletiram ocontexto cultural do país. O que confirma, de resto, uma outra tese deste livro, ou seja,que a televisão é sempre muito fortemente marcada pelo contexto nacional.

8. LUHMAN, N. Politische Theorieim Wohlfahrtsstaat. München, 1981. Idem.Soziale Systeme. Frankfurt am Main, 1974. HABERMAS, J. Théorie de Vagir commu-nicationel. Paris, Fayard, 1987. 2 v. Ver também o número l da revista Hermes,Cognition, Communication, Politique, Paris, Editions du CNRS, 1988.

9. Cf. os textos de BOUDON, R. "Petite sociologie de rincommunication";TOURAINE, A."Communication politique et crise de représentativité". Hermes, n. 4, Lênouvel espace public. Paris, Editions du CNRS, 1989.

10. Cf. JAMOUS, H. & GREMION, P. L'ordinateuraupouvoir. Paris, Seuil, 1974.11. SFEZ, L. Critique de Ia Communication, Paris, Seuil, 1988. NEUSCHAWANDER

& CHARPENTIER, J. M., dir. La Communication dans tous sés états. Paris, Syros, 1986.

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

12. WOLTON, D. Lês réseaux pensants — télécommunications etsociété. Co-autoria com A. Giraud e J. L. Missika. Paris, Masson, 1978. Idem. "Systèmes cTinfor-mations cherchent besoins. Non solvable s'abstenir". Actes du Colloque International"Informatique et Société". Paris,oDocumentation Française, 1980. t. 4. Idem. "Laprospective de 1'audiovisuel est-elle une question technique?". Prospective 2005,Econômica, 1987.

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TERCEIRAPARTE

O desafio fundamental:televisão será lista outelevisão fragmentada

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Televisão, laço social e espaço público -*

A banalização da televisão não é, em si, nem um bem, nemum mal, mas tem como conseqüência discutível; uma renúncia in-

-*\.

telectual. Este livro foi escrito• contra o "continuísmo" prevalecenteque, acobertado como adaptação e modernismo, afirma o carátersuperado de toda reflexão global sobre a televisão.

Qual é o contexto atual no domínio das idéias sobre a tele-visão? Uma sedução pela lógica privada; uma fascinação pela es-tratégia de grandes grupos de comunicação; a predominância dosdesafios técnico-industriais; uma simpatia já desgastada pela tele-visão pública; uma curiosidade pela televisão fragmentada; umadúvida com relação ao papel da televisão geralista; um desejo deaventura; a vontade de reduzir o papel do Estado e da política; umapreferência pelas pressões do dinheiro em lugar das estruturas políti-co-administrativas; uma desconfiança em relação a todos os dis-cursos globalizantes de orientação e, mais amplamente, uma espé-cie de anulamento dos quadros de referência e de análise da tele-visão. Em poucas palavras, os espectadores são "gente grande", es-colhem o que querem: deixemos portanto agir o mercado, muitoartificialmente enquadrado e congelado durante trinta anos — bas-tam os limites da televisão pública e o sucesso da televisão privadapara fazer com que os partidários dos grandes discursos pareçammodestos. Ontem, a ideologia política dominava, hoje, o empiris-mo e a recusa de limitações inúteis prevalecem, embora, curiosa-mente, essa atitude se pareça muito com a precedente, só que vi-rada pelo avesso.

O caráter de objeto "não pensado" da televisão acentuao impacto dessa tripla mutação econômica, técnica e política, dan-do a sensação de que tudo é possível. Por que se restringir? Porque não experimentar tudo? Mas o "laisser-faire, laisser-passer"será que basta como política de orientação? A abertura de espíri-to constitui a vantagem do atual contexto; a preguiça da análise,o seu inconveniente. E, no entanto, entre esses dois arquétiposdo "muito público politizado" e do "muito privado", haveria umcampo a ser pensado! A idéia implícita continua sendo que aunidade da televisão desapareceu com o fim de um modelo domi-nante.

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

A hipótese principal deste livro, já terá dado para perceber,é, evidentemente, que nada mudou, que resta uma unidade da tele-visão e que a sua banalização não impede em absoluto que pense-mos sobre ela. Existe uma reflexão teórica a ser realizada sobre ostatus da televisão, independentemente do seu regime público ouprivado e da fecundidade de suas tecnologias.

Podemos mesmo defender a hipótese de que a banaliza-ção da televisão é, a longo prazo, uma possibilidade para a reflexãoteórica. O seu desaparecimento como símbolo estatal reduz o pa-pel do discurso político sobre ela; a sua entrada numa economia dacomunicação banaliza progressivamente o discurso econômico quetanta fascinação exerceu no decênio de 1980: os dois podem deixarprogressivamente o lugar para aquilo que faz a originalidade e a di-ficuldade da televisão, a saber, uma abordagem sociológica. Os de-safios de hoje, relacionados com a análise do papel da televisão numespaço público expandido, remetem, com efeito, diretamente a umaproblemática sociológica e cultural em torno do laço social.

A televisão continuará sendo esse instrumento geralistanecessariamente imperfeito, porque destinado a todos, e, portan-to, a ninguém na totalidade das suas aspirações ou ela se fracionaráem tantos públicos, suportes e programas quantos forem possíveisrealizar economicamente?

O que opõe fundamentalmente as duas formas de televisãoé a oposição entre programação e edição, ou, se preferirmos, entreo "menu" e o "à Ia carte".

A programação remete à mídia geralista que, para satis-fazer a diferentes públicos, constrói uma grade de ofertas suscetí-vel de gerar múltiplas expectativas: é a idéia do "menu".

A edição remete, ao contrário, à unidade do produto, ouseja, ao programa singular que cada espectador escolhe assistir, semque tenham qualquer ligação uns com os outros. É a oposição en-tre televisão "de menu" e televisão "à Ia carte": se os produtos sãoos mesmos, a diferença vem da sua organização e da sua apresen-tação, em que ambas exprimem de modo definitivo uma certa re-lação com o público e, portanto, uma certa concepção da televisão.

Impõe-se uma maior precisão sobre o conceito de pro-gramação: ele é, ao mesmo tempo, o símbolo da televisão gera-

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- O DESAFIO FUNDAMENTAL: TELEVISÃO GERALISTA OU TELEVISÃO FRAGMENTADA -

lista, naquilo que ela tem de melhor, podendo também ser o tapa-sexo de uma televisão temática. Com efeito, a programação or-dena os programas ao longo do dia para satisfazer os diferentespúblicos suscetíveis de se sucederem ou se sobreporem. A tele-visão privada já reduz a amplitude da programação aos únicos pro-gramas "rentáveis", enquanto que a televisão pública pode — sequiser — fazer uma programação que seja independente da audi-ência. A mesma palavra pode determinar práticas muito dife-rentes, e existe uma espécie de degradação do conceito quandopassamos da televisão pública para a televisão privada, e, depois,para a televisão temática.

A programação pode, portanto, ter vários sentidos radical-mente diferentes. Ora é o instrumento privilegiado de uma políti-ca de televisão geralista, ora é nem mais, nem menos, que o ins-trumento de uma fragmentação da oferta em função da demanda.Ora ela traduz a vontade de fazer conviverem todos os públicos,coisa que está no fundamento da televisão geralista, ora permite asegmentação de públicos e expectativas, contentando-se em ofere-cer aquilo que os públicos demandam. A programação correspondeao espírito da televisão geralista, a edição ao espírito da televisãotemática, mas compreendemos muito bem como uma "mercan-tilização" da programação leva, na realidade, a que seja, em grandeparte, assimilada à edição. Em outros termos, se a programação éapanágio da televisão geralista, ela não basta para caracterizá-la, poispercebemos muito bem que pode haver uma sobreposição entreprogramação e segmentação.

O fato de se privilegiar a televisão como meio de massa, is-to é, como meio de gerar as duas dimensões contraditórias do in-divíduo e da massa, apresenta dois aspectos.

O primeiro relaciona-se à maneira de lutar contra os efeitosda segmentação e da desigualdade social. O segundo, à maneira deinsistir no seu papel de laço social no funcionamento da comunidade.

O interessante na situação atual é que ela está amplamenteaberta e a argumentação desenvolvida aqui não visa recusar inteira-mente o conceito de televisão fragmentada, nem defender a qualquercusto a televisão geralista, que, afinal de contas, não foi senão oprimeiro modelo de uma realidade passível de se transformar.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

Portanto, dizemos sim à televisão fragmentada como umadas formas possíveis da evolução da televisão. Dizemos não, se elase tornar o padrão de reflexão sobre a televisão ou a alternativa datelevisão geralista. Trata-se, portanto, ao mesmo tempo, de um pro-blema de proporção e de uma perspectiva teórica.

Essa questão do papel da televisão fragmentada e do seulugar em relação à televisão geralista é, pelo que penso, uma dasquestões essenciais dos próximos vinte anos, na qual se condensamos desafios da televisão do amanhã.

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Televisão fragmentadacontra

televisão geralista

A televisão fragmentada, ou o "menu" contra o "à Ia carte"

O que é a televisão fragmentada? Uma televisão, gratuita ou paga, concebidapara um público específico. A idéia básica é de não mais oferecer uma programação quemisture gêneros, mas sim visar estritamente uma população, um público. É a idéia de"programação" levada ao limite, pois que a programação já visa ajustar ofertas e de-mandas — no plural. Mas no caso da televisão fragmentada, essa lógica da especia-lização é extrema, uma vez que se trata de oferecer um número muito limitado degêneros de programas. A idéia de especialização dos programas, tanto do lado da ofer-ta quanto do da demanda, lhe é, portanto, inerente. Idéia, ademais, de bom senso, poisos fatos demonstram que para um programa de televisão a que realmente queremos as-sistir, assistimos dez em que nem tínhamos pensado ou que só nos interessam pelametade. É, portanto, com o projeto de limitar essa defasagem que a idéia da televisãoespecializada se torna sedutora: ela se torna o símbolo da latitude de escolha do es-pectador, e mais amplamente a do indivíduo plenamente livre, tão cara à nossa filosofiaindividualista democrática.

Essa argumentação a favor da televisão fragmentada nada mais faz do que ir aoencontro do movimento geral da sociedade, que marcha da estandardização (a televisãogeralista) para a individualização (a televisão fragmentada). A única condição da televisãofragmentada é a existência de uma população suficientemente numerosa para assistir e,assim, amortizar pela via da televisão paga ou da publicidade — no caso da televisão gra-tuita — aos programas oferecidos. Por essa razão é que foram o cinema e o esporte osdois primeiros exemplos de televisão fragmentada, uma vez que existe público "de mas-sa" para esses dois programas especializados. A informação (como na cadeia CNN nosEstados Unidos, desde 1980), depois a religião, o lazer no sentido amplo, a música, osprogramas infantis são todos suportes de canais temáticos. A definição é, portanto, bemprecisa, as características sociológicas e econômicas também, o que explica o favor de quegoza esse "conceito", ao qual se acrescenta um pequeno toque de inovação cultural.

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

Causas, características, vantagens da televisão fragmentadaQuatro causas explicam a aparição e o sucesso encontrado pela televisão seg-

mentada.A primeira é a existência de novas tecnologias. Elas permitem, com o cabo e os

satélites, multiplicar os receptores e, aliando-se às telecomunicações e à informática, fa-vorecer, no futuro, a interatividade. Nenhuma televisão temática seria possível num uni-verso carente de ondas ou de suportes. Hoje, existe abundância de suportes, mas tam-bém de condições de produção, difusão, recepção: a informação, a imagem, as teleco-municações se integram com desempenhos cada vez mais surpreendentes e a custos pro-gressivamente mais baixos. De um ponto de vista simplesmente técnico, trata-se real-mente de uma "revolução", cujo impacto não deixa de ter seu efeito sobre a ideologiatécnica previamente examinada. Se os calendários de aplicação são, às vezes, otimistas,assim como as previsões de preços — como foi o caso da televisão por satélite de trans-missão direta — isso não impede que, no conjunto, a comunicação, e muito particular-mente a televisão, seja um dos domínios onde as promessas são as mais sedutoras.

A segunda causa é a existência de um público, de uma demanda — ou, antes,de públicos plurais. Não pode haver televisão temática senão pelo fracionamento dogrande público de ontem. Isso supõe, por certo, a constituição prévia desse grande públi-co, ou seja, de um público que há muito assiste à televisão, gosta dela, mas não se sa-tisfaz mais com a mistura de gêneros. Portanto, um público suficientemente numeroso,consumidor de televisão e, sobretudo, de uma especialização que lhe faz falta. Por to-da parte o tempo médio passado diante da televisão aumenta na seguinte proporção:na França, era de Ih e 22min em 1975-76; e de Ih e48min em 1985-861. Esse vo-lume de audiência indica por si só as possibilidades da televisão temática.

O princípio básico é, evidentemente, o da liberdade individual. Sim à televisãopara assistir ao que interessa. Não ao parasitismo de programas pelos quais não temoscuriosidade. Sim à idéia de participação ativa, não à passividade. É o princípio da se-leção: é legítima a programação a que queremos assistir, inútil aquela a que não que-remos assistir. A força desse princípio cresce em realidade na mesma proporção em quea televisão é, essencialmente, uma atividade de lazer. A televisão temática é, portanto,a encarnação, no domínio da televisão, da filosofia individualista liberal que está nosfundamentos do funcionamento da nossa sociedade, e revaloriza a idéia de um públi-co ativo, contrariando a crítica feita durante muito tempo de que o público da televisãoera "passivo". Ela é também o contrapeso, enfim disponível, da televisão de massa que,pela estandardização dos produtos oferecidos, nivela os gostos dos públicos e impede amanifestação da diversidade.

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TELEVISÃO FRAGMENTADA CONTRA TELEVISÃO GERALISTA

Seja como for, a inovação só pode advir da televisão temática, uma vez que oshábitos e obrigações da televisão geralista, para agradar a "todo o mundo", conduzemà reprodução de estereótipos, a uma oferta "morna", um pouco como uma "senha", re-produzindo sem nuanças as receitas de sucesso. Não podemos, evidentemente, exigirque uma produção de massa seja original, sobretudo se a ausência de troca mercantil,como é o caso da televisão a maior parte das vezes, reduz ainda mais o interesse — nosentido próprio — de uma inovação LA televisãojjgralista joga no certo, nos grandes fa-

j£7/tores de identificação_c.oleüYa,_ma_s a televisão tgmáüca_ oferece a mõvaçãp^è^a^Über-_dade individual. _Como podemos criticar a sua emergência quando todo o mundo de-nuncia há tanto tempo os danos da televisão de massa e espera uma real individua-lização da oferta e da demanda? Em resumo, a televisão temática está para a liberdadeindividual como o sufrágio universal está para a política: condená-la leva ao masoquis-mo ou à irresponsabilidade!

A terceira causa favorável é a existência de um mercado, quer dizer, como jávimos, de uma cultura audiovisual de massa bastante difundida, e a existência de em-presas de comunicação que não precisam ser necessariamente grandes, mas sim quetenham a capacidade de produzir e oferecer esses programas diversificados. Aí, já esta-mos no domínio da economia do audioyjs_ual, hoje_em plena expansão, com a multi-plicação das empresas, dos conhecimentos, das especializações que permitem a ins-tauração de uma sinergia entre a oferta do programa temático, a difusão e a recepção.Não pode haver televisão temática possível, além daquela consagrada ao cinema, semcontar com inovação e imaginação da parte dos produtores, na construção de um mer-cado que só tende a se abrir. A televisão fragmentada, em termos econômicos, é umconvite à inovação.

A última causa favorável a esse tipo de televisão é o jiesgas±e_da_ televisão gera-lista, que foi, durante quarenta anos, o único quadro de referência. Foi a televisãogeralista, entretanto, que garantiu o triunfo da televisão, mas ela deve ter cometidomuitos enganos para que o movimento de diversificação dos gostos do público, umarealidade presente desde o começo da televisão, tenha chegado a esse ponto de frus-tração. Provavelmente, a televisão geralista dormiu no ponto de tal maneira que osinconvenientes da televisão temática, com sua estreiteza de programação, sua poucacapacidade de surpreender, fizeram com que ela levasse a melhor, apesar das vanta-gens de sua ancestral.

Uma coisa é criticar a dificuldade com que a televisão geralista responde a umaindividualização dos gostos e das demandas, outra coisa é abandonar aquela que, aolongo de duas gerações, foi sempre a única realidade da televisão. Deve ter havido, por-tanto, uma imensa decepção do público da televisão geralista para que a televisão frag-

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

mentada passasse a ser sinônimo de inovação; e muitas expectativas frustradas — so-bretudo depois de quinze anos — para que a segmentação da programação parecessemais satisfatória do que uma programação ampla. As duas primeiras causas (novas tec-nologias e demanda do público) são, evidentemente, determinantes, mas elas não te-riam tido esse impacto sem as duas outras (a constituição de um mercado e a preguiçada televisão geralista).

Essas são as quatro causas a favor da televisão fragmentada, a qual, em seu con-junto, goza de boa acolhida, uma vez que é tomada por fator de modernização. A ex-periêridajla-telev4são4emáüca^tualmente serve mais como um estímulo à televisãogeraUstajipjjue como iim questionamento-desta, e os problemas teóricos que coloca,do ponto de vista do papel da televisão num espaço ampliado de comunicação, sãomenos percebidos, na medida em que a televisão segmentada parece, muitas vezes,uma televisão geralista, mas em escala reduzida. Com efeito, se os canais existentessão, em grande parte, temáticos, eles continuam a misturar um pouco outros progra-mas e parecem uma espécie de "minicanal", diminuindo a percepção de uma diferençaradical em comparação com um canal geralista. Isso ocorre, por exemplo, com o CanalPlus, emissora temática clássica de cinema, paga, que mistura programas esportivos,documentários, informação, dando a sensação de que se trata mais de um canal "mo-derno" do que temático ou fracionado. Na realidade, essa miniprogramação de numero-sos canais temáticos nada muda na especificidade dos seus princípios.

O primeiro é o de tomar por coisa garantida a segmentação social e cultural, edisso fazer um projeto lucrativo para todos, em vez de perseguir a idéia utópica de umretorno do grande público. As estruturas sociais de gosto, de ganho, de faixa etáriaexistem, e já é suficientemente difícil satisfazê-las sem procurar, além disso, construiruma grade que satisfaça a todo mundo. O segundo princípio é o da liberdade indivi-dual: o consumidor é, em princípio, um indivíduo, e é sobre essa singularidade que re-pousa a relação com a televisão. Foi preciso todo um século para se aceitar o movimentode individualização, vamos, pelo menos, nos valer dele hoje! O terceiro princípio —decorrente dos precedentes — é, evidentemente, o do domínio da edição sobre a pro-gramação. Essa diferença é radical em relação à televisão geralista, porque o que mudaé a relação do produto com o contexto. A programação, mesmo que não seja jamaisrespeitada, é uma espécie de construção da relação com a realidade que ordena tantoos programas como o calendário do tempo cotidiano. Ela exprime uma aceitação e umaresponsabilidade voluntária com os diferentes momentos da vida dos indivíduos, comas diferentes aspirações dos habitantes de um país, com os diversos componentes cul-turais de uma sociedade em seu conjunto. Ela é uma espécie de "representação emminiatura" da sociedade, e da maneira como a concebem os indivíduos que nela vivem.

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TELEVISÃO FRAGMENTADA CONTRA TELEVISÃO GERALISTA

A programação é quase um retrato da sociedade e participa diretamente da "construçãoda realidade social", como diria a sociologia etnometodológica2.

Nada disso vale para a televisão fragmentada, em que existe, por certo, umprincípio de programação, mas reduzido ao mínimo, em torno de programas conexosao tema central da televisão temática. A responsabilidade global com a realidade so-ciocultural que está no cerne da programação da televisão geralista não existe na tele-visão fragmentada. Se a televisão geralista foi muitas vezes chamada de "espelho" dasociedade, a televisão fragmentada é um espelho quebrado.

Conforme já analisamos em La folie du logis, existem três_etapas jje_fra_cio-__namentg_possíveis na televisão geralista que dão a sensação de um comportamento pro:

gressivamente mais ativo do espectador." A primeira, mais simples e há mais tempo adaptada à televisão geralista, é sim-

jlgsmente a programação. A segunda, que age sobre a multiplicidade de suportes, per-mite uma diversificação da oferta, correspondente^ diversificação_da_dgmanda, em trêsdomínios principais: jazer, a informação e ojnstitucipnal. Essa diversificação pode terum duplo critério, sociográfico ou geográfico. Trata-se de reunir os espectadores dis-persos com base numa mesma aspiração ou, ao contrário, de agir sobre a sua identi-dade geográfica, com a única condição de que haja um mercado suficiente para umatal produção. Nos dois casos, esse tipo de televisão fracionada parece reunir as vanta-gens do individualismo e da sociedade de massa, em que os indivíduos se agrupam demodo essencialmente pessoal, todavia, o número de indivíduos confere ao gosto par-ticular de cada um significado coletivo. Não se trata mais do número indistinto da so-ciedade de massa, mas, ao contrário, de um reagrupamento sobre base eletiva, mistu-rando as vantagens do individualismo e da sociedade de massa, sem nenhum dos in-convenientes de uma e de outro. Ao reunir os indivíduos a partir de uma escolha par-ticular, para além das diferenças sociais, e dos distanciamentos geográficos, a televisãofragmentada responde assim ao movimento contraditório da diversificação e da inte-gração da sociedade moderna, o que explica, provavelmente, a sedução que ela operacomo "futuro da televisão". A terceira etapa, ainda problemática do ponto de vista dosinstrumentos e mais ainda da sua utilização, é a da interaüvidjjdj^que eleva as relaçõgs^a um nível próximo da escala individual. Uma forma derivada disso pode ser vista nodesenvolvimento das pesquisas de opinião, e nas emissões interativas que, dos jogos deontem aos programas policiais de hoje — chamados às vezes de "televisão mundo cão"ou "televisão verdade" pelos promotores, o que revela ao menos uma indecisão — cons-tróem situações em que a interação é mais e mais nítida entre o público e os estúdios,notadamente pela busca do culpado e do final a ser dado à trama. Existe, além disso,um contra-senso em muitos desses programas "de participação": a maneira de "dar a

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

palavra" ao público não leva, na maioria das vezes e contrariamente àquilo que se diz,a um sentimento de responsabilidade, mas, ao contrário, quase sempre à exposição daspiores convenções, preconceitos e estereótipos. A "expressão" nada tem em si de li-beradora: essa regra absoluta da comunicação parece, no momento, ter sido esquecidaem seus múltiplos projetos que, sob o pretexto de "permitir que o público se exprima",constituem na verdade encorajamento a essa ideologia da expressão, aparentementetão próxima e ao mesmo tempo tão distante da idéia de liberdade! Na comunicação,como em outras atividades, a liberdade começa com a regra, ou seja, a limitação; a ex-pressão sem enquadramento, sem limitações e sem sanções não é forçosamente umade suas formas. Expressão e desabafo têm entre si desagradáveis relações, sobretudonuma sociedade que, em geral, valoriza a liberdade e desvaloriza a regra — mas isso éuma outra história, ainda mal percebida. No momento, estamos na etapa de deslum-bramento diante de tudo o que permita, aparentemente, tirar o espectador da sua si-tuação de "passividade".

^&ACAC

Dois f atores exógenos favoráveis à televisão temáticaDois fatores de naturezas diferentes reforçam o movimento em favor da tele-

visão fracionada.O primeiro é a pequena diferença existente hoje entre televisão pública e tele-

visão privada, em que se enfatiza a idéia de que é inútil se sobrecarregar de grandesprincípios em matéria de organização da televisão.

A televisão fragmentada pertence ao movimento de libertação da televisão daempresa do Estado e parece contribuir, ainda mais do que a televisão privada, para a

^roximação entre a televisâ^^sjLisuários. Ela se apresenta como um outro aspectodo movimento "modernista", no limite de uma confusão entre problemas que nãodemonstram a mesma lógica: de um lado, o fim da associação entre televisão do Estadoe televisão de massa; de outro, a idéia de que a televisão privada e a televisão temática

\ são mais potentes do que a televisão pública, além de mais modernas e mais bem adap-tadas ao contexto atual. Estabeleceu-se um eixo entre lógica privada e individualismo,na origem do qual se encontra a televisão fragmentada. Temos, portanto, uma espéciede gradação da liberdade, partindo do "pior" da televisão geralista de serviço públicopara chegar ao "melhor" da televisão privada segmentada, passando pela "televisão ge-ralista privada", já "preferível" à televisão pública.

Em outros termos, no contexto atual, tudo aquilo que tende à individualização,tanto no plano dos programas, quanto no da propriedade jurídica, parece "ir na melhordireção", ou seja, contra a lógica estatal, enquanto tudo o que concerne ao que é públi-co parece burocrático, arcaico e limitador. O privado, principalmente quando se trata

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

cedimentos que se consideram afinados com a modernidade retomam o velho gestotaxionômico característico das épocas pré-científicas...

Com essas estatísticas — pois é fundamentalmente de porcentagens e de cifrasque se trata — que são a fonte do sucesso desses estudos, temos a dupla vantagem de"ver" claramente as diferenças socioculturais, mas sobretudo de vê-las em cifras. O mun-

ido sociocultural é fracionado, rfias de maneira inteligível, e, portanto, tranqüilizadora.Não será também essa a hipótese que encontramos na origem da televisão frag-

mentada? Estabelece-se uma correspondência entre o fracionamento sociocultural^ dajociedade de massa e o dojmblico da televisão, sendo que o conhecimento do primeiroremete ao conhecimento do segundo. Os dois fenômenos são, pois, como imagens es-pelhadas que acompanham a idéia de que tudo que caminha em direção ao fraciona-mento e à individualização é sinal de maturidade social e cultural, em oposição aosmecanismos mais grosseiros de agregação da sociedade de massa estandardizada e anôni-

f ma. Quanto mais sabemos quem assiste a quê, a que horas e, talvez futuramente, porque razão, e com qual "grau de satisfação", como dizem os psicossociólogos, mais temos [a sensação de que a televisão de massa era a forma arcaica de uma técnica de comuni-cação que com o tempo sofisticou-se, surgindo o reino da individualização e da frag- \mentação perfeitamente sincrônicos com a afinação do ideal democrático. —''

No movimento atual, existe mais do que uma simples afirmação do indivi-dualismo triunfante. A televisão fragmentada, e, com ela, toda a segmentação de gos-tos e práticas culturais do público, traduz, na realidade, dois fenômenos. De início, arecusa à sociedade holística, homogênea, estandardizada, de massa. Em seguida, e is-so pode parecer paradoxal, mas o é só parcialmente, uma desconfiança em relação aoexcesso de individualismo, coisa que preferimos à criação de comunidades de gostos,de aspirações e de afinidades. Em outras palavras, a partir do estudo dos socioestilosque emergem de uma televisão que reagrupa os indivíduos numa base eletiva, tudo nosleva no sentido de um desengajamento em relação ao modelo da massa, sem cair nosperigos de um individualismo estreito. A "comunidade eletiva" das mídias4 segmen-tadas surge como a alternativa mais equilibrada, remetendo ao tema da comunidadeque continua sendo um grande mito da sociedade contemporânea.

Para além do movimento de individualização e de fracionamento do público,a televisão temática remete àquilo que parece a pesquisa um pouco desesperada denovos princípios de identidade coletivos. No momento, o tema da comunidade aindanão está associado ao da televisão temática, mas é provável que, ao final, essa pesquisasempre renovada de um princípio que transcenda a dupla armadilha da individualiza-ção e do holismo5 encontre naquela de comunidade o princípio de legitimação que lhefaz falta. /

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TELEVISÃO FRAGMENTADA CONTRA TELEVISÃO GERALISTA

A televisão geralista contra o espaço público fracionadoOs argumentos que se encontram no fundamento da televisão geralista são de

duas ordens e, longe de estarem caducos, eles, de fato, foram se reforçando ao longode quarenta anos.

O primeiro diz respeito à televisão privada e enfatiza a lógica econômica: ao1%^—-^N«-X^ rf *^S aX'"NÍ *~% -w-XXl-rf" ^" " ' "—~™=^"~~*:, • "-=• «n- -_™nm .f

entrar em contato com umjpnde público, a televisão de massa garante um vasto mer-cado e, conseqüentemente, grandes lucros. A televisão geralista é, portanto, simples-mente aquela que permite maximizar os lucros. Ao lado desse argumento exclusiva-mente econômico, sempre existiu, na realidade, uma outra justificativa, menos veicu-lada, mas capital sobretudo se olhamos para os Estados Unidos, que "inventaram" atelevisão geralista privada: é a idéia de que a televisão geralista é também um fator de

Jntegjraçjojiocial e_dejdenüdade coletiva para um país novo, com uma mistura ecléti-ca de populações, com idéias, origens, valores e religiões de todos os tipos. Se bem quemesmo no país mais capitalista e aparentemente menos preocupado com uma lógicade serviço público, vemos que a televisão geralista privada obedeceu igualmente a ou-tros critérios, além da simples lógica econômica. Hoje em dia, a televisão privada en-contra novas fontes_dejreritabilidade, como a televisão paga e fracionada, e já conduza uma certa redução do papel das três grandes redes norte-americanas, que foram ospilares da televisão geralista privada. Mas é preciso dizer que o desaparecimento des-ses mastodontes vem sendo anunciado há vinte anos, a cada surgimento de novas tec-nologias, como o cabo, depois os videocassetes, depois os satélites de transmissão di-reta... e que, no momento, a despeito de todas as previsões, nenhuma forma nova detelevisão realmente os ameaçou. O essencial não está aí, mas principalmente na idéiade que a televisão de massa não pode mais ser a única maneira de fazer dinheiro e queoutras fórmulas, talvez menos restritivas, são preferíveis. Quanto à televisão pública,constatamos a sua decadência, ao longo de vinte anos, com suficiente clareza para saberque a sua capacidade de argumentação em favor dos benefícios da televisão geralista émenos persuasiva hoje em dia.

A segunda justificativa da televisão geralista vem da Europa, £ojn_a-Sua_Qrga-nizaçãojle televisão pública, tendo as duas aparecido simultaneamente. Na Europa, atelevisão geralista pública correspondeu a uma desconfiança em relação ao dinheiro eao poder televisual, e também à vontade de fazer com que servisse como fator de in-tegração social e de modernização. Ela foi concebida para oferecer aos públicos umasucessão de programas que permitisse, segundo a trilogia famosa e, oh!, ainda tãoatual, de djstrair-se, informar-se e educar-se. A idéia de emancipação sempre esteve li-gada, ao menos no espírito de um bom número de profissionais e dirigentes, à da tele-

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visão geralista. O argumento não era nem econômico, nem técnico, mas parcialmentepolítico e cultural. Político por causa da crença, ainda forte hoje em dia, de que aque-le que detém a televisão detém... o país; cultural porque o poder de difusão do instru-\^^~ ~~~ "" \_- ''~"~x-. ••-'* "^— -•-•'•""""V -»'-"*'••— .„••" x*-.1,—-—- ' í\~— l—^__— •^^•~^~~\^_^--—"~^- , ——"""V. _ •

mento não podia senão ser favorável à cultura para todos. O paradoxo é que essa justi-ficativa, presente em quase todos os textos básicos, entre 1945 e 1955, não impediuuma forte crítica cultural contra a televisão e os seus efeitos de nivelamento e embur-recimento!

Existia uma terceira série de razões favoráveis à televisão geralista: a ambigüi-dade da imagem na mensagem televisual. A idéia de uma televisão geralista, isto é, as-sistida por todo o mundo tinha, pelo seu efeito igualitário, uma chance de reduzir osefeitos negativos dessa ambivalência da imagem. Se todo o mundo via as mesmas ima-gens, a "insolubilidade do seu efeito" corria o risco de ser mais fraca do que se apenasuma parte da população as visse. Esse argumento nada perdeu da sua veracidade, masele é formulado menos explicitamente hoje em dia, porque o número de canais de tele-visão não pára de aumentar e a recepção de um canal temático não mobiliza os mes-mos processos cognitivos que a recepção de um canal geralista.

Podemos resumir os pontos de força da televisão geralista em três grandes con-juntos:_ajelação^entre informação e programas, a programação, a dimensão democrática.

A televisão geralista é a única que junta informação e programal^êntrêtêm7'mento — esses dois grandes gêneros que estão na origem do sucesso da televisão e queconstituem também os dois grandes aspectos da realidade: o mundo objetivo, históricoe o mundo do lazer e da distração. A presença, num mesmo canaÇèm horas diferentes^do dia, desses gêneros diferentes, desempenha um papel de unidade s^ajj_oilturalevi-dente, mesmo que os telespectadores não tenham plena consciência disso. Informação elazer são, na realidade, ao mesmo tempo inseparáveis e separados. Fazê-los conviver noseio de um canal geralista evoca a complexidade da experiência histórica e sugere que amistura da televisão remete à mistura da realidade. Ao contrário^a televisãp_temática_ou_fracionada rompe essa mistura cotidiana e estabelece uma desproporção, seja em favorda informação, seja em favor de um tipo de programas (esportes, filmes...). Ela opera umadisjunção entre essas duas ordens de realidade, significando assim, para o espectador, queele assiste a imagens cuja mistura jamais atingirá a heterogeneidade sabiamente compostano seio de uma programação, heterogeneidade esta homóloga ao real.

Essa mistura de informação-programa remete, portanto, ao segundo argumentoem favor da televisão geralista, a programação, ou seja, o contrário da televisão frag-mentada em que o espectador escolhe entre um número limitado de programas. A pro-gramação é, ao mesmo tempo, a restrição por excelência da televisão geralista, e o sím-bolo distintivo dessa mesma televisão geralista, uma vez que construir uma grade sig-

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niflca refletir sobre a sucessão de públicos que queremos atingir ao longo do dia. Acarteira de identidade de um canal de televisão, público ou privado, continua sendo asua programação e, além disso, os bons programadores tornaram-se menos numerososnesses cinqüenta anos! A força da televisão é oferecer todos os dias um conjunto deprogramas, ao mesmo tempo idênticos e diferentes, que o espectador escolhe de maneiraao mesmo tempo idêntica e diferente. Seu caráter democrático vem do fato de que ca-da um sabe que os programas estão ali, visíveis, que ele os assiste se quiser, sabendoque outros os assistirão simultaneamente, o que é uma forma de comunicação consti-tutiva do laço social.

Paradoxalmente, a idéia de programação é revalorizada pela multiplicação decanais de todos os tipos, uma vez que hoje em dia o problema não é mais a raridadedas imagens, mas a sua profusão: num universo sobrecarregado de imagens, o interesseda programação é oferecer uma ordem de que nos utilizamos à vontade. E, desse pon-to de vista, não é mais possível afirmar que os canais temáticos não passam de canaisgeralistas cortados em fatias, porque a relação que temos com esses dois gêneros detelevisão é muito diferente. Eles não sãolibordados da mesma maneira, nós não espera-mos deles a mesma coisa, sendo a própria relação com o canal temático diferente quan-do se trata de um canal especializado em esporte, informação, cinema, religião, ou emprogramas infantis... O jue_seoarajim canal temático de um canal geralista não_é_ape-

jias a diferença de proporção entre os programas, mas sobretudo o "contexto"— comodiriam os pragmáticos"— no qual podemos receber os programas. E sendo o sentidosolidário ao contexto, os mesmos programas não têm o mesmo sentido, dependendode estarem inseridos num canal geralista ou de pertencerem a um canal temático.

Quando "zapeia", o espectador sabe por quais canais temáticos ou geralistascircula e, incontestavelmente, muda a sua atitude em relação aos programas assistidos.Ao zapear pelos canais temáticos, ele sabe muito bem que está em meio a_um_público_

^específico, enquanto que ao zapear pelos canais geralistas, pertence a esse grande públi-co inapreensível, que pode, em princípio, ser todo o mundo: a forma de laço social é,portanto, diferente nos dois casos.

O último argumento a favor da televisão geralista é de ordem política, e nãosofreu nenhuma mudança desde o começo da televisão: é o laço existente entre tele-visão e democracia de massa. De uma certa maneira, podemos dizer que a televisão demassa tem as mesmas vantagens e os mesmos inconvenientes da democracia de mas-sa: uma igualdade sempre artificial e um sufrágio universal sobre o qual não se podeafirmar que seja usado racionalmente. Entretanto, podemos resumir os três aspectosdemocráticos da televisão de massa, o próprio ato de.comunicação, a polissemia da ima-gem, a incerteza quanto às condições de recepção e de interpretação, o papel determi-

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nante do contexto na recepção, ampliando as possibilidades de interpretação e consti-tuindo um fator de liberdade.

A idéia de programação, inerente à televisão de massa, obriga a conceber umaprogramação para todos os públicos: ela traduz assim uma aceitação da heterogenei-dade de gostos e de aspirações e é, portanto, uma espécie de reconhecimento da sualegalidade.

Quanto ao que diz respeito à recepção, a televisão de massa acentua, quase namesma proporção das incertezas da diversidade da grade, a heterogeneidade das men-sagens e dos públicos. Essa dispersão do sentido é, na verdade, um fator de comuni-cação, uma vez que a televisão é o assunto sobre o qual os indivíduos conversam commaior facilidade. Não só podemos assistir, se quisermos, às mesmas imagens, como tam-bém nada nos obriga a assistir à mesma coisa. O zapping acentuou, além disso, o le-que de programas porque, ao passar de um programa para outro, em busca de algumacoisa interessante segundo uma vaga idéia preconcebida, podemos topar com imagensque, inicialmente, não consideraríamos feitas para nós, e que podem despertar um in-teresse inesperado.

Ao assistir à televisão temática, temos, certamente, o prazer de nos encon-trarmos entre espectadores de um mesmo programa, mas com a exclusão de todos osoutros espectadores de outros programas. A sensação de participação e de comunidadenão tem absolutamente o mesmo sentido. Comparando com a política e o sufrágio uni-versal, podemos dizer que a televisão fracionária fica mais do lado do sufrágio censitárioe da segmentação social. Compreendemos então a relação entre televisão de massa etelevisão pública. Mesmo que a televisão pública não detenha absolutamente omonopólio da televisão geralista, visto que existem, às vezes, televisões geralistas pri-vadas com melhor rendimento do que as televisões geralistas públicas,' forçoso é cons-tatar que a televisão pública está mais bem equipada, a priorí, para satisfazer o objeti-vo de abertura subjacente à televisão geralista.

A força principal da televisão geralista, pública ou privada, continua sendo oseu registro:_ela_se dirige a todo o mundo, constituindo um dos laços sociais^das so^ciedades individualistas de massa, em que as ocasiões de participar simultânea e livre-mente de atividades coletivas são muito menos numerosas do que se pensa. O discur-so modernista, que visa demonstrar que a televisão inventa-se a si mesma todos os dias,e que é inútil sobrecarregar-se dos modelos do passado, é um discurso derrisório, porquenão se trata de retificar o passado, mas, simplesmente, de relembrar que a televisão éregida, estruturalmente, por um certo número de características que não dependem dasmudanças técnicas ou econômicas, mas de escolhas e orientações fundamentais.Podemos preferir a televisão segmentada, mas nenhuma das mudanças ocorridas em

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quarenta anos invalida seriamente as razões que pesam a favor da existência da tele-visãq de massa. Não há nada de conservador em defender esta, nem nada de modernoou progressista em defender a televisão segmentada.

Por que a televisão fragmentada é uma má solução para os problemas datelevisão geralista?

Se considerarmos que existe uma unidade na televisão, e se aceitarmos ahipótese do interesse superior da televisão geralista, compreenderemos por que a tele-visão segmentada é uma solução falsa para um problema verdadeiro:entre a oferta e uma demanda mais e mais diversificada. -De certa maneira, o deslum-bramento com a televisão fracionada traduz a fragilidade da reflexão sobre o status so-cial e cultural da televisão. Ao fazer a oferta depender da existência de uma demandasolúvel, a televisão fragmentada inverte a lógica de toda a produção cultural. Essa in-versão, aparentemente democrática, que pretende "colocar o consumidor no posto decomando", leva a uma imensa rigidez, pois a iniciativa da oferta, na questão cultural,mais do que em qualquer outro setor, passa na verdade a depender da demanda. Umsistema de produção que parte da demanda é, aparentemente, competitivo, mas correo risco constante do conformismo e da estratificação. Quem tomará a iniciativa de umamudança, quando sempre soubemos que a demanda é menos autônoma do que a ofer-ta, e que o verdadeiro problema é suscitar uma demanda a partir da oferta? Essa in-versão na ordem da iniciativa ameaça levar a um empobrecimento da oferta cultural enão a uma estimulação!

Além disso, é preciso falar concretamente dos diversos projetos possíveis detelevisão fragmentada. Já vimos que esse domínio é mais promissor para os esportese para o cinema, sem dúvida porque se tratam de demandas pré-constituídas e de se-tolis^ltãmente capitalizados, que permitem expectativas de lucros reais. A questãojá é mais delicada para os canais temáticos infantis. As perspectivas de lucro são, nessecaso, evidentes, mas esse não é o ponto mais delicado. Aparentemente, é preferívelreunir as crianças em torno de programas feitos especificamente para elas, em vez dedeixá-las assistir a qualquer programação, muitas vezes incompreensível para elas oulamentavelmente violenta6. No entanto, os canais temáticos aumentam o período detempo passado diante do receptor e não o contrário. Hipertrofiar os programas paracrianças acaba aumentando um consumo de televisão já elevado, favorecendo umúnico relacionamento com o mundo e com o imaginário, em detrimento de outroscomo os jogos e a leitura. A televisão já é a tal ponto a companheira das crianças emcasa e o símbolo da sua solidão que reforçar esse processo pode não ser a melhor dassoluções.

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A questão é igualmente delicada no que diz respeito à informação. Não é cor-reto que uma hipertrofia da informação audiovisual torne os cidadãos mais bem infor-mados, levando-se em conta as limitações muito estritas que pesam sobre a informaçãovia imagens. Ou seja, o rompimento informação-programas coloca, como vimos, pro-blemas mais gerais em relação ao equilíbrio e ao status geral do audiovisual. Partimos,no Ocidente, da idéia de que o público tem curiosidade pela informação, o que não éexatamente verdade em todos os meios sociais, visto que a curiosidade pelo mundo au-menta na proporção que aumenta o nível de instrução.

Mas além do nível de instrução, os acontecimentos históricos é que dão origemà curiosidade pela informação. Quando a história se acelera e os pontos de referênciadesaparecem, como aconteceu na Europa Ocidental e Oriental, a partir do outono de1989, produz-se, de acordo com os momentos, um desejo de saber. Em outros, o denão saber. A mistura constante de informações e programas no seio da televisão gera-lista é um fator positivo, desse ponto de vista, pois mesmo que haja uma reticência, umtemor em relação ao desenvolvimento da história, e, portanto, uma rejeição ou umaambivalência em relação à informação, o encadeamento dessas notícias, boas ou más,com o resto da programação, possui algo de tranqüilizador. Ao contrário, nada provaque uma desproporção em favor da informação num canal especializado possa superara resistência em relação à informação, pois esta provém, na verdade, de uma "vontadede não saber" cujas causas são complexas e ligadas à maneira como os indivíduos con-cebem a sua relação com a história. No caso, a idéia aparentemente pouco satisfatóriada mistura de programas e de informação, é, na verdade, um meio bastante seguro paraque aceitemos assistir, diretamente, em nossa casa, à história se fazendo — coisa que,se pensarmos bem, nada tem de evidente. Foi preciso a frágil tradição de um século emeio de ligação entre a informação e a democracia para se consentir em assistir a in-formações ou escutá-las, coisa que, na maior parte do tempo, não diz respeito ao es-pectador, e que, de resto, nem sempre é agradável.

Quanto à cultura, se é verdade que ela hoje está pouco presente na televisãogeralista européia, é pouco provável — supondo-se que a atual degradação, de que ho-je todos têm consciência, se acentue — que a televisão cultural especializada seja umaboa solução para o problema, conforme examinaremos na quarta parte. Não é certo quea televisão cultural seja realmente a melhor maneira de defender a "cultura": o agru-pamento no seio de um canal especializado de todos os programas "culturais" nos seusassuntos ou na sua abordagem das questões pode ter o efeito de exclusão ou de gueto,contrários ao objetivo procurado. Parece muito mais eficaz agir no interior das tele-visões geralistas para obrigá-las a reintroduzir programas de caráter cultural no corpoda programação.

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TELEVISÃO FRAGMENTADA CONTRA TELEVISÃO GERALISTA

Por tudo isso é que a televisão fragmentada, por trás de uma aparência mo-dernista, constitui uma falsa solução para um problema verdadeiro que é o .empobre-

^ > cimento da qualidade dos programas e o estreitamento do seu leque. Nada indica quea programação nas televisões temáticas possa ser melhor e, sobretudo, que não desa-parecerá, nessa lógica da segmentação, a segunda causa do sucesso da televisão: a suadimensão de meio de massa.

Na imagem e no programa de televisão existe algo mais além daquilo a que ca-da um assiste e essa outra coisa define a sua unidade teórica examinada nos capítulos2 e 4, tendo como conseqüência o fato de que não podemos fazer o que queremos.Existe um efeito "estrutural" televisual do qual não podemos nos livrar, ^.evidente-mente mais difícil fazer uma televisão geralista do que uma televisão fragmentada e as

"realizações da televisão segmentada são ainda muito pouco numerosas para saber seelas serão tão competitivas quanto se promete. O risco é de apresentar como progres-so o simples fato de livrar-se das limitações consideradas superadas, para, afinal, sub-meter-se ainda mais cegamente às limitações do mercado...

Ç Podemos objetar: por que os jornais e rádios temáticos podem existir e não al televisão? Por que o movimento de diversificação por classe de idade e de público é

possível para a imprensa escrita e não para a televisão? Por que o rádio acompanhou omovimento de fracionamento, como por exemplo as rádios musicais para jovens, e atelevisão não poderia fazer o mesmo?

É preciso lembrar, ainda uma vez, que não é o princípio da televisão temáticaque é em si criticável: esse processo de fracionamento da oferta e da demanda é natu-ral e se dá em toda a produção cultural. O que é criticável é a idéia que faz da televisãofragmentada uma forma superior de televisão em relação à televisão geralista. O pro-blema é a porcentagem entre televisão temática e televisão geralista e os domínios emque se organiza essa televisão fragmentada, em que o esporte coloca, ao final das con-tas, menos problemas do que a informação ou a cultura.

Havia, decerto, outros meios de massa antes da televisão, dos quais o rádio foio mais importante7. Porém, hoje em dia, não refletimos o bastante sobre o statusteóri-^,co do rádio, porque a televisão "lhe faz sombra". O que tem o inconveniente de subes- jtimar o lugar que ele ocupa, mas a vantagem de deixar o rádio muito mais livre. O que ; !falta ao rádio —júmagem — lhe confere uma liberdade de tom que nãojy^jjsivd rjaraa televisão^Com o rádio, o ouvinte "imagina" ainda mais do"qüecõm a televisão porqueé ele próprio que "constrói" as imagens. O ouvinte, como se diz, "enxerga dentro da :cabeça". A relação com a realidade está presente, mas num registro mais subjetivo. O >que é verdade para a televisão, ou seja, que ninguém recebe e interpreta da mesma jmaneira as mensagens, o é ainda mais paira o rádio, porque a ausência de imagens sus-/

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cita ainda maior liberdade. O que explica porque o rádio é, por excelência, o meio fra-cionado.

Mas é preciso ter em mente que as rádios temáticas de sucesso têm apenas umprojeto: transformar-se, por sua vez, em rádios geralistas, prova que em matéria de mí-dias, o ideal, o horizonte e a referência continuam a ser o meio geralista. De fato, quan-do analisamos a história comparada do rádio e da televisão, percebemos que uma boaparte dos gêneros de programas de televisão é calcada no rádio, que foi, na verdade, oprimeiro meio de massa. Em outras palavras, se hoje em dia temos os olhos fixos na frag-mentação considerada como o coroamento do movimento de individualização no domíniodas mídias, é preciso não esquecer que um movimento inverso, ao menos tão importantequanto esse, remete ao fundamento do ato de comunicação, que é ser geral.

O limite ao movimento de fragmentação não se encontra também na impren-sa escrita, que é, a priori, o exemplo típico de fracionamento. Sem dúvida existem maise mais publicações especializadas, mas a imprensa geralista mantém a sua importância,o seu prestígio e a sua responsabilidade, sentindo todo o mundo, confusamente, que sea imprensa especializada melhora o conhecimento de um setor, ela, por outro lado,obriga a ler simultaneamente o que resta da imprensa geralista, no domínio da infor-mação, da imprensa prestigiosa e legítima8. O que o leitor exige do jornal é que estelhe ofereça um panorama permanente e cotidiano, mesmo que ele não leia senão umaparte, em função dos seus caprichos ou dos seus desejos, exatamente como acontececom a televisão, na qual assistimos apenas a uma parte da programação. Mas a relaçãode confiança com a imprensa vem justamente dessa certeza de nela encontrar, todosos dias, o essencial das informações e de ter acesso a elas, se desejarmos. A leitura dejornais temáticos não impede, de forma alguma, a leitura dos jornais geralistas.

Tendemos a separar demais essas três mídias, na verdade muito próximas nasrepresentações e uso que dela fazem os cidadãos: uma análise real do espaço de co-municação pública deveria estudar como agem, no tempo, as complementaridades ecorrespondências entre essas três formas afinal inseparáveis de comunicação pública.

Quanto à especificidade da televisão em si (imagem, meio de massa), ela im-pede que analisemos a sua evolução por meio de uma simples e precipitada analogiacom a imprensa escrita ou com o rádio, e que possamos predizer, em nome de uma "leihistórica", que a fragmentação seja o futuro natural do audiovisual. Aí também é pre-ciso desconfiar das leis naturais...

Concluindo, podemos dizer que a oposição entre televisão geralista e televisãofragmentada é ao mesmo tempo social e cultural. No plano social, a televisão geralistacorresponde, compreendida na sua dimensão privada e, a fortiori, na sua dimensãopública, a uma perspectiva de igualdade social, tanto pela concepção da produção quan-

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to pela recepção, enquanto a televisão fracionada toma por base as desigualdades exis-tentes e constrói uma oferta adaptada aos diferentes públicos. A televisão fracionadacorresponde a um espaço público segmentado em que as desigualdades sociais são umfato; a televisão geralista, sem pretender suprimi-las, procura oferecer uma programaçãocom características comuns. Ela assume assim a dimensão de laço social em uma so-ciedade "individualista de massa", onde as duas características contraditórias, indiví-duo e massa, coabitam.^ televisão fracionada, ao contrário, parte do movimento de in-dividualização de gostos e práticas culturais e não procura mais satisfazer uma deman-da cultural unitária dos públicos, tida como hipotética.

Por um lado, existe a problemática do grande público cujos limites conhecemosbem; por outro lado, ao contrário, nos libertamos desse imperativo muito limitador paratentar satisfazer a públicos particulares, subestimados na pesquisa do grande públicqJDparadoxq da televisão_geralista é de perder em especificidade o que ganha em generali-dade^ a sua função de laço social que se faz acompanhar de uma capacidade menor desatisfazer aos diferentes públicos que a assistem. Ao contrário, a televisão fracionada as-sume asjlesigualdades culturais e tenta, através de uma diversjflcaçãg^da. oferta, satis-fazer aos diferentes públicos, sem procurar desempenhar um papel de laço social.

Definitivamente, a oposição entre as duas formas de televisão traduz duas con-cepções da unidade social e cultural da sociedade de massa, e podemos reconstruir oseu diálogo.

A televisão geralista procede da idéia de que a sociedade de massa é menos es-tandardizada do que parece, em que o papel crescente da comunicação remete mais auma convivência do que a uma real solidariedade, e de que manter uma certa coesãoentre os diferentes grupos sociais é tão importante quanto satisfazer as necessidades decomunicação de cada um desses grupos. Em resumo, que é necessário manter princípiosde comunicação que transcendam os diferentes grupos sociais, podendo a televisão serum dentre eles. Essa análise conduz a uma visão normativa da televisão, no sentido deque o seu papel é o de contribuir para estimular uma comunidade e uma solidariedadesempre frágeis. No binômio indivíduo-sociedade, os mecanismos de tendência indivi-dualista são mais ameaçadores do que os outros, e existem, de qualquer modo, aspi-rações de comunicação individualizante que não podem ser satisfeitas pela televisão.Existe, portanto, implicitamente, uma opção sobre o que pode fazer a televisão, mas tam-bém, e isso é essencial, sobre o que ela não pode fazer em relação ao problema funda-mental indivíduo-massa. Por trás dessa visão aparentemente pessimista dos limites deuma comunicação "individualizante", existe uma outra idéia, sem dúvida mais radical,que evocaremos na críticas aos projetos de televisão cultural e segundo a qual uma boaparte das aspirações_culturais o^dj^municação_não podem ser satisfeitas pela televisão.

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Ao contrário, a televisão fragmentada remete à idéia de que a integração so-cial e cultural é considerável na sociedade de massa, e que o risco principal é o sufo-camento do indivíduo. O problema central não é, portanto, o esforço da coesão social,mas, ao contrário, o aumento da autonomia individual e das comunidades eletivas. Adesigualdade é um problema menos importante que a identidade, e a maior preocu-pação é com a luta contra o "nivelamento" das diferenças culturais, sendo a televisãotemática o meio para satisfazer uma parte das diferenças culturais e, finalmente, de

/^reforçar a coesão social. O postulado é o seguinte: "tudo o que estandardiza e gene-raliza, sobretudo em matéria de comunicação e de cultura, empobrece; tudo o que

T . ' diferencia, enriquece"... No binômio "indivíduo-massa", é o primeiro pólo que é pré-, , _- ciso reforçar e é ilusório acreditar que a comunicação possa desempenhar um papel

t, normativo, pois o voluntarismo comunicacional corre o risco de ser mais perigoso doque útil.

Há tempos procuramos uma "comunicação" mais autêntica, em escala maisreduzida. A televisão fracionada, depois da televisão local ou comunitária, participadesse movimento. Mas para além de uma concepção diferente das relações indivíduos-massa e do laço social, existe uma concepção de homens e de sua comunicação que es-tá em causa. Os partidários da televisão geralista não acreditam na comunicação, masna distância entre os homens e numa forma de incomunicabilidade; os partidários datelevisão fragmentada acreditam muito na comunicação, ou, pelo menos, na aproxi-mação entre os homens.

É por essa razão que aquilo que os separa vai muito além de um simples regimede televisão.

Notas ao capítulo 51. "Lê temps passe devant lê téléviseur pour lês adultes citadins en France,

1975/76 — 1985/86", enquete INSEE sobre o emprego do tempo na França, reali-zada em setembro de 1985 e outubro de 1986, em Chiffres dês de Ia télévisionfrançaise 1986-87, INA-CNCL

2. WINKIN, Y. La nouvelle communication. Paris, Seuil, 1981. GOFFMAN, E.Lês moments et leurs hommes. Textos escolhidos e apresentados por Y. Winkin. Paris,Seuil/Minuit, 1988. Idem. La mise en scène de Ia vie quotidienne, 1.1; Présentationde sói, 1973, t. 2. Lês relations en public. Editions de Minuit, 1973. BERGER, P. &LUCKMANN, Th. La construction sociale de Ia realité. Paris, Méridien/Klincksieck, 1986.SCHUTZ, A. The phenomenology of-the social world. London, Heinemann, 1972.Idem.Ze chercheuret lê quotidien. Paris, Méridien/Klincksieck, 1987.

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TELEVISÃO FRAGMENTADA CONTRA TELEVISÃO GERALISTA

3. CATHELAT, B. Styles de vie, t. 1; Cartes et portraits, Paris, Lês Editionsd'Qrganisation, 1985; Courantes etscénaríos, Paris, Lês Editions d'0rganisatíon, 1986.t. 2. CATHELAT, B. & MERMET, G. Vous et lês Français. Paris, Flammarion, 1985.

4. Trata-se do movimento sempre coroado de sucesso que visa criar "clubes"como meio de distinção. O Canal Plus, na França, por exemplo, funciona, como todosos canais pagos, a partir da idéia de uma espécie de "identidade" de clube de assinantes.

5. DUMONT, A. Essais sur 1'indMdualisme. Paris, Seuü, 1983. DUMONT, L."Gênese de 1'individualisme occidental". Esprit, fevereiro de 1978. Coletânea "Sur l'in-dividu", Paris, Seuil, 1987. FERRY, L. & RENAUT, A. 68-86, Itinéraire de 1'individu. Paris,Gallimard, 1987. GUIBERT, E.; SLEDZIEWSKI, E.; J. L VIEILLARD-BARON, J. L., dir. Penserlesujet aujourd'hul Paris, Méridien/Klincksieck, 1989. SIMMEL, G. Philosophie de Iamodernité. Paris, Payot, 1989. LÉGER, Fr. La pensée de G. Simmel Paris, Ed. Kimé,1989.

6. LURÇAT, Liliane. A cinq ans, seulavec Goldorak. Paris, Syros, 1981. Idem.Violence à Ia tête: 1'enfant fascine. Paris, Syros, 1989.

7. Antes do rádio, havia a imprensa escrita popular, entre 1870 e 1914, e atémesmo entre as duas guerras, cujo papel essencial tendemos a esquecer. Da mesma for-ma que temos a tendência de subestimar o papel de laço social do rádio, temos tam-bém a tendência de esquecer esse mesmo laço representado por uma imprensa escritapopular quando ela era "o" meio de massa. O Petit Parisien, por exemplo, tinha umatiragem de l 600 000 exemplares, antes da guerra de 1914! A respeito do papel da im-prensa escrita, podemos relembrar o trecho que J.-P. Rioux citou em sua crônica de 25de julho de 1990, no Lê Monde, "o editorial do Petit Parisien de 13 de outubro de1893: 'Eis que, num grande país como a França, o mesmo pensamento anima ao mes-mo tempo todas as populações. É o jornal que estabelece essa sublime comunhão de al-mas através do espaço. Ele é, por excelência, o instrumento para reflexão e julgamen-to'." Não é esse mesmo o papel da televisão hoje? No mesmo artigo, J.-P. Pvioux relem-bra que no fim do século havia, em Paris, 46 periódicos, 41 semanários políticos e 492jornais financeiros especializados...

8. A propósito das transformações da imprensa escrita ver LÊ PIGEON, J.-L. &WOLTON, D. U Information demain; de Ia presse écrite aux nouveaux médias. Paris,Documentation Française, 1979. BALLE, F. Etsilapressen'existaitpas... Paris, R. Lattés,1987. COURCELLES LABRdussE, S. & RoBiNET, Ph. Paris et enjeux de Ia presse de de-main. PUG, 1987. Presse, radio et histoire. Paris, Ed. du Comitê dês TravauxHistoriques et Scientifiques, 1989. Dois livros recentes apresentam uma síntese dosproblemas da imprensa escrita: WOUTZ, B. La presse entre lês lignes. Paris, Flammarion,1990. CHARRON, J.-M. La presse écrite au quotidien. Paris, Seuil, 1990.

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Televisão elaço social

iA televisão geralista é considerada mais como um "mal" da sociedade de con-

sumo do que como um dos parâmetros fundamentais da sociedade democrática. Sem /dúvida reconhecemos, com alguma desconfiança, o seu papel benéfico na política, pois ;ela contribui para torna-laJMsfvgU todos", mas sempre acrescentamos logo que ela per-f

(mite também que a(pólíticaje transfojme_jm^pjtác^ilg_e_jmj)ublicidade. Quanto ao/ papel do^esto ç!os^eusj)rogramas, vemos nisso o jriunfg_dajógica da estandardização, )

l do nivelamento e do empobrecimento culturais próprios da sociedade de consumo. Porj isso é que a diversificação do audiovisual, com a televisão privada, a chegada de novas

f tecnologias e as promessas da televisão fragmentada foram favoravelmente acolhidas.^Portanto, em dois contextos tão diferentes, a televisão geralista desempenhou

um papel essencial. Na década de 1950, quando o crescimento econômico, o êxodorural, as mu^çã^Jo_traba]hg_e_do consumo modificaram sensivelmente os pontos dereferência de uma sociedade em rápida transformação, ela foi uma mediação essencialde comunicação, em sentido estrito, entre situações sociais e culturais que se diferen-ciavam mais e mais. Ao facilitar uma identificação, contribuiu menos para a "alienação"do público ao lhe oferecer modos de compreensão de uma modernidade em pleno sur-gimento. Ela desempenhou o papel de "fio condutor" na decifração de uma situaçãoem movimento. Ela foi menos um agente da "ordem social" do que um intermediáriopara a vivência simultânea das duas aspirações conflitantes da individualização e da es-tandardização inerentes à sociedade "individualista de massa". Objeto cotidiano eonipresente, ela ajudou provavelmente milhões de telespectadores a se localizarem noquebra-cabeças de uma modernidade que estava sempre obrigando a viver simulta-neamente identidades e aspirações contraditórias. E é provavelmente essa onipre-sença, bem como a sua discrição e sua falta de "expressão própria", que lhe permitiuinvestir-se dessas duas dimensões sincrônicas, mas opostas.

Hoje, o contexto é quase diametralmente oposto. A questão não é mais a reivin-dicação de individualização, simultânea à instalação da sociedade de massa, mas aquestão da manutenção e desenvolvimento de mecanismos de solidariedade e de laços

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- TELEVISÃO E LAÇO SOCIAL -

sociais numa sociedade cujo problema principal, a nosso ver, é o da afirmação e doaprofundamento das diferenças: trata-se de favorecer novas solidariedades, essencial-mente de tipos comunitários, "tribais" como dizem alguns, para neutralizar os efeitostidos como catastróficos da estandardização da sociedade de massa.

Por essa razão, no contexto dos anos de 1950 a_1970,_ateleyisão de massafoifinalmente acêitã^mòlirn^oTlã^õTsõci5sde uma sociedade em.p_lgna transformação.Hoje, nossa tendência^apresentar a televisão temática como mais adgguada à^

geralista ofereça._agj:ontrário, umaforma de laço social para um momentpjynjjufuasjnecamsmo^^^

^__-jM>iiJcjU.J_JMaa=— ."""" " "'""'" ..... •"-«' ILIIIL^WIIU.WJ.—-"''"— ""--' -- '«•"•

Carecem ..dominUa-Com. quarenta anos de intervalo, a televisão geralista se vê em duassituações históricas simetricamente opostas em relação à questão dos laços entre indi-víduo e coletividades. Nos dois casos, ela desempenha o mesmo papel de laço, maslaços contrários em relação ao que prevalecia há quarenta anos. Ontem, para ofereceruma estrutura de representação suscetível de integrar as confusões ligadas à instalaçãoda sociedade de massa; hoje para preservar um princípio geral de comunicação numcontexto em que se organiza a convivência de comunidades mais ou menos indife-rentes umas às outras.

A posjsãojustentada jiqui consiste em demo_nstrjLjjiLe_a_teley.isão_geialis,tapende mais para o lado do laço, numa sqciedjjdejmiejicjida^ax^mentação, p_êlgvõjlãFse^ que para p lado,d^\^&^^^jmí^sociBií^Q^§ímâaidiz^âAQ.mãssà.AiâéiaL, hoje tão atacada, de"grande público" permite esclarecer esse papel, e mostrar também que essa dimensãode laço social existe sobretudo no seio de um espaço nacional de comunicação. Pois sea televisão constitui um formidável instrumento de abertura para o mundo, constituitambém o laço social de uma comunidade nacional.

A noção de laço social é, talvez, uma das mais complicadas das ciências so-ciais, porque ela vai desaparecendo à medida que nos aproximamos dela. Formuladapor Durkheim e pela escola francesa de sociologia numa perspectiva mais institucionaldo que cultural — com uma destacada interpretação do papel da religião como laço so-cial — ela foi, em seguida, utilizada e ampliada pela antropologia e pela antropologiacultural. Como se fosse mais fácil destacar as características de laço social nas outrassociedades do que na nossa1. O crescimento das instituições sociais, depois a multipli-cação das políticas, cobrindo progressivamente todos os setores da sociedade (trabalho,educação, família, saúde, transportes...) deram a sensação de que o laço social loca-lizava-se sobretudo nas práticas sociais institucionalizadas. No entanto, essa noção con-serva aspectos menos institucionais, dos quais, a meu ver, a televisão é um dos princi-pais exemplos2.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

Dizer que a televisão é uma das formas de laço social é, pois, uma retoma-da de certa tradição sociológica, mesmo que a perspectiva seja sensivelmente dife-rente. Em que a televisão constitui um laço social? No fato de que o espectador, aoassistir à televisão, agrega-se a esse público potencialmente imenso e anônimo quea assiste simultaneamente, estabelecendo assim, como ele, uma espécie de laço in-visível. É uma espécie de common knowledge, um duplo laço e uma antecipaçãocruzada. "Assisto a um programa e sei que outra pessoa o assiste também, e tam-bém sabe que eu estou assistindo a ele." Trata-se, portanto, de uma espécie de laçoespecular e silencioso. • • /

' ' Mas existe um segundo sentido. A televisão, como sempre dizemos, é o "es-pelho" da sociedade. Se ela é seu espelho, isso significa que a sociedade se vê — nosentido mais forte do pronome reflexivo — através da televisão, que esta lhe ofereceuma representação de si mesma. E ao fazer a sociedade refletir-se, a televisão cria nãoapenas uma imagem e uma representação, mas oferece um laço a todos aqueles que aassistem simultaneamente. Ela é, além disso, um dos únicos exemplos em que essa so-ciedade se reflete, permitindo que cada um tenha acesso a essa representação.

~~ Trata-se, portanto, de um laço social tênue, menos forte e menos limitador doque as situações institucionais ou as interações sociais. Mas a força da televisão comolaço social vem justamente do seu caráter ao mesmo tempo ligeiramente restritivo, lúdi-co, livre e especular. É também nisso que ela se mostra adequada a uma sociedade in-dividualista de massa, caracterizada simultaneamente por essa dupla valorização daliberdade individual e da busca de uma coesão social. Se a televisão temática pode seruma forma de laço social no seio de uma comunidade restrita, compreendemos que éna sua dimensão geralista que a televisão exprime melhor essa característica. E, de qual-quer modo, a televisão não é uma instituição como a escola, o exército, a Igreja. Suaparticipação na problemática do laço social é muito mais sutil, porque se trata de umaatividade livre, e em sua maior parte, de lazer.

O rádio também é uma forma de laço social e leva vantagem sobre a televisãopor ser um laço ainda mais familiar, banal, cotidiano, mas com o inconveniente de serdesprovido da imagem e da dupla função de identificação e representação que consti-tui a televisão. O rádio desempenha esse papel particularmente para certos grupos so-ciais (os jovens, as donas de casa) ou em certas situações, principalmente as crises graves,mas sem chegar a ter aquela dimensão "institucional", ligada à representação da so-ciedade, proporcionada pela televisão. Na imprensa escrita, a publicação que, sem dúvi-da, mais se relaciona com essa função de laço, de espelho e de memória é a dós se-manários de informação e de fotos que existem em todos os países e dos quais Life eParís-Match talvez sejam melhores exemplos.

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TELEVISÃO E LAÇO SOCIAL

O inapreensível e indispensável grande público ou a superação do fra-cionamento social

O status e o papel do grande públicoNa sua forma contemporânea, a noção de grande público tem duas origens.

Inicialmente, temos a transformação da turba em massa e em público, ou seja, o resul-tado da domesticação da questão do número, que tanto assombrou o fim do século XIXe o começo do XX. O "grande público" apareceu como a face nobre desse problema donúmero, sendo seu correspondente no dpmínio político o sufrágio universal e a emergên-cia progressiva do termo "democracia de massa". O grande público é, portanto, sempreidentificado à sociedade de massa. Esta, por sua vez, está relacionada com idéia de umaelevação do nível de vida, cujas conseqüências no plano econômico são a abertura demercados de grande consumo e, no plano político, o nascimento da opinião pública.

A segunda origem dessa noção, sempre vinculada à sociedade de massa, vemda idéia do espetáculo: o grande público é o público das mídias de massa, à frente dasquais se encontram o rádio, depois o cinema, e por último a televisão. Ele é, ao mes-mo tempo, um público numeroso e quase indistinto socialmente, ou seja, um públicocuja composição não obedece estritamente a um corte sociográfico. Continua sendosempre mais ou menos uma esfinge, cujo mistério aumenta na proporção em que suacomposição é sempre instável e de duração muito variável, com o triplo inconvenientede ser de difícil definição, muito instável e de frágil identificação. Existe, portanto, al-guma coisa de insatisfatória nessa idéia que, por outro lado, valoriza o grande público.

É aí que reencontramos a questão fundamental da televisão. Até que ponto de-vemos favorecer uma lógica de individualização e de agregação em pequenas comu-nidades, em oposição ao grande público da televisão de massa? Até que ponto uma ativi-dade cultural como a televisão deve escapar à lógica do grande público e, de modo in-verso, a partir de quando deve ela assumir essa noção e valorizá-la contra o individua-lismo triunfante?

Quais são as duas grandes críticas feitas ao conceito de grande público da tele-visão?

A primeira é a acusação de passividade associada ao caráter muito geral de umamensagem destinada a todos, mesmo que já saibamos, agora, que ninguém a recebe damesma maneira. Ora, não só a televisão não engendra a passividade, como, pelo con-trário, desenvolve o senso crítico, pois ao se dirigir a todos, obriga todo mundo a estarà altura de um determinado olhar.

A segunda crítica feita à idéia de grande público diz respeito à estandardizaçãoda oferta e da demanda. Mas fazer da televisão a responsável pela estandardização, coisaque constitui um dos limites da sociedade de massa, expressa mais uma vez a idéia que

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

supõe ser a televisão todo-poderosa. Significa atribuir a ela um poder muito acima dassuas competências como fator de estandardização, quando existem fatores que são "ob-jetivamente" mais responsáveis por isso, como aqueles ligados à economia de massa, asaber: a urbanização, a estandardização das situações de trabalho, a equalização pro-gressiva das condições de saúde, a educação... Em outras palavras, podemos dizer quea invenção da programação foi justamente o meio de lutar contra os efeitos da es-tandardização da televisão. O problema — e aí voltamos ao status do grande públiconuma sociedade e ao papel que nela desempenha a televisão — continua a ser o de des-cobrir até que ponto se deve fracionar esse grande público e a partir de que ponto essefracionamento pode se tornar um fator de desigualdade social e cultural.

É neste ponto que reencontramos a ambivalência das técnicas de observaçãoda audiência que, permitindo saber quem assiste a quê, favorecem uma programaçãomais adaptada, mas colocam em risco o conceito de grande público sobre o qual seapoiam os profissionais das mídias. Estes sabem muito bem que o grande público éindefinível, mas que existe, no sentido em que o grande público é uma coisa distin-ta da simples soma de públicos. A questão básica é, portanto, saber até que ponto elesprecisam conhecer as identidades dos públicos para adaptar a sua produção, saben-do que o público pode ser seduzido e atingido ao acaso, quer dizer, sem que os es-pectadores e os profissionais o tenham previsto de fato. A liberdade e o acaso, comovimos, são condições intrínsecas da relação do público com a televisão, e toda raciona-lização dessa relação, no sentido de uma aproximação estrita demais entre a oferta ea demanda, não significa garantia de melhora: essa imprecisão e a incerteza conti-nuam no centro da relação com a televisão. Ao racionalizar demais a relação entre aoferta e a demanda, podemos colocar em risco um dos mecanismos mais profundosda relação do espectador com as imagens. O espectador tem necessidade de surpre-sa e de improvisação, e é essa incerteza sobre a demanda, e essa indecisão sobre ogrande público que permitem aos produtores, autores, jornalistas e programadoresassumirem a responsabilidade na construção de uma oferta que não seja, de início,calcada numa demanda.

Com efeito, existe na tentação de um ajuste muito estreito entre a oferta e ademanda o mesmo risco de rigidez que existe no reduzir a opinião pública às sonda-gens. Até que ponto um conhecimento sociográfico ajuda a compreender um processotão complexo, neste caso a opinião pública e naquele o comportamento do público detelevisão, e a partir de quando essa sociografização introduz não apenas mecanismosde rigidez excessivos, mas também o risco de cair no tendencioso? Esse é o caso dassondagens, quando pensam traduzir a opinião pública, ou da televisão fragmentada,quando pensa resolver a questão da relação entre a oferta e a demanda.

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- TELEVISÃO E LAÇO SOCIAL -

Em outras palavras, da mesma forma que a sondagem não abrange a opiniãopública, que continua sendo uma ficção, também a programação não pode ser adequadaao grande público, mesmo que uma e outra sejam indispensáveis, com a condição deque conheçam os seus limites. O grande público e a opinião pública são, portanto, aomesmo tempo, conceitos e ficções necessárias,- situando-se imediatamente na escala dademocracia de massa. E no entanto, é por isso que as mídias de massa e a opinião públi-ca, contanto que não sejam "sociografadas" demais, constituem imagens do laço socialnuma democracia de massa.

Por que insistir no interesse do grande público? Porque ele é o reverso da tele-visão de massa, tão desvalorizado quanto ela, mas também tão complexo e tão útil paracompreender a televisão. A dificuldade de criar o grande público, a sua instabilidade ea sua incerteza se refletem na dificuldade da televisão geralista: ela precisa, a cada dia,seduzir e mobilizar um público que não existe, mas que é, na verdade, a única coisaque lhe confere vida e sentido. Ele é o símbolo da televisão e, no sentido estrito, o quelhe dá seu valor. A incerteza do funcionamento do grande público traduz, enfim, a in-certeza da televisão, e existe, nesse desafio, uma grandeza que a representa muito bem.

Ao fim de tudo, o único espetáculo "grande público" de um país é a televisão,que é ao mesmo tempo uma das formas sutis dessa solidariedade diáfana que se instauraentre indivíduos que tudo separa, salvo terem visto, ao mesmo tempo, por razões dife-rentes e de maneiras diferentes, imagens a que aceitaram assistir, criando assim umacomunicação sem dúvida um pouco estranha, mas provavelmente típica da nossa so-ciedade "individualista de massa".

O grande público contra uma visão estática e desigualitáriaOs inconvenientes de uma identificação forte demais dos públicos são de três

ordens: visão estática, risco de desigualdade, empobrecimento das representações. Sea vantagem de uma televisão temática é oferecer uma produção adequada à demanda,a sua fragilidade é reduzir o imprevisto e incerto dessa relação à televisão. E como asurpresa faz parte do prazer de assistir à televisão, toda produção calcada sobre a de-manda é necessariamente estática. Uma sociografia dos gostos do público baseada emsondagens e enquetes reduz a parte do inesperado, que nos permite ter acesso a algu-ma coisa que não tínhamos pensado e, sobretudo, permite-nos vê-lo privadamente enão em público.

É aí, como já dissemos antes, que o "status privado" da televisão, muitas vezesconsiderado como um fator de dessocialização, deve, ao contrário, ser tomado comoum fator de emancipação. O fato de assistir à televisão em casa, isto é, de participar à

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

distância, e, principalmente, sem complexos, talvez seja um fator de participação dosmais poderosos, e impede que se supervalorize a oferta em função da demanda, vistoque a demanda corre o risco de refletir as desigualdades culturais. Com efeito, quantomais autônoma a oferta, maior é sua chance de suscitar uma demanda inesperada.Quanto mais "por baixo" estamos, menos demandamos. Por isso é que uma oferta fei-ta com base em uma demanda explícita será muito mais limitada e clássica se for feitapor uma população pouco instruída, e será mais ampla, diversificada e rica se emanarde uma população de alto nível cultural! A televisão fragmentada, como forma avança-da do apartheid televisivo será, portanto, o resultado paradoxal de um movimentoaparentemente democrático, uma vez que visa individualizar a relação oferta-deman-da. A individualização é, incontestavelmente, um fator de emancipação, mas cujo pon-to de "não retorno" é o risco de segmentação. O conceito de grande público, antes con-servador e repressivo, torna-se democrático ao exprimir uma mistura de grupos, públi-cos e de meios sociais.

Depois de quarenta anos de mídias de massa, o movimento inverteu-se: ontem,era a lógica coletiva que se afirmava contra o indivíduo perdido no grande público. Hoje,os gostos individuais, os das pequenas comunidades, predominam sobre as ilusões dogrande público, revelando ao mesmo tempo todos os estratos da massa folhada social esuas desigualdades. É possível que estejamos, pois, num ponto de oscilação: até onde omovimento em direção à individualização pode ir sem chegar ao seu termo, que é a or-ganização de uma televisão "livre", sem qualquer outra limitação que a reunião daque-les que querem ver a mesma coisa, se essa reunião se sobrepõe, afinal, às desigualdadessociais e culturais? A afirmação de si mesmo levada ao extremo chama-se recusa a semisturar e, sob o disfarce de viver livremente os seus gostos, reencontramos as estru-turas sociais. Velha contradição entre liberdade e comunicação, tantas vezes tomada co-mo problemas políticos e sociais, mas jamais realmente colocada pela televisão, justa-mente porque a televisão é, no conjunto, um domínio não pensado. Admitir que o reinoda individualização, sobretudo no domínio da comunicação, que parece ser o seu eldo-rado, pode levar à materialização de um processo de especialização cultural com as de-sigualdades de todo tipo que a acompanham, é coisa ainda não examinada. Portanto, aque iremos assistir no processo natural de fracionamento que se segue ao desmantela-mento da idéia "arcaica" de televisão de grande público? Ao triunfo de uma televisão deduas ou três marchas, segundo o país, que partirá da televisão de grande público, debaixa gama, popular e demagógica, passando pela televisão de classe média, para termi-nar na televisão cultural de elite. Será necessário haver três classes de televisão, ou, aocontrário, evitar essa hierarquização e tentar satisfazer a todas as aspirações, correndo orisco de fazê-lo através de uma televisão geralista inelutavelmente frustrante?

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-TELEVISÃO E LAÇO SOCIAL -

Podemos distinguir quatro grandes formas de {racionamento do grande públi-co. Inicialmente, a televisão de massa tal como existe que, através de sua programação,já traduz uma consideração pela hierarquia social e cultural, uma vez que os programasque não são de grande público acabam relegados à segunda parte da programação. Anão ser que se trate de uma televisão pública, que pode fazer a escolha de uma pro-gramação mesmo contra a corrente.

Em seguida, a televisão fragmentada que alia, como vimos, a dimensão indi-vidualizante, mas sobre uma base de televisão de massa, condição para a sua existên-cia financeira. A televisão local ou comunitária associa-se, como indica o seu nome, àidentidade local. Ela é, na maioria das vezes, o complemento natural da televisão demassa, em que os indivíduos desejam uma televisão que reflita os problemas, as promes-sas, as características e aspirações do seu quadro local de vida. Quanto à televisão re-gional, sua viabilidade e interesse dependem muito das condições histórica e geográfi-ca da região. Em relação à problemática do laço social3, a televisão fragmentada, in-contestavelmente, é a ameaça mais forte. O fracionamento menos perigoso é repre-sentado pela televisão local, pois ninguém vê nela nada além do que expressa: uma co-municação local, que reconhecemos ser ao mesmo tempo indispensável, mas limitadae insatisfatória.

Existe uma terceira forma de fragmentação, talvez a mais sofisticada e a maisperigosa, porque reúne, a príorí, qualidades da televisão individualizante e da televisãode grande público: é a "televisão representativa"4. Ela ainda não existe, mas amanhãpoderá nascer da preocupação de dar uma "base democrática" à lógica da comunicação.Em vez de deixar só aos profissionais a tarefa mais ou menos arbitrária de construir umatelevisão para "todos os públicos", o mais simples seria construí-la na proporção dasgrandes identidades socioculturais constitutivas do país. O argumento democrático éinevitável, pois preencheria as graves lacunas atuais oferecendo a possibilidade, porexemplo, de que os Maghrébins*, camponeses ou idosos, para tomar três populaçõesmuito diferenciadas, tenham programas dirigidos especialmente a eles.

É verdade que muitas considerações "representativas" na maneira de fazer tele-visão poderiam corrigir a sensação, dominante em todas as televisões européias — comexceção da Europa do Norte, onde a igualdade é muito mais forte —-/&& que os pro-gramas são feitos para uma faixa etária (30-50 anos) e para os meios/sociais de tipo ur-bano "meio-superior" como dizemos em marketing. Pelo menos, o espelho da televisãoofereceria um reflexo menos parcial da sociedade que a assiste. Mas essa idéia de umatelevisão representativa seria, provavelmente, o maior contra-senso em relação ao que

' Imigrantes negros das antigas colônias francesas do norte da África. (N.T.)

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

é a televisão e aquilo que dela espera o público e, infelizmente, a idéia está mais à nos-sa frente do que atrás de nós.

É verdade que há algo de angustiante em admitir que a televisão deve per-manecer nesse espaço livre, aberto, pouco controlado e que, por outro lado, existe tan-ta confiança na segmentação, seja sob a forma de televisão temática, seja sob a formade televisão representativa. Todavia, as duas não seriam, afinal, quase a mesma coisa?Um exemplo comprova isso: é o tema recorrente da necessidade de organizar demo-craticamente as associações de telespectadores, único meio de expressar o ponto devista dos consumidores e de ter, assim, um sócio "sério" para os poderes públicos. Ogrande ausente da televisão é, por certo, o público, obrigado a tudo aceitar sem ter apossibilidade de se manifestar... a não ser recusando-se a assistir aos programas. A cons-tituição de associações representativas é, portanto, um processo de institucionalizaçãomuito útil para os telespectadores e para as próprias associações. Quanto aos poderespúblicos, não se pode ter certeza de que eles fiquem lá muito felizes de ter pela frentesócios sérios: já existem tantos sindicatos, corporações, grupos que falam "em nomede", que a ausência de "representantes do público" não seria para eles uma incon-veniência de fato...

No entanto, vemos constituírem-se em quase todos os países as grandes asso-ciações representativas de telespectadores que todos reivindicam, não um monopólioda representação, mas, pelo menos, um reconhecimento da legitimidade de discutir enegociar com as autoridades. Ora, essa lógica representativa corre o risco de ser antinômi-ca à origem do sucesso da televisão e da relação que com ela mantemos, Amamos atelevisão porque a sua subjetividade e a sua parcialidade são "incontroláveis". Nós aamamos porque o espectador não tem de prestar contas a ninguém e os profissionaisprecisam dessa liberdade para fazer a televisão no dia-a-dia. Inicialmente, como em to-dos os espetáculos, é a subjetividade, o perigo e o "contrato" implícito entre os profis-sionais e o público que são importantes. Toda institucionalização dessa relação fortui-ta endurece o processo, estanca as inovações e reforça o poder dos "pequenos chefesrepresentativos" de que as associações de espectadores poderiam se tornar exemplo, seviessem um dia a ser realmente poderosas. A televisão é uma das únicas atividades queescapa um pouco às restrições sociais, por que então fantasiá-la com uma "lógica socio-lógica"? Aí também é preciso aceitar "o gasto", o risco, a surpresa, a sedução, sem tercontas a prestar a nenhuma das partes. A televisão já é, na vida cotidiana, uma indús-tria suficientemente pesada onde nem todos os dias reina a imaginação, a alegria de vi-ver, as iniciativas e a fantasia, portanto, não precisamos torná-la ainda mais pesada!

A idéia de televisão representativa é prima-irmã da idéia de televisão fragmen-tada, e um dia poderemos cruzar o critério da televisão fragmentada com aquele, mais

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"objetivo", de representatividade de gostos e públicos a serem atingidos, como soluçãode bom senso para a organização da televisão num quadro democrático. Admitir que atelevisão, como técnica de comunicação, deve escapar a toda lógica de representativi-dade para continuar fundamentalmente subjetiva e na ordem de generalidade, é idéiamaciçamente minoritária! Um dia talvez percebamos que a televisão de massa gera-lista, por muito tempo considerada a menos significativa e a mais desigualitária, é, narealidade, a menos perigosa em relação ao duplo perigo da hierarquia e da representa-tividade.

A grade, que é símbolo da televisão de massa, parecerá, talvez, um fator deliberdade, pois é o intérprete pelo qual passamos para nos abrir ao mundo. A grade deprogramas e o grande público pertencem, além disso, ao mesmo movimento: a gradeé o meio de colocar algum método na abertura para o mundo, sendo o grande públicoo destinatário mais geral dessa abertura ao mundo. Logo virá o momento em que oquadro da televisão de massa parecerá não mais uma estrutura de que é preciso se livrar,mas, ao contrário, o meio de manter "em forma" um conjunto vasto demais de ima-gens e assuntos, na escala mundial a que nos dão acesso as imagens cotidianas de to-dos os tipos.

Essa mudança na maneira de ver a televisão geralista — e a grade — virá tam-bém acompanhada, provavelmente, de uma revalorização do conceito de grande públi-co. Este, em vez de ser considerado como um dado básico, parecerá aquilo que é, querdizer, uma conquista. Uma conquista e não uma aquisição. Com efeito, o número desituações coletivas comuns a "todos os públicos" diminui numa sociedade em que asaspirações individualizantes e comunitárias aumentam, valorizadas por uma ideologiapublicitária que não cessa de passar os públicos específicos à frente do grande público,considerado banal. Ora, a segmentação de públicos possibilitada pelo enriquecimentoeconômico, pela elevação do nível cultural e pela aspiração individualista, corre o riscode transformar o grande público de ontem numa justaposição de públicos específicos,até o ponto em que essa idéia de público geralista torne-se mais difícil de realizar doque a coleção de públicos específicos. O tema do grande público, portanto, corre o riscode parecer aquilo que realmente é: um desafio sempre difícil de vencer. Pois o que es-tá em jogo é a idéia de grande público, é o milagre de uma reunião de públicos que,por outro lado, tudo separa e distingue. E manter esse milagre numa sociedade que le-gitima e busca os fracionamentos sociais e culturais se torna um grande desafio! A tele-visão continua a ser um dos raros exemplos dessa arte do número incerto que carac-teriza o grande público, uma das raras em relação ao comércio, sem dúvida. Do comér-cio popular às grandes lojas de departamentos e aos hipermercados, o comércio acabapor se tornar um dos únicos locais físicos onde se misturam os diferentes meios sociais.

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É só no Carrefour que se cruzam as faixas etárias e as classes sociais! Em outras palavras,é preciso reconhecer que esse comércio popular teve uma função democrática evidente.Ele permitiu a um público de massa ter acesso a bens de consumo cada vez mais sofisti-cados. Basta olhar as seções de roupas, alimentação e utensílios domésticos da Monoprixou da Aucharú Não só o consumo popular foi levado às alturas, como também esse pro-cesso veio acompanhado de uma diversificação crescente para satisfazer a um públicomais e mais exigente. O comércio e a televisão, portanto, não terão em comum o fatode serem grandes conquistas democráticas pouco apreciadas nos meios intelectuais eda elite em geral? De qualquer modo, a dificuldade de constituir esse grande público écada vez maior, mesmo para a televisão que, durante cinqüenta anos, foi provavelmentea sua vitrina. Os obstáculos são cada vez mais numerosos. Prova disso é que os maioresconsumidores de televisão são os muito jovens e os idosos. Os adolescentes, assim co-mo uma boa parte dos adultos jovens, lhe torcem o nariz. Por isso, a idéia de grandepúblico, aparentemente banal e conquistada, torna-se na realidade um grande desafio.

A televisão: o laço entre o indivíduo e a massa, o particular e o geral

Há uma vinculação direta entre a noção de grande público e a função de "laçosocial" da televisão. A televisão só pode desempenhar esse papel quando se trata de umatelevisão de grande público, ou seja, uma televisão de massa, caso contrário desempe-nhará um papel mais limitado. Na realidade, no caso da televisão, é preciso hoje esco-lher entre duas características que não se excluem, mas que, na medida da diversificaçãodo sistema audiovisual, tendem a se afastar: a função de comunicação e a função de laçosocial. Trata-se tanto de melhorar a comunicação no sentido de uma aproximação entrea oferta e a demanda, no caso da televisão fragmentada, quanto de preservar a dimen-são de laço social entre os membros isolados de uma sociedade de massa em detrimen-to de uma programação competitiva demais, mas sempre em proveito de uma função decomunicação "ampliada" que insiste principalmente no sentimento, mesmo difuso, departicipar de uma certa identidade coletiva. Tipicamente, é isso que ilustra o grande públi-co, cujo papel integrativo fundamental se faz em detrimento de uma certa precisão noencontro entre os produtos e o público. Mas é também nessa relativa indeterminaçãoque se realiza uma forma de comunicação social diferente da comunicação mais precisada televisão temática, entre o produto e o espectador. A comunicação de grande públi-co perde em "definição" aquilo que ganha em "integração", quer dizer, na manutençãode uma certa representação da consciência coletiva de um país.

Insistir na dimensão de laço social no quadro da televisão de grande público sig-nifica três coisas. Inicialmente, que a televisão geralista é a que está mais bem coloca-da para gerar a relação contraditória indivíduo-massa, sem pretender superá-la. Em segui-

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da, que ela contribui para gerar também a relação entre o particular e o geral numa so-ciedade complexa. E enfim, que esses dois tipos de relações em que ela intervém ocor-rem no seio de um quadro nacional. É o seu papel nessas três direções que permite de-fender a hipótese de que a televisão geralista é uma forma de laço social ou, se preferir-mos, de solidariedade social.

A relação indivíduo-massaEssa relação é consubstanciai à sociedade individualista de massa que, como

vimos, apóia-se no desenvolvimento simultâneo dessas duas dimensões contraditórias:a afirmação do indivíduo e a extensão da socialização5 à maioria das atividades econômi-cas, sociais, educativas e religiosas da sociedade. Esse conflito é insolúvel: os modelose as aspirações são individualistas; a realidade e as instituições são "de massa". A tele-visão geralista procede diretamente desse duplo movimento contraditório: nela cen-suramos, simultaneamente, a homogeneização — todo o mundo assiste à mesma coisa— e a atomização — cada um assiste sozinho.

Mas trata-se de um contra-senso: essa dupla função não deve ser cobrada datelevisão geralista, mas a ela creditada! Por homogeneização devemos entender, na ver-dade, a participação em um certo número de atividades de programas e de imagensque, num determinado momento, definem a identidade coletiva de uma sociedade. Poratomização, é preciso que se entenda, na verdade, a escolha livre que fazem os espec-tadores de participar ou não, em suas casas, desses programas. A televisão, portanto,não acentua a atomização, mas representa, antes, o instrumento de comunicação, emsentido estrito, que permite gerar as duas dimensões contraditórias da nossa sociedade.

O papel da televisão é contribuir para esse equilíbrio, evitando dois perigos: ode ser geral demais, tendo como conseqüência a perda de identidade coletiva dos teles-pectadores; ou, inversamente, o de ser individualizante demais, correndo o risco de fa-zer desaparecerem os fatores que transcendem o individualismo para substituí-los noquadro da comunidade. É aí que encontramos a oposição entre a televisão geralista, cu-ja força é a representação do grande público e cuja fragilidade é a sua relativa "má per-formance comunicacional"; e a televisão fragmentada, onde ao contrário, a força é aprecisão na relação de comunicação, e o inconveniente, a sua frágil competência social.

Aí estamos no centro do problema relativo ao papel da televisão na gestão darelação indivíduo-massa. Se as. minhas preferências forem em função da "comunicaçãosocial", quer dizer, da menor performance de "comunicação" entre o espectador e osprogramas, em proveito da dimensão de laço social, forçoso é reconhecer que os in-convenientes dessa situação estão à altura das vantagens que traz, ao contrário, a tele-visão fragmentada. Em outras palavras, é difícil dizer que a televisão geralista, no que

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tange à questão da relação indivíduo-massa, seja "naturalmente" superior à televisãofragmentada. Nos dois casos, a escolha de uma ou de outra contém insuficiências.

A televisão de massa é mais democrática, mas concilia mal a relação indivíduo-massa, pois a dimensão coletiva prevalece sobre a dimensão individual. A televisão frag-mentada, pelo contrário, mais forte do ponto de vista da satisfação individual, o é menosquanto à identidade coletiva. Parece, portanto, difícil, contrariamente ao discurso maisfreqüente, falar simultaneamente de televisão individual e de projeto democrático. Asduas dimensões são, de fato, em parte contraditórias, mesmo que, evidentemente, asoposições não sejam também tão profundas. Aquilo que perdemos em "comunicação",ganhamos em "identificação coletiva", mas, ao contrário, o que ganhamos em dimen-são coletiva, perdemos em performance individualizante.

Em resumo, a televisão é como o jornal televisionado: vemo-lo porque estamosinteressados num assunto, que é por certo sempre tratado com muita brevidade, e nospomos a assistir outros, que não interessam a prtori, mas cuja presença prova que elesdevem ter um certo interesse ou, em todo caso, devem interessar a alguém! Essa toma-da de consciência cotidiana é irritante, mas constitui, sem dúvida, uma escola de to-lerância, no sentido em que somos obrigados a constatar que, na grade, os programasque não interessam são, ao menos, tão numerosos quanto aqueles que interessam. Oque é uma prova, afinal, de que os gostos dos "outros" até podem ser tão legítimosquanto os nossos! A convivência de programas no seio da televisão de massa é, por-tanto, incontestavelmente, um fator de unidade social dos mais fortes, principalmentese levarmos em conta o impacto da televisão geralista. Ela constitui mesmo um fatorde abertura e de tolerância cujo peso subestimamos. A questão, portanto, é saber atéque ponto deve-se aceitar a segmentação que, segundo a orientação, refere-se às co-munidades ou tribos mas que, de qualquer modo, deixa de lado a questão essencial dascondições da integração coletiva.

Um dos problemas essenciais hoje em dia é repensar a questão do número emsociedades que, há pelo menos meio século, valorizam a afirmação individual. Isso dizrespeito ao lazer, à cidade, ao comércio, à educação, ao turismo, à saúde. Não restadúvida de que a televisão, sozinha, geralista ou temática, não o resolve, mesmo que se-ja um dos melhores símbolos e um dos maiores desafios.

A relação particular-geralNo fundamento da relação particular-geral, isto é, na relação entre a fragmen-

tação inelutável da sociedade e da existência coletiva, encontra-se a confiança. Oscidadãos confiam na televisão pela sua capacidade de lhes permitir acesso às diferentesdimensões essenciais do jogo social. Sem confiança, não existem espectadores da tele-

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visão de massa. Em compensação, eles podem existir, mesmo sem ela, para a televisãofragmentada, que mobiliza menos expectativas do que a televisão geralista, visto quese trata de satisfazer uma curiosidade mais limitada. O "contrato" entre o espectador eo programador situa-se numa escala mais modesta, e a confiança consiste simplesmenteem esperar que os programas temáticos sejam conformes à expectativa.

No quadro da televisão geralista, a ambição é mais vasta e, por causa disso, adelegação de confiança também o é. Para o espectador, ela consiste em creditar aos pro-gramadores a capacidade de colocar na antena programas que lhe permitirão ter umapercepção, a menos incompleta possível, dos diferentes aspectos da realidade. A questão,no contrato de confiança entre os espectadores e os profissionais da televisão geralista,é de uma delegação "de generalidade".

Se retomarmos as características de base da televisão, definidas no capítulo 3,e que são o espetáculo, a identificação, a representação e a racionalização, compreen-deremos em que essas características remetem diretamente ao papel de laço social datelevisão, evidentemente desempenhado mais facilmente pela televisão geralista do quepela televisão temática.

O laço social significa duas coisas: o laço entre os indivíduos e o laço entre as dife-rentes comunidades constitutivas de uma sociedade. Se a comunicação consiste em esta-belecer alguma coisa de comum entre diversas pessoas, a televisão desempenha um papelnessa reafirmação cotidiana dos laços que juntam os cidadãos numa mesma comunidade.

Essa comunicação "generalizada média" com o mundo que busca a televisãogeralista parece aquele "fio d'água morna" tão freqüentemente fustigado, mas o essen-cial não está aí. De qualquer modo, será que agüentaríamos um fio d'água fervente?Conseguiríamos viver com a intensidade de uma pressão audiovisual simultaneamentepoderosa sobre toda a gama de programas? O espectador também tem necessidade deque a televisão seja "média" para poder escapar dela. Mesmo que ela não garanta a co-municação propriamente dita, porque não existe comunicação em escala de uma so-ciedade, a televisão oferece, em compensação, uma função de participação e uma funçãode ponte entre as classes sociais e as faixas etárias. Ela é o "barqueiro", o grande "men-sageiro" da sociedade de solidões organizadas, reduzindo as exclusões mais poderosasda sociedade de massa. Pois o drama da sociedade de massa é que não existe ninguémentre os indivíduos e a sociedade, e o papel essencial da televisão é garantir uma espé-cie de vaivém entre esses dois extremos da escala social. A televisão não rompe os iso-lamentos e as exclusões, mas, ao contrário do que afirmamos muitas vezes, tampoucoos acentua. Ao contrário, ela limita os seus efeitos.

Finalmente, chegamos, talvez, ao paradoxo do papel da televisão geralista. Elanão é, forçosamente, um fator de racionalização e de integração, mas, ao contrário, um

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meio de fazer conviver em conjunto diversas racionalidades. A televisão de massa se-ria, então, menos um agente de racionalização, tão freqüentemente criticado, do queum agente de semi-racionalização. O surpreendente é que, muitas vezes, são justamenteos que retomaram a crítica da escola de Frankfurt ao processo de racionalização6 da ima-gem de mundo assumida pela televisão os que deixaram de perceber essa construçãoincerta da televisão geralista, provavelmente mais útil à semicoerência que ela permitedo que à uniformização que ela impõe. Eles não perceberam tampouco que a televisãotemática, beneficiária hoje de todos os favores, tombava, na verdade, sob os golpes deuma crítica da racionalização.

Chegamos à seguinte conclusão: numa sociedade complexa, fortemente orga-nizada e administrada, é necessário abrir o jogo das representações e é preferível man-ter as representações "anti-racionalizadoras". Para esse exercício, as televisões geralis-tas estão mais bem colocadas do que as televisões temáticas!

No fundo, insistir na dimensão-de laço social em detrimento da função natu-ral de comunicação permite compreender o que a televisão pode e o que não pode fa-zer. Será ela, hoje, uma técnica de comunicação de possibilidades mais e mais poderosas,mas que não encontra a sua plenitude senão numa liberdade cada vez maior, um poucocomo a liberdade de pensar, quer dizer, com o mínimo possível de limitações? Ou será,ao contrário, que a televisão acrescenta, como penso eu, um papel essencial de laço so-cial, que nada retira da sua função de comunicação no senso estrito, mas que lhe im-põe, em compensação, certas obrigações?

Dessa segunda perspectiva, o problema não é mais apenas fornecer o máximo deimagens possível para o maior número de públicos possível, cuja perspectiva final é pratica-mente a de fazer uma televisão para cada cidadão, mas, ao contrário, é preciso colocar aquestão de saber a partir de que momento a função de comunicação estrita da televisão podequestionar a sua segunda função de laço social. Certamente, essas duas funções são sobre-postas e, na realidade, são indistintas, mas no plano da análise, é necessário distingui-las.

Admitir que a televisão tem uma função essencial de "comunicação social" sig-nifica admitir que a comunicação televisual não é "livre" e que se impõe haver limitesa ela, que nada têm a ver com o seu status público ou privado, mas sim com a posiçãoque ela ocupa numa sociedade. Portanto, o problema é saber como inscrevemos a co-municação televisual num país, numa cultura, num espaço público.

Notas ao capítulo 6

1. LEVI-STRAUSS, Cl. Anthropologíe structurelle. Paris, Plon, 1962. SIMMEL, G.Sociologie et épistémologie. Paris, PUF, 1981. DURKHEIM, E. De Ia division du travailsocial Paris, PUF, 1960, textos a consultar no t. l, "Élements d'une théorie sociale";

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t. 2, "Réligion, morale"; t. 3, "Fonctions sociales et institutions". Paris, Editions deMinuit, 1975. BALANDIER, G. Lê détour, pouvoir et modernité. Paris, Fayard, 1982.MAFFESOLI, M. La connaissance ordinaire. Paris, Librairie dês Méridiens, 1985. MEAD,G. H. L'esprít, lê sói et Ia societé. Paris, PUF, 1962. MAUSS, M. Sodologie et anthro-pologie. Paris, PUF, 1968. Idem. Essais de sociologíe. Paris, Points/Seuil, 1968.

2. Poucas obras recentes tratam especificamente da problemática do laço social.Para que se avalie a dificuldade de caracterizá-la, basta, por exemplo, reportar-se à rubri-ca "laço social" da Encyclopédie Universalis, p. 630-730, no volume "os desafios", ondesão abordados os seguintes temas: "A crise" (J.-T. Desanti), "Interesse e limite das en-quetes sociológicas" (J. Lautman), "Individualismo metodológico" (R. Boudon), "Lógicaindividual e lógica social" (R. Daval), "Mecanismos de integração e formas de desvio"(R. Chazel), "O Estado e a violência" (R. Guillemin), "Elites e grandes escolas"(J. Lautman), "Sociologia da família: a porta e a ponte" (F. de Singly), "O indivíduo"(B. Valade), "Da civilidade à sociabilidade" (B. Valade), "Vida pública-vida privada"(M. Maffessoli), "A sociologia do cotidiano" (G. Balandier), "Linguagem e sociedade"(J. Lagneau), "Os inovadores sociais" (N. dês Gajets), "O imaginário social" (P. Ansart),"Choques e infortúnios da ideologia" (F. Bourricaud), "A mudança social" (R. Boudon).A presença de uma grande parte de sociólogos franceses comprova o interesse pelaproblemática; e a diversidade de temas abordados, a complexidade do tema tão logoabandonamos a abordagem institucional. Por outro lado, não encontramos referênciaao termo no Dictionnaire critique de Ia sociologíe (PUF, 1982), nem no Dictionnairede Ia sociologíe (Larousse, 1989), nem no Dictionnaire de Ia langue philosophique(PUF, 2. edição, 1982), nem em Lê vocabulaire technique et critique de Iaphilosophie (PUF, 3. edição, 1980). Há uma pequena referência num artigo de G.Balandier, "L'exploration anthropologique de Ia modernité", p. 342-3, em Universphilosophique encyclopédique, Paris, PUF, 1989.

3. ELIAS, N. Qu'est-ce que Ia sociologíe..., principalmente os capítulos 4 e 5,p. 123-95, Pandora dês Sociétés, 1981. SIMMEL, G. Sodologie et épistémologie. Paris,PUF, 1981.1a parte, p. 83-163.

4. A televisão representativa pode, ao mesmo tempo, furtar-se a uma lógica daprogramação levada ao limite tentando atingir todos os públicos ou, ao contrário, levarem conta, ao extremo, os resultados das pesquisas de audiência. Para uma análise "ra-cional" da questão de audiência, ver o artigo de Bernard Cache, "Rawls regarde Ia télévi-sion", Médiaspouvoirs, (14): 102-8, abril-maio de 1989.

5. Existe uma literatura considerável sobre as relações entre indivíduo e mas-sa. Mencionamos especialmente: "Masses et politiques". Revista Hermes, Cognition,Communication, Politique, n. 4, Paris, CNRS, 1988."Individus et politiques". Revista

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Hermes, Cognition, Communication, Politique, n. 5/6, Paris, CNRS, 1989. CANETTI,E. Masse et puissance. Gallimard, 1966. (Coleção Tel.) Habermas, J. Lê discoursphilosophique de Ia modernité. Paris, Gallimard, 1988. 12 conferências. SENNETT,'R. Lês tyrannies de 1'intimité. Paris, Seuil, 1974. ARON, R. Leçons sur l'histoire.Paris, Ed. de Fallois, 1989. Idem. Sociologie allemande contemporaine. Paris,PUF, 1981. [Gol. Quadridge.] Idem. Dimensions de Ia conscience historique.Paris, Plon, 1961. NISBET, R. A. La tradition sociologique. Paris, PUF, 1984.DURKHEIM, E. Uindividualisme institutione. Essai sur T. Parsons. Paris, PUF, 1977.GRAUMANN, G. & MOSCOVICI, S., ed. Changing conception of crowd mind.Heidelberg, Springer, 1986.

6. MARCUSE, H. 1'homme unidimensionnel. Paris, Seuil/Points, 1970. Idem.Culture etsodété. Paris, Editions de Minuit, 1970. HORKHEIMER, M. La théorie critiquehieretaujoud'hui. Paris, Gallimard, 1970. ADORNO, T. W. Mínima moralia. Paris, Payot,1972. Idem. La dialectique de Ia raison. Paris, Gallimard, 1974.

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A televisãono espaço dacomunicação

A idéia aparentemente simples desenvolvida aqui, mas cujas conseqüências sãopouco reconhecidas, é a de que não existe comunicação senão em um quadro restriti-vo. Não existe comunicação sem limite na comunicação, essa é, na realidade, a lei datelevisão. Ora, qual é o limite mais natural para essa técnica de massa? As fronteiras decada país. De fato, a televisão é sempre nacional, mas esse dado básico, tão importantequanto a dupla dimensão técnica e social da televisão, é praticamente ignorado, mes-mo quando cada Estado zela o mais escrupulosamente possível pelo controle das on-das difundidas no seu território. Os países regulamentaram ciosamente a televisão so-bre o seu solo nacional, falando de "liberdade de comunicação" para os outros países,mas desejando para si exercer a própria soberania.

O caráter nacional da televisão é uma constante observada em quase todos ospaíses, mas é vivido de maneira contraditória. É uma necessidade quase imperiosa, que,no entanto, não é necessariamente percebida como um valor positivo. Isto explica porque o movimento de abertura, com a multiplicação de canais e a criação de um mer-cado internacional da comunicação foi acolhido como meio de superar o caráter na-cional da televisão, que não deixamos de reivindicar.

A televisão, um instrumento nacional de comunicação

Existe um paradoxo na história da comunicação. Há dois séculos, reforçadapela revolução das técnicas, ela é o símbolo da abertura contra todos os fechamen-tos — inicialmente contra a censura, depois contra os regimes autoritários, depoiscontra as ditaduras. Se bem que a idéia de técnica de comunicação fosse, desde oinício, identificada com o fato de afastar para mais longe as fronteiras de todos ostipos.

Essa abertura parece triunfar hoje com a internacionalização da economia, aaproximação dos continentes, a revolução dos transportes, a constituição de umaeconomia mundial da informação e os fluxos transfronteiras de dados, e, em termosmais gerais, com o desenvolvimento das indústrias culturais. Nessa ampliação, o pa-

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pel das técnicas de comunicação foi essencial, as capacidades físicas substituíram asaspirações à abertura e forneceram-lhe mesmo uma garantia de legitimidade. E, hojeem dia, no momento em que triunfa a abertura, percebemos a importância do quadronacional que acreditávamos ultrapassado. A palavra "nacionalismo" não tem mais omesmo sentido que tinha no passado. Ele é uma reação a um crescente movimentode internacionalização, que faz o cidadão perder toda referência. A pletora de infor-mações vem do mundo inteiro, quase simultaneamente, colocando hoje um proble-ma básico: o cidadão não tem mais o meio de integrá-las, supondo que ele esteja mes-mo interessado por tudo o que se passa em toda parte. De qualquer forma, existe umadesproporção entre o que ele pode saber e o que ele pode fazer. Se queremos evitarum fenômeno evidente de esquizofrenia dos cidadãos ocidentais inundados de infor-mações e não dispondo, na esmagadora maioria deles, de meios de ação, é precisopreservar um quadro limite de interpretação, se não o risco de rejeição total torna-sereal. É preciso ter a coragem de dizer que a televisão, e, em termos mais gerais, as téc-nicas de comunicação, não questionam o quadro nacional, mas, ao contrário, o tor-nam mais útil!

Laço social e comunidade nacionalQual é a inversão essencial com que nos defrontamos? Admitir que no futuro

a questão principal não será o "imperialismo americano", mas a revalorização de umcerto quadro nacional, mesmo que, durante quarenta anos, o internacionalismo e aamericanização tenham sido praticamente uma coisa só.

Com efeito, tanto no cinema quanto na televisão, assistimos ao triunfo do mo-delo cultural americano, inseparável de uma indústria cultural eficaz, e esse triunfo sem-pre foi criticado, às vezes em nome de uma outra abertura internacional. Hoje, percebe-mos que o problema principal não é tanto a influência do modelo americano — existesempre um modelo dominante — e sim a questão dos limites a serem colocados à in-ternacionalização. Não se trata apenas de reduzir a porcentagem de produtos ameri-canos para dar preferência a outros, vindos do resto do mundo, mas também de saberqual porcentagem estabelecer entre programas "nacionais" e programas "estrangeiros".A televisão é provavelmente o instrumento de comunicação mais favorável à aberturapara o mundo, contra a exclusão e o racismo, contanto que não se esqueça de que umtal movimento tem os seus limites.

Em meio século, ampliaram-se as fronteiras do nosso universo político, infor-mativo, cultural e visual, fazendo verdadeiramente do cidadão ocidental um cidadãodo mundo. O mesmo movimento se encontra no plano das sociedades, com a rejeiçãodo nacionalismo, e no plano da pessoa, com o movimento de liberação individual. A

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sociedade de consumo surgiu, finalmente, como o meio menos pernicioso de combi-nar o universalismo e o individualismo.

É provável que estejamos em vias de chegar ao fim de um processo, pelo menosno que respeita a sua dimensão não contraditória, pois, aos poucos, independentementedo fato de que há cerca de dez anos predominam os signos precursores da volta a umalógica de fechamento, os espíritos experimentam hoje uma evolução.

Os acontecimentos da Europa Oriental e o despertar do nacionalismo noImpério Soviético, no verão de 1989, sem falar das dolorosas lembranças da reunifi-cação alemã, surpreenderam todo o mundo e recolocaram no centro da Europa asquestões nacionais. É mais ou menos como se os quarenta anos de Guerra Fria setraduzissem por um congelamento da questão nacional, a ponto de a acreditarmossuperada, até que ela ressurgiu, intacta e inteira. Pensávamos termo-nos livrado daquestão nacional entendida como fator de mobilização e de identidade dos povos, ouseja, como fator de conflitos, tendo as duas guerras mundiais servido como sinistrasilustrações da loucura nacionalista. Mas percebemos hoje que o problema está nomesmo ponto em que foi deixado em 1944, ou em 1918, ou em 1900, conforme aslentes que usarmos para olhar a Europa. A construção da Comunidade EconômicaEuropéia ilustra perfeitamente essa ambigüidade. Muito justamente desejada para re-construir uma Europa sobre base não nacionalista, ela tropeçou, depois de trinta anosde lento e paciente progresso, no profundo desejo de reunificação da "nação alemã"e, em menos de um ano, todo o capital de confiança, acumulado pacientemente de-pois da guerra, correu o risco de fracassar! E não apenas na França! Por força de havertratado a questão nacional como prova de arcaísmo, ela reapareceu no presente ime-diato com uma força intacta.

É aí que encontramos o papel essencial da televisão. Nela vimos sobretudo umfator de abertura, e acabamos descobrindo o seu papel essencial de laço social. Depoisda guerra, quando a maioria das representações se diluía e a rapidez das mudanças deuma sociedade que se defrontava com o embate entre mundo capitalista e mundo co-munista, com as guerras coloniais e com o triunfo de uma sociedade de consumo, foicapital encontrar na televisão uma espécie de fio condutor da modernidade1. Portanto,quando a televisão apareceu como uma mudança entre muitas outras, não percebemosmuito bem que ela era um fator não de instabilidade, mas de estabilidade. O mesmoproblema se coloca hoje em dia de modo inverso: o duplo movimento de universalis-mo e de individualismo triunfou, mas sem propor outro valor positivo que não a recusados modelos ultrapassados e a adoção dos valores da liberdade até a sua conseqüênciaextrema: a solidão. Nesse contexto de liberdades individuais, mas também de solidõesinstitucionalizadas, a televisão pode desempenhar um papel de identificação coletiva,

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sem que por isso suspeitemos dela, achando que quer provocar um retrocesso! Portanto,reconhecer hoje a importância do fator nacionalista é essencial, sob pena de, amanhã,deixá-lo de presente para a extrema direita. Apesar das aparências, a televisão não é uminstrumento universal de comunicação: ela o é apenas a partir de uma identidade cons-tituída. Por outro lado, essa dupla característica pareceria indispensável. Como pode atelevisão desempenhar um papel de abertura, e, portanto, de desestabilização cons-tante, de questionamento de esquemas e valores, se, simultaneamente, ela não repre-senta, para os espectadores, um elemento determinante para a sua unidade nacional?Não podemos enxergar o mundo se o olhar e a imagem não ampliarem sem cessar asfronteiras, sempre a partir de um lugar fixo identificado e com a consciência das própriasraízes. Senão, somos levados pelo fluxo de imagens!

Com relação a esse desafio, a televisão geralista o enfrenta tanto quanto a tele-visão temática, pois ela é uma maneira de se estar junto à distância. Ela correspondemuito bem ao modelo cultural moderno da presença-ausência, do compromisso, mastambém da liberdade de procura do outro — com a condição de que essa liberdade eessa procura não questionem a sua própria identidade.

Se a televisão agrada tanto, não é só porque ela difunde imagens, mas tam-bém porque a relação com o mundo que ela simboliza está "sintonizada" com umaespécie de atitude cultural dominante. Estar lá, presente no mundo, mas reservada-mente. Manejar determinadas gamas de curiosidade e de identidade. Ir e vir, ligar-see desligar-se.

Em resumo, a televisão existe na medida da identidade moderna, ao mesmotempo plural, livre e rápida, o que explica, por oposição, que ela tem a necessidade dese apoiar na identidade nacional. Esse status revaloriza a idéia de programação, que éreflexo do caleidoscópio da realidade social. A limitação do canal nacional e da pro-gramação aparecem como complementares simbólicas da televisão, pois esta é, simul-taneamente, um instrumento de evasão profundamente individual e um meio de sesentir parte do mesmo público, do mesmo país, da mesma sociedade.

Basta um exemplo para mostrar a importância do caráter "nacionalista" datelevisão: a produção dos seriados essencialmente americanos. Os discursos, a maio-ria das vezes muito críticos, neles vêem, ao mesmo tempo, a marca do imperialismocultural americano e o fim da identidade nacional de cada televisão, e, no entanto, éexatamente o contrário o que ocorre: os programas são fatores de reafirmação diretaou indireta da identidade nacional. Pois o que agrada nesses seriados independente-mente da qualidade dos roteiros, de Dallas a Dinastia2, passando por Columbo ouMike Hammer e mesmo Derrick não é o seu caráter internacional — o que significasimplesmente que são vendidos internacionalmente — mas, ao contrário, o fato de

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serem profundamente americanos, ou alemães, ou australianos. Eles são um fator deidentificação muito forte que não escapa ao espectador, o qual faz, instintivamente, adiferenciação entre um programa nacional e um programa estrangeiro, sem queninguém se engane sobre a origem dos diversos seriados que são, além disso, uma viade acesso à cultura dos países.

Mas para identificar, é preciso, automaticamente, ter critérios que permitamdistinguir o que brota da "sua" televisão e o que brota de outra. Isso supõe, portanto,um trabalho cognitivo muito rápido e, sobretudo, a capacidade de mobilizar parâme-tros culturais que distinguem o que é nacional daquilo que é estrangeiro. Esse trabalhopreciso de recursos, de um conjunto, de processos de identificação e de diferenciação,em resumo, de colocar em ação um número muito significativo de paradigmas provan-do que o espectador não é nem passivo, nem idiota. Para reconhecer quase instanta-neamente o que é nacional ou estrangeiro, é preciso uma forte capacidade de distinguirentre eles, portanto, possuir uma identidade bem constituída.

Tudo isso para dizer que o espectador não só é ativo, como possui, imedia-tamente, os critérios de identificação da cultura de onde provém. O relógio "do mesmoe do outro", cada um o tem dentro de si, inclusive no que diz respeito à televisão. Emoutras palavras, os programas estrangeiros — contanto que não sejam dominantes, evi-dentemente — são um exercício cívico permanente de reidentiflcação da própria cul-tura. Bem triste seria uma televisão "nacional" livre de programas "estrangeiros"! Poisesse é exatamente o paradoxo final da televisão: se ela tem necessidade de se apoiar nu-ma nação e numa identidade cultural, é menos para ser disso o reflexo do que para seapropriar de elementos identificatórios que lhe permitam a abertura sobre o outro. Aabertura sobre o outro depende previamente de um princípio de identidade que, no nos-so espaço cultural, é o da nação. Mas se dissermos aos espectadores de diferentes paí-ses europeus, por exemplo, que a sua abertura sobre o outro depende de uma certa cons-ciência nacional, muitos se surpreenderiam e se oporiam a essa concepção. Portanto, éprovável que essa abertura ao exterior seja melhor aceita na medida em que, implicita-mente, os espectadores de diferentes países saibam que as suas televisões não renegamo quadro identificatório e "nacional" a partir do qual garantem essa abertura.

O caráter nacional, ou seja, "nacionalitário" — o que é bem diferente de na-cionalista — aparece como condição de abertura para o estrangeiro, e veremos con-cretamente a conseqüência disso na televisão européia.

A informação é sempre nacionalComo só existe televisão nacional, também só existe informação nacional...

Uma tal afirmação soa como provocação, uma vez que a informação é exatamente a

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

atividade internacional por excelência. Certamente todas as televisões copiaram o mo-delo triste, estudado, "imóvel" — e tão americano — dos apresentadores, se bem quehoje em dia, em todo o mundo, os apresentadores têm o mesmo estilo, a ponto de con-fundirmos figura e fundo: quanto mais imóveis e congelados, quanto mais breves os as-suntos, mais as pessoas acham que a informação é objetiva! Mas trata-se aí de um fan-tasma norte-americano de objetividade3 e nada mais. A ideologia do jornalismo neutroe distanciado serviu de modelo e de referência para os informativos de todas as tele-visões do mundo, ao passo que esse mimetismo não se deu no rádio, pois cada paíspreservou o seu estilo próprio. A despeito de certa estandardização na apresentação dainformação de um lado a outro do planeta, o que tende a fazer crer na existência deuma informação internacional, forçoso é reconhecer que a relação de informações "ex-teriores" está diretamente em função da proximidade do interesse e do conhecimentoque temos desse exterior.

Essa heterogeneidade fundamental da informação internacional, que tem ne-cessidade de ser "recodificada" no código nacional, é uma realidade insuperável. Só asagências de notícias produzem informação internacional. É preciso ainda acrescentarque se trata exclusivamente de uma visão ocidental do mundo, uma vez que muitospaíses não têm os meios de pagar por esse olhar sobre o mundo. Esse monopólio oci-dental da informação, além do problema que coloca em relação a um ideal universal deinformação, explica também os numerosíssimos erros que os países ocidentais fazemna sua "leitura" do mundo. Simplesmente porque não têm os códigos que lhes permi-tam interpretar os acontecimentos que lá se desenvolvem. Não, não existe informaçãointernacional, não existem senão acontecimentos interpretados mais ou menos diver-samente pelos jornalistas e que, mesmo difundidos de maneira internacional, serão sem-pre recebidos e interpretados num quadro nacional.

Por que evocar essas provas? Porque a informação constitui, junto com os se-riados norte-americanos, a ideologia básica do discurso crítico contra o internaciona-lismo da televisão. Ora, esse discurso é nem mais, nem menos que uma nova versãoda ideologia técnica: o que designamos como internacional na informação é simples-mente o fato de que, tecnicamente, ela é difundida em escala mundial... Confundimosa mundialização das técnicas de informação, que permitem efetivamente uma inter-nacionalização da difusão, com a idéia de uma informação verdadeiramente interna-cional, que não existe. O que existe, repitamos, é uma visão ocidental do mundo, tan-to do ponto de vista dos valores, quanto dos interesses. É nessa perspectiva que se faza informação "mundial", que, por outro lado, jamais o é, porque tem necessidade deser percebida a partir de um quadro de referências, geralmente nacional, para poderser aceita.

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A TELEVISÃO NO ESPAÇO DA COMUNICAÇÃO

Mesmo que o público reclame "ver e saber", a responsabilidade do jornalistaé de resistir a essa pressão e assumir o seu papel que é, e sempre foi, o de selecionar eescolher aquilo que tem a dizer. Mais vale um mínimo de distância do que atrelar-sediretamente a uma história descontrolada! Se é possível tudo ver e tudo mostrar, aquestão que se coloca com muito mais acuidade é saber por que e por quem... A pos-sibilidade de "viver" hoje os acontecimentos internacionais diretamente obriga a quese recoloque uma questão que parecia ultrapassada: até que ponto a informação inter-nacional pode interessar aos diversos públicos nacionais? Consideramos, muito justa-mente, como um progresso democrático o fato de interessar os povos na história domundo. Estamos sempre nos perguntando até que ponto podemos mobilizar o inte-resse dos cidadãos dos diversos países pelos acontecimentos que se desenrolam alhures.O altruísmo democrático, que era uma virtude quando se tratava de ampliar a visão domundo, não corre o risco de se tornar uma limitação quando as possibilidades técnicastornam esse altruísmo democrático, enfim, possível? Até que ponto cada um de nóspode realmente se interessar por tudo? Nossa capacidade de experiência é limitada e adefasagem entre informação, representação e experiência pode se tornar fonte de in-cômodo. Os "desvios" da lógica da informação são tanto mais graves quanto supõemum cidadão universal que não existe, e que, à força de lhe mostrar diretamente umahistória da qual ele não tem nenhuma captação, corre o risco de se tomar impotente,para não dizer hostil.

Da mesma forma que não existe informação universal, não existe tambémcidadão universal e aí também os jornalistas das mídias internacionais ultrapassamperigosamente o seu papel informando, sem discernimento, milhões de espectadoressobre eventos muitas vezes incoerentes para eles, dos quais, aparentemente, não sepode perder o começo. O problema é que aí não se trata de um filme...

Talvez os acontecimentos sejam fundamentais para aqueles que os vivem, masnão necessariamente para os espectadores a milhares de quilômetros. E se o são, cabeentão aos jornalistas fazer o papel de intermediários, de filtros, sem o qual a informaçãonão é senão uma onda ininteligível de som e fúria na sala de jantar dos cidadãos. É co-mo se o progresso técnico desculpasse o jornalista por suas funções essenciais: a se-leção da informação4, sua construção, sua interpretação. Ao contrário, ele o reforça.O discurso demagógico que consiste em dizer que, graças às técnicas de comunicação,não haverá mais intermediário entre os acontecimentos e os cidadãos, constitui, naverdade, uma incitação à superação profissional do papel do jornalista. Quanto maisinformação existe, mais o papel do jornalista, sem dúvida arbitrário, consiste em or-ganizar e não em se "esquivar", deixando esse trabalho para ser feito pelo destinatáriofinal, o espectador.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

Ele sai ganhando com esse hiperconsumo da informação, iniciado talvez coma guerra do Vietnã e que não pára de se desenvolver na medida dos avanços técnicos.Se os cidadãos não se afastam desse espetáculo contínuo, é de se temer que o façampor se recusarem a acreditar numa informação que não seja transmitida diretamente.Ou porque se transformam cada vez mais em voyeurs. Mesmo em casos de golpes deEstado, massacres ou execuções... Não é grande a distância entre informação e voyeurís-mo, quando a ideologia técnica impõe-se sobre a ética da informação. Assistir em trans-missão direta aos horrores do mundo não ensina nada a ninguém, não aumenta a ca-pacidade de ação dos cidadãos envolvidos, de resto em número muito modesto, e correo risco, ao contrário, de alimentar um pessimismo definitivo sobre a espécie humana,que não precisa disso para existir.

Ninguém é esse cidadão universal interessado em tudo. Cada um vê o mundosomente a partir do seu passado, da sua história, dos seus interesses. Já é um milagre,resultado de dois séculos de encarniçada história e de lutas pela democracia e pela in-formação, que a maioria dos cidadãos do mundo não desliguem os seus aparelhos quan-do não se fala do seu país!

Basta assistir, toda manhã, na França, por exemplo, no Canal Plus, ao CBSNews para perceber a diferença entre as informações norte-americanas e as nossas.Não que as informações norte-americanas sejam melhores ou piores que as nossas. Não.Simplesmente, elas refletem uma visão de mundo americana, uma cultura, uma história,interesses que não são europeus.

A explosão da informação precisa de um quadro, de uma regra, de uma limi-tação. Isso se torna um problema essencial com a possível chegada dos canais temáti-cos de informação, cuja ideologia de venda será afirmar que constituem "um instru-mento indispensável para a vida democrática". Mas isso significará esquecer, mais umavez, que os interesses dos jornalistas, sem falar nos interesses dos proprietários doscanais especializados em informação, não são necessariamente os interesses dos es-pectadores e da democracia, por mais que eles o digam! Quanto mais se torna pos-sível ter imagens sobre tudo, mais se coloca a questão da responsabilidade daquelesque as fazem e impõe-se a necessidade de um enquadramento.

Não é proibido pensar que os países poderão, um dia, estabelecer um cordãosanitário para se proteger dessa inundação de informação de que, na maioria das vezes,não são beneficiários, e que serve quase sempre mais para manter os estereótipos doque para modificá-los.

Só aceitando a fixação em um quadro nacional, portanto em valores, é que osjornalistas poderão contribuir para a maneira como se trata e se integra a informação.Se a pesquisa da verdade deve continuar sendo a ética do jornalismo, este deveria ao

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

ciai. Tais são os dois dados básicos: a televisão é ao mesmo tempo um meio geralista enacional.

Existe uma conclusão prática a ser tirada para ao futuro: definir o papel da tele-visão no espaço público e admitir que ele é, afinal, modesto.

Comunicação e democraciaÉ fundamental manter um certo número de atividades de comunicação no es-

paço público ampliado relativas à informação, aos jogos, às variedades, ao divertimen-to, à cultura, e é a televisão geralista que parece mais bem adaptada a tudo isso, porqueela procura satisfazer ao grande público, que é a reunião do maior número possível decategorias sociais e culturais no espaço público.

A televisão adequada ao espaço público democrático é, incontestavelmente, atelevisão geralista, porque ela é feita sob medida para o espaço público democrático,contanto que não seja barateada, deixando aos mais favorecidos o acesso aos progra-mas melhores por intermédio das televisões temáticas. O interesse da televisão gera-lista, pelo contrário, é abordar todos os assuntos, mas com um certo nível de generali-dade. Ela é um ponto de passagem que não pretende ser exaustivo.

Existe, desse ponto de vista, um isomorfismo entre espaço público, democra-cia de massa e televisão geralista. Mas esse isomorfismo, conseguido depois de muitosdecênios de lutas, não conta atualmente com uma firmeza muito favorável, porque, afi-nal, a idéia de televisão geralista parece uma idéia ultrapassada. É, portanto, por meiode programas para todos os públicos que poderemos resistir melhor aos fracionamen-tos de uma sociedade que valoriza sem cessar as vantagens da individualização. Falarem prol da televisão geralista, já é falar em prol de uma certa visão igualitária e mo-desta da televisão, evitando acreditar que uma multiplicação de canais temáticos aolado dos canais geralistas possa abrir melhor espaço público à comunicação!

Esse é, provavelmente, o desafio do amanhã: evitar que a lógica da comuni-cação midiática se torne o principal meio de comunicação. A televisão é o instrumen-to de comunicação mais democrático, contanto que mantenha um certo nível de co-municação, e de não deixar que seja substituído por outras formas de comunicação,mesmo aparentemente mais arcaicas, como o rádio, a escrita, a palavra6. O problema,na realidade, é duplo: saber qual é a técnica de comunicação aparentemente maispoderosa em relação ao espaço público; como evitar acreditar que seja realmente pos-sível estabelecer uma comunicação no seio do espaço público.

Pode parecer, talvez, que a idéia determinante, além do caráter não igualitárioda televisão temática, seria não "preencher" totalmente o espaço público com a ima-gem: sim à imagem, desde que ela não domine tudo. Porém, defender um conceito

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A TELEVISÃO NO ESPAÇO DA COMUNICAÇÃO

modesto da televisão não significa, e essa diferença é importante, que seja inútil fazeruma política voluntária da televisão. Existem dois movimentos, aparentemente con-traditórios, que devem ser mantidos juntos.

Por um lado, sustentar a televisão geralista como condição de abertura ao gran-de público, mas com a contrapartida de uma comunicação necessariamente limitadaem intensidade, mesmo que ela seja compensada por uma função de laço social. Poroutro lado, recusar a lógica de uma comunicação tanto transnacional quanto temáticaque têm, todas duas, a vantagem de "melhorar" a performance da comunicação, mascujo inconveniente é subestimar o desafio, a função do laço social.

A televisão é, portanto, inseparável de um espaço público, e de um espaço públi-co nacional, que junte a idéia de grande público à de coletividade nacional. Em umapalavra, ela é um instrumento de abertura a partir de um quadro fechado!

O lugar da incomunicação ou a frustração indispensávelPor que insistir na necessidade de um sistema audiovisual que não seja tão

onipresente? Por que desejar um lugar modesto para a televisão no espaço público?Por duas razões fundamentais: a primeira é simplesmente que aí é que se lo-

caliza o meio mais simples para limitar os efeitos negativos da comunicação! Vivemoshoje numa ideologia da comunicação, e cada um percebe claramente que ela é ambiva-lente e fonte de múltiplos excessos no domínio da publicidade, da política, do lazer.

A televisão já é onipresente, e pleitear que ela não seja a atividade de comuni-cação mais valorizada no espaço público resulta também em lutar contra os efeitos ne-gativos da imagem. Se esta é mais um fator democrático, cada um sabe também queesse valor democrático pode muito bem se transformar numa tirania, com todos os ex-cessos do espetáculo e da forma. E nessa falta de rumo da imagem7, o papel da televisãopública ou privada, geralista ou segmentada, não é secundário.

A segunda razão, que milita em favor de um lugar limitado da televisão, é queexiste sempre incomunicação e frustração na comunicação, e que esses dados essen-ciais devem ser lembrados no momento em que a ideologia da comunicação, junto comas indústrias que a acompanham, amplifica um discurso contrário. A questão hoje emdia, mais do que viver, é comunicar!

Lembrar que nem tudo é visível, transparente, comunicável e, sobretudo, quea comunicação é hoje uma atividade funcional (ligada à interdependência econômica epolítica) que não tem nada a ver com a dimensão normativa (trocar — compreender-se — aproximar-se), essa é uma necessidade fundamental.

A televisão é o principal vetor de uma impossível ideologia da transparência,ao mesmo tempo em que participa parcialmente de um movimento de industrialização

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

de instrumentalização da comunicação começada há dois séculos! Se, de modo geral,a posição mantida neste livro é antes favorável à comunicação e à televisão, não é porquese deva ser ingênuo e deixar de perceber os problemas estruturais referentes a esse reinoda comunicação. Mais vale relembrar os limites a serem impostos à televisão do quecair no duplo engano de uma atitude irênica ou o seu contrário, o quadro apocalíptico,que muitas vezes se esboça em relação à televisão. E é, talvez, em relação à incomu-nicação que a crítica dos projetos de televisão fragmentada assume seu melhor sentido,pois todos esses projetos partem da idéia de que é possível reduzir essa parte enormede incomunicação! Assim como o fantasma de uma solução para as aspirações da co-municação não tinha nenhuma chance de triunfar, por falta de possibilidades técnicase econômicas, também ele se torna uma utopia razoável, dependendo simplesmentedo dinamismo e da engenhosidade de certos engenheiros e financistas: hoje, ou, em to-do caso, amanhã, tudo será possível em matéria de comunicação se tivermos os meiose o mercado existir! Em outras palavras, a televisão geralista ou a televisão fragmenta-da não mudam em si o fundo do problema, que é evitar a homogeneização da comu-nicação por meio de uma lógica audiovisual. Mas dão a sensação de que a sua com-plementaridade permitiria, enfim, uma presença real da imagem! E é por isso que setoma necessário manter — se possível — um lugar modesto para a televisão, a fim deque subsistam, ou se desenvolvam, outras lógicas de comunicação não visuais.

Existe, finalmente, nessa onipresença possível da imagem, uma crença na suaperformance comunicativa. O inconveniente é um reforço da ideologia da comuni-cação que, apesar de se originar em boa parte de fora, encontra assim mesmo naonipresença da imagem televisual um argumento a seu favor.

Por isso, a defesa da televisão de grande público não tem por objetivo espe-zinhar todas as demandas, e sim lembrar que existem restrições e condições nessa ló-gica do grande público, e que, portanto, é necessário inventar outros modos de comu-nicação! O paradoxo, hoje, é que são, muitas vezes, os mesmos que mais criticaram atirania da televisão geralista durante quarenta anos que são mais favoráveis a todas asformas de televisão fragmentadas, consideradas mais democráticas! Mesmo que o seudesenvolvimento tome ainda mais onipresente uma lógica da imagem que eles não ces-saram de criticar durante toda uma geração.

Concluindo, podemos dizer que em meio século o problema de fundo mudoude natureza. Ontem, o problema principal era o do status público ou privado da tele-visão de massa e o da sua influência política. Hoje, trata-se mais de saber até que pon-to o reino da imagem deve se instalar e se a televisão geralista e a cultura de massa quea acompanham resistirão ao duplo movimento de fracionamento do audiovisual e daspráticas culturais.

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- A TELEVISÃO NO ESPAÇO DA COMUNICAÇÃO -

Ontem, num contexto de escassez, colocava-se a questão de uma orientação,mesmo que ela se desse também através de um controle político. Hoje, num contextode profusão de imagens, a questão de orientação pareceria obsoleta e é a ideologia datransparência e da comunicação que se instala, misturando aspirações comunicativas enecessidades funcionais. A inversão de perspectiva é completa, a orientação torna-se,além disso, supérflua, enquanto, na verdade, ela é provavelmente mais necessária ho-je do que ontem!

De um ponto de vista prático, a organização menos ruim de um sistema au-diovisual consiste, sem dúvida, em manter uma predominância da televisão geralistaem seu seio, preservar o equilíbrio entre televisão pública e televisão privada e deixarque se desenvolvam, mas em número limitado, os canais temáticos. No interior dessesistema, as únicas verdadeiras regulamentações devem ser sobre a violência, o sexo eos programas infantis. A distinção essencial a ser preservada diz respeito à relação en-tre informação e programas, a fim de que os espectadores conservem sempre o meiode distinguir o mundo objetivo e histórico do mundo dos programas.

De um ponto de vista teórico, a conclusão principal consiste em manter a funçãoessencial da televisão que é, além do seu papel de comunicação, ser um laço social. Oque pesa em favor de uma televisão geralista, com as suas qualidades e os seus defeitos.

Essa dimensão de laço social tem dois níveis. O nível de uma sociedade quecontribui para manter ligadas as aspirações contraditórias de uma sociedade individua-lista de massa em que a tentação é o desaparecimento do meio geralista em favor deuma sucessão de mídias temáticas. E o nível internacional, onde a crescente aberturaao exterior, garantida pela televisão, toma ainda mais necessário que a televisão do paísreflita um certo caráter nacional. Essas duas dimensões falam a favor não somente damanutenção, mas sobretudo da revalorização da televisão geralista. Mas como estaparece de tal forma fazer parte do nosso universo natural, é-nos difícil admitir o que se-ria o espaço audiovisual sem ela. Para nos darmos conta do lugar e da importância queocupa a televisão geralista no espaço audiovisual nacional, o mais simples é imaginarum país onde não houvesse mais televisão geralista e somente televisões temáticas.Então nos daríamos conta do lugar essencial que, tanto na realidade como nas repre-sentações8, ocupa o status de uma televisão geralista.

Notas ao capítulo 7

1. Cf. MENDRAS, Henri. La deuxième révolution française. Paris, Gallimard,1988. 1a parte, "L'émiettement dês classes"; 2a parte, "Une civilisation dês moeurs".

2. CAREY, J. W. Media, myths and narratives. London, Sage, 1988.

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

3. Na questão de acesso à informação, as redes de televisão italianas Itália l eRete 4 também recorreram à associação com as redes norte-americanas para iniciá-lasnesse tipo de programa. A CBS, no caso da Itália l, e a ABC, no caso da Rete 4.

4. Para se dar conta, por exemplo, de que a compreensão da informação é in-separável de um quadro histórico que lhe dá sentido e que não existe um fim em si nainformação, ver, por exemplo, FOGEL, M. Lês cérémonies de 1'information dans IaFrance du XVIe au XVIIIe siède. Paris, Fayard, 1989. Para o ponto de vista contrário,ver DE SALVAGGIO, J., eà.The Information society, economic, social and structuralissues. New York, Ablex Pub. C., 1989.

5. Cf. Rethinkingcommunication, v. l, Paradigm issues. London, Sage, 1989.'Cf. Media culture and society, A criticai reader. London, Sage, 1986.

6. NOIZER, G.; BELANGER, D.; BRESSON, F., dir. La communication. Paris, PUF,1985. DAGOGNER, F. Ecriture et iconographie. Paris, Vrin, 1973.

7. Cf. DAGOGNER, F. Philosophie de 1'image. Paris, Vrin, 1984. GUILHAUME,Ph. Lapsychologiedelaforme. Paris, Champs/Flammarion, 1979. SUMMERS, D. "Visualimage". In: BARNOUW E., ed. InternationalEncyclopedia of Communication. New York,Oxford University Press, 1986.

8. Cf. as representações sociais: Revista Connexion, n. 51, Ed. Eres, 1986.A representação: Revista Droits, n. 6, Paris, PUF, 1987. SPERBER, D. Lê savoir dêsanthropologues. Paris, Hermann, 1982. MOSCOVICI, S., dir. La psychologie sociale.3? parte, Paris, PUF, 1984. D'ARCY, F., dir. La représentation. Paris, Econômica,1985.

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A televisãobrasileira

A televisão brasileira ilustra quase à perfeição a minha tese sobre o papel essen-cial da televisão geralista. Nela encontramos, com efeito, o sucesso e o papel nacionalde uma grande televisão, assistida por todos os meios sociais, e que pela diversidadede seus programas constitui um poderoso fator de integração social. Ela contribui tam-bém para valorizar a identidade nacional, o que constitui uma das funções da televisãogeralista.

A única diferença em relação às televisões européias é que se trata, nesse ca-so, de uma televisão privada. Mas a par da sua importância social, cultural e política,essa grande televisão privada obedece, afinal, às limitações dos serviços públicos. Emresumo, é uma situação quase inédita na América Latina. Apesar das condições históri-cas, quanto às escolhas políticas e comerciais, serem diferentes no Brasil e na Europa,encontramos pontos comuns fundamentais que ilustram a constatação evidente, muitasvezes negada, de que a televisão geralista desempenha um papel central nas sociedadesdemocráticas. Encontramos, principalmente, a inteligência e o senso crítico do públi-co, sem os quais a qualidade dos programas não seria aquela que faz a tradição da Globo.

HistóriaO mais notável, sem dúvida, é o extremo dinamismo da televisão brasileira,

dominada pela figura da Globo desde 1.565. data da sua criação, e pelo papel de AssisChateaubriand, na década de 1950, desejoso de fazer com quejjjgu país tivessea televisão. Ele mandou técnicos para receberem formação nos Estados Unidos, cons-truiu o canal, mas os receptores tardaram em chegar. Aí, ao contrário da Europa, tra-ta-se de uma iniciativa privada e, malgrado a imensidão do território, e as disparidadessociais e culturais, o Brasil, em uma geração j^nvejteji^eJrj^ Qsurgimento dej)uímsj:jMsj)rivados e públicos não abalou a hegemonia da Globpjjue ,aojimjias contayaãQjJbiusQujia sua posição dominante. O paradoxo é que muito ce-do essa televisão pjivada comportou-se como se tivesse as limitações de serviço públi-co. Em outras palavras, como se a lógica do lucro se somasse a uma tomada de cons-

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ciência do seu papel social, nacional e cultural. Pois é sobre esses três planos que se de-senvolveu a ação da Globo. Podemos distinguir, rapidamente, quatro fases:

/ 955-7 964: a fase elitista, no sentido em que no Brasil, como em outras partes,a televisão atingia um meio restrito. A diferença com a Europa vem do fato de o suces-so popular haver, na Europa, ocorrido antes da adesão das elites à televisão. Observamoso contrário no Brasil: sem dúvida porque as elites seguiam o modelo ocidental e eramas únicas a dispor de meios financeiros para se equipar. Os:mas, pjjradíixalinÊnlÊ^p^-pro^ Durante muitosanos, apenas as grandes cidades possuíam as emissoras necessárias. Os profissionais, co-mo em outros países também, vinham do rádio e do teatro. A televisão era um tipo deespetáculo. Os espectadores narravam os programas uns aos outros, uma vez que muitosnão tinham televisão. Logo essa função de laço social popular passou a desempenharuma função, rompendo um pouco a adesão inicial das elites, um pouco por esnobismo.

1964-75: é a fase da decolagem, como o foi também na maior parte dos paísesda Europa. Só os Estados Unidos, que começaram a se equipar no decênio de 1940, têmum parque de equipamentos superior. É o momento em que as classes C e D começama ganhar acesso à televisão. A Globo foi criada com base em um modelo americano. Omais surpreendente é que essa fase de expansão coincide com a ditadura militar. Comose a televisão fosse oferecida como compensação pela perda das liberdades políticas! Masa realidade é ainda mais complexa, pois são os próprios militares que oferecem esse ins-tTumentg^dejnodernização e de afirmação-daidenüdade nacional,com a idéia de con-tribuir para a grandeza e força do Brasil, sem pensar muito nas aspirações de liberdade^üTãTêlêvísão põdlãluscítãr. Evidentemente, os militares "serviram-se" da televisão,mas, como sempre, não dominavam a sua influência. Rapidamente, o público não sedeixou enganar, e com os outros programas passou a sofrer outras influências. No Brasil,como em outras partes, os realizadores eram muitas vezes progressistas e se, por um la-do, as informações eram rigorosamente controladas, por outro lado, o resto da progra-mação não o era. A televisão resultou, ao mesmo tempo, num instrumento de propa-ganda política, de influência mais limitada do que pensavam os militares e também numinstrumento de modernização, de identidade nacional, de abertura cultural. Essa mídia,como sempre, escapava ao controle daqueles que queriam manipulá-la. Se, por um la-do, as autoridades militares, por meio do regime de "concessão", imitado do modelonorte-americano — e, portanto, aberto a pressões —, controlavam a infra-estrutura, poroutro lado não controlavam o conteúdo dos programas, com exceção da informação. Emenos ainda a recepção. É claro que o regime militar não passa a ser melhor aceito, masa televisão que se desenvolve paralelamente a um desenvolvimento econômico é umpouco a vitrina do novo Brasil. Todos encontram nela uma fonte de orgulho.

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1975-1988: é o triunfo tecnológico. Desde o início, a rede acredita na densi-dade. Graças ao Brasilsat, a televisão está presente em quase toda parte, inclusive nasflorestas da Amazônia. Se o desenvolvimento do cabo não tem sentido, existe, ao menos,um interesse pela diversificação. A:teley]sãp_educativa se desenvolyejunto com a afir-mação de uma identidade cultur^naciQnal_que,ac.elera a produção nacional, reforçan-do o sentimento de identidade nacional, valorizado no período precedente. É o começoda exportação de programas, e da autoconfiança. A televisão pública continua mi-noritária, enquanto, ao contrário, a publicidade que financia a televisão privada en-contra-se em pleno desenvolvimento, a ponto de 60% do mercado nacional publicitáriodirigir-se à televisão.

1988-19...: é a expansão internacional. O sucesso das telenovelas torna-se pro-duto de exportação, e a volta da democracia devolve o Brasil a si mesmo e à sua história.A nova constituição, de 1988, e o novo código da democracia, criam as condições deuma liberdade de imprensa. A sociedade e a televisão parecem ter absorvido tanto oregime de Getúlio Vargas quanto a ditadura militar, a ponto de fazer do Brasil uma dasfiguras de proa da liberdade e da cultura...

São todas as quatro classes da população que assistem à televisão e, em vinte) anos de rápida expansão, os militares, assim como a democracia, conseguiram conduzir

( a cultura e a identidade brasileira para além das razões comerciais. Aí está o paradoxoj desse país onde a política de interesse geral é, na realidade, resultado de mídias pri-/ vadas...

O lugar da televisão na sociedade brasileira

A despeito de três diferenças essenciais em relação à televisão européia — adominação do privado, a influência do modelo norte-americano, as disparidadeseconômicas e as disparidades culturais — , encontramos a mesma influência da tele-visão. ElaJJator de identidade cultural e de integração social, o quejLBâradoxaLnestecaso, tendo-sejmconta as grandes distân^.mdaiS-eiitr£_Qs^mais^pQbrgs, analfabetos

^^ in-tegracãc^comQ_g!iz_a_Em-pr-@sa^Br.asileira--dê-T-elecomiinicacão

. E não é mentira. A^cultura da televisão é, jitéjioje, ojaçp^ entre as classes jso-gaj|jje^cfin^d£^substituir a luta de classes, como dizem alguns! Ao contrário, nocontato bem particular com a mestiçagem entre negros, índios e brancos, ela ofereceubem cedo um antídoto contra o inevitável aumento do racismo Ela também amorteceuos efeitos da ditadura militar. Se não corresponde à verdade afirmar que a televisão foio substituto para as liberdades políticas, podemos, sem dúvida, notar que a vontade es-trita dos militares de preservar e valorizar a cultura brasileira contribuiu para reduzir

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os efeitos negativos desse regime autoritário. Duas teses são sempre possíveis: a primeira,clássica, faz da televisão um instrumento suplementar de controle político e ideológi-co. A segunda, partindo da hipótese de uma capacidade crítica real do país em relaçãoa essa vontade de manipulação, insiste, ao contrário, sobre uma espécie de influênciamuito mais ambígua e, às vezes, muito positiva da televisão. Encontramos ambas asteses na maioria dos países.

Enfim, ela foi um fator de modernização para as quatro classes sociais.Modernização sem dúvida aceita, porque a maior parte das classes sociais alimentava-se da televisão. Vemos aqui a tripla função da televisão geralista = laço social + mo-dernização + identidade nacional. A existência de um mercado interior não basta paraexplicar essa tripla função, que deve antes ser buscada numa teoria das relações entrecomunicação e sociedade, e no papel estrutural que desempenham as mídias de mas-sa na sociedade contemporânea.

Quer se trate de "países velhos" como na Europa ou de "países novos" comoo Brasil. Esse dado sociopolítico positivo deve ser sublinhado por estar em contradiçãocom o discurso crítico relativo às mídias. Isso em nada diminui os desafios maiores noque se refere ao risco de dominação cultural pelas indústrias culturais estrangeiras, masressalta a existência de uma estreita margem de manobra que não pode ser negligen-ciada. O risco de dominação em relação aos interesses estrangeiros é, evidentemente,maior nos países pequenos. Mas o Brasil prova, assim como a França, a Grã-Bretanha,a Alemanha ou a Itália, que os países dejorte identidade nacional^e onde existe ummercado interior, percebem os riscos de dominação pelo estrangeiro, e a ele opõemuma identidade e voluntarismo nacionais. Da mesma forma como na Europa, em cin-qüenta anos, a televisão contribuiu para manter os tecidos muito esgarçados pela mo-dernização, pelo êxodo rural e pela aparição de novas desigualdades, também no Brasila televisão amorteceu os efeitos políticos da ditadura. Ela ofereceu ainda um verdadeiro"fio condutor" para uma sociedade confrontada com o problema da modernização. Aítambém encontramos oposição entre as duas teses clássicas. A jnais clássica vê a tele-

de destruição das tradições, lin-

laço sjoòiüjioj^ej^ A televisão con-tribuiu para destruir as tradições, mas ela também urdiu os laços sociais da modernidade.E, acima de tudo, notamos que as televisões dos diversos Estados não hesitam em seinspirar nas suas tradições regionais em seus programas, principalmente no caso dás te-lenovelas. Evidentemente, trata-se de "identidades regionais arranjadas", onde as leisdo comércio são muitas vezes mais fortes do que a inspiração etnológica. O que não

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impede, no entanto, que alguma coisa da ordem das identidades se comunique comesses intercâmbios. Em todo caso, trata-se de algo mais que a simples "modernidade".É sem dúvida essa aliança, não destituída de um certo pensamento comercial, entretradição e modernidade, que explica o sucesso de numerosos programas.

Esse papel de laço social ou de amortecedor desempenhado pela televisão noBrasil só existe, evidentemente, devido à dupla condição de ser uma televisão assistidapor todas as classes sociais e de ser um espelho da identidade nacional. Compreendemos,evidentemente, que essas duas condições não estão juntas; por exemplo, num país semgrandes meios econômicos para preservar a sua identidade nacional, uma televisão as-sistida desigualmente pelos meios sociais desempenha menos esse papel social. Os pon-tos comuns evidentes no papel desempenhado pela televisão no Brasil e na Europa, ape-sar das diferenças econômicas, políticas, sociais e culturais, validam a tese que venhodefendendo há anos de que a televisão éuminstrumento democrático indispensáveln^ocjiedad^Jndiydualista_dejiiassa. E isso em oposição às elites intelectuais, que ja-mais se interessaram muito pela televisão, considerando-a como um instrumento demanipulação dos públicos e sempre se recusando a revelar isso! É esse papel positivoque obriga a não abandonar o audiovisual às meras leis do mercado. A televisão é umaquestão muito importante para ser reduzida a uma dimensão econômica, como afirmaa ideologia liberal que só fala de "desregulamentação" . A desregulamentação no domínioda comunicação é um contra-senso completo. Ela estipula que quanto mais mídias, su-portes e programas existirem, menos haverá necessidade de regulamentar, porque opúblico faz a sua escolha livremente.^regulamentação estaria ligada a uina éppcajieescassez e seria inúü^num período de profusão de imagens.

É exatamente o raciocínio inverso que se tem de fazer. Quanto mais imagensexistem, quanto mais interesses econômicos e tecnológicos estão em causa, mais sãonecessários osjegulamentos, justamente para limitar os efeitos da lei do mais forte, evi-tar a lei da selva e preservar ajijmensãp_de : emancipaçãp ligada à comunicação. Quantomais a comunicação é invadida pela lógica econômica e pelas promessas -de todos ostipos de tecnologias que devem garantir uma "comunicação livre", mais é preciso des-confiar e regulamentar! É a KgulamentQçjajjügp^^^Além disso, como sempre na história, são os mais fortes que falam de desregulamen-tação. Porque ela lhes é favorável! Na realidade, diante da explosão de técnicas e demercados de comunicação que nada têm a ver com os valores em nome dos quais elesse desenvolvem, existem dois imperativos. Construir uma regujamejfltação_ecoi^ô™caej3olíüga_para .^resen^oj^in^r^sse^ejam identidade ejie uma cultura nacional.

Io quej;onstitui q engo^âã^^j^^n^^áâ^lev^íçiáo nível d§ vida, _a saber: uma

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fragmentação e esp^aUzagãoJâSjm..ídias. Chegaremos a uma televisão para cada classesocial: para os ricos; para as classes médias; para o pobres; para o negros, para os bran-cos. A segmentação como figurajlusória^daJiberdadQ. Çjda_umjio^uJ.ugar,Mcomo

e^

No Brasil e na Europa, quase espontaneamente, a televisão desenvolveu-sesegundo o modelo de televisão geralista de massa, servindo de laço entre os meiossociais. O pior que pode acontecer é que, amanhã, esse modelo ambicioso sucumbaaos golpes das miragens das novas técnicas. O Brasil, como a maior parte dos grandespaíses, vê-se obrigado a reorganizar o seu quadro legislativo: é isso que faz. Quais sãoos desafios? Até o presente, o modelo de concessão inspirado pelo sistema norte-ame-ricano correu lado a lado com um capitalismo familiar. Depois dos pioneiros do ca-pitalismo familiar, cuidado com a constituição das multinacionais da comunicação!Deve-se temer uma desregulamentação favorável à internacionalização das indústriasde comunicação no Brasil. Pois essa internacionalização teria uma conseqüência de-sastrosa para a identidade cultural das indústrias da televisão que são característicasdo Brasil desde a década de 1950. Não é indiferente preservar ou não uma indústrianacional, sobretudo em matéria de comunicação e num país multicultural como oBrasil.

O segundo desafio concerne à organização das ligações entre telecomuni-cações, informática e televisão. Com as novas técnicas de comunicação, essas três téc-nicas serão mais e mais interdependentes. O maior perigo é, evidentemente, que, em"nome da modernidade" acabe por se impor a lógica dos desempenhos técnicos e dosinteresses econômicos; quanto mais há interesses econômicos e interdependência téc-nica; quanto mais há de moda e de ideologia em torno da comunicação, mais a questãoessencial passa a ser: tudo isso para quê e em proveito de quem? Se não se colocaremessas- questões, corre-se o risco de um mercado de tolos. Senão, será a lógica dos in-teresses que predominará sobre a dos valores. E o risco é particularmente grande paraa comunicação, em que todo o mundo fala de "valores" da comunicação para vender,isto sim, "os interesses" da comunicação como uma atividade social qualquer, e talvezmais ainda esta tenha necessidade de ser orientada. Em poucas palavras, bater-se poruma orientação e regulamentação das indústrias da comunicação é uma das grandesbatalhas culturais, econômicas e políticas para os próximos trinta anos. Isto é o inver-so daquilo que dizem todos os agentes econômicos e técnicos desse setor, que.só so-nham com uma "vasta aldeia global" . Poré^^&^jí{á^^^^exislej[LQ^hmlècni-

najplano

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TV GloboHonra seja feita. Uma grande parte da tradição "pública" da televisão brasileira

e do seu papel de serviço público provém, na realidade, da hegemonia dessa televisão"privada"! Criada em 1965, a Globo é um dos símbolos da identidade brasileira: gostopela modernização, pelo desafio, influência norte-americana, vontade de se distinguir.Sua força, que na Europa reside na televisão pública, foi de dirigir-se a todas as camadasda população. E sempre aos meios populares. Se as camadas C e D representam 80%da população, elas não representam senão de 20 a 30% do mercado consumidor; 40%se a elas acrescentarmos a classe B.

Isto é, o desenvolvimento comercial dobrou desde que começou a existir umaoutra perspectiva de caráter público. Os mais críticos podem ver nessa conquista dogrande público uma dimensão alienante, outros, ao contrário, a vontade não só daconstituição de mercados futuros, mas de oferecer a um maior número um fator demodernização.

Existe, por certo, uma hegemonia_da_Globo,jnas não um monopólio, pois a_GjoboJqfIuendou-a4aLponto^jy^çãoJa_jp^i^ade brasileira qllêjlãjrópria não

^cpnseguiu^evoluirno^ritmo das mutajje^_exü^mamente rápidajiaquela. O argumentoé simples. Essa televisão não poderia ter tal audiência se estivesse defasada em relaçãoàs expectativas dos brasileiros. Apesar de sua lógica financeira implacável, o seu suces-so provém, também, do fato de ter conseguido, em trinta anos, tornar-se ao mesmotempo espelho e parte do ideal brasileiro. Portanto, em ter conseguido tanto refletirquanto estimular. A ausência de um concorrente público forte constitui, sem dúvida,uma limitação, mas essa situação de quase monopólio numa sociedade heterogêneaobrigou o canal de Roberto Marinho a integrar uma problemática de interesse geral,sem dúvida mais restritiva do que seria de se desejar. Por exemplo, a capacidade daGlobo agiu sobre a estética, a criação visual, os efeitos especiais, e, atualmente, as no-vas tecnologias e pesquisa de uma certa inovação da imagem estão bem sintonizadascom a mentalidade brasileira. Da mesma forma, durante a ditadura, a rede, mesmosendo oficial, não foi jamais submissa aos militares, como se a função de comunicaçãosocial obrigasse a um mínimo de distância. DajnesjriajOTma,,_ quando elajssmou umacordo com a Time-Life, em 1 960, isso não impediu que a teleyisãojprasileira construísse

_tajUQ^gr^ajo_públi&o_brasileiro. Mas que, por outro jado^distancia-se bastante do gos-to norte^ajQejncjfflajSê^to, a Globo coloca-se como uma indústria, um instrumento^de_modernizacão e integração e um^fator^Jd^tidad^naãonal. Ela é um instru-mento de^cultura de massa numa sociedade hierarquizada. Se o seu objetivo não é mo-

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dificar as estruturas sociais, é, pelo menos, saber apreendê-las e acompanhá-las. Aí en-contramos de imediato o papel de laço social da televisão. Além disso, a Globo se fazpresente nos programas educativos como Telecursos, Globo Ecologia e Globo Ciência,sabendo que esses programas não são rentáveis. E não apenas por questão de "prestí-gio", mas também para satisfazer a uma certa concepção do seu papel, que podemosperceber claramente nos seus folhetins (as novelas), onde existe uma verdadeira inte-ração popular. A_Gjo^o_tejn^tarrib4m,jwm^rosgs prêmio^ntejTiacicj^jobrj.tudo-'para as suas novelas, ilustrando assim a sua vontade de ser líder, e nãpjipenas_de_ser\imaL^^\y^áe^e^r\tí£õmerú^áo^ovo''. Da mesma forma, por intermédio doBrasilsat, ela contribui para a difusão da televisão em toda a Amazônia e, portanto, àaceitação das obrigações de serviço público. No entanto, o seu peso e a sua influênciapotencial constituem em si um problema. Principalmente com a sua penetração na im-prensa escrita e com o jornal O Globo. O sucesso desse grupo multimídia coloca emseu devido lugar o problema de uma carreira independente por parte do Estado e daselites políticas em relação à Globo.

Quanto mais o laço com a sociedade se torna complexo, devido à existênciadessa interação, mais esse laço com as instituições, com as elites e com o grupo multi-mídia se toma clássico, pois trata-se, nesse caso, como em todos os países do mundo,de influenciar. Mesmo que saibamos, graças a inúmeras pesquisas, que a televisão temmenos influência política do que acreditam aqueles que a dirigem ou controlam, issonão impede que em quase todos os países do mundo ela seja objeto de poder. Se osexemplos de regulamentação, para separar poder político e televisão pública ou priva-da, são indispensáveis, é preciso não ter muitas ilusões sobre a sua influência a curtoprazo. A televisão fascina de tal forma as elites há duas gerações, que não adianta que-rer acreditar no surgimento de uma maior sabedoria. Aí, como em outras partes, os quedesejam servir-se da televisão têm muito menos sabedoria do que os públicos que, cul-tivados ou analfabetos, aceitam ou recusam. Na verdade, o poder da comunicação se-duz e fascina jrmitojnais^^^ a,cpiem,ela..é desti-

jiada!O próprio sucesso da Globo, canal privado que, desde a década de 1960, se

autocontrola muito mais do que é controlado, ilustra muito bem a minha teoria deque a televisão geralista de massa, seja ela pública ou privada, deve ser analisada noque respeita a interação social e a negociação de modelos e de influências, mais doque como instrumento de dominação e imperialismo cultural. Isso não significa ausên-cia de risco e de responsabilidades, mas simplesmente que não se deve considerar asmídias como um instrumento unilateral e todo-poderoso de transformação da so-ciedade.

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O sistema audiovisual no seu conjunto

Em 26 de abril de 1995, a Globo festejou seus 30 anos de existência. Haviamerios de um milhão de aparelhos de televisão em 1955, existiam 30 milhões em 1990.Aí se deu a mesma extraordinária expansão da televisão, igual à de outros países.

Duzentosjparelhos em 1950. óOQjniLem 1960,.4,5 milhões em 1970, 18milhões em 1980,30 milhões em 1990. O mais notável é que, sem dúvida, a audiên-cia seja mais ou menos a mesma em todas as regiões, sejam elas pobres ou ricas, ur-banas ou rurais, o que ilustra o caráter nacional da televisão.

Se a Globo continua a ser a peça mestra do audiovisual brasileiro, é preciso no-tar que a vontade, depois do decênio de 1970, é de haver concorrência a ela. Se, porum lado, nenhum concorrente pode oferecer uma gama de programas tão completos,notamos ao menos uma vontade de romper esse quase monopólio aos poucos. Mesmoque a rede não tenha contribuído diretamente para a eleição de Fernando Collor, ape-sar de tê-lo apoiado, ela contribuiu, pelo contrário, para a estratégia do impeachmentAinda hoje, nenhum homem político de envergadura conseguirá eleger-se contra ogrupo representado pela Globo. O caso do Brasil está longe de ser único, uma vez queem inúmeras democracias mais antigas o fenômeno ocorre também. Não se trata, por-tanto, de um problema Norte/Sul, mas sim de uma dificuldade que se coloca à demo-cracia para gerar suas próprias relações com a comunicação.

A rede Manchete (1983) especializou-se em informação. É mais elitista que aGlobo e privilegia igualmente os debates da sociedade. A partir de 1980, em compen-sação, o Sistema Brasileiro de Televisão [SBT] tentou, por meio dos jogos e das trans-missões ao vivo, criar uma televisão mais popular, ou mais populista do que a Globo.A Bandeirantes (1977) ocupa um nicho tão rentável nos Estados Unidos quanto naEuropa, o de esportes, filmes e informação. A W Cultura (1969) de São Paulo esco-lheu, por sua vez, os programas educativos e culturais. Trata-se do canal de serviçopúblico do estado de São Paulo, retransmitido para 21 estados, via satélite, que tentarenovar o conceito de televisão educativa, procurando evitar o gueto da televisão cul-tural ou educativa. Os esforços de imaginação e de programação atingem mais os jovens.De fato, a televisão educativa ocupa o lugar_de_serviçojúblico, excluído do sistemacomercial. Todas as televisões visam o público de classe média, que~e mãiruinrrefe--rêncía e um horizonte do que uma realidade sociológica. Aí está a originalidade da so-ciedade brasileira. A despeito de suas profundas desigualdades sociais, de suas dispari-dades geográficas, das distâncias entre as grandes cidades do sul e do resto, a classe mé-dia parece uma espécie de referência comum no Brasil. O que é prova de uma certa in-tegração, ou, pelo menos, prova da existência de um imaginário do consumidor, co-

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mum a todas as classes sociais. Esse modelo de classe média urbana é objeto de umaespécie de identificação da maioria dos brasileiros.

Podemos falar de uma televisão de três marchas? O SBT é de baixa gama e po-pular; a Globo ocupa uma posição central; a Manchete e a Bandeirantes, mais elitistas,especializadas na cultura em geral? A Globo é, por outro lado, perfeitamente capaz delançar um estilo novo, mas também de assimilar os gêneros de programas lançados pe-los outros canais, assim que constata o seu sucesso. Ela está atenta às inovações e, emnome de sua posição dominante, sabe imitar. Uma originalidade dessa televisão brasileiraé o seu forte laço com a sociedade, e o grande número de debates que se realizam, se-ja qual for o tipo de programação, é ilustração evidente disso. Assim se reflete a ca-pacidade de confrontação de uma sociedade que permanece aberta, e onde os antago-nismos e os conflitos podem, em parte, agir sobre o modo discursivo. Isso não signifi-ca ausência de violência, principalmente urbana, mas a aceitação por todos de uma ca-pacidade de se falar. Nem todas as sociedades têm essa possibilidade. Além disso, umaavaliação do lugar dos programas de debates dos grandes problemas políticos e sociais,em todas as televisões públicas e privadas do mundo, seria um bom teste do grau deabertura e de confrontação que elas aceitam!... Não resta dúvida de que o Brasil está àfrente de muitos países mais ricos e mais antigos.

Resta a questão da independência dos jornalistas. Ela não é regulamentada emnenhum dos países desenvolvidos, por que o seria no Brasil? O aprendizado da demo-cracia, depois da ditadura, foi difícil, e a tradição do Brasil, e muitas vezes de todo oresto da América Latina, não é exemplar. Mas o Brasil é, sem dúvida, um dos paísesonde a luta pela liberdade de expressão e a tradição de liberdade jornalística é a maisforte. Mais forte do que nos países de tradição hispânica. Existe uma forte tradição deabertura ao estrangeiro e uma liberdade de tom e de expressão sem par em outros paí-ses, e não apenas da América Latina. Aí também a mistura de diversas filiações criouum estilo e um tom de liberdade e ironia que poderia inspirar muitos países da Europa!

O problema principal com que hoje se defronta o Brasil, assim como a maio-ria dos grandes países, não é o da liberdade política, mas o da atitude a ser definida emrelação às novas tecnologias. Haverá aí, como em outros países, uma adesão excessivaaos processos sempre idílicos das novas tecnologias que devem proporcionar "relação"e "liberdade". Ou, ao contrário, o Brasil manifestará aí a sua diferença, evitando aderira todas as ideologias da sociedade de comunicação? Se o porte do país, o número dehabitantes, o nível de vida e os desafios industriais mundiais obrigam, evidentemente,a estar presente nessa frente de batalha, a questão é saber com que estado de 'espíritoa luta será travada. Será com a consciência de que o essencial no desenvolvimento so-cial, cultural e educativo não existe? Ou, ao contrário, com o sentimento, em grande

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parte falso, de que a "revolução da comunicação" é a condição básica do desenvolvi-mento econômico? As escolhas fundamentais são muito mais de ordem financeira doque ideológica e cultural. Poucos países resistem culturalmente ao canto de sereia da"revolução da comunicação". O Brasil é dos que pode, com um máximo de razões ob-jetivas e subjetivas, contrabalançar esse excesso ou, ao contrário, inventar uma certadistância irônica. A escolha não deixará de ter conseqüências sobre a América Latina.Ao contrário da Europa, que recebe de braços abertos essa ideologia da comunicação,diretamente ligada aos interesses industriais norte-americanos, a América Latina tem a"vantagem", se podemos dizer assim, já "experimentada" na década de 1960, quandoos satélites e os projetos de televisões educativas deveriam garantir, como na índia, umaescolarização intensa e econômica! As desvantagens desses projetos, dominados pelosinteresses tecnológicos norte-americanos, deixarão talvez mais céticos os povos daAmérica Latina quando, amanhã, nós os elogiarmos pela intercomunicação da infor-mática, da telecomunicação e do audiovisual, na "civilização da comunicação"...

Telenovelas ou o caráter brasileiro

Elas são conhecidas no mundo inteiro e, no espaço de uma geração, con-tribuíram grandemente para a valorização da televisão brasileira e da imagem do país.Esses folhetins são um verdadeiro fenômeno social para todas as categorias. As tele-visões oferecem mais de dez programas de ficção por dia. A Globo sozinha oferece qua-tro telenovelas, das 14 às 21h30. Apesar da concorrência, ela mantém a liderança des-ses programas que encontram um formidável sucesso. Eles são entrecortados por in-tervalos publicitários, que segundo os horários e tipo de público visado, dirigem-se su-cessivamente, mais diretamente às classes A, B, C ou D! Pelo que sabemos, a duraçãodesses folhetins — atualmente em torno de seis meses, depois de já ter sido mais lon-ga (o recorde são os sete anos de Redenção] — é um fantástico fator de inovação, porqueas novelas integram ^desenvolvimentos inventados pe]pjniblico.u fazendo assim datelevisão brasileira a prímeiTateleVisão de massa interativa do mundol E isso muitoantes das novas tecnologias! Todos conversam sobre as novelas, o que mostra à per-feição a tese do laço social que é a televisão. Mas não é só a realidade que inspira asnovelas;(§âgjambém as novelas que influ^nçiajnLa.Le.alidade_pQr uma espécie de ida evolta entre a ficção e a realidade, talvez única no mundo. A ficção retoma às vezes arealidade e a influencia, um fenômeno bem mais complexo e interessante do que os re-ality shows. Evidentemente, esse fenômeno de "ficcionalização" da realidade tem deter um limite, principalmente no que concerne à informação, mas encontramos aí umaeconomia do comércio das imagens, dos símbolos, dos olhares, do humor que ilustra ainteligência do público. Enxergar nisso uma situação de alienação cultural seria passar

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ao largo de toda a riqueza dessa situação de interação, da qual ninguém é escravo, masque contribui com uma verdadeira ida-e-volta entre o público e as transmissões para aconstrução de representações coletivas. Como também em muitos outros países, os au-tores e realizadores desses telefllmes são bastante mais progressistas e engajados do queoutros profissionais da televisão. Ontem, como hoje. Muitas vezes, como foi tambémo caso da França, a informação era controlada politicamente, mas o resto dos progra-mas, e sobretudo os programas de ficção, eram em boa parte criados por militantes deoutra cultura inteiramente diversa. E não resta dúvida de que o controle político da tele-visão brasileira durante a ditadura militar foi aceito, mas não nos programas, dos quaisas telenovelas gozavam de uma maior liberdade. As telenovelas são uma das aliançasmais interessantes do mundo entre uma capacidade criadora evidente e os interessesmateriais. O mais surpreendente é o caráter realmente popular desses folhetins. Semdúvida, segundo os horários, os produtos são muito diferentes, mas resta um ponto emcomum: todas as classes sociais assistem às novelas. Temos aí, sem dúvida, uma dasverificações experimentais mais naturais da teoria da televisão como laço social! Mesmoque já se tenha dito tudo sobre o fenômeno social do folhetim brasileiro, é preciso su-blinhar ainda a sua importância comgjsp^^dTsõcledãdi^ao mesmo tempo que fa-tor estruturador da identidade brasileira. Trata-se quase de um caso de escola, ilus-trando o papel antropológico fundamental da televisão! E a coexistência de diversosgêneros de telenovelas para diferentes públicos, assim como a sua duração, ilustram,igualmente, a inteligência dos públicos. Estes não entregariam a sua confiança, há tan-to tempo, a esses programas, se eles não tivessem incorporado uma parte da inteligên-cia popular! Isso já foi visto durante a ditadura militar, onde a liberdade crítica mani-festou-se nesses folhetins quando essa mesma liberdade estava amordaçada na infor-mação. De fato, o folhetim brasileiro está de tal forma inscrito na identidade e no so-nho nacional, que, segundo as épocas, ele é reflexo de todas as histórias._i7 Nenhum país terá, talvez, conseguido tanto sincretismo, sem teoria, nem ideo-v ,

logia! E nisso que as telenovelas são uma das grandes forças da televisão. Além disso,elas são agora exportadas não apenas para Portugal, mas também para a América Latina,como se atingissem um certo universalismo! Elas refletem o caráter brasileiro quanto àforma e à imaginação e na pesquisa iconográfica. Todas a inovações formais são expe-rimentadas no plano gráfico. Existe não apenas identificação com os personagens, mastambém interesses pelos desdobramentos romanescos e pela qualidade... A prova dessaapropriação pelos públicos se vê, sem dúvida, na maneira como os roteiros evoluem. Ainteração que se estabelece aí entre os roteiristas e os públicos reforça a outra origina-lidade dos folhetins^que visa misturar mundo fantástico e realidade sociaj) Essa mistu-ra de folhetim escrito, deTrádio eüéTtelevisão, de realismo e imãguíário, de tradição e

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ralista e a vitória da televisão temática, sob o pretexto de "preservar" a liberdade do es-pectador, o aprisiona, na verdade, na tessitura das desigualdades sociais e culturais. Sea televisão pública oferece mais facilidades para preservar esse ideal de televisão gera-lista, não se deve ver nisso uma condição sine qua non, conforme o prova a televisãobrasileira. O desafio continua sendo uma grande ambição para uma televisão nacionalque reflita a diversidade social e cultural e que, pela multiplicidade de portas de entra-da para os públicos, lhes dê a possibilidade de, ao mesmo tempo, se encontrar e ousardesejar a mudança. Afinal de contas, isso corresponde à ambição mais alta da televisãocomo laço social: oferecer a cada um a possibilidade de verificar que pertence a essa co-munidade e que, no seio dela, pode emancipar-se. __

x Em poucas palavras, a televisão é hoje, nas democracias, uma questão tão im-portante quanto a educação, a pesquisa, a saúde e a defesa. Agora que sabemos, commeio século de experiência e de pesquisas, que ela não "manipula" necessariamente asconsciências, vamos poder retomar o ponto de partida: conceber uma política ambi-ciosa, pública e privada, com o triplo objetivo: informar, educar, distrair.

No que concerne especificamente ao Brasil, podemos dizer que resta à forçada W Globo fazer a ligação entre três dimensões essenciais: o passado e o presente;as classes sociais; a identidade nacional. Na medida em que ela chegar a manter umatensão entre essas três dimensões, continuará sendo um laço social.

Agradeço a Helenice Rodrigues da Silva, pesquisadora associada ao LaboratoireCommunication et Politique, Centre National de Ia Recherche Scientifique, Paris,França, sua ajuda na pesquisa da documentação relativa a este capítulo.

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O sistemaaudiovisual europeu

O contexto geral

Que diferença entre a relativa simplicidade do sistema audiovisual brasileiro,dominado por um modelo privado cuja criação esteve ligada à influência norte-ameri-cana, com suas reservas em relação à idéia de serviço público, e a complexidade queobservamos na Europa!

É praticamente o contrário. Na Europa, a tradição pública dominou longo tem-po e constitui hoje ainda aproximadamente 50% dos canais de televisão nacionais, depoisdo surgimento das televisões privadas entre 1970 e 1985. A televisão foi, na Europa, ob-jeto de um forte confronto ideológico e considerada como uma espécie de escola do sécu-lo XX, ou, pelo menos, como se devesse levar avante um grande projeto cultural e social.Ela era acima de tudo um meio de promoção cultural e de informação, antes de ser uminstrumento de distração. Além disso, a concorrência com o setor privado teve dificul-dades para ser admitida, assim como a publicidade, a não ser pela Grã-Bretanha, que op-tou, desde 1954, por um sistema misto. Mas em outros países, seja a Alemanha ou aFrança, a resistência foi forte até a década de 1980. Essa exigência explica o bom estadoda televisão européia — em relação ao modelo americano — até o decênio de 1980. Atelevisão privada acabou se impondo menos por suas qualidades do que pela dificuldadede renovação da televisão pública que, de certa maneira, se destruiu sozinha. E não sobos golpes do adversário. Essa dificuldade de inventar uma segunda visão da televisão públi-ca, num contexto de concorrência é, sem dúvida, a maior dificuldade da Europa. Se osingleses foram, desde 1954, favoráveis ao sistema misto, foram os italianos que, por ocasiãode uma crise, em 1976, derrubaram o monopólio da televisão pública. A França veio emseguida, com os socialistas no poder. Apesar de terem sido eleitos com o lema de "defe-sa do serviço público", foram eles os primeiros a instalar o privado! Os espanhóis cede-ram em seguida, assim como os alemães, mas só no final da década de 1980.

Essa lentidão da televisão pública em encontrar um segundo alento explica tam-bém as dificuldades da Europa em defender uma política comum em matéria de novas

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tecnologias. Todos se precipitaram, com medo de serem ultrapassados, protegendo-se,mais ou menos, no seu estado nacional e, portanto, colocando-se em contravenção àlegislação européia! A ausência hoje, na Europa, de uma doutrina sobre a televisão, dasua relação com o privado, da definição de uma política global, do seu papel na so-ciedade e da atitude em relação às novas tecnologias, explica também as derrapagensno domínio econômico. Não foram, portanto, as limitações econômicas e a lei do lucroque desestabilizaram as televisões européias. Mas o contrário. Foi pelo fato de que astelevisões européias não tinham mais um modelo específico que a lógica estritamenteeconômica pôde se impor tão facilmente na Europa, sob a influência direta dos EstadosUnidos. Além disso, Bruxelas, na sua política comum, com a Directive Télévision sansFrontières inspira-se nessa desregulamentação.

Resumindo, as televisões européias tinham em comum uma forte tradição deserviço público, visível na famosa fórmula: distrair, informar, educar. A concorrênciano seio dos serviços públicos, depois entre o público e o privado, assim como a dificul-dade de renovação de uma doutrina de serviço público, conduziram, entre 1975 e 1995,à explosão do modelo europeu de televisão, quase único no mundo, ao lado do mode-lo canadense.

Quais são os problemas principais? São de três ordens:1. No plano nacional, a necessidade de definir uma política para as novas tec-

nologias e para a desregulamentação. Haverá ainda um projeto para orientar a chega-da das novas tecnologias ou não haverá senão promessas, sempre mais ideais umas doque as outras?

2. Por outro lado, admitiremos a necessidade de manutenção de uma regula-mentação pública, ou, ao contrário, a abundância de técnicas de comunicação con-duzirá à supressão da regulamentação pública?

3. Este é o último desafio no que se refere à Europa. Será preciso manter umaregulamentação européia para preservar a capacidade de produção européia, e evitarque os programas norte-americanos dominem as telas? Ou será preciso aplicar aqui oliberalismo absoluto e deixar a escolha aos espectadores?

Duas doutrinas se contrapõem com concepções violentamente antagônicas.De um lado, o liberalismo econômico, político e cultural: visto que a comuni-

cação é, hoje, abundante, é preciso deixar que o mercado, nesse setor, assim como emoutros, estabeleça os equilíbrios. A cultura e a comunicação são mercadorias como ou-tras quaisquer. O estatismo se justificaria em tempos de escassez, hoje não mais.

E, de outro lado, a tese intervencionista. Quanto mais comunicação houver,mais será preciso manter a regulamentação para preservar a dimensão de liberdade ediminuir os riscos de desigualdades econômicas. O intervencionismo não se justifica

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apenas por razões econômicas, mas também por razões culturais e políticas. É precisopreservar as identidades nacionais e certos equilíbrios nos programas, levando-se emconta o grande número de espectadores, em todos os meios sociais e culturais que as-sistem à televisão.

Foi por ocasião da negociação do GATT (1992-1993), que a Europa reclamoua cláusula de proteção. A batalha entre os Estados Unidos e a Europa, na questão au-diovisual, tem porte mundial. Ou se aceitam, afinal, as proteções que os europeus queremconservar para a manutenção da sua identidade cultural, ou elas serão amanhã reivin-dicadas pela América Latina, pela Ásia, pelo Oriente Próximo e pela África. Ou então,ao contrário, é a tese do livre intercâmbio dos bens culturais que, sob a égide dos EstadosUnidos, prevalecerá, e então o mercado mundial da comunicação se organizará semoutros princípios que não os do liberalismo. Em outras palavras, a cultura irá se tornaruma indústria como as outras. Essa é a batalha cultural e política para os próximos trin-ta anos. E, no entanto, esses termos já eram colocados pela Escola de Frankfurt desdea década de 1930!

Qual a regulamentação adequada para a comunicação? Até que ponto é pre-ciso uma política integrada para a televisão e as novas tecnologias? O ideal de serviçopúblico ainda faz sentido num universo multimídia? A abundância de comunicação re-duz a necessidade de um regulamento? O papel do Estado é ainda necessário na horada internacionalização? Será preciso uma regulamentação além daquela da livre esco-lha do espectador? Os desafios culturais ligados à indústria, à informação, ao diverti-mento serão, amanhã, tão importantes quanto os da agricultura, indústria e serviçosdentro de 100 anos e 50 anos.

As televisões da união européiaAs televisões mais poderosas são, evidentemente, as dos países maiores: Grã-

Bretanha, França, Alemanha, mas com uma diferença. A Alemanha, primeira potênciaeconômica da Europa, não está à frente do audiovisual. É, portanto, para a Grã-Bretanhae para a França que se inclinam mais as primeiras referências.

Grã-Bretanha. É o modelo com o mais antigo sistema misto da Europa, vistoque a televisão privada foi criada em 1954. São 56 milhões de habitantes e 21 milhõesde domicílios. Poucos cabos e de modelo coaxial antigo. A BBC, televisão pública, comdois canais geralistas, é financiada sem publicidade. O Channel 4 (1982) é um canalprivado, de alta gama, também financiado pela publicidade.

Depois de 1982, outros canais privados passaram a ser transmitidos porsatélite. É o caso da Sky Television. Outros o são por cabo e satélite (Screensport-MTV Europe).

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França. Foi por muito tempo defensora da televisão pública. São 56 milhõesde habitantes e 24 milhões de domicílios. Mas a chegada dos socialistas ao poder, em1981, favoreceu paradoxalmente uma desregulamentação. Em 1986, o TF l, oprimeiro canal, que ainda detém quase 40% da audiência, foi privatizado. Seus re-cursos provêm unicamente da publicidade, assim como o M6, outro canal geralistade porte modesto, mas em expansão, associado ao grupo multimídia europeu poderosoe dinâmico que é a CLT. O Canal Plus é um canal privado, pago, hertziano, semige-ralista e temático em esporte e cinema, criado em 1984 cujo sucesso é uma reali-dade. O serviço público que conserva cerca de 50% da audiência foi reagrupado emquatro canais: A2 e FR3, canais geralistas concorrentes da TF1, e dois canais temáti-cos de pouca audiência — ARTE, canal franco-italiano cultural, criado em 1989 e LaCinq, canal temático, centrado na educação, criado em 1994. Existem também al-guns canais a cabo de pouca audiência, tendo-se em conta o pouco que existe de cabona França. A televisão pública é financiada por verbas e pela publicidade.

Alemanha. Aqui a diferença é sensível, porque a televisão pública se organizouem forma de Lànders* e porque existe uma alta taxa de assinaturas via cabo. O setorprivado é de criação recente. São 86 milhões de habitantes depois da reunificação em1993. Há dois canais públicos geralistas financiados por publicidade e verbas: a ARD,uma federação de nove canais federais, e a ZDF, a segunda, comum a todos os Lãnders.

Existem também dois canais temáticos públicos, via satélite, e sobretudo a RTLPlus, televisão privada geralista via cabo. E alguns canais privados temáticos via satélite(SAT1).

Bélgica. Dividida em duas identidades e duas línguas, ela conserva, a despeitoda pequenez do seu território, e do pequeno número de habitantes (10 milhões), umatradição de dois canais geralistas públicos. É também o país da Europa onde, por forçada sua alta taxa de cabeamento, a concorrência se dá entre um número maior de canaiscomerciais. Trata-se de um dos pontos de leitura mais interessantes da evolução da tele-visão na Europa.

Espanha. O país converteu-se, na década de 1980, às promessas da televisãoprivada e da regionalização, depois de ter sido dominado por longo tempo por uma tele-visão pública austera. Existem dois canais geralistas públicos, financiados, em grandeparte, pela publicidade, um canal regional público e dois canais privados.

Itália. Ao contrário da Espanha, ela não soube resistir à explosão do audiovi-sual público e, a partir de 197571980, à ligação entre a fragilidade do Estado e o avançodos interesses privados no domínio da comunicação. Depois do medo de que a tele-

*Landers - Estados Federados da Alemanha Federal. (N.T.)

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visão pública desaparecesse por completo, constatamos a sua permanência através detrês canais públicos nacionais e geralistas. Existe, em compensação, uma miríade detelevisões privadas locais, reagrupadas em três grandes redes privadas, que ameaçam asobrevivência da televisão pública. Com 57 milhões de habitantes e 19 milhões dedomicílios, a Itália é um país fortemente aberto à imagem, e a onda de tradição deserviço público esteve prestes a desaparecer.

Portugal. É um caso interessante, visto que a antiga colônia (o Brasil) hoje su-perou em grande parte a antiga metrópole, inclusive no domínio da comunicação.Portugal, depois de ter renunciado a seu passado e se voltado para a Europa, encontra-se dividido entre duas identidades. O país de porte modesto (10 milhões de habitantes)ainda não tem um número de aparelhos de televisão muito grande: 4 milhões. Portanto,há muito tempo possui apenas dois canais públicos geralistas (RTP1 e RTP2), com du-plo financiamento, público e privado. Há cinco anos, apareceram as televisões privadas,das quais a mais original é uma televisão de inspiração católica, única em seu gênerona Europa. E de vocação geralista.

Portugal vê-se confrontado com três desafios. A capacidade de produção au-diovisual do Brasil, à qual voltou as costas há anos. Só muito recentemente as novelasatravessaram facilmente o Atlântico. O dinamismo espanhol que corresponde a umamoda, e que lhe faz sombra, faz com que permaneça um pequeno país, que não estánem ao sul, nem ao norte, e cujo passado glorioso não goza do mesmo renome que aEspanha. Aluno inteligente da Europa, Portugal tem, no entanto, grande originalidadea ser preservada e valorizada para a Europa de amanhã. Mas uma originalidade que nãose impõe e que é preciso procurar.

Na maior parte dos outros países da União, vemos a existência muito antigade um ou dois canais públicos, e a chegada, a partir da década de 1980, das televisõesprivadas mais ou menos nacionais ou ligadas a grupos estrangeiros. A qualidade datelevisão depende sempre do porte do país, para permitir uma capacidade de pro-dução nacional, e de fatores culturais mais complexos. Por exemplo, os países daEuropa do Norte, de clima muito rigoroso, jamais acreditaram muito na televisão.Preferem a leitura e outras formas de comunicação. Em compensação, os países daEuropa Central e do Sul são muito mais interessados na televisão. Na verdade, osusos culturais da televisão são fortemente marcados pelas identidades e estilos. Issoé o que constatamos também no Brasil. O que prova que o caráter idêntico do ins-trumento não impede a existência de estilos diferentes de televisão! Isso invalida umpouco a tese da estandardização. Para os antigos países da Europa Oriental, a aven-tura e a liberdade parecem provir apenas do setor privado, de tal forma o setor públi-co foi assimilado à antiga televisão estatal. Toda referência ao serviço público vem

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acompanhada de uma conotação que deseja manter o antigo regime. Essa situação étotalmente inversa no Ocidente! No Leste europeu, é a televisão privada que se revesteintensamente de valores democráticos, pois durante muito tempo suas funções foramdistorcidas.

O problema central para as duas Europas é chegar, com suas histórias da tele-visão tão diferentes, a definir um mínimo de fatores comuns para apresentar uma iden-tidade européia. O paradoxo é que o poder dos interesses industriais mundiais, e essen-cialmente americanos, que desejam, pela desregulamentação, criar esse mercado mun-dial único, essa "aldeia global", obriga os europeus a defenderem uma identidade eu-ropéia real, porém ainda pouco garantida. Os acontecimentos obrigam a defender umaunidade cultural ainda muito prematura. Essa é a dificuldade de ação européia nessedomínio. Fazer conviverem pontos de vista muito diversos entre os liberais e os defen-sores do serviço público, os partidários da abertura e os que se apegam à identidade, afim de desvendar um mínimo de pontos em comum contra o trator americano.

Os três desafios para a Europa são:1. Até que ponto aceitar a desregulamentação em matéria de comunicação?

Quer dizer, a partir de quando a especificidade dos produtos obriga a uma regula-mentação para preservar a liberdade de comunicação e os valores prioritários que lheestão ligados? É o problema do limite do papel do mercado nas indústrias culturais.

2. Que visão de conjunto estabelecer em relação às novas tecnologias? Até queponto, também aí, aceitar a desregulamentação e o discurso dessas indústrias nascentes,segundo o qual a multiplicação das técnicas favorece a comunicação social? Em outraspalavras, até onde admitir a ligação entre técnicas e conteúdos e a partir de quandocolocar o problema da diferença de natureza entre serviços propostos por essas técni-cas e uma verdadeira política de comunicação.

3. Como preservar e valorizar as identidades culturais européias que correm orisco, apesar do discurso, de serem esmagadas pelas lógicas individuais da comunicaçãoque valorizam sejam os grandes mercados, sejam os nichos de forte rentabilidade, masnão estão nem um pouco interessadas na problemática de identidades culturais.Contrariamente às aparências e aos discursos, as indústrias da comunicação não são"naturalmente" sócias das identidades nacionais, cuja preservação torna-se cada vezmais necessária num universo de comunicação.

As políticas européias em matéria de televisãoSem jamais designá-lo claramente, o desafio que se coloca é a relação entre

identidade e comunicação. A política européia ainda não reconheceu que a defesa daidentidade não é um obstáculo a uma política da comunicação, e sim uma condição.

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Em outras palavras, não existe uma contradição entre uma regulamentação depreservação da independência cultural européia e o ato de ser favorável à comunicação.O modelo norte-americano que cada vez mais parece uma chantagem consiste em di-zer: "regulamentar e opor-se à livre circulação é, na realidade, opor-se à comunicação".Essa equação é falsa e é preciso que seja superada. Mas numerosos países europeus es-tão convencidos da sua veracidade, donde as hesitações da política européia em matériade defesa do audiovisual europeu. Certos países identificam a regulamentação com umaforma de protecionismo perigoso, como é o caso da Grã-Bretanha, dos Países Baixos e,de certa maneira, da Alemanha. Outros, a França em primeiro lugar, consideram, aocontrário, que a proteção em matéria de televisão, nada tem a ver com protecionismo,mas é a única maneira de se proteger do imperialismo cultural norte-americano e depreservar a chance de uma identidade audiovisual européia. O problema todo surgiudessa transformação paradoxal que se verificou ao longo de dez anos: até a explosãotecnológica recente, na década de 1980, todos os países reivindicavam uma regula-mentação. Com a explosão das novas tecnologias, é o modelo liberal que acaba se im-pondo. Como existe uma pletora de imagens, é inútil regulamentar. É o consumidorque deve ser o melhor "regulamentador"! Em outras palavras, todo o mundo se livradas responsabilidades, rejeita as limitações e as proibições, para fazer com que o con-sumidor assuma todas as responsabilidades.

l. A política européia, em matéria de audiovisual, depende, enfim, da resoluçãode dois problemas, ou melhor, de duas mudanças.

Inicialmente, é preciso admitir que não existe contradição entre identidade ecomunicação. Defender uma certa identidade cultural européia — ademais relativa,quando vemos tudo aquilo que separa os estilos e as tradições — não é incompatívelcom uma atitude favorável à comunicação.

Em seguida, distinguir política e indústrias culturais. As indústrias oferecemevidentemente uma "política" cultural, a delas, quer dizer, a do mercado. Construiruma política audiovisual voluntarista européia, sobretudo dentro do quadro do GATT,e, principalmente, diante dos norte-americanos, é o meio de reconhecer a necessidadede se fazer outra coisa diversa do que seguir o mercado. Esse voluntarismo ainda émuito débil. E por que ele haveria ainda de existir na Europa, quando constatamos,em vinte .anos de esfacelamento da televisão pública européia, a fascinação em relaçãoàs televisões privadas, a atração pela desregulamentação? Quer dizer, o desejo dealinhar o setor da comunicação a todos os outros grandes domínios de atividadeseconômicas. Esse é o problema básico que se coloca desde a negociação do GATT, en-tre os Estados Unidos e os europeus, a qual procura definir uma política autônoma,

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sem ousar questionar o modelo liberal de desregulamentação que se impôs ao longode vinte anos.

Essa incerteza se encontra na política audiovisual que fica a meio caminho en-tre voluntarismo e liberalismo. Três aspectos são desejáveis: uma política alerta a todasas concentrações; uma política de defesa dos interesses culturais europeus no quadroda diretiva Télévision sans frontières; uma política de exceção cultural no quadro danegociação mundial do GATT.

No centro de tudo isso existe uma batalha jurídica capital em torno do direitode autor. Dois grandes conceitos se opõem diametralmente. O conceito francês queprotege acima de tudo o autor e insiste na dimensão da criação individual. E o conceitoamericano que insiste muito mais na concepção econômica e que coloca no centro orisco industrial, e, em segundo lugar, a criação.

Para favorecer a criação audiovisual e as co-produções, existem dois programasdesde o início da década de 1990.

O programa Média, que facilita os financiamentos tanto para os programas decinema quanto de televisão, a fim de criar hábitos e circuitos de trabalho facilitando osurgimento desse famoso mercado audiovisual europeu. E o Eureka, programa mais ge-ral, que abrange todas as novas tecnologias (robótica, informática...) e visa, sobretudo,facilitar a passagem da pesquisa ao desenvolvimento, com o objetivo de reforçar as in-dústrias de comunicação européias.

2. A diretiva sobre a Télévision sans frontières, de 1989-1991, da UniãoEuropéia, obrigava os canais a consagrarem 50% do seu tempo de difusão a programasde origem européia, "sempre que isso fosse possível". Ela foi muito contestada peloscanais comerciais que nela viam o traço de um dirigismo ultrapassado, e por aquelesque, ao contrário, nela viam uma medida que visava "peneirar" os programas. A novadiretiva foi discutida durante mais de um ano, de 1994 a 1995, para se descobrir senão seria mais útil impor quotas de produção ou quotas de difusão, e em que medida.Um outro problema é o das limitações a serem impostas aos canais estrangeiros difun-didos via satélite, essencialmente norte-americanos, e recebidos na Europa, a fim deque eles contribuam, sob a forma de taxação, para a produção européia. O desafioeconômico e cultural é maior porque o mercado europeu em termos de nível de vida,de rendimentos e de cultura é o primeiro mercado do mundo. A questão das quotascoloca em jogo também o futuro dos canais geralistas. É preciso não castigá-los demais,mas, ao mesmo tempo, dar os meios para que existam canais temáticos.

Se o parlamento europeu defende o princípio de quotas, numerosos paísesdesconfiam de uma medida que continuam a considerar protecionista, mesmo que tal

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O SISTEMA AUDIOVISUAL EUROPEU

política seja favorável aos pequenos países, que aí encontram um meio de preservar asua capacidade financeira no mercado audiovisual europeu.

França, Bélgica, Portugal e Itália continuam favoráveis a uma política dequotas. Grã-Bretanha, Holanda e, em menor medida, a Alemanha, são hostis ou têmreservas.

É toda a atitude em relação às condições de defesa e desenvolvimento da iden-tidade européia num mercado mundial que está em causa aqui. A questão torna-se ain-da mais interessante quando tomamos conhecimento de que alguns anos de estudo daaudiência na Europa demonstram que os telespectadores votam pelas flcções nacionaise pelos filmes americanos, em detrimento das co-produções européias, muito conven-cionais. Isso quer dizer que não basta favorecer o mercado das "europroduções", que naverdade corre o risco de se tornar um subproduto dos programas norte-americanos. Adefesa de uma capacidade de produção nacional é tão importante quanto a criação domercado europeu. E, sobretudo, esse mercado europeu não substitui as necessidades deprodução cultural nacional. Na realidade, é preciso fazer ambas as coisas: defender ascapacidades de produção nacionais e os estilos a ela relacionados. Deve-se criar um mer-cado europeu, mas sabendo que a existência dele não basta para valorizar as identidades.

3. A batalha da exceção cultural. A reivindicação de exceção cultural, já re-conhecida para o México e para o Canadá, no quadro da Alena, foi proposta pelos eu-ropeus e aceita, em parte, em 1993, no quadro das negociações do GATT. Ela permiteexcluir os bens e serviços culturais das regras gerais de livre negociação e autoriza ospaíses a seguirem os atuais sistemas de proteção e manutenção da produção de pro-gramas audiovisuais. Em outubro de 1993, em Mons, na Bélgica, os ministros europeusdo audiovisual definiram seis pontos para caracterizar essa exceção cultural:

1°) manutenção e desenvolvimento de todas as políticas de ajuda financeiranacional ou comunitária no setor audiovisual;

2°.) isenção, nesses programas de ajuda, da cláusula de que a nação mais fa-vorecida se obriga a estender a todos os países as ajudas que cada um atribui a seusrecorrentes;

3°) manutenção do poder de regulamentar as tecnologias de transmissão deimagens;

4°) liberdade para desenvolver, no futuro, todas as políticas capazes de ajudaro setor audiovisual;

5°) manutenção da diretiva Télévision sans frontière,6?) garantias de que os seus resultados não serão questionados quando de ou-

tras negociações.

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Foi sobre essa base que se desenvolveram as negociações. Na realidade, de-pois de 1994, isso é uma meia vitória. Nada se conquistou. Foi um alívio, mais doque uma vitória. Uma ofensiva norte-americana sobre os mercados audiovisuais eu-ropeus continua sendo possível, porque nem a administração, nem os industriaisnorte-americanos querem aceitar o não-acordo de dezembro de 1993, que foi re-conhecido, talvez um pouco depressa demais, pelos europeus, assim como a aceitaçãopelos norte-americanos da exceção cultural. De forma que a política audiovisual de12 países continua sendo um balanço disfarçado. Certos países europeus acham quenão precisam de limitações para fazer respeitar as quotas que já são respeitadas de fa-to. Além da questão das quotas, um dos grandes problemas para o futuro do audio-visual na Europa, e também nos Estados Unidos, é o da autonomia dos produtoresem relação aos difusores.

Ao longo de quinze anos, apoiados em novas tecnologias, foram os difusoresque impuseram as suas condições. Situação de quase monopólio que não vai melhorarse amanhã, ao contrário, os produtores se reunirem para impor sua lei aos difusores.Na realidade, existem dois problemas que têm um ponto em comum: a questão da di-versidade e a garantia de pluralidade de culturas e estilos audiovisuais, e, no seio de ca-da espaço cultural, deixar conviverem os pontos de vista e não instalar nem a domi-nação dos produtores, nem a dos difusores. Esse é o problema central.

Concluindo, é preciso lembrar que além dos formidáveis desafios tecnológicose comerciais que agem sobre a comunicação, trata-se sempre, em relação às imagens eaos sons, de fatores de identidade mais profundos das sociedades. A manutenção dessasespecificidades, identidades e particularidades que, por longo tempo, foi consideradacomo obstáculo é hoje, ao contrário, indispensável para compensar o fato de que vive-mos mais e mais em sociedades abertas. Se queremos salvar a comunicação, é precisosalvar as identidades. O que está em jogo hoje no braço de ferro entre a Europa e osEstados Unidos tem significação mundial. A comunicação e os valores a ela relaciona-dos são coisas importantes demais para serem deixadas simplesmente às leis do mer-cado. Todo o mundo reconhece hoje a necessidade de regulamentar as "estradas" paraevitar mortes. Seria bom fazer a mesma coisa com as "estradas da informação e da co-municação", se não quisermos que elas acentuem as desigualdades que deviam reduzir.Existe sempre um perigo na comunicação. Quanto mais comunicação, mais risco. Porisso, a regulamentação não é obstáculo à comunicação, mas a sua condição de existência.

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PARTE

A ilusão da televisão culturalou o espaço público

frasmentado

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A cultura no espaço público "midiatizado"Malgrado as previsões dos anos 1950-60, a televisão não

matou a cultura, nem substituiu a política, como tampouco foi a es-cola do século XX, nem promoveu a lavagem cerebral generaliza-da. Existe muito a se pensar sobre as catástrofes que ela não crioue as revoluções que não provocou. Já é tempo de admitir que co-mo todas as grandes técnicas, inclusive as de comunicação, a suaaceitação não bastou para "subverter" a sociedade, simplesmenteporque as técnicas são, afinal, mais dependentes do contexto socialdo que o inverso, mesmo que a cada cinqüenta anos uma "novarevolução técnica" pretenda fazer crer numa subversão da so-ciedade pela técnica. Entretanto, essa reflexão não foi feita, porque,mais uma vez, a televisão é objeto de grande excitação, todos prepa-ram o período pós-televisão pública, celebram a morte próxima domastodonte da televisão geralista e sonham com as promessas datelevisão fragmentada. Como se os responsáveis, libertos dasquestões do passado, mergulhassem de cabeça num presente semlimites, tendo por horizonte um futuro que hesita entre o infernode uma dominação norte-americana-japonesa ou o eldorado dosgrandes grupos de comunicação europeus.

A sensação que se instala é a de que em matéria de tele-visão, a história se renova a cada dez anos, com o pressuposto deque as idéias do passado só podem ser falsas e obsoletas e que o fu-turo requer que inovemos e repensemos tudo. Como se a aliançada "revolução tecnológica da informação e da comunicação" e asanfetaminas do mercado fossem mudar tudo. É a ideologia da "no-va fronteira".

A partir da técnica e da desregulamentação, duas direçõesparecem se esboçar: são elas, de um lado, os projetos para as dife-rentes formas de televisão fragmentadas que apostam na indivi-dualização da demanda (esporte, juventude, cinema, informação],e, de outro, os projetos de televisão européia que ultrapassam, graçasàs novas tecnologias, o quadro nacional julgado estrito demais.Individualização e globalização aparecem hoje como as duas linhasde fuga simétricas do futuro da televisão. A televisão cultural comoprocesso acabado de individualização, a televisão européia comomeio de superar o quadro arcaico dos Estados-nação e contribuir

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assim para a constituição de um outro quadro histórico! Mas issoque hoje é considerado como vanguarda parece muito, na verdade,com uma retomada das ideologias técnicas e políticas examinadasno capítulo 4.

A televisão cultural fixa as distâncias sociais e condena aoabandono a idéia diretriz de uma televisão geralista: oferecer o maiornúmero possível de programas capazes de satisfazer ao maiornúmero possível de públicos. Ela é a vingança da individualizaçãodos gostos contra a estandardização da televisão de massa. Em ou-tros termos, e sobre o pano de fundo de uma problemática de laçosocial, ela escolhe o particular contra o geral. Aí encontramos aomesmo tempo, portanto, a marca da ideologia técnica e a escolhade uma abordagem individualizante, ambos os aspectos se reforçammutuamente.

A televisão européia, pelo contrário, ilustra uma ideologiapolítica em que a televisão é encarregada de facilitar a integraçãoeuropéia em nome do interesse geral da Europa. Nos dois casos,trata-se, por um lado, de flexionar o equilíbrio sempre difícil entrea técnica e o social, e, por outro lado, entre o particular e o geral.Equilíbrio instável que explica a grandeza, mas também a fragili-dade da televisão geralista, na medida em que ela deve gerar essadupla tensão.

O paradoxo menos relevante da atual situação certamentenão é o fato de que no momento em que lentamente se impõe aosespíritos aquilo que as pesquisas e os fatos atestam há quarenta anos,a saber, que a televisão não é todo-poderosa, os dois projetos maisinovadores da televisão queiram retomar essa hipótese!

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Cultura e televisão:entre a convivência e

oapartheid

A televisão cultural é, provavelmente, a forma mais prestigiosa de televisão frag-mentada: ela encarna a legitimidade da cultura e estigmatiza ao mesmo tempo essatendência oposta, eminentemente contestável, que representa a televisão de massa. Elaestá, portanto, em primeiro lugar, encarregada de melhorar as relações entre cultura etelevisão, que sempre foram difíceis, até se tornarem francamente más com o declínioda televisão pública e o triunfo da televisão privada. Mas seria injusto responsabilizarapenas a televisão privada, pois mesmo com a multiplicação dos canais públicos, o lu-gar dos programas culturais — ou mais simplesmente uma abordagem cultural namaneira de conceber a televisão geralista — não parou de diminuir, em proveito deuma lógica de "grande público" no pior sentido do termo.

Podemos dizer que em trinta anos passamos do tempo de noivado ao da rup-tura, sem que o casamento jamais acontecesse. A televisão cultural retoma aquela idéiaao mostrar que ela só pode se realizar com o casamento!

A palavra cultura é uma das mais difíceis de definir, porque ela é polissêmicae há muito tempo certas tradições filosóficas, sociológicas e antropológicas opõem-se aoassunto. Tradicionalmente, reconhecemos dois sentidos. Um sentido amplo que en-globa os valores, as representações, os símbolos comuns partilhados por um povo: é apalavra alemã Kultur, próxima da idéia de civilização. Um outro sentido, mais estrito,é dado pela palavra alemã Bildung, que designa os conhecimentos e saberes identifica-dos como culturais.

Por seu lado, a antropologia cultural insiste tanto no desenvolvimento técnicoe material, quanto na transmissão de saberes e do patrimônio, de mitos e imagens. Asociologia do conhecimento e da cultura valoriza sobretudo a produção e a circulaçãode obras que exprimem a criação artística ou intelectual, mas também as representaçõesdo mundo e as condições da economia da cultura. A sociologia das mídias estudou muitoo desenvolvimento da cultura de massa e as suas relações com a cultura de elite. Apalavra cultura tem, portanto, ao mesmo tempo, dimensões filosóficas ligadas às re-lações entre cultura e civilização, dimensões sociológicas concernentes às condições de

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

produção e intercâmbio de obras na sociedade, dimensões históricas como a questãoda tradição e da novidade e dimensões antropológicas como a questão dos símbolos,dos valores e das representações1.

No Estados Unidos, foi imediato o divórcio entre a cultura e a televisão or-ganizada exclusivamente sobre um modo comercial e no registro do divertimento. Ahierarquia cultural não é lá mais marcada do que na Europa, mas a distância entre ouniverso do grande público e o do público cultivado é mais nítida, na medida em quese trata de um país novo, cujo problema principal durante cinco gerações foi integrarum fluxo ininterrupto de imigrantes numa cultura básica suficientemente ampla paraaí conviver o que restava das culturas de origem. O objetivo era formar um quadro,uma identidade e uma cultura norte-americanas2, antes de saber o que seria a culturade elite, muito européia nas suas manifestações. A segurança de saber que as suas ori-gens estavam na Europa reduzia muito a acuidade da questão. Essa diferença históricaessencial — construir uma identidade cultural comum para além da disparidade dosimigrantes — e a consciência bastante aguda de que o modelo cultural europeu era oprincipal ponto comum desse país e de sua elite, explicam o papel diferente que de-sempenharam as mídias de massa na questão da integração cultural de cada lado doAtlântico. As mídias serviam diretamente à integração dos imigrantes e gozaram por is-so de um prestígio que a Europa não conheceu. Aí não havia, como na Europa, umahistória e uma cultura precedentes à aparição progressiva dos meios de massa, que, semdúvida, criaram uma cultura específica, mas também substituíram, mais ou menos, ou-tras formas que existiam previamente. Pelo contrário, houve simultaneidade. NosEstados Unidos, as mídias, com a imprensa escrita e a publicidade, depois com o rádio,o cinema e a televisão, foram, desde o século XVIII, não apenas contemporâneas dacriação da sociedade e da cultura norte-americanas, mas contribuíram diretamente paraa sua fabricação. Existe, portanto, uma sincronia entre mídias e cultura de massa naAmérica do Norte que jamais existiu nem na Europa Ocidental, nem na Europa Oriental,devido à anterioridade de uma longa tradição cultural3.

A marginalização da cultura de elite nos Estados Unidos não teve, portanto, omesmo sentido que na Europa, uma vez que os intelectuais americanos sempre sou-beram que o seu status era "mais marginal" e muitas vezes encontravam na Europa acompensação para o que lhes faltava em casa. Portanto, eles reagiram, organizando-senum meio acadêmico que, se não é muito integrado à vida americana, ao menos goza,tanto quanto na Europa, de um prestígio real. As coisas mudam com a elevação do ní-vel cultural, o aumento da população universitária e a crescente pesquisa de "raízes".Mas, durante um longo tempo, o modelo de relação entre as duas culturas permaneceuimutável. As redes a cabo e a televisão comunitária, contrariamente às expectativas,

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não favoreceram, nos anos de 1960 a 1970, uma melhoria da produção cultural, e aPBS, único canal cultural radiodifundido, também não conseguiu ganhar audiência.Seria, provavelmente, nos projetos de canais culturais pagos, economicamente viáveis,em vista do potencial do mercado, que a televisão cultural teria uma chance maior desucesso.

Em todo caso, jamais houve nos Estados Unidos uma querela tão forte quan-to na Europa sobre a questão do status cultural da televisão, e os intelectuais ado-taram a esse respeito uma atitude muito crítica e manifestaram um profundo desin-teresse, encorajados pela crítica dos intelectuais europeus da Escola de Frankfurt, des-de a sua chegada aos Estados Unidos na década de 1940. Estes viram no rádio e natelevisão nascentes um pesadelo simétrico ao que se passava na Europa, e isso exata-mente no momento em que começavam as pesquisas empíricas sobre a influência dorádio e da televisão — com os seus resultados muito matizados e muitas vezes con-traditórios com os seus pressupostos básicos. Houve, portanto, dois fenômenos simultâ-neos, cujas conseqüências estamos pagando hoje em dia. De um lado, a elaboração deconceitos, paradigmas, pesquisas que, cinqüenta anos depois, ainda são os paradigmasbásicos de toda pesquisa sobre a comunicação de massa. E de outro lado, uma pers-pectiva essencialmente crítica e pessimista contra a comunicação de massa, acusada,por uma elite marginalizada tanto da Europa de origem quanto da sociedade ameri-cana, de criar apenas o emburrecimento e a estandardização. Depois de cinqüentaanos, é sempre difícil dissociar as duas atitudes, às vezes simultaneamente apresen-tadas nos mesmos conceitos!

Logo, a convivência foi admitida, mesmo que na Europa o debate sobre o pa-pel da televisão continuasse sem resolução, assim como também a questão de saber deque maneira a cultura poderia estar presente na televisão.

É capital ter em mente essa diferença entre os Estados Unidos e a Europa, poisa encontramos na diferença existente entre os projetos de televisão cultural fragmen-tada dos dois lados do Atlântico. Na Europa, sabemos, a questão é conflitante.Inicialmente, porque em todos os países, a televisão foi pública, chegando a fixar umobjetivo cultural ambicioso: "distrair, informar, cultivar", geralmente aceito tanto pe-los profissionais quanto pelos políticos e pela elite. E chegamos a ver, entre outros, in-telectuais e dramaturgos investirem na televisão para tentar realmente construir essaescola do século XX. A ruptura é mais forte, visto que o mundo cultural havia, numprimeiro momento, investido na televisão, e a implacável lógica da rentabilidade e dogrande público acabou excluindo os programas "intelectuais".

Não foi a televisão privada que marginalizou os programas de caráter cultural,mas sim a televisão pública, por um mimetismo e uma antecipação de um comporta-

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mento que, afinal, ninguém havia dela solicitado. Se os primeiros anos, de 1950 a 1970,foram de uma colaboração entre cultura e comunicação de massa, ou, em todo caso,de um respeito mútuo, os vinte anos seguintes, de 1970 a 1990, foram, ao contrário,marcados por uma crescente distância e por um desprezo, às vezes vulgar, da maioriados geômetras da comunicação quanto a todos os projetos cuja idéia fugisse da "estra-da" das receitas garantidas.

A história dos programas de caráter cultural, depois de um segundo tempo detoda a programação de "caráter cultural", é a de uma evasão progressiva, que reforçaos profissionais das mídias em uma espécie de consciência tranqüila, tanto mais legíti-ma quanto esse mesmo mundo intelectual e cultural aceitou as limitações mais e maisdrásticas de seu acesso à televisão. Os profissionais não ficaram com peso algum naconsciência e continuaram a sustentar alguns produtores ou programas célebres, semproibir que, de tempos em tempos, aparecesse esta ou aquela personalidade cultural.Era a cereja no bolo da televisão pública! Os dois últimos decênios eliminaram os difí-ceis esforços dos dois primeiros decênios. Progressivamente, o divórcio foi e continuasendo radical. A história dessa degradação é particularmente triste na França, que foinaturalmente o país que mais teorizou as relações entre a cultura e a televisão!

Pelo fato de ter realizado, com sete anos de intervalo, em 1981 e 1988, juntocom Jean-Paul Missika, dois programas de caráter intelectual num canal de televisãopública, Antenne 2, sou testemunha das dificuldades e do interesse quase sempre tênueque encontramos. E isso porque conhecemos por dentro a televisão, o que nos permi-tiu não cair no desespero total! Mas os esforços despendidos para essas duas séries con-tinuam desproporcionais em relação ao interesse pelo assunto e às reações no interiorda televisão. A primeira experiência foi a de três programas realizados com RaymondAron, a respeito do Spectateur engagé, em 1981, transmitidos muito tarde, na época,e jamais retransmitidos depois. A segunda foi a obrigação de fazer apenas dois progra-mas com Jean-Marie Lustiger, Lê choix de Dieu.

Por que evocar aqui essas duas experiências de produtor e autor de programasde caráter "intelectual", dentro da televisão geralista e, o que é mais, pública? Apenaspara dizer que elas talvez pudessem ter me convencido a priori da legitimidade datelevisão cultural. Se, a despeito dessas duas experiências, não admito imediatamenteo interesse da televisão cultural compreendida como único meio oferecido aos in-telectuais para se exprimirem pela televisão, não é por masoquismo! Mas porque dis-socio as dificuldades de uma experiência — partilhada por aqueles que já a experi-mentaram — do problema geral da cultura na televisão. O fato de que, em trinta anos,formidáveis projetos culturais e intelectuais não puderam ver a luz do dia, e às vezesnão puderam sequer tomar consciência de um certo antiintelectualismo, não deve nos

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levar a concluir que a única solução seja fazer, ao lado da televisão geralista, uma tele-visão "cultural".

O problema dos assuntos de caráter intelectual e cultural é que a atitude ar-bitrária, que é lei na televisão no sentido de que os mecanismos de decisão são sem-pre muito obscuros e pouco racionais, é ainda mais arbitrária aqui do que em outrosdomínios como o esporte, as variedades, a informação. A razão disso, sem dúvida, éque a pressão organizada do meio cultural e intelectual é mais fraca do que a de ou-tros meios.

Os encantos do gueto cultural

A televisão cultural tem origem numa decepção com a televisão geralista, naexistência de novos suportes e na legitimidade atribuída à idéia, anteriormente recu-sada, de televisão temática.

É o encontro desses movimentos que está na origem da idéia de uma televisãocultural, da qual La Sept [Sociedade Edição Programa de Televisão], lançada na Françaem janeiro de 1989, provavelmente é o exemplo mais perfeito. Mas, em matéria decultura, a França não esteve sempre muito à frente?...

As vantagens da televisão culturalNão há razão para se admitir, no momento em que o nível cultural da po-

pulação se eleva, em que a cultura sob todas as suas formas é valorizada e em que onúmero de suportes para a televisão não pára de aumentar, que o lugar da cultura nosprogramas da televisão geralista, pública ou privada, continue sempre diminuindo!Não há nenhuma razão, no momento em que os monopólios audiovisuais desapare-cem, para que a televisão geralista conserve o monopólio — do qual se utilizou muitomal — do discurso cultural. Manter, mas sobretudo aumentar, o espaço dos progra-mas culturais num espaço de comunicação em plena expansão é, portanto, um "im-perativo categórico", e se a televisão geralista não quer assumir o papel, isso pode serfeito por intermédio de um canal especializado. Principalmente quando existem pro-jetos de televisão temática para atividades muito menos maltratadas do que a cultura,como o esporte, a informação, a religião, os programas infantis, etc. É, portanto, umareação de bom senso promover uma televisão cultural no momento em que todo omundo lamenta ver a cultura desaparecendo da telinha. Mesmo que a televisão gera-lista fizesse melhor o seu trabalho, isso não impediria absolutamente a existência deuma televisão temática, dado o volume de tudo o que há para se fazer e tendo-se emvista o fato de que os limites da televisão geralista adaptam-se mal às diferentes for-mas de expressão cultural.

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Tudo isso implica a criação de uma televisão cultural cujo espaço para a cul-tura será maior, estimulando a televisão geralista, cuja multiplicidade de canais não con-duziu à diversificação da programação! Pois esse é o paradoxo atual. A concorrênciaentre televisões públicas e privadas não conduziu a uma ampliação da programação,mas, ao contrário, à limitação a alguns programas capazes de atrair de novo os grandesbatalhões de audiência. Existe, portanto, um argumento democrático na idéia da tele-visão cultural: reparar a injustiça criada pelo triunfo da lógica capitalista no domínio doaudiovisual; evitar que a cultura de mídia se torne o padrão da cultura; dar a esta umachance de estar presente no universo do audiovisual. Em outras palavras, criar um canaltemático cultural é, ao mesmo tempo, o meio de defender a cultura contra a invasãodo audiovisual e de dar acesso ao público a um tratamento audiovisual de diferentesformas de expressão cultural.

Tais são, resumidamente, os argumentos essenciais em favor da televisão cul-tural. E parecem irrecusáveis. A dimensão de relação de força, como vingança do meiocultural e intelectual em virtude de vinte ou trinta anos de indiferença, para não dizerhostilidade, nada tem de falsa. Por que não aproveitar essa oportunidade hoje, quandotanto a demanda quanto as possibilidades técnicas e institucionais o permitem? A re-cepção favorável do meio intelectual à criação de La Sept, apesar de, no seu conjunto,tudo o que se refere à televisão ter sempre má repercussão da imprensa, indica a exis-tência de uma "demanda". O caráter franco-alemão4 do canal passou rapidamente parasegundo plano, na medida em que cresciam as dificuldades sobre as questões de di-fusão, recepção e, sobretudo, de concepção. Rapidamente "nacionalizamos" La Sept,embora todos os dirigentes falassem de cultura européia. E foi no espaço intelectual ecultural francês que o canal procurou e obteve a sua caução, principalmente com umcomitê de programação na grande tradição "elitista democrática" francesa5. A criaçãode La Sept é um exemplo do peso implícito que ocupa, em nosso país, o julgamento da"elite" cultural e intelectual, cuja definição sociológica é sempre mais difícil do que aconstatação da sua influência. As críticas a La Sept foram infinitesimais quanto à suaorientação e também quanto ao seu objetivo, meios e direção, simplesmente porque aquitação dada pela "elite" intelectual e cultural desmontou imediatamente todo o dis-curso crítico. Todo o mundo considerou a iniciativa feliz, desejável, indispensável. Nãohouve voz de intelectual reconhecido que se levantasse contra ela. Nenhum jornalista,cujo ceticismo quanto a iniciativas culturais é notório, criticou sejam os fundamentos,sejam as modalidades de um tal projeto. Nenhum político, nem de esquerda, nem dedireita, questionou a idéia democrática que sustentava o projeto. Em resumo, La Septfoi, provavelmente, no domínio do audiovisual, uma ocasião de consenso de rara ocor-rência. Uma rara iniciativa sem oposição. E sem nenhum debate também, como se a

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causa estivesse conquistada0. A ponto de parecer o consenso perturbador, podendo sever nele um meio econômico de aliviar a consciência pesada em relação à cultura! Aimprensa escrita em geral, usualmente cética em relação tanto aos intelectuais quantoà televisão, não achou nada para dizer, nem tampouco a imprensa audiovisual especia-lizada que, mesmo detendo os recordes de tiragem, jamais se distinguiu particular-mente pelo interesse em programas culturais e intelectuais. É de se acreditar que todomundo esperava por isso7!

Um exemplo desse consenso capenga se encontra na decisão de consagrar todosos programas da FR3 a La Sept, todo sábado a partir de 3 de fevereiro de 1990. Ninguémno canal ficou contente e foi preciso uma dura batalha dos jornalistas para manter o noti-ciário no seu horário normal. Mas o resto foi silêncio, de tal forma o terrorismo, a in-diferença e a consciência tranqüila agiram, para que nem chegasse a ser colocada a questãode se saber qual poderia ser a audiência de tais programas, mesmo quando a FR3 se haviadistinguido por uma programação que fazia sucesso devido aos programas infantis no sába-do à noite. Quanto à concorrência, ela provavelmente ficou bem contente de ver um canalgeralista nacional sumir da cena de concorrência na noite de sábado, em prol de uma tele-visão "especializada" em cultura. Jamais foi colocada a questão de saber em nome de queatribuir ao único canal cultural o monopólio da programação, justamente no dia que sim-boliza por excelência a distração e o divertimento. Numa bela atitude hipócrita, a im-prensa louvou a iniciativa. Nenhum artigo, nenhum comentário foi feito sobre a questãoda racionalidade ou do interesse de tal decisão, cujo caráter sistemático e global não po-dia ter sido imposto por nenhuma outra forma de televisão. É de se perguntar por que acultura não esteve presente antes, uma vez que todo o mundo parecia reclamá-la8...

A realidade: desigualdades, conformismos, materializaçãoDuas objeções associadas não à cultura, mas ao status da televisão e às suas

regras elementares de funcionamento vêm matizar o otimismo dessa reconciliação cul-tura-televisão. A primeira é devida ao fato de que um tal projeto corre o risco de ex-primir um consenso sobre o que é a televisão. Esta não é apenas uma técnica de "di-fusão", um alto-falante que pode transmitir esporte, cultura, religião, mas uma ativi-dade do espetáculo em seu pleno direito, que requer certo número de regras, sob pe-na de se tornar ineficaz.

Se o esporte é, quase por natureza, espetacular, o mesmo nem sempre se dácom a informação, a religião e a cultura, para as quais o tratamento audiovisual requerprogramas atrativos. Essa lei essencial da televisão, que se impõe tanto à televisão ge-ralista quanto temática, significa que não basta confundir o fato de falar de cultura com

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o fato de que as imagens sejam vistas. Essa limitação muitas vezes colocada pelos pro-dutores e programadores da televisão geralista em relação aos projetos culturais con-tinua válida para a televisão temática cultural. Todos sabem que abreviar um conteú-do intelectual, para torná-lo compatível com um discurso em imagens, resulta, nodomínio intelectual e cultural, em simples enunciado, sintético, mas sem muita nuança.

A imagem de televisão' requer uma escritura, um estilo, uma construção quese pretende melhor em certos programas do que em outros. Não resta dúvida de que acultura, a ciência, a religião são assuntos que, para chegarem a ter uma imagem es-petacular, aceitável para o espectador, exigem, às vezes, um esforço desproporcionalem relação à mensagem a ser difundida. Tudo o que diz respeito a idéias passa mal natelevisão, ou então ao preço, aí também, de uma forte simplificação e, na maioria dasvezes, através de imagens reduzidas a um simples talk show. O estúdio, por mais pres-tigioso que seja, não basta para satisfazer àquilo que esperamos, implicitamente, da tele-visão. Essas trocas de idéias, que podem se fazer no rádio, acabam sendo mal vistas natelevisão. Ainda mais porque as limitações da encenação se somam às limitações da sim-plificação, inerentes à linguagem da imagem. Se esta é propícia à excitação, ao es-petáculo, não é tanto às idéias e às formas, e a própria linguagem da imagem obriga aum tratamento que não será nada mais fácil numa televisão temática geralista. Bastaimaginar o tratamento de imagens de uma exposição de pinturas, de um museu, dasartes plásticas. As características da imagem, examinadas no capítulo 3, continuamexatas nesse caso e reduzem as possibilidades de tratamento da grande maioria dos fatosculturais na televisão. Mesmo sendo sempre possível enfiar uma câmera em qualquerparte, isso não basta para despertar o interesse do telespectador.

A segunda limitação resulta daquilo que constitui a televisão: antes de tudouma atividade de divertimento, de distração e de acesso à informação. Certas formasculturais que não encontram hoje lugar na televisão geralista são autênticos diverti-mentos, mas para públicos limitados, e a questão é saber se esses públicos são su-ficientemente numerosos para sustentar um canal cultural. Sua concepção de diverti-mento seria compatível com um espetáculo televisual?

Uma coisa é se divertir no teatro, no concerto, ou no bale, outra coisa é saberse esse divertimento é idênüco na frente de um aparelho de televisão. Não só porquenão existe participação direta10, mas também porque a mediação da imagem cria umaoutra relação com o espetáculo, e, portanto, outras regras de divertimento. Por isso éque certos gêneros culturais se prestam melhor do que outros aos imperativos da tele-visão: nós a assistimos para nos distrair, não para nos cultivarmos. Se nos cultivamosao mesmo tempo, melhor. Mas isso se dá, de certa maneira, à revelia, e chamar umprograma de "cultural" não garante a nossa diversão. O que se dá é o inverso, de tal

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forma sabemos que cultura e divertimento não estão ligados diretamente. Se não fosseassim, haveria um público de massa para todas as atividades culturais. A mediação daimagem suscita regras de divertimento diversas daquelas do divertimento direto.

Nesse sentido, os intelectuais são especialistas no discurso duplo: não cessamde reclamar uma televisão cultural, denunciando o emburrecimento da televisão ge-ralista, mesmo que assistam, como todo mundo, a esses programas de distração. Elesligam a televisão como qualquer cidadão, para se distrair, esquecer, arejar as idéias,evadir-se, aceitando, como todo mundo, deixar-se tomar por um momento pelas ima-gens, e não pensar em mais nada.

Isso explica o sucesso eterno dos jogos, das variedades, dos filmes, das ficçõesque são autênticos programas de distração para "todos os públicos", como se diz, e,portanto, assistidos também pelo público cultural. Caricaturando, podemos dizer queo intelectual, como todo mundo, assiste Guy Lux, mas jura, toda noite, que preferia verOcéaniques*\ Essa regra do divertimento, complementar à do espetáculo, explica porque, apesar das aparências, nem tudo é tratável na televisão, ou melhor, tudo pode sertratado, mas sem a certeza de que será assistido.

A imagem, no que tange ao mundo intelectual e cultural — ao contrário domundo da política, onde, como vimos, ela desempenha um papel de verdade essencial— nem sempre traz algo de substancial. É claro que não é inteiramente indiferente vera cabeça dos "intelectuais", pois a imagem, assim como para os políticos, é uma provada verdade. Mas podemos ter certeza de que o essencial do "ser" deles não estará lá,mas sim em suas produções que, na maioria das vezes, não precisa da televisão paraexistir, mesmo que ela possa contribuir para a sua difusão. Quanto aos domínios es-téticos (pintura, escultura), a televisão pode facilitar uma sensibilização, mas o essen-cial continua sendo a percepção direta, num contexto emocional, que jamais poderá sedar na televisão, nem mesmo numa sala de videoconferência ou num cinema. Ascondições do contexto da percepção, quer dizer, do "estar juntos" num mesmo local,já determinantes para o domínio estético, o são ainda mais no que diz respeito a um es-petáculo ao vivo (teatro, ópera). Se, como vimos, a televisão oferece incontestavelmenteuma via de acesso à ópera, à dança e mesmo ao teatro, não há como deixar de ser senãouma voz de acesso, simplesmente porque a natureza da atividade audiovisual e a daatividade cultural, no sentido amplo, não pertencem ao mesmo espaço de regras, sím-bolos, normas e escrituras.

A existência dessas duas características essenciais na televisão — espetáculo edivertimento — ameaça trazer conseqüências dramáticas para uma televisão cultural

* Programa europeu que mostra o melhor da televisão. (N.T.)

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cujo objetivo é tocar um público mais amplo do que o de hoje em dia. O público nãocultivado não se interessará talvez, e nada garante que o próprio público cultivado seinteresse, a despeito da sua reiterada demanda ao longo de trinta anos. Para o públiconão cultivado, cultura não é uma palavra "neutra", mas, ao contrário, fortemente car-regada de significação social. É ao mesmo tempo o apanágio da elite e o signo distinti-vo por excelência, no sentido em que "ser culto" significa "ser distinto", sendo tam-bém um meio de se distinguir do resto da população. A democratização nada mudoudesse mecanismo fundamental. Se o número daqueles que têm acesso à cultura médiaé mais importante para a elite, o mecanismo de seleção continua existindo ou mesmose reforça, pois a necessidade de se distinguir, como bem demonstrou Pierre Bourdieu",cresce na proporção da democratização da cultura!

A cultura, como parte da realidade social da qual se exclui rapidamente a mas-sa dos cidadãos, reproduz a hierarquia social e cultural. Ela é o meio de se distinguirnuma sociedade que se tornou mais igualitária, pois o acesso a ela não se dá como noesporte ou na política! Ela continua sendo uma das barreiras mais insuperáveis. Pudemosperceber isso com o sucesso das casas de cultura criadas por A. Malraux em 1959, quedeviam, num soberbo projeto democrático, aproximar o povo da cultura. Houve algunssucessos estrondosos, mas, trinta anos depois, todo o mundo se viu obrigado a reco-nhecer que o problema de acesso à cultura não é, em primeiro lugar, um problema dedifusão, ou de "comunicação". Além disso, para contornar esse obstáculo, as casas decultura "ampliaram" o leque de suas atividades abrangendo domínios que não têm senãouma tênue relação com aquilo a que podemos chamar cultura, mas que têm a vantagemdeterminante de poder manter a relação com a população. Aí também a palavra teveum efeito de "barreira". A conseqüência prática é que a grande maioria do público nãose considera suficientemente culta para se preocupar com os programas culturais. Opúblico racionaliza essa auto-exclusão, dizendo que, de qualquer forma, os programasculturais são chatos na televisão e fora dela. O que nem sempre é inteiramente falso!O simples fato de colocar a palavra "cultural" diante de um programa tem um efeitodissuasivo certo, revelando esse termo todos os mecanismos de autodesvalorização eas desigualdades sociais e culturais.

E é possível que a televisão cultural, no seu aspecto modernista, acabe por fa-zer parte do mesmo paradigma das casas de cultura e dos movimentos de educação po-pular, cuja-eficácia foi real há meio século, mas que não corresponde mais, talvez, àmaneira de colocar o problema numa sociedade individualista de massa. Será a tele-visão cultural a forma moderna da televisão escolar?

O processo de auto-exclusão diante do que é batizado de cultural é tão conhe-cido na televisão que, todos aqueles que quiseram fazer programas culturais, fizeram-

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no sem usar o nome e recorrendo às duas regras de ouro: a do divertimento e a do es-petacular. A história da televisão relembra que um grande número de programas decaráter evidentemente cultural tiveram muito mais chance de ter público quando nãoforam de início rotulados de culturais. O importante é o conteúdo, a atitude, a abor-dagem, a intenção e não a embalagem. O objetivo é levar o grande público a uma cer-ta diversificação dos seus centros de interesses, fazendo-o de maneira disfarçada e es-petacular, sem lhe repetir toda manhã que "trata-se de cultura".

Cultura e distinção estão a tal ponto ligadas à hierarquia social e aos privilégiosque é inútil, sobretudo quando o objetivo procurado é ampliar o círculo de público cul-to, empregar à plena força a palavra. Isso não leva a nada, afasta e materializa as hie-rarquias que não precisam disso para existir. Essa palavra é um dos maiores segregadoresque existe, e o fato de empregá-la certamente não aproxima o público "não culto" dopúblico "culto". A cultura tem de ser feita sem ser dita. Principalmente porque ninguém-é dono daquilo que ela realmente é!

Por que isso, que constitui uma regra de ouro da televisão e, antes, -ao rádio,e mesmo de todas as formas de expressão cultural, transmitidas de geração em geraçãohá cinqüenta anos, foi a tal ponto esquecido como idéia, concepção e mesmo título docanal cultural?

Quanto à população cultural que, há quarenta anos, reclama projetos cul-turais, bendito Océaniques — programa de que todo o mundo fala, sem jamais as-sistir, de acordo com o princípio bem conhecido de respeitarmos o que é feito a sérioe é ...cultural —, nada garante que essa população vá aderir à televisão cultural. Pri-meiro, porque o público, a despeito dos seus propósitos, desconfia também dos pro-gramas culturais, mesmo que os reclame, e, em segundo lugar, porque ele tambémaprendeu a se distrair e a se divertir como todos os telespectadores. Enfim, e talvezsobretudo, porque existem muitas possibilidades de que esse público não acrediteque a televisão, sendo cultural, possa tratar "seriamente" da cultura. Em outraspalavras, criar um canal cultural é mais difícil do que criar um canal esportivo ou decinema, porque aquilo que é "designado" como cultural é mais indefinido e confli-tante do que aquilo que diz respeito ao esporte ou ao cinema. Cada um tem umadefinição do que seja cultura, resultado de sua educação e de sua experiência, o quetorna mais problemático o encontro entre a expectativa do público e a oferta deprogramas.

Quais são os perigos? Principalmente dois, que são, também, exatamente opos-tos ao objetivo perseguido. Reforçar as barreiras sociais, e portanto as desigualdades,confortando o público "a conquistar" com a idéia de que não se trata realmente de pro-gramas "para ele". Manter assim as distinções e desigualdades em lugar de modificá-

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Ias, e sobretudo reforçar o sentimento de gueto que não precisa de uma televisão cul-tural para existir.

É, portanto, a segmentação social e cultural que se encontra legitimada, comos excluídos confortados no seu sentimento de não fazerem parte do clube, os eleitospersuadidos de estarem realmente do lado bom. Isso é o que chamamos de contra-per-formance.

O segundo perigo é que, sob o pretexto de proteger e promover a cultura, e,portanto, livrar-se do discurso de marketing dominante, chegamos exatamente ao mes-mo resultado, ou seja, a uma operação de marketing bem-sucedida que visa isolar umpúblico de "alta gama" no que se refere ao retorno e expectativas, para fornecer-lhe oque deseja. No documento de apresentação de La Sept, pode-se ler: "A cultura se li-berta com La Sept, uma cultura paixão, toda vitalidade, diversidade, transformação. LaSept solta as rédeas da imaginação audiovisual, e via satélite abre as fronteiras do paíse das idéias. Uma aposta ambiciosa, na inteligência e na diferença. E também na livrecirculação da criação e dos financiamentos na perspectiva da grande Europa de 1993".O documento intitula-se "Uma grade em liberdade" e compreende as seguintes rubri-cas: Ficção (qualidade Europa), Cinema (versão original), Documentários (a memóriaviva), Espetáculos (a emoção conjunta), Juventude (aprender e compreender). O queexiste nisso tudo de tão particularmente progressista e democrático como não paramde afirmar os protagonistas da televisão cultural?

O que existe, além de palavras, senão a constituição e reforço de um públicoprivilegiado que, graças ao seu alto nível cultural e, muitas vezes, financeiro, poderáter acesso mais rapidamente que o "grande público" aos programas de "alta gama"?Jamais se poderia pensar que uma operação de segmentação social e cultural, na puratradição do marketing, pudesse, para se legitimar, fazer um tal apelo ao que lhe é maisnobre, os valores culturais e democráticos.

No plano prático, uma tal atitude tem impacto imediato: liberar os profissionaisda televisão geralista da obrigação de uma "produção cultural" que lhe parecia mais emais anacrônica, na medida da vitória da lógica empresarial. A existência de um canalcultural especializado lhes serve mesmo de justificativa. Inútil sobrecarregar-se com pro-gramas culturais quando já existe uma televisão pública que reivindica o título de cul-tural. Mandemos para ela o público interessado em cultura, e fiquemos, enfim, livrespara fazer o que quisermos! A televisão cultural torna-se o meio de liberar os profis-sionais da obrigação de uma produção de caráter cultural no seio da televisão geralista.

É, portanto, para enfrentar esse risco desastroso de formação de "gueto" e dereforço das desigualdades, para suprimir assim as piores apreensões a respeito de todoprograma de caráter cultural que o conceito de televisão cultural ameaça evoluir. Num

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primeiro momento, tratava-se de um canal que só transmitia programas de caráter cul-tural (música, debates, documentários, teatros, filmes de autor). Num segundo mo-mento, falamos de um canal que continuava "cultural" no nome, mas que se tornavageralista na programação. Tratar-se-ia de um canal "geralista cultural", quer dizer, quetrataria de maneira "cultural" os programas de um canal normal12. Escapamos assim àcrítica de gueto, sem deixar de nos beneficiarmos das mesmas vantagens. Foi isso o quedisse, por exemplo, A. Harris, nas proposições relatadas por A. Woodrow13: "'O ladomonogênero que deu ao canal a sua especificidade acaba nos enganando. Um canal cul-tural não é necessariamente chato! O que falta, a nossos olhos, pobres de meios, é umjornal televisionado, é preciso que um canal geralista olhe para o mundo14."

Mas o perigo de uma televisão de elite ou de uma "televisão de duas marchas"é ainda mais evidente. É, realmente, a legitimação da existência de duas categorias depúblico! Chegaremos assim a duas ou três classes de televisão, como existem duas outrês classes de trem ou de avião; cada público com a televisão "que merece". Podemosperceber o que há de loucamente emancipador nessa idéia.

O fato de ela ter sido proposta por personalidade de esquerda poderia despertarum sorriso se o assunto não fosse tão grave. O que quer dizer "uma atitude cultural"de fazer esporte, jogos, jornal televisivo ou variedades? Por trás das palavras e das in-tenções, aparentemente democráticas de "cultura", está a instalação de uma televisãode elite apenas. Mesmo que a programação desse canal cultural venha a se tornar ge-ralista, e, sobretudo, se ela se tornar geralista, a sua etiqueta de canal cultural geralistareforçará o fenômeno da segregação. Além disso, se formos até o fundo da proposta dospartidários de uma televisão "cultural geralista", a questão será saber o que distingueainda essa televisão cultural de uma outra televisão. Se se trata realmente de um canalcomo os outros, por que continuar a chamá-lo de cultural, senão para fazer subsistir umfator de distinção e de hierarquia? O que ganhamos em chamar de cultural um canalque, a priori, faz a mesma coisa que os outros? E se os programas são "estritamente cul-turais", caímos na objeção que já evocamos antes. De todo modo, acreditar que bastaconsagrar uma televisão à cultura para que esta esteja protegida na sociedade, traduzainda a ideologia de que o instrumento televísual é todo-poderoso, coisa que, ao con-trário, gostaríamos de evitar.

A superioridade da televisão geralistaO problema central é sobretudo o da defesa e da promoção da cultura não-grande

público, num universo geralmente "midiatizado". A hipótese aqui desenvolvida é que atelevisão geralista tem mais capacidade de defender o lugar da cultura do que um canaltemático, sendo as limitações de um canal temático maiores do que as suas vantagens.

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Evitar o apartheidA televisão cultural faz parte, sobretudo na Europa, dos valores que sustentam

a televisão pública e, portanto, por seu próprio projeto, ela significa um problema poissupõe que a televisão pública é incapaz de tratar a questão da cultura. Ela considera co-mo definitivo um problema que tem apenas vinte anos. Podemos achar isso muito, e oé efetivamente na escala de uma vida, mas se observarmos que a televisão tem apenasmeio século de existência, a hipótese da degradação da televisão geralista não é neces-sariamente definitiva, e pode ocorrer uma reação. Não é por ser grande a decepção coma multiplicação dos canais, e pelo fato de a concorrência entre televisão pública e tele-visão privada não ter trazido uma maior diversificação dos programas, que devemosconcluir que a única saída seja a edificação "à margem" de um canal cultural.

À sua maneira, a televisão cultural contribui para o sepultamento da televisãogeralista, sobretudo pública, mesmo que seja concebida a pnorípara ajudá-la. Ela re-toma a lógica da segmentação que, sobre uma base absolutamente capitalista, organi-za um novo mercado potencial: o dos bens culturais para um público que o deseja eque está pronto a pagar por isso. A televisão cultural traduz mais o fim da televisãopública do que uma renovação desta, e pode muito bem prefigurar aquilo que será ama-nhã a intransigência de uma televisão pública reduzida à sua programação cultural. APBS será o único futuro para a televisão pública. Com efeito, todos concordam em di-zer, muitas vezes com um toque de cinismo, que a cultura realmente faz parte das mis-sões do serviço público e que se, amanhã, a televisão pública se reduzir e definhar, elacontinuará "pelo menos" cultural...

Assim, a idéia de televisão cultural sanciona não apenas um pessimismo radi-cal quanto à capacidade de renovação da televisão geralista pública, mas indica, alémdisso, que esse projeto de televisão cultural corre o risco de prefigurar o que restaráamanhã da televisão pública: a televisão cultural como réplica da PBS e como futuro datelevisão pública. Belo programa, em que todos percebem otimismo e orientação! Nemmesmo é certo que os partidários mais ferrenhos da televisão privada ousem avançartanto e tão depressa no esboço do futuro da televisão pública. O inferno está recheadode boas intenções...

O segundo argumento que podemos opor à televisão cultural é o do contra-senso em relação às indústrias culturais de que ela quer ser o contra-exemplo. A tele-visão cultural retoma, de bom grado e a seu proveito, o discurso de esquerda, hostil àsindústrias culturais, que foi dominante entre os anos de 1950 e 1980 e que, como vi-mos no capítulo 2, desapareceu progressivamente para se transformar hoje numa fasci-nação pelo mercado e pelos grupos de comunicação. Mas a hostilidade àquilo quechamamos, em termos favoráveis, de "grupos de comunicação", e que num vocabulário

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crítico chama-se "indústrias culturais"15 não desapareceu. Na realidade, dissimulou-seno discurso sobre a televisão cultural, tornando-se este, em compensação, o único a selivrar dos miasmas da lógica do lucro.

É preciso simplesmente notar aqui que "indústrias culturais"16, sejam elas aimprensa, a editoração, o cinema, mudaram em trinta anos, por duas razões, das quaispelo menos uma caminha no mesmo sentido da democracia: inicialmente, graças àmultiplicação e ao impulso das técnicas de produção e difusão, em seguida, graças àconstituição de um mercado suficientemente vasto, ligado à elevação do nível cultu-ral da população, e decorrente da luta pela democracia e pela educação. Existe, por-tanto, não apenas nas indústrias culturais a marca do capitalismo triunfante, ele estápresente até mesmo na cultura, mas também a prova de que a população demandaesses produtos. As indústrias culturais depreciadas devem ser creditadas e debitadas àdemocracia. Existe, portanto, uma certa hipocrisia nessa condenação das indústriasculturais.

Outro argumento levantado contra a indústria cultural é que ela só favorece— o que é exato — um certo tipo de produção à custa de outra, notavelmente de menorpúblico. De fato, olhando bem, a televisão cultural não irá se comportar exatamentecomo uma indústria cultural? O que pretende ela, afinal? Isolar um segmento do públi-co para facilitar a penetração daquela lógica industrial da cultura nos domínios em queela ainda não se instalou por não os ter bem identificados. Não apenas a televisão cul-tural não é remédio para a indústria cultural porque ela própria é uma indústriacultural, como também ela permite estender essa lógica tão criticada às produções àsquais ainda não havia chegado. Esse é o preço a pagar!

A televisão cultural facilita, portanto, o corte mais eficaz na oferta e na de-manda. Ela é precisamente o que chamamos de fator de racionalização econômica, per-mitindo avaliar onde estão as necessidades do mercado, o que está em alta, o que estáem baixa. Em outras palavras, não poderíamos ter inventado melhor indicador da in-dústria cultural do que a televisão cultural para atingir a população pretendida e tra-balhar com ela.

Em suma, a televisão cultural é uma indústria cultural sobre o segmento bemparticular que é esse público. Não há nisso nada de condenável, contanto que não sevilipendie as industrias culturais, nem se apresente a televisão cultural como a sua su-peração!

Existe também uma contradição estrutural entre cultura e televisão que a tele-visão cultural não resolve, mas antes contribui para perpetuar. Com efeito, a cultura,no sentido em que a entendem todos os que fazem profissão da cultura e que se anun-ciam como tais, não tem muito a ver com a televisão que é, fundamentalmente, um

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meio de massa. Os meios culturais ficam mais à vontade com os procedimentos de co-municação em escala mais reduzida, como os livros, as revistas, as exposições, o teatro,todos modos de comunicação que permitem aproximar ao máximo uma oferta e umademanda particulares. Ora, a televisão, por suas próprias limitações de simplificação,presta-se mal à argumentação, ao ritmo lento da vida cultural e menos ainda aos tem-pos de ruptura e de radicalidade ligados à "vanguarda". Assim é que, mesmo para atelevisão cultural, existe um risco de que a programação não possa abrir-se ao que é no-vo, às rupturas. Primeiro, porque o consenso e as convenções em matéria de culturaevoluem muito lentamente. Segundo, porque o que faz a ruptura não é, geralmente,suficientemente público para estar simultaneamente nos programas de televisão e, porúltimo, porque a demanda do público em matéria de cultura, sobretudo no que con-cerne à oferta que pode ser feita num canal cultural, remete mais aos grandes valorescomuns do que às inovações e rupturas contemporâneas que ninguém pode saber seresultarão em mudanças importantes ou em simples tentativas, como é normal queaconteça no mundo cultural.

Parece existir algo de incompatível entre o "fato cultural" e a "comunicaçãode massa", a menos que consideremos a televisão como um simples "porta-voz de di-fusão". A solução encontra-se, portanto, na escolha que foi feita depois da criação datelevisão em 1950 até a década de 1980: um certo número de temas culturais pode serobjeto de um tratamento audiovisual desde que as regras do espetáculo e do diverti-mento impostas pela televisão sejam compatíveis com a natureza cultural dos assuntostratados. Tudo pode ser tratado na televisão, desde que se respeitem duas regras: o es-petáculo e o grande público. Por essa razão, para certos assuntos — como a ciência, acultura, a religião — as limitações e a perda de sentido são tamanhas que "o morto nãovale a cera da vela". Nesses casos, mais vale passar ao público a idéia simples de que atelevisão não é o meio adequado a essas atividades e que ele deve aceitar outros mo-dos de comunicação. Essa atitude modesta da televisão é, definitivamente, a mais res-peitosa: ela indica o nível de comunicação em que pode intervir, relembra o que não écapaz de fazer e deixa livre o lugar de outros modos de comunicação.

O conceito de televisão cultural recusa, definitivamente, essas duas limitaçõesinseparáveis que são a simplificação e a espetacularização da televisão, considerandosimplesmente que, reservando um canal à cultura, a televisão poderia "difundir" obrasculturais. Existe, portanto, no próprio nome de televisão cultural uma negativa do queé a televisão e a crença de que esta é, essencialmente, um "instrumento" de difusãoque pode adaptar-se ao esporte, à religião, ao cinema, e por que não, à cultura.Encontramos também nessa atitude a desconfiança em relação à imagem, o que é umagrande tradição intelectual. Mas o paradoxo é ainda mais saboroso: a adoção de um

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canal cultural só faz reforçar o poder da televisão, quando na verdade a questão é dereduzi-lo! Ela conduz à idéia de que a televisão pode tratar de tudo, que está no própriocerne de toda comunicação — contra o que se levanta, com muita justiça, o mundocultural, e também o mundo religioso, científico, acadêmico.

O resultado é o inverso do objetivo procurado: não diminuir, mas reforçar a le-gitimidade do papel da televisão e do seu modo de comunicação. Veremos, no próxi-mo capítulo, o que significa essa dificuldade em aceitar a incompatibilidade que existeàs vezes entre cultura e comunicação.

A televisão cultural coloca um último problema: o efeito de enrijecimento.Será considerado como cultural aquilo que for tratado pela televisão cultural, e nãoserá definido como cultural aquilo que não for abordado por ela. O efeito segregadoré inevitável, mesmo que, evidentemente, não esteja presente na idéia dos promo-tores da atual televisão cultural da França ou de qualquer outra televisão em qual-'quer país.

À medida que as práticas culturais são mais ou menos abordadas pela tele-visão, podemos, com todo direito, reclamar que esta se ocupe mais disso, mas ninguémtira daí a conclusão de que seria possível abranger toda a cultura, nem que a televisãopoderia ser o seu porta-voz. Como o público sempre soube que as práticas culturaissão numerosas demais, muito sujeitas à moda, ao gosto dos jornalistas, aos patroci-nadores de televisão, aos acasos da atualidade, não se surpreende muito de constatarque durante um tempo certos temas recebam maior cobertura, outros muito menos eque as proporções variem segundo o momento. A conseqüência prática de uma talsituação é deixar aberta a definição do que é cultural. A partir do momento em queum canal de televisão, com tudo o que isso implica no que se refere à confiança de-positada naqueles que a fazem, auto-intitula-se "cultural", o espectador tem o direitode pensar que aí encontrará o essencial do que se faz no que respeita a cultura. Nãopensará, por certo, que "toda" a cultura estará ali, mas certamente que o mais signi-ficativo ali estará e, seja como for, que existe uma definição prévia de cultura que per-mite a uma televisão com esse nome dispor de critérios para fazer a "triagem" e sabero que é cultural ou não. Não pode, portanto, haver canal cultural sem uma definiçãode cultura, sob pena de romper a relação de confiança com o espectador, só que essadefinição é necessariamente normativa, quando, na verdade, foi exatamente o con-trário que tentaram fazer todos os que produzem programas de caráter cultural na tele-visão.

O efeito perverso de uma tal hipótese é, portanto, evidente. Se os responsáveisnegam serem capazes de hierarquizar o seu produto em função de uma concepção dacultura, eles perdem a própria credibilidade e a do canal cultural, pois ninguém acei-

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tá, e na cultura ainda menos, que os programas oferecidos sejam simplesmente frutosdo acaso ou da subjetividade. O produtor, e em todo caso o programador, e os quefazem a televisão cultural têm obrigação de saber o que é a cultura, como são obriga-dos a saber o que é o esporte aqueles que fazem um canal esportivo ou o cinema e areligião aqueles que têm a seu cargo um canal de cinema ou de religião. E se os res-ponsáveis se considerarem capazes de definir o que é a cultura, aí é que veremos ain-da melhor o caráter delicado da empresa, pois seria bem sábio alguém capaz de umatal definição.

A comparação com um canal de informação, em que é igualmente difícil definiro que é informação, esclarece a dificuldade suplementar com a qual nos defrontamosna televisão cultural. Se ninguém sabe muito bem o que é uma informação, a tradição,depois de dois séculos de lutas pela liberdade de informação, levou à existência de umametodologia mínima para distinguir fatos, eventos, informação. E sobretudo, o corpode jornalistas é o grupo profissional a que as democracias delegam a capacidade jor-nalística e o direito de distinguir aquilo que, no torvelinho cotidiano do mundo, poderáser ou não uma informação. Os jornalistas podem se enganar, mas entre experiência,autocontrole do meio e presença dos autores da história, dispomos de meios para chegarquase a saber o que é uma informação. Nada disso ocorre com a cultura em que a ex-tensão do campo é mais vasta, sem que exista a sanção da realidade e a existência dogrupo intermediário dos jornalistas!

Mais vale a convivênciaMesmo havendo quem afirme tal coisa, a alternativa não é a televisão cultu-

ral de um lado e o deserto de outro! A "alternativa" situa-se entre o gueto ou a tele-visão de duas marchas e a manutenção de um certo tratamento do fato cultural no seioda televisão geralista, cujas lacunas bastam para indicar tudo que, sendo cultural, ficade fora do espaço televisual.

Em outras palavras, a televisão geralista tem a vantagem de não contribuir parauma definição normativa da cultura, nem para o duplo fenômeno da inclusão e exclusãoque dele resulta, e, sobretudo, ela permite abrir lugar a outras lógicas de comunicação.Ao difundir programas culturais, a televisão geralista não pretende tratar os aspectosculturais e deixa aberta a questão de saber o que é a cultura. Além do mais, e isso éessencial, ela não estabelece uma ruptura entre os programas de vocação cultural e osoutros. Os primeiros se inserem no seio de uma programação concebida nuniíespíritode continuidade, o que, eventualmente, permite a um público ter acesso a um progra-ma em que não tinha pensado. Pois essa é a grande vantagem da televisão geralista e ofundamento do seu status democrático: ao oferecer a todo mundo uma programação

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que combina programas de naturezas diferentes, ela deixa aberta a possibilidade de seassistir a programas em que não tínhamos pensado. O acesso "por acaso" é um dos mo-dos privilegiados de acesso à televisão e uma das razões essenciais pelas quais ela é umfator de abertura. Ele é uma das grandes forças da televisão e, evidentemente, aindamais da televisão geralista, cujo leque de programas é mais largo do que o da televisãotemática. Todos já fizeram mil vezes a experiência de ligar a televisão e zapear à procu-ra de alguma coisa para se distrair, sem saber bem o quê. Esse acesso é importante paraos programas culturais, pois sabemos de antemão que o público, mesmo reclamandopor eles, deles desconfia com medo de se entediar. Se são bem feitos, bem inseridosna programação e não rotulados de culturais, têm mais chance de atrair um público apriori não interessado. É, portanto, a própria relação de liberdade com a televisão que"ligamos" e "desligamos" à vontade, que demonstra a superioridade da televisão ge-ralista e o seu caráter democrático.

A televisão geralista pode até ser menos segregadora do que a televisão cul-tural. Por exemplo, o tom de Océaniques, o estilo, as mímicas, as posturas, o ritmo, aspalavras, a maneira de falar são distintos de todos os outros programas. Se possuímos ovocabulário, estamos "por dentro", se não, ficamos "por fora", e já vimos que em matériade cultura, é fácil se sentir "por fora". A vantagem da televisão geralista é que ela sedirige ao "grande público", ou seja, a todo mundo, e essa obrigação, válida tambémpara os programas de caráter cultural, torna a televisão acessível mesmo para o públi-co que não espera por isso.

Um programa como Apostrophes* ou Ex-librís**, transposto para La Sept ouqualquer outro contexto similar, seria inteiramente diferente. Na televisão geralista, to-dos cuidam de falar para "todo mundo", enquanto na televisão temática, todos sabemque estão entre "os seus". O que é uma facilidade perigosa, pois a televisão deve res-peitar o "espectador médio" que, evidentemente, não existe, mas que é um convite àmodéstia. Se estamos num canal temático, sobretudo se ele for cultural, o efeito de"público espelho" é discriminante. Além disso, seria ilusório acreditar que o programacultural no quadro da televisão cultural seria naturalmente mais "profundo" do queaquele feito no quadro de uma transmissão de grande público da televisão geralista, poisas limitações e o estilo de imagem impõem a ambas as mesmas simplificações. A menosque admitamos, inicialmente, que não desejamos mobilizar senão o público já con-quistado, atitude que, geralmente, não é própria para uma atividade de comunicação!Por isso é que nunca poderemos enfatizar o suficiente que a força da televisão geralista

* Série de programas literários muito conhecida na França, dirigida por Bernard Pivot. (N.T.)** Programa literário de P. Poivre d'Arvor. (N.T.)

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reside na sua capacidade de atingir o público. A televisão geralista é a mais democráti-ca porque procura permanentemente atingir todo mundo. Essa ficção constitui uma re-gra de ouro da comunicação. Podemos também ampliar essa constatação afirmando quecada procedimento de comunicação se caracteriza por um modo de atingir que o dis-tingue do outro. É justamente tanto o registro em que se procura atingir quanto a na-tureza da mensagem que faz a diferença entre a televisão geralista e a temática, tor-nando a primeira, paradoxalmente, mais bem equipada do que a segunda para abordaros assuntos culturais!

Além disso, podemos facilmente constatar que a televisão geralista não esperoua chegada da televisão cultural para tratar dos fatos culturais! Desde o começo da tele-visão, principalmente na Europa, eJa procurou falar de dança, teatro, pintura, escultura,literatura, cinema e programas às vezes famosos foram produzidos em todos essesdomínios, com autores, produtores e realizadores em busca de uma linguagem que tor-nasse compatível a imagem da televisão com os assuntos culturais. Portanto, a televisãogeralista vem se defrontando há muito tempo com a questão da cultura, mesmo que jáhá vinte anos, como vimos, a tendência venha sendo a de reduzir o seu espaço.

O problema não é, portanto, fazer com que a televisão geralista admita o in-teresse de uma produção cultural, e sim mudar, de dentro para fora, a maneira de sever esses programas, a fim de valorizá-los. Ademais, os sucessos incontestáveis dos pro-gramas musicais e das óperas, das séries de retransmissões de concertos e peças deteatro, sem falar de programas literários, quando não foram prematuramente inter-rompidas, provam não apenas que a televisão geralista pode promover a cultura, mastambém que sucessos desse porte não poderiam, provavelmente, ocorrer no quadro deuma televisão cultural, justamente porque o "quadro" seria dirigido, a priorí, apenas auma parte do público.

Retornamos à característica principal da televisão: dirigindo-se a "todos os públi-cos" é que ela pode atingir melhor "todos os públicos". É o seu caráter que procuraatingir simultaneamente a dois públicos: o público geralista, desconhecido, e a con-quista do público interessado, que é preciso conservar. Podemos saber quantas pessoasassistem aos programas, mas não sabemos jamais se são as mesmas pessoas, nem, prin-cipalmente, porque os assistem, e ainda menos o que pensam ao assistir, nem o que de-les concluem. A televisão continua sendo uma atividade pouco racional no seu con-sumo. Para a cultura, a força da televisão geralista reside justamente na sua fraqueza,ou seja, no fato de não ser ela capaz de tratar nem o todo, nem o essencial da cultura.A melhor solução é, portanto, a integração dos programas culturais no seio da televisãogeralista; e pior, a instauração de uma televisão cultural que, para salvar a cultura, criaum gueto.

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Não resta dúvida de que essa diminuição do espaço dos programas culturais natelevisão geralista logo terá fim, pela razão evidente de que o próprio público se satis-faz menos com esse estreitamento da programação e reivindica outras coisas. E comoa encarniçada concorrência sobre uma base de programação mais e mais estreita nãopermite realmente fazer diferente, a idéia de ampliar a programação, principalmentecom programas de caráter cultural, irá aparecer como fator distintivo favorável no quadroda concorrência, tanto para as televisões geralistas públicas quanto para as privadas.

A cultura, anteriormente minoritária, será, ao contrário, valorizada com umefeito paradoxal inesperado. As televisões geralistas que não procuram só a audiência,com os programas culturais, mas sim uma imagem de marca, serão talvez mais ino-vadoras e originais do que a televisão cultural que, confrontada com o problema da de-manda, deverá oferecer uma programação ligada aos valores garantidos de uma identi-dade cultural! A televisão geralista será muito mais livre e poderá até mesmo se per-mitir o "esnobismo" de transmitir programas mais originais do que a televisão cultu-ral, obrigada pelo dever da rentabilidade a transmitir programas que garantam a mobi-lização de um público mais vasto. Em outras palavras, a televisão cultural terá de ado-tar valores garantidos e não valorizará, necessariamente, aquilo que é novo ou original.

Existe uma outra razão a favor da televisão geralista: a recepção aos autoresnão será pior do que nas televisões temáticas. Hoje, a acolhida que se dá a toda pro-dução de caráter intelectual é, de fato, pouco agradável na televisão geralista, e com-preendemos que os intelectuais e o mundo da cultura esperam uma melhor acolhidanum canal cultural, em princípio mais interessado em idéias. Mas não se pode garantirque seja esse o caso: a televisão cultural será evidentemente dominada pelo esnobismo,pelos grupos fechados, pelas "igrejinhas" intelectuais, pelas rivalidades. Em resumo, tu-do o que existe na televisão em geral, existirá pelo menos na mesma medida na tele-visão cultural! Os efeitos do parisianisme*', já visíveis na imprensa e na edição de livros,

-seriam aí multiplicados, exatamente na proporção do narcisismo de uma difusão maisampla.

Nada garante que a brutalidade e a consciência tranqüila do meio da televisão— fascinado com o show business, o cinema e a política — sejam mais intensos do queno meio "cultural", aparentemente motivado apenas pela busca da beleza., do verdadeiro,do justo e do original, mas que, na maior parte do tempo, perpetua os piores conformismos.Sem esquecer que o meio cultural, assim como o meio audiovisual, está, no momento,ainda fascinado pelo poder que lhe foi atribuído pelo fato de estar sob a luz dos refle-

1 "Parisianismo": as particularidades de linguagem e costumes típicos dos parisienses e que se imporiam, com uma arrogânciabairrista, a outras particularidades e costumes de outras regiões francesas. (N.T.)

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tores. Nos dois casos, mesmo que ninguém o diga, só pensamos "naquilo", ou seja, nobenefício de aparecer na televisão para, em seguida, serem reconhecidos.

Então, nada resta de uma idéia de televisão cultural? Sim, contanto que se façauma televisão cultural paga, ou seja, que se reconheça que se trata de uma televisãopara um meio particular, pouco numeroso, e, na maioria das vezes, suficientemente ri-co para poder pagar por seus programas. Afinal de contas, se existe televisão paga parao cinema e para o esporte tendo em vista um público muito mais amplo, porque nãopoderia ela aplicar-se também ao cultural, que interessa naturalmente a um públicomais estreito, mas que por nenhuma razão a priori deveria ser impedido de ter acessoa um canal temático pago, se a demanda for suficientemente grande?

As coisas assim ficariam mais claras. Para a esmagadora maioria do país, osprogramas culturais continuariam inseridos no seio da televisão geralista, à esperade que o crescimento da demanda lhes garanta um lugar de melhor qualidade doque o que tem hoje. Quanto à clientela minoritária e que demanda um consumo"superior" de produtos culturais, nada impedirá que tenha acesso a ela, desde quea demanda seja suficientemente grande para justificar economicamente uma pro-gramação paga.

Mas essas duas soluções não resolvem o problema. Falta no dispositivo audio-visual atual um lugar para uma cadeira de televisão experimental, com programas ori-ginais de todas as naturezas e não apenas culturais. Nem a televisão pública, nem, afortiori, a televisão privada podem acolher projetos de programas cuja originalidade exi-ge que sejam testados na realidade. E esses programas não são necessariamente cul-turais, mas podem ser tanto de jogos quanto de informação, variedades, cuja técnicaclássica de testar com pequenos grupos não basta para revelar com segurança o seureal interesse. Um canal de experimentação permitiria testar a sua validade. Ele en-contraria naturalmente o seu lugar não só no espaço nacional, mas também europeu e,sem dúvida, um grande número de programas hoje chamados de "culturais" pelo sim-ples fato de escaparem às classificações habituais aí encontrariam o seu campo.

Esse "canal experimental" faria com que todos encarassem as suas responsa-bilidades e poderia ser financiadotanto por fundos privados quanto públicos. A condiçãode sua eficácia dependeria da qualidade da seleção de demandas e dos meios finan-ceiros. Seria uma verdadeira arejada para o sistema audiovisual e um desafio perma-nente para a televisão que, como todas as instituições, tem a tendência de voltar-se so-bre si mesma.

Com uma presença mais forte de programas culturais no seio da televisão gera-lista pública e privada, a criação de uma televisão cultural paga e um canal de experi-mentação para programas de todos os tipos, seria possível resolver parcialmente a questão

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sempre difícil das relações entre cultura e comunicação. Sabendo-se que uma boa parteda produção cultural, como vamos ver agora, fica de fora do quadro audiovisual.

Notas ao capítulo 10

1. A literatura é imensa. Para a definição, podemos consultar o Dictionnairede Ia langue philosophique, Paris, PUF, 1982; Dictionnaire critique de Ia sociologie(culturalisme et critique), Paris, PUF, 1982; Encyclopédie Universalis (sociologie deIa culture — culture de masse — culture et civilisation); L 'univers philosophique, Paris,PUF, 1989; Lê dictionnaire dês religions, 1988 (culture et cultures — culture et reli-gion). Sobre as diferentes abordagens, ver: CASTILLO, M. Kant et l'avenir de Ia culture.Paris, Gallimard, 1989. MOSCOVICI, S. Essaisur l'histoire humaine de Ia nature. Paris,Flammarion, 1968. LÉVI-STRAUSS, Cl. Anthropologie structurale. Paris, Plon, 1968.BALLANDIER, G. & KARDINER, A. Uindividu dans sã société. Paris, Gallimard, 1969.Duffrene, M. La personalité de base. Paris, PUF, 1953. MEAD, M. L'anthropologiecomme science humaine. Paris, Payot, 1971. PARSONS, T. Eléments pour une soci-ologie de l'action. Paris, Plon, 1955. ARENDT, H. La crise de Ia culture. Paris, Gallimard,1972. BOURDIEU, P. La distinction, critique sociale dujugement. Paris, Minuit, 1979.MARCUSE, H. Culture et société. Paris, Minuit, 1979. MORIN, E. L'espritdu temps; es-sai sur Ia culture de masse. Paris, Seuil, 1962. HOGGART, R. La culture du pauvre, etudesur lê style de vie dês classes populaires en Angleterre. Paris, Minuit, 1970. KROEBER,A. L. & KLUCKHOHN, C. Culture a criticai review ofconcepts and definition. New York,Glencoe Free Press, 1952. MOLES, A. Sociodynamique de Ia culture. Paris, 1967.ROSENBERG, B. & WHiTE, D. M. Mass culture. New York, Glencoe Free Press, 1957.

2. THOMPSON, M; ELLIS, R.; WILDAVSKY, A. Cultural theory. F. A. PraegerPublisher, 1990.

3. Cf. BARNOUW, Erik. "tube of planty": The evolution of American television.New York, Oxford University Press, 1975.

4.0 artigo mais recente consagrado a La Sept, "Belle, mais toujours invisible",de A. Woodrow, no suplemento de rádio e televisão do Lê Monde, de l -2 de julho de1990, ilustra essa ambigüidade. Na página 17, ele escreve: "Se as relações franco-france-sãs são complicadas, que dizer das relações franco-alemãs? Sem relembrar a longa ges-tação do canal cultural, nem as inúmeras peripécias que retardaram o lançamento dofuturo canal franco-alemão, relembremos alguns fatos. Principalmente o problema ju-rídico (entre La Sept e os dois canais públicos alemães, ARD e ZDF, quanto à sede daestação), financeiro (cada sócio colocará 60 milhões de escudos por ano, cerca de 420milhões de francos), político (era preciso a assinatura de onze lãnder para ratificar oprojeto) e técnico (a recepção do satélite TDF1 na Alemanha exige um decodificador).

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Não podemos afirmar que o entendimento entre franceses e alemães marche com aspróprias pernas. "Os franceses e alemães têm um atavismo cultural diferente", diz pu-dicamente A. Harris para explicar o lançamento do novo canal, retomado no outonode .1991. "Depois de trinta reuniões, examinamos todos os nossos preconceitos, masdiferenças persistem. Por exemplo, a disparidade no domínio da recepção. Por que aFrança transmitiria nossos programas na Alemanha, se esta não o pode fazer, por faltade telespectadores no Hexágono?" Para Yves Jaigus (conselheiro da diretoria de La Sept)"A alquimia entre as duas culturas vai ser interessante de vivenciar. O confronto ativorende bons casamentos"... No mesmo artigo, J. Clément, P-DG de La Sept é, eviden-temente, mais otimista: "Nós nos dirigimos ao homem honesto do século XX". E quan-to à questão "E o futuro canal franco-alemão? Ele se faz esperar", ele responde: "Muitagente diz que um canal transcultural não vai dar certo, mas o interesse dos países doLeste por nosso canal prova o contrário. Todo mundo fala da Europa, nós a fazemos.Temos projetos concretos de co-produção, a idéia de fazer um jornal europeu, um ci-clo de teatro (Koltès, Shnitzleer), e a consagração do mês de julho à ópera. Todo mun-do fala da cultura européia, nós a fazemos. E visando exatamente o oposto da'TV-ver-dade' ou'TV-denúncia'. A televisão deveria ser instrumento de uma reflexão inteligenteque ofereça conhecimento do mundo ao homem honesto do século XX. Longe de sertediosa ou elitista, ela permite a democratização da cultura. Quanto à concepção doprojeto franco-alemão, isso depende dos poderes políticos. De nossa parte, estamos pron-tos a partir para Estrasburgo antes do fim do ano. A meu ver, haverá protestos se ques-tionarmos um conceito original que se tornou uma realidade inevitável. Todos os es-trangeiros se interessam por nós, até os norte-americanos! Infelizmente, esse conceito,de conteúdo muito forte, é prisioneiro de uma tecnologia que não consegue acompa-nhá-lo".

5. Pode-se ler no prospecto: "Um comitê para programas composto por per-sonalidade do mundo cultural, científico e audiovisual, acompanha a sua política decriação. Manette Bertin, Jean-Louis Binet, Pierre Boulez, Pierre Bourdieu, Jean-BernardBoulet, Véronique Cayla, Anatole Dauman, Georges Duby, Daniel Goudineau, MichelGuy, Françoise Héritier-Augé, Yves Jaigu, André Jouve, Michaèl Kustow, Jean Maheu,Florence Malraux, Andréa Melodia, Jean-Michel Meurice, Jean-Louis Prat, DanielRondeau, Eckart Stein, Claude Torracinta, Eliane Victor.

6. Ninguém levou a sério o problema da extrema dificuldade de receber LaSept por razões ao mesmo tempo políticas, econômicas, técnicas e burocráticas. É pre-ciso dizer que em junho de 1989, no momento de seu lançamento, via satélite TÒF1,o Lê Monde afirmava (1° de junho de 1989): "Apenas algumas dezenas de milharesde telespectadores recebem o canal cultural". "No total, deverão ser de 200 a 250 mil

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domicílios dotados de cabo (atualmente não passam de 78 mil) que deverão receber LaSept antes do fim do ano"... "Quanto aos telespectadores não cabeados que quiseremcaptar diretamente as imagens do satélite TDF1, eles deverão, sem dúvida... ter paciên-cia." Gastando entre 8 000 e 10 000 francos, poderão equipar-se com uma antena para-bólica de 40 a 60 cm e um decodificador. Além disso, a Thomson não fabrica mais doque mil aparelhos por mês do seu televisor com decodificador integrado. Provavelmente,menos de 100 mil domicílios poderão, ao final de 1990, receber La Sept.

7. A primeira campanha de publicidade de La Sept, na imprensa escrita (LêMonde, junho de 1.989) ilustra essa mistura de elitismo e consciência tranqüila.Durante quatro dias foram publicados desenhos, representando o diálogo de um casaldiante do aparelho de televisão, l?publicidade:"— Ainda na frente da TV? — Não.Estou assistindo a La Sept." "La Sept é um canal cultural disponível via cabo. Da suíte'Quebra Nozes' realizada por Rudolph Nureyev aos 'Chemins de Zouc', sem esquecerde 'Stella', com Melina Mercouri e 'Esperando Godot', La Sept propõe a você, atravésda sua programação, descobrir a riqueza da criação européia. Por isso é que você terátudo, menos a impressão de estar assistindo à W." 2? publicidade:"— Hoje vamosjantar na casa da mamãe. — É uma pena, porque La Sept vai apresentar os seus pro-gramas na FR3." "Esta noite você tem um encontro com La Sept na FR3. No progra-ma: uma lição de cinema por Bergman. Mesmo que você adore a sua sogra, não vaise arrepender de desmarcar o jantar." 3? publicidade: "Driiiiing — Não abra, elesvieram para assistir ao La Sept." "Para assistir ao La Sept vale qualquer pretexto: teatro,ficção, cinema, música. E como os seus vizinhos nem sempre vão querer abrir a por-ta, é melhor ter La Sept em domicílio." 4? publicidade: "O amor na França, vocêchama isso de cultura? — Quieto. Eu estou tomando nota." Por mais incrível que pos-sa parecer, La Sept é um canal cultural. De Fritz Lang a Zizi Jeanmaire, passando porLê Corbusier e Count Basie, o novo canal europeu aborda todos os assuntos, mesmoos mais inesperados.

8. Podemos ver ainda um recente depoimento de apoio sobre La Sept dado pelaCSA, em julho de 1990. Sob o título "Balanço anual dos canais públicos", no Lê Monde,de 8/9 de julho de 1990, o jornal afirma que a "CSA dirige um apelo à ordem ao PDGda Antenne 2 e da FR3" relembrando as censuras feitas pela instituição à política e àgestão de Ph. Guilhaume. Mas o tom se torna elogioso em relação a La Sept, cuja pro-gramação é considerada "de grande qualidade" e cuja política, em matéria de co-pro-dução e de programas "coloca-se à altura das ambições de um canal cultural". Ousarcriticar, em seguida, a La Sept revela seja inconsciência, seja um mínimo de capacidadepara resistir ao conformismo ambiente que reúne, na realidade, posições realmente dis-paratadas.

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9. Sobre a imagem de televisão, ver a revista Communication, Editions duSeuil, n. 15, "Análise das imagens"; n. 29: "Imagem e cultura"; n. 33: "Aprenderas mídias". Sobre a relação entre imagem e conhecimento, ver: M. Denis, Image etcognition. Paris, PUF, 1989. Richard, J. F. Lês activités mentales. Paris, Colin, 1990.

10. Cf. DAYAN, D. "Portrait du pape en voyageur". Revista Terrain, julho de1990.

11. BOURDIEU, Pierre. La distinction; critique sociale du jugement. Paris, Minuit,1979.

12. No documento de apresentação de La Sept, podemos ver a estrutura deuma grade que parece (a não ser pelas porcentagens) a de um canal geralista: docu-mentários 31%, espetáculo 21%, cinema 17%, ficção 17%, juventude 14%.

13. Lê Monde, suplemento Rádio-televisão (1-2 de julho de 1990).14. Ele desenvolve o seu projeto de ampliação da grade no mesmo artigo em

que se diz que "La Sept continuará a propor 20 horas de televisão alternativa por dia,em multitransmissão (os programas são transmitidos três vezes por dia): ficções eu-ropéias de qualidade, filmes do patrimônio mundial VO (versão original) com legendas(isso é um princípio), documentários e programas para ajudar os jovens a aprender e acompreender. Mas para renovar a estrutura de uma grade considerada ainda muito uni-forme, teremos novos programas de reflexão, como 'diálogos' que permitirão a um es-pecialista apresentar um tema e trocar opiniões com o interlocutor de sua escolha, alémde programas europeus".

15. Zé Monde diplomatique, Ia communication victime dês marchands —affairismes, information et culture de masse. Prefácio de Claude Julien. Paris, LaDécouverte/Ze Monde, 1989.

16. Cf. FRIEDMANN, G. Lês merveilleux instruments; essai sur lês Communi-cations de masse, principalmente os capítulos I, II, IV. Paris, Denoèl/Gonthiers, 1979.

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KlCultura:

os limites dacomunicação

O "número" nem sempre tem razão! Esse grito, quase sempre de desespero,lançado geração após geração pelo mundo intelectual e cultural, a respeito da culturadominante1 do momento continua hoje tão válido quanto ontem, num momento emque a criação raramente se dá sem recusa e sem contradição às idéias "essenciais", aosconformismos e ao espírito do tempo. Esse dado constante da vida intelectual e culturalé reforçado pelo triunfo da cultura de massa, portanto do número, inseparável da de-mocracia de massa e de seu principal instrumento, a televisão.

Por quê? Porque a cultura de massa, sem atribuir maior legitimidade às "idéiasmedianas" do momento, lhes atribui inevitavelmente mais espaço e maior visibilidade,ou seja, uma garantia de confusão entre visibilidade e legitimidade, que tem como re-sultado relegar ainda um pouco mais aquilo que não está dentro do "espírito do tem-po". Será que a cultura minoritária corre o risco de ser esmagada pela cultura de mas-sa2? A relação de força entre as duas culturas talvez nunca tenha sido tão difícil quan-to nestes cinqüenta anos porque, ao facilitar a emergência da cultura de massa, o mo-delo democrático não cessa de marginalizar a cultura minoritária. E isso com o melhorargumento do mundo: o progresso da democracia, a elevação do nível de vida e da ins-trução. Em resumo, a cultura do "número" instalou-se com a legitimidade da luta pelademocracia e trouxe como referência a idéia implícita de que o gosto dos públicos é obom gosto. O número, em matéria de cultura, na linha direta da luta pela democracia,tornou-se o padrão, ameaçando evidentemente qualquer outro critério, entre eles o dacultura minoritária. Operou-se um deslizamento na ordem dos critérios da cultura, coma lógica política do número — o "número democrático" — impondo-se progressiva-mente não necessariamente como critério de beleza e de verdade, mas como uma for-ma de legitimidade perturbadora dos critérios tradicionais do mundo cultural.Estabeleceu-se uma espécie de equação entre número, verdade, norma e legitimidade,depois que o ideal democrático se expandiu à cultura por intermédio da escola, da im-prensa, das publicações, e depois do rádio, do cinema e, hoje em dia, da televisão. O

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raciocínio, por analogia, produziu seus efeitos: uma democracia autêntica não é apenasuma democracia política, mas também uma democracia cultural3, quer dizer, um paísonde a maior'parte dos cidadãos possa ter acesso às obras do espírito a preço razoável.E a economia de consumo de massa, à qual pertencem tanto a imprensa quando a ediçãode livros, o cinema e a televisão, veio, no caso, em socorro de um projeto político cul-tural democrático. Ao oferecer, por intermédio de uma economia e de um consumo demassa, produtos e serviços baratos acessíveis a todos, ela permitiu que se realizasseconcretamente o ideal democrático cultural. A televisão desempenhou um papel con-siderável nesse projeto, muito bem visto por todos os que o apoiavam, tanto nos EstadosUnidos como na Europa. E se a concepção da cultura de massa era sensivelmente dife-rente dos dois lados do Atlântico, uma mesma idéia a presidiu: servir-se da televisãopara tornar mais igualitárias oportunidades culturais dos diferentes públicos.

Existe, portanto, uma complementaridade evidente entre o tema da democra-tização cultural e o da sociedade e do consumo de massa, em grande parte por analo-gia ao paradigma do mundo político da democracia. Nesse aspecto, a televisão veio ase tornar um instrumento capaz de fazer a ligação entre projeto político, projeto cul-tural e sociedade de consumo.

Mas, embora na maior parte dos países as forças político-democráticas — sobre-tudo depois da Segunda Guerra Mundial — tenham sido geralmente favoráveis à culturade massa, como projeto e como mercado, a noção sempre suscitou intensos conflitos4.

Uma parte do mundo cultural não suportou essa democratização que se tradu-ziu incontestavelmente no reforço de critérios de avaliação que confundem quantidadee qualidade, mesmo não existindo relação direta entre essas duas coisas no domíniocultural. Por outro lado, os criadores e o mundo cultural passaram a sentir-se pouco àvontade numa economia da cultura em que os critérios de rentabilidade, de acolhidapelo grande público e, naturalmente, pela imprensa, passaram a assumir um lugar con-siderável5. Se a dimensão da publicidade está ligada a um mercado cultural mais am-plo, os "produtores de cultura" nem sempre apreciaram que esse critério do númeroassumisse lugar tão preponderante.

Ao mesmo tempo, a contradição que sempre existiu mais ou menos entre omeio cultural e o restante dos públicos assumiu necessariamente dimensões maiores.Sobretudo porque a extensão do público de massa, assimilado a um parâmetrodemocrático, impôs inevitáveis regras simplificadoras. Essa defasagem estrutural en-tre o público cultural, em sentido estrito, e os outros públicos acentuou-se entãp. Omundo da cultura caiu numa contradição entre uma aspiração democrática ampla-mente aceita e a consciência mais ou menos aguda de que havia alguma coisa de in-compatível entre os critérios de gostos, de tecnicidade crítica de um público pequeno

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• CULTURA: OS LIMITES DA COMUNICAÇÃO •

ou médio e os critérios de público de massa. Essa contradição ampliou-se com a du-pla expansão do volume de obras culturais produzidas e de sua "circulação". Lembrarque ò número nem sempre tem razão passou a significar, em meio século, uma espé-cie de ponto de ligação do mundo cultural e intelectual. O problema remonta menosàs vantagens que os meios, culturais extraíram dessa transformação do que à questãoessencial de saber quem detém — por que e como — os critérios de avaliação da vi-da intelectual e cultural. Não, o verdadeiro, o justo, o belo, o falso jamais dependerãodo número! Além disso, a grande maioria dos trabalhos intelectuais realizados sobreo papel ou o impacto do rádio, e, depois, da televisão na democracia de massa foi,nesse sentido, particularmente severa.

Portanto, era normal que no momento em que o número triunfasse na tele-visão, a questão do seu aspecto democrático, e também da sua dimensão dominante,fosse colocada com mais força. E se a televisão cultural beneficia-se hoje de um tal fa-vor, isso se deve, sem dúvida, à causa básica dessa relação de força entre cultura deelite e cultura de massa: ela é vista corno o .principal meio de salvar a cultura que nãoseja de grande público. Mas para compreender o consenso de intelectuais em favor datelevisão cultural, é preciso ir mais longe e tomar consciência de que, se o mundo cul-tural finalmente aceita essa lógica midiática — quer se chame ela cultura ou grandepúblico — é porque as suas próprias regras de comunicação se esfacelaram. Em outraspalavras, em virtude da identidade, da legitimidade e, conseqüentemente, dos modosde comunicação próprios às diferentes comunidades intelectuais e culturais estarem emcrise atualmente é que estas aceitam, ou até reivindicam, um modo de comunicaçãomidiático. Mesmo que a televisão, sob forma geralista ou fragmentada, seja, na reali-dade, pouco adaptada à produção cultural e intelectual em geral. A televisão culturalaponta, então, tanto ao abandono de um certo projeto democrático, ligado à comuni-cação de massa, quanto ao enfraquecimento dos princípios de identidade e de comu-nicação das comunidades culturais. A personalização e individualização que se encon-tram na origem da lógica midiática simbolizam essa crise de identidade do meio cul-tural, no qual os valores de auto-referência e de autocontrole do grupo desapareceramem proveito de uma avaliação mais e mais individual do trabalho.

Não foram o rádio e a televisão que criaram o individualismo6 triunfante nodomínio cultural, uma vez que o processo existia antes deles, embora eles o tenhamampliado! O "individualismo midiático" é o encontro entre a lógica do cada vez maisindividual do mundo cultural e a lógica individual das mídias.

Quais são hoje os limites da comunicação cultural numa sociedade que con-sidera que tudo pode ser comunicado? Será preciso aproximar um pouco mais os dois,ou, ao contrário, aprofundar aquilo que separa a lógica da cultura da lógica da comu-

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nicação? É sobre esse desafio fundamental e sobre as soluções que podemos trazer aele que encerraremos este capítulo.

A relação de força: cultura de elite — cultura de massa

A idéia de televisão cultural é uma vingança do meio cultural e intelectual con-tra as decepções, as vergonhas, às vezes as injustiças que sofreu por parte do mundo datelevisão, que se serviu, mais de uma vez, da legitimidade do "grande público" para re-cusar projetos, afastar autores e idéias. Os intelectuais, que não são jamais indivíduosfrágeis, isolados, foram inexoravelmente excluídos de uma lógica da comunicação quenão tinha o que fazer com indivíduos "complicados" que sempre se explicavam demais"procurando pêlo em ovo".

A vingança dos intelectuaisA televisão cultural representa um hábil "contra-ataque" na relação de força

entre a cultura de elite e a cultura de massa, porque enfatiza a cultura — sempre va-lorizada numa sociedade e sobre a qual, todos sabem, as mídias não são especialistas!O ataque foi desfechado contra o ponto fraco da televisão: ela pode ter o número, mas,ao contrário do que sempre afirmou, nem sempre tem a legitimidade, sobretudo emdomínios como a cultura. Nesse caso, menos do que em outros, a relação entre au-diência e qualidade não é direta. O problema importante é menos o da televisão cul-tural do que o do status da cultura de "elite" na sua relação de força com a cultura demassa. Se tomarmos essa grade de leitura, esclarecemos três fenômenos.

O primeiro é que a televisão cultural torna-se, enfim, a vingança dos especialis-tas do "conteúdo" contra os geralistas da "comunicação". O inconveniente maior da tele-visão geralista é justamente o de ser feita por geralistas da comunicação que procuramcompensar o seu parco conhecimento dos assuntos por um savoir-faire midiático — porsinal indiscutível, a maior parte das vezes. Em compensação, os geralistas da comunicaçãonão percebem a perda de "definição" resultante de uma mensagem que, para ser pedagó-gica e clara, muitas vezes perde toda originalidade, sobretudo no domínio cultural.

Ceder a comunicação da cultura àqueles que lhe são mais próximos não é, por-tanto, necessariamente um inconveniente, ainda mais que esses especialistas, contraria-mente ao que continuam afirmando numerosos produtores e responsáveis pela toma-da de decisões do setor audiovisual, aprenderam, ao longo de trinta anos, a se expri-mirem pelo rádio e pela televisão, enquanto, ao mesmo tempo, o setor "cultura" dasmídias permanecia dramaticamente subdesenvolvido. Continua sendo o setor onde faze-mos se iniciarem os estagiários, porque, para trabalhar nesses domínios, "não precisaser especialista"! Cultura, todo mundo pode fazer! "Principalmente", acrescentemos,

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"quando se vê o nível de generalidade com que a televisão a trata..." Não houve, por-tanto, nenhum esforço para tratar melhor a cultura, foi mesmo o contrário que se deunuma sociedade onde outros domínios de atividades, como a ciência e a técnica, sãoobjeto de uma atenção particular. É o mesmo caso da saúde e da medicina, da religião,das forças armadas, da política, evidentemente, e, muitas vezes, do ensino. Ninguémaceitaria que a medicina, as forças armadas ou a política fossem tratadas pelo últimodos estagiários. Só a cultura recebe esse tratamento semelhante ao que se concede àsvariedades, sob o pretexto de que é o que lhe basta, pois não há necessidade de ser es-pecialista para se manifestar. E assim vemos, em geral no fundo das salas de redação,reunirem-se os "especialistas" em variedades e cultura, enquanto reinam na primeiralinha os especialistas nos problemas sérios da política, da economia e das relações in-ternacionais! Compreendemos que os intelectuais e os profissionais da cultura tenhamassim a primeira chance que lhes é oferecida para sair do desastre.

A segunda razão que demonstra a importância da dimensão da relação de forçana criação de uma televisão cultural é a da eficácia. Intuitivamente, todo mundo sabemuito bem que esse não é o melhor'meio de tornar a cultura acessível ao grande públi-co. Em compensação, talvez seja o melhor caminho para o meio cultural e intelectualconquistar um outro lugar no mundo audiovisual. Se a única questão fosse a da eficá-cia, seria necessário ampliar o que existe há quarenta anos, isto é, uma luta no interiordos canais geralistas. Criar um canal significa, evidentemente, uma tomada de atitudenum contexto de relação de força.

O terceiro argumento em favor da tese da relação de força vem da resposta àpergunta: por que os intelectuais, que sempre se ressentiram da incapacidade da tele-visão em tratar do fato cultural, decidiram, eles próprios, fazer uma televisão cultural?Não seria para se aproveitarem, eles próprios — e por que não? — da influência queesta pode obter?

Aqui encontramos toda a ambivalência dos intelectuais em relação à televisãoe à imagem. Eles hoje estão contentes porque dispõem da "sua" televisão, gerada se-gundo os "seus" valores e os "seus" interesses, sem ter de, de acordo com o seu pon-to de vista, fazer concessões à televisão geralista por criarem a televisão cultural "àmargem dela". Eles acreditam que o espectador demanda uma mensagem mais cons-truída e sem concessão ao reino da imagem-espetáculo. Realizar programas em que oaspecto plástico nem sempre é o argumento central é uma vingança à tirania da ima-gem. O meio cultural e intelectual não gosta muito da imagem e podemos, sem malí-cia, levantar a hipótese de que não está descontente por conceber uma televisão menosespetacular, até um pouco tediosa, esperando que ainda assim ela seja assistida, porquea sua força virá não do espetáculo das imagens, mas do seu conteúdo.

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Cultura de massa ou cultura média?Na relação de força entre as duas culturas, a hipótese que sustenta a televisão

cultural é a de que ela é o melhor meio para defender a cultura minoritária, ameaçadapela televisão e pela cultura de massa. Mas o problema coloca-se ainda nesses termos?Parece inegável que há oposição entre as duas formas de cultura, mas essas culturas en-contram-se sob o título de "elite" e de "massa"? Será sempre necessário conservar umtítulo laudatório para a primeira e geralmente pejorativo para a segunda?

A idéia e a realidade da cultura de massa são, como vimos, uma conquista dademocracia cujos limites são percebidos ainda hoje. E criticar muito radicalmente a culturade massa é também colocar em questão os princípios da nossa democracia, também demassa, dominada pelo reino do grande número. Foi preciso tanto tempo para passar dademocracia de desigualdades — censitária, pertencente a uma única parte da população— para uma democracia igualitária, com os evidentes problemas disso decorrentes, quehoje em dia é necessário relembrar o que a cultura de massa deve à democracia de massa.

Mas tratar-se-á ainda de uma cultura de massa? Será que não se trata, agora,de uma cultura média7, à qual todo mundo pertenceria, inclusive a própria elite cul-tural por intermédio, justamente, da televisão? O efeito paradoxal da televisão de mas-sa não terá sido reaproximar um pouco todas as formas de cultura pelo simples fato defazê-las conviver lado a lado? Encontrar, através da grade de programas, uma boa partede cultura, mesmo que todo mundo só esteja interessado numa parte, resulta numa es-pécie de aproximação. E como o meio das mídias se transformou um pouco em conta-to com esses diferentes públicos, já não é mais tão certo assim que a televisão conti-nue sendo hoje o instrumento da cultura de massa. Ela seguiu o movimento de "abur-guesamento" da sociedade e estaria mais próxima de uma cultura média, no sentidoem que todo mundo nela se encontra em parte. Além disso, não é certo que a televisãoseja, hoje, realmente "popular", como o foi a imprensa escrita e como o rádio o é ho-je. Decerto existem hoje programas populares com jogos, variedades, certos filmes, mas,no conjunto, o modelo cultural da televisão i mais o de uma sociedade de cultura mé-dia do que o de uma sociedade de massa. A televisão segue um modelo terciário que émais operário ou camponês, pertencente às grandes cidades e às suas periferias do queàs cidades médias ou ao campo. Nesse sentido, ela ilustra a tendência já observada nasindústrias de consumo de massa, como o comércio ou o automóvel: as indústrias deconsumo de massa nivelam-se não por baixo, mas puxam para cima, para um modelode classe média, e mais, de classe média superior. Se comparamos hoje os produtos ven-didos na área de alimentação, assim como da não-alimentação nas lojas da Monoprixou Prisuniç, com os produtos que eram aí vendidos há trinta anos, as mudanças sãoradicais. Passamos de um modelo de consumo de massa para um modelo de elitismo

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de massa. Podemos ver as conseqüências disso no modo de vida e de lazer, no habitaie no comportamento político. Esse movimento não deixa de colocar graves problemas,como vemos na Europa do Norte, onde o ideal socialdemocrata, fortemente ligado aesse modelo de classe média, mais dominante do que na Europa, vem acompanhadodo risco de um fenômeno de "aplainamento" das diferenças e de um nivelamento, emnome da lei do grande número, cujos efeitos perversos podemos perceber.

Esse problema se coloca tanto para a cultura quanto para todas as outras ativi-dades, mas o que eu queria dizer é que, antes de denunciar a tirania da cultura média8,é preciso dar-se conta de que ela substituiu, em grande parte, àquilo a que chamamosde cultura de massa, e que na aparição da cultura média, a televisão desempenhou pa-pel essencial. Hoje, existe mais uma fragmentação entre as culturas: cultura popular,de grande público, técnica, de elite, média. O todo, sob a égide de um padrão que é,antes, o da cultura média, por intermédio de um instrumento, a televisão, que pareceser sem dúvida muito mais o seu instrumento do que o da cultura de massa.

Por que essa digressão pela cultura média e qual a relação com a crítica que os meiosculturais fazem à televisão? Porque estes se enganam de. época. E de adversário. Eles sebatem contra um nivelamento por baixo e uma exclusão da qual seriam objeto, enquanto,na verdade, estão confrontados com um modelo "classe média" do qual fazem parte inte-grante. Isso não significa a ausência de problemas entre as diferentes formas de cultura, masum deslocamento do ângulo da crítica: o limite principal da televisão cultural é que ela sebate contra um inimigo que não existe mais! Ela está, na verdade, confrontada com um pro-blema mais complicado de convivência das formas de cultura no seio de um espaço sociale cultural que se torna simultaneamente mais integrado e mais fracionado.

Existe, portanto, nessa perpetuação de uma análise crítica contra a cultura de mas-sa um erro de apreciação e, no fim das contas, um meio de continuar a manter uma dis-tinção entre a "elite" e a "massa", que tem menos razão de ser. O problema é menos sal-var a cultura de elite, ameaçada por um nivelamento por baixo, do que situar ò lugar e opapel desta numa sociedade onde o modelo cultural se ampliou graças, notadamente, à tele-visão. A questão é, antes, saber como organizar a convivência de diversos modelos de cul-turas cujo risco, como vimos, é o da segmentação e da estrita convivência indiferendáda.

A principal crítica que poderíamos fazer à televisão cultural é, portanto, que elase engana de época e de inimigo e que não chega a nenhuma solução do problema atual,que é o de preservar uma cultura que não está voltada para o grande público no coraçãodo reinado de uma cultura média. Trata-se menos de se engajar numa "luta de culturas"(por analogia a uma luta de classes) para a qual a televisão tipo "apartheid cultural" seria,talvez, mais bem adaptada, do que manter a presença de uma legitimidade outra que amidiática no universo cultural geralmente cortado e influenciado pelo modelo televisual.

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Fazer duas televisões teria sido mais significativo há quarenta anos, como quepara marcar imediatamente a diferença, mas sabemos que os pioneiros, procurandoaproximar mais as culturas usando a televisão, fizeram a escolha inversa. Existe, por-tanto, algum paradoxo em querer fazê-lo trinta anos mais tarde, quando o problema éoutro. Mais uma vez, preparamos a guerra passada...

A cultura seduzida pelo individualismo midiático

Não existe no mundo cultural mais unidade do que no mundo intelec-tual. Portanto, é por comodidade de linguagem para argumentação que as palavras"meio cultural" e "intelectual" são utilizadas neste capítulo e nos outros. Existem,com efeito, profundas diferenças de status, de hierarquias, de natureza de ativi-dades tanto no seio do mundo cultural quanto no mundo intelectual, como bemdemonstra a análise sociológica desses dois meios. Isso não impede que, além dasdiferenças, reste um certo número de pontos comuns, de atitudes ligadas à naturezado trabalho e ao modo de comunicação com o exterior. Podemos depreender qua-tro grandes categorias de comportamento em relação às mídias, que não esgotamas relações entre mundo intelectual e cultural e a comunicação, mas têm o méritode abranger a maior parte dos comportamentos relativos à televisão. Por falta deespaço, a primeira atitude é que será mais explicitada, porque ela é, no momento,a mais visível.

O primeiro grupo é o dos intelectuais midiáticos e de seus primos, os tec-nocratas midiáticos. Eles decidiram utilizar as mídias de maneira racional e sistemáti-ca, tanto quanto utilizam o rádio e a imprensa escrita. Alguns reconhecem o caráter sis-temático dessa atitude, outros dão a impressão de achá-la natural.

O segundo grupo, o dos intelectuais estrategistas, é, sem dúvida, mais recente.Ele reúne os intelectuais mais jovens que, mesmo criticando a televisão e dando a im-pressão de não se interessar por ela, desejam encontrar nela o seu lugar — talvez a ca-da dia mais — não por amor à cultura média e à televisão, mas sim, como o primeirogrupo, para através dela aumentar a sua zona de influência.

O terceiro grupo é o dos intelectuais usuários das mídias a que recorrem quan-do a ocasião exige, conscientes do papel que a televisão ocupa no espaço público hojeem dia. Mas não fazem dela uma prioridade da sua atividade.

O quarto grupo, que agrupa de longe a maior parte dos profissionais da culturae da vida intelectual, é o dos intelectuais anônimos, porque se mantêm à distância datelevisão. Seja porque os trabalhos em que se empenham não os colocam em cena, se-ja porque não lhes solicitamos nada, seja porque não ousam, seja porque não se en-contrem nesse espaço de comunicação e legitimidade.

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O que é que mais vemos, na televisão, da cultura e da vida intelectual? Umcerto número de pessoas batizadas de "intelectuais" pelas mídias e que, em número deuma vintena por país, se tomam os "representantes do mundo da cultura, da pesquisa,da universidade". Essas personalidades se expressam sobre um grande número de as-suntos, muito além do seu domínio inicial de competência, respondem às solicitaçõese acabam se tornando "representantes midiáticos do mundo da cultura". Mas existeuma grande desproporção entre os dois processos: de um lado, o pequeno número de"intelectuais" onipresentes que, por um efeito mecânico, se tornam coqueluches e oshomens que "pensam sobre tudo" da televisão, das rádios e da imprensa semanal; dooutro lado, a extrema diversidade de assuntos sobre os quais eles se manifestam. A des-proporção é também real entre esse pequeno número e o grande número de especia-listas inteiramente capazes de "falar com clareza, em menos de três minutos" sobre as-suntos importantes, mas que jamais são convidados! Ocorre aí uma confusão de talen-tos, enquanto, ao mesmo tempo, as mídias reclamam não conseguir encontrar outrosinterlocutores. Tudo isso com uma leviandade e indiferença que deixa o meio culturalfurioso e alimenta a sua hostilidade com as mídias. Os intelectuais midiáücos não exis-tem, é fato, senão por acordo com os profissionais da comunicação. Não que estes de-sejem apelar sistematicamente aos mesmos intelectuais, mas como esses são conheci-dos e sabemos que conseguem falar com brevidade e clareza, por que não usá-los?Mesmo que existam especialistas que possamos mobilizar e que morrem de raiva denão serem mais solicitados. O argumento utilizado pelas mídias, de que a maior partedos intelectuais não sabe se exprimir com clareza nas mídias, é derrisório: estes nãosão, de fato, nem mais burros, nem menos dotados do que as estrelas do esporte, doshow business e da política que aprenderam a se expressar no rádio e na televisãoporque foram convidados a fazê-lo.

Há um outro grupo, primo dos intelectuais midiáticos, menos numeroso, e quepoderá, um dia, concorrer com eles, que é o dos "tecnocratas intelectuais". Eles fasci-nam os jornalistas menos pelo seu conhecimento do "discurso filosófico sintético" doque pela "aliança" entre inteligência, poder e idéias. O seu sucesso vem do fato de teremvencido, há vinte e cinco anos, algum concurso, e se distinguirem agora no mundo dapolítica, ou, melhor ainda, no mundo dos negócios. Como se nos esquecêssemos deque, desde o começo do capitalismo, existe uma tradição de ter intelectuais no mundodos negócios e da política. Nada disso é novidade. A maior novidade, e nisso é que elesvieram a substituir os romancistas do começo do século XX, é que eles se servem dasua competência técnica para proferir discursos sintéticos e definitivos sobre a evoluçãoda sociedade. E como é próprio dos tecnocratas não ter dúvidas, os jornalistas ficamainda mais sujeitos a eles quando têm um pouquinho de poder. Os intelectuais e os tec-

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nocratas midiáticos exibem uma segurança e uma serenidade que nenhum político ou-sa mais demonstrar. É o mundo todo ao contrário. Conselheiros de príncipes ousemi-agentes, gozam de uma liberdade de palavra de que os agentes realmente respon-sáveis já não gozam mais, e como são próximos ao poder, acabam ouvidos como orácu-los, tornando um tanto brando o discurso muitas vezes mais matizado dos intelectuaisou peritos. Frases curtas, explicações definitivas, retrospectivas e prospectivas, e aí temospensamentos adaptados à lógica das mídias. Os intelectuais midiáticos são, muitas vezes,filósofos, ou, pelo menos, se exibem como tal. Por certo esses filósofos nem sempre têmgrande relação com o restante da profissão, mas anunciam muito à vontade essa qua-lificação, o que não deve agradar muito aos seus queridos colegas.

A sociedade de comunicação tem nos filósofos midiáticos e nos tecnocratasmidiáticos os arautos que pensam e falam utilizando as leis da comunicação9: idéias cur-tas, ligeiramente paradoxais em relação ao discurso do momento, sintéticas, facilmentememorizáveis e que dão a impressão, a quem as repete, de ter entendido tudo e não sero último dos idiotas... Uma consciência permanentemente tranqüila, a ausência de dúvi-da sobre a capacidade de dizer qualquer coisa sobre tudo, tom competente, muitas vezesalarmista e crítico a fim de provocar no público a sensação de pertencer a um conjuntomais lúcido e clarividente do que o comum dos mortais. A maneira como esses dois gru-pôs se situam e se exprimem sempre me faz pensar na frase que Raymond Aron pronun-ciou no fim da sua vida, como forma de evitar a todos que lhe pediam insistentementeuma análise e um julgamento: "Não sou a consciência universal". Todos sabemos que es-sã modéstia da inteligência e essa distância crítica não são compartilhadas por aqueles que,ao longo de trinta anos, erigiram-se em pensadores e críticos da sociedade midiática.

O paradoxo é que esse pequeno número de peritos "intelectuais midiáticos" eseus satélites, os "tecnocratas intelectuais", de que a França continua sendo o primeiroprodutor e exportador mundial, professa a maior parte das vezes juízos severos sobre asmídias de massa, denunciando suas irresponsabilidades no emburrecimento geral! O que,evidentemente, não impede as mídias de apelarem regularmente a eles, como que pormasoquismo, uma vez que os jornalistas jamais suportariam serem assim desqualificadospor qualquer outra profissão. Por que as mídias têm, no conjunto, esse comportamento?A resposta encontra-se na relação de força que existe entre elas e o mundo da cultura eda universidade, pois as mídias promovem principalmente dois tipos de universitários.

O primeiro grupo é constituído, como vimos, pelos "intelectuais midiáticos", queem sua grande maioria não pertencem ao mundo acadêmico. É um pouco como se as mí-dias criassem o seu próprio sistema de legitimidade, não escolhendo necessariamente co-mo interlocutores os representantes reconhecidos do mundo acadêmico, mas sim os indi-víduos um pouco marginais a que elas distinguem colocando-lhes o "rótulo" de "intelec-

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tuais"10. O fato de que processo irrita a maioria dos outros profissionais do mundo nãoacadêmico não desagrada aos profissionais das mídias, pois eles sabem muito bem que to-dos'aceitarão qualquer humilhação quando desejarem tornar público o seu trabalho.

O segundo grupo, ao contrário, é constituído por personalidades de uma certaidade, reconhecidas e consagradas pelo mundo acadêmico, e com as quais as mídias nãoarriscam nada. As mídias sempre adoraram os "velhos intelectuais" e as personalidadesvelhas do mundo cultural, sobretudo se são desconhecidas do grande público, o que dáàs mídias o papel de descobridoras... Foram assim "descobertos" Dumézil e Gracq, Greene Ricoeur*. Sem que as mídias jamais se perguntassem se não seria delas uma parte daresponsabilidade pelo fato de que essas respeitáveis personalidades, apesar do seu "imen-so talento", tivessem permanecido tanto tempo ignoradas pelo grande público! Em re-sumo, as mídias adoram essas personalidades desconhecidas e o seu comentário1^ res-peito delas é sempre o mesmo: "Esse homem ou essa mulher que, apartado do mundo,consagrou a sua vida austera à cultura e ao conhecimento..." A homenagem é, em ge-ral, tão ditirâmbica quanto inconseqüente: essas personalidades são esquecidas com amesma velocidade com que foram tardiamente levadas à luz dos refletores!

Esses são, de forma geral, os dois perfis de intelectuais com que as mídias dia-logam, sempre repetindo sem cessar que "é absolutamente indispensável conhecer me-lhor o mundo cultural, ampliar o círculo dos seus interlocutores, pois trata-se de ummeio apaixonante e tão rico de personalidades excepcionais".

É de se notar, entretanto, que os jornalistas, produtores e programadores empe-nham-se menos em "arrancar dos seus nichos" e valorizar os "jovens talentos" do mundocultural e intelectual do que o fazem com os jovens talentos da política, do esporte e doshow business. Dá para compreender, diante dessas condições, por que certo número deintelectuais acredita ter encontrado a solução para esse grave desequilíbrio fazendo a "sua"própria televisão, mesmo que, como vimos, esta não venha a ser isenta de sectarismos.

Se olharmos agora pelo lado das disciplinas, duas dentre elas são particular-mente favorecidas pela televisão: a filosofia e a história. A filosofia porque o filósofo re-presenta, para o jornalista e homem de mídia em geral, o "saber dos saberes", aquintessência do ideal de pureza e conhecimento, mesmo que todo mundo saiba quea história da filosofia é permeada pelos mesmos ódios que a história dos engenheirosde logradouros públicos ou da HEC**! Mas no imaginário popular, e no das mídias emparticular, os filósofos são puros, e até mesmo os únicos puros! Investidos do papel de

* Georges Dumézil, Julien Gracq, Julien Green e Paul Ricoeur. (N.T.)** HEC (École dês Hautes Études Commerciales): A Escola de Altos Estudos Comerciais é a escola de comércio de maior

reputação na França. (N.T.)

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"sujeitos que devem saber" por jornalistas que não os desmentem nessa área, gozamde um status que parece um pouco o dos romancistas da imprensa escrita entre as duasguerras. A figura mestra é aquela do filósofo midiático pessimista, radical e crítico, anun-ciando para amanhã, senão para hoje mesmo, um universo catastrófico, dominado pe-lo ódio, pela bestialidade, pelos interesses, pelas contradições. Os filósofos são os maisnumerosos nessa categoria, mas podem, às vezes, virem juntar-se a eles alguns soció-logos, membros de não importa qual disciplina das ciências sociais, contanto que aotomar a palavra falem de maneira clara, definitiva, curta e sem apelar a problemas com-plicados. Vantagem? Dar, em poucas palavras, uma visão completa do mundo, acimado discurso parcial das outras disciplinas. Recorrer ao filósofo, ou a qualquer outro dis-curso que se pretenda sintético, significa economizar tempo. Que esse discurso seja pes-simista é coisa que não surpreende ninguém, pois todo o mundo sabe que o mundo vaimesmo de mal a pior. O filósofo moderno, crítico e desesperançado, e os seus colegasde disciplinas vizinhas, clamando o seu pessimismo pelos quatro cantos da terra, decolóquio em colóquio, merecem nitidamente mais crédito do que, por exemplo, umapersonalidade moral. A perda de influência e prestígio das Igrejas é muito esclarecedo-

• rã nesse caso. Antigamente, seu discurso era confortavelmente maniqueísta, mas foise tornando mais complicado, atravancado por nuanças, distante da política... E essareferência à escatologia e à transcendência ficou um pouco tediosa numa cultura quemergulha hoje na laicidade e na liberdade sem peias. Em resumo, em matéria de saberdefinitivo, o discurso da Igreja é vagamente ultrapassado e de menor performance.

Resta uma outra categoria, a dos "sábios universais", que por vezes desempe-nham, desde o século XIX, um papel importante. Mas eles ficam mais e mais prudentese aceitam com menor facilidade o papel de Cassandra ou de profeta que estamos pron-tos a fazê-los desempenhar. Talvez porque a experiência histórica seja, no momento,mais modesta, talvez porque autocontrole do meio científico forneça ainda alguns freios.Não, o melhor investimento continua sendo o filósofo ou seu colega sociólogo ou psi-canalista, sobretudo se são críticos, competentes sobre o presente e sobre o futuro, es-clarecidos sobre o passado, alarmistas, mas lúcidos, visionários e interessados...

Outra figura privilegiada é a do historiador. História e televisão sempre deramuma boa mistura, visto que a televisão contribui diretamente para a construção da memória1'de nossas sociedades, e jamais poderemos enfatizar o suficiente a contribuição extrema-mente positiva da história para a cultura média, o que"se pode perceber tão bem na tele-visão quanto na edição de livros e na imprensa. Por que a atração pelos historiadores? Porque a história é um instrumento útil para falar indiretamente do presente. A reíativizaçãoe a complexidade, que a televisão tem dificuldade em aceitar no discurso das ciências so-ciais, passam muito melhor na atitude "do historiador. Além disso, os historiadores têm

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uma certa prudência nas suas conclusões e não fazem concorrência ao homem da mídia,ao contrário do especialista. Afinal, a história se presta tão bem ao tratamento pela ima-gem. A filosofia para o futuro e o discurso histórico para o passado, com um olhar indire-to, pitoresco, se possível, sobre o presente, são o melhor coquetel audiovisual.

Existem duas outras profissões que se beneficiam de simpatia: a dos médicos,cuja preocupação, ou seja, -a doença e a morte, explica o evidente interesse que todoslhe dedicam, e o grupo dos "sábios", essa mistura de grandes profissionais que encar-nam as ciências mais do que o conhecimento e de que tanto precisamos para o futuro.O drama dos cientistas é que eles são, quase sempre, menos engraçados do que os his-toriadores e menos sedutores do que os filósofos e outros intelectuais. São rapidamentetragados pelo discurso técnico e têm dificuldade em se manter no nível de um discur-so geral. Além disso, esperamos deles outra coisa: o discurso do intelectual midiáticopode ser radical, geral e pessimista, mas o discurso do cientista deve ser sempre precisoe otimista, porque a ciência continua sendo o nosso único valor estável. Portanto, nãogostamos de ficar francamente inquietos sobre o futuro técnico e científico com o qualtodos nós contamos com confiança!

Os dois grupos profissionais que, incontestavelmente, desfrutam de menos fa-vor das mídias são o da cultura em sentido amplo e o das ciências sociais. O mundo dacultura (pintura, escultura, música, dança), porque, em geral, esses artistas não têm muitoo que falar a não ser sobre a sua própria produção, com exceção, sem dúvida, do grupodos literatos que, ao contar sua própria história, junta as histórias de todo mundo. O es-critor fala do universal humano de uma maneira que permite a identificação. Ele é umoutro nós-mesmos que consegue expressar melhor o que a maioria só vive e sente.

Quanto às ciências sociais (economia, sociologia, psicologia, ciências políticas),são em seu conjunto o primo pobre. Inicialmente, porque o seu discurso é quase sem-pre muito estreito, e a sua prudência em generalizar conclusões, que já parecem bas-tante parciais, é uma limitação real diante de jornalistas que querem respostas simplespara questões complicadas: "Onde estão as classes sociais?", "Qual é o futuro da demo-cracia?", "O comunismo acabou mesmo?". E tudo isso em um minuto e trinta... Quandonão é: "Qual o futuro da religião?"... Em segundo lugar, porque o seu discurso é, emgeral, muito técnico, "internalista" como se diria em filosofia das ciências, ilustrandoa maior parte das vezes a crítica clássica que se faz aos intelectuais, de não serem ca-pazes de falar com clareza. É preciso que se diga, a respeito dos pesquisadores das ciên-cias sociais, que o seu jargão é sempre uma barreira intransponível que nem semprejustifica a pretendida tecnicidade do discurso, uma vez que o comportamento dos his-toriadores prova, regularmente, que erudição e discurso compreensível não têm nadade incompatível! O jargão também é resultado de uma pressão social insuficiente, pois

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as ciências sociais têm a sensação de que nem os políticos, nem os tecnocratas, nem omundo econômico, nem mesmo os jornalistas estão interessados no que ela faz. O quenão deixa de ser verdade... As ciências sociais encontram-se, de fato, num status in-cômodo, pois a sua espetacular expansão, em meio século, não ampliou a sua utiliza-ção nem aumentou a sua legitimidade. Gostaríamos que elas fornecessem imediata-mente respostas claras aos problemas complicados que surgem na atualidade, quandoa lógica do conhecimento nem sempre é isomorfa em relação à lógica do acontecimento.Além disso, trata-se de profissões que parecem menos prestigiosas do que a dos filóso-fos e historiadores, porque "patinam" no concreto 'de uma realidade histórica e são, àsvezes, consideradas inúteis ou então não muito diversas da competência dos jornalis-tas e, portanto, capazes de lhes fazer uma semiconcorrência. Portanto, talvez sejam asdisciplinas mais complementares da imprensa, o que devia facilitar uma interação en-riquecedora e nada ameaçadora para a especificidade de cada discurso.

As duas disciplinas saídas das ciências sociais, cuja assistência os profissionaisdas mídias aceitam com maior facilidade, são a economia e a ciência política. Talvezpor causa da tecnicidade das cifras, os jornalistas compartilhem a idéia comum de queo número é sempre uma informação mais objetiva... Mas as outras disciplinas de tipoexplicativo ou compreensivo, como a geografia, a sociologia, a demõgrafia, a antropolo-gia, só são mobilizadas muito de vez em quando, em casos de "crises graves", para ex-plicar um acontecimento inesperado... No resto do tempo, o seu status de "discurso"desprovido do apoio sistemático de estatísticas as faz parecerem bem mais frágeis, gene-ralizadoras demais ou técnicas demais para conseguir mobilizar a curiosidade duradouradas mídias.

A cultura no espaço público midiatízadoA questão essencial é, portanto, não tanto o triunfo da cultura média, com a des-

valorização da cultura minoritária que dela decorreu ao longo de meio século, como o pro-gressivo esfacelamento da comunidade intelectual e cultural, e, mais em geral, o esfacela-mento das comunidades intermediárias, dando a sensação de que, na sociedade de massa,a única coisa que continua existindo entre o indivíduo e a sociedade é o laço da televisão.

Este é o verdadeiro problema, a degradação do funcionamento de comunidadesintermediárias — mundo acadêmico, religioso, científico, cultural — mascarado e ace-lerado pelo crescimento das mídias de massa. Existe certamente uma relação entre asduas coisas: o esfacelamento dos modos de legitimidade e de valorização interna nas co-munidades intermediárias é acelerado pela emergência e formidável sucesso das mídiasde massa. Mas no plano da análise, são dois fenômenos relativamente independentes, ofenômeno visível — triunfo da televisão de massa — dissimulando o outro, o esfacela-

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mento dos critérios de validade e legitimidade internas das comunidades12. Existe tam-bém o fato de que as mídias foram tomadas como bode expiatório da degradação do fun-cionamento das comunidades parciais, cuja qualidade, de resto, não deve ser retrospec-tivamente exagerada. Na verdade, o esfacelamento de valores de legitimidade e os re-conhecimentos internos às diferentes comunidades não datam de ontem.

Antigamente, um professor, um médico, um arquiteto, um padre, pertenciama um universo profissional e cultural que dispunha de seu sistema de legitimidade, dereconhecimento e de comunicação definido primeiramente por essa filiação. O que nãoos impedia de estarem, ao mesmo tempo, no espaço público. Mas os dois espaços, delegitimidade e de comunicação, eram separados. A maioria das profissões e, além de-las, dos meios culturais, estava interessada em garantir a sua comunicação dentro dasfronteiras do seu próprio meio antes de garanti-la no espaço público. Havia, portanto,convivência de regras de legitimidade e de comunicação. É claro que ainda hoje as re-gras de legitimidade continuam regidas pelas diversas comunidades parciais, mas o ver-dadeiro espaço de valorização se tornou o espaço público, ou seja, o espaço gerado pelalei do indivíduo e das mídias. A perda de autonomia e de credibilidade das legitimidadesparciais reforçam o peso da lógica midiática.

Essa questão básica do papel e do status da comunidade profissional ou cul-tural e de suas regras próprias de validação, de legitimidade e de comunicação, ultra-passa geralmente o círculo dos intelectuais. Ela concerne ao mundo da cultura em sen-tido amplo, o mundo do ensino, da religião, da medicina, da ciência, ou seja, as co-munidades profissionais ou éticas que, mesmo pertencendo ao espaço público, há muitodispõem de regras internas de validação fornecendo-lhes seu próprio sistema de valores.Assim, as profissões de professor, arquiteto, médico, engenheiro, padre, procuravam,outrora, um prestígio interior garantido pelo reconhecimento do meio profissional e cul-tural a que pertenciam. Esse autocontrole pelos seus pares tinha, é verdade, diversosefeitos perversos (concorrência, ciúmes, parcialidades), mas tinha a vantagem de man-ter outros critérios de validação e prestígio, independentes dos critérios sociais exterio-res, apesar dos conflitos existentes entre essas normas e os valores da sociedade, comovimos e como ainda hoje se vê, felizmente, na medicina, na religião ou na ciência. Nomais das vezes, havia convivência — mais ou menos harmoniosa — entre dois ou maissistemas de valores, não importando se os indivíduos percebiam a pluralidade dos sis-temas de valorização. Esse modelo social, feito de um mosaico de submodelos e de va-lores, declinou em meio século, deixando, progressivamente, espaço apenas às normasligadas a uma sociedade leiga, racionalista, positivista e democrática.

Mas o reino da sociedade de massa não se traduziu apenas pelo esfacelamentode todos os corpos intermediários e pela instauração progressiva de uma única-racionali-

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dade. Ele veio acompanhado da instalação de um sistema de valores dominante: o da pu-blicidade, no sentido etimológico do termo13. Tudo o que hoje é importante, é público,coisa que, evidentemente, não era assim há meio século. O caráter "interessante" de umaidéia, de uma ação, de uma competência está ligado ao fato de se saber se essas coisas sãoou não públicas. O caráter não público de uma idéia ou de um fato é, em geral, conside-rado como limitação, a menos que o seu caráter secreto revele uma estratégia deliberadade distinção. Fora esse caso, se um fato é interessante, ele deve ser público.

Assim, o "homem público" triunfou, tornando caducos todos os outros sistemasde legitimidade. Aí podemos ver muito bem a relação evidente que existe entre a es-tandardização da sociedade de massa, o individualismo dos valores, o reino da comu-nicação de massa, o esfacelamento das legitimidades intermediárias e o reino da "pu-blicidade" individual.

O resultado concreto, hoje, é que mais vale ser conhecido e apreciado pelogrande público do que nos meios de que dependemos do ponto de vista dos valores enormas. Ou, mais exatamente, não basta mais ser conhecido e validado pelo seu meiopara ser realmente legítimo. A legitimidade parcial tem necessidade de ser substituída,às vezes confirmada, por uma -legitimidade geral, tendo como conseqüência prática ofato de que atribuímos correntemente um lugar desproporcional à publicidade garanti-da pelas mídias. E é aqui que aparece o limite do seu papel: no estabelecimento de umsistema de comunicação expandido que "curto-circuita", completa ou anula — segun-do a situação — as regras de comunicação próprias aos submeios.

O reino da, sociedade de massa, ou, se quisermos, de um espaço públicodemocrático expandido, vem acompanhado, portanto, de uma desvalorização dos es-paços públicos restritos14. O que ganhamos em integração, perdemos em diferença eem complexidade. O que a sociedade de massa ganhou em visibilidade, circulação, no-tadamente graças ao papel da escola, dos transportes e das comunicações de massa, elaperdeu em termos de racionalidade, legitimidade e comunicações parciais.

A televisão apareceu nesse contexto como a rainha da comunicação, pois é maiora sua capacidade de esfacelar comunidades parciais e seus modos de comunicação doque torná-los visíveis. Não se deve esquecer disso para evitar que se confundam causase efeitos e para que compreendamos como a crítica do meio intelectual e cultural à tira-nia da comunicação de massa não corresponde senão a uma parte do problema: o ques-tionamento das mídias evita, de fato, que se interrogue sobre as causas do esfacelamen-to das comunidades intermediárias. A televisão de massa pode ter todos os defeitos, masnão pode ser a única responsável pelo desaparecimento dos sistemas parciais dê legiti-midade e valorização! O tributo pago à sociedade de massa não é a transparência de umespaço público, mas o desaparecimento dos espaços públicos "parciais" próprios às dife-

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

cidir construir televisões temáticas, eles não reconstituem, por enquanto, o quadro co-munitário, mas, ao contrário, expressam sua adesão ao paradigma individualista de mas-sa, em que o grande público tem a tendência de se tornar o "interlocutor", o mecanis-mo de legitimidade. De forma que as elites não formam mais uma comunidade, masantes uma coleção de indivíduos. Se ainda existissem comunidades, teria havido, na-turalmente, uma organização da comunicação, na qual as mídias não teriam tido o lu-gar que têm. E se os intelectuais foram tão violentos contra a comunicação de massafoi porque, ao mesmo tempo, eles lamentavam serem excluídos e porque não dispu-nham de nenhum outro espaço de valorização. E conforme escrevemos em La folie dulogís, as críticas há muito dirigidas ao programa literário de Bernard Pivot estavam deslo-cadas. O problema não era que Bernard Pivot "dita a moda intelectual", mas antes queo meio intelectual não era capaz de manter os seus próprios critérios para que a lógicamidiática não se tornasse a única lógica de valorização do trabalho intelectual. Ademais,os críticos mais constantes e persistentes contra Bernard Pivot viraram seus maioresaliados no momento em que o seu programa desapareceu, em junho de 1990, provade que, a despeito de todas as críticas de que tinha sido objeto, o programa já estavasintonizado com o espaço cultural midiático de hoje...15

Se recolocarmos o problema da comunicação do mundo intelectual e culturalnaquela perspectiva mais ampla, compreenderemos ainda melhor porque a televisão cul-tural não é senão uma solução parcial. Os intelectuais a desejam porque já estão, na ver-dade, integrados à lógica individualista do espaço público universalista midiatizado. Mas,ao mesmo tempo, falam de televisão cultural como meio de reforçar, de recriar uma co-munidade intermediária na perspectiva da relação de força com a cultura de grande públi-co. Querem, portanto, fazer duas coisas ao mesmo tempo: utilizar eles próprios a lógicamidiática e reforçar por aí a sua posição na relação de força entre cultura minoritária ecultura de grande público. Porém, assim fazendo, provam que estão abandonando a idéiade uma regra de comunicação exterior à lógica midiática e acabam por aderir a uma ló-gica midiática de comunicação — pouco importa se especializada ou geralista — mes-mo sendo esta completamente inadequada à comunicação do mundo cultural. Ao re-forçar essa lógica midiática em vez de neutralizá-la, eles aceitam, por isso mesmo, a do-minação do espaço público midiático e a sua conseqüência, o seu fracionamento en-quanto submeio. Eles afirmam poder, graças à televisão cultural, dar continuidade a umdiscurso em nome do universal, mas na realidade, já aceitaram a regra de uma con-vivência no seio de um espaço público fracionado, organizado sob forma midiática.

Em outras palavras, o nascimento da televisão cultural tem um valor simbóli-co essencial. Ele traduz a passagem de uma convivência de comunidades no seio deum espaço público mais ou menos amplo para o reino de um espaço público ampliado,

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dominado pela regra midiática. E assim enxergamos melhor o falso sentido que repre-senta a televisão cultural em relação ao sério problema que é o de saber como manteruma lógica intelectual heterogênea no seio de um modelo de comunicação dominadopelas mídias. Os intelectuais que sempre se viram confrontados, assim como o mundoda cultura, pela questão da comunicação de suas obras, foram pegos desprevenidos pelalógica triunfante da comunicação midiática. Eles pensam que é melhor se defender uti-lizando as mesmas armas, mesmo que na verdade percam, assim, um pouco mais dasua especificidade, participando desse processo de racionalização unidimensional de-nunciado pela Escola de Frankfurt, com a qual, por sinal, partilham em grande parte asanálises. O individualismo midiático parece ser, hoje, o status dominante em face doqual a estratégia de oposição corre o risco de não encontrar na televisão, seja qual fora sua forma, o seu melhor instrumento.

O fosso entre cultura e televisãoNo espaço público midiatizado, será ela a melhor maneira de preservar o lugar

da cultura no seio de uma televisão fracionada, que tem a vantagem de fazê-la partici-par de forma dominante do espaço público, ou, ao contrário, será necessário que a cul-tura não fique sob a empresa do mero audiovisual e, por isso, não participe dele senãopor intermédio das televisões geralistas, preservando assim a sua própria lógica de co-municação? Tais são as duas perspectivas estruturais no que concerne às relações entrecultura e comunicação. É inútil dizer que a minha preferência fica com a segunda solução,sendo essa idéia manter a convivência entre o máximo de lógicas de comunicação pos-síveis no seio de um espaço público e assim evitar reforçar o monopólio audiovisual!

Existem portanto dois problemas básicos. De um lado, o modo de comunicaçãomais apropriado que é preciso fornecer ao mundo cultural e intelectual, seja para favore-cer a sua integração a uma lógica midiática, seja para mantê-lo à distância. De outro lado,o ponto limite a ser atribuído à lógica midiática. Devemos aceitar que esta se torne, noseu conjunto, a principal lógica de comunicação ou será necessário manter uma con-vivência entre lógicas diferentes? Aí também a minha escolha fica com a segunda solução.

Pode parecer paradoxal, partindo de mim, querer limitar o impacto da televisãono domínio cultural quando sou naturalmente favorável à televisão, enquanto a maior partedos intelectuais, que são a ela opostos, defendem uma televisão cultural. É precisamenteporque fui favorável à televisão geralista — isto é, a uma forma de televisão que não pre-tende garantir realmente a comunicação e deixa espaço a outros modos de comunicações— que sou hostil à televisão temática, que daria, ao contrário, a ilusão de poder garantiruma comunicação mais autêntica. O problema não é encontrar um lugar para a culturaminoritária no seio de um espaço público midiatizado, como se propõe a televisão cultu-

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ral, mas inventar a forma de organização que permita manter a convivência entre uma cul-tura midiática dominante e uma cultura minoritária que não é forçosamente midiática.

Criar a diferença, eis o que é imperioso. Evitar o amálgama, eis o que é o ob-jetivo. Obrigar a compreender concretamente que a televisão é adaptada a uma formade cultura e inadaptada a outra, eis o desafio. Obrigar a sair de casa e praticar outrasatividades culturais, eis o caminho a seguir. Em uma palavra, relembrar que a culturaexiste antes da televisão e que sobreviverá a ela! Em resumo, limitar a ascendência datelevisão e introduzir um fator de distanciamento e de valorização. Além disso, dentrode poucos anos, acharemos estranho que aqueles que querem proteger a cultura nãotenham tido outra idéia senão a de fazer uma televisão para se opor à dominação datelevisão!

Manter em paralelo o maior número possível de práticas culturais parece, aocontrário, a solução de bom senso. Revalorizar uma outra comunicação além damidiática no seio das múltiplas correntes religiosas, científicas, artísticas, por meio dolivro, do som, das palavras, das mídias "mais arcaicas", isso é uma evidência. É pre-ciso dizer não ao fracionamento da comunicação no seio da lógica temática; e sim àconvivência de diversas lógicas de comunicação sem relação imediata umas com asoutras.

O objetivo prioritário consiste então em bem separar a cultura da televisãoe em manter, para o bem maior de todos, uma diferença de natureza entre os pú-blicos, a cultura e a televisão. Não existe solução para o problema da relação entreo pequeno número e o grande número. Assumir essa aporia é salutar numa épocaem que a ideologia da comunicação não cessa de fazer acreditar que tudo se liga atudo!

"Boicotar as mídias para salvar a cultura", essa podia ser, um dia, uma boapalavra de ordem, principalmente no momento em que o discurso comum consideraque quanto mais falamos publicamente de qualquer coisa, melhor, e quando pensamosque tudo o que é importante aparece na televisão! Da mesma forma que não podemostudo ver e tudo compreender na televisão — em outros termos, que existe um limiteontológico ao reino da imagem, também é necessário demonstrar que o pequeno númeronão pactua tanto assim com o grande número. A televisão cultural, querendo criar adiferença, não faz, na realidade, senão preencher as brechas. Não apenas isso, ela nãodeixa mais interstícios, mas "hipostasia" o poder naquilo que faz e mostra, enrijecen-do e normatizando a atividade cultural que deveria justamente se tornar mais livre. Valea pena demonstrar o que existe de incomunicação entre cultura e televisão. Sé a cul-tura e a televisão já não marcham juntas, afortiori é ainda mais necessário evitar fa-zer da televisão a mãe de todas as comunicações!

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As quatro relações possíveis entre cultura e televisão

Três razões maiores impedem que vejamos no conceito da televisão cultural omeio de resolver a questão das relações entre cultura de elite e cultura de massa. Deinício, a dimensão espetacular e distrativa, inerente à imagem de televisão, a torna ina-dequada, por um lado, ao tratamento do fato cultural. Em seguida, a criação de umatelevisão cultural corre o risco de separar ainda mais o grande público do público cul-tural porque, ao materializar a definição de cultura, ela não permitirá aos profissionaisda cultura a criação de outros modos de comunicação. Enfim, porque o dirigir-se aogrande público, garantido pela televisão geralista, desempenha um papel de laço socialútil à cultura e representa, afinal, a comunicação mais democrática. Em resumo, a tele-visão cultural é pouco adaptada à cultura minoritária, inadaptada à cultura de grandepúblico e, por último, reprodutora das desigualdades a que se propõe resolver.

Quatro tipos de relações são possíveis entre cultura e televisão, as quais provêmde quatro constatações:

1. A televisão não é unicamente um instrumento de difusão da cultura de grandepúblico, ela é também, pelo menos por enquanto, local de produção dessa cultura demassa ou média, dessa cultura que constitui realmente a infra-estrutura do nosso mo-do de vida, assim como da informação, do lazer, da educação, da política, dos jogos,das variedades, do cinema. A vida cotidiana e nossa relação com o mundo são hoje in-separáveis dessa percepção de múltiplos programas que constituem tanto o nosso reló-gio do tempo imóvel quanto o do tempo histórico. Privada ou pública, a televisão ge-ralista é, sem dúvida, o principal local de produção e difusão da cultura média.

2. A televisão geralista é uma via de acesso a um grande número de assun-tos culturais, desde que estes possam ser tratados em imagens, o que nem sempre éo caso, e que possam ser espetaculares e servirem de distração. A televisão, na li-nhagem do seu papel de produtora da cultura média, é, também, a principal voz deacesso à cultura minoritária, desde que o público saiba que se trata apenas de umavia de acesso. Falar de vulgarização já é falso porque isso supõe um domínio do fatocultural e de sua didática, o que está longe de ser o caso na maior parte dos fatos cul-turais. Facilitando um acesso que só pode ser parcial à cultura minoritária, a televisãogeralista deixa todo o seu espaço a outras práticas culturais. Uma televisão experi-mental, pública ou privada, pode ser um meio de favorecer outros modos de expressãoe de escritura, contanto que essa televisão experimental não se preste unicamente àprodução cultural.

3. Pode haver uma televisão cultural paga, como existe para o esporte, a in-formação, os programas infantis, etc. O fato de ser paga é essencial para demonstrarque se trata de uma televisão fragmentada, destinada a um público novo, o público

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cultivado que tem dinheiro, mas ela não tem a pretensão de resolver a questão dostatus da cultura minoritária no quadro audiovisual. Assim agindo, a televisão cul-tural paga diria em alto e bom som aquilo que uma televisão gratuita só diria em vozbaixa, camuflada por trás de um discurso pretensamente democrático. Trata-se de umatelevisão para minorias, cuja existência depende do mercado, de uma elite cultural su-ficientemente numerosa para que exista essa oferta, mas sem a ambigüidade de sergratuita sob o pretexto de que "a cultura é um bem para todos". A cultura é um bempara todos no quadro da televisão geralista. Logo em seguida, descobrimos a existên-cia de múltiplas práticas culturais. Adaptá-las a uma televisão é possível, mas nada temem si de democrático. Isso significa simplesmente explorar um segmento da clientela.Reivindicar um público potencial de um milhão de espectadores para La Sept justifi-ca perfeitamente a existência de uma televisão paga. Senão, por falta de um públicosuficientemente importante, a existência de um canal cultural deve ser questionada,porque a televisão continua sendo um meio de vocação de grande público, isto é,superior a um milhão de espectadores. Aqui, a televisão é um instrumento demarketing como qualquer outro, destinado a rentabilizar os gostos de um segmentoda população interessado pela cultura, como outros o são pela dança, pela música oupela religião. Não se trata mais da cultura para todos, nem mesmo da defesa da cul-tura minoritária, mas de uma produção cultural para um público específico.

4. A questão é demarcar, por meio do "fosso" entre cultura minoritária e cul-tura média, aquilo que há de incomunicável entre cultura, comunicação e televisão.E não só isso. Toda produção cultural, sobretudo se ela é minoritária, não pode ser co-municada facilmente, mas além disso, essa comunicação não é necessariamente garan-tida pela televisão. A televisão não é a mãe de todas as culturas, nem de todas as co-municações e na relação de força que opõe cultura minoritária e cultura média, elanão é o melhor meio de aproximar as duas, se é que existe a necessidade de aproxi-má-las. Desenvolver outras práticas de comunicação independentes da televisão é, por-tanto, essencial para a cultura minoritária, mas pensando bem, esse é também o casoda cultura média. O peso da televisão já é suficientemente .grande na produção e di-fusão da cultura média para inutilizar a tentativa de sobrecarregá-la com a cultura mi-noritária.

Para além da questão das relações entre cultura, comunicação e televisão, oproblema é o do lugar e da valorização de outras lógicas de comunicação além da lógi-ca midiática. A televisão é o instrumento privilegiado da cultura média, tanto para a suacriação quanto para a sua difusão, e uma via de acesso à cultura minoritária, mas é prati-camente inapta para transmitir uma boa parte desta.

É o preço a pagar ao reino da imagem.

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- CULTURA: OS LIMITES DA COMUNICAÇÃO -

Notas ao capítulo 111. BEN DAVID, J. & CLARK, T. N., eds. Culture and its creators; essays in honor

of Edward Shils. Chicago, University of Chicago Press, 1975. DE DAMPIERRE, E. "Cultureet civilisation". In: MENDRAS, H., dir. Eléments de sodologíe. Paris, A. Colin, 1978.

2. BURGELIN, O. La communication de masse. Paris, SGOO, 1970. SCHRAMM,W., ed. Mass communication Urbana, University of Illinois Press, 1960. MATTELART, A.& PIEMME, J. M. Télévision, enjeuxsansfrontières; industries culturelles et politiques delacommunication. Grenoble, PUG, 1980. FERGUSON,M., ed. Public communication:, thenew imperatives —future directions for media research. London, Sage, 1990.

3. BELL, D. Lês contradictions culturelles du capitalisme. Paris, PUF, 1979.4. Cf. BLOOM, A. L'ame désarmée; essai sur lê déclin de Ia culture générale.

Paris, Julliard, 1987, principalmente os capítulos 5 (2? parte) e l (3? parte).5. Cf. também, a apreciação negativa de Adorno, Mínima moralia; réflexions

sur Ia vie mutilée. Paris, Payot, 1983; e HORKHEIMER, H. Dialectique de Ia raison, Paris,Gallimard e Eclipse de Ia raison, Paris, Payot, 1974.

6. BIRNBAUM, P. & LEGA, J., dir. Sur 1'individualisme; théories et méthodes. Paris,Presses de Ia Fondation Nationale dês Sciences Poliüques, 1986. BOUDON, R. La logiquedu social Paris, Hachette, 1979. (Gol. Pluriel.) SIMMEL, G. Sociologie et épistémolo-gie. Paris, PUF, 1981. (Col.Quadridge.) TÕNNIES, T. Communauté et sociêté. Paris,PUF, 1944.

7. Cf. BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L.; CASTEL, R; CHAMBOREDON,J. L. Un artmoyen,essai sur lês usages sociaux de Ia photographie. Paris, Minuit, 1965. BOURDIEU, P. "Lêmarche dês biens symboliques". UAnnée Sociologique, 22: 99-126, 1973. Idem.Choses dites. Paris, Minuit, 1987. GRIGNON, Cl. & PASSERON, J. C. Lê savant et lêpopulaire. Paris, Seuil/Gallimard/Hautes Études, 1989.

8. Cf. RIGAUD, J. Libre culture. Paris, Gallimard, 1990. [Gol. Lê Débat] ORY, P.L'aventure culturellefrançaise. Paris, Flammarion, 1989. RITAINE, E. Lêsstratégies deIa culture. Paris, Presses de Ia Fondation dês Sciences Politiques, 1983.

9. Cf. POSTMAN, Neil. Se distraire à en mourir. Paris, Flammarion, 1986.10. Começa a surgir um número importante de livros sobre os intelectuais:

CHARLES, C. Naissance dês intellectuels—1880-1900. Paris, Minuit, 1990. ORY, P., dir.Dernières questions aux intellectuels. Paris, Orban, 1990. SIRENELLI, J. F. Intellectuelsetpassionsfrançaises; manifestes et pétitions au XXe siècle. Paris, Fayard, 1990. VERDÈS-LEROUX, J. Lê réveil dês somnambules; lê parti communiste, lês intellectuels et Ia culture(1956-1985). Paris, Fayard/Minuit, 1987. HAMON, H. & ROTMAN, P. Lês intellocrates.Paris, Ramsay, 1981. Alguns intelectuais também escreveram sobre o assunto: ARON, J.P. Lesmodernes. Paris, Gallimard, 1984. BOURDIEU, P. Homo academius. Paris, Minuit,

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

1984. FINKELKRAUT, A. La défaite de Ia pensée. Paris, Gallimard, 1987. LÉVY, B. H.L'éloge dês intellectuels. Paris, Grasset, 1987. DEBRAY, R. Lê pouvoir intellectuelenFrance. Paris, Ramsay, 1979.0 curioso é que, nos dois casos, tanto nas obras sobre in-telectuais como nas obras de intelectuais, praticamente não se faz menção ao papel bemvisível dos "intelectuais midiáticos". É claro que, às vezes, abordam a questão da tele-visão para condenar, na maior parte do tempo, os seus efeitos negativos, sobretudo daparte dos intelectuais, mas jamais — mesmo quando isso poderia lhes dizer respeito— para abordar essa figura contemporânea do intelectual midiático.

11. Cf. JEANNEREY, J. N. & SAUVAGE, M. Télévision, nouvelle mémoire, lês mag-azines de grandes reportages, 1958-1968. Paris, Seuil/INA, 1982. FERRO, M. Analysedefilms, analyse de societé. Paris, Hachette, 1976. VEYRAT-MASSON, I. "L/histoire à Iatélévision française". Paris, IEP, 1991. Tese de Ciências Políticas.

12. Cf. artigos "Communauté" no dicionário crítico de sociologia. BLANCHOT,M. La communauté inavouable. Paris, Minuit, 1983. NANCY, J. L. La communauté dé-soeuvrée. Paris, Ch. Bourgeaois, 1986. DUVIGNAUD, J. La solidaríté. Paris, Fayard, 1986.

13. Sobre o surgimento do conceito de publicidade, da separação público/pri-vado e do surgimento do espaço público, confrontar: KANT, E. Reponse à Ia question:Qu'est-ce que l'Aufklarung? Paris, Aubier, 1947. GADAMER, H. G. Vérité etméthode.Paris, Seuil, 1976. KOSELLEK, R. Lê régne de Ia critique. Paris, Minuit, 1979. Sobre adistinção do domínio público por diluição na "questão social", cf. ARENDT, H. La con-dition de l'homme moderne. Paris, Calmann-Lévy, 1961. caps. 2 e 6. Sobre a refeu-dalização do espaço público, cf. HABERMAS, J. L'espace public. Paris, Payot, 1986. Veros três primeiros capítulos. Ver também SIMMEL, G. Philosophie de Ia modernité. Paris,Payot, 1989. 3! parte. SENNETT, R. Lês tyrannies dê 1'mtimité. Paris, Seuil, 1979.

14. Cf. a crítica tocqueviliana à "democracia de massa" e à vontade de recons-tituir os corpos intermediários. DE TOCQUEVILLE, A. De Ia démocratie en Amérique.Paris, Garnier/Flammarion, 1981. 2 v.

15. A título de exemplo, o artigo, impensável no Lê Monde há alguns anos, eassinado por B. Poirot-Delpech (Lê Monde, 6 de junho de 1990), intitulava-se: "MerciPivot!", por ocasião da última transmissão do programa Apostrophes. Aí podemos leruma opinião da qual partilho há mais de dez anos, mas que não era nada freqüente naépoca: "Graças a Apostrophes, milhares de livros foram levados ao conhecimento demilhões de espectadores que jamais teriam, de outro modo, se aproximado desses meiosde pensar, sonhar, viver profunda e livremente. O encontro das sextas-feiras vai fazerfalta. Pela literatura e pela leitura, obrigado Bernard Pivot! Muito obrigado!" Talvez umdia apareça o mesmo elogio para a televisão geralista...

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As sereias da televisãoeuropéia

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Entre o voluntarismo e a História

A "televisão sem fronteiras", o "espaço audiovisual eu-ropeu", a "televisão européia" são temas europeus dos mais con-sensuais, à direita e à esquerda, para políticos e intelectuais, paraprofissionais da comunicação e eurocratas de Bruxelas. Que me-lhor causa existe na Europa? Que melhor instrumento em escalada Europa do que a televisão? O que pode haver de mais naturaldo que utilizar uma pela outra?

Pelo menos uma vez existe unanimidade: o projetoecumênico de uma televisão européia para precipitar a integraçãoeuropéia é um desses consensos que parecem, às vezes, "um sus-piro de alívio". Os riscos são, no entanto, reais, quando mais nãoseja porque esse projeto excitante para tantos espíritos esclarecidosjunta as duas maiores contradições da televisão e condensa os doismaiores defeitos que nela recriminamos.

A primeira contradição diz respeito ao papel político quequeremos fazer a televisão desempenhar na construção européia.Como querer que ela sirva à Europa política quando, durante quarentaanos, censuramos os poderes políticos por dela se servirem para fi-nalidades partidárias nos Estados-Nação? Por que aquilo que foiunanimemente considerado como malsão — o uso político da tele-visão — de repente vira o bem, como que por um toque de varinhamágica? Simplesmente porque a causa é boa? O lento movimento deliberação da televisão em relação ao poder político terá sido anuladode um só golpe por se tratar de uma causa indiscutível: a Europa?

A segunda contradição diz respeito ao que durante vinteanos foi censurado na televisão: o fato de ser um meio de massa.Ora, todos os projetos de televisões européias não param de exal-tar as fabulosas promessas de um mercado de 320 milhões de habi-tantes, e mais ainda, se nele integrarmos a Europa Oriental. Por queos mercados de 20 a 50 milhões de habitantes são considerados co-mo o cúmulo da estandardização e um mercado de 320 milhões dehabitantes constitui, ao contrário, uma oportunidade histórica a seragarrada? Por que, em outros termos, a "televisão européia de mas-sa" seria melhor do que a "televisão nacional de massa"? Por queesse fator de homogeneização, tão criticado durante cinqüenta anos,é tão prezado atualmente? O mundo parece estar no avesso!

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Em todo caso, os fatos aí estão: a televisão européia re-presenta um extraordinário consenso e é preciso uma certa cora-gem para se opor a isso, uma vez que o fato de criticá-la é imedia-tamente interpretado como o meio dissimulado de expressar umsentimento antieuropeu. Podemos, no entanto, estar de acordocom a construção européia, sem concordar com os projetos detelevisão européia, ainda mais se considerarmos que existe umrisco real de conseguir resultado exatamente oposto ao objetivoproposto.

Esse encontro provável entre a Europa e a televisão ocor-rerá, sem dúvida, mas com muito maior dificuldade do que ad-mitimos hoje. A hipótese aqui defendida é que quanto mais a inte-gração européia se dá no plano econômico e político no Ocidente,e talvez amanhã, no Leste, mais se torna necessário manter osquadros de referências nacionais. Sobretudo se relembrarmos a frasemuito precisa que Jean Monet pronunciou em 1957, à época dotratado de Roma: "Não faremos a coalizão de Estados, uniremoshomens". Quais são as condições de uma comunicação social? Aexistência de uma comunidade de interesses e de valores, de umsentimento de identidade, de uma cultura. Não há hoje nenhumadessas condições na Europa. A comunidade, assim como a identi-dade, são tênues, e quanto à cultura, ela parece muito mais confli-tante e problemática do que propensa a uma cooperação "rica deintegração de diferentes componentes".

Por que a recusa em perceber que as condições de comu-nicação não podem ser encontradas na Europa? Se, pelo contrário,admitirmos essas dificuldades estruturais e supusermos que a tele-visão seja capaz de suplantá-las, acabaremos recaindo na ideologiapolítica da televisão todo-poderosa. Em outras palavras, os projetosde televisão européia pecam por dois defeitos: deficiência de re-flexão sobre o status da cultura e da identidade européia por umlado, e, por outro lado, um voluntarismo determinado no domínioda comunicação — como o que existe, por exemplo, no domínioda siderurgia, do meio ambiente ou bancário!

Os dois defeitos podem ser encontrados tanto entre os eu-rocratas quanto entre os governos, grupos de comunicação e in-telectuais que geralmente tomam partido sobre a questão da televisão

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européia. Eles comprovam a dificuldade de pensar o papel da tele-visão como instrumento de comunicação no quadro da Europa. Poisquem fala de Europa, fala necessariamente de diferenças culturais,estéticas, radicais, pouco compatíveis com a constituição de umgrande mercado de massa! Na realidade, a "televisão européia" con-densa idéias curtas ou falsas sobre o que são a cultura e a Europa. Deum lado, ela supõe que, ao fim das contas, a cultura é um mercadocomo outro qualquer, tomando como exemplo a indústria do disco,do filme, do livro e que ela é um fator de unidade natural, pacífico,ou, em todo caso, menos conflitante do que outros. De outro lado,ela supõe que a televisão é um instrumento natural de "circulação",de estabelecimento de relações, e que ela não pode ser fonte de con-flitos. Mas o que chamamos de "comunicação" nos diferentespaíses não tem sempre o mesmo sentido e, contrariando a intuiçãotecnocrata, a televisão não é "naturalmente" um fator de comuni-cação. Ela tampouco é fator natural de comunicação entre culturas.

O problema das relações entre comunicação e cultura sóé abordado do ponto de vista da regulamentação e da circulação,com essa idéia tecnocrática implícita de que, estando as identidadesculturais naturalmente constituídas e mutuamente reconhecidas,cada uma delas deseja estabelecer um intercâmbio.

Na realidade, a cultura e a Europa não são um mercadolivre no sentido da indústria automobilística ou de informática, ese o objetivo é aumentar a consciência ou a idéia européia, a me-lhor solução não será necessariamente a televisão. Em outros ter-mos, é preciso ter a coragem de arriscar ser tomado por antieuropeupara afirmar que a identidade cultural européia não é uma certezae que a televisão não é necessariamente o melhor instrumento paraaumentar essa consciência européia. Ela pode até mesmo estar naorigem de problemas ou de dificuldades, como começamos a vernas relações entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental.

Por que ela não é, em si, o melhor instrumento de comu-nicação? Porque não é apenas um instrumento de difusão, porquea sua estrutura teórica impõe condições específicas e porque a na-tureza do problema europeu, quer dizer, o fato de tornar comunsculturas muitas vezes díspares, não é coisa naturalmente adequa-da à televisão. Isso significa que o problema é mais complicado do

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-ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO -

: que uma simples conexão entre um estoque cultural e instrumen-tos de comunicação audiovisual.

A fragilidade da análise da televisão européia é tanto maisparadoxal na medida em que ela é, ao lado da televisão cultural, aquestão que mais preocupa os intelectuais. Somos então obrigadosa constatar que a respeito dos dois assuntos mais importantes para

! o futuro do audiovisual — a cultura e a Europa — os intelectuaisdesempenham certo papel, sem que isso se traduza em uma me-lhor análise dos problemas estruturais. A idéia implícita dominante

1 continua sendo a de que a televisão é um "alto-falante" eficaz paradifundir mais rapidamente, a um maior número de pessoas, umamensagem que, ninguém duvida, será aceita e integrada. A "tele-

, visão alto-falante" ou a síntese enfim realizada entre as duas ideo-logias dominantes, técnica e política...

Por que então certos intelectuais, depois de terem gritadocontra os perigos da estandardização, da homogeneização da te-levisão de massa, não vêem nenhuma ameaça dessa ordem na tele-visão européia? E por que, depois de tanto terem criticado as in-dústrias culturais, esperam eles com impaciência a constituição degrandes grupos de comunicação "europeus", considerados os úni-cos capazes de salvar a identidade européia?

Minha oposição aos projetos e idéias sobre a televisão eu-ropéia é menos contra o objetivo do que contra a representação da

. Europa a eles subjacente e ao papel que se quer atribuir à televisãonesse processo. Se existe um encontro evidente entre a dimensãosociológica da Europa e a da televisão, esse encontro não pode sedar senão em condições precisas, sequer consideradas atualmentenos projetos audiovisuais europeus.

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A televisãosem fronteiras ou

o triunfo da tecnocracia

ÍBJBUQTSCA CENTRAL

A televisão européia, assim como a televisão cultural, tem a dupla vantagemde mobilizar uma grande causa, neste caso a Europa, que é talvez a única aventura pos-sível para povos fatigados pela História, e de dar, enfim, os seus títulos de nobreza àtelevisão. Todas as condições estão reunidas para que o assunto televisão européia, quenão passa de um dentre tantos, dê aos que a dirigem, assim como aos jornalistas e aosdiferentes agentes envolvidos, a sensação de que se trata de uma "nova fronteira". Osdois programas, Media e Eureka-audiovisual parecem fazer a síntese entre a televisãoe esse grande desígnio político.

Televisão européia: a eurocracia além dos seus limitesO que se deve entender pela fórmula milagrosa "televisão sem fronteiras" que .

é, sem dúvida, uma proposição de diretiva da Comissão Européia, de 1 7 de julho de1986', uma dentre tantas, mas das quais poucas tiveram tanto peso simbólico, de cono-tação mágica e de perspectiva ao mesmo tempo aventureira e legítima? Além do própriotexto da circular que, nesse domínio assim como em outros, anseia por uma melhorcoordenação de políticas industriais em matéria de tecnologia, de mercados e, sobre-tudo, de programação, encontramos a idéia de uma superação dos Estados-Nação graçasà comunicação. A televisão sem fronteiras2 é de alguma forma a legitimação da tele-visão, cuja difusão de imagens zomba das fronteiras e dos Estados. A causa européialhe atribui a sua verdadeira grandeza. As idéias de liberdade, circulação, mútuos en-riquecimentos são evidentemente a ela associadas sobre o pano de fundo de uma iden-tidade cultural de que ninguém duvida no Ocidente, assim como também no Lesteatualmente, graças aos eventos de 1989. Mesmo que as intenções, as palavras e os dis-cursos não sejam menos ambíguos do que as realidades...

Trata-se, em todo caso, do grande canteiro da Europa, com um permanentepostulado duplo: a diversidade faz a força da Europa e essa diversidade é uma pos-sibilidade de coroamento da unidade. Esse é o conteúdo de todos os discursos so-

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- ELOGIO DO GRANDE PÚBLICO •

bre a unidade cultural européia: assumir corajosamente o que, para outros, poderiapassar por uma contradição. O futuro da Europa passará por uma melhor integraçãodas suas diferenças num projeto político e cultural comum. A diversidade e a hete-rogeneidade cultural estão, portanto, nos fundamentos da identidade européia, e aunidade, ou integração, darão à Europa uma força maior. Entenda quem puder...

Os projetos

São, essencialmente, dois e mais modestos do que o desafio econômico e, prin-cipalmente simbólico, que os envolve. O mais antigo é o programa Media3 [Medidaspara Encorajar e Desenvolver a Indústria Audiovisual] adotado em 1987, a título ex-perimental, pela Comissão de Comunidades Européias. Criado antes da diretiva "tele-visão sem fronteiras", deveria favorecer um grande mercado europeu do audiovisualtanto para o cinema quanto para a televisão, por intermédio da criação de um certonúmero de sociedades. Essas sociedades de resultados desiguais tiveram a vantagem deatacar concretamente os diferentes aspectos desse mercado em lenta gestação, cujomaior desafio, todo mundo sabe, é a dupla concorrência japonesa e norte-americana. Etanto no nível das tecnologias de produção e difusão, com a famosa televisão de altadefinição (TVHD), quanto no da indústria de programas. A ambição, evidentemente, éa criação de um grande espaço audiovisual europeu4. Sete projetos vieram à luz de 1987a 1990, em torno de quatro eixos do programa Media: produção, distribuição, finan-ciamento, formação.

O primeiro, EFDO, compreende uma coordenação da distribuição e, parcial-mente, a produção de filmes, abrangendo um pouco mais do que os doze países daComunidade Econômica Européia.

O segundo é o EVE, centrado na distribuição de vídeos ou cassetes que des-ponta como um dos pilares da indústria do cinema.

O terceiro, Babel, tem por objetivo, ao associar a União Européia de Radiodifu-são — organismo que agrupa todas as televisões públicas da Europa e certas televisõesprivadas — favorecer o multilingüismo recorrendo à dublagem.

EURO-AIM oçupa-se particularmente da ajuda à produção, sobretudo no ní-vel jurídico,, técnico e documental.

Script contribui, como indica o nome, para a elaboração de roteiros e realiza-ção de co-produções.

Cartoon diz respeito à utilização de novas tecnologias nos filmes de animação.O programa, animado por Holde Lhoest, reúne assim iniciativas de idades e

importâncias diferentes, e encontrou um real sucesso, a despeito do ceticismo inicial.Destinado a milhares de profissionais, encontrou eco favorável na imprensa geralista,

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A TELEVISÃO SEM FRONTEIRAS OU O TRIUNFO DA TECNOCRACIA

mesmo não dizendo respeito ao grande público. A parte audiovisual do programa Eureka,lançado em outubro de 1989, em Paris, também não se dirige ao grande público. A ca-racterística comum desses dois programas, na grande tradição de Bruxelas, onde se plane-ja a felicidade das pessoas sem que elas saibam, inclusive no tocante à televisão, é de sedirigir aos meios profissionais, como se, sob o pretexto bem conhecido de "moderniza-ção", a elite esclarecida estivesse encarregada de "sensibilizar" o grande público.

O Media nasceu, em parte, do fiasco de um programa de co-produção em ní-vel europeu no começo da década de 1980 e tem como vocação principal fazer traba-lharem juntos, em escala européia, os profissionais da indústria da comunicação. Envolvehoje mais de seis mil empresas, e seu sucesso o levou a uma segunda fase, que destavez não será apenas experimental. A partir de 1990, Media 92 deverá aumentar os seusmeios ao longo de cinco anos, com um substancial crescimento do orçamento: por vol-ta de 13 milhões de escudos (cerca de 90 milhões de francos) para o programa expe-rimental, contra 250 milhões de escudos (cerca de 1,8 bilhão de francos) de orçamen-to anual para a segunda fase. Seu principal defensor é Jean Dondelinger, comissário eu-ropeu para o audiovisual.

O outro programa, Eureka (lançado em 1985 por François Mitterrand), muitomais geral, versa sobre o conjunto de novas tecnologias. Tem apenas um bloco sobre acomunicação, que, efetivamente, foi enxertado por ocasião do congresso sobre o au-diovisual europeu5 realizado em Paris, em outubro de 1989, e do qual participarampolíticos, tecnocratas e, evidentemente, profissionais da comunicação. Mas nenhum in-telectual universitário, nem pesquisador: coisa normal, uma vez que nem o futuro, nema pesquisa os interessa... Mas constatamos no Eureka audiovisual o mesmo fenômenoque ocorre no Media, isto é, programas de estímulo, feitos na grande tradição da lógi-ca do "iniciado", com a mesma dificuldade de acesso à informação, como se fosse in-dispensável que o bom povo, ou qualquer curioso, pudesse descobrir os planos que uma"elite eurocrata" prepara para salvar o nosso audiovisual da invasão japonesa e norte-americana.

O Eureka abrange todos os grandes domínios do futuro industrial: a produçãoinformatizada e a robótica, biotecnologias e biomedicina, tecnologias da informação,materiais novos, meio ambiente e oceano, microeletrônica, lasers, transportes, ener-gias, e, para encerrar, comunicações e telecomunicação, que é o último dos programase também o mais recente. Três blocos definiram-se — a pesquisa, a coordenação in-dustrial e os programas — sobre o mesmo fim: criar um espaço audiovisual europeu,capaz de se opor aos japoneses e aos norte-americanos. É sobretudo neste terceiro pon-to que se dá uma sobreposição com o Media, mesmo que, segundo a expressão con-sagrada, haja a tendência de afirmar que o Media é mais geralista, "ao menu", enquanto

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o Eureka audiovisual é mais "à Ia carte". O Eureka visa também mobilizar os tecnocratase os industriais oferecendo-lhes ao mesmo tempo os créditos, o know-how e os pro-cessos de cooperação.

No futuro, os dois programas deverão estar coordenados e repartir entre si os250 milhões de escudos propostos pela Comunidade para depois de 1990. Mesmo quea concorrência entre eles, principalmente na direção do Leste da Europa depois de19906, não corresponda realmente ao "estímulo sadio" que se podia esperar. O que sur-preende, tanto no Media quanto no Eureka audiovisual, é a defasagem entre o lado em-pírico e, afinal, modesto das atitudes empreendidas e o discurso global que fazem so-bre as possibilidades, os desafios e os riscos da televisão européia! Essa defasagem en-contra-se também no fato de serem dois programas extremamente técnicos, iguais avários outros, às vezes muito mais importantes, em diversos setores e que continuamdiscretíssimos, enquanto esses dois são bem conhecidos muito além do círculo dos profis-sionais interessados. Como se o desafio da comunicação na Europa multiplicasse, deum golpe só, as esperanças e os fantasmas!

É talvez a diretiva "televisão sem fronteiras" que melhor ilustra a passagem queocorreu de uma questão técnica, entre outras, para uma espécie de espetacularizaçãoe dramatização ligada ao fato de tratar-se de televisão, e, em termos mais amplos, decomunicação, coisa que retoma a questão de uma identidade e uma cultura européias.A diretiva, adotada em 3 de outubro de 1989, pelo Conselho de Ministros, apesar daoposição da Alemanha Oriental, da Bélgica e da Dinamarca, visa também facilitar a cria-ção de um grande mercado audiovisual europeu, tratando com destaque a questão daquota de obras européias a serem impostas à Europa. Esse assunto, veremos depois, adespeito das oposições que suscita entre os Estados, tem o efeito paradoxal de poderser considerado como um dos pilares do consenso europeu sobre o papel a ser desem-penhado pela televisão. É um pouco como se a Europa, tão difícil de construir em to-dos os domínios, ficasse aí mais fácil por se tratar de televisão, de cultura e de existirum consenso na luta contra norte-americanos e japoneses!

Associar em termos permanentes a televisão e o cinema, como o faz a diretiva,é ademais um erro que ilustra o fato de que não percebemos a diferença de natureza en-tre eles. Sob o pretexto de que os dois são imagem e de que, como a televisão passa muitosfilmes, o cinema deve ser tratado junto com a questão audiovisual! E, no entanto, tudono plano técnico, artístico, estético, social e cultural diferencia o cinema da televisão. Umadas questões mais evidentes é manter o cinema o mais independente possível das normasda televisão, tanto no que concerne aos valores quanto às escolhas de produção. O fatode, nos dois casos, tratar-se de uma indústria da imagem, com realizações, autores e públi-co, não significa que essas duas formas de expressão, ambas tão fundamentais, devam ser

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tratadas em conjunto. É um exemplo perfeito da abordagem tecnocrata e da "globaliza-ção" da questão. E, no entanto, é respeitando tudo o que diferencia televisão e cinemaque podemos servir melhor aos dois, sobretudo o cinema, que está hoje em situação maisfrágil. A dimensão fundamentalmente individualista do cinema, mesmo sendo igualmenteuma indústria, é um fator de concorrência de estímulo para a televisão, que tem, por ou-tro lado, um papel de laço social mais complexo. Os dois pertencem à cultura da imageme a valorizam, mas a partir de duas posições radicalmente diferentes.

Sobre a televisão, os políticos supõem, ontem como hoje, que ela é o melhorbraço armado de toda política: assim também os eurocratas nela vêem o meio de ace-lerar uma identidade ambígua demais da Europa e os intelectuais, uma nova aventurae o meio de "lavar" as indústrias culturais, ontem más, hoje indispensáveis. Para os in-dustriais, trata-se antes de mais nada de um mercado de 320 milhões de habitantes,coisa que os preocupa desde muito antes das diretivas européias. Quanto às elites, com-preendidas em sentido amplo, elas parecem acreditar que existe na idéia de cultura eu-ropéia alguma coisa de novo, mesmo que esses temas venham sendo debatidos desdea década de 1920 — para não dizer desde o século XVIII — e mesmo que, depois debons vinte anos, os esforços concretos, realizados por cada país, não tenham sido muitonotáveis, com exceção da política franco-alemã. Por seu lado, as medidas em favor docinema europeu suscitam a adesão. Assim, os eurocratas têm a sensação de se ocuparemnão apenas de indústria e economia, mas também de cultura!

Outra vantagem: a política audiovisual européia, ao contrário da indústria dapesca ou da agricultura, se dá sem "adversários físicos" visíveis. Claro, existem os profis-sionais da comunicação, mas os espectadores não são uma força social organizada e nãose manifestam; os especialistas europeus acreditam, por isso, que podem agir sem seremincomodados por grupos sociais.

Além disso, essa política voluntarista de desregulamentação de um lado, eessa lógica industrial aplicada à comunicação audiovisual de outro se completam.Alguns vêem nisso a busca de uma política jacobina , outros as premissas de um pro-gressivo desengajamento do Estado que levará, inelutavelmente, à criação de grandesgrupos de comunicação. Se os conceitos europeus de comunicação diferem sensivel-mente entre os liberais e os colbertistas , isso não impede que ambos atuem emconjunto.

* jacobina, jacobinismo: postura política de fanatismo pela democracia que deve seu nome ao mais famoso dos "clubes"políticos da Revolução Francesa (1789), cujo grande poder provinha do fato de serem o único grupo organizado em meioao caos dominante na época. (N.T.)

** colbertista, colbertismo: versão francesa do mercantilismo que deve seu nome às atividades de Jean Baptiste Colbert, es-tadista francês que, utilizando métodos drásticos, sanou as finanças durante o governo de Louis XIV. (N.T.)

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A questão das quotas de obras de origem européia a serem impostas a cada pro-gramação nacional ilustra perfeitamente a ambigüidade desse consenso, que é bemreal, a despeito das oposições entre a França, favorável, e a Grã-Bretanha e a Dinamarca,que eram contra. A Alemanha Oriental finalmente aderiu ao segundo campo. Apesarde todas as diferenças de apreciação sobre a porcentagem e o grau de coerção a serexercido para aplicar o acordo, este demonstra que é muito mais fácil chegar a um en-tendimento sobre a questão bancária e monetária européia, ou sobre as prerrogativaspolíticas do conselho de ministros! Enquanto a televisão e a cultura parecem tocar muitomais no essencial de uma identidade, de uma soberania nacional do que esses outrosassuntos, considerados tradicionalmente como "sensíveis".

Foram os franceses que mais batalharam, sem sucesso, para obter uma quotasubstancial, acrescida de meios reais de sanção. Mas a diretiva de 3 de outubro de 1989,do Conselho de Ministros sobre a "televisão sem fronteiras", assumiu uma posiçãomenos estrita do que a do Parlamento, que havia proposto a transmissão de 60% deobras de origem européia, coisa que não foi acolhida pela comissão. Em 24 de maio de1989, o Parlamento votou a diretiva, mas na sua dimensão liberal. "Os Estados mem-bros acreditam em todos os casos ser possível, pelos meios adequados, que os organis-mos de radiodifusão reservem às obras européias uma porcentagem majoritária do seutempo de transmissão"(texto do Conselho de Ministros). A emenda do Parlamento afir-ma que é preciso atingir esse objetivo "pelos meios adequados e juridicamente eficazes"dentro de um prazo de quatro anos, e com isso chegamos a uma posição afinal menosrestritiva.

Esse abrandamento da posição em matéria de quotas juntou duas famílias es-pirituais que nem sempre concordam: os ultra-europeus, que vêem na questão cultu-ral em sentido amplo, e particularmente na questão do cinema e da televisão, um dossinais do desejo de integração européia, e os ultraliberais, cujos argumentos em favorda televisão européia são da mesma natureza que aqueles em favor da televisão priva-da contra a televisão pública.

A questão de quotas fez com que aparecessem no país abordagens diferentesem relação à cultura, à identidade, ao papel do Estado. A conclusão a que se chegoufoi tudo fazer para acelerar a televisão européia, como que para suplantar os "na-cionalismos culturais". Admitir que a criação é sempre nacional foi considerado comoidéia "conservadora", mesmo sendo isso uma constatação de bom senso. Mas a atmos-fera geral era pela "superação" do nacionalismo. A idéia geral consistia em dizer, que omelhor meio de lutar contra a influência norte-americana e japonesa é a união, parademonstrar que somos capazes de uma produção original, satisfatória ao gosto dos eu-ropeus. Recusemos as medidas protecionistas, das quais a palavra quota parece ser o

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A TELEVISÃO SEM FRONTEIRAS OU O TRIUNFO DA TECNOCRACIA

emblema provocador, arregacemos as mangas para fazer aumentar o número da pro-dução de obras européias. Em nenhum momento, nesse debate que durou mais de umano, e em que o Conselho da Europa assumiu, antes de Parlamento, uma posição libe-ral, foi colocada a questão de se saber se em matéria de audiovisual, assim como emqualquer outro assunto, deveria se proceder a uma integração crescente. Ao contrário,todos viam na manifestação de qualquer nacionalismo cultural, ou, como no caso daFrança, na defesa de um certo colbertismo, um perigo de que era absolutamentenecessário desconfiar. Isso é o que essa questão tem de simbólica do consenso atual,que deseja "avançar" favorecendo uma indústria cultural européia, tanto para a escri-tura e a produção quanto para a difusão — e que parece ser o único meio de resistir àstecnologias e aos projetos norte-americano-nipônicos. Qualquer outra posição era con-siderada como nacionalista, quer dizer, "reacionária", pois se existe uma palavra daqual a Europa desconfia há quarenta anos, é exatamente nacionalismo, considerado portodos, sobretudo no domínio cultural, como o que pode existir de pior!

A atitude norte-americana, no entanto, deveria provocar uma reflexão. OsEstados Unidos lutaram, sem nenhuma discrição, contra a idéia e a regra das quotas,lançando mão de todos os argumentos, do liberalismo intelectual ao pior do liberalis-mo econômico, na mais completa confusão. Só importava o resultado: não frear a pos-sibilidade de exportar os produtos norte-americanos para o que é o maior mercado domundo! Em nenhum momento essa apologia do liberalismo soou como um alarme aosouvidos europeus, embora todo mundo saiba que os norte-americanos são muito pro-tecionistas em matéria de cultura e de comunicações em geral, aproveitando-se da suaposição de força em numerosos países para propor, por meio de dumping, as suas pro-duções já amortizadas pelo mercado nacional7. Além dos argumentos econômicos, fá-ceis de compreender, em favor de um mercado aberto, os europeus não perceberamessa contradição do comportamento norte-americano entre liberalismo econômico e na-cionalismo cultural8.

Em todo caso, essa questão de quotas, em que os franceses, mais de uma vezforam repreendidos, revelou a extrema dificuldade de fazer avançar um argumento decaráter nacional num contexto político em que o conceito essencial é de "integração"e "desnacionalização".

A tecnocracia triunfantePor que a televisão européia acumula todos os signos da ideologia tecnocráti-

ca? Porque ela aborda o problema das relações entre a Europa e a televisão com aque-la lógica unidimensional9, racionalizadora e estreita, tão precisamente desmontada porMarcuse em 1'homme unidimensionnel, e que consiste em administrar o audiovisual

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e a cultura da mesma forma que a agricultura e a indústria, o turismo ou a ecologia:simplesmente mais uma questão, mesmo que seja um pouco menos prestigiosa. A con-seqüência será a desqualificação — num domínio em que não existe nenhuma norma,pois que remete às duas questões históricas fundamentais da identidade e da comuni-cação —de todos os argumentos adversos com uma dicotomia simplista: "modernismo"contra "conservadorismo". A ideologia tecnocrática consiste justamente em não saberfazer a diferenciação entre os problemas, em não saber desde quando a "passagem perdeua validade". O que resulta, em outros termos, em colocar no liqüidificador os esquemasintelectuais, os problemas políticos, econômicos, religiosos, sociais, estéticos...

É a unidimensionalidade instrumental que reduz todo o problema — neste ca-so as questões "simples" da história e da comunicação — a uma questão de calendário,com uma espécie de obsessiva urgência. Toda política é, literalmente, "reduzida", co-mo as cabeças entre os selvagens da Amazônia, a um único esquema de análise,"objetivo-fim-meio" e, sobretudo, elimina-se todo argumento que não pertença a essalógica. Aqui o status e o papel da televisão nas identidades nacionais, ali a estética,mais adiante a religião. É o triunfo e o limite da Zweckrationalitât como dizia M. Weber,a racionalidade em relação aos fins, em oposição à racionalidade em relação aos valores(Wertratiomlitãtf*.

A televisão é, sem dúvida, um dos domínios onde podemos ver melhor essaideologia tecnocrática. Para a eurocracia, tudo "o que é comum" é bom. A cultura e atelevisão, fatores de comunicação' "naturais", são instrumentos indispensáveis para apolítica européia. É preciso abrir, circular, fazer comunicar, único meio de sair do mo-saico estreito da história11. Ora, as obras de espírito pertencem à humanidade e, comoa televisão, são o meio de massa mais generalizado. A aliança dos dois permitirá umamelhor integração. Tudo que é fechado é conservador, retrógrado; tudo o que é aber-to é moderno e progressista. Da mesma forma que não há mais do que um mundo paraa política, os transportes, a informação, a economia, amanhã não haverá também senãoum único mundo para a cultura... Esse é o modelo "básico" do mercado do século XVIIIque se estende a todas as esferas da sociedade, adornado, em geral, no caso da cultura,por essa frase suplementar que soa como uma negação: "A diversidade de abordagensculturais será um fator suplementar de riqueza". A comunicação aparece mesmo comoo instrumento maior à disposição dos eurocratas: como a política, hoje, tornou-se co-municação, e a comunicação permeia tudo, não deverá mais haver dificuldades para"utilizar" a comunicação para acelerar a unidade européia.

Essa aproximação "natural" entre comunicação e política, já discutível em planonacional, o é ainda mais em plano europeu, onde justamente o peso da história, dosódios, das guerras, não pode ser apagado em meio século. Mesmo que hoje os modos

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de vida, os valores democráticos aproximem os povos. Uma coisa é fazer a Europaeconômica, política, outra coisa é realmente comunicar, sobretudo através da televisãoque é, para todo mundo, um instrumento de liberdade, permitindo justamente evadir-se da sociedade, sonhar, distrair-se. Se cada espectador sabe muito bem que a televisãoé um meio de massa, a utilização que faz dela continua, para ele, a ser privada, e éessencial que essa diferença seja preservada. A conseqüência dessa situação de fato éimediata para a Europa: os cidadãos não estão prontos, mesmo pela "boa causa daEuropa" a se interessar pelos outros. Ou então por condições estritas demais que ne-nhum dos projetos leva atualmente em conta. "O outro", mesmo no quadro da Europa,e mesmo depois de quarenta anos de uma política insistente e justificada de aproxi-mação, continua a ser "um outro", para não dizer, às vezes, um verdadeiro estranho.

Não será amanhã que os diferentes povos que compõem a Europa serão "eu-ropeus", mesmo que digam isso mil vezes nas sondagens. Em todo caso, se eles o dizemnas sondagens, querem ao menos que em sua própria casa, assistindo à televisão, este-jam "em casa", isto é, num Estado-Nação identificado. O que não significa uma recusaem se abrir ao outro, contanto que possa fazê-lo baseado em suas próprias condiçõesde identidade nacional. É uma coisa inteiramente diferente do discurso europeu "to-tal" que ouvimos permanentemente, principalmente na televisão.

Para relembrar a imensa complexidade da aproximação de povos que tudo se-para há diversos séculos, basta rememorar a crise de confiança mútua que se instalouem menos de um mês, em novembro-dezembro de 1989, entre Paris e Bonn, a despeitode trinta anos de consideráveis esforços, quando o chanceler Kohl tomou posição pelareunificação. Sem falar da persistente desconfiança entre a Grã-Bretanha e a Alemanhaque os projetos de reunificação não estão prestes a sanar, mas que não levamos muitoem conta porque sabemos que os ingleses são, "por natureza", maus europeus. Apesarde, por duas vezes, em 1914-1918 e 1939-1945 eles terem provado o contrário...Reações como essa não devem ser subestimadas, ou tomadas como incidentes de per-curso, mas como sinal de que a integração política, e sobretudo cultural, é muito maisdifícil de realizar do que a integração econômica. O tecnocratismo consiste também emnão perceber as diferenças de natureza, de lógica, de status, de símbolos, de valores,que separam a economia, a política e a cultura. Mesmo que todo mundo esteja mais oumenos de acordo em seguir na mesma direção. Podemos ser favoráveis à construçãoeuropéia, sern por isso desejarmos estar "na casa do vizinho"! Podemos ser favoráveisà televisão como meio de chegar ao outro, sem acreditar por isso numa melhor comu-nicação entre "nós" e "os outros"12. Confundir a escala de difusão da televisão e ascondições de um encontro bem-sucedido com o outro traduz uma falta de conheci-mento dos mecanismos da comunicação tanto no plano interpessoal quanto no plano

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cultural e social. Os eurocratas enxergam a televisão como uma rede (networty desti-nada a conectar e amplificar a política européia, tendo, como referência, o papel de-sempenhado pela televisão na constituição da identidade norte-americana, da qual es-quecem todas as radicais diferenças históricas que dificultam qualquer analogia. Em lu-gar de manter uma comunicação o menos integrada possível, para deixar aos públicose aos povos o tempo necessário para aceitar a integração econômica e depois política,instaura-se um processo frenético de aceleração, que mais uma vez oblitera o que estáem causa com relação à televisão, a saber, o bem social e a relação com o outro. Separarcomunicação e política torna-se um imperativo.

Em poucas palavras, "façamos a paz com a televisão!" Quisemos torná-lapedagógica ou cultural, propomo-la agora européia... Em resumo, os eurocratas não su-portam que a televisão seja subutilizada quanto ao objetivo europeu, eles querem me-lhorar a sua performance como se melhora a performance de uma empresa. Ela de-veria ser um imenso "programa Erasmus" para todos os públicos, com grande supe-rioridade de eficácia e rapidez — duas palavras mestras da ideologia tecnocrática. Empoucas palavras, racionalizar a utilização e a eficácia da televisão... Além disso, existeem Bruxelas, assim como em todos os países, uma espécie de hierarquia intelectual im-plícita na gestão dos negócios. São os tecnocratas mais "intelectuais" que estão encar-regados da questão do audiovisual, como que para relembrar ao resto da eurocracia eaos governos nacionais que a televisão européia, além das questões industriais, é tam-bém uma questão cultural. Que não se trata de pesca, nem de agricultura, nem mes-mo de eletrônica! Todas as questões são iguais, mas algumas são mais iguais do que ou-tras! E se quisermos realmente fazer a "sociologia da Europa", poderíamos dizer que oaudiovisual e a cultura, mesmo não sendo assuntos dos mais importantes, estão entreos mais prestigiosos, pelo menos entre os "distintos". Os que estão dela encarregadostêm, de fato, a sensação de assumir uma responsabilidade particular, quase histórica.

É o triunfo de uma visão integrada, tipicamente tecnocrática, em que nada fal-ta num soberbo conjunto que vai da política à televisão de alta definição para terminarnos programas, nos co-financiamentos, nos direitos de autor, no futuro da Europa cul-tural. Essa política, que não esquece nenhum dos aspectos da política audiovisual, re-sulta numa conseqüência característica de certo comportamento tecnocrático: a cons-trução de uma realidade totalmente artificial, no sentido em que, se na vida cotidianaa televisão européia não existe, ela existe sim, em compensação, em Bruxelas,Luxemburgo, Estrasburgo e em outras partes, pelo número de pessoas que deia se ocu-pam em escritórios, em textos, em regulamentos e circulares. O recenseamento do

*Programa Erasmus: programa europeu de intercâmbio universitário. (N.T.)

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número de documentos emitidos ao longo de dez anos sobre o assunto e a multipli-cação dos escritórios que se ocupam da questão audiovisual seria eloqüente.

A televisão veio a se tornar um objeto dessa enorme máquina européia a talponto que chegamos a acreditar que a televisão européia já existe há muito. Ao mes-mo tempo, a única instituição existente, essa, sim, há muito tempo, a União Européiade Radiodifusão, que poderia ter estado concretamente à testa de uma televisão eu-ropéia, porque já conhece todas as dificuldades de coordenação, acabou quase deixadade lado! Com uma ligeira mudança de status, ela poderia ser o instrumento de diálogomais simples, justamente porque, há mais de trinta anos, se vê obrigada a esse diálogoentre televisões. Porém, consideramos a União Européia de Radiodifusão como um ins-trumento do passado, prudente demais em relação ao "grande projeto da televisão eu-ropéia".

A ausência de debates fora do Conselho de Ministros e do Parlamento acentuaa defasagem entre uma minoria de tecnocratas que prepara a "felicidade comunica-cional" de amanhã e uma imensa maioria de públicos que poderia dizer alguma coisa,mas aos quais pedimos sobretudo que não o façam, temendo que o que possam dizernão esteja no "sentido da História". Essa defasagem acentua a sensação de irrealidade,e é por isso que não existe, no momento, "ninguém" diante desses responsáveis pelapolítica audiovisual. Nada de debates públicos, de estados de espírito, de sindicatos, delobbies, de relações sociais que seria necessário levar em conta. Ninguém. A situaçãoideal para um tecnocrata: construir o futuro sem ter de entrar em composição com asforças sociais sempre "atrasadas" que existem hoje.

Uma lógica modernizadora simples, uma necessidade histórica, uma linguagemde "evidência", e fantasmas mascarados pela tecnicidade dos processos dão a essaquestão da televisão européia um perfume estranho. Ela é um grande projeto históricosem realidade concreta, já sendo um assunto entre outros, vivendo na sua própria ve-locidade de cruzeiro político-burocrático e é por ocasião de um apogeu europeu que opúblico fica sabendo que essa decisão foi, enfim, tomada ou renegada! São todas essasdefasagens entre as escalas de tempo, de realidade, de interesses, de consciência, dedebates, de políticas institucionais que ilustram essa estranha "irrealidade tecnocráti-ca". E isso tudo se dá sobre o pano de fundo do discurso cultural e identificador, uti-lizando as palavras, os valores e os símbolos que são os mais nobres, os mais respeita-dos e os mais difíceis de manejar no seio de uma cultura e entre culturas!

A despeito das bravatas sobre a "riqueza da diversidade cultural européia"13, asensação dominante é que essa política audiovisual européia parece um elefante numaloja de porcelanas, e a ausência de discussões públicas é interpretada como aquiescên-cia por parte das opiniões públicas nacionais. Mas o calendário dos tecnocratas não é o

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mesmo do povo, e nada garante que ele seja melhor, sobretudo em matéria de cultura,de identidade e de comunicação!

O modelo racionalista unidimensional também pode ser encontrado na maneiracomo, implicitamente, considera-se que a televisão européia será, na sua maioria, or-ganizada no modo privado, embora na maior parte dos doze países14 a televisão públi-ca seja ainda majoritária. Percebe-se um misto de fascínio e de repulsa pelos grandesgrupos de comunicação privados, mas temos a impressão de que só eles terão o di-namismo e o capital necessário para essa nova aventura. Estandardizar e amplificar, es-sa é afinal a perspectiva prevista, mesmo que todo mundo passe todo o tempo a falarda riqueza da diversidade! Tudo isso, evidentemente, em nome da identidade e da cul-tura européias, cuja unidade não escapa a ninguém...

As contradições dessa abordagem tecnocrática podem ser vistas na confusãodos calendários. Enquanto os blocos "pesquisa de tecnologias" e "indústrias de mate-riais" do programa Eureka estão, evidentemente, ligados à concorrência estrangeira eprovêm dessa mesma lógica, o bloco "programa" — embora aí também a concorrên-cia e a urgência sejam reais — não provém do mesmo calendário. A televisão européianão pode ser como um bloco "programa" a ser desenvolvido com urgência, ao lado dosblocos "tecnologia" e "indústria", mesmo que, de um ponto de vista estritamente "lógi-co", os três formem um conjunto. A realidade cultural não evolui no ritmo da lógicatécnica e industrial, nem mesmo no ritmo da lógica econômica. O "programa" está, evi-dentemente, atrasado, pois ele remete à realidade histórica e precisará de tempo e... devontade para fazer aparecerem autores, realizadores, projetos de programas capazes deagradar a diversos públicos. Não se criam consumidores de programas, não se criampúblicos com a mesma velocidade com que se fabricam e lançam satélites de teleco-municações! Sim, existe uma supercapacidade de difusão em relação à recepção e à de-manda. Sim, existe o risco de colonização pelos programas estrangeiros, devido àrentabilidade. Mas não é acelerando a integração em nível da produção do programa,que é efetivamente o desafio essencial, que faremos avançar a causa da televisão eu-ropéia, pois o problema essencial do status da demanda acabará sendo colocado umdia. Os públicos querem imagens e, como vimos, pouco lhes importa — e isso é umapena, em parte — que essas imagens sejam públicas ou privadas e, evidentemente, de-mandarão imagens estrangeiras, pois a televisão é antes de mais nada um instrumentode abertura e distração. Mas nem por isso os públicos nacionais estão prontos a se trans-formar em público europeu!

Na realidade, existem diversos níveis e calendários em ação, coisa que os políti-cos de diversos países aprenderam muito bem pela experiência, às vezes dolorosa, aolongo destes quarenta anos. A noção de "estágios", tão utilizada na política agrícola, in-

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dustrial, universitária, é praticamente esquecida neste caso. Tampouco é acidental o fa-to de que a televisão seja o instrumento adequado para valorizar esse fundo cultural co-mum à Europa. Como vimos no capítulo 11, persiste um hiato estrutural entre culturae televisão. Mas esse hiato é menos percebido aqui do que fora, uma vez que a tele-visão é considerada principalmente como um instrumento de difusão.

Admitir que a televisão não é o melhor instrumento para a cultura européia,nem mesmo para fazer progredir a questão da consciência européia, seria já um grandeprogresso. A confusão entre o aumento das capacidades de difusão por meio das novastécnicas de comunicação e a natureza da demanda virá talvez a colocar a questão: atéque ponto vai o poder dos eurocratas? Até que ponto pretenderão eles fazer a felicidadedos públicos sem o consentimentos destes? Acabamos por voltar sempre ao mesmo pon-to: a ideologia tecnicista confunde muitas vezes capacidade técnica e demanda social.Se a primeira está, quase sempre, à frente da segunda, não existem por enquanto meiosde acelerar esta última. Mesmo neste final do século XX!

Tarde demais ou cedo demaisA televisão européia pode ser uma boa idéia, mas, no momento, ela é inade-

quada ao calendário: é tarde demais ou cedo demais.Tarde demais porque a criação de um canal europeu nas décadas de 1950 ou

60, no momento em que a Europa se fazia lentamente, sem abandono de soberanias,nem pretensão de mercado único, teria tido um valor propedêutico. Teria significado apesquisa de um outro quadro, estimulando autores, intelectuais, realizadores, produ-tores, a ampliar a sua perspectiva, num momento em que a televisão estava em plenodesenvolvimento.

Cedo demais, agora que uma parte do que chamamos de "televisão européia",ajudada pela escritura, pela montagem de co-produções, pela melhoria da difusão, já sefaz há muitos anos, sem precisar de trombetas, nem de discursos oficiais. Mas sem serainda, de maneira propriamente dita, a televisão européia. Trata-se de um processo nor-mal de aproximação por razões econômicas, às vezes políticas e culturais, entre as dife-rentes televisões européias. Isso não é apenas necessário, mas evidentemente desejá-vel. Em compensação, o que entendemos por televisão européia tem uma dimensãomais ambiciosa do que o conteúdo estrito dos programas Media e Eureka, e visa, jus-tamente, uma integração superior, na escala desse mercado de 320 milhões de habi-tantes que parece fascinar todos os industriais.

Cedo demais também porque os agentes econômicos, políticos e culturais, semfalar do público, não estão prontos para passar de uma televisão essencialmente na-cional que, conforme vimos no capítulo 6, reveste-se de importância para os cidadãos,

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para uma televisão de dimensão européia. Sobretudo no momento em que a Europasupranacional se constitui sobre o pano de fundo da reunificação alemã, da redescobertada Europa Oriental e do desequilíbrio do sistema comunista.

Dois dados essenciais, a ausência de um espaço público europeu e a estranhaaliança dos intelectuais e dos tecnocratas, dois grupos socioprofissionais que descon-fiam da identidade nacional, ilustram, por oposição, essa hipótese de que é tarde de-mais ou cedo demais para uma televisão européia.

Qual espaço público?Não existe espaço público europeu, embora exista um espaço político15. E a dife-

rença radical deve ser mantida, no momento em que a questão consiste em saber emque condições poderemos passar de um para o outro. Existe um espaço político, definidopela existência das instituições, o Parlamento16, o Conselho de Ministros, o Conselho daEuropa, a Corte de Justiça, cujo caráter representativo foi, evidentemente, acentuadopela eleição, em 1979, dos deputados europeus, por sufrágio universal direto. Esse es-paço político, inegável, se traduz por disposições políticas, administrativas, jurídicas etorna a Comunidade Econômica Européia uma entidade jurídica independente, mesmoque ela não tenha os atributos de soberania de um Estado. A Europa é um agente essen-cial do espaço político europeu, sem ser, no momento, um agente soberano.

Para que haja espaço público, precisa-se de outras condições: uma comunidadeestruturada que se assemelhe a uma nação, um sistema de decisões democráticas, a per-manência de certas questões, a existência de uma identidade, a participação em valorescomunitários e históricos, o sentimento de interesses comuns, a existência de mídias plu-ralistas, uma tradição, mecanismos de designação comuns de poder e de autoridade, ummínimo de cultura como hábito de intercambiar argumentos contraditórios, uma con-vivência a despeito de conflitos, o reconhecimento mútuo desse liame de expressão e asua utilização para o intercâmbio17. Podemos perceber em quê a passagem do espaçopolítico para o espaço público resume, na realidade, toda a história do projeto políticoeuropeu, e como a ausência de espaço público europeu é uma das razões por que nãopode existir televisão européia, pelo menos com o papel de integração que gostaríamos,inevitavelmente, de fazê-la desempenhar, por assimilação àquele desempenhado pelastelevisões no seio dos espaços públicos nacionais. Não é porque os políticos europeus seencontram, discutem, tomam decisões e são objeto de tratamento midiático mundial quepassamos a ter um espaço público! Se assim fosse, os encontros entre os senhoresGorbatchev e Bush significariam a existência de um espaço público comum18! No surgi-mento de um espaço público, existem dados históricos e praticamente antropológicosem cujos domínios não se pratica a economia política. São os cidadãos da Europa que,

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no seu ritmo, da mesma forma como ocorreu em cada espaço nacional ou cultural, irãoconstituir esse espaço, público e a sua existência terá então uma presença "física" quenão''enganará a ninguém. O espaço público é uma conquista de longa definição e, so-bretudo, paradoxal, que escapa à racionalidade tecnocrática e política.

Em compensação, existem na Europa espaços públicos nacionais e todo o in-teresse da Europa, neste momento, é de se constituir numa questão através desses es-paços públicos nacionais. Os eleitos europeus e os eurocratas lamentam, evidente-mente, a ausência de um espaço público real, mesmo que a constituição de um espaçopolítico, ao longo de vinte anos, já revele o desafio. Mas eles não podem transformararbitrariamente esse espaço político em um espaço público. Essa distinção teórica en-tre espaço público e político torna-se ainda mais importante quando lembramos que aEuropa parece um caso de "inversão", se a compararmos a outros espaços públicos.Ela tem todos os atributos reconhecíveis de um espaço público, principalmente aexistência de uma classe política, mídias e mais e mais sondagens de opinião, porém,sem ter a fonte.

Com efeito, em cada nação — mesmo não havendo isomorfismo entre espaçopúblico e Estado-Nação, como vimos no caso da Alemanha19 — a existência de um es-paço público traduz-se por estas três características: políticos, mídias e uma opiniãopública, o que leva algumas pessoas a concluírem com muita facilidade que já existeum espaço público europeu.

Mas aí estamos diante de um efeito perverso do reinado da comunicação. Graçasàs mídias e às sondagens de opinião, temos uma representação constante do espaço políti-co europeu a ponto de acreditarmos que se trata de um espaço público. Talvez a súbitamultiplicação das sondagens européias nestes dez anos, provocadas pela eleição doParlamento por sufrágio universal, dois fenômenos evidentemente interligados, é que se-ja a coisa mais enganosa, pois as mídias, mesmo tratando abundantemente o fato eu-ropeu, continuam profundamente "nacionais". Para se convencer disso basta observardurante algum tempo a imprensa européia e constatar como os mesmos fatos são trata-dos diferentemente nos países membros da Comunidade, o que consolida imediatamentea hipótese de que não é por haver crescente integração política que mudam os "pontosde vista"20 sobre a Europa. Eles continuam, por enquanto, nacionais, para não dizer na-cionalistas, o que resulta numa boa perspectiva para a Europa. Na verdade, o essencialpara fazer a Europa é a manutenção de pontos de vista, a consideração dos dadosgeográficos do local a partir de onde observamos. Pois, como ensinou Montesquieu, oponto de vista é determinante da representação que fazemos do mundo.

Não basta, pois, que se multipliquem os jornais que falam da Europa paracriar um espaço público, e apesar das muitas tentativas (como os projetos de Maxwell

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e Hachette), nenhum jornal cotidiano europeu apareceu de fato. O que prova que aexistência de um cotidiano não depende apenas de um eleitorado em potencial, mastambém de condições culturais sutis e complexas, ligadas justamente a essa presençadas questões que dão uma certa significação dramática às informações, e, portanto, àexistência do espaço público. Neste momento, a única experiência em tamanho natu-ral é um semanário em inglês, e não um cotidiano, lançado por M. Maxwell, em abrilde 1990, The Europeart\

Definitivamente, as condições de criação da imprensa escrita22 são muito reve-ladoras da problemática do espaço público. Não se dá o mesmo com o rádio, que é muitomais facilmente transnacional, e essa mesma questão se coloca para a televisão. As ima-gens, assim como o som, são transnacionais, mas já vimos que elas nem sempre assumemrealmente o seu sentido, senão quando compartilhadas no seio de uma comunidade devalores, de interesses, de lembranças. Em outros termos, ao defender essa concepção cul-turalista da televisão, oponho-me àqueles que têm uma visão seja puramente instrumen-tal, seja, ao contrário, superpoderosa. A televisão, como todas as técnicas de comunicação,deve ser analisada em relação ao seu quadro de referências, neste caso o espaço público,permitindo assim deslocar a problemática do seu "poder" para o seu papel de laço social.

Em relação às sondagens de opinião, a questão é inteiramente diferente porquea sua existência e o seu sucesso indicam o seu poder de expressar a opinião públicanum momento determinado, com o pressuposto de que essa manifestação da opiniãopública é um dos elementos constitutivos do espaço público. Se as sondagens nacionaisjá existem há muito tempo — e a sua aceitação traduz muito bem a existência da opiniãopública e de espaços públicos nacionais — a diferença em relação à Europa era, até opresente, simples, na medida em que não havia muitas sondagens, prova de que nãohavia "opinião pública européia", ou, afortiori, "espaço público europeu". Mas apósdez anos, as sondagens se multiplicam. Havia, antes, evidentemente, os "euro-barômetros", mas eles eram sempre de uso confidencial, destinados principalmente àeurocracia e aos governos. Hoje, com o objetivo do grande mercado, os agentes econômi-cos e políticos não querem apenas fazer comparações entre informações nacionais,querem sobretudo fazer avaliações e projeções em plano europeu. E é assim que aaparição, primeiro lenta, depois mais e mais rápida, das sondagens européias, passarama dar "naturalmente" a sensação de que existe uma opinião pública européia. O que,evidentemente, não desmente os institutos de sondagens de opinião, que operam todauma reconversão radical sobre a Europa, a fim de parecerem competentes simultanea-mente em nível europeu e nos seus territórios nacionais.

Além disso, como que para ilustrar essa congestão de sondagens, constatamosque o número l do The European abre justamente com uma sondagem européia, ten-

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dendo a provar que nos países maiores, 60% dos cidadãos são favoráveis a uma moedacomum. Essa tendência a fazer dos jornais a caixa de ressonância das sondagens deopinião retoma um problema de fundo concernente à evolução do papel das mídias nacomunicação política, que já examinei em outro quadro de referência23. Qual é o peri-go? Que a informação, a da imprensa cuja autoridade provém do trabalho necessaria-mente subjetivo dos jornalistas, seja progressivamente derrotada por uma lógica da in-formação representativa, a das sondagens, cuja legitimidade seria sempre maior, justa-mente porque mais "objetiva". Haveria muito em breve um conflito radical entre duasfontes, duas legitimidades de informação e não se pode garantir que a imprensa, comseus suportes já confusos, acabe saindo naturalmente vencedora, uma vez que é elamesma que, hoje, ao tornar públicas as sondagens, lhes garante um eco, um prestígioe uma legitimidade sem igual. A imprensa, ao ceder mais e mais espaço às sondagens,serra o galho sobre o qual está já bem incomodamente sentada!

O reflexo de relacionar as sondagens com a existência de uma opinião públicajá está totalmente estabelecido nos diversos países e sobretudo na França, onde dete-mos o recorde de sondagens encomendadas e publicadas. E de certa maneira, esse pro-cesso tranqüiliza todo mundo, pois é mais agradável pensar que as sondagens remetema uma opinião pública, e, portanto, a um espaço público, do que o contrário. O que sig-nificará essa exigência européia, tantas vezes repetida pelos políticos, se ela não en-contrar o seu correspondente na existência de uma opinião pública? O que seria daEuropa, depois de quarenta anos de existência, sem uma opinião pública européia? Qualnão seria a decepção se nos dermos conta da sua inexistência?

E, no entanto, é provável que seja necessário darmos uma solução ao proble-ma: a opinião pública européia não existe, assim como não existe a televisão européia,o que não impede, em ambos os casos, que se faça a Europa, mas o que permite, pelomenos, compreender que a Europa se faz em ritmos variados. Existem provavelmenteelementos de opinião pública a se avaliar, mas é difícil atribuir-lhes uma caracterizaçãoteórica. Assim como no caso da televisão européia, podemos brincar com as palavras,um pouco com as realidades, antecipá-las, combiná-las, mas não inventar todas as peças.No dia em que a opinião pública européia existir, ela será visível e os seus efeitos serãotangíveis. As sondagens, assim como os políticos, não previram a chegada dos eventosque sacudiram a Europa Oriental e a Alemanha em 1989, porém, têm uma espécie deefeito retardado, no sentido em que contribuem, retrospectivamente, para que se formeuma opinião sobre o assunto a respeito do qual pedem a nossa opinião...

As sondagens são um meio de "tornar pública" a Europa, cuja vantagem édemonstrar que ela pode existir. Mas têm o inconveniente de mascarar o fato de quenão traduzem necessariamente a existência de uma opinião pública européia. Fora o

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momento muito preciso das eleições, não é mais realmente possível avaliar a sua ve-racidade. E ainda assim, no caso das eleições européias — o ato concreto mais impor-tante da construção européia — constatamos em quase todos os países uma tendênciaa "nacionalizar a questão européia". Isto é, recodifícá-la em termos de política nacionalou, se preferirmos, a votar pela Europa com critérios de política nacional. Esse fenô-meno, que entristece os eurocratas, deveria, antes, levar a entender que, por enquan-to, os cidadãos da Europa querem votar pela Europa, mas através dos seus prismas na-cionais. Será preciso tempo para que apareça uma consciência política propriamenteeuropéia. Por que para a política, que é, por excelência, um domínio codificado, ad-mitimos que é preciso tempo, e por que desejamos um processo mais rápido para aopinião pública, para o espaço público, para a cultura e televisão européias, que têmexistência ainda menos tangível?

O efeito de "autoproclamação" ou de "auto-referência", como se diz, corre orisco de não ser nulo em termos de opinião pública. A sondagem feita, por exemplo,pela CSA para o Liberation e citada na UNE de 19 de fevereiro de 1990, ilustra per-feitamente essa ambigüidade. Trata-se de uma sondagem realizada para o colóquio"Para onde vai o Leste?", realizada em oito países (França, Grã-Bretanha, AlemanhaOriental, Espanha, Itália, Hungria, Polônia e União Soviética). O comentário era: "Nasduas Europas, a tendência comum de opinião é a favor de uma sociedade do tipo so-cialdemocrata, os consultados desejam uma economia de mercado, temperada por umadistribuição eqüitativa da riqueza, um regime de liberdade e uma proteção social garan-tida. Quanto à reunificação alemã, ela é geralmente aprovada no Ocidente, mas sus-cita fortes reservas no Leste." Nas páginas internas, os títulos eram: "A socialdemo-cracia seduz a nova Europa [...] uma palavra consensual, uma realidade difícil de atin-gir". Em suma, resultados de bom senso, que quase chegamos a nos perguntar se pode-riam ser diferentes, uma vez que os países do Ocidente não podem mais mergulharna idolatria do capitalismo, que conhecem bem, e os do Leste não têm ilusões sobreesse mesmo capitalismo que, no entanto, evidentemente, preferem ao comunismo.Realizar um plebiscito na socialdemocracia que tem a vantagem, em todos os sentidosda palavra, de estar a meio caminho entre os dois, revela mais uma atenção prudentedo que uma franca ruptura de análise! No plano técnico, a sondagem já era uma grandeaudácia, e seu resultado, ainda mais inesperado, satisfez a todos sem nada revelar deescandaloso, pois se constituía assim, por si só, num instrumento de "publicidade"para a existência de uma opinião pública européia. Francamente, seria uma pena delase privar!

O que quero dizer é que existe um tal vazio, e há muito tempo, relativamentea uma opinião e a um espaço público na Europa, sendo as duas coisas interligadas, de

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modo que toda informação, sobretudo se é representativa, tem uma função evidentede asseguração. E ainda mais quando vemos a defasagem entre o grande número desondagens nacionais e o pequeno número em plano europeu. Assumimos a tal ponto ohábito de nos informar por meio das sondagens que todos supomos, por extrapolação,que acontece o mesmo em plano europeu. Se a Europa é importante, deveria entãohaver ao menos tantas sondagens européias quantas sondagens nacionais. Isso não éuma crítica à indústria das sondagens, mas simplesmente um lembrete de que o volun-tarismo europeu não dispõe, no momento, de meios para a sua política e não tem, porexemplo, uma opinião e um espaço públicos de modo que todo instrumento, todas asmedidas afortiori, que dão a impressão de que esse espaço e essa opinião existem, se-jam acolhidas com infinito prazer.

Nessa sondagem CSA-Liberation, o que agradava mesmo — e que tem, evi-dentemente, toda a possibilidade de ser falso quando conhecemos um pouco a históriada Europa Oriental e a ela juntamos a de quarenta anos de comunismo — era a idéiade que a Europa Oriental enfim pensava como nós! Existe efetivamente algo de tão an-gustiante nessa súbita ampliação da Europa, embora todos digam que a desejam pro-fundamente, que só o fato de ler as sondagens demonstrando que, a despeito de todasas diferenças, os europeus orientais pensam como nós, traz alguma coisa de profunda-mente tranqüilizador.

A Europa está à procura de uma opinião pública impossível de encontrar e so-nha com curtos-circuitos históricos para formar um espaço público que ainda nãoexiste. Não existem, portanto, sondagens européias propriamente ditas, pois não existeopinião pública, mas sim fragmentos de opinião pública, assim como não há espaçopúblico, mas sim um espaço político e fragmentos de espaço público24. Ademais, es-quecemos sempre a vantagem da ausência de opinião pública e de espaço público! Poisnão é certo que uma opinião pública constituída e um real espaço público pudessemter sido elementos "naturalmente" favoráveis à Europa depois de duas gerações. A des-peito do que dizem os políticos, a ausência de opinião pública e de espaço público naEuropa os deixaria provavelmente com as mãos mais livres...

Hoje, o consenso europeu está tão próximo do conformismo que esquecemosas antigas oposições. Por exemplo, a maneira como sempre tratamos a reticência in-glesa em relação à Europa comprova o peso do conformismo europeu atual! Nem épreciso dizer que a "pérfida Albion", por razões umas mais sórdidas que as outras, éuma "má européia" e os argumentos continuamente desenvolvidos pelos britânicospara se oporem a uma integração política demasiado forte, bastante afastados, por sinal,dos do general De Gaulle, não são praticamente nunca estudados e apresentados à im-prensa com seriedade. Os ingleses, como sempre, são os que "impedem a roda de gi-

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rar" e é inútil refletir mais sobre a sua argumentação, uma vez que a construção eu-ropéia avança "no sentido da história". E as hesitações dos povos escandinavos quan-to à sua possível adesão à Europa não são suficientemente levadas em consideração,mesmo se tratando de países de alta cultura e que, há muito tempo, voltaram-se parao exterior.

Por que evocar aqui o pouco caso feito das posições inglesa e escandinava? Parademonstrar o peso de um certo conformismo e o risco de que as sondagens, na falta dedebates reais sobre a Europa, acabem refletindo, no momento, esse conformismo mé-dio. Pois os povos, quando sabem não haver mais pressão sobre os acontecimentos —como é o caso na construção européia — e depois de terem ouvido repetidamente dis-cursos políticos afirmando que a Europa é "o futuro do homem", têm a tendência deretomar o mesmo discurso! Existe um jargão da construção européia, tanto para oshomens políticos quanto para os cidadãos, e ninguém duvida de que no estágio atualda constituição do espaço público, seja esse jargão o que encontramos nas sondagens.Além disso, o efeito espelho das sondagens é bem conhecido, mas, no quadro dos es-paços públicos nacionais, ele é muito mais facilmente temperado do que no quadro eu-ropeu, onde ainda não existe tradição de intercâmbio nem de percepção real, por partedo público, da ação das questões na vida cotidiana. Em lugar de agir sobre essas de-fasagens inevitáveis entre a consciência dos povos e a necessidade da ação histórica25,o raciocínio tecnocrático, muitas vezes seguido pelo dos políticos europeus, leva a recla-mar das mídias e das sondagens européias e, portanto, a negar essas diferenças. No vo-luntarismo da utilização da comunicação em sentido amplo, para estimular a consciênciae as idéias européias, existe um perigo, principalmente se a situação política geral viera deteriorar-se.

Em poucas palavras, sim à circulação de informações, de enquetes sobre osdiferentes países, mas com a condição de não considerar esses elementos parciais co-mo a prova da existência de uma opinião e de um espaço públicos. E que os eurocratas,assim como os políticos, não se queixem precipitadamente desse vazio comunicacionalque lhes é benéfico! Pois uma tal defasagem é fonte de liberdade e de responsabilidade:ela relembra todos os dias a necessidade de não confundir o castelo de areia que éatualmente a construção européia com as situações muito mais estáveis das coletivi-dades nacionais. E se a comunicação pode desempenhar um papel evidente na cons-trução européia, não o fará criando a ilusão de uma opinião e de um espaço públicos,mas ao contrário, fazendo circular tanto aquilo que une quanto aquilo que divide.

Nesse processo, a televisão desempenha um papel ambíguo. Ela é, ao mesmotempo, um instrumento de abertura evidente, mas também um instrumento privadode fechamento. Ver o mundo, sim, mas vê-lo em casa. Por isso, a utilização da televisão

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para amplificar o sentimento europeu pode ser perigoso, pois os cidadãos desejam, sim,a Europa, contanto que lhes preservemos também o espaço privado e nacional. É pre-ciso, portanto, não confundir o crescimento do volume de informação, os programaseuropeus oferecidos pela televisão, com a consciência européia dos públicos. Esta semodificará em um outro ritmo, por uma espécie de "capilaridade" da qual a televisãonão é senão um dos elementos. Atualmente, a televisão, os jornais e as sondagens semdúvida contribuem bastante para o jargão europeu, num momento em que, ao con-trário, a aceleração da construção política deveria incitar a um crescimento da lógicaautônoma da informação.

O encontro entre os intelectuais e os tecnocratasO tema da cultura, da identidade e da televisão européias não teria esse lugar

simbólico se os eurocratas não tivessem recebido a ajuda preciosa dos intelectuais. Osdois grupos são fascinados pela história, os eurocratas como agentes, os intelectuais co-mo observadores ou mesmo como "inspiradores" da ação dos políticos. Os primeirosagem, os segundos constróem uma visão da Europa com uma filosofia bastante simplesda história em ambos os casos: a nação pertence ao passado, o futuro está numa novamoldagem de grandes conjuntos. Mesmo que os eventos da Europa Oriental e o des-pertar das nacionalidades tragam, todos os dias, um desmentido a esse "sentido dahistória".

Para os tecnocratas, a Europa apresenta-se como uma chance concreta de cons-truir a história, para os intelectuais, a de encontrar uma outra inspiração histórica depoisdo esfacelamento do marxismo. Existe, portanto, um encontro "objetivo" entre os doisgrupos que estão em situação especular, em que um reforça o outro, mesmo fingindo ig-norá-lo. Além disso, os "grandes intelectuais europeus" não se esquecem de subscrevero projeto político da Europa e de mobilizar, para isso, os grandes mitos e as grandes refe-rências, como se essas referências históricas e culturais fossem um suplemento de almapara tornar a Europa algo mais do que um simples mercado econômico!

Os intelectuais, principalmente os midiáticos, mas não só eles, que insistemsempre sobre a sua função política, transformam-se nos grandes mitologizadores quan-do se trata da Europa. Como se depois da Europa da economia e da política, fosse in-dispensável a existência da Europa da cultura, ou seja, a deles. E, no entanto, a maiorparte deles não se ocupou com nada dessa Europa durante longo tempo. Chegarammesmo a vilipendiá-la, como exemplo do "ideal do capitalismo triunfante"26, não en-contrando palavras suficientemente fortes para denunciar a sua desumanização. OTerceiro Mundo e as revoluções contavam com a sua simpatia natural; o tatear da Europacapitalista, com os sarcasmos de sua antipatia natural. Coincidência da história, eles se

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juntam no momento em que os últimos fogos do marxismo se apagam no Leste. Alémdisso, essa indiferença pela Europa Ocidental em construção não veio acompanhada deuma grande curiosidade pela Europa Oriental, uma vez que nunca se podia ter certezase os oponentes do interior não seriam mesmo um pouco conservadores... Não era obri-gatório ser necessariamente marxista ou comunista, mas era preciso sempre não desqua-lificar o que acontecia por lá, sob pena de fazer o jogo dos "anticomunistas primários".A Europa Oriental, durante quarenta anos, interessou sobretudo aos intelectuais deantes da guerra, aqueles que viram surgir a cortina de ferro, não a tendo aceitado ja-mais e tentado sempre, de mil maneiras, manter o diálogo, entre 1950 e 1980. Forampor isso tratados regularmente como "rematados conservadores anticomunistas" quetentavam desestabilizar o Leste. Uma minoria de intelectuais considerados "mo-dernistas" e "moderados" também se interessou pela Europa Oriental27, mas sem grandesucesso e, sobretudo, sem jamais chegar a se livrar da suposição de anticomunismo quepesava também sobre eles (foi o caso das revistas Arguments, Esprít...).

A Europa, portanto, acaba de ser "investida", por ocasião de uma virada comosó são capazes de dar os intelectuais, sobretudo os de esquerda, que esquecem, nagrande tradição casuística, as posições que mantiveram com tenacidade durantequarenta anos28. Os mesmos que passam todo o tempo a censurar os políticos e todomundo por não ter memória... Em resumo, hoje, os intelectuais investiram "na" Europa.E ela passa a ser assunto "seu". Eles vão lhe dar uma alma, isto é, uma cultura, e comoa cultura é assunto para intelectuais, compreendemos que aí invistam sentimentos namesma proporção em que serão dela produtores, defensores e mediadores. E aí está anossa elite cultural européia novamente sobre a sela.

É preciso também notar que esse investimento cultural pelos intelectuais é am-bíguo sob dois pontos de vista. De um lado, temos a impressão de que a cultura subs-tituiu a política depois do esfacelamento das ideologias da revolução e do marxismo. Émais ou menos como se uma parte da elite cultural descobrisse a cultura como rein-vestimento ou substituto da política. Como a história não tem mais horizonte, volte-mo-nos sobre aquilo que é nossa especialidade: a cultura29. Por outro lado, esse rein-vestimento cultural se traduz pela mobilização de um fundo de imagens e represen-tações que mostram as raízes profundas da identidade européia nas diferentes práticasculturais nacionais. Esse trabalho de inscrição no "tempo cultural" traz uma incon-testável legitimidade à aventura européia... e aos intelectuais. Assim, a História é re-visitada e mobilizada para mostrar como a Europa sempre esteve presente! Por exem-plo, vamos "redescobrir a Europa da Idade Média" com "as grandes universidades e asgrandes cidades". E no entanto, tudo mudou! Além de uma nostalgia, sem dúvida útilao imaginário, ou seja, à mobilização européia, é delicado acreditar que a idéia do fu-

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turo europeu, que ninguém enxerga claramente, se dará na redescoberta de um passa-do europeu fortemente idealizado, mitologizado, do século XIII ou do século XVIII! Emquê a Sorbonne do ano 2000 poderá se parecer à do século XVII? O nome é o mesmo,isso é importante, mas não basta... Essa evocação mitológica do passado permite mostrarque a Europa apenas "se redescobre", hipótese altamente audaciosa, e que nada se podefazer sem os intelectuais que são os seus arautos.

Em outras palavras, digamos que ontem, pela revolução e pela crítica radicalda democracia burguesa, hoje pelo futuro radioso da Europa, nos dois casos, os inte-lectuais encontram-se no coração da História. Eles a narram e a legitimam. No entan-to, muitos não tiveram nenhuma curiosidade pela corrente intelectual federalista muitominoritária, que surgiu a partir de 1920, favorável à Europa30, e que contribuiu, semdúvida, nitidamente para a difusão de uma certa idéia da Europa entre as elites, nummomento em que o contexto cultural estava confuso, depois da guerra de 1914. Essemovimento ressurgiu depois, na década de 1930, e a sua existência ao final da guerranão foi inútil ao ressurgimento da idéia européia. Mas como esse movimento era po-liticamente "ambíguo" (adoraríamos saber o que isso quer dizer) foi discretamente es-quecido... A maneira como, hoje, uma boa parte da elite européia se apropria do termocultura e se apresenta como os construtores indispensáveis da Europa cultural, pareceum golpe de força, ou um novo "posicionamento", como se diz em marketing. Essamudança de atitude também dá os seus frutos, pois a referência intelectual acabou seimpondo: tanto os políticos quanto todos aqueles que fizeram pacientemente a Europacom indiferença ou hostilidade, jamais se beneficiaram — como vimos — da ajuda dosintelectuais, que não tinham nenhuma vontade de sujar as mãos com essas questões de"mercado comum", enquanto hoje "a elite da eurocracia" solicita o conselho dessa mes-ma intelligentsia para ter certeza, de bem pensar e de não construir uma Europa"idiota". E esses intelectuais que perderam o trem da classe operária não querem per-der o da Europa: feitas as contas, isso exige menos esforço, lhes cai melhor e podelhes render mais!

Neste momento, a mudança consiste não mais em condenar as indústrias cul-turais, mas sim em esperar que os "grupos de comunicação" (a mudança de vocábulo ésaborosa) possam ajudar a construir a Europa. Salvo, às vezes, servir de conselheiro.Conselheiro de príncipes ou dos grandes agentes econômicos pela boa causa da Europacultural é coisa que não desagrada a elite cultural européia que, de jornais a revistas, deteatros a festivais, de canais de televisão a editoras, de colóquios a concertos, encontramuma lógica que parece um pouco com a dos "capitães das indústrias culturais". E assimdescobre os prazeres da influência cultural ou política, sobretudo pela boa causa da Europacujas virtudes louva pela diversidade que não pode deixar de lhe ser favorável!

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A questão hoje não é mais desdenhar a Europa, mas torná-la cultural. Se os eu-rocratras e outros políticos não querem simplesmente perder a Europa, eles devem aqualquer preço se "culturalizar" e os intelectuais estão aí para isso. Cada um na suafunção... Depois de ter experimentado os limites da política crítica, porque não expe-rimentar os macios prazeres das indústrias culturais européias em pleno desenvolvi-mento? Evocar a cultura européia31 como a oportunidade, como a jóia da Europa temlá o seu charme, sobretudo se você é, ao mesmo tempo, o principal beneficiário. Claro,existe o programa Erasmus "para as universidades", mas no caso trata-se da cultura demassa. E é urgente, ao lado dessas grandes instituições, criar redes mais finas e, paradizer tudo, mais elitistas.

A Europa, com os melhores argumentos do mundo, é objeto de uma OPA[Operação Pública de Compra] intelectual e cultural cujo resultado será, inelutavel-mente, a constituição de uma nova elite cultural adequada e renomada à altura dessenovo... mercado cultural. "Mercado cultural"? Que expressão perversa! A "Europa cul-tural" é uma perspectiva histórica muito mais atraente! Sobretudo se, de repente, deum ano para outro, pudermos circular por essa Europa efetivamente querida à culturaocidental.

E a televisão em tudo isso? Ela aparece justamente como um instrumento quepode favorecer essa aceleração cultural. O que agrada na idéia de televisão européia éjustamente que ela seja imediatamente transnacional. A televisão é o instrumento na-turalmente adaptado à escala européia e as críticas contra a sua "má" influência sobreas massas estão hoje naturalmente afastadas em proveito da "boa influência" que elapode ter sobre a constituição da identidade e da cultura européias.

A comparação com a imprensa escrita permite compreender todas as dife-renças de atitude dos intelectuais em relação à imagem-e à escritura. Eles não se apres-sam em fazer uma imprensa européia porque sabem que a escrita requer condiçõesbastante estritas, o que explica porque não existe no momento imprensa escrita eu-ropéia. Ao contrário, eles acham natural que haja televisão européia. Se a escrita nãopode, evidentemente, ser européia, a imagem pode. Esse contra-senso resulta um poucodas reflexões sobre o fato de que a imagem, como vimos no capítulo 3, é inseparávelde um contexto de produção e de recepção. Em outros termos, a imagem, a despeitoda sua "leitura" efetivamente mais fácil, obriga igualmente a levar em conta o caráternacional, tanto para a produção quanto para a recepção. Não é pelo fato de ser a ima-gem uma mensagem visível por todo mundo que ela tem a significação que queremoslhe atribuir. Existe uma cultura de contexto e, na sua ausência, a imagem perde umaboa parte do seu poder comunicativo. Como já dissemos aqui mais de cem vezes,existem condições estritas para a comunicação pela imagem, e não basta enfiar ima-

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gens por toda parte, em cima de qualquer coisa, para que os espectadores sejam con-vencidos!

Em poucas palavras, intelectuais e tecnocratas pecam por simplismo em relaçãoao instrumento complexo que é a televisão. A melhor prova do suposto poder da tele-visão é que falamos sem parar de "televisão européia", e raramente de "rádio européia"ou de "imprensa européia". Por que razão, senão por acreditarmos que a imagem é pornatureza internacional e mais influente?

Enfim, essa visão estreitamente instrumental da televisão, e mais em geral dacomunicação, compartilhada pelos intelectuais e pelos tecnocratas, é a mais discutívelde todas porque renega o solto, o gratuito, o não organizado, o impreciso necessáriopara que uma comunicação adquira seu sentido, tanto individual quanto social e po-liticamente.

A Europa Oriental sempre bate duas vezes

A Europa Oriental sempre bate à porta duas vezes. A primeira vez para nosagradecer, não a ajuda ou o suporte direto que lhe demos, pois ele foi pequeno ao lon-go de quarenta anos, mas o contrapeso essencial que a Europa Ocidental representoudurante tanto tempo. A segunda vez, para nos pedir que a consideremos um pouco menoscomo a reserva de caça da nossa midiatização, que tenhamos uma visão um pouco maiscomplexa da sua realidade histórica, que não imponhamos tanto o nosso esquema cul-tural e político a realidades que conhecemos mal, que não os submetamos tanto à nos-sa dependência econômica. Enfim, que reduzamos o número de lições de democracia ede ética jornalística com que não cessamos de prodigalizá-los... Em outras palavras, aEuropa Oriental é o triunfo aparente dos valores de comunicação ocidentais, ao mesmotempo que parece mais e mais como um duplo nosso. E o olhar crítico lançado sobre anossa consciência tranqüila midiático-democrática nem sempre nos será agradável...

O papel das mídias foi determinante na evolução da Polônia, depois da Hungria,da Checoslováquia e da Alemanha Oriental, como também da Romênia, cuja revoluçãoo mundo inteiro assistiu "ao vivo" a partir do estúdio 4, em dezembro de 1989. Embom momento as mídias ocidentais vieram renovar, amplificar o trabalho de comuni-cação intelectual subterrâneo que as mídias locais vinham fazendo32 há vinte anos, demaneira mais ou menos clandestina. Pela primeira vez, o comunismo caía pacificamentediante dos olhos das câmeras ocidentais, que viram sair da noite escura do regime co-munista a outra parte da Europa que a prima ocidental havia tantas vezes esquecido.

E depois, repentinamente, esses primos vindos do silêncio começaram a expordiscursos que se assemelham exatamente aos nossos, mas isso muitas vezes com muitomais força e convicção do que nós...

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As mídias33 desempenharam objetivamente, portanto, um papel importante naEuropa Oriental, iniciado, e na época unanimemente contestado, pela Radio FreeEurope34 e pela Voice of America, durante muito tempo consideradas pelos intelec-tuais da Europa Ocidental como rádios da CIA e do imperialismo norte-americano...Nada poderia ter sido feito sem essas estações ocidentais que, durante quarenta anos,foram para os dissidentes do Leste, União Soviética inclusive, o único acesso à infor-mação e à verdade35.

A Europa retoma as suas fronteiras naturais e essa ampliação, desejada por to-dos, coloca no centro de tudo a comunicação. Embora ninguém possa se queixar, é pre-ciso, em compensação, ser ingênuo para imaginar que a duplicação da escala da Europa,com os desequilíbrios econômicos decorrentes e o papel central que será desempe-nhado pela comunicação, não irão criar problemas novos! O que quero dizer é que osreencontros das duas Europas são provavelmente uma das primeiras situações históri-cas em que, em tamanho natural e quase simultaneamente, a comunicação irá desem-penhar diretamente um papel essencial. É uma première no plano histórico, político ecomunicacional. Mas a realidade histórica, as consciências, as representações do mun-do e as simbolizações caminham menos depressa do que as imagens, que a comuni-cação e que as televisões! A comunicação, em função da criação de um espaço públicona Europa Ocidental, vai mais depressa do que as mentalidades e as mudanças políti-cas. É também simplista pensar que o triunfo da lógica comunicacional será feito semriscos. A televisão é, pela primeira vez, agente direto de uma mutação histórica, e podecriar desequilíbrios novos.

Em outras palavras, a liberação da Europa Oriental, graças principalmente aopapel da comunicação, catalisa a necessidade de uma reflexão teórica e estratégica so-bre a comunicação. Até que ponto se deve abrir-se ao outro? Estamos prontos a aceitarnão só os agradecimentos mas também, logo, o seu possível olhar crítico? Podemos du-plicar de um só golpe a escala de referência dos problemas? Como a Europa Ocidentalserá capaz de ver e entender o seu duplo? Estamos realmente prontos a aceitar uma co-municação nos dois sentidos? Podemos aceitar a crítica do outro, isto é, aquela que osdiferentes países da Europa Oriental não deixarão de nos fazer assim que a sua situaçãomelhore? Estaremos prontos a ouvir os pedidos de explicações que sabíamos mortosdepois do congelamento comunista? Teremos vontade de analisar novamente proble-mas econômicos e de organização que deixamos de ter há muito pouco tempo?...

O triunfo da televisão e da comunicação ou triunfo das idéias?Os acontecimentos da Europa Oriental sancionam a vitória das mídias e da co-

municação ou a vitória das idéias? Evidentemente as duas avançam juntas, mas se

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olharmos de perto a história, foram antes as idéias democráticas que atuaram sobre es-ses povos depois da sua submissão, e não as mídias! Mesmo que, como dissemos, as rá-dios internacionais, desacreditadas aqui, mas escutadas lá, tenham propiciado a logísti-ca. Quando os eventos se tornaram públicos, transmitidos pelas mídias, eles sancionarama evolução das idéias, não a das mídias ocidentais que quase nunca, para não dizer ab-solutamente, se interessaram pela Europa Oriental! A geração de 25-50 anos tinha defato a sensação de que a Europa sempre esteve dividida em duas, porque afirmávamosque o comunismo era indiscutível. Mas essa divisão teve sobretudo um efeito de ex-clusão, e só muito recentemente, depois dos acontecimentos na Polônia entre 1970 e1975, é que a Europa Ocidental se pôs a olhar a sua gêmea.

As mídias ocidentais acompanharam então o movimento mais do que con-tribuíram com ele, chegando praticamente depois dos fatos. Essa diferença essencialdeve ser lembrada porque temos muitas vezes a impressão de que foi graças à presençadas mídias ocidentais que o comunismo caiu. Alguns espíritos críticos, confundindo o"poder da televisão" com a realidade histórica, chegaram até a escrever que toda a re-volução romena era feita pela televisão, que a televisão estava no cerne da revolução,quando na verdade ela era simplesmente uma questão de poder entre os diferentes gru-pos! Acreditar que "televisão faz a revolução" é confundir a história com a sua comu-nicação. Esta mostrava aquela quase diretamente, o que não deixava de ter conse-qüências, mas em nenhum caso seria possível afirmar que a revolução se faz pela tele-visão! Além disso, o que ficamos sabendo depois sobre o caráter "espontâneo" da re-volução romena36 reduz ainda um pouco mais o poder específico que, durante seismeses, atribuímos à televisão nos acontecimentos de novembro-dezembro de 1989.Encontramos nessa hipótese veiculada pelas mídias ocidentais, pelo inabalável narci-sismo dos jornalistas e das mídias em geral, que imaginam que fazem a revolução porqueestão lá para mostrá-la!

Os romenos, e antes deles os alemães orientais, os húngaros, os checos, fize-ram a revolução sozinhos, embora aproveitassem alegremente a presença das mídiasocidentais, que criava um efeito de amplificação do qual esperavam, com toda justiça,se beneficiar! Que os povos do Leste tenham utilizado as mídias ocidentais, é o míni-mo, uma vez que devíamos isso a eles depois de tantos anos de indiferença, a despeitoda revolução de 1956 na Hungria e da Primavera de Praga em 1968 na Checoslováquia!

Essa confusão de responsabilidades e causas revela o inesgotável tropismo dasmídias ocidentais, que se consideram literalmente porta-vozes dos valores democráti-cos. Todavia, são interessantes porque colocam um problema básico para o futuro daEuropa: evitar que se considere o rádio e a televisão — e mais geralmente a comuni-cação — como armas contra os regimes totalitários. Seu corolário é uma questão mais

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complexa: saber qual pode ser esse papel da televisão e da comunicação num contex-to normalmente democrático. Uma coisa é saudar o papel das mídias na fase de derro-cada de um regime recusado, outra coisa é saber qual será o seu papel na fase de re-construção da aproximação entre as duas Europas e, de maneira geral, a conseqüênciaque se pode tirar desse desequilíbrio midiático entre Ocidente e Oriente.

O segundo problema é saber até que ponto os povos do Leste estão prontos aaceitar o olhar que lançamos sobre eles, o qual, mesmo sendo benevolente em seu con-junto, continua, ainda assim, marcado por um profundo desconhecimento das suas rea-lidades históricas e culturais, de uma consciência tranqüila a respeito dos nossos valo-res e conceitos e isso tudo, mesmo se previrmos que a capacidade financeira e econômi-ca do Ocidente corre o risco de transformar o Leste numa semicolônia37. Em outraspalavras, até que ponto eles aceitam serem os alunos dóceis de uma classe midiático-política à qual acabam de se juntar e no seio da qual devem compreender que têm muitoa aprender e não muita coisa a dizer!

A Europa se encontra numa situação paradoxal: a Europa Oriental filia-se aosvalores e práticas democráticas ocidentais, principalmente em matéria de informação,mas corre o risco, ao mesmo tempo, de sufocar com os conselhos e semicríticas prodi-galizados pelas mídias européias, mesmo que as duas Europas continuem gran-demente minoritárias no mundo, em matéria de liberdade de informação38'39!Como organizar uma cooperação que não seja uma espécie de tutela midiático-democrática40?

A consciência tranqüila41 com que a imprensa européia do Ocidente acompanhaos acontecimentos do Leste há dois anos é perturbadora: nenhuma perspectiva históri-ca, aplicação de esquemas esquerda-direita a realidades que nada têm a ver com isso,mesma redução dos discursos políticos a umas poucas frases-chavão, ausência de cul-tura política para compreender os partidos quando não se trata de partidos comunistase de partidos sociodemocratas mas, por exemplo, de partidos camponeses, incapaci-dade de falar da estrutura sociopolítica e lingüística, desconhecimento ou desprezo pe-los aspectos nacionalistas de diferentes países, dificuldade em analisar o peso da religiãosegundo o país, visão demasiado homogênea de países que tudo separam no planolingüístico, histórico, cultural!

Mas a partir de onde falam a Europa Ocidental e as suas mídias para se erigiremassim em juizes da liberdade de informação e guardiães da democracia? Quem lhe dáa autoridade, quando olhamos a sua própria história imediata, para desempenhar essepapel? Até que ponto o Leste aceitará ficar sob os nossos olhares, o Leste que não pode,no momento, fazer a mesma coisa? Paralelamente, estamos realmente prontos a aceitaro seu olhar e até que ponto a transparência desenvolvida entre as duas Europas não irá

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criar um fenômeno, senão de rejeição, pelo menos de reserva por parte da EuropaOriental? Confrontada com dificuldades consideráveis, ela corre o risco de aceitar do-lorosamente essa transparência e esses julgamentos de meias palavras, sobre o pano defundo da incompreensão.

Não existe relação direta entre a ampliação do campo da informação nas duasEuropas e a constituição de um espaço comum de intercâmbio e discussões... Aí tam-bém, como dizemos a respeito do Terceiro Mundo, "os termos de intercâmbio são de-siguais" e a Europa Ocidental está em posição dominante42. Podemos imaginar que cer-tos países do Leste terão talvez de inventar, diretamente, a sua história sob o olhar tam-bém direto das mídias ocidentais!

Além disso, essa recusa da transparência poderá muito bem ocorrer um diatambém no Ocidente em decorrência das reiteradas transmissões "ao vivo" primeirode si mesmo e depois do outro. Os jornalistas não poderão se apoiar eternamente noapelo real às "dificuldades da profissão" ou numa autocrítica narcisista, como fize-ram por ocasião de Timisoara , pois acabará chegando um momento em que tere-mos de lhes dizer que existe alguma incoerência em ter desejado durante um sécu-lo mais informações, mais imagens sobre todos os acontecimentos e, de repente, dara impressão de descobrir ingenuamente que os regimes políticos, às vezes até os nos-sos próprios, aprenderam a manipular a informação e a imagem! Faz parte da res-ponsabilidade do jornalista adaptar o exercício da sua função e dos valores que a limi-tam a um contexto técnico, cultural e político que mudou em cinqüenta anos. O pro-blema principal não é mais o segredo, mas a dificuldade de desentranhar a verdadede um universo saturado de informações, de comunicações e de boatos, onde todomundo sabe como se expressar, construir seu discurso, integrar o olhar e a objeçãodo outro. Não é preciso falar necessariamente de "manipulação", mas simplesmentede uma realidade nova, caracterizada pelo fato de a ação política ser, hoje em dia, in-separável de uma pletora de informações e de boatos, ambos inseparáveis, e que otrabalho do jornalista é de chegar a fazer a "triagem" entre discursos que são todosuns mais informativos do que os outros! A profissão é sempre difícil de exercer, maspor razões opostas. Ontem, era difícil informar por falta de informação; hoje, por su-perabundância de informação.

A televisão e a comunicação podem ser uma faca de dois gumes. Colocandoainda mais depressa as duas Europas face a face, elas catalisam o que corre o risco deser muito em breve uma reivindicação de incomunicação, uma recusa de transparên-

*Timisoara: por ocasião da Revolução Romena, um aterrador ossário foi mostrado pela televisão. Tratava-se, porém, de umamontagem com o intuito de alarmar o mundo. (N.T.)

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cia, um desejo de ser respeitado por aquilo que se é. Esse fenômeno se produzirá talvezprimeiro na Europa Oriental, mas podemos esperar que se torne como uma mancha deóleo e se estenda a outras áreas culturais e políticas.

Nosso espelho

O terceiro problema decorre do que acaba de ser evocado e concerne às difi-culdades ligadas ao confronto que se instalou entre as duas Europas.

Quanto mais a economia e a política vão se assemelhando, mais a cultura, nosentido amplo, fará a distinção entre as duas Europas, da mesma forma que ela não ces-sará de fazê-lo no próprio seio da Europa Ocidental. A questão cultural da Europa, nãoaquela, fictícia, da sua unidade, mas outra mais difícil e evidentemente mais enrique-cedora, que é a mútua aceitação das diferenças radicais que a constituem, no momen-to em que, aparentemente, tudo se torna semelhante.

Num primeiro momento, o retorno da Europa Oriental vai catalisar certas con-tradições no seio da Europa Ocidental onde, há muito tempo, as diferentes atitudes nasrelações com a Mittel Europa traduzem as diferenças culturais profundas entre aAlemanha e a França ou entre a Grã-Bretanha e a Itália, sem falar da Grécia, ou no opos-to, da Espanha e de Portugal, que se centram num outro espaço.

Os encontros não serão necessariamente harmoniosos porque os conflitoslingüísticos, políticos, históricos, religiosos não são regulamentados e sobretudoporque as diferenças de apreensão do mundo reaparecerão. No fundo, a EuropaOcidental deteve o monopólio da representação do mundo durante quarenta anos,porque a "sua segunda metade" estava privada da palavra. Ao retomá-la, a EuropaOriental obrigará o Ocidente a admitir uma outra Weltanschauung, coisa que nuncaé fácil de fazer quando temos o hábito de estarmos sós, e quando o recém-chegadoparece, num primeiro momento, indicar que se junta a você... Os reencontros cor-rem o risco de provocar uma retomada das dificuldades de comunicação, uma re-tomada de um diálogo já difícil antes e interrompido pela fase comunista43. O Lestetem muitas questões a nos colocar, como 1918, 1920,1930,1938, segundo o país,questões que não foram encerradas...

O resultado pode ser paradoxal. O ano de 1989 que, simbolicamente, assistiuao começo do Eureka audiovisual e ao fim do comunismo no Leste, e que devia selara aproximação das duas Europas, corre, ao contrário, o risco de despertar senão umadesconfiança, pelo menos uma certa distância. O paradoxo é que a complexidade cul-tural européia, lentamente revelada pela abertura, vai talvez prestar um considerávelserviço à Europa Ocidental, obrigando-a a compreender mais depressa os limites do dis-curso voluntarista. De certa maneira, podemos agradecer à Europa Oriental ter-nos as-

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sim ajudado a compreender os limites do projeto de integração cultural "sobre o panode fundo do respeito às diferenças". Não é com uma gestão racional das "diferentes cul-turas", conforme se diz no delicioso jargão tecriocrático-intelectual, que nos defronta-mos, mas antes com o problema de saber até que ponto "comunicar", como respeitaro outro e administrar as diferenças culturais que não convivem naturalmente entre oLeste e o Ocidente, e nem mesmo no seio do Ocidente. Em resumo, admitir que nãoexiste comunicação sem incomunicação, e que quanto mais a comunicação ocorre, maisa questão da incomunicação se torna estrutural44.

O retorno da História presta, portanto, um enorme serviço à EuropaOcidental, impedindo-a de "embarcar" numa operação de unidade cultural e forçan-do-a, ao contrário, a administrar o tempo. Contrariando o que foi insistentemente di-to depois do outono de 1989, o papel desempenhado pelas mídias nos acontecimentosda Europa Oriental não é um convite assim tão natural para que se crie fácil e rapi-damente um espaço europeu audiovisual. As reações prováveis dos países do Leste aesse domínio e ao risco de indiferença do público do Ocidente, uma vez desapareci-dos os eventos espetaculares e a retomada de uma história política menos trágica,obrigarão, nos dois casos, a reexaminar os esquemas um pouco simplórios da criaçãode um "grande espaço cultural e audiovisual europeu". Uma vez que pouco nos fala-mos durante quarenta anos, e ainda mais dificilmente antes, e que não temos nemos mesmos reflexos nem as mesmas referências culturais, não há urgência em se de-cretar a comunicação e o reencontro imediatos e indispensáveis! Deixar, uma vezmais, que o tempo corra, reencontrar o tempo da história e libertar-se do tempotecnocrático-político.

A quarta lição que podemos tirar dos acontecimentos da Europa Oriental éque a Europa das nações45, da qual queremos a qualquer preço nos livrar, retorna aocentro da história. As nações retomam de um só golpe um lugar preponderante coma reunificação alemã, a Polônia, a Lituânia, a Ucrânia, a Armênia, mesmo que se trate,no quadro da Europa Ocidental, de ultrapassar os limites. Aí também a história é cruel,pois ela pega desprevenidos os projetos aparentemente mais unanimementecompartilhados! Esse retorno inesperado da Nação, pouco apreciado no conjunto, seráexaminado no próximo capítulo, pois ele retoma justamente uma das característicasbásicas, e muitas vezes pouco conhecida, da comunicação, principalmente audiovi-sual, que é ser uma comunicação no interior de um quadro, no mais das vezes "na-cional".

A quinta lição desses acontecimentos é sobre o papel dos intelectuais. Nãomais que os jornalistas e políticos, eles não previram nada do que ia ocorrer no Leste;.Podemos sempre, simplesmente levantar a hipótese de que, pelas suas funções, pe-

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Io seu senso do comércio de idéias e pelas referências que fazem agora à "grandeEuropa", alguns pudessem, livres como são das limitações de ação dos políticos edos jornalistas, ter enxergado, compreendido, testemunhado e anunciado. Alguns ofizeram, mas muito poucos, recebendo em troca — é preciso que se diga — umaespécie de indiferença polida, oscilando entre a certeza de que aquilo não podia mu-dar e a idéia menos admissível de que já existe tanto a fazer no Ocidente, que oLeste...

Essa falta de previsão, muitas vezes desprovida de curiosidade, é perturbado-ra, uma vez que hoje a Europa Oriental é moda tanto nos mundos intelectual e culturalquanto nos outros, e é forçoso reconhecer que essa moda segue os acontecimentos eabsolutamente não os precedeu...

Diante da marcha acelerada da história, os intelectuais se viram como simplescidadãos, sem nenhuma análise, nenhuma percepção original ou diferente. Por quenão? Por que deveria esse grupo, além da sua função crítica tradicional, estar adianteda história que em geral os surpreende tanto quanto aos outros grupos socioculturais?Essa incapacidade de ter percebido, e mesmo compreendido de maneira diferente oseventos em curso na Europa Oriental, deveria torná-los mais circunspectos e modestosquando, do alto das suas tribunas daquela famosa "Europa das universidades e da cul-tura", eles afirmam o que deve ser amanhã essa Europa cultural sem a qual a Europanão poderá existir-

Se eles tantas vezes se enganaram sobre a história recente, aderindo, porexemplo, maciçamente ao marxismo, a maioria deles manteve uma abordagem críticasistemática da realidade capitalista da Europa Ocidental, nada tendo percebido, nemparticularmente compreendido sobre os eventos da Europa Oriental, por que devemosagora acreditar na sua súbita conversão à Europa e na urgência com que apelam poruma Europa cultural? São comportamentos repetidos ao longo de meio século que colo-cam em dúvida o que a intelligentsia cultural considera como um dos seus atributosnaturais: ter razão antes dos outros, conservar um espírito crítico livre, estar mais bemcolocada para defender a "liberdade de espírito"46.

Notas ao capítulo 12

1. Jornal Oficial das Comunidades Européias, J.0.17 C. 179.2. Télévisions sans frontières, livro verde, sobre o estabelecimento do merca-

do comum da radiodifusão, principalmente via satélite e via cabo, 1984. Ano europeudo cinema e da televisão, 1988, Communication de Ia commission au conseil, auParlement européen et au comitê économique et social. Bruxelas, CE, Comissão 1986.Programa de ação em favor da produção audiovisual européia, Communication de Ia

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commission au Conseil, Bruxelas, CE, 1986. LALUMIÈRE, C. "L'espace audiovisuel eu-ropéen". Paris, Assembléia Nacional, Delegação para a CEE.

3. Reportar-se à sua versão atual, programa Media (1991-1995), Bruxelas, 4de maio de 1990 (com 90.132).

4. PRAGNELL, A. Qualité et valeurs de communication; un tournant de Iatélévision européenne. Manchester, Instituto Europeu da Comunicação, 1985.LANGE, A. & RENAUD, J. L. L'avenir de l'industrie audiovisuelle européenne.Manchester, Instituto Europeu da Comunicação, 1988. "Construire 1'EspaceEuropéen". Boletim da Idate, n. 37, 3° trimestre de 1989. MOUSSEAU, J. "Une télévi-sion Européenne est-elle possible?" Communication etLanguages, n. 79, l °. trimestrede 1989, edição Retz.

5. Rapport dês assises européennes de l'audiovisuel, Projeto Eureka-audiovi-sual, Paris, 30 de setembro-2 de outubro de 1989, Ministério Francês de AssuntosEstrangeiros e Comissões das Comunidades Européias.

6. As cifras comparadas às despesas da CEE permitem compreender em que oaudiovisual é uma questão simbólica antes de ser uma questão financeira. De 1977 a1988, as despesas da CEE praticamente quintuplicaram. Para 1990, o orçamento co-munitário eleva-se a 45 bilhões de escudos, ou seja, 320 bilhões de francos, isto é, umterço do orçamento francês. Em comparação, os 200 milhões de escudos são bem pouco.Fonte: documento anexo ao projeto de lei de finanças para 1990 — Relações finan-ceiras com a CEE.

7. Para uma visão norte-americana da desregulamentação européia, cf. a capade Newsweek e a cobertura "Switching Channel, Europe's frenzied télévision wars",n. 41, 9 de outubro de 1989.

8. Não se deve subestimar a importância do nacionalismo cultural norte-americano. Prova disso é o artigo muito interessante de Ph. Pons no Lê Monde, 18de outubro de 1989, que foi um dos primeiros a levantar o problema: "O cresci-mento da nipofobia. Os norte-americanos, mas também os europeus encaram maise mais o expansionismo japonês como a ameaça de um novo perigo amarelo". Porqueos japoneses compraram uma parte da alma dos Estados Unidos, como escrevia re-centemente Newsweek, é que a reação à aquisição pela Sony da casa produtoraColumbia atinge além do Atlântico, proporções próximas da paranóia... "O Japãoque sabe dizer não, título de obra recente co-assinada por A. Morita, líder da Sonye S. Ishinara, político liberaldemocrata de direita, revela essa tendência. Trata-se deum ataque direto aos Estados Unidos e de uma apologia do niponismo. "A argu-mentação essencialmente culturalista é grosseira, mas reveladora de um estado deespírito que não deixa de relembrar as diatribes nacionalistas da década de 1930."

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Nessa mesma ordem de idéias, havia no Lê Monde, l de abril de 1990, um artigomuito interessante de J.-F. Lacan, cujo título resumia bem o problema: "Hollywoodna Ásia" — O cinema de Hong Kong produz milhares de horas de ficção por ano econquista novos mercados.

9. As práticas audiovisuais de diferentes países são, com efeito, desde o princí-pio, muito diferentes, impedindo a abordagem global que se constata ao falar da tele-visão sem fronteiras. Quais as relações entre a Bélgica e os Países Baixos que são osdois países onde existem mais canais (26 e 23), enquanto a Bélgica fica logo depois daGrã-Bretanha em termos de consumo diário (254 minutos contra 250), e os PaísesBaixos são a nação onde se consome menos (146 minutos). Depois dos Países Baixosvem a Alemanha Oriental (167 minutos), a Espanha (223 minutos), a França (225minutos), a Itália (240 minutos). Encontram-se as mesmas diferenças em relação aosprogramas. O esporte fica à frente na Itália; os seriados na Grã-Bretanha; os filmes naFrança e programas muito heterogêneos na Alemanha Oriental e na Espanha. A re-vista Eurodience publicou em outubro de 1989 (para o período de setembro de1989/agosto de 1989) essas cifras que, se são um pouco diferentes em volume de con-sumo, indicam claramente que os quatro maiores consumidores são a Grã-Bretanha(216 minutos), a França (184 minutos), a Itália (180 minutos) e a Alemanha Oriental(144 minutos). Encontramos também a mesma disparidade nos gêneros de programasfavoritos nos diferentes países. Prova que todo mundo assiste à televisão, mas nem to-do mundo assiste à mesma coisa.

10. WEBER, M. Economie etsociété. Paris, Plon, 1971.11. SCHLESINGER, Ph.' "collective identities in a changing Europe". Telos,

cuadernos de comunicación, tecnologia y sociedad. Madrid, 1990.12. Cf. o livro de TODOROV, Tz. Noas et lês autres, Ia réflexion française sur

Ia diversité humaine. Paris, Seuil, 1989.13. SCHLESINGER, Ph. "On national identity — some conceptions and miscon-

ceptions criticized". Social Science Information, 26 (2) London, Sage, 1987, que é umensaio crítico sobre a questão de identidade nacional.

14. Lista de canais públicos, parte de sua renda vinda de publicidade:Alemanha Federal, ARD 12%, ZDF 4% / Áustria, ORF 37% / Bélgica, BRT 4%, RTBF1% / Dinamarca, DR sem rendimentos publicitários / Espanha, RTVE, 97%, TV3,50% / França, A2, 62%, FR3 18% / Grécia, ERT1 21%, ERT2 80% / Irlanda, TRE33% / Itália, RAI32% / Noruega, NRK sem rendimentos publicitários / Países Baixos,NOS 35% / Portugal, RTP 44% / Reino Unido, BBC sem rendimentos publicitários,IBA 97% / Suécia, SVT sem rendimentos publicitários / Suíça, SSR26 %. Equipamentotelevisual: número de domicílios equipados com receptores, penetração do cabo.

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\Alemanha FederalÁustriaBélgicaDinamarcaEspanhaFrançaGréciaIrlandaItáliaLuxemburgoNoruegaPaíses BaixosPortugalReino UnidoSuéciaSuíça

Receptores(em milhões)

23,282,83,22,49,519,52,9

0,9617,50,151,5 : -5,4 '2,9

21,773,4

2,45

Cabos(em milhões).

14168419511

3,11

732870221367

"L'Europe de Ia communication". Médiaspouvoir, n. 12, dezembro de 1988.15. BLUMMER, J. G., ed. Communication to voters; television in the First

European Parliamentary. London, Sage, 1983.16. 518 deputados — 3 200 funcionários que falam 12 idiomas e se expres-

sam em 9.17. Cf. HABERMAS, J. L 'Espace public. Paris, Payot, 1978 e toda a tradição filosó-

fica jurídica e social.18. MANCINI, P. & HALLIN, D. "The meeting Gorbatchev-Reagàn as media

event", colóquio da ICA, São Francisco, junho de 1988.19. Lê GLOANNEC, A.-M. La nation orpheline, lês deux Allemagnes en Europe.

Paris, Calmann-Lévy, 1989. GUIOMAR, J. Y.Ls nation entre 1'Histoire et Ia raison. Paris,La Découverte, 1990. STERN, F. Revés et tilusion; lê drame de 1'histoire allemande.Paris, Albin Michel, 1990. KENNEDY, P. Naissance et déclin dês grandes puissances.Paris, Payot, 1990. WOLFF, Ph. L 'éveil intellectuel de 1'Europe, Paris, Seuil, 1971.

20. GREMIONS, O. & HASSNER, P., dir. Vents d'Est vers l'Europe de 1'Etat dedroit? Paris, PUF, 1990. Rupnich, J. Uautre Europe. Paris, Odile Jacob, 1990. Jeno, S.Lês trois Europes. Paris, 1'Harmattan, 1985. Featherstone, M. Global culture, natio-nalism, globalisation and modernity. London, Sage, 1990.

21. O texto da publicidade é instrutivo (cf. Lê Monde, 2 de junho de 1990):"Seja agora um europeu informado. The European, o primeiro semanário europeu deR. Maxwell, com 64 páginas, explica, narra, comenta, materializa a Europa em cores...

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The European, a informação é objetiva, aberta, sem deformação, como as coisas são...The European comentários construtivos abertos, que trazem à luz os acontecimentosessenciais da democracia... The European, um instrumento de informação para a vidacotidiana e para o investimento de seus rendimentos".

22. TODOROV, "La presse fixe à 1'heure de 1'Europe". Rapport au Ministredelegue, chargé de Ia communication. Mme. Tasca, Documentation Française, 1990.Existe também um fenômeno de concentração internacional da imprensa, da qual oReader's Digest é, sem dúvida, um dos mais belos exemplos com 100 milhões deleitores, através de 39 edições publicadas em 15 idiomas e que atraem 28 milhões decompradores. O Reader quer se abrir também para o Leste.

23. Cf. os dois artigos de D. Wolton publicados na revista Hermes, Cognition,Communication, Politique, n. 4, "Lê nouvel espace public", Editions du CNRS, julhode 1989: "La communication politique — construction d'un modele" (p. 27) e "Lêsmédias, maillon faible de Ia communication politique" (p. 165).

24. Para se dar conta da complexidade e ambivalência da opinião pública emrelação à Europa, cf., por exemplo, a sondagem sobre a Europa, Sofres RTL, Lê Monde,reproduzida em Sofres, 1'Etat de 1'Opinion 1990, apresentado por O. Duhamel e J. Jaffre,Seuil, 1990, p. 151-2. Se a idéia de um exército europeu progredir (44% contra, 39% afavor), as posições são, de resto, mais nuançadas. "Dentre as prioridades em matéria eu-ropéia, os temas como a aceleração da união política e a criação de uma presidência elei-ta por sufrágio universal chegam em última posição (respectivamente 9% e 7%). Em com-pensação, nossos compatriotas privilegiam os elementos de proximidade: política comumde meio ambiente (41%), livre circulação de pessoas (41%). Moeda, defesa e legislaçãosocial comuns atingem os níveis menos importantes, respectivamente 31 %, 28% e 27%.Além disso, nenhuma das três concepções políticas da Europa reforça a cooperaçãoatual com direito de veto de cada estado, ou Estado federal europeu, coisa que se desta-ca claramente. É o que chamamos de balanço nuançado..."

25. Cf. o trabalho realizado sob a direção de Stoetzel, J. Lês valeurs du tempsprésent: une enquête européenne. Paris, PUF, 1983. Em torno do assunto inicial: "osvalores do tempo presente: a Europa na encruzilhada", são também abordados umgrande número de temas; a moral, a política, a religião, os valores da família, os valorese o trabalho, a pessoa, o mundo e os outros, os efeitos das condições objetivas, os va-lores e as idades da vida.

26. Cf. Jean-Paul Sartre e os intelectuais em geral, com exceção daqueles aquem chamamos "de direita", porque escolheram o campo norte-americano na guerrafria. Seria preciso fazer um livro sobre a recepção da idéia da Europa pela esquerda in-telectual entre 1946 e 1980.

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27. Cf. o trabalho muito interessante realizado por P. Grémion que retomouos principais artigos da revista Preuvesque, de 1951 a 1969, foi um dos altos meiosde éomunicação e de passagem entre os intelectuais das duas Europas, com os tex-tos de Arendt, Aron, Bell, Borkenau, Esterhezi, Hersch, Malraux, Spinelli, Weidle.GRÉMION, P., dir. Preuves, une revue Européenne à Paris. Paris, Julliard, 1989. Verigualmente o número especial de Commentaire: "L'Europe et Ia France". Paris,Julliard, 1988. "Dix ans d'incertitudes européennes" intitula J.-C. Casanova, diretorda revista na introdução, adaptando o título "incertitudes françaises" que foi doprimeiro artigo que R. Aron entregou à revista às vésperas das eleições legislativasfrancesas de 1978.

28. Em um sentido contrário, cf. ARON, R. Plaidoyerpour1'Europe decadente,Paris, Laffont, 1977.

29. BRUCKNER, P. Mélancolie démocratique. Seuil, 1990. Ver sobretudo a se-gunda parte.

30. Cf. Denis de Rougemont que foi talvez entre os mais engajados no movi-mento federalista. Em Lettre ouverte aux Européens, Paris, Albin Michel, 1970, elerelembra o fervilhar de idéias em favor da Europa muito antes da Segunda GuerraMundial e o papel central do congresso da Europa que se reuniu em La Haye, em maiode 1948. "Tudo partiu de lá, nunca será demais afirmá-lo, pois o congresso de La Hayefoi a síntese viva dos grandes motivos da união, representados de fato por suas trêscomissões, 'política', 'econômica' e 'cultural'. A paz pela federação, subjugando a anar-quia dos Estados soberanos, a prosperidade, por meio de uma economia ao mesmo tem-po liberada e organizada, e pela comunidade espiritual, através da reunião das forçasvivas da cultura, para além das fronteiras e do nacionalismo."(p. 18)

31. Cf. Europe sans rivage, de l'identité cultureüe européenne. SymposiumInternational, Paris, Albin Michel, janeiro de 1988.

32. Cf., a título de exemplo, o papel inacreditável desempenhado há quarentaanos pela comunicação na Europa Oriental: o tráfico de cassetes do Solidariedade, naPolônia; os jornais clandestinos; Tchernobyl, que obrigou que se abrisse a informação;a troca de mensagens audiovisuais entre os senhores Gorbatchev e Reagan, depois Bush;a abertura, ao vivo, do congresso de deputados do povo em Moscou; o novo jornal so-viético; as transmissões de informação do Ocidente recebidas na Alemanha Oriental,na Polônia, na Hungria, na Checoslováquia. A cobertura da primavera de Pequim em1989, inclusive com as conseqüências negativas da utilização posterior das imagens queaumentou a repressão...

33. Sobre a importância das mídias em geral (rádios, televisões, gravadores devídeo) recebidas no Leste, ver: LEPEUPLE, A. Ch. & SEMELIN, J. Lês nouveaux enjeux de

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Ia communication occidentale vers VEst. Paris, Fondation pour lês Études de DéfenseNationale, 1989.

34. Sobre a história da Radio Free Europe, cf. MICKELSON, Sig. Américasother voice. Praeger. ALEXANDRE, L. The voice of America; from detente to the Reagandoctrine. Ablex Publication, 1988.

35. Sobre a história das principais rádios ocidentais, veja com prioridade as atasde um colóquio de 1984, SHORD, ed., "Western broadcasting over the iron curtain".New York, St. Martin Press, 1986.

36. CASTEX, M. Un mensonge gros comme lesiècle; Roumanie, histoire d'unemanipulation. Paris, Albin Michel, 1990.

37. MINC, A. La grande illusion. Paris, Grassei, 1989.38. Cf. Rapport de Repórter sans fronfíères; 1'information dans lê monde —

observatoire de l'information, Paris, Seuil, 1989, que faz um balanço mundial da liber-dade de imprensa oprimida, mostrando que a situação dos jornalistas no mundo sedegrada proporcionalmente aos atentados à liberdade de informação.

39. Cf. o artigo de SÉMELIN, J. "Naissance d'une nouvelle Europe audiovisuelle".Médiaspouvoirs, setembro de 1990.

40. Cf. WOLTON, D. "Lê journaliste victime de son succès". Médiaspouvoirs,n. 13, janeiro-fevereiro de 1989.

41. Lembremos, por exemplo, a maneira como todo mundo "viajou até o murode Berlim em dezembro de 1989"; e, ao contrário, a incapacidade de explicar as eleiçõeshúngaras na primavera de 1990, simplesmente porque nada havia nelas de espetacu-lar, ou as lições constantes de democracia dadas aos romenos, principalmente por ocasiãodo processo do casal Ceaucescu.

42. Cf. BECKER, J. & SZECSKÕ, T. Europe speaks to Europe. Oxford, PergamonPress, 1989. Cf. igualmente "Cinema et télévision dans Ia coopération Est-Ouest enEurope", Conselho da Europa, colóquio de Orvieto (26-28 de outubro de 1988),Estrasburgo, p. 40-89.

43. Rupnik, J. L 'autre Europe. Paris, Odile Jacob, 1990.44. Boudon, R. "Petite sociologie de rincommunication", in Hermes,

Cognition, Communication Politique, n. 4, Paris, Editions du CNRS, 1989.45. Cf. Pomian, K. L 'Europe desNations. Paris, Gallimard, 1990. (Col. Lê Débat.)46. Em referência à célebre coleção criada por R. Aron para Calmann-Levy, na

década de 1950, em que foram traduzidos e publicados numerosos textos da EuropaOriental e dos Estados Unidos, hoje clássicos e que, na época da ideologia marxista do-minante, eram considerados como livros reacionários a soldo da ideologia capitalista.

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Televisão,identidade enacionalismo

O nacionalismo é, provavelmente, a mancha negra da Europa. Ele, com efeito,não se impôs como necessidade categórica senão depois de duas guerras mundiais que,em menos de meio século, levaram à loucura o nacionalismo e mataram mais de cin-qüenta milhões de europeus1. Foi para eliminar o nacionalismo, com o ódio e recusado outro que ele é capaz de engendrar, que os pais da Europa inventaram esse princí-pio de cooperação com a CEGA [Comunidade Européia do Carvão e do Aço], a partirde 1951, e depois o mercado comum, em 1957. A absoluta necessidade de superar onacionalismo foi, portanto, provavelmente, o único imperativo que conseguiu afinal darnascimento à "Europa" do pós-guerra. Sem dúvida, as necessidades de reconstruçãoeconômica, depois a luta com a URSS e o comunismo também agiram nos anos de 1945a 1965 fazendo avançar os valores da democracia ocidental, mas esses argumentos es-tavam em segundo lugar para R. Schuman, C. Adenauer e Ch. de Gaulle, cuja obsessãoera fazer cessar o ódio franco-alemão e, mais amplamente, superar o ódio nacionalista.Além disso, o triunfo do comunismo na Europa Oriental reforçou, de certa maneira, aidéia de que era possível superar o nacionalismo, pois esse triunfo "congelou" o na-cionalismo durante quarenta anos. Se bem que entre a construção da Europa no Ocidentee do comunismo no Leste, tivemos a impressão, durante toda uma geração, de que aquestão nacionalista estava superada em proveito da elaboração de um novo conjuntohistórico. Essa certeza hoje se desfaz com o degelo comunista, recolocando no coraçãoda História a questão nacional que julgávamos superada. Talvez, no futuro, o papel dacomunicação seja um dos vetores essenciais para reintroduzir essa noção no debatepolítico e cultural ou para catalisar as crises ligadas ao seu ressurgimento.

A originalidade da situação atual é o reencontro entre os valores e os instru-mentos de comunicação — e, portanto, da televisão — e um dos temas históricos maisantigos: o da diferença, da exclusão do outro e da exaltação de si. Reencontro difícil edoloroso da comunicação como símbolo da relação com o outro, e do nacionalismo co-mo exclusão do outro. Provavelmente, o paradoxo de uma tal situação jamais apareceu

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com tamanha força. No momento em que economia, política, tecnologia e valores ce-lebram a abertura e descompartimentação, assistimos à volta dos temas da identidade,da recusa do outro, ou seja, da xenofobia, contra os quais os instrumentos de comuni-cação parecem as melhores defesas.

Pensamos na comunicação, e particularmente na televisão, como meio de in-tegrar a Europa, mas percebemos horrorizados que ela não reduziu a febre naciona-lista. Ao contrário, percebemos que na Europa Oriental, os movimentos políticosapóiam-se no nacionalismo, geralmente atiçado pelas mídias para superar o jugo co-munista! Liberalismo e ressurgimento do nacionalismo ocorrem também na URSS onde,depois de 1985, todos os movimentos nacionalistas (na Ucrânia, Armênia, RepúblicasBálticas...) tornam a levantar a cabeça desde a perestroika. A Europa Ocidental se vê,então, desequilibrada: o triunfo dos seus valores na Europa Oriental não consegue mas-carar o fato de que ocorre também uma reabilitação do nacionalismo que ela tentavasuperar com energia no quadro da construção política da Europa. Os europeus doOcidente encontram-se numa situação de desequilíbrio imprevisto. A abertura da Euro-pa Oriental leva para mais longe as fronteiras da Europa, oferece uma oportunidadehistórica excepcional, na medida do desafio que colocará em oposição os grandes con-juntos de amanhã em escala planetária, confirmando assim a superação, leia-se "dete-rioração", do nacionalismo que, depois de 1815 e do Congresso de Viena, foi um dosprincipais fatores de ódio e guerra em toda a Europa. Mas, ao mesmo tempo, essa libe-ração do comunismo se dá recolocando sobre a sela — e com uma força que subesti-mamos no Ocidente — um nacionalismo que, só agora percebemos, foi, junto com areligião, um dos fatores essenciais de resistência ao comunismo.

A Europa Oriental e a Ocidental não poderão, portanto, fazer a economia deuma reflexão radical sobre as relações entre Europa e nacionalismo, mesmo se o con-junto de técnicas de comunicação não falem senão de circulação, comunicação, relação,e mesmo que, por uma espécie de estranho pudor, falemos de "identidade coletiva" ede "identidade cultural" para evitar o termo nacionalismo.

Nação, nacionalismo, cultura nacional, sentimento nacional, ideologia na-cional, são palavras com a mesma conotação, difíceis de empregar, mais difíceis aindade manejar do que as palavras, mais simples, ligadas à cultura. O sentido e as referên-cias mudaram ao longo de quatro séculos. É preciso lembrar algumas distinções.Conforme relembra G. Burdeau, no artigo "Nação" da Encyclopedia Universalis. "ANação não é uma realidade concreta, mas uma idéia. Ela não pertence à mesma ordemdas formações sociais primárias como os clãs, as tribos, as aldeias e cidades. Nenhumdos fatores que explicam a formação desses agrupamentos — a etnia, o território, a re-ligião, a língua — é suficiente para dar conta da realidade nacional. Admitindo, o que

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é duvidoso, que possamos identificar caracteres raciais, constatamos que eles não sãoencontrados entre as nações modernas. E estas não provêm tampouco da identidade delíngua ou religião. Existem nações plurilingüísticas que professam diversas religiões.Enfim, a história nos faz saber de nações que não tinham ou ainda não têm territóriopróprio." Adiante, ele afirma que "a Academia francesa, em 1694, definiu nação comoo conjunto de habitantes de um mesmo Estado, de um mesmo país, vivendo sob as mes-mas leis e utilizando a mesma língua". O problema entre os séculos XVII e XX foi aevolução do sentido da palavra, de nação a comunidade étnica, de nação a Estado, de-pois de sentimento e construção nacional, e enfim de cultura nacional a nacionalismo,depois de nacionalismo a patriotismo. Em torno do nacionalismo, as ideologias de di-reita e de esquerda viram-se confrontadas até por guerras que ninguém esqueceu, e de-vido às quais compreendemos porque o nacionalismo é mancha negra da Europa, to-dos sabem como é extremamente difícil manipulá-lo sem despertar os velhos demônios.Mas não será provavelmente com a política do avestruz a respeito de um dos temasmais dolorosos da história européia que os europeus chegarão a exorcizar o nacionalis-mo: eles correm também o risco de oferecê-lo de presente aos pensamentos mais ex-tremistas. E não é porque o nacionalismo, no século XX, foi um fator de guerra e deódio que podemos deixar de tentar superá-lo hoje no quadro da construção do novo es-paço simbólico cultural e político da Europa.

A idéia neste caso é dizer que, a despeito das ambigüidades que recobrem aidéia da nacionalismo, é preciso abordar de frente o problema e, em todo caso, de nãose esconder por trás das idéias aparentemente mais soft de "identidade coletiva" ou"cultural", que nada resolvem do que há de irredutível e passional na idéia de na-cionalismo. Em outros termos, minha tendência é pensar que só encarando de frenteo problema, honesta e modestamente, poderemos evitar os deslizes ideológicos. Ahipótese é que o nacionalismo, enquanto valor identificador forte e conflitante, des-pertará com a integração européia e que é preciso desarmar o que possa haver de vio-lência nesse despertar, conservando uma parte dessa reivindicação, cuja potência emo-cional impede que se torne apenas um tema cultural entre outros. A Europa políticaserá, talvez, o meio de tornar a abordar a questão nacional, não "eliminando-a", masdando a ela uma possibilidade de "transcendência", para que encontre um outro es-paço e um outro dispositivo simbólico e cultural.

Conforme diz R. Girardet no artigo "Nacionalismo" da EncyclopediaUniversalis: "Não existe, no vocabulário histórico e político da época contemporânea,vocábulo mais carregado de ambigüidade do que nacionalismo. Não só as consideraçõesde ordem moral, as preocupações com a polêmica, o temor de justificar e condenar es-tão sempre alterando a sua utilização, como é sobretudo sobre o próprio termo e sua

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definição que pesa duradouramente o equívoco: posto em uso na Grã-Bretanha e naFrança no correr do século XIX, foi sempre se enriquecendo de sucessivas significações,umas derivadas das outras, mas não obrigatoriamente redutíveis umas às outras. Naprópria França, a palavra, muito provavelmente de origem britânica (o adjetivo na-tionalist é mencionado na língua inglesa desde 1715), só aparece no final do séculoXVIII, e designa essencialmente os excessos do patriotismo jacobino. Permanecendomuito tempo em uso episódico e ao mesmo tempo incerto, o termo se generaliza nosúltimos anos do século seguinte, mas conservando, dentro dos hábitos mais correntesda língua, um triplo significado. Pode, efetivamente, ser empregado pejorativamentepara estigmatizar certas formas extremas de patriotismo, tornando-se, então, sinônimode chauvinismo. Pode ainda designar as reivindicações de um povo dominado que as-pira à independência (os nacionalistas poloneses, irlandeses, etc.). Pode, enfim, servirde rótulo e profissão de fé a certas escolas e a certos grupos que, afirmando a primaziada defesa dos valores nacionais e dos interesses nacionais na ordem política, são, geral-mente, classificados como de direita ou extrema direita no que se refere à opinião públi-ca (os nacionalismos banesia.no, maurrasieano, etc.). Nas línguas alemã e italiana, apalavra, identificada como parte do vocabulário político francês, conserva, há muito,uma variedade de significados. Na língua inglesa, em compensação, parece ter-se esta-bilizado rapidamente, para designar de maneira geral as diversas manifestações da cons-ciência nacional e do caráter nacional".

Tzvetan Todorov, no seu livro Nous et lês autres, Ia réflexionfrançaise sur Iadiversité humaine2, consagra toda a terceira parte à nação e ao nacionalismo. Ele re-toma as principais definições e, sobretudo, examina o que disseram sobre o assunto au-tores importantes como Tocqueville, Michelet, Renan, Barres e Péguy. Essa viagem naliteratura sobre a nação e o nacionalismo é muito instrutiva. Ainda mais porque no tra-balho de elucidação que o autor faz no começo dessa parte, ele distingue diversos sen-tidos que parecem muito úteis. T. Todorov demonstra, com apoio em textos, que "anação é uma entidade ao mesmo tempo política e cultural. Apesar de entidades cul-turais e políticas terem sempre existido, as nações são uma inovação introduzida naEuropa na época moderna. Antonin Artaud, uma vez, para variar, distinguiu claramenteem Messages révolutionnaires duas espécies de nacionalismo fundadas sobre essesdois aspectos da nação, expressando um juízo de referência para uma delas. "Existe onacionalismo cultural, no qual se afirma a qualidade específica de uma nação e das obrasdessa nação e que as distingue; e há o nacionalismo que podemos chamar de cívico eque, em sua forma egoísta, resulta em chauvinismo e se traduz por lutas alfandegáriase guerras econômicas, quando não pela guerra total." Os nacionalismos que se fundamsobre cada um desses aspectos da nação não são apenas diferentes, mas, ao menos sob

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certos aspectos, opostos. O, nacionalismo cultural, isto é, o apego à sua cultura, é umavia que conduz ao universal — pelo aprofundamento da especificidade do particularem que se vive. O nacionalismo cívico, como o que evoca Artaud, é uma escolha pre-ferencial do seu país contra os outros países — uma escolha, portanto, antiuniversa-lista"(p. 199-200).

Todorov introduz uma outra distinção no sentido da palavra nação:"Poderíamos considerar um sentido 'interior' e outro 'exterior'. O primeiro sentido éo que deve ter assumido uma considerável importância no alvorecer da RevoluçãoFrancesa e ao longo dos seus primeiros anos. A nação é um espaço de legitimação eopõe-se, enquanto fonte de poder, ao direito real ou divino: agimos em nome da nação,em lugar de nos referirmos a Deus ou ao rei. Gritamos 'Viva a nação!' em vez de 'Vivao Rei!'. Esse espaço é então percebido como o da igualdade: não de todos os habitantes,é verdade, mas de todos os cidadãos (o que exclui as mulheres e os pobres). Recorremosà 'nação' para combater os privilégios sociais ou os particularismos regionais".Inteiramente diverso é o segundo sentido, "exterior", da palavra "nação": uma naçãoaí se opõe a outra, e não mais ao rei, à aristocracia ou às regiões: "Os franceses são umanação, os ingleses são outra". E é aqui que a interpretação de Todorov me parece maissutil, quando ele diz que "é precisamente no encontro desses dois sentidos diferentes,interior e exterior, cultural e político, que se engendrou a nação e nacionalismo, enti-dades especificamente modernas. Elas se caracterizam pela fusão daquilo que me em-penhei em distinguir aqui". Isso recoloca exatamente a hipótese que defendo, a saber,que para neutralizar o nacionalismo, mais vale assumi-lo em todas as suas dimensões enão somente na dimensão cultural que todos lhe reconhecem hoje em dia. Só assu-mindo essas quatro dimensões culturais e políticas interiores e exteriores, inclusivenaquilo que têm de mais doloroso, é que o nacionalismo poderá, nesse novo contextopolítico e cultural, se tornar um nacionalismo do interior, um nacionalismo cultural,menos político e menos exterior. Mas isso é mais um ponto de chegada do que um pon-to de partida, como temos a tendência de pensar hoje. Para começar, é preciso "levartudo em conta" e se a hipótese da existência de um novo espaço simbólico e culturalse provar exata, então não será possível esperar do nacionalismo outra coisa que não opior. Mas não poderíamos fazer a economia dessa suposição, sob pena, ainda uma vez,de fornecer elementos para um discurso extremista que, no quadro da constituição daEuropa, não deixará de aparecer.

Talvez através desse processo de superação é que seja possível reconciliar na-cionalismo e universalismo, sendo o universalismo a perspectiva emancipadora domi-nante desde o século XVIII. Mesmo que como uma outra Weltanschauung, ela tam-bém tenha dado ocasião a perigosos excessos. Mas se a Europa pode amanhã repre-

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sentar um certo universalismo, então o nacionalismo nela encontrará o seu lugar, co-mo simetria e não como negação. Essa é, do meu ponto de vista, a perspectiva em quese deve situar a reabilitação do nacionalismo que tem, por sinal, mais de um ponto emcomum com a comunicação: ambos, com efeito, têm uma certa ambivalência que podejustificar os piores excessos em nome das melhores razões, apoiando-se sobre dimen-sões constitutivas e simétricas da experiência humana: a identidade no caso do na-cionalismo, a relação com o outro no da comunicação. Por isso, a abordagem do na-cionalismo e da comunicação é menos estranha do que parece, sobretudo num mo-mento em que os dois se encontram face a face, no mesmo movimento de liberação noLeste, Q num movimento de recuo mútuo no Ocidente. Retomar a questão do na-cionalismo, no momento em que o triunfo da comunicação a torna aparentemente ca-duca, enquanto não faz, ao contrário, senão reavivá-la, parece mais útil do que falar pu-dicamente de identidades culturais ou de identidades coletivas.

Além disso, a necessidade de retomar essa questão do nacionalismo no Ocidentese faz sentir em certos meios intelectuais, onde começamos a superar a condenação pu-ra e simples. É assim que, no momento em que escrevo este manuscrito, aparece umlivro de K. Pomian, cujo mero título comprova que está em curso uma tomada de cons-ciência da importância da questão, pois intitula-se L'Europe et sés nations [A Europa esuas nações] (Gallimard, Gol. Lê Débat, 1990)3. Seu objetivo é, justamente, demons-trar o papel desempenhado pelo nacionalismo nas diferentes tentativas de unificaçãoda Europa. E como diz o autor, na quarta capa do livro: "O desejo de ver o continenteenfim unificado é, sem dúvida, muito forte. Mas as nações terão dito a sua últimapalavra?" Os capítulos 17 e 19 e o posfácio re-situam muito bem a questão do na-cionalismo no século XIX4.

A televisão, instrumento de comunicação geralmente utilizado numa perspec-tiva de "desnacionalização", poderá se encarregar dessa ressurgência da questão na-cional? Pode ela ser ao mesmo tempo esse instrumento geralista e o instrumento de va-lorização das especificidades culturais? Na realidade, os projetos de televisão européiasão concebidos sob duas perspectivas antagônicas e que remetem à contradição em quese encontra atualmente a Europa. A televisão é, por um lado, pensada como um "ins-trumento de comunicação" para aproximar os diversos povos da Europa e, por outro la-do, como meio de refletir as diferentes culturas. Mas é preciso escolher. Ou a televisãoé mais um fator de integração social e cultural, como quase sempre foi em todos os paí-ses do mundo, ou ela é um fator de expressão das diferenças. Mas é necessária toda acasuística dos eurocratas e dos políticos para dizer que as duas coisas são complemeritares!Essa complementaridade é idealista, uma vez que tudo separa essas duas dimensões, aintegração européia e a identidade cultural nacional. E não é em quarenta anos, nem por

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intermédio das mídias européias que resolveremos antagonismos e contradições que seencontram no coração da história da Europa há pelo menos dois séculos!

Por que mostrar a contradição entre os dois objetivos pretensamente comple-mentares atribuídos à televisão européia? Para deixar patente que com essa alternati-va, os partidários da televisão européia e da Europa fizeram realmente a sua escolha. Eevidentemente privilegiaram o aspecto integrador, considerando que a dimensão da"diferença cultural" seria, afinal, um parâmetro útil e complementar à dimensão inte-gradora. As diferenças culturais são vistas, evidentemente, como uma riqueza, mas coma condição de serem "burguesamente" aceitáveis, ou seja, que não questionem o pro-cesso de integração. Sim à diferença cultural, mas com a condição de que ela seja de-sembaraçada de toda a violência de que sempre foi portadora na História. Na realidade,essa longa e permanente referência à diversidade cultural européia, tão freqüentementetratada, trai um "método Coué": o desejo desesperado de, por meio da repetição daspalavras, acalmar a História.

Esse é o verdadeiro desafio da televisão européia. Como conseguir favorecer aintegração européia dando a impressão de que será fácil superar um nacionalismo cujaúnica dimensão aceita chama-se, hoje, diversidade cultural? Definitivamente, a Europailustra superlativamente, o que havíamos constatado em plano nacional, a saber, que atelevisão é geralmente um objeto não pensado. Em quarenta anos, tudo mudou naEuropa, do plano Marshall à guerra fria, do mercado comum à Europa política e, en-fim, à liberação da Europa Oriental, e, diante dessas mutações, a perspectiva da tele-visão continuou idêntica, imprensada entre essas duas ideologias, técnica e política, queem todos os casos a reduzem a um instrumento de difusão. É mais ou menos como seessa ausência de reflexão teórica sobre o status da televisão, e mais em geral da comu-nicação, tivesse também a vantagem de mostrar a pouca reflexão que se faz sobre a cul-tura e a identidade européias.

Mas atenção à comunicação! Fiel instrumento da informação e da liberdade,há um século, ela desempenha hoje um papel tão considerável na constituição das re-presentações e identidades que não é mais possível limitá-la a uma visão piedosamenteliberadora.

Qual identidade, qual cultura, qual Europa?

Para que haja comunicação é preciso que haja identidades constituídas, umavontade de intercâmbio, uma interação, uma linguagem e valores comuns. Em relaçãoa essas características gerais da comunicação, a televisão apresenta a originalidade deser uma comunicação ligeiramente interativa, permitindo que indivíduos se liguem edesliguem à distância, à sua vontade, num conjunto de programas oferecidos a todo

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mundo. A comunicação consiste tanto na recepção de imagens quanto nesse sistemade participação à distância, e é por isso que várias vezes insisti sobre a dimensão de laçosocial da televisão. Ela é um meio de participar da ordem social dentro de casa. Essacaracterística da comunicação televisual é perfeitamente adequada à comunicação nu-ma sociedade individualista de massa, pois tem uma dupla dimensão de "comunicaçãoindividual" e de "ser conjunto coletivo". Em compensação, para que essa comunicaçãoopere, é preciso um princípio de abertura e de fechamento, sendo que os dois estão na-turalmente ligados no quadro de um espaço público nacional, que não é o da Europa.Ao longo de quarenta anos, o espaço europeu não parou de crescer, ainda mais depoisda abertura da Europa Oriental, sem que aparecessem novos princípios de fechamen-to. A crítica da televisão européia conclui dessa constatação que existe um princípio deabertura, mas não de fechamento. A hipótese desenvolvida aqui é a de que, não ape-nas o princípio de fechamento é indispensável, mas que o melhor, nessa ordem, con-tinua a ser o princípio nacional num contexto europeu onde mudou de sentido. O na-cionalismo é, hoje, a condição indispensável da comunicação em nível europeu, poisnão haverá comunicação européia, princípio de abertura, se não houver simultanea-mente um princípio de fechamento constituído pelo nacionalismo. Não existe comu-nicação sem identidade, e a única que existe em plano europeu é, no momento, de or-dem nacional. É, pois, assistindo em casa, ou seja, a partir da nossa cultura e da nossaidentidade nacional que poderemos progressivamente admitir a existência e o interessedos outros, e portanto da Europa. Em outras palavras, para fazer a Europa da comuni-cação, não se deve superar o nacionalismo, pelo contrário, deve-se assumi-lo. Esse é oparadoxo e a situação básica para o estabelecimento de um espaço audiovisual europeu.

Cristianismo e nacionalismo: as interdições do discurso europeu moderno"Colocar o carro na frente dos bois" é uma frase que resume muito bem a situa-

ção atual em que, a despeito do discurso sobre a "diversidade", os projetos de televisãoeuropéia pressupõem uma unidade européia e uma cultura impossíveis de encontrar.Talvez seja possível, dentro da alguns decênios, falar de unidade, mas hoje em dia, não.Qual é a unidade européia? Será que se trata da Europa Ocidental, definida pela esco-lha dos regimes democráticos contra a Europa Oriental, artificialmente reagrupada sobessa palavra depois da tomada do controle pelos comunistas? Ou da reunião dessas duaseuropas, que vão do Atlântico ao Ural? Ou da Europa dos doze? Ou dos dezoito? Ou dosvinte? Ou daquela da CEE, do Conselho da Europa, da OTAN, isto é, integrando aTurquia, daquela da CSCE? Em termos definitivos, será ela geográfica, histórica,' políti-ca, cultural? Se ela é cultural, não se tratará do modelo ocidental europeu, pois nadaopõe, no que se refere à civilização, a América do Norte e a Europa, e uma definição se

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faz sempre por exclusão de outra coisa. Se reconhecemos hoje que os países do Leste sejuntam à Europa Ocidental, esta é ainda mais próxima, pelos seus valores, dos EstadosUnidos, do Canadá e mesmo de uma boa parte de Maghreb5, da África e da AméricaLatina. Onde começa e onde termina a Europa6, como podemos saber que são os seusfilhos e os seus valores que povoaram, por vezes colonizaram, ou seja como for, sempremarcaram profundamente a maior parte dos grandes países de hoje? A definição daunidade da Europa é uma questão que abarca pelo menos cinco séculos de história. Aquestão relativa à existência dessa unidade, coisa que ninguém parece negar, remete, deum só golpe, a esse imenso teatro histórico, ao cruzamento de línguas, de culturas, decivilizações7 que se entrechocaram neste lado do continente. Como acreditar que umprojeto político e histórico, mesmo conduzido pela absoluta vontade de superar os mi-lhões de mortos de dois conflitos mundiais, possa bastar para criar essa unidade?

Se alguma coisa encarna, segundo a fórmula célebre, a diferença entre uma"comunidade de destino" e uma "comunidade de projeto", essa coisa é a Europa. Aunidade continua, momentaneamente, apenas seu projeto, não ainda o seu destino. Ouentão, é preciso admitir que essa unidade de destino é apenas a soma de ódios, de guer-ras e conflitos que, efetivamente, deram constituição à unidade e identidade européias,mas num sentido muito distante do que geralmente entendemos pela palavra unidade.A Europa é uma comunidade de projeto, e não de destino, pois apesar de ser desejadapelos europeus há quarenta anos, não podemos confundir projeto e realidade. No mo-mento, o "sentimento" de unidade européia é frágil. Sem dúvida, nos sentimos eu-ropeus, mas num sentido mais amplo, quando estamos longe das fronteiras da Europa,e esse sentimento de pertencer a um mesmo conjunto de valores, de representações,de símbolos, não basta para estruturar a armação de um projeto de integração política.Ainda mais que o número desses princípios de identificação "européia" são tanto "oci-dentais" quanto "europeus". A questão das expressões culturais e das comunidadeslingüísticas complica um pouco mais essa definição. Por exemplo, o uso da língua france-sa ultrapassa hoje, em grande parte, o quadro da CEE e é um fator de identidade cole-tiva que remete ao mesmo tempo à Europa, ao Ocidente e também à contribuição quehoje fazem ao uso da língua francesa os povos que, voluntariamente ou não, foram mar-cados pelo francês e reivindicam hoje essa participação. O uso da língua francesa é umbom exemplo das dificuldades de uma definição européia8. E se quisermos levar maislonge a análise do que é realmente a unidade ou identidade européia, seria preciso recor-rer aos únicos princípios reais de unidade na Europa: o cristianismo9 e a idéia de nação,geralmente subestimados, ou mesmo rejeitados, às vezes, na consciência arcaica dosfundadores de uma Europa que se desejaria leiga, racional, aceitando como único princí-pio transcendente o respeito às regras de direito.

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O cristianismo, que deu ocasião a tantas guerras, é, portanto, ao que parece, aúnica verdadeira unidade da Europa. Vimos o papel dos cristãos no começo da construçãoeuropéia10 e, muito recentemente, quando do movimento de liberação da EuropaOriental. A eleição de um papa eslavo em Roma e a lembrança, na encíclica SlavorumApostoli, do papel de Cirilo e Méthode por ocasião do décimo primeiro centenário, em1985, da sua obra de evangelização são, talvez, os pontos mais visíveis disso.

Se existe uma unidade na Europa, ela é, portanto, a cristã" — e às vezes ju-daico-cristã — porém, hoje o simples fato de relembrar isso expõe à suspeita de que-rer retomar a Europa cristã do século XVII, com todas as lembranças ambivalentes quepodem ter sido deixadas, há quatro séculos, da aliança entre o sabre e o aspersório deágua benta, entre o poder monárquico e o poder eclesiástico. No momento, qualquerevocação da Europa cristã ou simplesmente do princípio de unidade representado pe-los cristãos da Europa é considerada como uma operação de "reconquista", tão tenazessão os processos de intenção num fim de século que não está ainda disposto a reco-nhecer que a questão religiosa não foi absolutamente "resolvida" e "superada" por cen-to e cinqüenta anos de racionalismo e positivismo triunfantes.

O outro princípio de unidade, a idéia de nação12, é também violentamente re-jeitado como algo de que é necessário, justamente, se desembaraçar. Desde 1945, emesmo antes, se considerarmos a enorme literatura sobre os diferentes projetos de or-ganização federalista da Europa, a questão permanente é saber se podemos chegar auma unidade da Europa a despeito das nações, ou então se esta não será sempre ape-nas um reagrupamento.

Sem contar o cristianismo, um dos únicos fatores transnacionais é a nação,princípio de identificação conhecido por todos os países da Europa. Fora disso, não res-ta nenhum outro princípio de unidade na Europa! Os acontecimentos da Europa Orientala partir de 1989 vieram relembrar, brutalmente, à Europa Ocidental, que a sua irmãgêmea também faz parte da Europa. Não haverá realmente Europa enquanto outras re-lações não se estabelecerem entre as duas metades e, principalmente, quando foremmais levadas em conta a religião e a nação, tão facilmente desvalorizadas aqui e, no en-tanto, tão essenciais do lado de lá: essa aliança da religião, da nação e dos valoresdemocráticos que permitiu dar fim ao totalitarismo.

De certa maneira, devemos agradecer a esses países terem-nos permitido re-examinar, por ocasião da sua liberação, essa questão da identidade e unidade da Europaantes que fosse tarde demais; pois é certo que definir a Europa unicamente pelo proje-to jurídico-econômico de uma Europa democrática fundada sobre a regra do direito, so-bre o princípio da razão, sobre a ciência ocidental, sobre valores democráticos — querdizer, sobre tudo o que constitui, mal ou bem, a unidade européia13 — não basta para

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constituir um projeto mobilizador para os povos. Não podemos tampouco fazer a Europasem o direito, a democracia pluralista, os direitos do homem ou a liberdade, assim co-mo não podemos fazê-la sem os valores espirituais e históricos constitutivos da sua iden-tidade.

E isso nada tem a ver com um argumento nacionalista, reacionário, conser-vador, como algumas pessoas, instintivamente, pensarão. Em política, assim como emhistória, uma das piores barreiras continua sendo o processo de intenção, a recusa deescutar, a blindagem ideológica. Hoje, o modelo racionalista dominante desejaria "se-parar o joio do trigo", ou seja, conservar os elementos constitutivos da modernidadesem aqueles que convencionamos chamar de "restos do passado".

Da mesma forma como não fazemos urna nação com uma taxa de crescimen-to, não fazemos a Europa sem almas e sem valores espirituais. A escolha não é entre oobscurantismo e a irracionalidade dos valores religiosos ou nacionais de um lado, e oracionalismo da democracia pluralista de outro. Alternativas assim fechadas lembramaquelas defendidas durante cinqüenta anos, que opunham o "obscurantismo" do ca-pitalismo às "luzes" do socialismo. Vimos em que deu isso, e como, enfim, saímos desseprocesso de feitiçaria e suspeição, não é necessário reencontrá-lo intacto, simplesmenteadaptado à Europa, com uma oposição entre os "bons" europeus democratas, leigos eantinacionalistas, e os "maus" europeus, religiosos e nacionalistas. A Europa Orientalvem nos lembrar de que não existe Europa sem a posse do seu passado e do que restada sua força: a unidade nacional e os valores espirituais. Essa obrigação de admitir quenão existe Europa sem o legado do cristianismo e da nação14 é a maior lição do ano de1989. Reaparecem então duas palavras que progressivamente, em quarenta anos deconstrução da Europa Ocidental, haviam desaparecido do discurso tecnocrático-políti-co comum, e mesmo do das mídias, cujo tom reflete em geral bastante bem a atmos-fera leiga ambiente e a propensão a viver no imediato e no futuro, mas, em todo caso,a não se sobrecarregar demasiado com o passado!

O enorme problema da unidade15 e da identidade européias remetem ao dasrelações entre civilização, história e cultura16. E o que a história e a antropologia nosensinaram lentamente é que não existe identidade senão pela diferença, senão pelaoposição. Ora, em meio século os adversários da Europa mudaram. Ontem, era o co-munismo, que hoje esfacelou-se, e a Europa reencontra ao mesmo tempo as suas fron-teiras, a sua história e deve assim admitir que é diante de si mesma que ela tem de sesituar. Como conseguir reintroduzir, num modelo que foi principalmente político eracionalista, os valores espirituais e a questão do nacionalismo? O esfacelamento domarxismo ilustra paradoxalmente a fragilidade da Europa: ele garantia uma coesão quetende a desaparecer com ele, o que demonstra que, sem adversários, os princípios de

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identidade e de unidade são menos fortes. São essas contradições internas da históriaeuropéia que vão ressurgir e será provavelmente pela sua capacidade de tratá-las quejulgaremos a sua identidade.

É, de certa maneira, a mesma questão que se colocará amanhã para a Europae, mais geralmente, para a civilização ocidental no seu diálogo com as outras culturase religiões. Já vemos isso hoje, de maneira sangrenta, no Oriente Próximo com o fun-damentalismo islâmico. A força desse irredentismo*, e de outros que virão, não seráem boa parte efeito do retorno do modelo estreitamente racionalista e instrumentalcom o qual abordamos esses outros mundos? Se esses modelos nos permitiram con-quistar o mundo e realizar também as mais belas obras do espírito, da matéria, da ciên-cia e da civilização, isso de deu muitas vezes pelo desprezo de outras culturas, quenos devolvem os discursos que lhes fizemos sobre o pluralismo, a liberdade, a igual-dade...

Sobre esse problema essencial do olhar que voltamos sobre nós mesmos e so-bre os outros reencontramos novamente as mídias. Por sua própria existência, elas fa-cilitam a circulação, o relacionamento, e, poderíamos pensar, uma forma de incom-preensão, de intersubjetividade cultural. Na realidade, as mídias estão hoje dominadaspelo discurso da Europa Ocidental, quer dizer, um discurso leigo e racionalista, hostil,devido ao modernismo dominante, a todas as preocupações espirituais ou mesmo históri-cas, e, afortiori, nacionalistas. O meio cultural das mídias considera naturalmente seupapel numa perspectiva "modernizadora". Mas não será com a racionalidade moder-nizadora que faremos a unidade européia: toda a sua história ilustra os limites ontológicosde uma tal unidimensionalização.

A mesma incerteza encontra-se também se tentarmos dessa vez compreender,ou propor, os critérios do que seria a cultura européia, que oscila entre os dois sentidosda palavra, o sentido amplo de Kultur (valores, representações, símbolos), próximo dosentido de civilização, e o sentido estrito de saber e conhecimentos acumulados(Bildungl. As fontes de conflitos aumentam, porém, à medida que nos aproximamos dosegundo pólo e das identidades culturais regionais. Em outras palavras, são tanto os fa-tores de diferenciação, mesmo de oposição, quanto os fatores de unidade que carac-terizam a cultura européia.

Existe uma diferença radical entre o que podemos compreender por cultura noplano nacional — que pode chegar até a definição da uma "política cultural"17 — e noplano europeu. Falar, hoje, de identidade ou de unidade culturais européias, políticas,

* Irredentismo: movimento italiano que depois de 1870 reivindicava a posse dos territórios que continuavam sob o poderda Áustria. Por extensão, qualquer política que visa liberar um povo de algum poder estranho. (N.T.)

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como repetimos todas as manhãs ao falar da grande aventura do século XX, não tem omesmo sentido que tinha há cinqüenta anos. Os contextos de emissão e de recepçãodo discurso, como se diz na pragmática, têm importância suficiente para não permitirque esqueçamos que falar hoje de unidade cultural européia assume um outro signifi-cado, diferente do que tinha na década de 1920. A referência freqüente à Europa cul-tural da Idade Média, do século XVII e do século XVIII18 é um meio cômodo de não fa-zer a análise das dificuldades atuais. Na Idade Média, a cultura era elitista, fortementemarcada pela religião, e o sistema feudal era uma organização da produção e do espaçopré-capitalistas, enquanto hoje em dia trata-se de uma cultura de massa numa econo-mia e numa democracia de massa que domesticaram o espaço, em outras palavras, umasociedade caracterizada antes de tudo pelo número, pela comunicação e pela mobi-lização de valores essencialmente leigos. A referência a essa Europa mítica da IdadeMédia, como à dos séculos XVII e XVIII, remete a uma concepção da cultura que nãotem mais grande relação com a realidade de hoje, e cujo elitismo se encontra nos pro-jetos de um canal cultural europeu evocados anteriormente. Existe um desvio da históriae, sobretudo, dos símbolos cujo único interesse é justificar as escolhas político-econômi-cas ao mesmo tempo recentes e pontuais. Por que mobilizar esses grandiosos afrescoshistóricos para decisões bastante limitadas, senão para delas se servir como caução?

Vimos nas mídias o veículo da cultura anglo-saxã, mas, na medida em que dis-sociarmos uma língua veicular desprovida de todo valor cultural intrínseco das reivin-dicações ligadas à língua como fator de identidade cultural fundamental, o papel dasmídias poderia mudar de sentido, desempenhando um papel identiflcatório essencial.Elas poderiam contribuir para o ressurgimento da reivindicação de identidade, apesarde, durante quarenta anos, não termos nelas visto nada mais do que o veículo da "ideo-logia norte-americana". A televisão difunde, sem dúvida, os seriados norte-americanos,mas falamos também a língua nacional, ouvimos e vemos os que a falam, o que significaque as televisões nacionais não são necessariamente o instrumento privilegiado da co-lonização das consciências e das culturas, mas talvez o ponto de partida de uma afir-mação identificadora, senão de um irredentismo. A incompreensão não passa pelo usode uma mesma língua, salvo no seio de um subconjunto cultural como, por exemplo,o da Europa central dominada pelo alemão. Ela passa, antes, pelo aprendizado do res-peito ao outro, portanto, pelas traduções. É preciso, então, tempo, elemento pouco con-siderado na cultura moderna européia. Os livros e as revistas são provavelmente maisimportantes para a construção européia do que as televisões. Podemos também nos per-guntar quem, além dos políticos e intelectuais, se serve do tema da cultura européia co-mo porta-bandeira. O que significa essa visão ecumênica e abstrata da realidade de umacultura européia que transcenderia as diferenças nacionais, lingüísticas, religiosas, e que

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iria mesmo além do processo normal de diferenciação cultural observado em todas associedades? De qual unidade cultural deveria a televisão européia ser reflexo? E se ad-mitirmos que essa unidade é fortemente hipotética, forçoso é reconhecer que nãoexiste necessidade de uma televisão européia para refletir as diversidades culturais,porque estas existem todos os dias nas televisões nacionais! Ademais, o que todo o mun-do adora nos programas estrangeiros é descobrir, por mil detalhes, tudo o que faz o es-tilo, a linguagem, a estética de um país.

Cada telespectador nota a importância do caráter nacional na produção de jo-gos, como também na produção das ficções ou das variedades. Assistindo a esses pro-gramas, cada um sabe imediatamente de que país provêm e, ao contrário de uma idéiapreestabelecida, a internacionalização da produção televisual — assim como a do cine-ma — não questiona absolutamente a importância das diferenças de estilos nacionais.Para se convencer disso basta assistir a qualquer festival internacional de televisão ou decinema para compreender essa diversidade, assistindo a diferentes imagens. Se as HLM[Habitação de Aluguel "Moderado"] têm a mesma forma em toda parte, a imagem datelevisão e do cinema não é a mesma num país e noutro. Esse caráter "nacional" dasimagens pode ser encontrado igualmente na informação, a qual poderíamos pensar, aocontrário, ser internacional. Ora, já relembrei antes que, conforme demonstram todosos trabalhos de pesquisa, uma mesma informação não é tratada da mesma maneira numpaís e noutro, simplesmente porque os "pontos de vista" desses países são diferentes.

Essa importância do "estilo" nacional pode igualmente ser encontrada naqui-lo a que chamamos abusivamente de "cinema europeu". Na realidade, o que agrada éa especificidade e a originalidade do cinema italiano, francês, inglês, alemão, e vamosao cinema justamente para ver maneiras de filmar, de construir, de narrar, de montar...que são específicas de cada cinema nacional. O que mostramos no cinema é a diversi-dade cultural, da mesmíssima forma que na televisão. Só existem cinemas nacionais as-sim como só existem televisões nacionais, mesmo que os dois, por razões de custos deprodução e de lógica capitalista, precisem de financiamentos multinacionais. Mas é pre-ciso não confundir as condições de fabricação com o produto. Em matéria de obras ci-nematográficas e audiovisuais, só existem obras internacionais no que respeita a difusão:elas são individuais e nacionais quanto à criação.

Na cultura européia, confundimos os dois fenômenos. De um lado, as grandesoperações ligadas à música ou à dança para as quais se coloca o problema do tamanhodo mercado e para as quais as mídias são instrumentos adaptados à dimensão dos re-cursos financeiros envolvidos. De outro lado, todo o resto que, não tendo o universa-lismo dessas linguagens, não pode ser comunicado à totalidade do público europeu eque remete, então, às produções culturais nacionais.

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Em outras palavras, o que chamamos de Europa cultural refere-se quase ex-clusivamente a um conjunto de superproduções nos poucos domínios onde pode exis-tir urna linguagem universal — e onde é preciso também perguntar se se trata real-mente de cultura européia ou, antes, de cultura ocidental. Existem milhares de outraspráticas culturais que, sob certas condições, podem passar de um domínio cultural aoutro, mas raramente no modo, no ritmo e no tom disso a que chamamos hoje de cul-tura européia. Em uma palavra, a Europa cultural não pode ser decretada nem insti-tuída. Ela vai se fazendo no dia-a-dia, sem visibilidade de conjunto, e a existência po-tencial das mídias que abrangem toda a Europa nada mudam. Elas não são em si nemcondição de uma "boa" cultura européia, nem de uma boa difusão. Não é certo, tam-pouco, além das produções culturais adequadas como o cinema, a música, as séries ouo esporte, que os públicos identifiquem naturalmente cultura e mídia de massa, ou, aocontrário, que pensem a cultura em escala de Europa e o seu acesso em escala das mí-dias: o acesso à cultura passa a maior parte do tempo por caminhos e ritmos mais "pri-vados", que não são, em todo caso, identificados com um suporte. Por isso é que ten-tar aproximar os europeus falando de uma identidade cultural promovida pelas mídiasnão parece uma empresa destinada ao sucesso, porque os europeus têm uma escala defuncionamento de dimensão continental.

05 limites de uma "política da história"A questão essencial não é nem mesmo saber se existe ou não uma cultura eu-

ropéia e o papel que nela podem desempenhar as mídias, mas antes saber os limitesdaquilo a que poderíamos chamar de uma "política da história". Até que ponto pode-mos pilotar, organizar a história ao longo do seu processo? Até que ponto podemos iden-tificar, mobilizar e talvez dominar os diferentes parâmetros, sobretudo quando elesdizem respeito à cultura, isto é, às obras do espírito, aos valores e às representações?Até que ponto os homens podem inserir na cultura a sua definição, a sua produção, asua gestão, a sua difusão de um calendário de ação onde se engalfinham o passado, opresente e o futuro? Agir no plano cultural para favorecer a identidade e a unidade eu-ropéia significa tocar no próprio fundamento de categorias simbólicas através das quaissão pensados a identidade e o tempo, isto é, a história. Tocar na "cultura comum" sig-nifica tocar na história. Até que ponto podemos ter uma "economia", em sentido am-plo, da história? Podemos revirar o calendário da mesma forma que reviramos a geo-grafia, mesmo que seja por uma boa causa? Não é porque queremos nos aproximar cul-turalmente que os conflitos entre culturas desaparecem. Já podemos ver isso no ressur-gimento do nacionalismo. Existe, portanto, certa ingenuidade histórica em acreditarque as identidades radicais e conflitantes, sobre as quais repousam as diferenças cul-

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turais, desaparecerão desde que decidamos a nos compreender melhor. Basta olhar asduas Alemanhas, a Irlanda, o País Basco... O método Coué pode ser um bom motor naeconomia, ou na política, porque os interesses mobilizados transcendem certas con-tradições, ao passo que o mesmo recurso é difícil em matéria cultural porque se trata,antes de tudo, de valores e de identidades, ou seja, de paradigmas que, na história, nãopodem ser negociados.

Na realidade, confundimos os planos e as lógicas da Europa. Esta tem dois pés:os princípios democráticos, que vão do mercado ao modelo político, e as histórias na-cionais. A liberdade de expressão e o triunfo dos valores democráticos — inclusive noLeste — deixam intocada momentaneamente a questão de se assumir uma história euma cultura movimentadas. Pois os dois fenômenos não vivem no mesmo ritmo, e ahistória não pode ser administrada como administramos a fabricação do mercado co-mum, ou mesmo um quadro jurídico e democrático. Ora, com a cultura — e hoje emdia também com seu "aliado", o audiovisual — jogamos com a história. Se aproximar-mos, para além dos sistemas políticos e das modas, a informação, o lazer e a cultura, oque restará das diferenças entre os povos que tudo aproxima e que, ao mesmo tempo,tudo separa19? É provável que quanto mais se faça a integração política, mais as dife-renças culturais se aprofundem, mesmo que todo o esquema europeu vá em sentido in-verso. O que obriga, uma vez mais, a colocar a questão: de que temos medo nessa di-versidade cultural européia que chega até a incomunicação?

Além do caráter insuportável do que poderia ser um caos cultural europeu, aquestão é saber se poderá existir uma consciência européia e, portanto, uma culturasem uma filosofia da história.

A Europa não tem, por enquanto, uma filosofia da história. Ou, antes, estafilosofia caminha em marcha forçada de elaboração ao longo de quarenta anos, giran-do em torno dos eixos fundamentais da civilização ocidental, mas essa gestação aindanão superou os diferentes elementos constitutivos da história européia. Isto não sig-nifica que o desejo de estar juntos triunfará, mesmo que lentamente, sobre os ódios. Ahistória, em todos os tempos, sempre separou os europeus; ela começa a aproximá-los,mas deixemos que siga o seu ritmo.

Atualmente, trata-se menos de reforçar uma identidade cultural ainda tênuedo que de explicitar filosofias da história que tudo sempre separou. É preciso fazer ascontas. Em que ritmo os diferentes países europeus poderão passar a gestão das suaspróprias memórias à gestão da Europa? Pois não haverá cultura européia senão pelareabsorção e quase transcendência das diferentes identidades e memórias. Existe tan-to passado esquecido, glorioso ou sinistro, a ser integrado numa memória histórica, queé preciso passar por esse caminho se quisermos ver um dia emergir uma identidade eu-

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Se, além disso, faz-se tudo isso pela cultura européia e em seu nome, quem vai recla-mar? Não esses grupos, é claro! Existe, como dissemos, um "encontro objetivo" en-tre o discurso sobre a cultura européia e os interesses das indústrias de mesmo nome.O que fica de fora dessa celebração da cultura européia não é apenas esse risco de sófavorecer as indústrias culturais, mas também o risco de criar o mesmo fenômenoque ocorre com a televisão cultural: concebida para salvar a cultura de elite ameaça-da pela cultura de massa, ela corre o risco, isto sim, de reforçar os "grandes batalhõesde gosto cultural comum", precisamente porque, por razões econômicas, a televisãocultural deverá apoiar-se no gosto cultural comum que, em cada época, não reflete"naturalmente" a produção cultural do momento. O mesmo fenômeno pode se pro-duzir na Europa cultural, em escala mais vasta: as indústrias culturais rentabilizarão— e quem pode reprová-las por isso? — o fundo cultural europeu comum, sem comisso facilitar a produção contemporânea que, como todas as criações, corre o risco deser menos consensual e muito mais conflitante.

No momento em que todo mundo só fala de unidade e de integração, a ver-dadeira força da Europa está, na verdade, nessa convivência mais ou menos harmo-niosa de culturas21 que tudo aproxima segundo uma política institucional, mas que tu-do separa no tempo da criação. Manter os "particularismos culturais", como diz o dis-curso público é, na realidade, o melhor meio de evitar uma aproximação que só podeser um contra-senso e não beneficiar senão uma abordagem econômica que, mesmoque se diga "cultural", não é exatamente da mesma natureza que um projeto políticoe filosófico. É aí que tornamos a encontrar o papel ambíguo das mídias. Em lugar deaproximar sabiamente os povos, culturas e identidades, como se espera delas, elas po-dem se tornar um instrumento de divisão, mesmo que ninguém saiba ainda o que éuma consciência e uma identidade européias, nem no plano da CEE, e, menos ainda,na plano da Europa Oriental!

Definitivamente, a relação ambígua entre identidade e comunicação não é ja-mais tão forte na cultura: ao contrário do que se pensa naturalmente, a cultura não émais facilmente "transnacional" do que a comunicação. Sem dúvida o é na sua difusão,para as obras consagradas do patrimônio, mas ela não o é na sua criação e existênciasincrônica — da mesma maneira que a comunicação só é transnacional pelos seus ins-trumentos, e limitada a um quadro nacional por sua significação.

O retorno do nacionalismo

A idéia, talvez contra a corrente, que gostaria de defender aqui é que não haveráintegração européia senão reforçando-se simultaneamente as especificidades nacionais.O que, em matéria de comunicação se traduz pelo fato de que a televisão européia terá

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melhores condições de existência se ela tomar como apoio preferencialmente o únicoquadro de comunicação que já existe, ou seja, o quadro nacional22!

; O erro consiste em acreditar que é preciso escolher entre a Europa e a iden-tidade nacional, quando, na verdade, quanto mais a integração européia avançar,mais ela exigirá que se busque na identidade nacional um fator de diferenciação. Onacional não é uma limitação para a unidade européia, mas, ao contrário, uma boaoportunidade, simplesmente porque o status do nacionalismo mudou com a cons-trução da Europa. Ele não é mais um "adversário" dela, mas, ao contrário, umacondição de integração, porque o espaço de referência, simbólico, cultural, políticoe econômico se expandiu. É necessário conservar uma base de identificação que nãotenha exatamente o mesmo status que antes. A nação é um princípio identificadortão forte quanto as exigências a que ela conduz e que são, de alguma forma, umaespécie de muralha que não podemos ultrapassar. Existe tanto risco em recusar anação quanto em levá-la sempre em conta: situação paradoxal em relação ao passa-do que cada um guarda na alma, mas que exprime bem a mudança de paradigmaem que nos encontramos.

Comunicação, identidade e nacionalismoA Europa se vê, portanto, confrontada com uma revisão dolorosa da questão

do nacionalismo. Ela se forma em oposição a ele, e será obrigada a admitir que, paraavançar na sua integração, será preciso respeitar as diferenças, dentre as quais, o na-cionalismo23. Compreendemos o que existe de delicado nessa revisão, coisa que expli-ca sem dúvida que a identidade nacional seja hoje uma questão não pensada, mesmoque a ampliação da Europa a coloque com precisão.

Ontem, o nacionalismo significava uma recusa a se abrir; amanhã, ele será umacondição para buscar a abertura. O que acontece com essa palavra irá também aconte-cer com outras palavras e com outros valores, como a religião, a família, talvez mesmo,amanhã, com o conceito de liberdade. O erro é confundir uma retomada de interessepor esses valores com retorno ao "reacionarismo". Como se, entrementes, os valoresnão tivessem mudado e a história tivesse ficado imóvel. O nacional atirado porta aforapela construção européia retorna pela janela da comunicação européia. Aceitar a iden-tidade nacional como base de toda comunicação, significa, afinal, aceitar a precedên-cia da lógica histórica e cultural sobre a lógica política, ou, mais exatamente, em ad-mitir que o nacionalismo, na situação atual, tem sentido diferente daquele, estritamentepolítico, que conhecemos. Permanece aberta a questão de saber se existe um ou váriosnacionalismos, ou se podemos falar, como o faz uma corrente da filosofia histórica, denacionalismo pós-identificatório.

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Cada país deve abordar a Europa a partir da sua identidade e do seu ponto devista. Essa idéia do "ponto de vista" é que é determinante. Ela traduz a consciência deque a Europa é mais um projeto do que uma realidade e ainda não tem, no momento,outra fonte de unidade além da nação. A revalorização do Estado-Nação, na fase deaceleração da integração européia, pode ser o melhor meio de encontrar uma maneirade aproximação conhecida, diante dos enfrentamentos que não deixarão de se produzirna futura fase de integração. Talvez a nação não seja tão-somente um freio à Europa,mas também um fator de integração. O erro dos eurocratas é haverem procedido poranalogia entre economia e política: como a nação era um obstáculo protecionista noquadro da construção do grande mercado, ela só poderá sê-lo também no quadro daconstrução política! Mas o problema se coloca em bases radicalmente diferentes: umobstáculo no quadro da economia pode parecer, pelo contrário, uma condição favorávelno quadro da política. Por isso, o papel da televisão e da comunicação não consiste em"inventar" uma comunicação independente ou "acima" das nações, mas, ao contrário,garantir o laço entre as comunidades nacionais.

A força da televisão nesse contexto é justamente ser ao mesmo tempo um fa-tor de comunicação transnacional e um agente de soberania nacional, e é essa aliançados dois que a torna útil à construção européia. Ela é um fator de comunicação transna-cional, natural, admitido por todos, tanto pela informação, quanto pelos programas.Mas o contra-senso consiste em concluir que ela é, por isso, "naturalmente" um fatorde superação da idéia de soberania nacional, quando na realidade é, ao mesmo tempo,um fator de coesão nacional no interior de um espaço público nacional. A originalidadeda televisão é de poder fazer as duas coisas: ser um elemento de laço social no seio deuma comunidade nacional e um elemento de comunicação entre as diversas identi-dades nacionais.

Podemos dizer, de modo exagerado, que se amanhã, na Europa, as prerroga-tivas estatais fossem suprimidas, restaria ao menos em cada Estado, a educação e a tele-visão. Se todo mundo pensa na educação como símbolo da soberania nacional, ninguémpensa desse modo sobre a televisão. Claro! Como veremos muito em breve, a expan-são da economia da comunicação em nível europeu conduzirá a uma verdadeira colo-nização de certas mídias nacionais por grupos de comunicação privados, europeus ounão, suscitando, inevitavelmente, uma reação nacionalista cuja importância, de modogeral, ainda subestimamos hoje. Isto aplica-se à imprensa escrita, ao rádio e ainda maisà televisão porque, à exceção de alguns exemplos próximos como o InternationalHeraldTribune e o Financial Time4, e amanhã alguns canais de rádio e de televisão, a maio-ria das mídias é nacional. E a maioria dos cidadãos e dos profissionais da comunicação— ou simplesmente o público — consideram como natural e indispensável que as mí-

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dias sejam nacionais. Ainda não conseguimos entender como a televisão pode ser uminstrumento de comunicação nacional, mesmo transmitindo programas estrangeiros,pois o problema não é tanto o programa estrangeiro ou nacional, mas sim a maneira co-mo ela se integra num espaço nacional. O Brasil é, desse ponto de vista, exemplar,porque é um país dominado pela televisão privada, onde coexistem programas norte-americanos e uma forte produção nacional, que desempenha, no entanto, desde a dé-cada de 1960, um papel essencial na definição da identidade brasileira. Com mais de150 milhões de habitantes, dos quais a metade é analfabeta, o Brasil encontra na tele-visão um dos seus principais espelhos e fatores de identidade. O que se aplica a essepaís — mesmo que o consideremos como um país "novo" por ter sido profundamentemarcado pela Europa a partir do século XVI — aplica-se também aos países propria-mente europeus.

Para resumir, podemos dizer que a televisão preencheu simultaneamente duasfunções complementares e indissociáveis no quadro da construção da Europa: ela é umfator de coesão interna e pode, em decorrência disso, ser um fator de circulação e decomunicação em plano europeu. E todo mundo pensa, de boa-fé, principalmente no se-gundo papel, minimizando o primeiro, que é, no entanto, a sua própria condição deexistência.

Sobre essa questão das relações entre nacionalismo e comunicação, a liberaçãoda Europa Oriental traz ainda lições sobre as quais se deve meditar: ao mostrar, primeiro,o papel essencial do nacionalismo; depois, ilustrando o papel da "liberação" que de-sempenham as mídias, e, enfim, mostrando que se as duas Europas se encontram tãorepentinamente face a face, isso é também resultado do ambíguo triunfo da comuni-cação. Por que o nacionalismo considerado como fator de liberação no Leste, seria umfator totalmente alienante no Ocidente25? Na realidade, a chegada da Europa Orientalconfirma a necessidade de modificar radicalmente os códigos e as regras de comuni-cação, tanto no Ocidente quanto no Leste. Num primeiro momento, deve-se falar menosde aproximação do que de troca de "pontos de vista", aceitando o passar do tempo eas dificuldades que uma tal reorganização da comunicação pressupõe. Aprender a co-nhecer o outro aceitando que ele fala "do seu lugar". Organizar imediatamente umaforma de convivência para depois falar de comunicação. Partir radicalmente das dife-renças e não das semelhanças. Em resumo, é preciso admitir que o processo comuni-cacional posto em movimento na Europa está como que desorientado pois, ao removeras realidades políticas, econômicas e institucionais para se aproximar das realidadeshistóricas e culturais, tudo voa em pedaços, torna-se complexo demais e muitas vezescontraditório. Da mesma forma que não há uma, mas sim duas, três, quatro, cincoEuropas, segundo os critérios de identidade escolhidos, não existe uma, mas várias ló-

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gicas de comunicação. E quanto mais quisermos fazer a comunicação desempenhar umpapel de integração, mais perceberemos as diferenças radicais!

A dificuldade em imaginar o papel das mídias na construção da Europa provém,definitivamente, do fato de se tratar de uma situação inédita. Conhecemos o papel dasmídias na luta contra o comunismo na Europa, conhecemo-lo um pouco no quadro daconstituição de um país novo, como os Estados Unidos ontem, o Brasil ou Israel hoje.Mas o conhecemos menos quando se trata de aproximar povos "velhos" que tudo, dalíngua à história, trata de separar. Ora, com muita freqüência temos a tendência deraciocinar por analogia e de acreditar que "naturalmente" as mídias são um fator deaproximação: mas a edição de livros, esse meio aparentemente menos "moderno", se-ria, sem dúvida, muito mais útil26.

Por que temer uma heterogeneidade cultural?É preciso evitar atribuir um outro papel às mídias. E a concepção teórica da tele-

visão pode ajudar a compreender esse novo papel. Vimos nos capítulos 6 e 7 que a tele-visão é uma forma essencial de laço social, através da gestão de duas dimensões essen-ciais da sociedade individualista de massa: a relação indMduo-massa de um lado, e a re-lação particular-geral de outro. Nacionalmente, nacional, vimos que é a dimensão "gera-lista" que deve dominar. Em plano europeu, e mesmo que a questão possa parecer para-doxal, a dimensão de laço social depende da capacidade de reforçar a dimensão particu-larista da comunicação e das mídias. O essencial, para a problemática da televisão naEuropa, é saber que ela não remete à primeira dimensão do laço social (indivíduo-massa),mas à segunda (a relação particular-geral). No caso do espaço público nacional, o geraldeve dominar o particular. Na Europa, é o contrário, pois não existe comunicação no sen-tido em que falamos de comunicações nacionais. E mesmo que a Europa comunitária te-nha por "nome" Comunidade Econômica Européia, ela continua sendo um projeto, nãouma realidade. É garantindo a comunicação entre as comunidades nacionais que a tele-visão melhor contribuirá, lentamente, para a elaboração da comunidade européia.

Se a televisão é adequada a uma cultura de massa nacional, ela não o é neces-sariamente a uma cultura de massa européia, e é preciso perguntar se a função da tele-visão de massa européia não será, afinal, totalmente diversa daquela que lhe em-prestamos hoje. Em plano nacional, a televisão geralista é um meio de luta contra o es-paço público fracionado. Em plano europeu, onde não há espaço público, a televisão é,antes, um meio de reforçar as identidades culturais nacionais e aparece, então, comoum meio de preservar um "espaço público europeu fracionado".

Não existe comunicação sem referência ao universal, que transcende o simplesrelacionamento da comunicação instrumental. E, por enquanto, o projeto europeu, por

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mais importante que seja, não basta para formar esse universal. Em compensação,existem as nações, as culturas, as identidades que não estão mais em guerra, mas con-tinuam fortemente identificadas. É preciso, portanto, servir-se da televisão para fazercada país compreender o que o distingue do outro. Essa primeira etapa, particularistano andamento, mas comunicacional na intenção, é fundamental. É reposicionando asidentidades culturais e nacionais em diferentes países por meio de um conhecimentomútuo que a televisão pode, lentamente, contribuir para estreitar os laços entre o par-ticular (as nações) e o geral (o projeto europeu).

Em todos os casos, existe um preço a pagar pelo triunfo da comunicação e umacerta frustração a admitir. Em plano nacional, o preço é aceitar para a televisão um lu-gar modesto no espaço público, em benefício de outras formas de comunicação. Emplano europeu, é a renúncia à utilização da televisão para mascarar a inexistência deum real espaço de comunicação. Colocar essa predominância do quadro nacional sig-nifica reduzir a pretensão de uma comunicação normativa e intersubjetiva em planoeuropeu e ficar no nível de uma comunicação intercultural necessariamente limitada.

Desse ponto de vista, a questão de quotas pode ser interpretada não como umavitória dos "europeus", mas como o meio de jogar para mais tarde a tomada de cons-ciência sobre a importância da identidade cultural. A unanimidade com que a idéia deprotecionismo, de quotas, foi rejeitada deve ser tomada como uma negação. A verdade,neste momento, não está entre os Estados Unidos e a Europa, mas antes no próprio seioda Europa. Os Estados Unidos tornam-se um bode expiatório confortável, que permiteacreditar na existência de uma frente unida. A recusa das quotas foi considerada comoafirmação de uma certa unidade, quando era na verdade o meio de não colocar a questãoda existência dessa unidade27.

Valorizar a heterogeneidade e o nacionalismo cultural para melhorar um co-nhecimento mútuo, isto sim seria um projeto audiovisual europeu ambicioso. A hete-rogeneidade é o melhor meio de resistir aos norte-americanos e aos japoneses, que pre-ferem se ver perante um grande mercado europeu em vez de enfrentar o que chamamde "fortalezas nacionalistas superadas". Esse mosaico de mercados é, do ponto de vistaestratégico, uma excelente medida, pois não será o "grande mercado" que permitirámelhor resistir porque não se trata de carros, de computadores nem de máquinas delavar, mas de valores constitutivos da identidade de comunidades culturais. Toda exal-tação da cultura européia é, na realidade, uma credencial para facilitar a entrada de pro-jetos e capitais norte-americanos-japoneses que é preciso conter. A estratégia dominanteatualmente, que só fala de ampliação, revela claramente o pouco de reflexão que se fazsobre o status da comunicação, sobre as suas relações com a identidade nacional e so-bre a mudança de paradigma referente ao nacionalismo cultural e, em segundo lugar,

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ao desenvolvimento da cultura de massa. Ontem, a Europa cultural28 tinha de ser cons-truída contra o nacionalismo tirânico. Hoje, com a democracia e a cultura de massa, épreciso, inversamente, construir a Europa cultural partindo do nacionalismo cultural,pois é nesses nacionalismos que se encontra a cultura de massa. A elite de ontem po-dia ser internacionalista, e talvez ainda o seja hoje, mas a maioria da população nãopode viver nesse espaço-tempo. E é o público que vai fazer a Europa29!

As relações entre a televisão e a Europa fazem, portanto, aparecerem trêsperigos.

O primeiro perigo é a falsa integração que brota do discurso sobre a "identi-dade européia". Essa unidade global não existe, e só existem unidades parciais porregiões, cidades, proximidades geográficas ou lingüísticas. Do ponto de vista do estadoda Europa, parece que a melhor solução seria uma comunicação modesta, in-tercultu-ral, que repouse sobre os Estados ou sobre as regiões quando elas têm uma identidadeautêntica.

O segundo perigo é uma retomada do nacionalismo em oposição ao discursouniversalista demasiado artificial: a questão será reencontrar as identidades contra a tec-nocracia européia.

O terceiro perigo é a balcanização, ou seja, as regiões ou domínios culturais sevoltarem para uma comunicação "autêntica" limitada à sua dimensão e cuja contra-partida seria um fechamento à comunicação social.

Esses obstáculos demonstram que, contrariamente ao que sempre ouvimos,não existe necessariamente oposição entre o nacionalismo, símbolo do passado, e o uni-versalismo, símbolo do futuro. Os dois pertencem ao mesmo calendário histórico, e aforça da Europa estará na capacidade de poder conciliar particularismo e universalis-mo. Ser ao mesmo tempo a favor dos direitos humanos e de um certo nacionalismo.

O que fazer, o que não fazer

Já terá dado para compreender que a margem de manobras é tênue, devido atrês possibilidades: o "estatismo" simbolizado por uma lógica européia muito estrita, o"laisser-faire" simbolizado pela estratégia de todos os grandes grupos de comunicaçãoe o "voluntarismo" do estilo francês.

A comunicação, agente e não mais razão de conflitosRaciocinar a partir da idéia de um mercado de 320 milhões de europeus é,

provavelmente, o primeiro erro a ser evitado. Primeiro porque existem, talvez, 300 mi-lhões de motoristas, mas esses mesmos 300 milhões não têm a mesma homogeneidadeno que concerne ao seu comportamento cultural e comunicacional! Segundo, porque

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uma tal abordagem só pode ser proveitosa às indústrias culturais que, como todas as in-dústrias, preferem um mercado aberto e sem regulamentações e especificidades cul-turais nacionais. E, último, porque esse mercado corresponde a uma visão econômica(de desregulamentação) e não a um projeto cultural.

Não, o grande público europeu não existe! Os projetos de televisão culturaltemática como La Sept, por exemplo, mas ampliados à Europa em geral, não parecemuma boa solução, uma vez que todas as críticas feitas à televisão cultural nacional se-riam ainda mais pertinentes em plano europeu, onde o efeito da elite e da seleção será,nesse caso, de acordo com a dimensão do mercado! De fato, a premência do tema datelevisão européia30 provém do fato de que ela se sustenta ao mesmo tempo sobre doisdiscursos, muitas vezes contraditórios, mas que aqui se reforçam.

Quatro tipos de conflitos poderão surgir por ocasião dos projetos de televisãoeuropéia:

A comunicação poderá se tornar, logo de início, um fator de conflitos, quandofoi até hoje associada, ao lado da informação, à idéia de liberação. Os conflitos queexistiam tinham por objetivo ampliar a liberdade de informação e de comunicação, mashoje as duas podem se tornar agentes de conflitos, porque em meio século a comuni-cação, e particularmente a comunicação audiovisual, assumiu um lugar considerávelna sociedade. É preciso evitar assumir, diante da comunicação, uma visão angélica,linear, pacifista, e não conflitual. A Europa não começa com a comunicação, poiscomeçou muito antes, simplesmente continua a não esquecer, afinal, nada do "seu some da sua fúria". A comunicação não faz nenhum medidor voltar ao zero.

A televisão, assistida em casa, é vivenciada, muito justamente, como um dosatributos essenciais da liberdade individual, como uma das conquistas da idéia de igual-dade, pois todo mundo pode ver o mesmo programa. Ela é, ao mesmo tempo, uma con-quista e um território de liberdade a ser protegido. Mas se se tomar consciência de queela se tornou uma atividade diretamente controlada pela sociedade, com vistas a umfim determinado, seja ele qual for, disso podem resultar reações violentas, visto que atelevisão, como o carro, representa na nossa antropologia moderna um dos últimos ter-ritórios da nossa liberdade.

O segundo tipo de conflitos está ligado à passagem da comunicação para o es-tágio de indústria. Já vimos que as mídias, tanto a imprensa escrita, quanto o rádio e atelevisão, são objeto de um maciço investimento por parte de agentes financeiros in-ternacionais31. O resultado disso é a multiplicação de intervenções, de co-participaçõesde grandes grupos financeiros e de comunicação em todos os países da Europa32. Issotambém se deu na Europa Oriental onde, desde o início do ano de 1990, grupos de co-municação particulares compraram jornais, criaram rádios, batalharam para obter a cria-

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cão de televisões privadas. Na Europa Ocidental, o movimento vai mais depressa — naEspanha, na Grécia, em Portugal33 — com o risco de que uma boa parte da indústriade comunicação desses países passe para o controle financeiro de capitais privados es-trangeiros. E ninguém pode hoje saber se, afinal, esses povos preferirão uma multipli-cação de estações de rádio e de televisão ao preço de uma "desnacionalização das mí-dias" ou então se haverá, ao contrário, manifestações para o seu caráter nacional. Porenquanto, é a ideologia liberal que domina, com os profissionais da comunicação — in-clusive os jornalistas — fazendo o jogo da internacionalização, considerada como fatorde abertura e de modernização. Não se pode ter certeza de que as opiniões públicas,quando se derem conta do resultado dessa reestruturação industrial, venham a aceitartão facilmente uma espécie de perda da posse da identidade nacional comunicacional.A desigualdade entre os países da Europa encontra-se também aqui, e não se pode tercerteza de que os países menos ricos venham a consentir essa semicolonização, mes-mo que ela se justifique em nome dos princípios do grande mercado de 1993.

A situação da Bélgica é, desse ponto de vista, um caso europeu extremamenteinteressante de ser estudado. País pequeno, recente, de identidade nacional tênue,cortado ao meio por um conflito lingüístico e cultural forte e que há tempos é corta-do por vias de comunicação, ontem físicas, hoje radiotelevisivas. A Bélgica é o paísonde, graças ao cabo, se pode receber o maior número de canais estrangeiros, e a di-ficuldade futura é saber se o rádio e a televisão públicos (RTBF, BRT, BRF) conti-nuarão, como fazem há quinze anos — em condições de concorrência dramáticas —a manter uma identidade ou se, finalmente, as mídias privadas, todas "umas mais eu-ropéias do que as outras", acabarão dominando, indicando assim a futilidade de umaproblemática de identidade belga34. Se, aparentemente, na Bélgica, tudo caminha nosentido dessa abertura, mesmo que com um certo masoquismo, pois muitas vezes aidentidade nacional é sacrificada à idéia de que "a Bélgica é uma das regiões da Europade amanhã", é sempre possível haver uma reação nacionalista contra o risco de com-pleta "desnacionalização" da comunicação, uma vez que, nos domínios industriais efinanceiros da economia belga, constatamos o mesmo movimento de "colonização"financeira, muitas vezes de origem francesa. É, pois, possível que amanhã venha à luzuma reação nacionalista contra o esfacelamento da Bélgica, talvez em torno do pontosimbólico da comunicação. Uma coisa é afirmar uma identidade modesta em um quadroeuropeu, outra coisa é perder o pouco de identidade que resta, no momento em quea integração européia vai colocar, de maneira radical, essa questão de identidade na-cional aos diversos países da CEE.

As mídias, em sentido amplo, podem muito bem vir a ser um dos pontos defixação de um debate sobre a identidade nacional em diversos países europeus, mesmo

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que há quarenta anos elas tenham sempre parecido ser o símbolo da abertura e da su-peração do arcaísmo nacional. Assim é que, num desses paradoxos cujo segredo só ahistória conhece, a atividade econômica e cultural, símbolo de todas as aberturas e detodas as superações de fronteiras herdadas do passado, se tornaria na realidade a basede uma contra-ofensiva identiflcadora. A comunicação seria, então, símbolo da recusaà abertura...

O terceiro conflito, simétrico ao precedente, seria uma reação ao voluntarismotecnocrático e se traduziria pela rejeição do tema da "identidade européia" que, à forçade ser repetido, criaria efeito repulsivo. Seja sobre uma base nacionalista, seja, ao con-trário, por uma reação inversa de voltar-se a Europa sobre si mesma, em busca da suaprópria identidade coletiva, lentamente se cortariam outras relações que ela tem hámuito tempo com o Extremo Oriente, com a África, a Ásia, a América. Tendo o Lestee o Ocidente, afinal, a sua base na Europa, esta poderia muito bem contentar-se comuma espécie de indiferença em relação ao Sul, coisa que este, efetivamente, teme.

O outro problema é a limitação do poder dos tecnocratas. Quanto mais sefecham as malhas da política européia, reduzindo insensivelmente as margens demanobras dos diversos Estados — inclusive na sua organização da vida cotidiana —mais a tomada de consciência do peso desse novo poder tecnocrata-político poderá terefeitos imprevistos. Assim como os tecnocratas fazem parte da paisagem de todo país,também, em todo país, a opinião pública não está ainda pronta para ver o seu futurodeterminado pelos tecnocratas de Bruxelas! No momento, a Europa parece ao mesmotempo bem real e muito longe da vida de todo dia. Mas não é certo que a mesma boavontade subsista quando a organização da nossa vida cotidiana for diretamente afetadapelos tecnocratas de Bruxelas.

O quarto perigo de conflitos é a reapropriação pela extrema direita de umaproblemática da Europa e do nacionalismo. Esquecemos com muita facilidade queexiste uma corrente de extrema direita, ao mesmo tempo nacionalista e européia, ho-je oculta, sequer visível no Parlamento europeu, e que poderá ressurgir amanhã se aconstrução européia desestabilizar muito depressa os pontos de referência naciona-lista próprios de cada país. Há quarenta anos, o discurso europeu básico é de tal for-ma voltado para a superação do quadro nacional, que hoje em dias raros são os queousam se afirmar "nacionalistas", no sentido que essa palavra tinha no período entreas duas grandes guerras. O risco de ser tachado de simpatizante do fascismo é grandedemais. Amanhã, porém, quando a unidade política da Europa impuser renúncias desoberania e o reencontro com a Europa Oriental abrir de novo os velhos livros dos na-cionalismos, é muito provável que haja manifestações de reações negativas mani-pulando mecanismos arcaicos de recusa do outro. Um racismo "antiimigrado", mas

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dessa vez voltado contra a própria Europa, com o tema inevitável da "hierarquia" dospovos como chave. Para evitar que o tema nacionalista, da mesma forma que o do fun-damentalismo religioso, seja monopolizado por idéias extremistas, seria necessário queas forças político-democráticas tradicionais aceitassem fazer o seu aggiornamento so-bre a questão e compreendessem que, hoje, é preciso repensar o status e o conceitode nacionalismo35.

Definitivamente, os riscos de conflitos por ocasião da construção européia sãoextremamente numerosos, e serão tão mais visíveis quanto a televisão e a comunicaçãoos faça repercutirem. Eles têm por nome o nacionalismo, o voltar-se sobre si mesmo, arecusa da Europa, a nostalgia daquilo que era um mosaico de povos e de histórias, umarecusa da homogeneização, um sentimento de fragilidade ligado à abertura do Leste...

Na realidade, o desafio cultural colocado à televisão é saber se ela poderá, igual-mente, ser percebida como um instrumento de identidade e de diferenciação e não ape-nas de comunicação. A necessidade dessa mudança no papel da televisão é capital, poisos três riscos de conflitos ligados à construção européia — o fundamentalismo na-cionalista, o fundamentalismo cultural, o voltar-se sobre si mesmo — estão todos as-sociados a uma espécie de hipertrofia da identidade e têm, portanto, relação direta coma comunicação.

Em outros termos, a Europa não tem escolha entre identidade e Europa, naçãoe Europa ou comunicação e nacionalismo, mas, ao contrário, tem de reforçar simul-taneamente a Europa e a identidade nacional.

Programas europeus em canais de televisão nacionaisA Europa promove, a longo prazo, uma transferência de soberania. Ora, a re-

lação entre comunicação e soberania é complicada, e não é preciso acentuar os temores— que são resultado legítimo do abandono próximo da soberania — com um aumentode comunicação que tentaria apagar ainda mais as diferenças. O segundo objetivo énão confundir comunicação e televisão. É preciso favorecer ao máximo a comunicaçãona Europa, pois ela é plural, mas o problema é diferente com a televisão, que é ape-nas uma parte da comunicação. A comunicação é um conjunto muito mais amplo ecompreende, além da televisão, a edição de livros, o cinema, o rádio, o teatro, a im-prensa escrita, a arte... Ampliar o intercâmbio entre essas formas de comunicação nãocoloca absolutamente o mesmo problema da televisão. Esta é um meio de massa, oúnico cujo papel de laço social, no seio de cada comunidade nacional, complica a, suacapacidade de ação em nível europeu, e por isso a sua escritura, a imagem, a mais uni-versal, fica ao mesmo tempo marcada pelas condições nacionais da sua produção e dasua recepção.

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A primeira providência é não considerar a televisão como uma atividade insti-tucionalizada como a educação, a saúde, o empresariado... Claro, é necessário umapolítica da televisão e existe uma em cada país, mas é preciso evitar, por enquanto, queela pertença à panóplia cada vez mais ampla das ações institucionalizadas. No geral,convém evitar uma abordagem por meio de grandes discursos sintéticos e grandes painéiscomo vemos com tanta freqüência na ONU, na Unesco, no Conselho da Europa ou noParlamento europeu, sobre o "papel natural e fundamental que a televisão deve de-sempenhar na construção européia"...

Em plano europeu, quanto mais forte for a integração econômica e política,tanto mais será necessário valorizar as diferenças culturais, estéticas, estilísticas que dis-tinguem profundamente os países europeus. A distinção: esse é o fenômeno culturalessencial a ser preservado na Europa e, por isso, é preciso manter televisões na Europae não fazer uma ou várias televisões européias. Evitar a racionalização e os efeitos de-vastadores para a cultura e a estética: a alteridade e a heterogeneidade que são geral-mente fatores de riqueza inestimável e que são para a Europa uma condição de sobre-vivência. Perceber tudo o que separa já é possuir um mínimo de linguagem comum.Aprofundar o conhecimento mútuo das diferenças culturais numa perspectiva históri-ca já é um formidável trabalho de reapropriação coletiva. A rememorização daquilo quesepara os povos e as culturas da Europa é a fase prévia, apenas começada, e que serácondição para uma aproximação posterior36.

As proposições seguintes poderão ser consideradas modestas, mas elas traduzemo estado das relações entre a Europa, a comunicação e a televisão, e a sua aparentemodéstia não exclui a necessidade de uma grande determinação, nem, sobretudo, aconsciência de que essa é uma das questões talvez mais delicadas da construção eu-ropéia.

A televisão pode ajudar a organizar os confrontos e a circulação dos diferentespontos de vista, distinguindo três níveis de problemas em relação à questão da culturaeuropéia.

O primeiro nível é o das especificidades próprias de cada país. Essa imagem,essa cor — esse odor, quase se poderia dizer — que faz cada um reconhecer atravésde milhares de detalhes, às vezes inexprimíveis, o que distingue a cultura de cada país.Em termos extremos, é isso que escapa à consciência da todos, mas que faz, porexemplo, que a imagem de uma rua de Paris não seja a mesma de uma rua de Londresou de Berlim, mesmo que muitas vezes sejam iguais os estilos de construção e os car-ros que circulam por elas! Esse perfume indefinível de diferenças que mobiliza a nos-sa curiosidade pelo outro deve, de certa maneira, permanecer intacto. Não se deve to-car nisso!

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O segundo nível é o que podemos definir como caracterizador da cultura eu-ropéia: uma certa visão do indivíduo e do humanismo em suas relações com a sociedade,os direitos humanos, os gostos estéticos... Tudo o que, malgrado as diferenças da históriae da raiva, faz com que os europeus se identifiquem com tanta facilidade entre si, o quepossibilita, também, em matéria de televisão, todas as co-produções que há vinte anosse fazem!

O terceiro nível é o das diferenças não tanto organizadas quanto reconheci-das entre os países, e que precisam ser ao mesmo tempo preservadas e mostradas aosoutros. É constatando como o outro é diferente de si, mesmo pertencendo ao mes-mo mundo, que podemos afinal aceitá-lo e dialogar com ele. Se quisermos amanhã,com todo direito, valorizar o segundo nível, será preciso começar hoje a demonstraro terceiro!

Na prática, uma tal orientação leva a afirmar que é a partir da própria casa quese deve chegar ao outro. É, portanto, no seio das televisões nacionais que os programasde vocação européia devem ser inseridos. Jamais, talvez, a televisão satisfez tão plena-mente a definição de ser uma janela aberta para o mundo como no caso das relaçõesentre a televisão e a Europa. Isso significa duas coisas: é de casa que olhamos para omundo, é de casa que interpretamos o mundo que vem a nós. Em outras palavras, sóexistem televisão e comunicação nacionais.

Conservar um "nacionalismo da informação"37 é, portanto, tarefa essencial pararesistir à sua tirania. Quanto mais imagens existirem sobre tudo, mais os pontos de refe-rência se tornarão indispensáveis. O que é verdadeiro para a informação, também é paraos jogos. Aparentemente, são os mesmos jogos que encontramos em todos os países, mas,olhando mais de perto, constatamos em cada caso uma "adaptação nacional", e é essaadaptação que dá o sabor. Essa dualidade existe também, ao contrário do que se pensa,nos programas e nas ficções. O que gostamos nos seriados norte-americanos é que elessão norte-americanos até na cor das roupas, na forma dos carros, nos modos de rela-cionamento... E os espectadores não são bobos! A mesma coisa vale para um telefilmeitaliano, alemão ou inglês. Sentimos imediatamente que "não estamos em casa". O quedistrai e agrada é esse acesso ao outro a partir da própria casa — onde estamos em segu-rança. A televisão e o turismo são, na verdade, os dois principais fatores de abertura paraa diversidade do mundo, e aproximar os dois não é coisa fortuita, pois o que buscamos,nos dois casos, é aquilo que é "típico". Com o turismo viajamos por um breve tempo pelacasa dos outros antes de voltar à nossa. Com a televisão fazemos a mesma coisa, mas nanossa casa. Em outras palavras, e contrariando o que sempre se diz, a televisão acentuamais a percepção das diferenças do que a percepção das semelhanças, e é nisso que ela émenos um fator de estandardização do que de manutenção dessas diferenças.

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A Bélgica e a Suíça são os dois exemplos mais próximos sobre os quais não re-fletimos o suficiente para compreender o que pode ser uma radical diferença entre gru-pos sociais que tudo separa, ainda que pertencendo ao mesmo país — os valões e osflamengos na Bélgica, os germânicos, os falantes de francês e os romanches na Suíça.Temos uma forte tendência a considerar o multilingüismo desses países, a selvagem in-dependência cultural de cada comunidade, a tranqüila, e ao mesmo tempo obsessiva,reivindicação de identidades, e os conflitos que acompanham um tal funcionamentocotidiano como traços do passado, ou como suaves manifestações de arcaísmo em paí-ses que se entediam. E se, em vez de "representarem" o passado, a Bélgica e a Suíçana verdade forem prefigurações dos futuros problemas europeus38? Ou seja, e se a von-tade radical de afirmação das diferenças continuarem mesmo assim no seio de umaunidade mais ampla?

As convivências mais ou menos violentas das comunidades belgas, sem falardos irlandeses, dos escoceses, dos corsos, dos sardos, dos trentinos, que fazem sorrir osfranceses tão ciosos de terem reduzido — para não dizer esmagado — toda identidadeque não a nacional, não será uma prefiguração de uma boa parte dos problemas quesurgirão amanhã? Pois se olharmos cada país — inclusive o nosso que se vangloria sem-pre da sua unidade — veremos por toda parte que a reivindicação nacionalista existe.

A Suíça e a Bélgica talvez sejam os protótipos dos problemas lingüísticos, cul-turais e de identificação que se colocarão amanhã para a Europa Ocidental e para aEuropa Oriental. As exigências de convivência colaboram para a maior intensificaçãodo desenvolvimento do espírito e das práticas democráticas do que para seu desen-caminhamento. O propósito não é dizer que amanhã acontecerá a mesma coisa em ou-tros países da CEE, mas que a maneira como desqualificamos — ou ignoramos — oque aí se passa é uma prova de que os países europeus não prevêem ainda os proble-mas de identidade e de comunicação que podem ocorrer em seu interior.

Além do caráter nacional da televisão, é preciso, sem dúvida, uma política depesquisa comum, mas os programas Eureka estão aí para isso, tanto para a produçãoquanto para a difusão, para o cabo ou para a televisão de alta definição. A batalha in-dustrial é efetivamente essencial para os desafios futuros e mobilizarão capitais consi-deráveis, mas ela, felizmente, deixa intocado o problema do conteúdo dos programas.Apesar das aparências, não existe contradição entre uma política tecnológica reco-nhecidamente audaciosa e uma política de programas mais modesta. É na defasagementre essas duas lógicas que reside a possibilidade de não "tecnocratizar" o audiovi-sual europeu.

Em compensação, facilitar, graças às técnicas de difusão, a recepção de canaisestrangeiros, não dublados, mas simplesmente legendados, em versão original, já é um

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fator de conhecimento útil cuja vantagem é o respeito à autenticidade recíproca3'. O in-tercâmbio dos programas mais originais ou representativos de cada cultura para criar anecessidade de ir mais longe traduz uma medida cujo alvo é assegurar a estranhezaaceitável do outro. Domesticar uns e outros40 já requer um esforço considerável, poismuitas vezes esquecemos que a televisão é recebida em domicílio e que "receber o ou-tro" em domicílio e não "sair para vê-lo" — como no caso do turismo, por exemplo —pode se tornar uma intrusão insuportável. Em seguida, é preciso favorecer, como já sefaz há vinte anos, as co-produções de dois ou três países — com vantagens, pois as li-mitações são tais que não há mais diferença entre uma superprodução européia e umanorte-americana. Fixar uma quota não de difusão de obras européias, mas de produçõeseuropéias: por volta da metade parece, nessa perspectiva, uma boa solução para esti-mular a produção européia. Pois se acreditarmos nas estimativas ligadas ao crescimen-to do audiovisual europeu, passaremos de 25 mil horas de produções européias dentreas 130 mil horas de difusão de 1988, para 350 mil horas de difusão em 1993 (dadoscitados por Jacques Riagaud in Lê Monde Diplomatique, abril de 1989). E torna-se,evidentemente, indispensável criar uma mercado europeu de co-produção. Não háporque se envergonhar de um "miniprotecionismo" que permitiria favorecer uma cria-ção de origem européia mais forte, uma vez que os norte-americanos e os japoneses sãoextremamente protecionistas! Existe um limite para essa ideologia de livre-intercâmbioque coloca no mesmo plano de todas as outras indústrias as obras do espírito, e os cons-tituintes fundamentais de uma cultura nacional ou européia.

Quem fala de co-produções supõe, evidentemente, uma harmonização de le-gislações em matéria de direitos de autor, no sentido de uma maior proteção desteúltimo. Pois não existe televisão sem autores, e se a Europa pode, concretamente, servirpara alguma coisa, não é tanto para se vangloriar das virtudes da sua identidade ouda sua unidade, mas para favorecer, nos diferentes países, um status comparável e fa-vorável aos autores, sem os quais não existe criação audiovisual.

É também indispensável, nessa perspectiva, que os responsáveis políticos es-cutem os profissionais, principalmente os do cinema europeu, que reclamam uma for-ma de protecionismo contra o dumping norte-americano. Em vez de serem escutados,eles são quase sempre considerados como profissionais tímidos, que temem a concor-rência! E, no entanto, os cineastas sabem há muito mais tempo do que os profissionaisda televisão o que é o mercado, e seria preferível legitimar a sua posição em vez de con-siderá-la sistematicamente como uma atitude defensiva. O cinema europeu ilustra omesmo problema da televisão, ou seja, que não existe cinema europeu, mas uma Somade cinemas nacionais, e que o sucesso do cinema, seja qual for, vem sempre do seu la-do original, típico, representativo de um estilo, de uma cultura. Por que não levar em

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conta essa dupla experiência? Só existe cinema na singularidade e se o mercado con-tinuar sendo o melhor meio de regular o intercâmbio, é preciso, ao menos, não ter a in-genuidade de acreditar que ele é um regulador natural, como se dizia no século XVIII.Essa cegueira constante sobre os efeitos perversos do mercado, sob o pretexto de quenão existe melhor sistema de regulagem, é uma espécie de regressão às ideologias libe-rais da primeira metade do século XIX. Existe, portanto, um número bastante grande demercados, ao menos tão importantes quanto o da comunicação, a começar pelo dos ar-mamentos que, em nível mundial, não deve grande coisa aos princípios fundamentaisdo liberalismo, e que mesmo assim não deixa de ser um mercado! O que significa, por-tanto, esse "purismo" liberal no que respeita o mercado da comunicação, quando não oencontramos em outros mercados, para atividades cujo valor social e cultural é até mes-mo menor do que o da comunicação?

Um dos setores onde a diversidade e a riqueza culturais da Europa poderiam,sem dificuldade, ser utilizadas é o dos documentários. Depois de ter desempenhado umpapel considerável no começo da televisão, o gênero está hoje em crise, pois se defrontacom uma renovação de estilo. Mas o documentário continua sendo um dos melhoresinstrumentos para refletir a originalidade e a especificidade cultural de um país.

Em matéria de informação, tudo está ainda por fazer. A criação de "euronews"é uma boa idéia, mas que deve ser-completada por um processo inverso e complementar,que permita estar mais bem informado sobre as semelhanças e as diferenças políticas,culturais, lingüísticas, religiosas e geográficas que separam os países. Facilitar os pro-gramas de informação europeus produzidos a partir das televisões nacionais parece bemconvidativo, assim como uma política sistemática de intercâmbio de produtos e visitasrecíprocas entre jornalistas de diversos países. Para os jornalistas, a diversidade européiadeve ser comprovada no tempo e no trabalho e não apenas nas reuniões do Parlamentoeuropeu ou da Comissão de Bruxelas! Não é certeza, no estado atual da Europa e dosproblemas colocados pela sua expansão para o Leste, que um canal de televisão de in-formações estritamente europeu seja oportuno: isso pressuporia que está resolvido oque não está, ou seja, uma certa homogeneidade de abordagem da realidade e de seutratamento.

Em compensação, há um canal que poderia ser criado em plano europeu, e quenão é nem de informação, nem de cultura, mas sim de experimentação: para que oscriadores dos diversos países tenham à sua disposição um canal europeu onde pode-riam experimentar novos programas e novos projetos de transmissão. Um "nicho" dessetipo facilitaria a fase posterior de abertura para a Europa.

A questão dos programas de caráter europeu inseridos no seio de canais na-cionais permite relembrar toda a importância da programação, quer dizer, a idéia de

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que a televisão não é uma torneira de imagens, mas uma organização de programasque, enquanto tal, indica uma responsabilidade. Até o presente, a televisão sempre foifeita dentro de um quadro nacional, tanto do ponto de vista da produção quanto da di-fusão e do público, o que não impediu a existência de um mercado internacional deprogramas, pois o caráter internacional de uma parte da produção não é incompatívelcom a dimensão nacional do meio. Amanhã, com as novas tecnologias de comunicação(satélites, cabos) e o desenvolvimento da televisão temática, o espectador corre o riscode receber em domicílio um número grande demais de canais e também de programas,principalmente estrangeiros, que não constituíram por isso um "canal". O desafio, co-mo vimos no capítulo 5, é saber se a televisão continuará sendo um meio organizadosob a forma de programação, como foi até o presente, ou se será essa lógica da ediçãoque a dominará, deixando o espectador como único senhor da sua escolha. O mesmoproblema coloca-se para os programas de caráter europeu. Eles serão inseridos numagrade que continuará nacional, ou se privilegiará a recepção, com o risco de que a re-cepção de imagens de diferentes países não seja em si uma programação?

Seguindo o fio de raciocínio sobre o status teórico da televisão, eu defenderiaa idéia de que uma abertura aos outros se dará com maior facilidade se for pensada noquadro de uma programação nacional. A multiplicação possível de imagens vindas dediversos países não é, mesmo que reunidas num mesmo canal, um canal europeu detelevisão! Para isso, seria preciso uma concepção e uma estratégia que, no momento,não existem em plano europeu. Provavelmente, é o contraste entre canais nacionais,entre canais nacionais com programas europeus neles inseridos e programas realmenteeuropeus que permitirá ao espectador fazer a diferenciação e saber a que assistir.

Por que relembrar a importância da programação inclusive para questionar ovalor dos programas europeus? Porque vimos que a televisão é um dos principais quadrosde apreensão da realidade41. Ela deve oferecer aquela "forma" que faz a programação,mesmo que o espectador, por sua escolha e pelo zapping, quebre essa programação. Oproblema não é romper essa programação, mas saber que ela está lá como "pré-forma"de apreensão da realidade. Existe um segundo interesse em preservar a idéia de umaprogramação para os programas de caráter europeu: é o problema essencial da dife-rença entre televisão pública e televisão privada, mesmo que, hoje, essa diferença sejaquase sempre muito difícil de distinguir... No quadro da concorrência entre público eprivado em plano europeu, um dos trunfos da televisão pública seria manter e melho-rar uma política de programação, ou então oferecer uma maior diversidade do que aoferecida pela televisão privada. É claro que a abertura às televisões estrangeiras não sefará da mesma maneira em relação às televisões públicas ou privadas, por razões evi-dentes de rentabilidade e de custo.

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Por isso, na perspectiva da televisão européia, é necessário conservar um equi-líbrio de concorrência entre a televisão pública e a televisão privada, uma vez que ho-je em dia a maior parte dos projetos de televisão européia tem a tendência de apresen-tar como naturalmente mais "potentes" os modelos de televisão privada. As televisõespúblicas e o seu organismo de coordenação, a UER [União Européia de Rádio e Televisão],estão incontestavelmente mais bem colocados do que as televisões privadas, limitadasa uma lógica diretamente rentável, para conceber essa ampliação progressiva das tele-visões nacionais em direção a um espaço europeu. As televisões públicas saberãoaproveitar essa ocasião que a maior parte delas acabou perdendo em plano nacional? Atelevisão pública saberá mostrar aos públicos europeus que a diferença de natureza en-tre as duas formas de televisão, muitas vezes pouco visível em plano nacional, será, aocontrário, imediatamente determinante na maneira de conceber o espaço audiovisualeuropeu?

Notas ao capítulo 13

1. ARON, Raymond. Lêsguerres en chame. Paris, Gallimard, 1951. Idem. Paixetguerre entre lês nations. Paris, Calmann-Lévy, 1962.

2. TODOROV, T. Nous et lês autres, Ia réflexion française sur Ia diversité hu-maine. Paris, Seuil, 1989. Confrontar sua bibliografia completa, p. 439-48.

3. Sobre a história da noção de Europa, podemos também nos reportar aBRAUDEL, F. Civilisation naturelle, économique et capitalisme XV-XVIIe siècles. Paris,Arthaud, 1979. 3 v. FURET, F. La révolution de TurgotàJ. Ferry, 1780-1880. Paris,Flammarion, 1988. GAUCHET, M. La révolution dês droits de l'homme. Paris, Gallimard,1989 (sobretudo a primeira parte). GELLNER, E. Nations et nationalisme. Paris, Payot,1989. KOSELLEK, R. Lê règne de Ia critique. Paris, Minuit, 1979. NORDMAN & REVEL, J.In: BURGNIÈRE, A. & REVEL, J., eds. Histoire de Ia France. Paris, Seuil, 1989. 2 v. Nora,P., dir. Lês lieux de Ia mémoire. La Nation,1986. 3 v., principalmente o texto de P.Nora, "La nation mémoire", no tomo 3. VOYENNE, B. Histoire de 1'idée européenne.Paris, Payot, 1964. DE ROUGEMONT, D. Vingt-huit siècles d'Europe; Ia conscience eu-ropéenne à travers lês textes d'Hésiode à nos jours. Paris, Payot, 1961.

4. Cf. os artigos do Débat, que apareceram em comemoração ao 10° aniver-sário, n. 60, maio-agosto de 1990, Paris, Gallimard: K. Pomian vai ainda mais direto aoponto intitulando um artigo "Lê retour dês nations" (p. 28-38).

5. CORM, G. L 'Europe et 1'Orient, de Ia balkanisation à Ia libanisation, Histoired'une modernité inacòmplie. Paris, La Découverte, 1989.

6. KAELBLE, H. Vers une société européenne—1880-1980. Paris, Berlin, 1988.7. BRAUDEL, F. VEurope. Paris, Flammarion/AMG, 1977.

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8. Ver o Relatório de A. Decaux sobre o uso da língua francesa e a comuni-cação: "La politique audiovisuelle extérieure de Ia France", Relatório ao Primeiro-Ministro, Ministério dos Assuntos Estrangeiros, Paris, Documentation Française, 1989.

9. E seria preciso também, imediatamente, dar mais nuanças àquilo a quechamamos de "cristianismo", pois as tradições católica e protestante são muito dife-rentes em relação à questão essencial do galicanismo e do ultramontanismo. A in-fluência dominante do protestantismo e do catolicismo nos seio dos diversos Estados-Nação teve repercussões muito nítidas com relação ao Estado, à autoridade, ao sta-tus do clero, em relação à política... E seria preciso ainda detalhar no seio do catoli-cismo as tradições francesa, italiana, espanhola, alemã, muito diversas. E a mesmadiversidade se encontra nas igrejas de "protesto", com a influência do calvinismo,do luteranismo ou anglicanismo criando, em cada caso, comportamentos específi-cos. Em resumo, se o cristianismo em seu conjunto é, sem dúvida, o único fator deunidade, percebemos claramente que as diferenças são igualmente essenciais. Ahistória das religiões é também uma história de divisões. Cf. ELIADE, M. Histoire dêscroyances et dês idées religieuses. Paris, Payot, 1978. t. 2. Nouvelle histoire de1'Eglise., t. 2 (reforma/contra-reforma); t. 4 (século das luzes, revolução, restau-ração); t. 5 (a Igreja no mundo moderno, 1848 até hoje), Paris, Seuil, 1975.CHRISTOPHE, P. 1'Eglise dans l'histoire dês hommes. Paris, Ed. Droguei-Ardant,1983. t.2. PUECH. H. Ch., dir. Histoire dês religions; Encyclopédie La Pléiade. Paris,Gallimard. t. 2 e 3 .

10. Principalmente para os católicos, cf. MAYEUR, J.-M. Dês partis catholiquesà Ia démocratie chrétienne — XIXe etXXe siècles. Paris, A. Colin, 1980. O papeldos protestantes tampouco pode ser negligenciado.

11. POUPARD, P. L'Eglise au défldês cultures, inculturation et évangélisation.Paris, Desclée, 1989. Ver principalmente o capítulo V, "L'Eglise et Ia culture eu-ropéenne", p. 117-45. SOLJENITSYNE, A. L'erreur de l'Occident. Paris, Grasset, 1980.Idem. Message dans "the common roots of the European natíons". Florence, LêMonnier, 1982. LUSTIGER, J.-M. "Quelle Europe?", Revista Esprit, julho-agosto de 1990.DE LUBAC, H. Lê drame de 1'humanisme atée. 7. ed. Paris, Cerf, 1983.

12. A título de exemplo, podemos citar alguns fatores objetivos dos conflitosnacionalistas na Europa Oriental. Na Iugoslávia, oposição entre eslovenos, kossovos esérvios. Na Hungria, a população é mais homogênea, mas perto de 5 milhões de pes-soas vivem no exterior. Na Polônia, perto de um milhão de cidadãos de origem alemãencontram-se sempre nos seus territórios ocidentais. Cerca de 200 mil alemães daPolônia emigraram para a Alemanha Oriental em 1989. Na Romênia, a minoria hún-gara (mais de dois milhões) na Transilvânia, sofreu, sob o poder de Ceaucescu e teste-

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munhou golpes depois de dezembro de 1989. Existe também uma minoria alemã decerca de 400 mil pessoas. Na Bulgária, existe uma minoria turca que foi expulsa quan-do se recusou a ser assimilada. Na URSS a situação é pior: a Moldávia (antiga Bessarábiaromena, anexada pelos soviéticos em 1945) mantém sua oposição; a Ucrânia, malgra-do a russificação intensa, continua resistindo; as Repúblicas Bálticas entraram imedia-tamente num processo de negociação e de enfrentamento; no Transcáucaso, o confli-to entre azeris e armênios é público, e na Geórgia existem golpes também; 'na ÁsiaCentral, há golpes regulares no Cazaquistão e no Uzbequistão.

13. Cf. PHILONENKO, A. L'archipel de Ia pensée européenne. Paris, Grasset,1990.

14. Cf. Morin, E. Penser 1'Europe. Paris, Gallimard, 1987. DOMENACH, J.-M.Lê défl culturel européen. Paris, La Découverte, 1990.

15. Cf. PHILONENKO, A. L'archipel de Ia pensée européenne. Paris, Grasset,1990, principalmente uma frase da introdução (p. 12): "Assim, tive de me decidir: aEuropa é, primordialmente, o continente da metafísica. Qualquer outra definição re-vela-se estreita demais ou ampla demais. Historiador da filosofia, dei-me conta de quepercorrendo de Platão a Rousseau ou a Kant, de Fichte, 'Hegel, Schopenhauer ouFeuerbach a Herman-Cohen ou Bergson, de Maquiavel a Chestov, as grandes etapasdo pensamento filosófico, eu havia também, de alguma forma, palmilhado as alamedasnas quais se decidiu o destino da consciência européia.

16. GERBOD, P. L Éurope cultureüe et religieuse de 1815 à nosjours. Paris,PUF, 1989.

17. Cf. a questão sobre a política cultural da França no número 49, primaverade 1990, na revista Commentaire, Paris, Julliard, 1990.

18. CHAUNU, P. La civilisation de l'Europe dassique. Paris, Arthaud, 1966.CHAUNU, P. La civilisation de l'Europe dês lumières. Paris, Arthaud, 1971.

19. Cf. BADIE, B. Culture et politique. Paris, Econômica, 1983. HERMET, G.Sociologie de Ia construction démocratique, principalmente os capítulos l e 3. Paris,Econômica, 1986.

20. Cf. CARON, R. L 'Etat et Ia culture. Paris, Econômica, 1989. Actes de Ia qua-trième conférence sur 1'économie de Ia culture, 4 tomos: "Os instrumentos da econo-mia postos a prova"; "Cultura futura e vontade pública"; "O confronto com o merca-do"; "Da era da subvenção ao novo liberalismo". Paris, Documentation Française, 1987,1988,1989.

21. LADMIRAL, J. R. & LIPIANSKY, E. M. La communication interculturelle. Paris,A. Colin, 1989. "La communication interculturelle", Lês Cahiers Internationaux dePsychologie Sociale, n. 2/3, Ed. de Boeck-Université, junho-setembro 1989. JACQUES,

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F. L'espace logique de 1'interlocution. Paris, PUF, 1985. ANDERSON, J. A., ed."Intercultural relationships and cultural identity". Communication Yearbook, n. 12,London, Sage, 1989. KIM, Y. Y. & GUDYKUNST, W. B. Theories in intercultural com-munication, International and intercultural communication, Annual v. n. 12, London,Sage, novembro 1988.

22. KORINMAN, M. Quand 1'Allemagne pensait lê monde, grandeur et déca-dence d'une géo-politique. Paris, Fayard, 1989. "La Grande Europe et sés nations",Dossier. Revista Esprit, fevereiro de 1990. "Est: L'année dês électíons", Revue PolitiqueEtrangère, IFRI, n. l, 1990.

23. Cf. D'ENCAUSSE, H. Carrère. L'empire éclaté. Paris, Flammarion, 1978.Idem. Lê grandfrère. Paris, Flammarion, 1983.

24. Cf. CHARON, J. M. "Perspectives de Ia presse européenne", InformeFundesco sobre Ia comunicación social. Madri, 1990.

25. A reunificação alemã também relembrou ao Ocidente que o nacionalismoestava à sua frente com o peso de uma história que se cria de maneira paradoxalmentemais e mais difícil, na medida em que os acontecimentos da Segunda Guerra Mundialse esfumaçam e passam do estágio de testemunho ao de história. A reunificação é umexemplo de problema "quente", em que aparece a margem de manobra dos homenspolíticos em relação a uma lógica da comunicação tênue.

26. LILLET, R. "Pour une Europe du livre", relatório ao Secretário de Estado dasrelações culturais internacionais. Paris, Documentation Française, 1989.

27. Segundo um estudo do BIPE, citado no Lê Monde de 14 de setembro de1989, a maior parte dos países da CEE já transmitem mais de 50% de programas "eu-ropeus". 68%, se aceitarmos os critérios da diretiva "Télévision sans frontières", e 57,9%se aceitarmos os critérios franceses mais restritivos. Em ordem decrescente, a parte dosprogramas europeus na transmissão dos canais europeus, de 1988, coloca à frente aAlemanha Oriental, com cerca de 80%, depois Grécia, Dinamarca, Bélgica, PaísesBaixos, Grã-Bretanha, França, Portugal, Espanha, Irlanda, Itália e Luxemburgo. Mesmoque as cifras não sejam mais do que uma indicação, demonstram que os diversos Estados,além do vocabulário cômodo e delicado de "programas europeus", continuam muitoligados a uma produção nacional audiovisual.

28. Não esquecer as posições tomadas por J. Benda, R. Rolland, D. deRougemont, B. de Jouvenel no período entre as duas guerras.

29. Por isso é que a problemática dos "intelectuais europeus" do períodp en-tre as duas guerras mudou de sentido em cinqüenta anos. Na época, eles não perce-biam, com toda razão, o meio de fazer a Europa senão na "superação" do quadro na-cional. Coisa que hoje é feita, com a construção econômica e política européia, e é pre-

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ciso que se entenda que a diversidade, e portanto o nacionalismo, é uma condição es-trutural da construção da Europa.

30. Europe 2000: Quelle télévision? Rapport dugroupe de prospective sur Iatélévision européenne. Fundação Européia de Cultura — Instituto Europeu deComunicação, junho 1988.

31. Segundo um estudo do Idate (Lê Monde, de 18 de novembro de 1989),"o Japão disputa com os Estados Unidos o domínio do mercado de audiovisual". O quenão deixará de criar causas indiretas de conflitos porque, segundo o Idate, a classifi-cação dos dez maiores gigantes mundiais do audiovisual (mesmo que façam tambémoutras coisas) são: ABC (Estados Unidos), NBC (Estados Unidos), FUJI (Japão), ARD(Alemanha Oriental), CBS (Estados Unidos), NHK (Japão), SONY (Japão), MCA (Grã-Bretanha), Fininest (Itália), Bertelsmann (RFA). A França aparece só em 31?, 32?, 41?e 46? lugares com, respectivamente, Canal Plus, TF l, FR3 e A2.

32. Um dos primeiros operadores foi Berlusconi na URSS, desde 1988, cf.FEIGELSON, Kristian. "Ia costelerado: quando Berlusconi étend son empire", NouvelleEurope, n. l, março 1990, p. 23-5.

33. CHARON, J. M. "Perspectives de Ia presse européenne", Informe Fundescosobre Ia comunicación social Madri, 1990.

34. Cf. artigo de A. Berenhoom a propósito das contradições entre as regula-mentações belgas próprias às radiotelevisões de duas comunidades lingüísticas e suas"ilegalidades" em relação às regulamentações européias, "Ia Belgíque face à Ia régle-mentation communautaire", Médiaspouvoir, n. 16, Paris.

35. Cf. na França o trabalho notável, mas que, claro, como a maior parte dosrelatórios solicitados a peritos ou comissões especializadas não foi suficientemente uti-lizado, da Comissão sobre o código da nacionalidade: "Être Français aujourd'hui et de-main". Relatório enviado ao Primeiro-Ministro por Marceau Long, presidente daComissão da nacionalidade. Paris, Documentation Française, 1988. 2 t.

36. Cf. European Journal ofCommunication, Aspecialissue: "CommunicationReasearch in Europe: the state of the art", v. 5, n. 2/3, London, Sage, junho 1990.

37. Desse ponto de vista, a crescente abundância de imagens é um perigo, poisa maior parte dessas imagens é de origem norte-americana e principalmente ligada àCNN, veiculando uma representação da informação e do mundo inteiramente particu-lar. Para se convencer dessa ideologia de informação norte-americana e de sua ilusãode "aldeia global", basta folhear o n. 25 de 18 de junho de 1990 da revista Newsweek.A cobertura até sobre a CNN, 'Global village': CNN hás speeded up History by wiringthe world". A "cover story" faz um balanço ditirâmbico dos dez .anos de existência daCNN, vendo nela o "triunfo mundial da concepção ocidental de informação..." Cf.

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FISCHER, G. American communication in a global society. Ablex, Pub. C., 1987. SLACK,J. D. & FIFEJES, ed. The ideology ofthe Information age. Ablex, Pub. C., 1987.

38. Os problemas são, em grande parte, idênticos no Canadá, país novo, cria-do em 1867, onde, depois da Comissão real de pesquisa sobre "o estado do bilingüis-mo e do biculturalismo no Canadá", de 1965, as relações entre as duas comunidadespassaram por etapas bastante movimentadas. Basta lembrar que foram os quebequeanosque, de 1960 a 1980, conseguiram, com R. Levèque, a independência, cujo referen-dum de 1980, sob a fórmula de "soberania-associação", fracassou, uma vez que a fór-mula foi rejeitada por 60% dos quebequeanos. O problema não está resolvido. Pareceque hoje é a comunidade de língua inglesa que se tornou, por sua vez, muito ofensivacontra a "bela província", recusando o bilingüismo oficialmente reconhecido. Osexemplos de força de identificação, às vezes de violência, poderiam ser multiplicadosem todos os países desenvolvidos. Sem falar de outros...

39. A iniciativa da FR3, durante o verão de 1990, foi bem nesse sentido, poisa partir de 25 de junho "a FR3 abre os seus olhos sobre a Europa todas as manhãs, às8 horas, com Continentales. Durante uma hora, a FR3 apresenta, em versão original(legendada) os jornais televisivos matinais em inglês (SKY NEWS), em alemão (RTLPLUS), em espanhol (TVE) e em italiano (RAI UNO). A Europa em V. O., é Continentales.Todas as manhãs na FR3", Lê Monde, 3 de julho de 1990.

40. Na mesma ordem de idéias, a FR3 produz sete programas multilingüísti-cos fronteiriços, dos quais o mais antigo foi criado em 1985. Eles têm a vantagem departir de uma lógica regional, apoiando-se sobre um quadro econômico e cultural maisvasto do que a televisão local (exemplo Alizé, Pyrénnées, Pirineos, EuroSud).

41. BROWNE, Nick. "On the política! economy of the supertext". NewcambreHorace, Television, the criticai view. New York, Oxford University Press, 1987.

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Conclusão

No fundo, este livro é uma defesa e uma ilustração da televisão, sobretudo nasua forma geralista, que muitos consideram obsoleta e ultrapassada, quando ela podeser a mais adequada ao statusââ televisão no espaço ampliado da comunicação. Por is-so, este livro é também uma homenagem a esse instrumento tão unanimemente desa-creditado ao longo de cinqüenta anos, e que, no entanto, foi um dos mais democráti-cos, tanto para a informação quanto para os programas. Rejeitada e criticada pelos in-telectuais e políticos, ela foi, entretanto, companheira -fiel, atenta e reconfortante nasinquietações econômicas, sociais e culturais de nossas sociedades depois da guerra.Como se não pudéssemos demonstrar-lhe o nosso reconhecimento por ter sido um fa-tor de unidade ao mesmo tempo que uma janela aberta para o mundo, e censurá-la pornão ter feito mais e melhor — coisa que, incontestavelmente, poderia ter feito, mais deuma vez. De qualquer forma, a televisão é inseparável das nossas expectativas e de-cepções, de nossas esperanças e frustrações. Talvez seja o preço do seu papel de ins-trumento de divertimento e laço social.

Sim, a televisão perturba, excita, engana, fascina e cansa, mas ela é, hoje, parteda nossa antropologia, e a dificuldade que temos em pensar sobre ela ilustra bem a ex-traordinária ambivalência da imagem cotidiana numa sociedade ocidental que ao mes-mo tempo a deseja, promove-a, mas não sabe o que fazer dela e dela desconfia. Existe,em caráter permanente, desejo proibido e frustração na televisão, que parece estar ládesde a noite dos tempos e cuja morte ou transformação, em menos de quarenta anos,já anunciamos quatro vezes. Mas a sua força é exatamente esse encontro entre a orga-nização estrita de uma oferta e a heterogeneidade de uma demanda. Nesse consumoindividual de uma produção de massa, o espectador tem a sensação de participar livre-mente, da sua casa, na ordem social. É nisso que, além da sua função de comunicação,está provavelmente a dimensão de laço social que lhe confere a sua maior dignidade.

A televisão não é a totalidade nem da informação, nem do lazer, nem da cul-tura. Felizmente! A frustração inegável que ela gera suscita a necessidade de "sair" datelevisão e fazer outras coisas. Portanto, não se deve tudo solicitar da televisão, pois ela

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não é capaz de tratar de tudo. Até que ponto podemos nos arriscar antes de queimaras asas na sua chama? Ao contrário do que por longo tempo se acreditou, a superiori-dade da televisão geralista é justamente fazer o espectador compreender, rapidamente,que ela não pode "tudo". Ele deve também sair para ver o mundo, mesmo que novasformas propostas de televisão tenham a ambição de melhorar ainda mais a comuni-cação, de torná-la mais possante, mais individualizada...

- Ao contrário dos discursos críticos dominantes, não acredito que a televisãode grande público seja um instrumento do passado, inclino-me mesmo a pensar queela é a um só tempo a primeira forma de organização da televisão e, talvez, a formatelevisual por excelência! Por isso, defendo também a idéia de que a televisão públi-ca não é, necessariamente, "superada", em todo caso, não mais superada do que atelevisão geralista.

Já expliquei à saciedade as razões teóricas e sociológicas por que penso que a tele-visão temática não traz nenhum remédio aos males da televisão geralista e não é maisnecessário voltar ao assunto aqui. O desafio é real: ou admitimos que nada há de retró-grado na idéia de televisão geralista e chegaremos suavemente a uma convivência entretelevisões geralista e temática; ou, ao contrário, sucumbiremos à miragem do modernismoe da rentabilidade e chegaremos a um modelo de organização atomizado, para não dizer"anonimizado", de televisão, cujos riscos culturais e sociais poderão ser nitidamente maisreais do que aqueles contra os quais imaginamos ter de nos precaver hoje. O que querque se diga, a fragmentação não é, de maneira alguma, uma forma superior de televisão.

A questão central é a da televisão como laço social — isso é que é o mais difí-cil de admitir para nós, que vivemos numa sociedade onde a elevação do nível de vidae de conhecimento implica inexoravelmente um processo de individualização e seg-mentação. O problema todo é saber que medida manter entre uma lógica particularistae uma lógica geralista. Desde sempre, as sociedades buscam esse equilíbrio, hoje maisdifícil de atingir, visto que as duas lógicas, a da "massificação" e a da "individualiza-ção", são ao mesmo tempo poderosas, autônomas e contraditórias.

A dificuldade é situar o nível de comunicação da televisão no espaço públicoampliado, e é isso que desejei analisar aqui, mostrando que o papel de laço social é im-portante porque não existe contra-senso nas ameaças que pesam sobre a sociedade in-dividualista de massa: essa sociedade é mais ameaçada pela atomização e pelo fra-cionamento do que pela estandardização, e existem hoje poucas atividades que sejammais "transversais" do que a televisão geralista.

A televisão está, na verdade, mais'próxima de um papel de integração cultu-ral do que de um papel político, mesmo que insistamos neste último, atribuindo aopúblico uma imensa credulidade. Claro, o público assiste muito à televisão, deseja as

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- CONCLUSÃO -

imagens, e aindatmais imagens, mas não está por isso "sob a sua influência", desprovi-do de todo espírito crítico. Ele coloca, assim, a televisão naquele "espaço médio" queé exatamente o dela, a meia distância entre o espetáculo e o mundo.

A televisão é, assim, provavelmente, uma das atividades mais populares destemeio século, sem jamais ter recebido a legitimidade que podia esperar.

Depois de ter sido dominada por uma lógica política, a televisão é hoje domi-nada por uma lógica econômica. Poderá ela escapar dessa lógica, tão alienante quantoa primeira, para integrar a dimensão sociocultural que melhor corresponde à sua iden-tidade própria?

Essa poderia ser a conclusão deste livro: a existência de um laço implícito en-tre uma organização da televisão e uma teoria da sociedade. De fato, quanto programase públicos houver para assistir às imagens de gêneros e status diferentes, mais apareceo paradigma sociológico e cultural da televisão. Deslocar o eixo de análise da políticapara a economia e para a sociologia é coisa que amplia a perspectiva, sem por isso fa-zer crer que o "sentido" da televisão provém unicamente do uso que dela fazem ospúblicos. É nessa interação entre essas três lógicas — política, econômica e sociológica— que residem, provavelmente, o sentido e o interesse da televisão em suas relaçõescom uma teoria da sociedade.

Esse é o desafio da comunicação: contribuir diretamente para as representaçõescoletivas e superar o quadro estrito de um setor econômico. Por isso é impossível quea palavra comunicação seja reduzida ao seu primeiro sentido, o de difusão, e que o se-gundo, a idéia de intercâmbio e, afinal de ética, seja sistematicamente subestimado, es-magado. A abertura proporcionada pelas mídias é tal que mesmo em nome dos valoresdemocráticos que a sustentam, não é impossível que o público ou os profissionais sevoltem um dia contra os poderes públicos ou os proprietários, exigindo que respeitemum pouco mais os valores em nome dos quais pretendem fazer comunicação. Os povoscolonizados souberam muito bem voltar contra os poderes coloniais os valores quelhes" foram ensinados! Não podemos excluir a possibilidade do mesmo fenômeno coma comunicação. É possível que, à força de "vender" a comunicação e comercializar assuas atividades, principalmente audiovisuais, a dimensão normativa que elas compor-tam se volte contra os seus fornecedores!

O que quero dizer é que a comunicação, da mesma forma que a liberdade, aigualdade e a fraternidade, não é uma realidade impunemente manipulável, embora,há cinqüenta anos, a lógica comercial parece tê-la subvertido inteiramente. O sentidoda palavra permanece, suas aspirações também, e o trabalho subterrâneo dos valores— ou, pelo menos, o apelo ao respeito a esses valores — não desaparece, mesmo emum "paraíso comunicacional" povoado de televisões do mundo inteiro, todas interna-

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- ELOGIO DO GRANDE PUBLICO -

cionais, européias e personalizadas. O público não é estúpido, ainda que o seu ritmo dereação não seja, evidentemente, o mesmo das iniciativas financeiras e econômicas.Existem palavras cujo sentido não podemos vilipendiar e comercializar até ú ponto deesvaziá-lo de todo valor normativo, sem com isso suscitar uma recusa. A palavra co-municação, assim como televisão, é desse tipo, mesmo que pareça menos nobre do queoutras.

Quanto mais a comunicação se torna um setor econômico rentável mundial-mente, mais a dimensão normativa que lhe é inerente continua e continuará a se afir-mar segundo um calendário e modalidades que não terão, provavelmente, sido previs-tos pelos peritos financeiros, empresários, tecnocratas e políticos. E é em nome dessesmesmos princípios, dessa mesma normatividade que o público poderá se voltar contraos poderes públicos, e também contra os profissionais da televisão e da comunicação,e lhes perguntar por que atravessaram o limite invisível.

Por isso é que este livro, definitivamente, é uma crítica da ideologia da co-municação, no sentido de que esta ignora que existem limites, regras, e além de tu-do, o bom senso. Porque a incomunicação é inseparável da comunicação. E nãoexiste coisa pior do que acreditar na possibilidade de uma instrumentalização da co-municação. É como se duas pessoas pudessem se comunicar e entender-se total-mente.

A dificuldade em relação à televisão, como, de fato, de toda comunicação, éadmitir que ela não pertence, afinal, a ninguém. E está muito bem assim, pois a de-cepção disso resultante remete a essa "arte média" que ela põe em ação, e também àsua impossibilidade de satisfazer ao que dela demandamos. Admitir que a televisão nãopertence a ninguém ainda não é uma prova unânime, porque por trás do técnicos e dospolíticos, encontram-se hoje os grupos de comunicação, e até jornalistas e, às vezes, atémesmo o público, que pensam ser dela detentores. Em matéria de televisão, existe umaforma de responsabilidade coletiva, mas ninguém é real e individualmente proprietárioou depositário dela. É nisso que ela está muito mais para o lado de laço social do quepara o lado da comunicação. É também por isso que ela não poder fazer grande coisacontra a escala do tempo, mesmo que contribua diretamente para vencer a escala doespaço. Ela é o grande relógio da nossa vida cotidiana, que marca o ritmo imutável dosdias que passam.

Mas a televisão não se resume a essa definição estrutural, quase ontológica, en-tre o outro, o tempo e o espaço. Ela é também uma das formas mais preciosas de leitu-ra da evolução das nossas sociedades. Ela simboliza o grande movimento que, há umséculo, promoveu o indivíduo, a liberdade e a comunicação, mostrando os limites dessasmudanças.

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- CONCLUSÃO -

O individualismo triunfa, mas vamos percebendo progressivamente a im-portância da regra e do limite, do qual ele se liberta. O mesmo fenômeno se observa na"massa" e no "número", que foram a tirania da qual o indivíduo deveria se libertar.Quanto à informação, à circulação e à comunicação, pelas quais tantos combates setravaram, elas também deixam aparecer aquilo que podem conter de tirania. Isso nãosignifica que a massa, o limite e a censura sejam os valores de amanhã. Ao contrário!Através do triunfo da comunicação, e particularmente da televisão, que é seu principalinstrumento, será talvez necessário reexaminar o que, naturalmente, deveria ser "su-perado".

A grande vantagem da televisão, mesmo sem jamais escapar dos dois perigos,o particularismo e o geralismo que a ameaçam, é, definitivamente, renovar uma re-flexão sobre as relações entre indivíduo e comunidade, comunicação e fronteiras, liber-dade e regras. Em outros termos, introduzindo os paradigmas cuja superação a suaprópria existência parece indicar. Não é nada mal para uma técnica que tem apenasmeio século de existência. Nada mal também para uma técnica que agia unicamentesobre a idéia de liberação e supressão de limites.

Mas reintroduzir o que está aparentemente excluído, vencido e superado, nãoserá justamente a virtude da comunicação?

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III

Essa tese, capaz de causar arrepioem amplos setores da intelectuali-dade, é brilhantemente desenvolvidamediante uma análise detalhada dosmodelos privados e públicos de tele-visão e da comparação entre seus de-senvolvimentos na Europa, EstadosUnidos e América Latina, em especialno Brasil. No decorrer de sua argu-mentação, o Autor compõe uma ver-

de vida da televisão e aponta para os

futuro.Elogio do grande público é um

emico,que, ao considerar que ninguém in-terpreta da mesma maneira as men-sagens que recebe, recupera a digni-

:a a ne-cessidade de repensar a televisão e asociedade em que vivemos.

Situado entre os grandes inte-lectuais franceses da atualidade,Dominique Wolton é diretor doLaboratório de Comunicação e Po-

cherches Scientifiques), de Paris, e darevista Hermes. Publicou, entre outrasobras, War Game e La dernièreutopie - Naissance de 1'Europe

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Estudioso das relações entre televisWolton apresenta, neste Elogio do g

trapõem radicalmente às idéias defendidas pela maioria dos analistasdesse meio de comunicação.

Reconhecendo no telespectador um agente ativo e crítico, o Autorsitua a televisão, sobretudo aquela voltada para o grande público, comoum instrumento de democratização e modernização, contribuindo, deci-sivamente, para reforçar os laços sociais. Trata-se, portanto, de um antí-doto contra o isolamento a que os indivíduos são submetidos no mundocontemporâneo. Em capítulo especial, dedicado à televisão brasileira,apresenta outra argumentação polêmica: a Rede Globo representa aconfirmação de suas teses', pois os programas e novelas que veicula,

contribuído para valorizar ^ identidade nacional.Em sua homenagem à tevê de massa, Wolton também confronta a

televisão a cabo, argumentando que, por sua natureza temática e seg-mentada, ela aprisiona cada grupo de cidadãos num gueto específi-co, acentuando as desigualdades culturais.

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