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1 INTERPRETAÇÃO CONFORME” E CONSTITUTIONAL AVOIDANCE”: APROXIMAÇÕES INICIAIS Gustavo Osna 1 1. Introdução Ao longo das últimas décadas, mais do que reformas legislativas ou avanços procedimentais, o exercício jurisdicional brasileiro se viu obrigado a enfrentar um de seus maiores e mais prejudiciais dogmas: a noção de que o enunciado legislativo contém, em si, um sentido unívoco dispensando um real trabalho de interpretação. Nessa guinada axiológica, redescobre-se o papel a ser assumido pelo Poder Judiciário, reequilibrando a geometria de sua relação com as demais esferas estatais. Em suma, surge um novo cenário, marcado por figuras também renovadas. De modo reflexo a essa mudança de horizontes, porém, também os desafios postos na mesa do jurista acabam sendo dilatados. Afinal, se antes competiria ao julgador (diante de um caso concreto) apenas desvelar o sentido da lei, hoje percebe-se que essa atividade sequer é teoricamente possível. A constatação, embora não seja inédita, desestabiliza parcela de nossas crenças ortodoxas e impõe o enfrentamento de novos problemas. Afinal, havendo mais de uma alternativa interpretativa, como estabelecer em juízo aquela mais adequada? Quais critérios poderiam informar essa atuação? As indagações, por si só, justificariam cautela. A elas, porém, é necessário acrescentar outro dado, capaz de trazer ainda maior complexidade à atividade do julgador: a necessidade de que, diante da atual centralidade do texto constitucional, atue em um constante trabalho de zelo e de vigilância pela sua preservação 2 . No Brasil, essa 1 Doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduado em Direito pela mesma instituição. Membro do Núcleo de Direito Processual Civil Comparado (UFPR). Advogado. Professor de Cursos de Pós-Graduação e Especialização. [email protected] 2 Nas palavras de Marinoni, “dizer que a lei tem a sua substância moldada pela Constituição implica em admitir que o juiz não é mais um funcionário público que objetiva solucionar os casos conflitivos mediante a afirmação do texto da lei, mas sim um agente do poder que, através da adequada interpretação da lei e do controle da sua constitucionalidade, tem o dever de definir os litígios fazendo valer os

\"Interpretação conforme\" e constitutional avoidance: aproximações iniciais

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1

“INTERPRETAÇÃO CONFORME” E

“CONSTITUTIONAL AVOIDANCE”: APROXIMAÇÕES INICIAIS

Gustavo Osna 1

1. Introdução

Ao longo das últimas décadas, mais do que reformas legislativas ou avanços

procedimentais, o exercício jurisdicional brasileiro se viu obrigado a enfrentar um de

seus maiores e mais prejudiciais dogmas: a noção de que o enunciado legislativo

contém, em si, um sentido unívoco – dispensando um real trabalho de interpretação.

Nessa guinada axiológica, redescobre-se o papel a ser assumido pelo Poder Judiciário,

reequilibrando a geometria de sua relação com as demais esferas estatais. Em suma,

surge um novo cenário, marcado por figuras também renovadas.

De modo reflexo a essa mudança de horizontes, porém, também os desafios

postos na mesa do jurista acabam sendo dilatados. Afinal, se antes competiria ao

julgador (diante de um caso concreto) apenas desvelar o sentido da lei, hoje percebe-se

que essa atividade sequer é teoricamente possível. A constatação, embora não seja

inédita, desestabiliza parcela de nossas crenças ortodoxas e impõe o enfrentamento de

novos problemas. Afinal, havendo mais de uma alternativa interpretativa, como

estabelecer em juízo aquela mais adequada? Quais critérios poderiam informar essa

atuação?

As indagações, por si só, justificariam cautela. A elas, porém, é necessário

acrescentar outro dado, capaz de trazer ainda maior complexidade à atividade do

julgador: a necessidade de que, diante da atual centralidade do texto constitucional, atue

em um constante trabalho de zelo e de vigilância pela sua preservação 2. No Brasil, essa

1 Doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Mestre em

Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduado em Direito pela mesma

instituição. Membro do Núcleo de Direito Processual Civil Comparado (UFPR). Advogado. Professor de

Cursos de Pós-Graduação e Especialização. [email protected] 2 Nas palavras de Marinoni, “dizer que a lei tem a sua substância moldada pela Constituição implica em

admitir que o juiz não é mais um funcionário público que objetiva solucionar os casos conflitivos

mediante a afirmação do texto da lei, mas sim um agente do poder que, através da adequada interpretação

da lei e do controle da sua constitucionalidade, tem o dever de definir os litígios fazendo valer os

2

questão vai além, estabelecendo-se a possibilidade de que o controle de

constitucionalidade ocorra em sede difusa e atinja tanto o texto da lei quanto suas

possibilidades de aplicação 3.

Há assim um contexto dinâmico, oferecendo campo propício para uma releitura

de discursos e de argumentos (não raramente com tonalidades e entonações

messiânicas). E o presente ensaio pretende enfrentar exatamente uma dessas “novas”

bases teóricas: a chamada “interpretação conforme à Constituição”.

De maneira mais comum, esse tópico é apresentado a partir da lógica da Corte

Constitucional Alemã. Aqui, porém, a estratégia adotada é outra: considerando que o

problema está essencialmente relacionado ao controle constitucional difuso, o paralelo é

buscado no modelo norte-americano (afeito a esse tipo de filtragem). É ali, no cânone

do constitutional avoidance, que identificamos um espelho oportuno para a

“interpretação conforme” – evidenciando o ceticismo e a coerência que devem pautar

sua aplicação.

2. Interpretação Conforme e Constitutional Avoidance

2.1. Interpretação e Interpretação Inconstitucional: as Raízes do Problema

Dessa forma, o tema a ser enfrentado encontra origens facilmente identificáveis.

Em um vértice do triângulo, coloca-se o reconhecimento da pluralidade interpretativa

que permeia a compreensão de qualquer enunciado (ainda que, na acepção hartiana,

nem sempre a dimensão da penumbra seja a mesma 4). Em outro, constata-se que, diante

princípios constitucionais de justiça e de direitos fundamentais”. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria

Geral do Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p.97-98. 3 “Ausente do regime da Constituição imperial de 1824, o controle de constitucionalidade foi introduzido

no Brasil com a República, tendo recebido previsão expressa na Constituição de 1891 (arts.59 e 60). Da

dicção dos dispositivos relevantes extraía-se a competência das justiças da União e dos Estados para

pronunciarem-se acerca da invalidade das leis em face da Constituição. O modelo adotado foi o

americano, sendo a fiscalização exercida de modo incidental e difuso. Com alterações de pequena monta,

a fórmula permaneceu substancialmente a mesma ao longo de toda a República, chegando à Constituição

de 1988”. BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São

Paulo: Editora Saraiva, 2004. p.57-58. 4 “All rules involve recognizing or classifying particular cases as instances of general terms, and in the

case of everything which we are prepared to call a rule it is possible to distinguish clear central cases,

where it certainly applies and others where there are reasons for both asserting and denying that it

applies. Nothing can eliminate this duality of a core of certainty and a penumbra of doubt when we are

3

dessa diversidade de respostas, é plausível que nem todas se adequem à Constituição 5.

Enfim, no terceiro, compreende-se que, em tais hipóteses, é cabível que o Judiciário

realize a filtragem constitucional da própria interpretação – preservando o texto, mas

orientando sua aplicação futura 6.

O problema pode ser apresentado e elucidado com linhas mais firmes pelo

recurso à via exemplificativa, partindo de uma conjectura plenamente possível no atual

Direito Brasileiro: suponhamos que um de nossos Tribunais Superiores é confrontado

com a legalidade de aplicação do §2º, Art. 33, da Lei nº 11.343/2006, aos participantes

de encontro público favorável à descriminalização de uma droga ilícita. Como pano de

fundo argumentativo, sustenta-se que o evento estaria albergado pelos direitos de livre

manifestação e expressão, inequivocamente assegurados pela Constituição Federal 7.

Na situação exemplificativa, as premissas já trazidas mostram que diferentes

vias poderiam ser adotadas para a resolução do problema. Primeiramente, seria possível

engaged in bringing particular situations under general rules”. HART, Herbert L. A. The Concept of

Law.Oxford: Oxford University Press, 1988. p.119. 5 Com efeito, esse dado faz com que também se pressuponha, como elementos anteriores à própria noção

de “controle de constitucionalidade”, a existência de uma Constituição rígida e em posição de

supremacia. Demonstrando esse ponto, José Afonso da Silva estabelece que “o princípio da supremacia

requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa

conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de

acordo com a constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação de normas constitucionais, quanto a

Constituição assim a determina, também constitui conduta inconstitucional”. SILVA, José Afonso da.

Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1996. p.50 6 Observando os argumentos favoráveis ao uso da técnica, a partir do pensamento alemão, Gilmar Ferreira

Mendes aponta que “um importante argumento que confere validade à interpretação conforme à

Constituição é o princípio da unidade da ordem jurídica (...) que considera a Constituição como contexto

superior (...) das demais normas. As leis e as normas secundárias devem ser interpretadas,

obrigatoriamente, em consonância com a Constituição (...) a presunção de constitucionalidade da lei ou o

chamado pensamento “favor legis” constitui argumento adicional, que resulta diretamente do controle de

constitucionalidade (...) esse princípio da conservação da norma deixa-se fundamentar não apenas do

ponto de vista da segurança jurídica e da presunção de um funcionamento regular da atividade legislativa,

mas também mediante o reconhecimento da supremacia do legislador na concretização e realização da

Constituição”. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrado de normas no

Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.289. 7 Ressalta-se que, mediante manejo da técnica da “interpretação conforme” essa exata questão já foi

decidida no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Nessa ocasião (ADin 4.274/DF), estabeleceu-se que “a

utilização do § 3º do art. 33 da Lei 11.343/2006 como fundamento para a proibição judicial de eventos

públicos de defesa da legalização ou da descriminalização do uso de entorpecentes ofende o direito

fundamental de reunião, expressamente outorgado pelo inciso XVI do art. 5º da Carta Magna. Regular

exercício das liberdades constitucionais de manifestação de pensamento e expressão, em sentido lato,

além do direito de acesso à informação (incisos IV, IX e XIV do art. 5º da Constituição Republicana,

respectivamente)”, razão pela qual deliberou-se por “dar ao § 2º do art. 33 da Lei 11.343/2006

“interpretação conforme à Constituição” e dele excluir qualquer significado que enseje a proibição de

manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do uso de drogas ou de

qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico, ou então viciado, das suas

faculdades psicofísicas”.

4

que, mesmo reconhecendo que o tipo penal comporta diferentes interpretações,

considerasse-se que nenhuma delas passaria ou seria obstada pela filtragem

constitucional. Nessas ocasiões, o controle difuso operaria sob sua forma mais ortodoxa,

negando ou afirmando a constitucionalidade do texto infraconstitucional. Contudo, o

cenário seria mais conflituoso quando o magistrado concluísse que, do mesmo texto,

seria possível extrair uma norma constitucional e outra inconstitucional. Nessa

circunstância, a questão passaria para a interpretação, oferecendo espaço para técnicas e

consequências diversas.

De fato, seria razoável que o julgador afirmasse que o dispositivo

infraconstitucional pode ser interpretado tanto inserindo o direito de manifestação em

seu conteúdo quanto o excluindo do âmbito de incidência do tipo. Na primeira hipótese,

ao afrontar a garantia insculpida no art.5º, inc. XVI, da Constituição Federal, a norma

extraída não passaria pelo teste de constitucionalidade. Já na segunda o filtro de

adequação seria possível. E, de acordo com entendimento doutrinário predominante,

seria em tais ocasiões que a “interpretação conforme” entraria em cena. Sob sua

orientação, casos com esses deslindes deveriam ser resolvidos mediante a aplicação da

leitura constitucionalmente aceitável, excluindo a compreensão alternativa e

preservando a vigência do texto legislativo 8.

Ainda que breves, essas notas iniciais corroboram o entendimento de Vírgilio

Afonso da Silva relacionado à matéria, percebendo que, ao falar-se em “intepretação

conforme”, tem-se na realidade um duplo filtro interpretativo. É que, ainda que a

ferramenta possua como objeto central a interpretação do texto infraconstitucional e de

sua adequação à Constituição, essa atividade somente se torna possível quando o

magistrado também interpreta a própria Constituição 9. A questão é de coerência lógica:

8 Descrevendo o tema,. Canotilho indica que “o princípio da interpretação das leis em conformidade com

a constituição é fundamentalmente um princípio de controle (tem como função assegurar a

constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários

elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados

da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-

se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direitos Constitucional. 5 ed. Coimbra: Almedina, 1997. p.1210. 9 “Quando se fala em interpretação conforme à Constituição , não se está falando de interpretação

constitucional, pois não é a constituição que deve ser interpretada em conformidade com ela mesma, mas

as leis infraconstitucionais (...) Mas é óbvio que essa constatação não retira o objeto de estudo do campo

do direito constitucional e isso por dois motivos principais: (a) embora a interpretação conforme à

Constituição , seja uma interpretação da lei, o parâmetro para tanto é a constituição; (b) ao definir a

constituição como parâmetro para se saber como a lei deve ser interpretada, não há como escapar de um

mínimo de interpretação da própria constituição”. SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação conforme à

5

se determinado crítico literário oferece uma interpretação específica a O Processo de

Kafka, somente é possível aferir a fidelidade e a adequação dessa análise caso se

observe também a obra de Kafka.

A “interpretação conforme”, assim, passa por duas análises simultâneas, mas

situadas em campos diversos: (i) um exame da adequação entre o texto

infraconstitucional e a Constituição; e (ii) uma interpretação da própria Constituição,

responsável por informar e permitir o passo citado no item anterior. No exemplo acima,

somente se tornaria possível “interpretar conforme” o tipo punitivo caso também se

interpretasse o próprio direito constitucional de manifestação. É preciso estabelecer

coerentemente o filtro para permitir a filtragem, em um processo no qual o

empoderamento do Judiciário se torna evidente.

2.2. Contenção e Harmonia Intra-Poderes: a Questão no Direito Estadunidense

Como sublinhado, esse realinhamento das funções estatais (liberando o

Judiciário de amarras tipicamente liberais e legalistas) ainda desafia boa parcela de

nosso pensamento jurídico. Contudo, a questão nos parece possuir desdobramentos

consideravelmente diversos no Direito Norte-Americano – fazendo com que, por lá, os

cânones interpretativos se encontrem em estágio metodológico possivelmente mais

avançado. Entendendo-se há mais tempo que é necessário interpretar, não surpreende

que se tenha melhor amadurecido quando e como fazê-lo 10

.

Ainda que a questão não possa ser aqui melhor esmiuçada, compreende-se que

sua base é de índole histórica e cultural. Como percebido por Fiovaranti, entre as formas

continental e estadunidense de diálogo entre centralização do poder e pluralismo há um

Constituição : Entre a Trivialidade e a Centralização Constitucional. In. Revista Direito GV. v.2. São

Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2006. p.191-192. Também esmiuçando o tema, afirma Ingo Sarlet que

“como se trata de uma interpretação das leis em conformidade com a constituição, há quem sustente que o

dever de interpretação conforme à constituição não consiste propriamente em um princípio de

interpretação constitucional (das normas constitucionais), mas, sim, em uma interpretação

constitucionalmente orientada (guiada) de normas infraconstitucionais. Ainda assim, embora

essencialmente se trate da atribuição de um sentido (às leis) que seja conforme à constituição, tal

operação exige do intérprete que – até mesmo para estabelecer um juízo de conformidade –

simultaneamente atribua sentido às normas constitucionais, de modo que, em sentido amplo, se trata de

um princípio de interpretação constitucional”. SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luiz Guilherme.

MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2014.

p.230-231. 10

Identificando o problema e a necessidade de seu desenvolvimento, VERMEULE, Adrian. Interpretative

Choice. In. NYU Law Review. v.75. New York: New York University Press, 2000. p. 74 e ss.

6

abismo 11

. E essa dissemelhança de premissas, cristalizada na desconfiança diante do

Judiciário, também conduziu naturalmente a diferentes desenvolvimentos no arranjo

institucional 12

.

De fato, enquanto no âmbito dos países de civil law ocorreu uma constante e

infrutífera tentativa de romper com o passado e estabelecer um marco zero para a

formação de uma nova sociedade, mais justa e igualitária, no common law essa

preocupação não existiu. Pelo contrário, o passado e as suas virtudes serviriam de

suporte imprescindível para a reconstrução de um modelo social sujeito a parâmetros

mais adequados. A lógica moderna se impôs a partir de recortes diversos. E somente em

um dos lados conduziu a uma crença fanática no mito da Lei e na sua capacidade de

expressar representatividade e igualdade 13

.

É assim que, no arranjo de Montesquieu que ainda serve amplamente à formação

de nosso ideário jurídico, confere-se ao Poder Judiciário um papel limitado e com

margens de criatividade restritas 14

. Esse pressuposto também é claramente verificado

no conceito clássico de jurisdição trazido por Chiovenda, descrevendo-a como a função

substitutiva do Estado voltada à declaração da vontade concreta da lei 15

. Em atenção

ao controle jurisdicional e à valorização da atividade parlamentar, defende-se uma

procura incessante pelo sentido (unívoco) do enunciado legislativo. No arranjo entre as

instituições, seria essa a pedra-de-toque da proteção da vontade popular (marcando uma

clara diferença entre a esfera democraticamente legitimada e aquela despida desse

atributo).

Entretanto, sequer a perfeição teórica dessa engrenagem poderia resistir ao

combate filosófico ao seu principal alicerce. É que, em um fluxo contínuo, chegou-se à

11

Ver, passim, FIORAVANTI, Maurizio. Constitucion, de la antiguidad a nuestros dias. Trad. Manuel

Martinez Neira. São Paulo: Max Limonad, 2001. 12

Demonstrando o acoplamento entre o modelo estatal de arranjo institucional e as balizas

procedimentais instauradas em seu território, é sempre válida a menção a DAMASKA, Mirjan. The Faces

of Justice and State Authority. New Haven: Yale University Press, 1986. 13

Sobre o tema, GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. Trad. Arno Dal Ri Junior.

Florianópolis: 2004. 14

Assim, MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do Espírito das Leis. Trad. Roberto Leal Ferreira. São

Paulo: Martin Claret. 2010. p. 168-169. 15

“La jurisdicción consiste en la actuación de la ley mediante la sustitución de la actividad de órganos

públicos a la actividad ajena, ya sea afirmando la existencia de una voluntad de ley, ya poniéndola

posteriormente en práctica”. CHIOVENDA, Giuseppe. Principios de Derecho Procesal. Trad. José

Casais Y Santalo. Madrid: Editorial Réus, 1922. p.349.

7

já citada percepção de que o mesmo texto pode conduzir a diferentes interpretações 16

.

Ainda que o ambiente jurídico por vezes resista a essa conclusão, sua força parece

inabalável - impondo a superação de leituras estáticas antes predominantes e

justificando a adoção de novos caminhos.

Por seu lado, na realidade típica do common law estadunidense essas novas

trilhas já se encontram melhor exploradas e abertas. E isso porque, ali, os próprios

dogmas contra os quais hoje nos opomos jamais atingiram igual proporção. A partir de

uma postura de maior confiança no Judiciário e de maior ceticismo quanto ao potencial

do direito positivo, suscitou-se anteriormente que um mero trabalho de declaração do

sentido da lei (ainda que eventualmente possível) nem sempre seria desejável 17

. A

harmonia entre as funções estatais seria uma meta a ser perseguida, mas haveria

necessidade de explorar outros caminhos para atingir esse objetivo.

Essa contínua relação entre os Poderes encontraria, ainda, o seu momento mais

desafiador no fato de o sistema norte-americano (assim como o brasileiro) respaldar a

possibilidade de controle difuso de constitucionalidade 18

. Em outros termos, na análise

de qualquer caso concreto o julgador poderia negar aplicação ao texto

democraticamente emanado do Legislativo. Essa conduta levaria o vínculo

interinstitucional a um ponto de patologia extrema 19

. Ao reconhecer a

16

Sobre o tema, ver STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração

hermenêutica do direito. 7. ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. Também,

MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2010. Ainda, LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas

da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006. 17

É essa a posição de Kenneth Culp Davis, salientando que “rules without discretion cannot fully take

into account the need for tailoring results to unique facts and circumstances of particular cases (…) every

system of administration of justice has always had a large measure of discretionary power”. DAVIS,

Kenneth Culp. Discretionary justice: a preliminary inquiry. Baton Rouge: Lousiana State University

Press, 1969. p.17. Ainda, diante da similitude entre o pensamento estadunidense e o seu modelo

“coordenado”, DAMASKA, Mirjan. Ob. cit. p.27. 18

Nas palavras de Clémerson Merlin Clève (e ainda que sua conclusão final seja hoje problematizada em

sede doutrinária), “o modelo americano, que foi depois adotado por diversos países (Brasil, Argentina,

Canadá, entre outros), é o do controle exercido pelo Judiciário. Dispõe o Poder Judiciário de competência

para declarar nulos e írritos todos os atos e leis contrários à Constituição. A competência do Judiciário,

nesse campo, é difusa, porque exercitada, no curso de uma demanda, por qualquer juiz ou tribunal.

Conquanto todo órgão jurisdicional possa exercer a fiscalização constitucional, a Suprema Corte, órgão

de cúpula do Judiciário americano, em virtude do princípio do stare decisis, ou seja, da eficácia

vinculante de suas decisões, desempenha um papel determinante no campo constitucional, na medida em

que pronuncia a última e definitiva palavra a respeito das questões constitucionais”. CLÉVE, Clémerson

Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev. e atual. São Paulo:

Ed. RT, 2000. p.63. 19

Como exposto pela própria Suprema Corte em Skilling v. United States (2010), “we fully appreciate

that judging the constitutionality of an Act of Congress is “the gravest and most delicate duty that this

8

inconstitucionalidade do texto, o Judiciário não apenas deixaria de aplicar o produto da

atividade legislativa, mas também o reputaria contrário aos princípios fundantes a que

ambos os Poderes se encontram subordinados.

A questão tenderia a colocar em cheque a harmonia entre as funções. Porém, se

a cisão entre texto e interpretação é em alguma medida recente na prática judiciária

brasileira (vendo-se como novidade a possibilidade de interpretar o enunciado

“conforme à Constituição” para preservar sua vigência), o mesmo não pode ser dito no

contexto norte-americano. É nesse ponto que se situa a ferramenta do constitutional

avoidance, merecendo olhares de atenção.

2.3. A Construção do Constitutional Avoidance

Dessa forma, a compreensão do problema passa pela conjugação do próprio

cenário argumentativo e político existente em seu suporte. É que, ao mesmo em que se

confiou ao Poder Judiciário a tarefa de tutelar a Constituição por meio da filtragem do

texto infraconstitucional, o exercício dessa atividade tenderia a gerar colisões

institucionais e questionamentos de índole democrática. Foi assim que, por se aceitar

que uma regra poderia gerar mais de uma interpretação, procurou-se instituir uma via

de controle menos agressiva: sempre que de um mesmo texto fosse admissível extrair

uma leitura contrária e outra harmônica à Constituição, dever-se-ia adotar a última,

excluindo a hipótese alternativa e endossando a vigência do enunciado. A esse método,

atribuiu-se a denominação de constitutional avoidance.

Conforme demonstrado por Kelley, as origens estruturantes dessa ideia podem

ser identificadas em dois diferentes votos proferidos, ao longo das primeiras décadas do

Século XIX, pelo então Justice Marshall 20

. O primeiro deles, em 1804, em Murray v.

Court is called on to perform.” “The Congress is a coequal branch of government whose Members take

the same oath we do to uphold the Constitution of the United States”. Esclarecendo a questão, Hessick

aponta que “a central tenet of constitutional law is that the judicial power to declare a statute

unconstitutional is an exceptional one, which should be used only when “unavoidable.”1 It is therefore

hardly surprising that federal courts have placed limits on their power of judicial review”. HESSICK, F.

Andrew. Rethinking the Presumption of Constitutionality. In. Notre Dame Law Review. v.85. Notre

Dame: University of Notre Dame, 2010. p.1148. 20

“The Court should presume that Congress, as the lawmaking body, has legislated constitutionally; and

as an unrepresentative body should avoid inserting itself in a manner that rejects the product of the

democratic process. Part of the judicial function, as Chief Justice Marshall saw it, was to construe the

legislature's work to avoid even raising doubts as to its constitutionality. But Chief Justice Marshall said,

"[i]f [constitutional questions] become indispensably necessary to the case, the court must meet and

decide them." Thus, the necessity principle and the avoidance canon were connected from the outset. The

9

Charming Betsy. O segundo, em 1833, em Ex parte Randolph. Da conjugação de

ambos, seria obtida uma medida claramente voltada à contenção do Poder Judiciário,

procurando evitar que sua relação com o Legislativo sofresse desgastes de maneira

contínua e desnecessária.

Para compreender esse par de julgados, é importante perceber que no primeiro

deles (Charming Betsy) a questão levada à apreciação da Suprema Corte não incluía

como objeto de debate a adequação de qualquer enunciado normativo à Constituição.

Pelo contrário, a filtragem ali estabelecida possuía parâmetros diversos, colocando o

texto normativo em teste com a “lei das nações”. Porém, o caso nos serve como baliza

por reconhecer expressamente: (i) a pluralidade interpretativa ensejada por um mesmo

enunciado, propiciando uma leitura harmônica e outra desarmônica à “lei das nações”;

e (ii) o fato de, em tais hipóteses, dever-se adotar a interpretação compatível com o

paradigma eleito. Nos termos da decisão, “um ato legislativo não deve jamais ser

compreendido de modo a violar a “lei das nações”, caso qualquer entendimento

diverso seja possível” 21

.

Assim, esse caminho metodológico (capaz de salvar a validade do texto ao

corrigi-lo interpretativamente), representaria um primeiro pilar para o modelo de

constitutional avoidance antes descrito. Ao lado dele, porém, seria preciso estabelecer

outro ponto de apoio, importando para o controle de constitucionalidade o mesmo

raciocínio adotado para a “lei das nações”. E essa abertura encontrou seu suporte no

segundo case antes referido (Ex parte Randolph). É que ali, a um só tempo, estabeleceu-

se que “se as decisões constitucionais se tornam necessárias ao caso, a Corte deve

enfrentá-las e decidi-las”, mas que “o devido respeito à atividade legislativa requer que

a inconstitucionalidade de suas leis não seja desnecessária e desenfreadamente

atacada” 22

.

Como consequência, competiria ao Judiciário se esquivar tanto quanto possível

do reconhecimento de inconstitucionalidade do texto legal, fazendo com que o teste

Court's subsequent practice validated Chief Justice Marshall's admonition in Charming Betsy and in Ex

parte Randolph that courts were, if possible, to interpret statutes to avoid deciding constitutional

questions”. KELLEY, Willian K. Avoiding Constitutional Questions as a Three-Branch Problem. In.

Cornell Law Review. v.86. Ithaca: Cornell Law School, 2000. p..837-838. 21

“An act of Congress ought never to be construed to violate the law of nations if any other possible

construction remains”. 22

“If [constitutional questions] become indispensably necessary to the case, the court must meet and

decide them (…) a just respect for the legislature requires [it] not be unnecessarily and wantonly

assailed”.

10

interpretativo proposto em Charming Betsy servisse como uma luva. Chega-se, assim, à

primeira formulação do constitutional avoidance; àquela clássica, na acepção de

Vermeule 23

.

3. A Modificação do Cânone: o Modern Avoidance e os seus Efeitos

3.1. O Classical Avoidance e o seu Método de Aplicação

Dessa maneira a aplicação do constitutional avoidance passaria por algumas

etapas. Em linhas gerais, o percurso abarcaria os seguintes elementos: (i)

primeiramente, ao deliberar a respeito de determinado caso, o Tribunal deveria ser

confrontado com o questionamento quanto à constitucionalidade de uma regra

infraconstitucional; (ii) nessa hipótese, instituindo como premissa a segmentação entre

texto e norma, caberia ao julgador investigar a possibilidade de que mais de uma leitura

fosse extraída do enunciado; (iii) constatada essa abertura hermenêutica, caberia

averiguar não mais a constitucionalidade do texto, e sim realizar a filtragem

constitucional das próprias interpretações; (iv) por fim, caso verificasse que o preceito

poderia conduzir a uma leitura inconstitucional e a outra constitucional, deveria adotar

aquela em conformidade à Constituição.

Colocado passo a passo, esse trajeto demonstra que o step zero a ser adotado

para a aplicação do cânone exigia fôlego e esforços ampliados 24

. Realmente, não

bastaria ao julgador filtrar o texto a partir da Constituição. Seu trabalho iria além,

estabelecendo as distintas hipóteses interpretativas extraídas do enunciado e as

controlando a partir do texto constitucional também já interpretado. Haveria, assim,

uma montanha a ser escalada. Porém, a recompensa seria valiosa: instituir uma via

23

Ainda que atribuindo ao cânone raízes anteriores, a denominação é trazida em VERMEULE, Adrian.

Saving Constructions. In. Georgetown Law Journal. v.85. Washington DC: Georgetown University,

1997. 24

A expressão é utilizada no âmbito do constitutional avoidance por Anthony Vitarelli, alertando que

“the avoidance canon first requires judges to engage in a preliminary factual inquiry to determine

whether a litigant’s claim poses a risk of requiring constitutional adjudication at all”, mas que “despite

being such a deeply engrained, relatively uncontroversial judicial procedure, this Comment asserts that

constitutional avoidance contains a nebulous, previously unexamined threshold inquiry”. VITARELLI,

Anthony. Constitutional Avoidance Step Zero. In. The Yale Law Journal. v.119. New Haven: Yale

University Press, p. 837-838, 2010.

11

teoricamente capaz de proteger a Constituição sem gerar desgastes evitáveis na relação

institucional.

Uma vez mais, vale o recurso ao exemplo: suponhamos que determinado Estado

norte-americano instituísse legislação que vedasse a ostentação, em salas de aula, de

símbolos religiosos. Posteriormente, imaginemos que determinado colégio questionasse

judicialmente a proibição, indicando que sua aplicação colidiria com a garantia de

liberdade religiosa prevista na Primeira Emenda. Como aparar as pontas relacionadas à

temática, preservando a liberdade legislativa sem perder de vista a imperatividade da

Constituição?

A resposta a essa indagação passaria pelo campo interpretativo. É que, diante do

caso, a atividade judiciária não necessariamente se limitaria a aferir a

constitucionalidade do texto, podendo também enfocar as diferentes leituras por ele

viabilizadas. Concluindo-se que o dispositivo poderia ser interpretado de modo a gerar

tanto sua inconstitucionalidade quanto sua constitucionalidade, seria necessário adotar

o segundo encaminhamento.

Como consequência, a aplicação dessa técnica representaria uma tentativa

aparente de autocontenção da jurisdição. Ao procurar salvar a regra, interpretando-a de

modo a fugir da sua inconstitucionalidade, o Judiciário acabaria prestando deferência ao

Legislativo e evitando romper o equilíbrio dessa relação.

Do mesmo modo, o tema também flertaria com a própria estrutura tradicional da

chamada “presunção de constitucionalidade”, utilizando-a como ponto de amparo. É

que, no momento em que se coloca em debate a pluralidade interpretativa emanada de

determinado enunciado, gerando conclusões compatíveis e incompatíveis com a

Constituição, o argumento da “presunção” serviria como importante suporte

argumentativo em favor dos primeiros. Esse aspecto não passou despercebido pela

doutrina estadunidense, percebendo a íntima relação entre os tópicos. Em ambos, os

mesmos problemas: a restrição jurisdicional, e a adequada alocação das esferas de poder

25.

25

“It should be clear by now that the presumption of constitutionality and the avoidance canon are

closely aligned. Both lead the Court to construe statutes to preserve their constitutionality, where

possible. The Court has defended both on similar grounds—respect for Congress’s own duty of

constitutional fidelity and mindfulness of the countermajoritarian character of judicial review, in addition

to Congress’s superior institutional ability to make the factual determinations upon which an enactment’s

constitutionality might depend”. METZGER, Gillian E. MORRISON, Trevor W. The Presumption of

12

3.2. A Derrocada do Cânone Clássico

Entretanto, o arcabouço teórico em que essa feição clássica do constitutional

avoidance encontraria respaldo tornou-se gradativamente questionável. Pouco a pouco,

a complexidade que permearia a aplicação do cânone passou a encontrar pontos cegos

em ao menos dois aspectos declarados, capazes de problematizar sua efetividade e sua

capacidade de atuação: (i) o fato de, no percurso inerente à fuga constitucional, os

Tribunais deixarem de lado sua atuação institucional de resolução de casos; e (ii) o fato

de esse mesmo curso interpretativo apresentar complexidade acentuada, correndo o

risco de se tornar contraproducente e demasiadamente custoso.

Em relação ao primeiro dos fatores, a barreira essencial para a utilização da

técnica de controle de constitucionalidade acabou sendo identificada, paradoxalmente,

na própria Constituição Norte-Americana. É que, ao estabelecer em seu art.3º o arranjo

institucional e a vocação funcional do Poder Judiciário, o texto constitucional teria

deixado claro que sua atuação deveria estar adstrita à resolução de casos 26

. Surgiria

assim a comum crítica à possibilidade de que emanassem do Judiciário advisory

opinions – o que, quando manejada a classic avoidance, seria quase inevitável 27

.

A questão possui contornos desafiadores, mostrando que a crítica efetivamente

possuía amparo consistente. Para identificar essa situação, recordemos do exemplo

hipotético mencionado no item anterior em que o uso da constitutional avoidance

encontraria campo fértil: determinado Estado norte-americano institui lei que proíbe a

ostentação de símbolos religiosos em salas de aula, gerando questionamento judicial por

Constitutionality and the Individual Mandate. In. Fordham Law Review. v.81. New York: Fordham

University, 2013. p.1732 26

“Article II, section 2 of the Constitution confines federal court jurisdiction to “cases” and

“controversies”. In addition to its constitutional meaning, this requirement has also prompted a non-

constitutional doctrine of judicial self-restraint, which is a significant, self-imposed limitation on judicial

review. To rule on either federal constitutional or statutory issue, an Article III court must have a “case

or controversy””. NOWAK, John E. ROTUNDA, Ronald D. Principles of Constitutional Law. 3 ed.

Saint Paul: Thomson & West, 2007. p.33-34. 27

“Consider: A court is faced with a statute that could be read to mean either X or Y. Although both

readings are plausible, conventional tools of statutory interpretation (other than avoidance) suggest that

X is the best reading. But X also raises serious constitutional concerns. The court proceeds to examine

those constitutional concerns and concludes that X is indeed unconstitutional. At that point, classical

avoidance directs the court to read the statute to mean Y instead, thus arguably transforming its

pronouncement of X’s unconstitutionality into an advisory opinion”. MORRISON, Trevor W.

Constitutional Avoidance in the Executive Branch. In. Columbia Law Review. v.106. New York:

Columbia University, 2006. p. 2006. Ainda, NAGLE, John Copeland. Delaware & Hudson Revisited. In.

Notre Dame Law Review. v.72. Notre Dame: University of Notre Dame, 1997. p. 1495 e ss.

13

parte de um colégio que – procurando não se sujeitar à vedação – indica sua

incompatibilidade com a garantia de liberdade religiosa prevista na Primeira Emenda.

Nessa situação, tem-se claramente um caso concreto a ensejar a atuação

jurisdicional (a necessidade de que a escola requerente se sujeite à proibição legal).

Porém, no momento em que o constitutional avoidance entrasse em cena, seus limites

tenderiam a ser extrapolados, convertendo o Judiciário em órgão consultivo e

confrontando a leitura mais comum do já citado art.3º da Constituição.

A questão é bem percebida ao notarmos que a técnica pressuporia que o

Tribunal: (i) verificasse as diferentes possibilidades interpretativas relacionadas ao

texto; (ii) interpretasse a liberdade religiosa garantida pela Constituição, estabelecendo-

a como filtro; e (iii) a partir disso, testasse a constitucionalidade de cada uma das

leituras trazidas pelo enunciado, privilegiando aquela que se mostrasse compatível.

Ocorre que, nesse contexto, a jurisdição necessariamente se pronunciaria a respeito da

constitucionalidade de leituras que não seriam aplicadas ao caso. E, com isso,

fatalmente extrapolaria os limites de sua análise e da decisão correlata.

Se diante de uma hipótese a norma pudesse ser interpretada das maneiras “A” ou

“B”, a escolha pela primeira opção tornaria a segunda irrelevante para o objeto do

litígio. Assim, pronunciar-se sobre sua constitucionalidade passaria a se tornar um

esforço desconexo com a resolução do caso concreto. Decidindo-se pela aplicação do

preceito, as demais digressões representariam espécie de atuação judicial precipuamente

consultiva, razão pela qual sua preservação seria facilmente atacável.

Além disso, a complexidade inerente à aplicação do cânone levaria também ao

segundo problema acima citado (esse, de ordem mais material e pragmática). É que, a

partir do exame multifásico intrínseco á aplicação do constitutional avoidance, sua

materialização seria extremamente custosa em termos de recursos humanos e materiais.

A exaustiva atividade interpretativa na qual o julgador teria que mergulhar para extrair

as diferentes interpretações e testar a constitucionalidade de cada uma cobraria seu

preço. E, no momento em que o número de enunciados normativos a serem controlados

se expandiu, esse fardo se tornou demasiadamente amplo para ser suportado pela

estrutura jurisdicional 28

.

28

“Although treatises of the times mentioned the canon, it showed up only occasionally in the work of the

Supreme Court. The reasons for this are easy to speculate upon-for example, by virtue of simple

chronology, there were not many federal statutes with which to deal. Moreover, under our predominantly

14

Esse juízo de proporcionalidade e de razoabilidade, atento às exigências reais,

pode soar estranho a um jurista brasileiro mais utópico e incapaz de perceber a teoria

para além do papel. Porém, não é exagero afirmar que ele serve de fio condutor para

toda a estruturação jurisdicional norte-americana. É assim com questões como as ações

coletivas 29

, as hipóteses de execução de tutelas específicas 30

e a própria compreensão

do devido processo legal 31

. Em uma frase, procura-se não descolar, em qualquer

momento, o discurso sobre o Judiciário e a possibilidade de sua concretização. E nesse

jogo de custos e benefícios, não surpreende que a necessidade de estabelecer a filtragem

constitucional de uma interpretação que sequer seria aplicada tenha sido colocada na

linha de tiro.

Ao lado desse par de aspectos aparentes que conduziram à revisão do cânone,

entretanto, parece-nos haver outro silente e de índole política que também deve ser

acrescido ao debate. É que, se o método de contenção estaria precipuamente voltado a

minimizar os atritos na relação entre Judiciário e Legislativo (evitando desprestigiar a

atividade do último), o duplo filtro interpretativo que lhe é próprio poderia trazer efeitos

diametralmente opostos. Cabendo ao julgador interpretar o enunciado conforme a sua

própria interpretação da Constituição, o conflito passaria a encontrar duas possíveis

esferas de verificação.

Adotando novamente o exemplo acima, seria possível presumir que, ao instituir

a regra proibitiva, o Legislativo conhecia a garantia constitucional e não procurou

violá-la. Pelo contrário, ao elaborar o enunciado teria se preocupado em compatibilizá-

common law system and the regime of Swift v. Tyson, the business of the Supreme Court was to develop

the general law that would govern in federal courts. Thus, cases involving statutes were relatively rare,

and cases involving constitutional challenges to federal statutes were rarer still. In addition, and perhaps

most significantly, the interpretive standards of the time treated the mere existence of constitutional

doubts as insufficient reason to invalidate a statute (…) As our legal and social institutions developed,

however, the Supreme Court became less willing to stand by and permit legislatures to impinge upon

then-accepted notions of private rights to liberty of contract and property. The constitutional history is

familiar-the Lochner era followed, and the Court struck down many of these sorts of statutes under

notions of substantive due process now considered illegitimate. Thus, although the political culture

increasingly came to view statutes as a legitimate and normal means of setting policy, specific measures

were always constitutionally vulnerable. In this context, principles of judicial restraint became important

to judges who opposed the aggressiveness of Lochner-style judicial review, and who instead took

seriously traditional notions of legislative supremacy. At the same time, the Court transformed the nature

of the avoidance canon”. KELLEY, Willian K, Ob. cit. p.838-839 29

Ver, passim, OSNA. Gustavo. Direitos Individuais Homogêneos: pressupostos, fundamentos e

aplicação no processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2014. 30

Assim, DOBBS, Dan B. Law of remedies: damages - equity - restitution. St. Paul: West Group, 1993.

p.24-29. 31

OSNA, Gustavo. Ob. cit. p.142 e ss. Ainda, FISS, Owen. The allure of individualism. In. Iowa Law

Review. n.78. Iowa City: Iowa Law Review, 1993.

15

lo com a liberdade religiosa, mas conforme a sua própria interpretação da Constituição.

E essa não obrigatoriamente coincidiria com aquela atribuída ao texto pelo Judiciário,

fazendo assim brotar uma nova aresta institucional 32

.

Supondo que ambas as esferas estatais estariam formalmente submetidas ao

texto constitucional, não seria inimaginável que as duas procurassem tutelá-lo e

respeitá-lo. Cada uma, porém, a partir da sua própria leitura da Constituição. E, diante

dessa disparidade hermenêutica, o uso do constitutional avoidance poderia gerar

embaraços – atribuindo-se à regra uma interpretação diversa daquela buscada pelo

Legislativo para conciliá-la a uma interpretação igualmente divergente do texto

constitucional. Assim, a par das motivações anteriores, sequer em seu objetivo precípuo

o cânone estaria imune a críticas razoáveis.

3.3. ‘Modern Constitutional Avoidance’: a Guinada Reconformadora

Todavia, embora diante da insuficiência e dos pontos cegos da conformação

tradicional da técnica, a resposta encontrada pelos Tribunais não foi exclusivamente

deixá-la de lado. Afinal, os problemas que haviam ensejado sua construção se

mantinham vivos. Ainda que a feição clássica do constitutional avoidance fosse

questionável, o mesmo não ocorreria com seus pressupostos essenciais (especialmente,

com a importância da contenção do Judiciário). E foi assim que, ao invés de aposentar o

cânone, a jurisprudência acabou por reinventá-lo - levando àquilo que hoje é concebido

como sua feição moderna 33

.

Essa guinada possui como seu marco elementar a manifestação da Suprema

Corte em USA v. Dellaware & Hudson (1909), pouco mais de um século atrás 34

. Ali, ao

32

MORRISON, Trevor W. Ob. cit. p.2008. 33

“Although it is common to speak of a single avoidance canon, in fact there are two different versions

of the rule. The first, which Adrian Vermeule helpfully terms “classical avoidance,” provides that, “as

between two possible interpretations of a statute, by one of which it would be unconstitutional and by the

other valid, [a court’s] plain duty is to adopt that which will save the Act.” The second, which Vermeule

calls “modern avoidance,” is the one quoted in the above paragraph and most frequently invoked by

courts today. The key difference between the two is that classical avoidance applies only when the

otherwise preferred reading of a statute is in fact unconstitutional, while modern avoidance applies

whenever there is serious doubt about the constitutionality of that reading”. METZGER, Gillian E.

MORRISON, Trevor W. Ob. cit.. p.1717. 34

“The pedigree of the avoidance canon has not prevented some degree of development in the Court’s

construction of the canon. The Supreme Court Justice Holmes articulated the classical version of the

canon when he stated that “as between two possible interpretations of a statute, by one of which it would

be unconstitutional and by the other valid, our plain duty is to adopt that which will save the Act.” The

16

deparar-se com uma hipótese que conferiria espaço típico para o manejo do

constitutional avoidance, o Tribunal acabou por aplicá-lo de maneira sutilmente diversa.

Com efeito, analisando o imbróglio estabeleceu-se que “quando uma lei for passível a

duas interpretações, uma capaz de levantar sérias dúvidas constitucionais e outra em

que essa problematização possa ser evitada” o dever do Judiciário é “adotar a última”

35. Dessa forma, estariam abertas as portas para que o cânone assumisse uma nova

roupagem, mais abstencionista e preocupada com as ponderações críticas que antes lhe

haviam sido endereçadas.

Colocadas lado a lado, seria possível que em uma primeira análise as duas

dimensões assumidas pelo método (a clássica e a moderna) tivessem suas dissonâncias

quase despercebidas. Contudo, a observação do percurso inerente a cada uma revela que

há uma diferença essencial já nos momentos iniciais do processo decisório: se na

primeira versão competiria ao magistrado identificar uma interpretação

inconstitucional e evitá-la, na segunda, para deixar determinada via interpretativa de

lado, bastaria a conceber como constitucionalmente problemática 36

. Desse modo, o

raciocínio seria interrompido em momento mais prematuro, ampliando a esquiva do

Judiciário e evitando desgastar a própria Constituição.

O redimensionamento trazido por essa nova postura fica ainda mais claro ao

observar-se o posicionamento da Suprema Corte na análise de USA v.Jin Fuey Moy

(1916). Ali, em manifestação lavrada por Holmes (então Justice da casa), fixou-se que

“uma regra deve ser interpretada, tanto quanto possível, evitando não apenas a

conclusão de que ela é inconstitucional, mas também as próprias dúvidas que

modern version of the avoidance canon owes its origin to United States ex rel. Attorney General v.

Delaware & Hudson Co”. FOSKO, T.J., Avoiding the Unavoidable: The Canon of Constitutional

Avoidance as Applied to the Patient Protection and Affordable Care Act. In. UARL Law Review. v.35.

Little Rock: University of Arkansas, 2013. p.592-593. 35

“Where a statute is susceptible of two constructions, by one of which grave and doubtful constitutional

questions arise and by the other of which such questions are avoided, our duty is to adopt the later”. 36

“The critical difference between classical and modern avoidance, of course, is in the level of

constitutional concern needed to trigger the rule. Under classical avoidance, the court must “reach the

issue whether the doubtful version of the statute is constitutional [and conclude that it is not] before

adopting the construction that saves the statute from constitutional invalidity.” Under modern avoidance,

in contrast, the court must merely conclude that “an otherwise acceptable construction of a statute would

raise serious constitutional problems.” In short, modern avoidance departs from classical avoidance by

allowing serious but potentially unavailing constitutional objections to dictate statutory meaning”.

MORRISON, Trevor W. Ob. cit. p. 2004. Também, NAGLE, John Copeland. Ob. cit. p.1495.

17

conduziriam a esse juízo” 37

. A releitura representa assim um importante e inequívoco

passo atrás.

Uma vez mais utilizamos o recurso à via exemplificativa para elucidar a questão:

suponhamos que determinada lei infraconstitucional estabelece limitações aos anúncios

publicitários que podem ser veiculados por meio televisivo, gerando questionamentos

concretos quanto à aplicabilidade do dispositivo diante da liberdade de imprensa

assegurada pela Primeira Emenda contida no Bill of Rights.

Nessa situação, o classic constitutional avoidance traria um caminho

metodológico no qual as diferentes formas interpretativas a serem extraídas do

enunciado teriam que ser constitucionalmente testadas, chegando-se a conclusões cabais

quanto à adequação de cada uma. Já sob a feição moderna da técnica o caminho seria

mais limitado: havendo uma interpretação constitucional e outra cuja

constitucionalidade pudesse gerar dúvidas, a primeira deveria ser adotada sem que

fossem necessárias quaisquer investigações relacionadas à efetiva adequação da

segunda.

Com essas considerações, a fuga que dá nome ao cânone assume um conteúdo

mais amplo. Não se trata mais de evitar a aplicação de uma interpretação

inconstitucional, mas sim de obstar que se atinja esse próprio raciocínio de

inconstitucionalidade. O problema deixa de chegar à presunção da regra como

constitucional para colocar-se em um ponto antecedente; na procura por sequer por em

cheque sua constitucionalidade.

Investigando essas novas feições da técnica, constata-se ainda que as críticas que

lhe eram endereçadas foram em boa conta sanadas. Primeiramente, pelo fato de, ao

obstruir o raciocínio judicial pela metade, serem reduzidos em boa conta também os

custos humanos e materiais que permeariam sua aplicação. E, ainda, pelo fato de se

evitar francamente a emissão de advisory opinions pelos Tribunais.

Além disso, reduzindo a margem de atuação do Poder Judiciário, acredita-se que

a questão também viabilizaria que o objetivo inicial de todo esse arranjo (i.e., permitir

sua adequada autocontenção) fosse mais bem alcançado. Na medida em que se evitasse

problematizar a constitucionalidade da atividade legislativa, a escalada de harmonia

entre as esferas tenderia a subir ao menos alguns degraus. Somado a isso, veja-se que o

37

“A statute must be construed, if fairly possible, so as to avoid not only the conclusion that it is

unconstitutional but also grave doubts upon that score”.

18

próprio conteúdo do método foi temporalmente aprimorado nesse sentido, passando a

exprimir em sua apresentação mais atual que “quando uma interpretação da lei fosse

originar problemas constitucionais sérios, o Tribunal deveria aplicá-la se esquivando

da análise desses problemas, exceto quando em clara contrariedade à intenção do

Congresso” 38

. Coloca-se assim a intenção legislativa como mais um filtro restritivo,

orientado pela harmonia entre as funções de Estado.

4. “Interpretação Conforme” no Direito Brasileiro

4.1. “Interpretação Conforme à Constituição”: a Porosidade Conceitual

Com essas considerações, direcionamos novamente os nossos olhares para a

prática brasileira e para a aplicação nela conferida à chamada “interpretação conforme”.

E aqui, já de início, surgem problemas de natureza lógica que perpassam toda a análise

do instituto e dos seus desdobramentos. Afinal, na atual ordem do dia da nossa

jurisprudência, o que é “interpretação conforme”? Quais são as características desse

instituto? A que a técnica se presta?

As indagações podem parecer simples. Contudo, em um giro superficial é

possível constatar que se costuma falar em “interpretação conforme” para fazer menção

a, ao menos, duas realidades que não se confundem. De um lado, utiliza-se o conceito

para designar uma mera técnica de interpretação do texto infraconstitucional. De outro,

lança-se mão da nomenclatura para fazer menção a uma verdadeira técnica de controle

de constitucionalidade. A dicotomia é percebida por Barroso, e os seus efeitos na

compreensão do instituto são intensos 39

.

38

“Another rule of statutory construction, however, is pertinent here: where an otherwise acceptable

construction of a statute would raise serious constitutional problems, the Court will construe the statute

to avoid such problems unless such construction is plainly contrary to the intent of Congress”. 39

“A interpretação conforme à Constituição , categoria desenvolvida amplamente pela doutrina e pela

jurisprudência alemãs, compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do

princípio. Destina-se ela à preservação da validade de determinadas normas, suspeitas de

inconstitucionalidade, assim como à atribuição de sentido às normas infraconstitucionais, de forma que

melhor realizem os mandamentos constitucionais. Como se depreende da assertiva precedente, o princípio

abriga, simultaneamente, uma técnica de interpretação e um mecanismo de controle de

constitucionalidade”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São

Paulo: Saraiva, 2009. p. 301.

19

A partir da primeira vertente, a perspectiva e os recortes da “interpretação

conforme” seriam bastante simples. Seu objetivo seria instituir que, ao ler o texto

normativo infraconstitucional, o intérprete deveria fazê-lo adotando como baliza e pano

de fundo a Constituição 40

. Em uma expressão quase gramatical de sua nomenclatura,

conferir a um texto “interpretação conforme à Constituição” seria não mais do que

(redundantemente) interpretar esse texto em conformidade à Constituição. A questão

estaria limitada a esse plano hermenêutico, servindo ao julgador como uma guia em sua

análise casuística do alcance e do sentido do enunciado legal.

Já na segunda lógica, mais compatível com aquela anteriormente apresentada no

presente ensaio, por “interpretação conforme” se compreenderia um mecanismo de

controle de constitucionalidade no qual a filtragem não atingiria o enunciado normativo,

mas sim suas leituras. Assim, ao invés de se considerar o texto como inconstitucional, o

problema seria deslocado para o campo interpretativo – controlando a

constitucionalidade das normas a serem dele extraídas e afastando aquelas que não

passassem pela avaliação. Nesse caminho, não mais se trataria de apenas interpretar um

texto com fundamento na Constituição; a questão seria controlar a constitucionalidade

das interpretações desse texto, excluindo aquelas que não satisfizessem a análise 41

.

40

Veja-se, por exemplo, ter sido esse o ponto de apoio adotado pelo Superior Tribunal de Justiça ao

apreciar o REsp 1292335/RO, levando-o a propor uma “interpretação conforme à Constituição ” do

próprio texto constitucional. Nos termos da decisão ali prolatada, “os princípios de hermenêutica

constitucional têm por finalidade possibilitar ao intérprete a busca pelo significado mais adequado para as

normas constitucionais. Entre as inúmeras regras de hermenêutica constitucional, é possível enumerar

quatro perfeitamente aplicáveis ao caso dos autos:(...) (b) Princípio da Interpretação conforme à

Constituição : que obriga o intérprete a buscar o sentido e o alcance da norma dentro da própria

Constituição, sobretudo nos seus princípios e valores estruturantes. Tomando de referência o que se disse

quanto ao princípio antecedente, a norma do art.7º, IX, da CF/88 não pode ser interpretada de modo a

aviltar os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho. Assim, o labor noturno

deve ser, em qualquer circunstância, compensado financeiramente em relação ao diurno, como forma de

valorizá-lo socialmente e de garantir ao trabalhador que o presta uma compensação mais digna, pelo

menos, quando comparada ao trabalhador que exerce as mesmas funções sob a luz do sol”. 41

Veja-se, exemplificativamente, a aplicação dessa espécie de filtragem pelo Supremo Tribunal Federal

(RE 687432 AgR): “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. BENEFÍCIO DE

PENSÃO POR MORTE. UNIÃO HOMOAFETIVA. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO

RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO

COMO ENTIDADE FAMILIAR. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DAS REGRAS E

CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS VÁLIDAS PARA A UNIÃO ESTÁVEL HETEROAFETIVA.

DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI

4.277 e da ADPF 132, ambas da Relatoria do Ministro Ayres Britto, Sessão de 05/05/2011, consolidou o

entendimento segundo o qual a união entre pessoas do mesmo sexo merece ter a aplicação das mesmas

regras e consequências válidas para a união heteroafetiva. 2. Esse entendimento foi formado utilizando-se

a técnica de interpretação conforme à Constituição para excluir qualquer significado que impeça o

reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade

familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que deve ser feito segundo

20

Adotando essa segunda perspectiva, mais complexa e detalhada, acredita-se que

as considerações anteriores levam a uma conclusão: vista como modalidade de controle

de constitucionalidade, a nossa “interpretação conforme” em pouco difere da feição

clássica do constitutional avoidance norte-americano. Seja em seus percursos

metodológicos ou em seus campos de aplicação, as duas técnicas assumem conteúdo

análogo. Descartados os invólucros conceituais, a essência de ambas é a mesma.

De fato, os conjuntos de peças que compõem tanto o primeiro quanto o segundo

quebra-cabeças possuem composição rigorosamente igual: o controle de adequação

entre o direito infraconstitucional e a Constituição; a possibilidade de que, de um

mesmo texto legislativo, sejam extraídas diferentes interpretações (algumas

constitucionalmente adequadas e outras constitucionalmente inadequadas); a aceitação

de que a filtragem constitucional passe do plano do texto para o plano da norma; e,

enfim, a percepção de que o controle pode ocorrer sem a necessidade de se negar

vigência ao enunciado.

Da mesma forma, também os encadeamentos oferecidos a esses aspectos pelas

duas técnicas se justapõem. Em ambas, a lógica a permear a atuação jurisdicional passa

pelas seguintes etapas: (i) o questionamento quanto à adequação constitucional de

determinada regra; (ii) a identificação das diferentes alternativas interpretativas

propiciadas por esse enunciado; (iii) o deslocamento do problema, deixando de indagar

a constitucionalidade do texto para examinar suas possibilidades de interpretação; e (iv)

o reconhecimento de que, havendo uma interpretação constitucional e outra

inconstitucional, é necessário adotar a primeira e excluir a segunda.

as mesmas regras e com idênticas consequências da união estável heteroafetiva. 3. O direito do

companheiro, na união estável homoafetiva, à percepção do benefício da pensão por morte de seu

parceiro restou decidida. No julgamento do RE nº 477.554/AgR, da Relatoria do Ministro Celso de Mello,

DJe de 26/08/2011, a Segunda Turma desta Corte, enfatizou que “ninguém, absolutamente ninguém, pode

ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação

sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do

sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável

qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o

desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. (…) A família resultante da

união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas,

benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões

heteroafetivas”. (Precedentes: RE n. 552.802, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe de 24.10.11; RE n.

643.229, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 08.09.11; RE n. 607.182, Relator o Ministro Ricardo

Lewandowski, DJe de 15.08.11; RE n. 590.989, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 24.06.11; RE

n. 437.100, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 26.05.11, entre outros). 4. Agravo regimental a

que se nega provimento”,

21

Assim, os dois mecanismos partem de um mesmo arsenal argumentativo, saindo

da pluralidade interpretativa para chegar à preservação do enunciado. E os objetivos

desse sofisticado arcabouço também não divergem. Por mais que em nossa realidade

seja menos comum escancarar a questão, também aqui o problema parece ser o arranjo

entre funções de Estado. Por conta de nosso redimensionamento tardio do papel do

Judiciário, entretanto, nosso estágio do debate é menos avançado.

Compreendidas as coisas desse modo, percebe-se que nosso atual cenário é

curioso. Afinal, por mais que tenhamos importado o “controle difuso” estadunidense,

concebemos como tábua de salvação uma técnica de filtragem que por lá foi

abandonada há mais de um século. Seria o caso de indagar seriamente se os problemas

que ali levaram à reformulação do cânone também não se verificam em nossa realidade.

Mais que isso, há de se questionar se a “interpretação conforme”, vista como

mecanismo de controle, efetivamente agrega algo de relevante ou contribui para o

desenho institucional brasileiro.

4.2. “Interpretação Conforme” ou “Interpretação de Acordo”?

Diante da ressalva ao segundo significado da “interpretação conforme”, sobraria

como objeto de análise o primeiro. Sob essa vertente, a questão não seria propriamente

de controle de constitucionalidade, e sim de adoção da Constituição como pano de

fundo hermenêutico. Aqui, o cerne não seria testar a norma infraconstitucional, mas

apenas estabelecer que, na aplicação do enunciado, seria necessário lhe atribuir aquele

conteúdo que melhor se amoldasse aos preceitos constitucionais; seria, enfim, a

indicação de que ao interpretar algo se deveria fazê-lo de acordo com a Constituição.

Entendida a “interpretação conforme” sob esses parâmetros, a maioria dos

problemas antes indicados quanto ao seu uso como mecanismo de controle prontamente

desaparece. Ainda que o título seja o mesmo, o método e o conteúdo do cânone passam

a se colocar em outra trincheira argumentativa. Contudo, ao mesmo tempo em que essa

realocação se esquiva dos debates anteriores, leva a outros questionamentos essenciais:

se a “interpretação conforme” é apenas isso, há alguma justificativa para a manutenção

desse rótulo? Sua aplicação não seria desdobramento lógico do próprio Estado

Constitucional?

22

As questões nos parecem fulminar qualquer sentido em se falar em

“interpretação conforme” para designar unicamente esse modo de compreender o

Direito. Isso, não pela nomenclatura apresentar equívocos, mas pelo fato de se mostrar

absolutamente desnecessária e redundante. Afinal, no bojo da atual Administração

Pública, é imperativo que qualquer ator aja em conformidade à Constituição 42

. Trata-se

de substrato mínimo de sua própria vocação funcional, razão pela qual não parece haver

justificativa para alcunhar esse modo de agir como se possuísse algum atributo especial.

É assim que, ao atender seus pacientes, o médico de um posto de saúde sempre

atua de maneira “conforme a Constituição”. Da mesma forma, qualquer funcionário

público de qualquer município brasileiro, no desempenho de suas funções, possui a

“conformidade ao texto constitucional” como matriz de conduta. O mesmo vale para o

empreiteiro de obras públicas, o ordenador de despesas de instituições federais de

ensino ou os membros de Casas Legislativas. Em qualquer dos casos, a observância aos

preceitos constitucionais e a sua adoção como diretiva são imanentes à conduta adotada.

Porém, não há qualquer necessidade de que esse dado seja sucessivamente exteriorizado

43.

Dessa maneira, caso compreendida como mera técnica interpretativa, a

“interpretação conforme” pouco ou nada agregaria ao cenário jurídico brasileiro.

Sustentar sua aplicação seria o mesmo que arguir que o julgador deve se valer da

“intepretação conforme a moralidade”. Retoricamente se pergunta: há algo de novo

nesse tipo de discurso? Caso a “técnica” não fosse mencionada, a obrigação de retidão

estaria esvaziada?

As respostas não nos parecem necessárias. O magistrado brasileiro deve se

portar como agente constitucional não por conta de qualquer guia hermenêutica

42

Afinal, “a estruturação do direito administrativo é produzida pela Constituição, a qual delineia os

princípios fundamentais, indica as situações em que será indispensável a existência de regras e fornece as

diretivas de desenvolvimento do sistema normativo. Ainda que o conteúdo concreto do regime

administrativo somente possa ser conhecido mediante as regras efetivamente adotadas, pode-se afirmar

que sua identidade é determinada pela Constituição. Talvez se pudesse aludir a uma espécie de código

genético do direito administrativo, imposto pela Constituição”. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de

Direito Administrativo. 9 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2013. p.136. 43

Conforme Barroso, “superasse, aqui, a idéia restrita de vinculação positiva do administrador à lei, na

leitura convencional do princípio da legalidade, pela qual sua atuação estava pautada por aquilo que o

legislador determinasse ou autorizasse. O administrador pode e deve atuar tendo por fundamento direto a

Constituição e independentemente, em muitos casos, de qualquer manifestação do legislador ordinário. O

princípio da legalidade transmuda-se, assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais

propriamente, em princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa

ordem”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. p.375-376.

23

construída em doutrina ou em jurisprudência, mas por ter sido essa a posição que lhe foi

atribuída pela própria Constituição Federal. E isso basta.

5. Considerações Finais

Assim, a questão nos leva novamente à primeira problematização relacionada ao

tema: se há a tentativa de identificar a “interpretação conforme” como algo capaz de

trazer inovações, é preciso reconhecer que a técnica possui verdadeira feição de controle

de constitucionalidade. E esse enquadramento faz com que se coloquem em seu âmbito

os mesmos desafios ínsitos à teia clássica do constitutional avoidance, diante da própria

identidade estrutural entre os mecanismos. O dado pode ser escamoteado pelo jurista,

mas essa opção não é capaz de afastar sua ocorrência concreta.

Na mesma linha, há de se realçar que se encontra implícito na afirmação da

técnica um trabalho de empoderamento jurisprudencial já constatado por Virgílio

Afonso da Silva 44

. Propositalmente ou não, trata-se de um efeito indissociável de sua

aplicação. Como exposto em relação à realidade estadunidense, também aqui se permite

aos Tribunais controlar a sua interpretação do enunciado infraconstitucional a partir da

sua interpretação da Constituição 45

. Uma vez mais, coloca-se em cheque se não

caberia realinhar essa relação institucional, fazendo com que a interpretação atribuída à

Constituição e ao próprio enunciado pelo órgão legislativo seja mais bem avaliada.

44

“A interpretação conforme à Constituição desempenha uma função de sutil legitimação da

centralização da tarefa interpretativa – não só da constituição, mas de todas as leis – nas mãos do

Supremo Tribunal Federal. O parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/1999 prescreve que as declarações

de constitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição , têm eficácia contra todos e

efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e A interpretação conforme à Constituição

desempenha uma função de sutil legitimação da centralização da tarefa interpretativa – não só da

constituição, mas de todas as leis – nas mãos do Supremo Tribunal Federal. O parágrafo único do art. 28

da Lei 9.868/1999 prescreve que as declarações de constitucionalidade, inclusive a interpretação

conforme à Constituição , têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder

Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. Quais as conseqüências desse

dispositivo? Elas são muito maiores do que se costuma crer”. SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação

conforme à Constituição ... p. 204-205. 45

“Quando o Judiciário recorre à interpretação conforme a constituição, tenta ele dar ao dispositivo legal

questionado, sob o pretexto de respeitar o legislador e evitar a declaração de nulidade, uma interpretação

que seja compatível com a constituição. Ocorre que o respeito ao legislador aqui é mero lugar-comum. O

tribunal, na verdade, dá a sua interpretação ao dispositivo para compatibilizá-lo com aquilo que o próprio

tribunal, e ninguém mais, acha que é constitucional”. Idem. p.203.

24

Nesse percurso, ao invés de conclusões definitivas, deixa-se uma série de

indagações. Não seria o caso de o Brasil, seguindo o salto do avoidance, mergulhar em

um caminho mais abstencionista quanto à atuação do Judiciário? Se há uma

interpretação constitucionalmente possível, há algum ganho em especificar detidamente

a inconstitucionalidade de uma leitura paralela 46

? Essas vantagens superam os custos

inerentes a uma atividade com tais modulações?

Diante dessas problematizações, o alerta que deve ficar aceso é que, no menor

dos casos, é inviável observar o método de “interpretação conforme” sem que a ele se

confira certa dose de ceticismo. Em uma frase, esse percurso não pode ser visto por

nosso jurista como uma nova panaceia. Trata-se de opção sujeita a críticas

contundentes, e cujos benefícios possuem natureza extremamente questionável.

46

Nesse ponto, surgiria espaço para críticas como aquela direcionada por Richard Posner ao modern

avoidance, atacando a “zona de penumbra” originada pela aplicação da técnica (e por seu viés

abstencionista). Nas palavras do autor, “the practical effect of interpreting statutes to avoid raising

constitutional questions is therefore to enlarge the already vast reach of constitutional prohibition

beyond even the most extravagant modern interpretation of the Constitution - to create a judge-made

constitutional "penumbra" that has much the same prohibitory effect as the judge-made (or at least

judge-amplified) Constitution itself”. POSNER, Richard. Statutory Interpretation - in the Classroom and

in the Courtroom. In. University of Chicago Law Review. v.50. Chicago: University of Chicago, 1983.

p.816. Contrapondo-se a essa visão, e afirmando que a eventual “penumbra” seria proposital, YOUNG,

Ernest A., Constitutional Avoidance, Resistance Norms, and the Preservation of Judicial Review. In.

Texas Law Review. v.78. Austin: The University of Texas Law School, 2000. p.1549 e ss.