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REPRESENTAÇÕES E EXPERIÊNCIAS DE VIAGENS PARA O RIO DE JANEIRO: QUESTÕES INICIAIS
Leonardo Name
Doutorando em Geografia (PPGG-UFRJ) Endereço: General Roca, 440 apto 302 – Tijuca – Tijuca
Rio de Janeiro – RJ – 20521-070 E-mail: [email protected]
Tema 1 – Lugares e Cidades Turísticas: abordagem teórica
RESUMO:
O trabalho levanta questões iniciais sobre a contraposição das representações imagéticas das viagens à Cidade Maravilhosa - em filmes, videoclipes, cartas-panoramas, cartões-postais, guias e mapas turísticos de imensa reprodutibilidade técnica - com a experiência concreta da viagem, em que geralmente um circuito pré-definido de atrações é seguido. Argumento que representação e experiência dialogam entre si e estão intrinsecamente ligadas a seletividades espaciais muito semelhantes: paisagens representadas são aquelas a serem depois vistas, lugares retratados são aqueles a serem depois visitados, sendo levados para o país do viajante através dos cartões-postais que envia, dos mapas e guias que permanecem consigo e dos souvenirs que compra para distribuir para parentes e amigos. Há, de fato, tanto nos filmes, videoclipes, mapas, cartas-panoramas, cartões postais e souvenirs quanto nos roteiros turísticos, diferentes propostas de estruturação do espaço, seja pelo vazio, seja pela densidade de informações.. Nesse sentido, a geografia contida em cada um deles pode mudar o modo como o viajante percebe o próprio espaço em sua experiência concreta.
ABSTRACT:
This paper raises a few questions from the contraposition of imagetic representations of trips to the Wonderful City – in movies, video clips, panoramas, postcards, travel guides and tourist maps of immense technical reproducibility – with the actual traveling experience, usually following a predefined itinerary of attractions. I point out that representation and experience dialogue with each other and are bound to very alike spatial selectivities: represented landscapes are those to be seen lately, depicted places are those to be visited, and even brought back home by means of postcards, maps, travel guides and souvenirs. There are, indeed, in these elements of the traveling culture as well as in tourist routes, different directives for the formation of spatial structures, be it for the lack or the overflow of information. In this sense, the geography within each one can change the way the visitor perceives space itself in his/her actual experience.
Para Gisela, Bianca e Tunico.
RUMO AO DESCONHECIDO: DO CINEMA À CULTURA DE VIAGEM.
O texto que se segue é fruto de uma pesquisa que inicialmente se direcionou às
representações das cidades no cinema – reais ou ficcionais, de locação ou cenográficas.
Naquele momento (Name, 2002), meu interesse se direcionava às questões relativas ao
espaço (que vai muito além do urbano) e ao tempo presentes nos filmes, bem como às
combinações entre os mesmos, e no fato dos filmes terem o poder de encurtar
distâncias, por porem na tela e diante da audiência um espaço que em sua materialidade
física encontra-se muito distante, e oferecerem experiências, na medida em que dão aos
espectadores a oportunidade de viver seu singular continuum de espaço-tempo. Mais
recentemente (Name, 2004),1 concentrei-me nas representações do Rio de Janeiro no
cinema do Brasil e dos EUA, especificamente naqueles filmes em que uma personagem
norte-americana viaja para o Rio e neste lugar tem experiências de identificação e
alteridade.
O cinema, de fato, é ao mesmo tempo arte e indústria que tem íntima relação com o
meio urbano, desde suas origens. Debruçar-se sobre a relação entre estes dois
elementos significa não apenas pesquisar o papel, no mais das vezes não creditado, que
as cidades desempenham nos filmes, mas sobretudo examinar as múltiplas e
significativas interações entre a mais importante forma cultural e a mais importante forma
de organização sócio-espacial do século XX (Schiel, 2001, p. 1). Como precisamente
argumentado por autores de diversas disciplinas (Bruno, 1997; Clarke, 1997; Stam, 1997;
Amancio, 2000; Schiel, op. cit.; Fitzmaurice, 2001), a investigação conjunta do cinema e
1 Os filmes utilizados nesta dissertação de Mestrado foram: Voando para o Rio (Flying down to Rio, Thorton
Freeland, EUA, 1933), Uma noite no Rio (That night in Rio, Irving Cummings, EUA, 1941), Alô, amigos (Saludos amigos, Norman Fergunson: Wilfred Jackson, EUA, 1943), Interlúdio (Notorious, Alfred Hitchcock, EUA, 1946), Os reis do Rio (Road to Rio, Norman Z. McLeod, EUA, 1947), Romance carioca (Nancy goes to Rio, Robert Z. Leonard, EUA, 1950), Meu amor brasileiro (Latin lovers, Mervyn LeRoy, EUA, 1953), Feitiço no Rio (Blame it on Rio, Stanley Doney, EUA, 1984), Orquídea selvagem (Wild orchid, Zalman King, EUA, 1990), A grande arte (Walter Salles Jr., Brasil, 1990), Kickboxer 3 – a arte da guerra (Kickboxer 3, the art of war, Rick King, EUA, 1992),. Boca (Walter Avancini; Zalman King, Brasil/EUA, 1994), Como nascem os anjos (Murilo Salles, Brasil), O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, Brasil, 1997), Bossa nova (Bruno Barreto, Brasil/EUA, 2000), O mar por testemunha (Dead in the water, Gustavo Liepztein, Brasil/EUA, 2001) e Blame it on Lisa (EUA, 2002). Algumas idéias do trabalho estão esboçadas em trabalhos apresentados na
última ANPEGE , na Rio Conference e no X ENA – ANPUR (Name: 2003a, 2003b e 2003c)
do meio urbano possibilita, de fato, um conhecimento mais acurado das relações entre
espaço, tempo e cultura, arquitetura e representações do “eu” e do “outro”.
No caso do Rio de Janeiro, a análise de filmes que elegem a Cidade Maravilhosa
como palco de suas tramas2 faz perceber que tanto as representações cinematográficas
“nativas” quanto as “estrangeiras” ao longo do tempo parecem repetir, em uníssono,
discursos polarizados em que cosmopolitismo, exotismo, natureza e sexualidade se
contrapõem a caos, estranhamento, violência e pobreza. De um lado a capital carioca se
apresenta como paraíso selvagem, pólo turístico de povo receptivo e locus para o
exercício de uma sexualidade exacerbada e, por outro lado, como inferno de gente vil e
de violência incontrolável. Esta dualidade se revela geralmente na oposição de imagens
de paisagens e lugares belos e conhecidos internacionalmente que passam a identificar e
legitimar a cidade – Pão de Açúcar e Corcovado, por exemplo – a espaços de
confinamento, onde supostamente impera o caos, como o Centro decadente e as favelas.
Acima de tudo, tais filmes fazem perceber que o cinema é parte do que se convencionou
chamar de cultura de viagem,3 pois tais como os guias turísticos, cartas-panoramas,
cartões-postais, souvenirs, narrativas de viagens e outros elementos ligados ao
deslocamento para um lugar estranho, ignoram a declamação de Lévi-Strauss (1977),
sendo responsáveis por “preservarem a ilusão daquilo que não mais existe”,
singularizando e tornando conhecidas terras longínquas e fazendo com que o distante se
torne próximo: o fato do cinema permitir à sua audiência conhecer, a partir de suas
imagens, diversos lugares nunca antes pisados dá relevância a uma possível
comparação: a do espectador com o viajante.
Além disso, há nestas imagens e roteiros turísticos diferentes propostas de
estruturação do espaço, seja pelo vazio, seja pela densidade de informações. Filmes
(e também desenhos animados e videoclipes, por exemplo), mapas, cartas-panoramas,
2 Meu interesse pelo Rio de Janeiro se deveu ao contato com dois generosos pesquisadores: a Socióloga e
Doutora em História da Arte e da Arquitetura Bianca Freire-Medeiros, autora de artigos sobre a imagem do Rio no cinema norte-americano (Freire-Medeiros: 2002b, 1997) e de tese sobre as representações da capital carioca no cinema, nos guias de viagens e até mesmo na produção acadêmica (Id., 2002a); e o cineasta e Doutor em Comunicação Tunico Amancio, autor de O Brasil dos gringos: imagens no cinema
(2000), livro em que analisa as razões das recorrências de representações do Rio e da Amazônia em mais de quatrocentos filmes de diversos países estrangeiros e períodos. 3 No ambiente acadêmico anglo-americano, vem emergindo uma considerável produção a respeito dos
vários aspectos da cultura de viagem. Na década de 90, pelo menos dezenove livros em língua inglesa se debruçaram sobre essa temática, sob o recorte de variadas disciplinas: Clark & Clark (eds., 1998), Stout (1998), Ringer (ed., 1998), Williams (1998), Duncan & Gregory (eds., 1998), Rojek & Urry (1997), Handlin & Handlin (eds., 1997), Clifford (1997), Chambers (ed., 1997), Blanton (1997), Nash (1996), Kaplan (1996), Craig (1996), Zacharasiewicz (ed., 1995), Ceaser (1995), Martels (1994), Pearce & Buttler (eds., 1993), Pratt (1992), Mills (1991) e Urry (1990). Para uma revisão crítica desta literatura, ver Freire-Medeiros (2000).
cartões postais, souvenirs e outros objetos que representem a capital carioca podem
então ser vistos como textos,4 plenos de informações e desinformações que, sendo
reproduzidos tecnicamente mundo afora, levam idéias e conformam narrativas sobre o
Rio de Janeiro. Dada a sua força, a geografia contida em cada um deles pode mudar o
modo como o viajante percebe o próprio espaço em sua experiência concreta.
ANTES DE SEGUIR VIAGEM: ESPAÇO, TEMPO E REPRESENTAÇÃO NA ERA DA
REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA
Walter Benjamin, em 1936, no clássico A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica (1985), elege a fotografia como o estágio final de uma evolução
que é marcada pela aceleração generalizada da vida na sociedade industrial. Nesse
contexto, a obra de arte tradicional, singular e autêntica, é então substituída pela obra
moderna e tecnicamente reprodutível. Essa nova lógica da multiplicação traz sérias
mudanças para a arte, e o autor usa como exemplo uma catedral que é fotografada: sua
materialidade física tem localização precisa, mas sua captura pela máquina
fotográfica pode fazê-la estar ao mesmo tempo em outros lugares – pendurada em
um estúdio, por exemplo – devido às várias cópias possíveis de serem feitas da foto
original, de ampla circulação. A partir do que chamou de “reprodutibilidade técnica”, a
capacidade mimética e serial da fotografia, que se apresenta ainda mais contundente no
cinema, Benjamin viu um rompimento com a tradição artística. A obra de arte reprodutível,
diferente de uma estátua de Vênus da Antiguidade, perdeu sua unicidade. E,
historicamente originada em rituais e de acesso nem sempre fácil – muitas delas só vistas
por sacerdotes, outras escondidas sob véus por longos períodos “não-ritualísticos” – , saiu
dos museus de público restrito e ganhou literalmente as ruas, sendo acessível às massas
metropolitanas. Para Benjamin, a obra de arte reprodutível não tem mais aura, conceito
por ele desenvolvido que seria a composição de “elementos espaciais e temporais: a
aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.” (ibid., p. 170, grifos
meus).
4 O geógrafo James Duncan (1990), inspirando-se nos debates antropológicos sobre o conceito de “cultura”,
promovidos por Geertz (1989) e Clifford (1986), argumenta sobre o quanto a disposição dos elementos do espaço urbano contribui para que a cidade e seus fragmentos possam transmitir idéias e mensagens – metonímias, metáforas, alegorias etc. Aqui, estou mais preocupado, por um lado, com os textos/imagens que são escritos sobre este texto original (a cidade concreta), e por outro, com a leitura do mesmo por parte do viajante, que por sua vez é influenciado pelos textos/imagens (re)produzidos pelas representações.
A “aura” definida por Benjamin tem relação com o culto à obra de arte e com a
ritualização na sua contemplação. Benjamin percebe que a gênese deste culto é
espaço-temporal. Uma Madona, exposta ou escondida em um ambiente sacro do
passado ou do presente, encontra-se fora do seu espaço original de criação: o ateliê do
artista. A catedral do exemplo do autor, como qualquer construção antiga ou
contemporânea, também tem seus espaços de criação (as folhas onde se localizam os
desenhos de seu projeto) diferentes do da sua materialização (seu terreno). Quem
vislumbra a Madona ou a catedral, tem consciência da existência de uma técnica
necessária para fazê-la, de uma genialidade artística e de um espaço original de criação.
Isso, tem razão Benjamin, conforma a aura, e o tempo a reforça: a Vênus dos Antigos,
exposta em um museu séculos mais tarde, tem seu culto agigantado devido ao enorme
deslocamento temporal que caracteriza sua permanência. Benjamin, entretanto, prioriza a
unicidade e a conseqüente autenticidade de uma obra no que considera como a gênese
de sua aura:
“Uma antiga estátua de Vênus, por exemplo, estava inscrita numa certa tradição entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média, quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era comum às duas tradições, era a unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura” (ibid., p. 171).
Assim, segundo Benjamin, fotografias e filmes, por conta da total incapacidade de se
distinguir a foto original de suas cópias e o primeiro negativo de filme de suas cópias,
teriam sua aura destruída, perdendo a capacidade de serem cultuados e ritualizados. Mas
vale lembrar que ao descrever tal fato, Benjamin não o vê como negativo, muito pelo
contrário: por meio da sua multiplicação, o autor enxerga nas artes modernas, sobretudo
na sétima arte, uma inédita capacidade política. A massificação inerente à possibilidade
de lucro do cinema traria em si o germe de uma missão: a politização e educação da
classe trabalhadora.
Benjamin, apesar de perceber o espaço e o tempo inerentes ao estatuto de uma
obra de arte, os ignora ao avaliar as causas da destruição do mesmo, dando-lhe razão
meramente quantitativa: a multiplicidade de cópias. Não percebe que se os Antigos
tivessem conseguido criar duas ou mais estátuas de Vênus idênticas, muito
provavelmente todas elas seriam hoje cultuadas e ritualizadas, ou seja, manteriam suas
auras, independente de se saber qual delas era a original. Não vê que, muito acima da
autenticidade, é o deslocamento do objeto de seu contexto espaço-temporal, uma
espécie de “geograficidade da obra-de-arte”, que dá à mesma o seu conteúdo
aurático, o que nem fotografia nem cinema fizeram perder.
O autor não se dá conta de que o aparecimento de fotos e filmes massifica
processos já existentes; de que, assim como pintar ou esculpir, fotografar e filmar são
técnicas que representam um objeto fora de seu espaço e de seu tempo originais; de
que a técnica, antes restrita ao artista, passa então a ser acessível a todos, tornando
possível que qualquer espaço esteja representado em outro, seja a foto de uma
paisagem de cartão-postal guardada em uma gaveta ou a própria reprodução do espaço
captado pela lente cinematográfica e exibida na sala de cinema. Ao invés disso, o autor
supervaloriza a multiplicação, que impossibilita descobrir o original “autêntico”. Benjamin
não percebe que, retirados do instante e do espaço dessa criação, algo inerente a sua
técnica, foto e filme, como objetos, adquirem aura, que cresce a medida que envelhecem,
assim como qualquer outra obra-de-arte: fotos e filmes de “álbum de família” eternizam
entes queridos e adquirem mais valor afetivo e simbólico – e aura! - com o tempo; fotos,
filmes, cartazes de agências de viagens e cartões-postais tornam próximos os lugares
distantes e podem permitir visões de múltiplos ângulos, muitas vezes em escalas não-
humanas, sendo o tempo um fator que pode torná-los relíquias. Não que a multiplicação
não tenha seu peso: mapas e pinturas de paisagens, por exemplo, antes presos à mão do
artista, podem na era da reprodutibilidade técnica ser multiplicados e comercializados por
todo mundo; um ícone como o Cristo Redentor pode figurar em filmes, cartões-postais e
embalagens de produtos, ganhar destaque numa carta-panorama da cidade, se
transformar em chaveiros ou outros souvenirs. Mas isto em nada destrói a “aura” do
objeto retratado. Muito pelo contrário, ela aumenta na medida em que um maior número
de cópias chega a espaços mais longínquos e se perdura no tempo.
Hoje, o rosto multiplicado globalmente de um astro de Hollywood ou do Rock
Internacional em revistas, filmes, na televisão e em outros meios que aproximam o objeto
de seu público, prova a permanência da aura que o cinema e a fotografia contêm. Nesse
sentido, as várias épocas de uma cidade, desde da invenção da fotografia e
posteriormente do cinema, são por eles captadas, arquivadas e cultuadas com um
estatuto de “documento” e de “real” que outras artes, como a pintura, não conseguem
adquirir. A esses meios “realistas” de representação juntam-se mapas, cartas-panoramas,
cartões-postais, souvenirs e outros objetos da cultura material e de viagem, que
literalmente reproduzem o meio urbano – pintado, fotografado, digitalizado, filmado – e
dão às cidades diferentes graus auráticos. E, com certeza, o nível de exposição,
multiplicação e circulação pelo mundo de uma cidade nestes e outros objetos tem
relevância nessa gradação. No mundo atual, em que as cidades parecem concorrer entre
si como os astros de Hollywood, sua presença quando deslocada para estes elementos
reprodutíveis tem de fato um sentido político, mas bem diferente daquele exigido por
Benjamin. Tanto quanto Julia Roberts ou Harrison Ford, as cidades precisam estar
literalmente sob os holofotes para se fortalecerem perante suas concorrentes e seu
“público”.5 As cidades, hoje, encontram-se indissociáveis das suas inúmeras
representações espaciais que circulam mundo afora e que, em conjunto, configuram
narrativas que dão inteligibilidade às mesmas.6
Os geógrafos Aitken e Zonn lembram que a representação é uma das mais velhas
funções do teatro e da arte em geral e que, dentre outras funções, reforça e dá corpo às
estruturas, ajudando os indivíduos a entenderem seus arredores e se localizarem nos
mesmos: sem as representações, os lugares pareceriam caóticos e feitos do acaso.
Assim, a experiência cotidiana não está imediatamente “presente”, mas sim “re-
presentada”, simultaneamente com as contraditórias imagens que constituem o mundo
(pós-)moderno (Aitken & Zonn, 1994, p. 6). Os autores rompem com um enfoque
constante nos estudos das representações que por muitas vezes as colocam como meras
instâncias ideológicas forjadas, visando à dominação do outro, produções intelectuais
cuidadosamente montadas que atingem um grupo apático e sem defesa. Creio que as
representações podem de fato servir a tais fins, mas são construções que não
necessariamente são impostas goela abaixo. Estão muitas vezes presentes no cotidiano,
sendo compartilhadas e reproduzidas tanto por “dominantes” quanto por “dominados”,
simplesmente por darem inteligibilidade ao chamado “mundo real”. A definição de Roger
Chartier é esclarecedora desse ponto de vista. Para o autor as representações são
5 Nos EUA e na França, por exemplo, é comum que as cidades possuam escritórios ligados à administração
local especializados no controle e muito mais na divulgação da cidade como locação cinematográfica (ver respectivamente: Swann, 2001; Gravari-Barbas, 2002). No Brasil, em 1º de outubro de 2003, os Ministérios da Cultura e do Turismo do Brasil anunciaram, em seminário do Festival do Rio 2003, o projeto Brazilian Film Comission, que prevê a criação de instituições voltadas à promoção de cada região e do próprio país
como locação privilegiada e fornecedor de infra-estrutura e pessoal qualificado para produções nacionais e internacionais de audiovisual. 6 O que argumento é que as imagens são uma das formas de representação dos lugares, eficientes por
conseguirem capturar o espaço, e que várias representações (imagéticas ou não) configuram uma narrativa. A narrativa que coloca o Rio como pólo turístico por vocação, por exemplo, utiliza imagens com localizações espaciais e escalas bem diferentes da que elege a cidade como locus da pobreza e da criminalidade. Assim, os espaços da cidade concreta acabam por ser estigmatizados e reduzidos a um único significado, para o bem (zona sul) ou para o mal (favelas).
FIG. 1. Cartaz de divulgação do
filme Voando para o Rio (1933) e
da então nova rota aérea da Pan
American Airlines.
“os modos como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída pensada, dada a ler... [São moldadas por] classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real ... [S]ão produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o presente pode adquirir sentido, o outro se tornar inteligível e o espaço ser decifrado” (Chartier, 1990, p. 17).
Representações, mesmo quando imagens, são como textos: são necessariamente
uma construção, repletas de idéias e de visões de mundo não necessariamente
conscientes. Quem as lê, as interpreta de variadas maneiras, tira suas próprias
conclusões e repassa a informação a partir de seus códigos. Mas a leitura dos conjuntos
destas inúmeras representações – as narrativas – é cotidiana, influenciando e sendo
influenciada pela experiência dos espaços. Como argumenta Gitlin (2001),
representação e realidade estão interligados e são quase complementares entre si,
e suas imagens não nos oferecem o deslocamento da realidade via simulacrum, mas sim
nos colocam próximo a ela, ampliando experiências e percepções. Hoje, diante da tela de
cinema, da TV, do computador, folheando-se guias turísticos ou espiando bancas de
jornais pode-se “conhecer”, mesmo que superficialmente, vários lugares do mundo.
VOANDO PARA O RIO: NARRATIVAS DE VIAGEM E A EXPERIÊNCIA DOS
LUGARES
A arquiteta Giuliana Bruno (1997b) argumenta que
determinadas cidades, como por exemplo Nápoles, Roma e Nova
Iorque, devido suas condições naturais em contraste com sua
bela arquitetura e, principalmente, por conta de um trânsito (de
pessoas e veículos) constante, atrairiam e melhor responderiam
à imagem em movimento dos filmes. A capital carioca, com
certeza, possui estas características e, assim, são muitos os
filmes cuja ação transcorre no Rio de Janeiro. A Cidade
Maravilhosa atrai as lentes nacionais e estrangeiras do cinema
como nenhuma outra do Brasil, e os filmes parecem
permanentemente ligados a um dualismo que ora reforça e ora
FIGS. 2 a 7. Em Alô amigos (1943), a capital carioca é apresentada à audiência por meio de imagens do Pão de
Açúcar, do Corcovado e do Cristo Redentor, dos cafés do Centro e do calçadão de Copacabana.
FIGS. 8 a 10. Em Meu amor brasileiro (1953), pinturas de famosos ícones da cidade são inseridas nos cenários,
montando-se uma cidade que interage com as personagens.
FIGS. 11 a 16. Mesmo contando uma história sobre violência e abuso de menores, Kickboxer 3 (1994) aposta na
reconhecível paisagem carioca como elemento não só de identificação mas sobretudo estético: ícones como o Cristo
Redentor, o Pão de Açúcar e a Praia de Copacabana aparecem em grandes panorâmicas ou como fundo da ação.
nega este título. Mas as representações cinematográficas da cidade não são isoladas,
pois circulam juntamente com as dos videoclipes, cartas-panoramas, cartões-postais,
guias e folhetos turísticos, bem como outras imagens que literalmente viajam ao redor do
mundo.
Nesse sentido, Freire-Medeiros (2002) argumenta que o Rio é uma travelling city, na
medida em que sua imagem é “viajante” – de grande circulação global e de fácil
assimilação – , e está sendo permanentemente construída e reconstruída, atraindo a
atenção de estrangeiros, futuros turistas. Esta circulação não é natural nem vocacional.
Como apontado por Celso Castro, a condição turística da capital carioca ou de qualquer
outra cidade é uma construção:
“[s]eria ingenuidade ... pensar que um local possa ser „naturalmente‟ turístico. Seu reconhecimento como „turístico‟ é uma construção cultural – isto é, envolve a criação de um sistema integrado de significados através dos quais a realidade turística de um lugar é estabelecida, mantida e negociada. Esse processo tem como resultado o estabelecimento de narrativas a respeito do interesse da „atração‟ a ser visitada. Essas narrativas associam determinados adjetivos a „pontos‟ ou eventos turísticos, antecipando o tipo de experiência que o turista deve ter. A construção do caráter turístico de um local também envolve, necessariamente, seleções: alguns elementos são iluminados, enquanto outros permanecem na sombra” (Castro, 1999, p. 81).
As cidades, na verdade, estão imersas em narrativas e constantemente definindo e
redefinindo suas próprias utopias e distopias (McArthur, 1997, p. 20). Muito antes dos
filmes, a paisagem carioca já era imagem tecnicamente reproduzida em vários outros
meios que abusam da representação do Corcovado, do Pão de Açúcar, da Baía de
Guanabara e dos Arcos da Carioca, ícones da paisagem que apontam a exuberância da
Natureza presente na cidade em contraposição às construções engenhosas do ser
humano. Tais imagens são emblemas não só da cidade, mas do Brasil e da América
Latina como um todo. De fato tais ícones sempre foram alvos das mais diversas
representações artísticas, de pintores do século XIX a fotógrafos como Augusto Malta no
século seguinte, que exaltavam a beleza de uma cidade instalada entre o mar e a
montanha. Mas foi a partir da construção da estrada de ferro Corcovado, iniciada em
1884, do bondinho do Pão de Açúcar, em 1913, e da estátua do Cristo Redentor, em
1931, que as montanhas que cercam a cidade deixaram de ser meros marcos de
navegação e símbolos da cidade para serem definitivamente alçadas a “objetivos a serem
alcançados, locais de peregrinação, objetos de desejo que dão o próprio sentido de se
visitar a cidade. Um turista pode muito bem vir ao Rio sem ir ao Paço Imperial ou ao
Teatro Municipal, mas se sentiria lesado se não pudesse subir esses dois morros para ver
a cidade de cima” (Denis, 2000, p. 87). Estas atrações da chamada Cidade Maravilhosa
peculiarmente se apresentam como violentas intervenções no meio natural e urbano, de
forma que sejam não só vistas como também constantemente percorridas,
atravessadas ou atingidas.
Assim, as paisagens cariocas captadas e representadas nas diversas mídias são,
como definido por Berque (1998, p. 84), marca e matriz. Marca, porque “expressam uma
civilização” e possuem componentes físicos adquiridos ao longo do tempo que lhes dão
uma materialidade física, percebida de fato pela visão, útil para os contextos de cada
representação (do exótico, do tropical, da miséria). Matriz, porque podem ser trabalhadas
e modificadas para transmitirem idéias. Berque também distingue as civilisations non-
paysagères, aquelas que nem sabem o que é a paisagem, não têm palavras para definí-
la, imagens para representá-la e práticas para apreciá-la, daquelas que são paysagères.
Essas se caracterizariam pelo uso de uma ou mais palavras para se definir “paisagem”,
por uma literatura (oral e escrita) descritiva da paisagem ou que canta sua beleza, por
representações pictóricas da mesma e por jardins de contemplação (Id., 1994, p. 15-16).
A quantidade de “representações pictóricas” da capital carioca é imensa. A cidade
também se assentou em um sítio de vasta natureza e foi urbanizando-se entre o mar e a
montanha, e de longa data possui jardins para contemplação e lazer. Ao longo do tempo
as paisagens cariocas foram desenhadas e pintadas, descritas pelos viajantes, mais tarde
fotografadas e filmadas, transformadas em objetos e souvenirs, por vezes querendo
retratar seu exotismo, tropicalidade e rusticidade, ora seu alto desenvolvimento e
civilidade e, em muitos casos, uma combinação de ambos. Então, pode-se dizer que
assim foi se construindo um seletivo repertório paisagístico, tornando emblemas poucos
pontos da cidade. O que comumente se mostra do Rio de Janeiro são estes emblemas
paisagísticos, e o tempo fez surgir um clichê de enorme impacto visual que o resume: a
vastidão do mar, tendo ao fundo o Cristo e o Pão de Açúcar.
Tuan (1983) vê como natural esta seletividade do olhar. Quem olha não pode
apreender uma panorâmica por sua totalidade, necessariamente se detendo em
determinados pontos de interesse. Esta pausa de tempo pode ser tão curta e tão fugaz
que o observador nem se dá conta de ter detido atenção em algum objeto em particular,
acreditando ainda estar percebendo a cena como um todo. Tais observações fazem
lembrar o conceito de punctum que Roland Barthes aplica à análise de fotografias. O
punctum é algo que salta da foto, e como uma flecha, transpassa o observador. É aquele
elemento que punge quem contempla a imagem e que desperta involuntariamente sua
atenção (Barthes, 1984, p. 68). As cidades, em particular o Rio de Janeiro, têm, com
FIGS. 17 a 20. Acima, cartões postais vendidos em bancas de jornal do Rio. Os ícones por eles apresentados –
Arcos da Carioca, calçadão de Copacabana, Cristo Redentor e bondinho do Pão de Açúcar – têm como característica comum o fato de serem violentas inserções artificiais na paisagem que, na visita do turista à cidade, devem ser atingidos, percorridos ou atravessados.
FIG. 21 e 22: As mesmas paisagens que são encontradas na maioria dos cartões postais se fazem presentes nos
souvenires que o turista compra ao longo de sua estadia.
certeza, estes elementos que pungem seus espectadores, sobretudo o estrangeiro, por
estar mais atento e menos acostumado aos mesmos. O famoso calçadão em ondas
pretas e brancas, junto à paisagem da orla carioca, por exemplo, é um famosíssimo
punctum da cidade do Rio, presente em inúmeras representações. Os Arcos da Carioca
também o são. Ambos colaboram para que lugares como Copacabana e Lapa se
destaquem e se isolem da paisagem, contribuindo tanto quanto esta na construção das
representações e na circulação de turistas em busca destes mesmos elementos em sua
estadia no Rio de Janeiro “real”.
Mas as narrativas da capital carioca de maneira alguma se reduzem às suas
paisagens. Juntam-se a elas o samba e a bossa nova, a hospitalidade carioca, a
exuberância de suas mulatas, o Carnaval e suas baianas, e também a miséria, a violência
e a criminalidade da cidade. Assim, a paisagem é um dos elementos do lugar, e não
ao contrário. Ela é apenas mais um dos fatores, dentre as inúmeras representações
imagéticas, que singulariza o espaço do Rio de Janeiro, tornando-o lugar. Todos
estes elementos têm suas devidas representações espaço-imagéticas que
invariavelmente elegem a cidade como lugar “naturalmente” turístico. Pois, mesmo em se
tratando de representações de conteúdo negativo, a distopia se apresenta como fator que
desvia a capital carioca de sua suposta “vocação natural”.
Para J. Nicholas Entrikin (1991, p. 6-7), os lugares combinam tanto o senso da
materialidade de um objeto no espaço quanto as qualidades existenciais de nossa
experiência; descrevem e entendem tanto o contexto natural associado com maneiras
particulares de vida quanto incluem o contexto simbólico em que, como agente, o sujeito
cria o mundo; são ao mesmo tempo um contexto externo de nossas ações e um centro de
significado. O geógrafo propõe a narrativa como artifício de articulação entre esses dois
pólos, entendida como “uma visão das coisas em conjunto, ... uma forma distinta de
conhecimento que deriva da redescrição da experiência em termos de síntese do
fenômeno heterogêneo ... [e cuja] mais simples forma possui dois componentes, a história
e o contador de histórias” (ibid., p. 23). O que viso a deixar claro, aqui, é que o
conjunto de imagens da cidade do Rio de Janeiro tecnicamente reproduzidas por
diversos meios se converte em narrativas que, por um lado, estão intimamente
ligadas à construção da “histórica” vocação turística da cidade e à estratégia de
captura de viajantes e, por outro, inauguram novas construções e narrativas, dada a
força de suas imagens.
Estas narrativas da cidade, repletas de significados, são em parte resultado de
representações estrangeiras, caso de filmes supostamente estereotipados como Feitiço
no Rio (1984) e Orquídea selvagem (1990) ou do famoso guia turístico How to be a
carioca (1992), da norte-americana Priscilla Ann Goslin, mas em muito se devem a uma
produção “nativa”, como em recentes filmes, como Bossa nova (2000), nas festas
“tradicionais” como o desfile das escolas de samba e os shows de revista que ressaltam a
beleza das mulatas, nos cartões-postais e nos souvenirs presentes em bancas de jornal e
lojas, elementos que por certo visam a satisfazer as expectativas do viajante. Não seria
exagero dizer, então, que o conjunto de informações sobre o Rio acessíveis ao
futuro viajante em seu país de origem – filmes brasileiros e estrangeiros,
videoclipes, sites, guias estrangeiros etc. – prometem uma experiência que, se
seguidos os roteiros tradicionais do turismo, em grande parte se efetiva no Rio de
Janeiro concreto. Ao mesmo tempo, os objetos que o viajante adquire em sua
estadia – souvenirs, guias, mapas e cartões-postais – , ao serem levados de volta
ao seu país de origem, perpetuam as representações iniciais. É preciso, portanto,
tratar os discursos e representações sobre a cidade como construções simbólicas que
estão plenas de valores sociais e produzem efeitos bastante concretos na forma da
cidade e na vida de seus habitantes. Acima de tudo, deve-se ter em mente que a
experiência da viagem ao Rio de Janeiro está diretamente fundida e confundida
com suas inúmeras representações, que colocam os espaços panorâmicos e intra-
urbanos em foco, conferindo-lhes marcas.
NOVAS FRONTEIRAS A ULTRAPASSAR: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sou um arquiteto-urbanista que há muito vem se despindo dos vícios de sua
disciplina: a priorização da análise da materialidade física, dos estilos arquitetônicos, da
forma e da função, do traçado urbano por si mesmo. Meus estudos e escritos cada vez
mais têm se voltado para o inverso: meu foco está cada vez mais “imaterial”, direcionado
para as representações, para aquilo que não se vê nitidamente e não se tem consciência
plena no dia-a-dia das cidades.
O trabalho aqui apresentado teve como pretensão, a partir do exemplo da cidade do
Rio de Janeiro, traçar preliminarmente as fronteiras de um tema naturalmente abrangente
e por isso interdisciplinar, que une cultura de massa à cultura de viagem, que abre
margem para discussões sobre o turismo e sobre a política do mesmo, mas também para
as questões simbólicas atribuídas aos lugares visitados, e na maneira que as
representações dos mesmos em ampla circulação influenciam na conformação da
“personalidade” de uma cidade e do olhar de quem a visita. Deve-se ultrapassar as visões
por vezes reducionistas da “vocação natural” de um lugar, da necessidade de
investimentos e do planejamento estratégico, pois há importantes questões que não
encontram suas respostas no discurso oficial, na maquiagem urbana, nos investimentos
públicos e privados ou no incremento dos serviços.
Que cidade se quer? Que espaço se tem? Que paisagem se vê e se quer ver?
Quais os lugares importantes? São perguntas essenciais para quem vive, visita ou
administra uma cidade, que recebem respostas diversas de acordo com quem as
pergunta e quem as responde. O ato de se fazer as malas e viajar, também tem relação
com fatores do cotidiano, de certa formas banais: a ida ao cinema, o recebimento de um
presente ou cartão postal de um amigo recém-chegado de uma terra distante, a consulta
de um guia ocasionalmente visto em uma livraria, o videoclipe que passa diariamente na
MTv. As representações do Rio e de demais cidades estão nesses elementos que, dentre
muitos outros, dão inteligibilidade ao mundo, ao Outro, e ao mundo do Outro. São úteis,
portanto, para se entender a multiplicidade do espaço urbano e geográfico, a “aura” de
uma cidade e os porquês de um lugar se tornar fascinante e irresistível a uma visita.
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