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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Comunicação Social Roni Franci Dutra Filgueiras Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste na Favela de Ramos, uma receita de subjetivações, memórias e resistência Rio de Janeiro 2018

Dissert_Roni Franci Dutra Filgueiras.pdf - BDTD/UERJ

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Comunicação Social

Roni Franci Dutra Filgueiras

Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste na Favela de

Ramos, uma receita de subjetivações, memórias e resistência

Rio de Janeiro

2018

Roni Franci Dutra Filgueiras

Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste na Favela de Ramos, uma

receita de subjetivações, memórias e resistência

Dissertação de Mestrado apresentada como parte

do requisito para a obtenção do título de Mestre

ao Programa de Pós-Graduação em

Comunicação, da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro. Área de concentração: Cultura de

Massa, Cidade e Representação Social

Orientador: Prof. Dr. João Luís de Araújo Maia

Rio de Janeiro

2018

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta

dissertação, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________

Assinatura Data

F481 Filgueiras, Roni Franci Dutra.

Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste na Favela de Ramos,

uma receita de subjetivações, memórias e resistência / Roni Franci Dutra

Filgueiras. – 2018.

129 f.

Orientadora: João Luís de Araújo Maia.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Faculdade de Comunicação Social.

1. Comunicação Social – Teses. 2. Subjetivação – Teses. 3. Comida – Teses.

I. Maia, João Luís de Araújo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Faculdade de Comunicação Social. III. Título.

es CDU 316.77(815.3)

Roni Franci Dutra Filgueiras

Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste na Favela de Ramos, uma

receita de subjetivações, memórias e resistência

Dissertação de Mestrado apresentada como parte

do requisito para a obtenção do título de Mestre

ao Programa de Pós-Graduação em

Comunicação, da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro. Área de concentração: Cultura de

Massa, Cidade e Representação Social

Aprovada em 07 de fevereiro de 2018.

Banca Examinadora:

_______________________________________

Prof. Dr. João Luís de Araújo Maia - Orientador

Faculdade de Comunicação Social – UERJ

_______________________________________

Profª. Drª. Cintia Sanmartín Fernandes

Faculdade de Comunicação Social – UERJ

_______________________________________

Profª. Drª. Laurinda Rosa Maciel

PPG em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural COC – Fundação

Oswaldo Cruz

Rio de Janeiro

2018

―Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo‖.

―Habita no teu corpo; é o teu corpo‖.

―Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria‖

Nietzsche

DEDICATÓRIA

À minha filha Clara Filgueiras Nery Atem, que ao nascer me deu uma segunda vida, e

cujo amor é, no dizer de Spinoza, sublime, desencarnado de palavras, não habita este mundo.

À mãe, ao pai, ao vô e a todos que, antes de mim, resistiram e me ensinaram a resistir.

AGRADECIMENTOS

Ao professor João Luís de Araújo Maia que, sem querer, me apontou o Norte da

minha pesquisa: o Nordeste, e me deu a felicidade de ser meu orientador e me (re)apresentar

às minhas raízes e memórias;

Às minhas entrevistadas e suas famílias que tão generosamente abriram suas casas,

seus corações e suas memórias para que eu pudesse pesquisar a Favela de Ramos, entre cafés,

baião de dois e galinha caipira;

Ao corpo docente do PPGCOM/UERJ, que faz da ação no mundo sua micropolítica.

Especialmente aos Professores Doutores Fernando Gonçalves, Cíntia Sanmartín, Letícia

Matheus, Denise Siqueira, Patricia Rebello, que me guiaram em leituras, conversas e aulas;

Aos professores Henrique Antoun (ECO/UFRJ), Leonardo De Marchi (UERJ), Igor

Sacramento (Fiocruz), Tatiana Siciliano (PUC RJ) e Robson Braga (UFC) por enriquecerem

meus estudos com seu saber;

Ao professor João Renato Benazzi pelas palavras de carinho e incentivo, quando eu

mais precisava;

Às futuras doutoras e doutores e às futuras mestras e mestres, meus queridos amigos e

colegas do PPGCOM que, sempre dispostos e solícitos presencial e remotamente em grupos

de whatsApp e Facebook, me ampararam nos momentos de angústia;

Às queridas amigas Daniele Aragão e Laurinda Rosa Maciel que me iluminaram e

iluminam desde que decidi pela aventura da Academia; às queridas companheiras Vilma

Homero, Elizabeth França, ao seu filho, o chef Pedro Pecego, aos amigos Clóvis Marques e

Leandro Luiz da Conceição, pelos empréstimos de leituras preciosas; à generosa amiga Dilza

Magioli pela correção do texto dea qualificação; aos amigos Paulo Roberto Monteiro de

Araújo, Bryan Hossy Hudson, Mario Brum, Julio César de Oliveira Braga e à amiga fiel

Maria Christina Monteiro de Castro pelas palavras de encorajamento;

Aos servidores da UERJ, que tão generosamente me atenderam em demandas várias;

À minha mãe amada, Roni Maia Dutra Filgueiras, que além de me dar seu nome, e por

não saber dizer ―eu te amo‖, me dizia isso com tapioca, arroz de leite, feijoada, mungunzá e

pamonha;

Ao meu amado pai, Francisco Fernandes Filgueiras (in memoriam), que me ensinou a

ver a boniteza de um açude quando sangra, a tomar banho de chuva, a ler os poetas e

escritores do Nordeste, a valorizar a arte, as gentes e as comidas do Sertão, quando nem eu

mesma via serventia naquilo;

A meu amado vô, Francisco Pedro Maia, o Chico de Aninha, por me contaminar com

sua paixão pelas letras e humor de tamarindo;

À vó Maria Alexandrina, dona de pensão e quituteira, que apaziguou a fome dos

viajantes, e cuja lembrança sempre passa por fartas colheres de doce de leite cortado;

Às irmãs Rose e Mary, ao cunhado Gilson, aos sobrinhos Hector e Romulo Pedro, às

tias Ronier (in memoriam) e Rozilda e à Teresa de Amália (in memoriam), que me acarinhava

com alfininhos.

RESUMO

FILGUEIRAS, Roni Franci Dutra. Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste

na Favela de Ramos, uma receita de subjetivações, memórias e resistência. 2018. 129 f.

Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade

do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Esta pesquisa abordará a construção do imaginário de uma ―nordestinidade‖, de

territórios e da memória (LE GOFF, NORA, POLLAK) de cinco mulheres migrantes

nordestinas, da Favela de Ramos, no bairro da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, por meio

da (re)criação, consumo e cultura material (DOUGLAS) de pratos tradicionais daquela região.

A pesquisa pretende investigar ainda como percepções, táticas (CERTEAU), discursos e

saberes dessas migrantes revelam um modo de permanência, processos de subjetivação e

resistência (FOUCAULT, MAFFESOLI, MARTÍN-BARBERO) de uma cultura (HALL) por

meio da culinária. Por fim, estudaremos, a partir da etnografia (GEERTZ), por meio de

observação participante (MALINOWSKI apud GOLDENBERG) e entrevista narrativa

(MINAYO apud GUERRA), como práticas e comportamentos sociais que envolvem o fazer e

o consumo da comida regional (LE BRETON, STENGEL) são disseminados e absorvidos no

cotidiano dessas mulheres.

Palavras-chave: Processo de Subjetivação. Comida. Memória. Cotidiano.

ABSTRACT

FILGUEIRAS, Roni Franci Dutra. The Northeastish survival in a Southeast slum in

Brazil: a recipe made of subjectivities, memories and resistence. 2018. 129 f. Dissertação

(Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

This research will focus on the construction of the imagery of a ―Northeastern‖,

territories and memory (LE GOFF, NORA, POLLAK) of five Northeastern migrant women,

from the Favela de Ramos, in the district of Maré, North Zone of Rio de Janeiro, creation of

traditional dishes from that region, consumption and material culture (DOUGLAS). The

research also intends to investigate how perceptions, tactics (CERTEAU), discourses and

knowledge of these migrants reveal a way of permanence, subjectivation processes and

identifications and resistance (FOUCAULT, MAFFESOLI, MARTÍN-BARBERO) of a

culture (HALL) through cooking . Finally, we will study, from the ethnography (GEERTZ),

through participant observation (MALINOWSKI apud GOLDENBERG) and narrative

interview (MINAYO apud GUERRA), as social practices and behaviors that involve the

making and consumption of regional food (LE BRETON , STENGEL) are disseminated and

absorbed in the daily life of these women.

Key words: Subjectivation process. Food. Memory. Everyday.

LISTA DE ABREVIATURAS

EFP - Edileuza Ferreira de Paula

HNA - Hilda Nascimento dos Anjos

JC - Josefa da Conceição

MESC - Maria Eliane Soares Correia

MLFS - Maria Letícia de Farias Silva

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11

1 UMA APROXIMAÇÃO ............................................................................................ 14

1.1 A metodologia, o campo e as entrevistadas .............................................................. 18

1.2 Uma teoria sobre o ato de comer: político, ético-estético, subjetivacional,

cultural e comunicacional .......................................................................................... 23

1.2.1 A contribuição alimentar do dono da terra ................................................................... 31

1.2.2 A contribuição alimentar do invasor europeu ............................................................... 34

1.2.3 A contribuição alimentar dos africanos ........................................................................ 35

1.2.4 Comida como serviço de marcação .............................................................................. 39

1.2.5 Comida popular e hibridismo cultural .......................................................................... 40

2 QUANDO O NORDESTE VIRA MAR NO RIO DE JANEIRO ........................... 48

2.1 As migrantes da Praia de Maria Angu, uma colher de sopa de ocupação ............ 52

2.2 Hilda Nascimento dos Anjos ...................................................................................... 57

2.3 Maria Letícia de Farias Silva ..................................................................................... 59

2.4 Josefa da Conceição .................................................................................................... 60

2.5 Edileuza Ferreira de Paula ........................................................................................ 61

2.6 Maria Eliane Soares Correia ..................................................................................... 62

3 MEMÓRIAS E IMAGINÁRIOS COM FARINHA ................................................ 64

3.1 O território, a agricultura familiar e a invaginação do mundo .............................. 72

3.2 A internet, a TV e o rádio ampliam cardápios ......................................................... 74

3.3 A vida como obra de arte realizada com e para o Outro ........................................ 75

3.4 Nordestinas, faveladas e cozinheiras: narrativas de resistências ........................... 77

4 AFETOS, GESTOS E TRENS DE COZINHAS COMUNICAM .......................... 82

4.1 Os odores da casa, da rua e da comida (e o som ao redor) ..................................... 88

CONSIDERAÇÕES EM FOGO BRANDO ............................................................. 92

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 97

APÊNDICE A – Entrevistas de campo ..................................................................... 103

APÊNDICE B – Fotos de campo .............................................................................. 118

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INTRODUÇÃO

Glória aos piratas

Às mulatas, às sereias

Glória à farofa

à cachaça, às baleias

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa história não esquecemos jamais

Aldir Blanc / João Bosco

Minha avó Alexandrina Silveira era dona de pensão, em Brejo do Cruz, município

encravado no pé de uma serra, no Sertão da Paraíba, quase divisa com o Rio Grande do Norte.

Vendia prato feito a quem queria matar a fome antes de seguir na estrada. Dela, meu pai

herdou o apreço pela comida boa e farta e a prosa. Meu pai migrou para o Sul Maravilha e

permaneceu na seara da comida desde os anos 50. Abriu uma tendinha de secos e molhados

na Favela de Ramos, conhecida em seu início pelo nome da praia que lhe dava nome: Maria

Angu. Coincidentemente, um prato à base de milho. Ali, nascemos, eu e as irmãs, nos anos

60, e passamos a primeira infância, até o inícios dos anos 70, quando mudamos para um

conjunto habitacional, em Cordovil.

Nas idas à tendinha, brincávamos com as sacas de grãos e sementes. A coceira de

sarna que acometia as mãos, depois de enterrá-las até o cotovelo no alpiste, só perdia em

sedução para os grãos de arroz e feijão, no canto do armazém, onde a vizinhança de fregueses

pardos, negros e nordestinos comprava fiado com crédito adquirido pelo costume, e dívida

anotada em caderno pautado para o acerto de conta no começo do mês. O perfume das

especiarias, o odor do charuto vendido por unidade e o cheiro que despregava dos sacos

empilhados de cebola funcionam ainda hoje como um transporte de volta para os dias de

criança, nos anos 60 e 70.

É dessa memória que ancora identificações (MAFFESOLI, 1996), capaz de alimentar

corpos e dar lastro ao grupo, que nossa pesquisa almeja dar conta, tomando como corpus

cinco mulheres migrantes nordestinas moradoras da Favela de Ramos, no bairro da Maré,

Zona Norte carioca, que desde os anos 50 e até hoje, chegam ali em busca de emprego, de

amor e da realização de sonhos os mais diversos. A memória e a cultura, assim como o ser, se

dizem de diversas formas. Há a memória e a cultura coletiva, nacional, oficial, de grupos,

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individual, dos vencedores e dos excluídos. Memórias e culturas que são sempre revivificadas

e que se esgueiram entre as frestas.

A memória, a cultura de um Nordeste deixado para trás (a maioria de nossas

entrevistadas volta para visitas regulares, mas a mais velha nunca mais retornou) e a

oralidade, juntamente com a comensalidade são as heranças guardadas por essas mulheres.

Sob a inspiração de Martín-Barbero (1997), teremos à mão um mapa noturno: ―que sirva para

questionar as mesmas coisas – dominação, produção e trabalho – mas a partir do outro lado:

as brechas, o consumo e o prazer. Um mapa que não sirva para a fuga, e sim para o

reconhecimento da situação a partir das mediações e dos sujeitos‖ (MARTÍN-BARBERO,

1997, p. 288). O objetivo de nossa pesquisa é investigar de que modo a comida da região

Nordeste, esse elemento comunicacional, permanece presente nas casas das migrantes e como

é reconfigurada no Rio de Janeiro.

No primeiro capítulo da dissertação, mergulhamos numa pesquisa bibliográfica que

vai amparar nossa análise teórica: de Foucault a Da Matta, de Certeau a Hall, de Montanari a

Câmara Cascudo. Ainda nesse capítulo, tecemos um cenário sobre a comensalidade, de como

africanos, indígenas e portugueses e suas técnicas e tradições culinárias criaram no país um

potente melting pot cultural que, claro, chegou a uma ―síntese‖ que muitas vezes esconde

jogos de poder travados por meio de temperos e insumos. No segundo capítulo, passamos à

análise das condições históricas de formação das favelas na capital fluminense; quais

elementos identificadores de uma certa ―nordestinidade‖ passaram a habitar o imaginário da

ocupação da Favela de Ramos, nos anos 50, da praia conhecida como Maria Angu.

No terceiro capítulo, mergulhamos na história com nossas entrevistadas. Propomos

uma mineração de vestígios de seu cotidiano, do trabalho reprodutivo, da lida doméstica. Por

meio dessas pistas biográficas (desde quando e por que razões deixaram sua terra natal e

empreenderam esse deslocamento rumo ao Rio de Janeiro), procuramos verificar a

permanência e as adaptações de seus modos de vida por meio de pratos e memórias que

carregaram consigo.

No quarto capítulo, vamos inventariar a espacialidade e a cultura material desse

cômodo, a cozinha; e o consumo alimentar que distingue essas mulheres e seu grupo e que

permite localizá-las dentro desse sistema rico que é a da comensalidade, herança, cultura, o

último elo dos indivíduos/grupos que permanece, juntamente com a língua, quando todos os

outros têm de ser abandonados nas diásporas, na fuga de imigrantes econômicos ou

refugiados de guerra, da seca e do desemprego. Como destacaram Douglas e Isherwood

(2006): ―O fluxo dos bens consumíveis deixa um sedimento que constrói a estrutura da

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cultura como ilhas de coral [...] um meio de pensar‖ (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p.

124).

Nossa pesquisa pretende verificar ainda de que modo essas migrantes praticam o que

Stengel (2014) chamou de gastronomismo, um entrecruzamento de uma política e uma

subjetivação, um regime de constituição de um modo de ser. Uma combinação de espaço e

tempo. Um misto de passado, presente e futuro em que o gosto, as suas sensações de prazer

ou desprazer, é transmissão de um patrimônio imaterial, mas também adquirido ao longo da

vida do comedor individualmente, em local/locais em que habita, transita. Como, afinal, se

constrói esse discurso, de que modo elegem e hierarquizam suas práticas, ferramentas e

receitas? E por último, fecharemos com algumas conclusões, percepções e avaliações sobre

nossa pesquisa.

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1 UMA APROXIMAÇÃO

O cotidiano, a história da mulher migrante, a vida miúda, aquela que se passa na área

privada das casas, à beira do fogão, na Favela de Ramos, é o que nos trouxe a esta pesquisa e

o que pretendemos examinar. A convivência estreita dada pelo arranjo de um território e de

laços de afetos e de táticas de sobrevivência que ensejam almoços de domingo em família e

festas de bairro desse grupo é o que Maffesoli (1998) classificou como fenômenos

representativos do tribalismo. Reapropriação e experimentação são também conceitos-chave

em Certeau (1999) aplicados a ações do cotidiano (conjunto de atos, práticas e ações de um

sujeito/sociedade que o definem) e que observamos no processo de mediação social.

Assim, decidimos pelo método qualitativo, em que a etnografia (MALINOWSKI apud

GOLDENBERG) exploratória, por meio da observação participante sistemática (GUERRA),

nos possibilitaria mapear esse viver em um cômodo que representou durante séculos locais

exclusivos e de confinamento de mulheres: a cozinha e seus anexos, a despensa, a sala de

jantar, a copa, o quintal, a área de serviço. Um labor que, como definiu Michelle Perrot (2009,

p. 98), é caracterizado como ―invisível, fluido, elástico. É um trabalho físico, que coloca em

jogo o corpo, é pouco qualificado e pouco mecanizado apesar das mudanças

contemporâneas‖. Não é pequeno nem desimportante esse ato de nutrir e ao mesmo tempo

cozer/coser saberes/sabores em uma teia que remonta aos antepassados.

Esses e outros autores servirão de guia nessa coleta de coordenadas da pesquisa

bibliográfica em que o cotidiano compõe esse mapa vital da comida, da cozinha feita por

cinco migrantes nordestinas moradoras da Favela de Ramos. A partir da observação desse

vitral de sensações e saberes, dessa revalorização da alimentação popular, e sob a luz de uma

cultura ordinária que esconde ―uma diversidade de situações, interesses e contextos, com a

aparente repetição de objetos servidos‖ (CERTEAU, 2009, p. 264), pretendemos dar pistas

para ―uma‖ interpretação dessa realidade. Nessa ambiência racional-sensitiva, afetos e logos

(na perspectiva aristotélica, o homem é um ser político dotado de logos, ou seja, linguagem,

aquilo que é próprio do homem e que diz sobre o local que ocupamos no cosmos) se dão as

mãos, são faces de uma mesma moeda, a realidade mostra como esse binômio é indissociável

e complementar. Esse ato frugal, banal, cotidiano tanto quanto essencial é naturalizado,

enfraquecendo sua potência de compreensão das várias camadas de realidade. Como

resumiria Maffesoli (1998, p. 188), ―o sensível não é apenas um momento que se poderia ou

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deveria superar, no quadro de um saber que progressivamente se depura. É preciso considerá-

lo como elemento central no ato de conhecimento‖.

Nesse sentido, pretendemos conhecer quais as mediações das relações subjetivas feitas

por meio e através da comida regional, como elemento comunicacional, em entrevistas

qualitativas, em profundidade e presenciais. E como as práticas da cozinha das mulheres

migrantes da Favela de Ramos reconfiguram uma ―nordestinidade‖ no Rio de Janeiro.

Há, no Brasil, certos alimentos ou pratos que abrem uma brecha definitiva no mundo

diário, engendrando ocasiões em que as relações sociais devem ser saboreadas e

prazerosamente desfrutadas como as comidas que elas estão celebrando. E de modo

tão intenso que não se sabe, no fim, se foi a comida que celebrou as relações sociais,

estando a serviço delas, ou se foram os elos de parentesco, compadrio e amizade que

estiveram a serviço da boa mesa (DAMATTA, 1984, p. 45).

As favelas como aglomerados na América Latina se tornam um fenômeno a partir dos

processos de industrialização tardios no continente, entre os anos 30-50. A chegada de grande

contingente de mão de obra rural vindo do campo em busca de trabalho impactou os centros

urbanos ao se estabelecer nas periferias: desde efeitos sentidos na mobilidade, ocupação

geográfica, passando pela comunicação (de massas) às políticas públicas de segurança e

participação política, propriamente dita. Martín-Barbero (1997), assim como outros teóricos

dos Estudos Culturais, enxerga nesse processo de acomodação cultural-comunicacional –

sempre tensionado pelos interesses de parte a parte – mais ganhos do que perdas para as

―massas‖, refutando o maniqueísmo que trata essa dinâmica como de total espoliação e

assujeitamento às elites.

O filósofo e seus pares detectam uma permanência do estilo de vida solidário desses

migrantes – ainda que declinada, em menor grau –, nessa reterritorialização nas cidades.

Claro que a vida da cidade dissolve boa parte das solidariedades e dos modos de

viver das pessoas que chegam da província, mas essas solidariedades e esses modos

de viver ―instituem e canalizam os laços sociais no novo ambiente, tornando-se os

centros de novas formas de solidariedade‖. Um campo fundamental para a gestação

dessas novas formas é precisamente o bairro. São suas associações e centros que

dispõem de uma amplitude e uma atmosfera capazes de congregar os migrantes, ao

lhes oferecerem um mínimo de representação frente às autoridades e ao Estado.

(MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 271)

Esses laços da comunidade – entendida como ―desenvolvida por Ferdinand Tönies [...]

unidade do pensamento e da emoção, pela predominância dos laços estreitos e concretos e das

relações de solidariedade, lealdade e identidade coletiva‖ (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 51)

– e estilos de vida são detectáveis nas micropolíticas cotidianas, como vimos na Favela: o

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repartir as refeições com vizinhos e pessoas mais vulneráveis de Hilda Nascimento dos Anjos

(HNA); a ampliação vertical das casas para acolher a segunda e terceira gerações da família,

como fez Maria Letícia Farias Silva (MLFS); a rede de cuidados criada pelas moradoras para

uma idosa sem família – que se revezam na ajuda para checar se ela se alimentou, se precisa

de remédios, reparos em casa ou fraldas geriátricas –, da qual participa Josefa da Conceição

(JC) e Carmen Lúcia; o empreendedorismo de Maria Eliane Soares Correia (MESC), a partir

das receitas herdadas da mãe e que lhe possibilitou abrir sua pensão e atrair outros migrantes

saudosos do sabor da terra; a preparação de pratos típicos do Nordeste numa cozinha

comunitária na pastoral dos Vicentinos Grupo União da qual participa ativamente Edileuza

Ferreira de Paula (EFP).

A proxemia e espiralidade do tempo de Maffesoli (2006) se aproximam da

territorialidade e do tempo esférico de Martín-Barbero (2002) como fundamentos desses laços

tribais que se tecem em conversas de bar, salões de beleza, barbearias, missas, trabalhos

voluntários religiosos ou para levantar uma laje na favela.

O lugar continua feito do tecido e da proxemia de parentescos e vizinhanças. O que

exige esclarecer que o sentido de local não é unívoco: pois um resulta da

fragmentação, produzida pela desterritorialização imposta pelo global, e outro muito

diferente que assume o lugar nos termos de Michel de Certeau ou Marc Auge. Qual

é o lugar que introduz o ruído nas redes, distorções no discurso do global, através do

qual surge a palavra dos outros, de muitos outros. [...] E o uso que dessa mesma rede

fazem muitas minorias hoje e comunidades marginalizadas ou grupos de

anarquistas. [...] Romper com toda a dependência local é ficar sem a indispensável

perspectiva temporal. E hoje assistimos à ―emergência de um tempo mundial capaz

de eliminar a referência concreta do tempo local da geografia que faz História‖.

Primeiro foi o tempo cíclico das origens, depois o linear da história cronológica,

agora entramos em um tempo esférico que ao desabilitar o espaço liquida a

memória, sua espessura geológica e sua carga histórica. (MAFFESOLI, 2006, p.

269-270, tradução nossa)1

A felicidade pode, sim, ser partilhada e de preferência com mungunzá, galinha caipira

e farinha. Para os gregos, a felicidade estava condicionada e associada ao coletivo e à pólis.

Era ―impossível ser feliz sozinho‖, como cantou filosoficamente Tom Jobim. Nossa pesquisa

1 el lugar sigue hecho del tejido y la proxemia de los parentescos y las vecindades. Lo cual exige poner en claro

que el sentido de lo local no es unívoco: pues uno es el que resulta de la fragmentación, producida por la des-

localización que impone lo global, y otro bien distinto el que assume el lugar en los términos de Michel de

Certau o de Marc Auge. Que es el lugar que introduce ruido en las redes, distorsiones en el discurso de lo

global, a través de las cuales emerge la palabra de otros, de muchos otros.[...] Y los usos que de esa misma red

hacen hoy multitud de minorias y comunidades marginadas o grupos de anarquistas. [...] Romper toda

dependencia local es quedarse sin la indispensable perspectiva temporal. Y hoy asistimos a ―la aparición de un

tiempo mundial susceptible de eliminar la referencia concreta del tiempo local de la geografía que hace la

historia‖. Primero fue el tiempo cíclico de los orígenes, después el lineal de la historia cronológica, ahora

entramos em un tiempo esférico que al desrealizar el espacio liquida la memoria, su espesor geológico y su

carga histórica.

17

visa ampliar e entender em que medida esse gastronomismo nordestino e periférico ganha

visibilidade e legitimidade no campo da Comunicação, na Favela de Ramos. Acreditamos que

esse estudo poderá beneficiar, ainda que de maneira limitada por conta de seu microcosmo, o

entendimento de uma certa subjetivação e a valorização de discursos e práticas cotidianas,

sobre a qual se debruça a História Cultural2, a narratividade micro-histórica de homens e

mulheres do povo, inseridos nas práticas comuns do dia a dia e seu imaginário, que, como

bem conceituou Pesavento (2005), uma História que ―tenta resgatar não um fato preciso, mas

sentimentos e sensibilidades‖. Esse conceito de cultura material que fez emergir os dados

mais ordinários da vida humana e do homem comum: a comida, a moradia, a roupa.

Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados

partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo [...] A cultura é ainda

uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica, ou

seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos

atores sociais se apresentem de forma cifrada, portando já um significado e uma

apreciação valorativa (PESAVENTO, 2005, p. 8).

Antes desprezados, a vida cotidiana, a cultura material, as mentalidades, o corpo, a

unidade familiar e a finitude viram foco de estudos e de ponte para evidenciar dinâmicas

―aparentemente congeladas dos tempos para se revelarem na dialética da sua transformação e

da sua permanência como noções plásticas, sujeitas a mudanças, mesmo que elas apareçam

como imperceptíveis para os próprios protagonistas‖ (CARNEIRO, 2003, p. 89). Nosso

objetivo geral é analisar de que forma se estabelecem as práticas, as táticas e os discursos das

cinco nordestinas da Favela de Ramos em seu dia-a-dia, fomentando o debate na sociedade,

mais e profundas investigações no meio acadêmico desse paradigma de representações

sociais, comunicacionais e culturais que se constrói.

De que forma impactam a manutenção e reelaboram a configuração de uma

―nordestinidade‖? Que valores permanecem nessa memória coletiva e desse patrimônio

subjetivacional? Como ressignificam e passam a tecer novas memórias de seus antepassados

por meio de antigas receitas regionais de família? E quais são os discursos simbólicos desse

patrimônio cultural, memória e tradição que emergem – como definiu Joan Scott, ―a palavra

aplicada a práticas que reproduzem ou desafiam o que é às vezes rotulado de ‗ideologia‘‖

2 Movimento que se iniciou com historiadores alemães e ingleses e que teve na Escola dos Annales seu grupo de

maior expressão. Reuniu pensadores como Lucien Febvre, Marc Bloch, Paul Ricœur, Pierre Bourdieu, Michel

de Certeau, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Philippe Ariès, Lucian Boia, Reinhart Koselleck que deram ênfase a

uma outra forma de narratividade histórica em que o imaginário e as sensibilidades, como definiu Sandra

Jatahy Pesavento ―seriam as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um

reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos‖ (PESAVENTO, 2005, p. 22)

18

(SCOTT, 1992, p. 66-67)? Como objetivos específicos, pretendemos identificar como se dão

as dinâmicas espaciais na cozinha das moradoras: que objetos compõem esses cômodos,

quando e como são usados no cotidiano. Que memórias esses objetos mobilizam? Que

sensações promovidas pelo som, odor, visão o território evoca? Esperamos apontar para

algumas pistas que esclareçam essas indagações.

1.1 A metodologia, o campo e as entrevistadas

Minha aproximação com o tema foi realizada com a ajuda da minha mãe, que nunca

abandonou seus laços com Hilda Nascimento dos Santos (HNA), a paraibana que a antecedeu

ali, a acolheu como filha, recém-chegada da Paraíba, nos anos 50, e a ensinou a cozinhar.

Comecei a delinear minha etnografia quando reencontrei HNA, em um enterro no Cemitério

de Irajá, no início de 2017. A mais velha das entrevistadas, nascida no sítio São João do

Cariri, no município de Serra Branca, na Paraíba, e sua filha, Carmen Lúcia, foram as

informantes que me ajudaram a recrutar as outras entrevistadas, todas vizinhas e moradoras da

Favela de Ramos, nascidas em vários municípios da Paraíba.

Minha mãe me reconduziu à favela apenas na primeira visita. Dali em diante, segui

acompanhada da minha informante, Carmen Lúcia, sua irmã, Ana Lúcia, filhas de HNA, e a

entrevistada Edileuza Ferreira de Paula (EFP) me apresentaram a outras migrantes e me

ajudaram em novas visitas. Os primeiros contatos foram para explicar a natureza da minha

pesquisa, o que eu esperava delas e me certificar que poderiam me receber dali em diante e

vê-las cozinhar. Procurei nos primeiros contatos fazer algumas poucas anotações e nenhuma

gravação ou registro fotográfico. Com a frequência e confiança angariadas, perguntei se me

permitiam gravar as conversas.

Com o avanço das entrevistas, Maria Eliane Soares Correia (MESC) e EFP se soltaram

a ponto de nem escutar as perguntas. Desfiaram com prazer seus relatos, com vivo interesse

sobre meu próprio interesse em suas trajetórias de vida. À medida em que mergulhavam em

lembranças da infância junto à família e terra de origem, chegaram a tentar rever os próprios

sentimentos que cultivavam sobre um ou outro episódio, parente ou familiar. São os

revisionismos propiciados pela distância no tempo e no espaço.

Durante os meses de março, julho, novembro e dezembro de 2017, perambulei e me

perdi várias vezes no labirinto de ruas e casas em dias ensolarados, quando o ar praticamente

19

não circula; e nos dias de chuva, quando alguns trechos alagados obrigavam a fazer grandes

desvios. Passei diversas vezes em frente às lojinhas, próximas da casa de HNA, em busca do

local exato onde meu pai abrira sua tendinha nos anos 60. Conferi a birosca de produtos

nordestinos com seu sortimento variado de produtos: de carne-seca a favas, de bolachas a

rapadura, de cachaça a cuscuzeiros. Experimentei as paletas mexicanas, vendidas quase na

esquina da Avenida Brasil, evitei o japonês, mas não resisti à comida da pensão da MESC.

Nesses encontros, realizamos cerca de 20 entrevistas em profundidade – feitas ora na

cozinha ora na sala das casas de nossas migrantes, no pequeno salão da Pensão da Nana e até

durante a faxina, no sábado, que EFP realiza religiosamente na Capela de Nossa Senhora

Aparecida –, para estabelecer variantes/constantes no grupo e aprofundar nossa compreensão

das suas trajetórias. Houve ainda trocas de mensagens pelo aplicativo WhatsApp e inúmeras

conversas pelo celular e telefone fixo. Nesses encontros, conhecemos o dia-a-dia marcado

pela intervenção da milícia, por tragédias (como o relato do incêndio que em 1958 deixou

vários moradores sem teto), pela ausência do Estado, pelo longo trabalho reprodutivo e

produtivo e pela grande solidariedade que une os moradores. Nossas entrevistadas e suas

pequenas ou grandes famílias (sempre estendidas por agregados, amigos e parentes)

compartilharam cafés, almoços, receitas típicas do Nordeste, que costuraram trajetórias de

vida, memórias e planos de futuro.

Num segundo momento, pedi permissão para fotografar itens de suas cozinhas – de

colheres de pau, filtros de barro a suporte de coador de café de flanela –, objetos e utensílios

que mantinham aceso o fogo da memória. Foram feitas ainda fotografias que procuraram

registrar o momento em que cozinhavam, almoçavam e ainda alguns registros do comércio do

entorno que abastecem os moradores com insumos típicos do Nordeste, como a vendedora de

tapioca e a tendinha de produtos regionais Sabor Nordestino. Procurei ainda percorrer vielas,

becos e ruas para reconhecer esse território, que se caracteriza pelo aproveitamento máximo

do terreno, pela intuição e adaptabilidade e pelas soluções adequadas e criativas às

necessidades urgentes a partir de saberes herdados ou conhecimento técnico adquirido e

também pelo mútuo socorro.

Com dezenas e dezenas de entrevistas feitas ao longo de 30 anos de Jornalismo,

mergulhar na vida e nas lembranças das migrantes nordestinas era como visitar minhas

próprias memórias. Estranhar o familiar e tornar familiar o estranho foi das primeiras lições

lidas em obras de Malinowski e DaMatta. Como em toda etnografia, nos preocupamos em

fazer um esforço de tornar o familiar estranho e o estranho familiar – ―em etnografia, o dever

da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a

20

dizer sobre ele mesmo — isto é, sobre o papel da cultura na vida humana‖ (GEERTZ, 1989,

p. 25). Embora tenha nascido e vivido na Favela de Ramos até os 6 anos, eu voltava ali

esporadicamente com minha mãe, ela mesma moradora do lugar ao chegar ao Rio de Janeiro e

ter sido recebida como uma agregada familiar, laço comum no Nordeste, por HNA e sua

numerosa família, uma relação que já dura décadas.

Minhas visitas ao bairro, depois de anos afastada, foram motivadas pela curiosidade

jornalística após a abertura do Piscinão de Ramos, em 2002, quando a autora de telenovelas

Gloria Peres incluiu o bordão ―Cada mergulho é um flash‖, da personagem Odete, de Mara

Mazan, na novela O clone, da Rede Globo. Um sucesso instantâneo na TV e na mídia. E as

idas se tornaram mais constantes com a decisão de fazer das migrantes da Favela meu corpus.

Apesar da familiaridade, a distância do cotidiano causou um estranhamento de parte a parte.

A cada visita, o estranhamento foi vencido conforme nossas entrevistadas entendiam o teor da

pesquisa, minha ligação anterior ao território e estabelecíamos uma relação de confiança

recíproca. Com exceção de Maria Letícia de Farias Silva (MLFS) que, do entusiasmo inicial à

nossa proposta, passou na segunda entrevista às respostas curtas e desconfiadas, recusando-se

a autorizar o registro de imagens em sua casa ou mesmo a cessão de fotos suas para ilustrar a

pesquisa.

Nossa observação participante usou das entrevistas narrativas, pautadas livremente a

partir da pergunta sobre a alimentação com receitas típicas, suas trajetórias de vida, dinâmica

de alimentação diária. A hora para ser finalizada era dada de parte a parte: ora elas

encerravam alegando um compromisso ora a entrevistadora se dava por satisfeita ou vencida

pelo cansaço. Coletei dados de reminiscências orais, discursos e verifiquei práticas culinárias,

gostos e preferências das moradoras e de suas famílias. E, à luz da interpretação e

perspectivas das próprias entrevistadas, procurei compreender as transformações dos

processos de apropriação dos pratos típicos nordestinos consumidos em seus novos locais de

moradia, em sua forma ordinária e nas ocasiões festivas, suas adaptações, substituições e

abandonos.

Mais do que o dito, silêncios, pausas, hesitações, frases incompletas, olhares perdidos,

modulações das vozes também revelam traços, restos, pistas e fragmentos, selando o

indizível. Saber ler esses sinais e interpretá-los foi um avanço em relação às minhas próprias

experiências como jornalista. Como diria DaMatta (1978, p. 25) sobre o que chama de plano

existencial da pesquisa que ―fala mais das lições que devo extrair do meu próprio caso. É por

causa disso que eu a considero como essencialmente globalizadora e integradora: ela deve

sintetizar a biografia com a teoria, e a prática do mundo com a do ofício‖.

21

A crença no logos, na racionalidade da herança Iluminista, nos legou, segundo

Benjamin, um divórcio do próprio Humanismo com a vida. Esvaziou as experiências e as

intensidades dos afetos. Esterilizou o cotidiano, esfriou a temperatura das emoções. Com o

auxílio da Filosofia, Antropologia, Sociologia e da escrita, tento encher esses corpos de novo

de histórias, irrigar as histórias orais. Longe de esgotar uma realidade dinâmica, já que ―o

olhar sobre o objeto está condicionado historicamente pela posição social do cientista e pelas

correntes de pensamento existentes‖ (GOLDENBERG, 1997), almejei contribuir com

informações sobre o rico ethos desse microcosmo: suas táticas de agenciamento, as

resistências dessas identificações, os impactos na permanência dessa cultura regional na

Favela de Ramos, o modo de vida marcado por uma socialidade em que o imaginário e os

arranjos comunicacionais são pulsantes e fortemente marcados pela solidariedade tribal, como

conceituou Maffesoli em sua obra.

HNA, por exemplo, não lembra quando passou a dar duas refeições diárias a Janaína

dos Santos, dependente química, que perambulava pela favela e foi amparada por ela e sua

família. EFP, MESC e JC tiveram e ainda têm experiências como empregadas domésticas e

diaristas. O que lhes valeu um intercâmbio de conhecimento que rendeu um hibridismo e

trocas de saberes e influências mútuas entre seus saberes da cozinha do Sertão e do Semiárido

do Nordeste com culinárias de suas empregadoras, com repertório vindo de Minas e do Rio.

JC e EFP introduziram na casa de suas empregadoras itens que elas não usavam, como o

coentro e o pimentão. Essa maneira de se insinuar nas panelas e sedutoramente introduzir um

‗alienígena‘ culinário foi o mesmo processo de assimilação detectado por Cascudo (2004) em

relação às cozinheiras africanas que ―impuseram‖ o azeite de dendê na culinária brasileira.

Se por um lado, a migração fomentou o alastramento de hábitos alimentares do

Nordeste para o Rio de Janeiro, por outro também verificamos que esses rituais dietéticos

sofrem e sofreram novas interferências: a partir de uma base foram acrescidos novos

ingredientes, modos de fazer e mesmo modo de consumi-lo. A tapioca é um exemplo mais do

que midiático: de comida ―popular‖ a item da dieta fitness, esse alimento tradicional dos cafés

da manhã sertanejos conquistou outras mesas. E com releituras que a tornaram um clássico da

comida de rua: do recheio com queijo coalho, coco ralado ou manteiga de garrafa, ampliou-se

a ofertas que vão do leite condensado à carne-seca desfiada, com linguiça e cebola, vendida

em barraquinhas em toda a cidade. O próprio queijo coalho, iguaria tradicional do Nordeste,

surgida em 15813, disseminou-se pelos mercados do Rio de Janeiro.

3 Disponível em: <http://paladar.estadao.com.br/noticias/comida,historia-do-queijo-de-coalho-de-pernambuco-

vira-livro,10000076044>. Acesso em: dez 2017.

22

O que foi possível observar na nossa pesquisa é que há um apagamento do que foi

herdado do elemento indígena (desde a dieta até as técnicas de cultivo, de preparo e de

consumo de alimentos e receitas). Esse processo que sedimenta sujeições sociais e invisibiliza

as lutas pela preservação das culturas nativas desde que o Brasil se tornou Brasil. ―Fraca,

incompleta, irregular, defeituosa, subalterna, inferior, com tantos títulos no libelo acusatório, a

mandioca, a rainha do Brasil, continua inabalável no seu trono‖ (CASCUDO, 2004, p. 101),

legado sempre festejado das tribos autóctones permanece em sua fabricação ainda pouco

mecanizada.

Defendamos a cozinha secular que nos doou músculos serenos e forças gigantescas.

Podemos ir melhorando, diminuindo a intensidade rústica de certos pratos históricos,

mas não aboli-los do nosso sustento. É um desserviço à nossa nacionalização de

cultura escrevermos em brasileiro e comermos à inglesa [...] Mas relegar os nossos

velhos, simples, deliciosos e históricos quitutes, alimentadores dos nossos avós, base

de sua energia incrível, a um canto do fogão e dizê-los exilados das mesas e dos

paladares, ah! isto, por todos os santos do Céu, protesto, protesto, protesto.

(CASCUDO, 2000, p. 19)

Esse ―esquecimento‖ a manteve longe da ―Modernidade‖ e a técnica de preparo hoje

ainda guarda essencialmente o que foi aprendido e desenvolvido pelos povos tradicionais: um

trabalho complexo, extenuante e longo. Esses modos de compartilhar seriam no conceito de

DaMatta (1997, p. 15) próprios de um país que vive, sente e respira ―o código da casa

(fundado na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no compadrio)‖ numa síntese (não

dialética, no sentido marxiano) e peculiar com o código da rua (baseado em leis universais,

numa burocracia antiga e profundamente ancorada entre nós, e num formalismo jurídico-legal

que chega às raias do absurdo) (loc. cit.), sob o diapasão da relação, da troca, do

compartilhamento, que ele conceitua como uma ―sociedade relacional‖: ―Isto é, um sistema

onde a conjugação tem razões que os termos que ela relaciona podem perfeitamente ignorar

(loc. cit.)‖.

Do mesmo modo e pela mesma lógica, os rituais permitem a sensação de uma

―volta‖ do tempo, porque prescrevem com nitidez e obsessão um lugar para cada

coisa, e então, o tempo fica congelado. Apesar de todas as mudanças por que o

mundo está passando, sabemos que, em um aniversário, vamos encontrar comidas e

doces, bebidas e refrigerantes, sorrisos abertos de recepção, roupas bem cuidadas,

casa arrumada e alarido (DAMATTA, 1997, p. 29)

Os pratos que nossas entrevistadas servem em aniversários, festas e confraternizações,

em datas como o Natal, compartilham à mesa no dia-a-dia ou nunca mais tiveram o prazer de

comer, despertam sensações de uma infância que, se não foi farta, foi intensa nas emoções e

generosa em afetos. Nossas mulheres não se guiam por receitas precisas, com medidas exatas

23

de quanto se mistura de ingredientes, mas pela experiência de ter visto, vivido e comido o que

suas mães, avós, tias, comadres, vizinhas, primas e conhecidas transformaram em receitas

para findar a fome e alimentar os sentidos. Nada de cadernos de receitas com suas caligrafias

desenhadas. Por motivos óbvios: o analfabetismo entre as mulheres do interior das camadas

populares, que foi em parte combatido com o Mobral, nos anos 70, não permitiu que

deixassem receitas escritas legadas por antepassados.

1.2 Uma teoria sobre o ato de comer: político, ético-estético, subjetivacional, cultural e

comunicacional

Todo mundo, em certa medida,

usufrui do prazer da mesa,

do vinho e do amor;

mas, nem todos o fazem como convém (ouch'hōs dei)

Aristóteles

Devorar o outro na política e na guerra simboliza, no primeiro caso, nos Estados

democráticos do século XXI, incorporar os valores e a cultura do outro4; e no segundo caso,

para muitas das tribos nativas do Brasil e região do século XVI, incorporar as virtudes do

inimigo em sua própria carne e descendência5. Um é visto, no campo social; e no outro, no

campo do material-corpóreo. Um exemplo recente de mediação cultural ―antropofágico-

canibalístico‖ – como processo comunicacional atravessado pela cultura – usado na política

foi a veiculação no noticiário de que o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump

postou na sua rede social ―fotos comendo tacos no dia 5 de Maio, feriado mexicano e dia em

4 ―Os latinos na contramão que votam em Trump‖. ―Ele tem se esforçado, ao seu modo, dizendo que ―ama os

mexicanos‖, e postou fotos comendo tacos no 5 de Maio, feriado mexicano e dia em que o país é mais

comemorado nos EUA‖. Acessado em 5 de junho de 2016. http://oglobo.globo.com/mundo/os-latinos-na-

contramao-que-votam-em-trump-19444776

5 Em geral - onde é normal -, o canibalismo ocorre no contexto da guerra. Não se trata de uma caçada por

comida: ao contrário, é um embate entre predadores rivais. O canibalismo não é realizado irresponsavelmente

nem pelos seus praticantes mais entusiastas [...] e às vezes comem-se apenas nacos simbólicos, na maioria das

vezes o coração. [...] entre os astecas , a ingestão da carne de um prisioneiro de guerra era uma forma de

adquirir sua coragem. FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2004-58

24

que o país é mais comemorado nos EUA‖6. Uma forma de angariar a simpatia da parcela

latina de eleitores americanos, que ele classificara como ―criminosos e estupradores‖. Teria

sido eficiente? A julgar pelas urnas, sim.

Da velha máxima ―você é o que você come‖ para o que Stengel (2014) sugeriu como

uma interrelação de herança e patrimônio alimentar sempre atualizada – em outras palavras,

você come o que se é, foi e virá a ser –, foi um longo caminho. Foucault (1998) mergulhou

nos gregos, sobretudo Aristóteles, para analisar o que julga ter sido esquecido pelos modernos

e contemporâneos: a relação da comida, da bebida, do sexo, do cuidado de si e seus usos para

aumentar a potência da vida humana, a felicidade (eudaimonia) e a ética. As técnicas de

alimentação, prática sexual, sono e exercícios que os gregos cultivavam – às vezes rigorosas e

com interdições que seguiam prescrições destinadas a gênero e geração –, eram para aumentar

a felicidade e a efetividade de suas existências. A dietética grega, a ―questão de regime,

visando regular uma atividade reconhecida como importante para a saúde‖ (FOUCAULT,

1998, p. 89), elencava o que um homem livre deveria ingerir, quando, quais as porções e

como fazê-lo. O pensamento para Aristóteles não era algo metafísico, isolado das práticas do

cotidiano. Ao contrário, Aristóteles se valeu do senso comum, a doxa, para extrair dali sua

ética.

O mais famoso discípulo de Sócrates examina o gênero de vida boa que seria dividido

entre a vida aprazível (dada ao desfrute dos prazeres sensíveis); um segundo gênero de vida

dedicado à política (propícia à construção do bom renome do cidadão livre e da cidade); e

aquele voltado à vida teorética (contemplativa das verdades universais e necessárias, a vida

dos filósofos). A discussão central de Aristóteles não especula sobre o gênero de vida

teorético, mas ao conjunto dos homens em sua vida cotidiana. Trata-se de um grau de saber

não do filósofo, mas do homem virtuoso, uma sabedoria prática que necessita da mediação da

prudência.

Para ele, é necessário ter sabedoria (sofia), prática que opere pela prudência

(phrónesis), entendida como virtude moral. Ele chama a atenção que as virtudes não dizem

respeito a uma natureza dada, nem à ausência dessa, mas ao intelecto e à prudência, atuando

na nossa capacidade deliberativa. O desenvolvimento da virtude não é natural, pois se assim o

fosse não envolveria o arbítrio. Há uma preocupação para o filósofo em evidenciar uma

empiricidade de sua filosofia.

6 ―Os latinos na contramão que votam em Trump‖, O Globo, editoria Internacional, página 43, 5 de junho de

2016

25

Diferentemente de Platão, que entendia o bem como universal e geral; Aristóteles

afirmava a particularidade do bem de cada ser: o bem se diz de diversas maneiras. Qual seria

o metron (a linha que separa o humano do divino), por exemplo, para o agir corajoso?

Aristóteles indica que se observe o agente para se chegar a uma avaliação. Seria o hábito (o

que é persistente ao longo do tempo) do agente que estabeleceria essa vinculação entre os

extremos: ―um por excesso e outro por falta‖ (ARISTÓTELES, p. 38). A noção de escolha

deliberada para o filósofo grego seria traduzida pela proiáresis (a capacidade da boa eleição).

Exemplificando: a mediania para a justiça seria dada pelo caminho do meio. A distância exata

entre a imprudência e a covardia seria o agir justo.

A virtude intelectual, por sua vez, teria origem na educação (vale sublinhar que

Aristóteles quer marcar seu embate com Sócrates, que afirma que o saber, o conhecimento da

―verdade‖ por si mesma, já promoveria a ascese). E essa, a educação, se desdobraria em Éthos

e Êthos. Ambas as noções são resultado da educação.

dois modos amplos de aprendizado (um, digamos, da razão que aprende com as

mãos, e, outro, o das mãos que seguem os comandos da razão - ou, dito outro modo,

que o aprendizado derivado do fazer mediante a experiência que instrui a razão e o

fazer derivado da razão que instrui e antecipa a experiência), o primeiro

corresponderia ao éthos, e, o segundo, ao êthos (SPINELLI, 2009)

O primeiro termo, o éthos (moral), seria entendido como um saber consuetudinário,

como hábito, costume, capaz de dar uma segunda natureza ao homem; e o segundo, êthos, se

vincularia à noção de caráter, o agir segundo uma resposta particular, ―natural‖, diante do

conjunto de valores socialmente compartilhados (a moral) para um fim determinado: uma

vida eudaimônica7, a saber, uma vida feliz é ética.

A ética (que demarca o bem propriamente humano, a atividade que melhor desenvolve

a capacidade lógica e a vida comum) assim difere-se da moral, mas ambos não são

dispensados para a vida social. Aristóteles não deduz os imperativos morais, eles são

expressos em linhas gerais, pois sua preocupação é com a aplicabilidade para a ação e não

para o conhecimento. O saber da ética trata da prática, diz da disposição da alma para a ação.

A ânima para Aristóteles tem a um só tempo como atividade (o princípio de seu movimento) e

como fim (teleologia) uma vida feliz.

7 Grosso modo, seria a felicidade duradoura, assentada nos valores dados pela educação, subjetiva e ao longo da

vida, que se contraporia à hedônica, a felicidade imediata, que se relaciona com algo exterior)

26

Retomemos Foucault (2004) que nos lembra que, antes de Aristóteles, Platão e

Hipócrates já dedicariam obras levantando usos rotineiros da comida, do sono, do sexo e dos

exercícios.

O domínio que um regime convenientemente refletido deve cobrir é definido por

uma lista que, com o tempo, assumiu um valor quase canônino. É a que se encontra

no IV livro das Epidemias; ela compreende: ―os exercícios (ponoi), os alimentos

(sitia), as bebibas (pota), os sonos (hupnoi), as relações sexuais (aphrodisia)‖ –

todas sendo coisas que devem ser ―medidas‖. A relação dietética desenvolveu essa

enumeração. [...]. O regime alimentar – comida e bebida – deve levar em conta a

natureza e a quantidade do que se absorve, o estado geral do corpo, o clima, as

atividades que se exerce.[...] Ao longo de todo o tempo, e a propósito de cada uma

das atividades do homem, o regime problematiza a relação com o corpo e

desenvolve um modo de viver cujas formas, escolhas e variáveis são determinadas

pelo cuidado com o corpo. Mas não é apenas o corpo que está em causa

(FOUCAULT, 2004, p 93).

Foucault resgata, assim, Hipócrates que afirmava que foi a técnica do cozimento que

separou a biós (vida propriamente humana) da zoé (vida biológica e geral). A ética, expressa a

partir de corpos e discursos – como se valora e a partir de que forma se valora as condições de

possibilidade do pensamento –, sempre se apresenta por uma estética (do grego aísthesis que

significa percepção, sensação). ―A cultura começou quando o que era cru foi cozido‖, reforça

Fernández-Armesto (2004, p. 24), sob a inspiração de Lévi-Strauss. Por meio do cozimento,

os homens se aproximavam da fogueira. ―O ato de cozinhar não é apenas uma forma de

preparar o alimento, mas também uma maneira de organizar a sociedade em torno de

refeições em conjunto e de horários de comer previsíveis‖ (loc. cit.). Desse estar junto,

comungar da proximidade do calor, surgiram práticas sociais, como o contar experiências,

repassar ensinamentos, criar ritos.

A partir de Parmênides e depois do século XVI, o mundo sensível divorciou-se do

mundo das ideias. O ordinário se torna apartado do extraordinário. Não mais uma unidade nas

multiplicidades. Nos estertores da civilização, de um mundo racionalista, a filosofia faria um

esforço para unir aquilo que jamais deveria ter se separado: o mundo, a physis (natureza), e a

vida cindidos da metafísica e da ideia. Pensar para os gregos, na Antiguidade, tinha um lugar

no corpo: as vísceras. Não há pensamento fora dos poros e da experiência. Do mesmo modo,

não há uma hierarquia entre ideia e corpo. Nesse sentido, tudo o que atravessa o corpo não

pode ser indiferente ao pensamento.

De certa forma, Maffesoli (1998, p. 189) retoma essa herança clássica – ―dietéticas,

cuidados do corpo e da alma, etc., cujos efeitos na realidade social não se pode mais negar‖ –

e faz do vitalismo sua ferramenta para pensar o mundo e os entes, a cultura, os valores, as

27

práticas, os afetos, as identificações, a memória, o cotidiano, a cultura material. Vitalismo que

comunga fragmentos da sociabilidade, do efêmero e do múltiplo.

As Ciências e os diversos campos do saber se debruçaram sobre a questão do ser por

séculos. De algo fixo, estático, essencial, metafísico, transcendental até o seu contrário, ou

seja, movente, inconstante, físico, imanente, empírico e experiencial, foram séculos de

debates e embates. De substrato indispensável à existência biológica à rota de desvio à

necessária virtude humana, a comida já subiu aos céus e desceu ao inferno. Nietzsche dedicou

textos ao corpo, à carne, aos sentidos, aos prazeres, à comida e à embriaguez, aproximando-se

do racionalista Spinoza (2009), que inaugurou na Filosofia a ideia de um Deus mundano,

ligado a tudo o que é existente, parte da realidade e pertencente também a este mundo. E cujo

afeto é pura alegria. Alegria como afeto criador, que faz sonhar e imaginar. E essa potência e

capacidade de imaginar mundos possíveis é meio caminho andado na busca e na luta por eles.

[...] quanto maior é a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição a que

passamos, isto é, tanto mais necessariamente participamos da natureza divina.

Assim, servir-se das coisas, e com elas deleitar-se o quanto possível (não,

certamente, à exaustão, pois isso não é deleitar-se), é próprio do homem sábio. O

que quero dizer é que é próprio do homem sábio recompor-se e reanimar-se

moderadamente com bebidas e refeições agradáveis, assim como todos podem se

servir, sem nenhum prejuízo alheio, dos perfumes, do atrativo das plantas

verdejantes, das roupas, da música, dos jogos esportivos, do teatro, e coisas do

gênero. Pois o corpo humano é composto de muitas partes, de natureza diferente,

que precisam, continuamente, de novo e variado reforço, para que o corpo inteiro

seja, uniformemente, capaz de tudo o que possa se seguir de sua natureza e, como

conseqüência, para que a mente também seja, uniformemente, capaz de

compreender, simultaneamente, muitas coisas. Esta norma de vida está, assim,

perfeitamente de acordo tanto com nossos princípios, quanto com a prática comum.

Por isso, este modo de vida, se é que existem outros, é o melhor e deve ser

recomendado por todos os meios. (SPINOZA, 2009, p. 94).

Nesse sentido – o que faz da alegria e tudo aquilo que possa potencializar nossa ação

no mundo, como a boa comida e as bebidas ―agradáveis‖, coisas próprias da existência e

essência de Deus entendido aqui como a própria Natureza –, Nietzsche e Spinoza inspiram

Maffesoli (1998), que concebe as experiências como constitutivas e constituintes do ser e do

indivíduo no mundo.

Em suma, o sensível não é apenas um momento que se poderia ou deveria superar,

no quadro de um saber que progressivamente se depura. É preciso considerá-lo

como elemento central no ato de conhecimento [...] O que aqui se diz sobre a alma

individual pode, sem dificuldade, ser extrapolado para a alma do mundo, para a alma

de uma comunidade. As raízes de um ser, e as de uma comunidade, são uma mistura

de passado, presente e futuro, mas não podem ser compreendidas de um modo

externo; é preciso ir buscar sua lógica no próprio interior das mesmas, sob pena de

28

obter uma visão abstrata desencarnada e, de cada vez, superficial. (MAFFESOLI,

1998, P. 63)

Razão e sensibilidade são partes indissociáveis da compreensão de um sujeito social,

posto em ação no mundo. Esse sujeito que não pode ser isolado de seu grupo, que se alimenta

e se afirma a partir de um Outro. Falar em Outro implica falar de identificações. Cozinhar é

ação irremediavelmente misturada à cultura, menos pela transformação bioquímica do cru em

cozido, e mais pelo potencial de ato organizador da sociedade, como indica Fernández-

Armesto (2004). É por reunir espacial e temporalmente indivíduos em torno de refeições que

eles puderam compartilhar experiências.

Quando Le Breton (2006, p. 277) afirma que ―a cozinha permanece como o último

traço da fidelidade às raízes, quando tudo o mais desaparece‖, ele se refere às migrações

nacionais e internacionais de causas diversas, mas com efeito semelhante em quem se

desloca: mesmo que hibridizando a nova cultura, o migrante mantém com seu patrimônio

alimentar um elo forte. Uma herança do passado que se estabelece em ininterrupto processo e

mediação com o presente e que marcará o futuro: é assim que a cozinha alimenta duplamente

indivíduos, restituindo suas forças e imprimindo marcas simbólicas e de identificação. Um

ponto de vista compartilhado por Stengel (2014, p. 26 e 29), que acredita que a tradição

culinária sela o inextricável binômio memória-patrimônio.

Importa reabilitar, no seu imaginário, o prazer culinário cotidiano em casa [...]. Reter

a memória gastronômica de seus avós e também nossa, nos reconecta com uma via

alimentar digna de uma art de vivre. Enfim, numa sociedade mundializada, o olhar

sobre seu patrimônio alimentar é uma valorização de sua origem por meio de

produtos de origem. O produto de origem quer dizer do terroir, um savoir-faire

artesanal, valores culturais, identidades locais.8

Contudo, a tradição serve como uma paleta de cores primárias, a partir da qual criamos

novas cores secundárias, novos tons e meios-tons, sentidos, percepções. Como exemplificou

Hall (2003, p. 74):

Tradição funciona, em geral, menos como doutrina do que como repertórios de

significados. Cada vez mais, os indivíduos recorrem a esses vínculos e estruturas nas

quais se inscrevem para dar sentido ao mundo, sem serem rigorosamente atados a

eles em cada detalhe de sua existência.

8 Il importe de réhabiliter, dans votre imaginaire, le plaisir culinaire quotidien à la maison [...] Puisse la mémoire

gastronomique de vos aïeux et de vous-même vous rétablir sur une voie alimentaire digne d‘um art de vivre.

[...] Enfin, dans une société mondialisée, le regard sur son patrimoine alimentaire est une valorisation pour le

compte de ses origines à travers les produits d‘origine. Quid it ―produit d‘origine‖ dit terroir, savoir-faire

artesanal, valeurs culturelles, identities locales. (p. 26 e 29 tradução nossa).

29

Hall (2003) e Stengel (2014) reforçam assim que identificação é algo que se ancora no

passado, se atualiza no presente, passível de recriação simbólica, algo transmitido de geração

a geração. É processo, diz de relações criadas temporalmente, no grupo. Comer, cozinhar e

celebrar são partes da cultura e da comunicação que fornecem significados à vida. E esses

significados estão sempre se ressignificando com o indivíduo e o grupo. Onfray (1999, p. 167)

também vislumbra na mesa essa celebração entre vida, cultura, vitalismo, ética e estética:

O comedor é o contrário do homem que reza e homenageia as divindades do ideal

ascético. O bebedor também. Ambos fazem dos líquidos e dos sólidos ingeríveis

ocasiões de refazer as forças enfraquecidas, conservar uma máquina que depende de

um materialismo singular, sem dúvida, mas que também é motivo de uma relação

estetizada com o mundo. Provar com o conjunto de nosso corpo é viver plena e

totalmente. Fazer funcionar a consciência, a cultura e a inteligência sobre um

momento gastronômico é contribuir de maneira fragmentária para fazer da nossa

vida uma obra de arte e mesclar ética e estética, arte e existência.

Esse amálgama entre o saber fazer, cultura, imaginário, cotidianidade, memória e arte

de viver ganhou relevância e foco nas produções da mídia de massa nos últimos 20 anos, no

Brasil, seguindo um movimento global. A comida como elo de identificação serve como

dispositivo para aproximar diferentes, mascarar assujeitamentos, atenuar conflitos de classe,

de gênero, de geração. A comida como uma gramática cultural, comunicacional, social pode

inclusive funcionar, grosso modo, como arma política.

Um exemplo corriqueiro na mídia hegemônica é a reportagem em que candidatos a

cargos legislativos são acompanhados em périplos pela periferia ou por centros urbanos para

fazer um corpo a corpo regado a algum lanche ou almoço. O pastel virou símbolo de lanche

do povo a tal ponto que são inúmeras fotos e memes nas redes sociais que mostram políticos

brasileiros (Eduardo Suplicy, Marcelo Freixo, Dilma Rousseff, Alexandre Padilha, Geraldo

Alckmin, Aécio Neves, Gleisi Hoffmann, Gilberto Kassab, Paulo Maluf, Fernando Haddad,

Gabriel Chalita) comendo, com prazer ou repulsa, o salgado, durante a campanha eleitoral.

Mas esse escambo alimentício por votos vem de tempos remotos no Brasil agrário. ―É

tradicional a refeição oferecida aos eleitores pelos chefes correligionários do interior. Vindos

das prioridades, povoações, fazendas, engenhos, os eleitores merecem ser alimentados. Daí a

frase antiga: Sem pirão/Não há eleição‖ (CASCUDO, 2004, p. 104).

Esse uso, o de esgrimir um símbolo que representaria uma ligação com o popular – no

sentido de cultura comum, da maioria, como descreveu Martín-Barbero9 –, é onde se encontra

9 BARCELLOS, Claudia. Diálogos Midiológicos – 6. Comunicação e mediações Culturais. Revista Brasileira

de Ciências da Comunicação. Vol. XXIII, nº 1, jan/jun de 2000. p. 151-163.

30

a comida regional brasileira: no meio de uma disputa simbólica porque também sobre ela se

intui uma disputa midiática pelas identificações. Diga-me com quem, quando, onde e como

comes e te direis quem és ou gostaria de parecer ser. A

nutrição/veganismo/comensalidade/dietética/comida e toda sorte de movimentos sociais e

outras instâncias do cotidiano – como as bandeiras dos ambientalistas, dos defensores do uso

de combustíveis de fontes renováveis, do empreendedorismo, dos direitos humanos dos

animais – são mobilizados pela mídia por meio dos afetos para deslocar o grande

enfrentamento que é a exclusão promovida pelo capitalismo cognitivo: ―somos o sujeito

obediente que se submete a todas as formas de invasão biométrica e de vigilância‖ (CRARY,

2016, p 68).

Nunca a comida ganhou tanta atenção na mídia nacional. Por meio da comida ganha-

se, entre tantas coisas, o corpo dos sonhos e se mantém a doença a léguas: essa é a grande

bandeira do individualismo meritocrático. De reality shows a programas de culinária, de

revistas especializadas a livros, de comida de rua a restaurantes estrelados, ingredientes e

pratos comuns e regionais ganharam visibilidade, novos significados, interpretações e técnicas

de preparo. Mas queremos nos dedicar ao uso da comida como resistência, como aquilo que

cimenta afetos de socialidade e laços de pertença.

Cabe aqui delimitar o conceito de identificação e identidade a partir de Maffesoli, em

que encontramos similaridades com as discussões sobre subjetivação de Hall (2000). Para o

sociólogo, há uma ―origem‖ comum – seja linguística, territorial, valorativa ou de ideal –

compartilhada, mas instável, em falta, impermanente, mutável, pois é um processo nunca

completado: ―Embora tenha suas condições determinada de existência, o que inclui os

recursos materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é [...] alojada na

contingência. Uma vez assegurada, ela não anulará a diferença‖ (HALL, 2000, p. 106).

Conceito que encontra eco com a ideia de Maffesoli, que vê na identidade uma marca da

Modernidade, vista como uma entidade monolítica, atada a instituições como trabalho,

família, religião. O que se contrapõe a esse bloco imóvel ligado à racionalidade da ciência

seria a identificação, um estágio que se encontra a meio caminho dessa identidade fossilizada

e individualista da modernidade e a cambiante e anti-individualista dos novos tempos tribais

da pós-modernidade (para Hall, modernidade tardia; para Sodré, contemporaneidade; para

Crary e Harvey, capitalismo tardio; para Bauman, modernidade líquida). Identificação como

performatividade, que possibilitada à pessoa humana dispor de várias ―máscaras‖, de acordo

com o aqui e agora. Uma identificação submetida, então, ao espaço e ao tempo imediato.

31

A esse novo emergente da lógica da identificação, Maffesoli (1996) associa à pessoa

humana. Esse devir ―identificante‖ possibilita à pessoa humana vestir e despir várias

―identidades‖ ao longo das experiências vividas. ―O eu é apenas uma ilusão ou, antes, uma

busca um pouco iniciática; não é nunca dado, definitivamente, mas conta-se

progressivamente, sem que haja, para ser exato, unidade de suas diversas expressões‖

(MAFFESOLI, 1996, p. 303). De uma mãe de família preocupada com seu labor reprodutivo

e de cuidados com a prole à trabalhadora precarizada ou empreendedora dona de um bufê de

comida típica nordestina à voluntária religiosa que participa de encontros de apoio aos

vizinhos na Favela, a pós-modernidade acolhe esses diversos ―sujeitos‖ e suas máscaras.

Se a comunicação – ―no senso lato do termo ―comunicar‖, isto é, coabitar e

intercambiar, coexistir e circular, coabitar e falar, coabitar e vender e comprar‖ (FOUCAULT,

2008, p. 453) – é a ação de pôr em comum tudo aquilo que não deve permanecer isolado,

encontramos nessas dinâmicas do território o lugar por excelência desses processos de

socialidade, de estar-junto, como energia vital, maffesoliano: ―à socialidade correspondem a

solidariedade orgânica, a dimensão simbólica (comunicação), o não lógico, a preocupação

com o presente‖ (2009, p. 100). Sendo assim, a identificação é uma tensão entre o cultural –

como expressão de códigos, sistemas, valores que interpretam, organizam, dão sentido a

ações, regulam a conduta de si para si e para o outro, comunica e dá significado subjetivo ao

agir humano – e a resposta (consciente ou inconsciente) de coincidir ou não com significados

dados e identificar-se com eles.

1.2.1 A contribuição alimentar do dono da terra

A cultura alimentar brasileira é tão diversa e híbrida quanto ritos, sotaques, religiões,

crenças e mitos das culturas regionais podem indicar. E é fruto de embates, lutas, tensões,

trocas, escambos entre os elementos étnicos que compõem nossa sociedade. Aos clássicos

grupos étnicos que constituíram o amálgama dos brasis, o invasor português, as tribos

indígenas e os escravos africanos, se somaram ao longo dos séculos as contribuições de

imigrantes distribuídos ao longo dos séculos, em vários fluxos migratórios, impulsionados

sobretudo pelas duas Grandes Guerras. Mas no ocuparemos a título de estudos dos três

grupos primordiais.

32

Para nos aproximarmos do universo da comida nordestina mais detidamente,

propomos um exercício de tirar a poeira dos povos originários, que no nosso entender,

sofreram o mais intenso processo de apagamento de sua influência na nossa mesa e que legou

a predileção para os insumos autóctones, que estão na base do movimento de revaloração dos

pratos regionais brasileiros. Por isso, começamos este tópico pelos mitos que estão presentes

em inúmeros grupamentos brasileiros originários em narrativas semelhantes no que diz

respeito à descoberta do fogo como elemento que introduz a civilização.

Segundo Lévi-Strauss (2004, p. 89), é recorrente a ideia de que a ―culinária é

concebida pelo pensamento indígena como uma mediação [...] entre o céu e a terra, a vida e a

morte, a natureza e a sociedade‖. Há variações no mito de descoberta do fogo entre tribos do

grupo Jê (kayapó-gorotire, kayapó-kubenkranken, apinayé, timbira, krahô e xerente).

Nas mitologias indígenas, o homem não conhecia o fogo, comendo a carne repartida

em tiras e postas a secar ao sol sobre pedras. É por meio do jaguar, que domina a técnica da

combustão da madeira, que os homens aprendem a fazer carne assada ou moqueada (uma

espécie de grelha feita de varas de madeiras, em que tribos assavam, em geral, peixe, em seu

próprio suco embrulhado em folhas verdes), colocando fogo à madeira podre. Nos mitos dos

povos originários, os sentidos embasam códigos10

: os chamados códigos sensíveis. Essas

estruturas dão conta de representações, discursos, narrativas, comportamentos, gêneros de

vida; e cada tribo elege o seu, que por sua vez podem ser combinados entre si e a outros.

São operadores que permitem exprimir o isomorfismo de todos os sistemas de

oposições relativos aos sentidos, e, portanto, colocar como um todo um grupo de

equivalências que associa a vida e a morte, a alimentação vegetal e o canibalismo, a

podridão e a imputrescibilidade, a moleza e a dureza, o silêncio e o ruído. (LÉVI-

STRAUSS, 2004, p. 184).

Os tukuna (também conhecidos como ticuna), por exemplo, dão especial valor ao

código culinário (gustativo). As bebidas fermentadas, sobretudo, pois fazem parte de seus

rituais. A cerveja (beberagem que está entre o estado de fermentação e podridão), por

exemplo, está ligada à imortalidade. De fato, a culinária para os indígenas é central no sistema

simbólico.

Começamos assim, a compreender o lugar realmente essencial que cabe à culinária

na filosofia indígena: ela não marca apenas a passagem da natureza à cultura; por ela

e através dela, a condição humana se define com todos os seus atributos, inclusive

10

Convencionamos chamar de armação um conjunto de propriedades que se mantêm invariantes em dois ou

mais mitos; códigos, o sistema das funções atribuídas por cada mito a essas propriedades; mensagem, o

conteúdo de um mito determinado. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.233).

33

aqueles que – como a mortalidade – podem parecer os mais indiscutivelmente

naturais. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 197).

A alimentação indígena pode ser compreendida em três categorias: agricultura, caça e

canibalismo (esse praticamente foi abolido com a interação com o colonizador). Alguns

desses mitos fundadores dão conta do surgimento de hortaliças e frutas que passaram a ser

cultivadas (milho, batata, abóbora, banana, batata-doce) e a fazer parte da alimentação como

acompanhamento da carne em lugar da madeira podre, servida como um legume. Cascudo

(2004), em sua obra, nos lembra que o elemento indígena está presente quando a cada vez

num bar de qualquer cidade do país se come um peixe com farofa (feita à base da farinha de

mandioca). E é deste mundo imaginado tão real que funda mundos que parte do que é

brasileiro tem uma importante parte.

Acerca desta influência, desta contribuição do indígena na constituição da dieta e da

cozinha do brasileiro, escreveu o Prof. Nélson de Senna, em seu trabalho ―A

Influência do índio em Linguagem Brasileira‖ — 1946, as seguintes palavras: ―A

mesa brasileira recebeu a contribuição alimentar do aipim, da batata-doce, da

batatinha, do cará, da carimã, da caratinga, do caruru, do mangarito, da taioba, do

jerimum, do mandumbim, da castanha-do-pará, do mel-da-jataí, da mobuca e da

uruçu, da pacova, da mandioca, das espigas de milho verde [...] assado, do

churrasco, do mingau, da paçoca, da mixira e dos molhos, picantes do tacacá e

tucupi, com o ardor das pimentas cumari e murupi; o processo da conserva da carne

no moquém; as variadas e deliciosas muquecas de pescado; o nutritivo pirão de

farinha-de-mandioca; pipocas-de-milho, as fritadas-de-siris, o casquinho-de-muçuã,

os ovos-de-tracajá, as postas de pirarucu (verdadeiro bacalhau amazônico), os

lambaris fritos, as peixadas famosas do tambaqui e do tucunaré, e do piau e do

surubim, do jaú e das tainhas, das traíras e dos mandis, das piabas e da piracanjuba,

das finíssimas iguarias da garoupa e do bijupirá, todos eles guisados em molhos e

caldos apimentados — sem esquecermos ainda: a paçoca de ―carne de vento‖,

socada no pilão; a macaxera ou aipim; os beijus de farinha de mandioca torrada [...]

Dos seus processos culinários poucos se fixaram no panorama da cozinha regional,

afora o preparo da pamonha, da canjica de milho, do beiju, da farinha de mandioca e

da paçoca. (CASTRO, 1984, p. 129-130).

A mandioca, raiz de origem amazônica, que os invasores portugueses conheceram em

sua chegada, passou a fazer parte de nossa cesta básica, de Norte a Sul, e resiste até hoje. A

farinha é o símbolo do que une, dá liga àquilo que está apartado. A mandioca, essa raiz

brasileiríssima, torrada e reduzida a grãos minúsculos é capaz de juntar aquilo que era

culturalmente separado: da banana vinda da Índia, ao toucinho da Ásia, dos ovos das galinhas

europeias, ela amalgama tudo. Não à toa, é ingrediente presente nas mesas das nossas cinco

migrantes da Favela de Ramos, seja como pirão ou como farofa.

Daí, também, por que temos sempre que usar a farinha de mandioca em sua forma

simples ou como farofa em todas as refeições. De fato, a farinha serve como cimento

a ligar todos os pratos e todas as comidas. [...] Mas é importante acentuar que a

comida misturada é uma espécie de imagem perfeita da própria situação que ela

34

mesma engendra e ajuda a saborear. E isso é desses traços mais importantes a

transformar o ato de comer num gesto brasileiro. (DAMATTA, 1986, p. 42).

Para nossas mulheres diaspóricas, ainda que popular, há ocasiões para se consumir a

farinha. Como base do bolinho de feijão, também conhecido como capitão, essa iguaria

moldada com as mãos e que dispensa os talheres, é reservada para a intimidade doméstica das

refeições, e mais comum para alimentar as crianças. “Ainda faço bolinho de feijão com

farinha, mas encosto a porta para não verem”; “Eu não tenho vergonha”, foram frases ditas

por uma jovem migrante e a neta carioca de outra, durante um almoço comunitário na capela

de Nossa Senhora Aparecida, na Favela de Ramos, quando fomos acompanhar o trabalho das

voluntárias do Grupo União, ligado à pastoral dos Vicentinos, em dezembro. A prática, ainda

que prazerosa, foi revelada quase como a confissão de algo pouco recomendado aos ouvidos

de estranhos a esse ethos. São costumes que uma vez ―deslocados‖ do Nordeste para o Sul são

percebidos como ―impróprios‖, pouco ―civilizados‖ por nossas entrevistadas.

1.2.2 A contribuição alimentar do invasor europeu

Ao patrimônio dos povos originários, o invasor europeu agregou a sua própria

herança. E a mescla e os intercâmbios nunca cessaram desde que aqui aportaram. Cascudo

(2004) lembra que, quando aqui chegou, o europeu se viu mobilizado por diversas emoções e

julgamentos de valor. Não só a variedade de espécies vegetais (frutas, legumes, verduras),

animais (peixes, animais de caça e víveres) bebidas e técnicas de cozimento, mas a

abundância era digna de nota nas muitas correspondências enviadas à Corte. Tornou-se lugar

comum a associação entre o Novo Mundo e o Paraíso, com grande dose de pecado carnal e

gula.

As emoções arrebatavam o conquistador que descrevia em pormenor as técnicas

usadas pelos nativos. As trocas alimentares foram de parte a parte (indígenas e europeus) e

suscitaram repulsa, prazer ou nojo. Os tupinambás rejeitaram pão, peixe, mel, figos e vinho

tinto oferecidos pelos navegantes, que introduziram, entre outros legados, o trigo, o azeite, o

bacalhau e presuntos. Numa tentativa de manter os sabores da terrinha nos Trópicos, os

portugueses foram pródigos na importação de itens e na aclimatação de espécies vegetais e

animais: figos, laranjas, limas, limão, melão, arroz, alface, coentro, agrião, poejo, chicória,

35

ovinos, bovinos, galináceos, suínos. Todos tão familiares hoje que não se consegue admitir

que são ―estrangeiros‖.

As dinâmicas do gosto eram, em geral, conduzidas pelo invasor, nota Dória (2009, p.

38-39), que em seus deslocamentos marítimos entre os continentes imprimiu fortes trocas

entre os povos da África até as Américas e a Europa. ―Cabe aos portugueses a primazia no

tratamento das influências formadoras da nossa culinária, visto que foram eles a colocar em

contato as várias tradições e a fixar boa parte daquelas que viajaram através do tempo‖

(DÓRIA, 2009, p. 32-33).

A culinária da Península Ibérica, com suas carnes de porco, borregos e carneiros, em

geral, cabritos e galinhas, cozidos, refogados, assados, ou empanados em pastelões

(o que hoje chamamos ―tortas‖), foi a nossa herança primordial. [...] Num sentido

diverso, ao se embrenhar nos sertões, os colonizadores necessitaram ajustar a dieta

ao que a terra oferecia, substituindo ingredientes por similitude e adicionando-os ao

pouco que se importava. O resultado foi uma culinária em que avultavam os clados e

cozidos, aos quais se acrescentava o pão ou o seu substituto – a mandioca ou ―pão

da terra‖ –, que deu origem aos pirões e vatapás, estes numa clara adaptação das

açordas e migas; ou os ensopados e guisados, que originaram a culinária dos nossos

molhos e moquecas, bem distintas da tradição dos molhos franceses (DÓRIA, 2009,

p. 35-36).

Mas como campo de disputas desigual e ininterrupto, o ―subalterno‖ pode surpreender.

Vejamos o caso da mandioca, que era denominada ―pão da terra‖ e inhame pelos portugueses.

Passados séculos, o que se fixou de Norte a Sul do país foi a denominação de origem indígena

da Manihot utilíssima e suas variantes regionais: mandioca, aipim e macaxeira.

1.2.3 A contribuição alimentar dos africanos

As pesquisas e obras sobre o patrimônio alimentar dos escravos africanos, como

atestaram os historiadores Câmara Cascudo e, mais recentemente, Soares Carneiro (2003),

ainda estão longe de se esgotar. As trocas e hibridizações alimentares, que já se davam entre o

Brasil e a África por meio do agente europeu que levava itens das duas regiões por meio do

comércio marítimo, ganharam reforços com o tráfico negreiro. No Brasil, a herança indígena

permaneceu como resistência – ainda que não associada aos povos originários de forma

evidenciada – já incorporada no cotidiano das cidades em todas as regiões, sobretudo nas

festas religiosas: a tapioca, a canjica, a pamonha, a pipoca, a paçoca (carne assada e pilada

misturada com farinha):

36

a moqueca indígena, o arabu (gemas de ovos de tartaruga ou tracajá e farinha), o

mujanguê (semelhante ao arabu, mas na consistência de mingau) e o paxicá (picado

de fígado de tartaruga com sal, limão e pimenta malagueta). Como herança também

ficou o método de cozinhar indígena, a mixira, pelo qual se corta em pedaços o

peixe ou a carne, colocando-os em um vasilhame que em seguida é tapado, e

cozinhando-os em fogo brando. (CAVALCANTE, 2014, p. 12).

Nossa preferência pelas comidas com consistência entre o cozido e a papa e misturas

entre o sólido e o líquido (arroz com feijão, baião de dois, mugunzá), deve-se justamente a

essas permutas amerabas e africanas.

Do mesmo modo, será preciso indicar como é que nós, brasileiros, sempre

privilegiamos comidas nacionais e preferimos sempre os alimentos cozidos. Do

cozido à peixada e à feijoada, Da farofa ao pirão e aos molhos, guisados e mexidos,

às dobradinhas e papas. Parece que temos especial predileção pelo alimento que fica

entre o líquido e sólido, evitando – nessas grandes refeições onde se celebram as

amizades – o assado, alimente que não permite a mistura. [...] Assim, entre o sólido

[...] e o líquido, preferimos uma forma intermediária. [...] E o cozido e a feijoada

certamente realizam isso de modo perfeito, junto com a moqueca e a peixada, onde

também se pode reunir de tudo [...]. Mas também é claro que essa preferência denota

uma forma evidente de escolha [...]. Temos, então, uma culinária relacional. [...]

Temos, então, na nossa cozinha, na nossa comida e no nosso modo de comer, uma

obsessão pelo código culinário relacional e intermediário, Um código marcado pela

ligação. (DAMATTA, 1986, p. 42-43).

E continuamos com permutas e hibridizações históricas. O coco (de origem asiática e

base da comida ritualística, como o efó) também recebeu sua tradução culinária pelas

cozinheiras africanas e suas descendentes. ―Na cozinha nordestina, o coco entra numa

infinidade de manjares, tendo sido seu uso ampliado grandemente pelo negro, em tal

proporção que [...] deve ser considerado um ingrediente típico da chamada cozinha baiana,

mais que o próprio azeite-de-dendê e a pimenta.‖ (CASTRO, 1984, p. 150). O essencial

mungunzá, servido no café e no ajantarado das casas nordestinas até hoje, deve seu nome ao

quimbundo mukunza, que significa milho cozido. Nos demais estados, ganhou o nome de

canjica e está presente nos ritos cristãos como prato típico dos festejos juninos.

Na África, as tribos locais já haviam se deliciado com o amendoim, o feijão fradinho

(item básico das comidas de santo, como o abará, o acarajé, omolocum), a mandioca, todos

vindos do Novo Mundo. Para Cascudo (2004), tal inusitada aceitação deveu-se ao ganho em

escala agrícola, mas também à memória gustativa, já que o inhame, o sorgo e o mancarra

africanos se assemelhariam à mandioca, ao milho e ao amendoim brasileiros. Outras dádivas

foram recebidas pelos africanos da América, como abacaxi, mamão, batata. Do grande

continente africano vieram e se aclimataram como se nossos fossem o caruru, o quiabo, os

vários tipos de inhame, a erva-doce, o gengibre, o gergelim, o jiló.

37

Como povo de tradição agrícola, de tipo de agricultura de sustentação, o negro

reagia contra a monocultura de forma mais produtiva do que o índio.

Desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas seu roçadinho de

mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho. Sujando aqui, acolá, o verde

monótono dos canaviais com manchas diferentes de outras culturas. Benditas

manchas salvadoras da monotonia alimentar da região. (CASTRO, 1984, p. 132).

A assimilação do onipresente azeite de dendê dos ricos pratos baianos e de devoção

aos orixás, conta Cascudo (2004), foi ato de resistência das negras e escravos, que ―impunham

o azeite-de-dendê como a cozinheira portuguesa lançava o azeite doce, óleo de oliva de

Portugal‖ (CASTRO, 1984, p. 224). Da mesma forma aconteceu com a pimenta malagueta,

outra contribuição às mesas de Norte a Sul do país.

As tradicionais plantas aromáticas européias – açafrão, tomilho, manjerona, louro,

segurelha, anis, coentro e alho –, usadas desde a Grécia e Roma, juntaram-se com as

especiarias asiáticas: pimenta-do-reino, canela, cravo, noz-moscada, cardamomo e

gengibre, e com as pimentas americanas e africanas, especialmente as Capsicum,

para constituírem e difundirem um arsenal mundial dos estimulantes do gosto

(CARNEIRO, 2003, p 54).

Todos esses escambos foram reforçados com a comida ritualística das religiões de

matriz africana. Itens como a banana – fruta asiática, onipresente em todas as casas brasileiras

desde o século XVI – e o amendoim – originário da América Central, fez um deslocamento

até a África Ocidental, onde se tornou alimento básico – foram trazidos pelos escravos e

aclimatados no Brasil até virarem insumos básicos das comidas de santo, como o vatapá e o

caruru.

Tais agentes da mestiçagem, piratas ou navegadores, missionários ou escravos,

cumpriram o papel de difusores de produtos e de hábitos globais, realizando a

primeira fusão planetária de todos os continentes. Os barcos de Vasco da Gama e de

Fernando de Magalhães abriram uma era de unificação global, de ―desencravamento

planetário‖. Pela primeira vez todos os povos da Terra entravam em contato abrindo

um intercâmbio generalizado dos gêneros de todos os continentes. (CARNEIRO,

2003, p. 57).

No entanto, ressalta Cascudo (2004), a própria comida de santo – fora a presença dos

africanos quiabo, dendê e coco, este vindo da Índia via África Ocidental – é

predominantemente resultado da hibridização a partir de insumos autóctones. E que

eventualmente foram levados para a África por escravos libertos, sendo então incorporadas

como locais nos ritos e na culinária do dia-a-dia.

38

O antropólogo lança uma provocação: o ―culto jejê-nago explicaria sozinho a

conservação dos pratos afro-baianos?‖ (CASCUDO, 2004, p. 836). Para ele, a religiosidade

não bastou para explicar a resistência e longevidade dessas receitas até nossos dias e de forma

tão marcada no imaginário nacional como uma das culinárias ―genuinamente brasileiras‖. A

ação das mulheres, das escravas negras, cuja função na cozinha sempre foi ―indispensável e

regular‖, segundo ele, seria a razão primeira da permanência desse patrimônio alimentar.

Compete-lhe, como à mulher indígena, os mesmos labores culinários e os mesmos

segredos do bom gosto. No cativeiro continuaria a tarefa milenar, para o marido e

filhos. Depois para o senhor, aprendendo com as amas portuguesas e suplantando-as

pela diversidade dos temperos que soube manejar. A cozinheira negra seria a

defensora inicial e poderosa da culinária africana, avançando insensivelmente na

divulgação dos seus quitutes agora modificados pelos elementos surpreendentes da

flora indígena e formulário da tradição portuguesa. (CASCUDO, 2004, p. 837)

Câmara Cascudo resgata assim a escrava negra de sua invisibilidade aproximando-se

de Certeau (1999, p. 158, tradução nossa):

A este nível de invisibilidade social, a este grau de não reconhecimento cultural,

correspondeu por um longo tempo e ainda corresponde, como por direito, um lugar

para as mulheres [...] Trabalhos sem término visível, nunca capazes de receber um

toque final. [...] como todas as ações humanas, essas tarefas femininas são um sinal

da ordem cultural [...] cada operadora pode criar um estilo próprio, desde que

acentue esse elemento na prática, dedique-se a um outro, invente uma maneira

pessoal [...] Fazer a comida é o suporte de uma prática elementar, humilde,

obstinada, repetida no tempo e no espaço, enraizada no tecido das relações com os

outros e consigo mesma, marcada pela ―novela familiar‖ e pela história de cada uma,

em solidariedade tanto com memórias da infância, bem como com os ritmos e as

estações.11

Apesar da presença massiva nas mesas de todas as classes, o desconhecimento da

origem desses insumos, seus introdutores e suas técnicas de preparo mobilizam o que

Foucault (2006) anunciou: saber é poder, no que foi seguido por Maffesoli (1998, p. 117): ―O

saber, direta ou indiretamente, se torna poder‖. As trocas e rearranjos na cozinha evidenciam a

potência do elemento negro na nossa mesa, mas o apagamento dessas origens tem a ver com o

assujeitamento dessas culturas ditas subalternas pelo invasor, mas cuja resistência cultural se

11

En este nivel de invisibilidad social, a este grado de no reconocimiento cultural, correspondió desde hace

mucho y corresponde todavía, como por derecho, un lugar para las mujeres [...] Trabajos sin término visible,

nunca susceptibles de recibir un último toque.[...] como todo el actuar humano, estas labores femeninas son

muestra del orden cultural [...] cada operadora puede crearse un estilo proprio, según acentúe tal elemento en

la práctica, se dedique a tal otra, invente una manera personal [...] Hacer-la-comida es el sostén de una práctica

elemental, humilde, obstinada, repetida en el tiempo y en ele espacio, arraigada en tejido de las relaciones con

los otros y consigo misma, marcada por la ―novela familiar‖ y la historia de cada una, solidaria tanto con los

recuerdos de infancia como con los ritmos y las estaciones.

39

manteve ativa, sobretudo no Recôncavo Baiano, e permanece entre nós, longe da passividade

e imobilismo que se apregoa no senso comum.

A interferência do negro no sentido de melhorar o padrão de nutrição do Nordeste

fez-se sentir ainda, mais do que no campo da produção em escala econômica, através

da introdução feliz de certas plantas africanas e do uso de certos processos culinários

que se mostraram excelentes no aproveitamento dos recursos alimentares da região.

É a contribuição da cozinha africana, dos processos culinários desenvolvidos pelas

cozinheiras negras do Nordeste, principalmente do recôncavo da Bahia, dando lugar

à hoje tão famosa cozinha baiana. Famosa não somente pela excelência dos seus

temperos, pelo sabor dos seus quitutes, mas também, como demonstraremos mais

adiante, pelos corretivos que as suas criações culinárias encerram, capazes de

entravar o aparecimento de várias avitaminoses a que estariam irremediavelmente

expostas as populações locais, pelo uso dos alimentos preparados exclusivamente à

maneira européia. (CASTRO, 1984, p. 134).

Retomamos o senso comum como um saber que se funda e atua a partir do corpo .

isto é, um saber enraizado. De um saber, igualmente, que integra o pathos, aquilo

que M. Weber chama de emocional ou afetual, próprio à comunidade. O senso

comum está fundado aí. Ele põe em jogo, de modo global, os cinco sentidos do

humano, sem hierarquizá-los, e sem submetê-los à preeminência do espírito. É a

koiné aisthesis da filosofia grega, que, por um lado, fazia repousar o equilíbrio de

cada um sobre a união do corpo e do espírito, e, por outro, fazia depender o

conhecimento da comunidade em seu conjunto. (MAFFESOLI, 1998, p. 161).

Corpo aqui entendido como imbricado na ação de conhecer, apreender o mundo e as

experiências sensitivamente. Corpo individual e coletivo de uma comunidade.

1.2.4 Comida como serviço de marcação

Aprendi já adulta que grande parte dos doces do Nordeste é herança árabe. A coisa

mais linda de se ver nos dias de quentura das férias escolares na infância era Teresa de Amália

fazer alfininho (também conhecido como alfenim, que é composto de ―uma palavra persa

panid, passando pelo árabe Alfanidh, de onde chegou ao português como Alfenid‖12

) para

mim, para minhas irmãs e suas sobrinhas. Teresa tomava a massa amarelo-dourada, ainda

quente, e em movimentos ritmados de puxa-encolhe, a enchia de ar. À medida que esfriava,

em rotações que lembravam o oito do infinito, a fita se esbranquiçava e se estriava, linda de

12

Disponível em: <https://www.emporiopernambucano.com/single-post/2017/10/21/ALFENIM-O-DOCE-DAS-

MIL-E-UMA-NOITES-E-OUTRAS-HIST%C3%93RIAS>. Acesso em: 23 out 2017.

40

viver. Açúcar cheio de afeto, de história, de tradição, de memórias. A cana-de-açúcar,

cultivada pelos árabes, foi introduzida nos Açores durante a invasão moura na Península

Ibérica, no século VIII. De lá, chegou ao Brasil, onde, de insumo restrito à nobreza, foi

incorporado nos festejos religiosos e das classes baixas no Brasil.

A pirâmide alimentar determina, além dos nutrientes, as diferenças entre estratos

sociais, em todas as épocas e em grande parte das civilizações. O sal já serviu como

pagamento de trabalhadores, de onde vem a palavra salário. Como destaca Fernández-

Armesto (2004, p. 161), a comida sempre funcionou como um selo de classe, ―uma medida de

categoria social – um significador de classe. Isso ocorreu bem cedo. Nunca houve uma idade

de ouro da igualdade na História da humanidade‖.

A comida, assim como outros bens, ajuda a fazer o serviço de marcação (DOUGLAS,

2006), aquilo que delimita a inclusão ou exclusão social, baliza seu pertencimento a um

determinado grupo e determina os ciclos da vida – do que é ordinário, cotidiano, do que é

extraordinário, excepcional. ―A história do gosto é uma das facetas de uma história que é a do

cotidiano, mas também de profundas estruturas sociais e ideológicas‖, sublinha Carneiro

(2003, p. 84). Como explica Fournier (2009), um exemplo é o consumo do peru, ave nativa

das Américas, criada pelos ameríndios, que acabou associada a um hábito da elite, no Brasil; e

do frango europeu, que veio com os portugueses, e que, juntamente com a farofa, é uma

referência de cardápio de domingo nas mesas das classes média e populares.

1.2.5 Comida popular e hibridismo cultural

No Brasil, a comida serve e serviu como um elo de aproximação mais do que de

distinção, ainda que conflitos tenham sido diluídos, a tensão existe. A mutabilidade é

princípio norteador das relações.

Como verdadeiras comunhões onde o encontro transforma as pessoas nele engajadas

porque faz com que todos participem de uma mesma substância comum, o prato

comido ou a pessoa amada [...] Mesa que congrega liberdade, respeito e satisfação.

Momento que permite orquestrar todas as diferenças e cancelar as mais drásticas

oposições. Na mesa, realmente, e através da comida comum, comungamos uns com

os outros num ato festivo e certamente sagrado. Ato que celebra as nossas relações

mais que nossas individualidades. (DaMATTA, 1986, p 42)

41

Um fenômeno complexo, a comensalidade mostra a resistência dos excluídos, da ralé,

por meio do gosto e da comida, em que as diferenças sociais acabam elas mesmas por

introduzir esse Outro subalterno. Um exemplo é a comida que as mulheres pobres preparam

para alimentar os filhos e as filhas da elite. Suas refeições são as mesmas que ela prepararia

em sua casa. Esse ato banal contempla essa proxemia alimentar.

Tanto a nordestinidade quanto a brasilidade são narrativas ancoradas em mitos,

comunidades imaginadas (HALL, 2006, p. 51), que se pretendem imutáveis. A nordestinidade

como representação, ideia de ser nordestino, um conjunto de símbolos, discursos, ritos, uma

forma de criar sentido e significados subordinada à cultura nacional, um dispositivo, ―teto

político‖ mais amplo, ―homogêneo‖ e ordenador, como considera Hall (2006, p. 49). Mas, na

verdade, são decorrências de processos históricos – ou como diria Foucault, um dispositivo de

poder que obriga a dizer e cala o que não interessa ao opressor –, sujeitas a atualizações,

construções, reconstruções, apropriações tanto pelas igualdades e diferenças internas e

ininterruptas de seus membros. É o vínculo entre pessoas no cotidiano e num determinado

local (virtual ou que cimenta esse pertencimento recíproco) mais que qualquer cultura

nacional imaginada que cria a noção de pertença.

Nesse hibridismo cultural, os empréstimos se ajustam aos gostos dos novos cultores e

das novas gerações. Como propõe García Canclini (2005, p. 49, tradução nossa): ―Assim, a

tensão entre o que é próprio e o que é alheio, não isolado, configura as cenas de identificação

e ação. Neste sentido, proponho considerar também a interculturalidade como patrimônio‖13

.

Assim pratos nordestinos, atualmente, estão no centro dessa ciranda de símbolos e

reapropriações mesclados aos afetos e imaginário subjetivos e da memória nacional. Cabe

aqui distinguir o que entendemos como classe popular, para isso nos aproximamos do

conceito de Jessé Souza (2009, p. 122):

o aspecto mais central e mais importante, por isso mesmo o mais reprimido e

obscurecido pela visão superficial e enganosa dominante, é a ―invisibilidade‖ social,

analítica e política do que chamamos provocativamente de ―ralé‖ estrutural

brasileira. Essa é a classe, que compõe cerca de 1/3 da população brasileira que está

abaixo dos princípios de dignidade e expressivismo, condenada a ser, portanto,

apenas ―corpo‖ mal pago e explorado, e por conta disso é objetivamente desprezada

e não reconhecida por todas as outras classes que compõem nossa sociedade [...] É

apenas por serem percebidos como meros ―corpos‖, numa sociedade que valoriza a

disciplina e o autocontrole acima de tudo, é que essa classe desprezada é vista como

tendencialmente perigosa e como assunto da ―polícia‖, e não da ―política‖.

13

Así, la tensión entre lo propio y lo ajeno, no lo propio aislado, configura las escenas de identificación y

actuación. En este sentido, propongo considerar también la interculturalidad como patrimonio.

42

Souza usa indistintamente em sua obra classes despossuídas, populares, pobres ou ralé.

Essa classe que come tapiocas, beijus, carne-seca, farinhas, polvilhos, abarás, xinxins,

moquecas. Cantos de sereia nas barracas de comida de rua, nas mesas de domingo do quintal

da periferia e que nos últimos 15 anos viraram bases de versões ―gourmetizadas‖ de chefs

estrelados. Esse processo é parte das mediações comunicativas da cultura (MARTÍN-

BARBERO, 2002), produzidas pela migração e interações sociais diárias, em que o grande

deslocamento de pessoas no planeta acelera as trocas.

Longe de estar na marginalidade, o popular é hoje um espaço pressionado,

atravessado pelos processos e pela lógica de um mercado econômico e simbólico em

que a padronização de produtos e a uniformização de gestos requer uma luta

constante contra a entropia; uma renovação periódica dos padrões de diferenciação.

E, assim como o vazio de raízes que o homem urbano sofre é preenchido pela

presença na privacidade doméstica de objetos que evocam ―a profundidade do

passado‖, assim a busca e produção comercial de diferenças vão penetrar no mundo

do popular ―transformando o étnico no típico‖. Operação em que também está

presente o Estado ao transformar artesanato ou danças, a comida ou ritmos musicais

em ―patrimônio nacional‖, isto é, ao exaltá-los como um capital cultural comum

com o qual fazer frente à rápida fragmentação social e política desses países.

Deslocado do seu espaço cultural, o popular retornou aos seus produtores através de

fragmentos integrados em tipicidades nacionais, em formas de conduta padronizada

ou necessidades de objetos industriais sem os quais a vida das comunidades já é

impossível, transformada em veículo de desagregação entre objetos e usos, entre

tempos e práticas. (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 138-139, tradução nossa).14

Essa entronização da comida do pobre, que representa um ideário de valores e

símbolos identificados como nacionais, é um fenômeno de mundialização, que Ortiz (2004, p.

39) definiu como o viés cultural do processo de globalização econômico, mas que se diz de

modos diferentes em cada território: ―enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens, sem o

que seria uma expressão abstrata das relações sociais‖.

Se ―um‖ Nordeste ainda está vinculado no imaginário, na grande mídia e mesmo entre

acadêmicos brasileiros ao estigma do que há de inferior, pobre e escasso, segundo denuncia

14

Lejos de ser en la marginalidad, lo popular constituye hoy un espacio presionado, atravesado por los procesos

y las lógicas de un mercado económico y simbólico en el que la estandarización de los productos y la

uniformación de los gestos exige una constante lucha contra la entropía; una renovación periódica de los

patrones de diferenciación. Y del mismo modo que el vacío de raíces que sufre el hombre de ciudad es

rellenado por la presencia en la intimidad doméstica de objetos que convoquen "la profundidad del pasado", así

la búsqueda y producción mercantil de diferencias va a penetrar en el mundo de lo popular "convirtiendo lo

étnico en lo típico"35. Operación en la que se hace presente también el Estado al convertir las artesanías o las

danzas, la comida o los ritmos musicales en ―patrimonio nacional‖, esto es al exaltarlos como capital cultural

común con el que hacer frente a la acelerada fragmentación social y política de estos países. Dislocado de su

espacio cultural lo popular es retornado a sus productores a través de fragmentos integrados en tipicidades de

lo nacional, en formas de conducta estandarizadas o necesidades de objetos industriales sin los cuales la vida

de las comunidades es ya imposible, convertido en vehículo de desagregación entre objetos y usos, entre

tiempos y prácticas.

43

Souza15

, paradoxalmente é na comida que a exuberância desse ―Nordeste imaginado‖ se

destaca. Esse movimento também é percebido em outros países. Fluxos migratórios,

impulsionados pelo avanço das novas tecnologias e da crise do capital em meados dos anos

80, embaralharam fronteiras e promoveram o deslocamento de grupos intra e transnacionais e,

por conseguinte, intercâmbios culturais na chave que García Canclini (2004, p. 14-15,

tradução nossa) denominou interculturalidade.

De um mundo multicultural – a justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou

nação – passamos para outro intercultural globalizado. Em relação às concepções

multiculturais é admitida a diversidade das culturas, sublinhando a sua diferença e

propondo políticas relativistas de respeito, que muitas vezes reforçam a segregação.

Em contrapartida, a interculturalidade refere-se ao confronto e ao emaranhamento,

ao que acontece quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos

implicam dois modos de produção do social: a multiculturalidade implica a

aceitação do heterogêneo; a interculturalidade implica que os diferentes são o que

são nos relacionamentos de negociação, conflito e empréstimos recíprocos.16

Em grandes capitais como Londres17

, Berlim18

, Buenos Aires19

e São Paulo20

, é cada

vez mais comum restaurantes que servem comida de rua cingalesa, africana, indiana, síria por

estrangeiros recém-chegados ou da primeira geração de nativos e comida comercializada por

migrantes/imigrantes, que reinterpretam e hibridizam sua herança culinária a partir de

insumos locais.

15

O nordestino ―arcaico‖ de Almeida é percebido como o tipo ideal do ―preguiçoso‖, ―conservador‖, ―machista‖

e, ao fim e ao cabo, do ―tolo‖ culpado do próprio destino trágico. Na verdade, não é o ―nordestino‖ que está em

jogo aqui, mas a ―ralé‖ e a classe baixa brasileira apenas sobrerrepresentada no Nordeste (GARCÍA

CANCLINI, 2004, p. 80).

16

De un mundo multicultural - yuxtaposición de etnias o grupos en una ciudad o nación - pasamos a otro

intercultural globalizado. Bajo concepciones multiculturales se admite la diversidad de culturas, subrayando su

diferencia y proponiendo políticas relativitas de respeto que a menudo refuerzan la segregación, En cambio,

interculturalidad remite a la confrontación y el entrelazamiento, a lo que sucede cuando los grupos entran en

relaciones e intercambios. Ambos términos implican dos modos de producción de lo social: multiculturalidad

supone aceptación de lo heterogéneo; interculturalidad implica que los diferentes son lo que son en relaciones

de negociación, conflicto y préstamos recíprocos. (GARCÍA CANCLINI, 2004, p. 14-15).

17

Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2016/oct/23/unskilled-migrants-done-for-britain-

immigration-brexit>. Acesso em: outubro de 2017.

18

Disponível em: <http://www.aljazeera.com/indepth/features/2016/02/syrian-berlin-refugee-tour-city-

160211132536180.html>. Acesso em: outubro de 2017.

19

Disponível em: <https://www.clarin.com/viva/inmigracion-india-sorprende-Buenos-

Aires_0_VJeJgWQnx.html>. Acesso em: outubro de 2017.

20

Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/9-coisas-para-aprender-com-imigrantes-e-refugiados-em-

sp/>. Acesso em: outubro de 2017.

44

A constituição dos Estados nacionais acompanhou-se da uniformização de uma

língua nacional, assim como da construção ideológica de uma ―identidade nacional‖,

no interior da qual assume imensa relevância a idéia de uma ―cozinha nacional‖, que

deveria superar, por vezes integrando e por vezes isolando, os particularismos

regionais. Não é coincidência que os estudos sobre ―alimentações nacionais‖ surjam

na Europa do século XIX, momento de consolidação das nações européias, e no

segundo pós-guerra na América Latina, também um momento de afirmação nacional

no continente. (CARNEIRO, 2003, p 88).

Nas panelas, o que vem ―do interior do mato, da caatinga, do roçado‖21

revela a

resistência das identidades híbridas, das culturas regionais nordestinas e a complexidade desse

processo de mundialização: a comida ancestral, tradicional – mas nunca imutável – da

periferia, das favelas, do Sertão e do litoral nordestino, e que se reatualiza no cotidiano,

conquistou defensores em chefs de cozinha com reputação mundial, como os brasileiros Alex

Atala, Teresa Corção, Morena Leite, Kátia Barbosa, que a identificam como parte

indissociável da alma do nosso país e de valorização de um modo de ser do brasileiro.

De fato, as relações de poder são relações de força, de enfrentamentos, portanto,

sempre reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e

cuja dominação seja incontornável. Com frequência se disse – os críticos me

dirigiram esta censura – que, para mim, ao colocar o poder em toda parte, excluo

qualquer possibilidade de resistência, Mas é o contrário! Quero dizer que as relações

de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante, abrem a possibilidade a

uma resistência, e é porque há possibilidade de resistência e resistência real que o

poder daquele que domina tenta se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia

quanto maior for a resistência. (FOUCAULT, 2006, p 232).

Há muito as práticas e festas do Nordeste já fazem parte da paisagem carioca. Basta ir

a qualquer feira de bairro, da Zona Norte à Zona Sul, e não apenas à Feira de São Cristóvão,

para comer uma tapioca com coco. Da mesma forma, o queijo do Sertão, o coalho, e a

manteiga de garrafa já são comercializados nos supermercados do estado. Nos anos 90, os

chamados forrós pé-de-serra eram programas comuns entre os jovens da Zona Sul. Desde os

anos 2000, as festas juninas saíram dos pátios de igrejas e escolas para ganhar espaços

públicos e tomar ruas de bairros e clubes em comemorações que duram até agosto.

Segundo a reportagem ―Consumo de tapioca pode impulsionar a produção brasileira

de mandioca‖22

, em abril de 2016, o consumo da goma de tapioca cresceu rapidamente na

região Sudeste, impulsionada pela demanda de uma dieta livre de glúten: ―São 755 mil

toneladas em 2015, o maior volume já produzido no Brasil‖. Alimentos e bebidas são mais

21

Lamento sertanejo, Gilberto Gil e Dominguinhos, 1973. 22

Disponível em: <http://www.costdrivers.com.br/costdrivers/noticias/2016/4/consumo-de-tapioca-pode-

impulsionar-a-producao-brasileira-de-mandioca-200022/>. Acesso em: out 2017.

45

que nutrientes, também fazem parte de festejos e rituais, desencarnados ou encarnados,

mortais e imortais celebram a vida e a morte, saciam a sede e a fome. Comida e bebida fazem

parte de um código social, que mediam as relações culturais e aportam marcações de

valoração subjetiva/grupal.

A comensalidade – que segundo a pesquisadora da Fiocruz Denise Oliveira e Silva23

seria o padrão alimentar, o que e como se come, e que revela a estrutura da vida cotidiana e

um sistema simbólico de códigos sociais que operam nas relações sociais e com a natureza –

é, assim como a cultura e as subjetivações, constituída duplamente de uma parte fixa, ligada à

tradição, estruturante, em que as transformações são mais lentas; e outra movente, mais

contingente e circunstancial, de transformações mais rápidas, mas ambas estão em constante

negociação e jogo com as variáveis sociais.

Para além das favelas, a comida nordestina na capital fluminense construiu para si

territórios de resistência também em feiras livres, subúrbio, periferia e na vida cotidiana de

migrantes e seus descendentes. Mas a sua assimilação nas mesas dos ―nativos‖ se deveu a

diversos fatores, alguns mais recentes. Um deles foi o da associação de pratos regionais e das

classes pobres, sobretudo sertanejos, como a tapioca, com a valorização de uma certa tradição

de brasilidade.

Seja na comida de rua seja em restaurantes renomados, em que chefs reconstroem com

técnicas centenárias uma cozinha de autor à base de ingredientes comuns, essa cozinha ―de

raiz‖ (que também se aplicaria à comida típica feita em Minas Gerais, Pará, Amazonas,

Bahia) ganha novo status de ―gourmet‖ e de ―glamour‖. No restaurante Lasai24

, do chef Rafa

Costa e Silva, no Rio de Janeiro, e no D.O.M, do chef Alex Atala, em São Paulo, dois

endereços nobres das duas maiores capitais do país, o menu oferece invenções com

ingredientes ―tradicionais‖. O binômio tradição e criação é uma constante nesse nicho da alta

gastronomia, num movimento que já vem acontecendo há décadas na Europa.

O próprio espaço onde se cozinha e se consome a comida ganha projeção inédita. O

comércio e os projetos arquitetônicos, feiras de decoração, revistas especializadas, livros,

redes sociais e a mídia dão ênfase a esses espaços domésticos antes oculto aos olhos externos.

Essa domesticidade e publicização da intimidade e do consumo de experiências daquilo que é

23

GAMEIRO, Nathália. O que é comensalidade? Ideias na Mesa, Brasília, 23 de abril de 2013. Disponível em:

<https://www.ideiasnamesa.unb.br/index.php?r=noticia/view&id=107>. Acesso em: jul 2016. 24

No menu do Lasai, lê-se "Esta é a experiência onde vamos apresentar nossos produtores. Você conhecerá

nossas hortas e viajará pelo Rio de Janeiro e Brasil. Trabalhamos essencualmente com pequenos produtores,

agricultura familiar e produtos próprios". O menu que muda semanalmente, seguindo a oferta da estação e dos

fornecedores, incluía em outubro de 2014: chip crocante de aipim com aïoli e beterraba, brandade de beijupirá,

tapioca com rabada prensada, creme de inhame com leite de coco, gema mole de ovo caipira, flor de sal e chip

de carne seca desidratada e trio de queijos artesanais brasileiros, com doce de laranja e banana.

46

preparado, ingerido e bebido também é um marcador do que se quer projetar, uma marca

distintiva do grupo. E passam por revisões a partir do lugar de onde se fala: seja o saber

médico, nutricional, seja o de lugar de especialista, o chef de cozinha, seja o do mercado que

elege sazonalmente insumos da estação como moda. Esses limites e classificações de estratos

sociais a partir do gosto são dinâmicos. O que era de preferência ―popular‖ ou ―de elite‖ se

alternam seja no tempo e no espaço. E muitas vezes são consumidos indiscriminadamente,

como o prato-fetiche do país: a feijoada.

A historiadora Michelle Perrot ao entrevistar Foucault (1979) atesta como essas

relações domésticas fazem parte dos cenários das relações sociais do indivíduo e não são

menos importantes do que as travadas globalmente no terreno da política internacional:

―Dever-se-ia escrever uma história dos espaços – que seria ao mesmo tempo uma história dos

poderes, desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat‖

(FOUCAULT, 1979, p. 212).

Um fenômeno local com ressonância global, numa era cada vez mais marcada pelas

imigrações. O fator gênero soma aqui sua força de criação. ―A mulher, tanto a cozinheira

quanto a chef de cozinha, cada vez tem mais poder na restauração gastronômica‖ 25

, declarou

o chef de cozinha espanhol Ferrán Adriá.

O autóctone como um estilo é um sentimento de conexão com o próprio contexto

geográfico e cultural e com sua tradição culinária. A comunhão com a natureza

enriquece essa relação com o entorno. Produtos, ferramentas, técnicas e elaborações

de outras culturas gastronômicas populares são incorporados à restauração

gastronômica, com base na arte culinária francesa e no movimento tecnoemocional.

As cozinhas populares do mundo nunca foram uma inspiração tão importante para a

arte culinária no Ocidente26

(nossa tradução).

Essa estética do feminino, chamada por Maffesoli (1998) de ―invaginação‖,

―feminização‖ do mundo está para além do gênero. Marca o Zeitgeist da contemporaneidade.

Algo que é o contraponto à razão instrumental, nega o domínio da ciência que caracterizou a

modernidade. Esse ―reensalvejamento‖ apela aos sentidos, às sensibilidades, ao efêmero e que

convoca o Outro em celebrações ao aqui e agora, que agrega tudo que está em transformação,

25

―Lo autóctono como estilo es un sentimiento de vinculación con el propio contexto geográfico y cultural y con

su tradición culinaria. La comunión con la naturaleza enriquece esta relación con el entorno. Se incorporan

productos, herramientas, técnicas y elaboraciones de otras culturas gastronómicas populares a la restauración

gastronómica, basada en el arte culinario francés y el movimiento tecnoemocional. Las cocinas populares del

mundo nunca han sido una inspiración tan importante para el arte culinario en Occidente‖. Disponível em:

<http://www.lavanguardia.com/comer/opinion/20170805/43318545473/asi-cambio-la-

cocina.html?utm_campaign=botones_sociales&utm_source=facebook&utm_medium=social>. Acesso em:

julho de 2017.

26

idem

47

ao por vir, ao devir mutante. Um tempo presente, fluido, dionisíaco e tribal contra a rigidez

projetiva apolínea individual. ―Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a

experiência não mais o vincula a nós?‖ (BENJAMIN, 1987, p 115). A experiência (contato

entre o ser humano que cria e algum objeto cultural) é a tônica de toda vida social,

comunitária, compartilhada, o avesso da vivência, mais superficial, fugaz, isolada,

privatizada.

Algo que não tenha a brutalidade da razão instrumental, mas se contente com

acompanhar aquilo que cresce lentamente em função de uma razão interna (ratio

seminalis). É Ernst Jünger que diz que o homem, pela contemplação, destaca-se de

sua situação e eleva-se acima dela. Por conseguinte, acrescenta, a situação humana

se torna ―como a matéria de uma obra de arte‖. Pode-se extrapolar o proposto e

observar que, com efeito, a vida social em sua integralidade está imersa numa

atmosfera estética, é feita, antes de mais nada e cada vez mais, de emoções, de

sentimentos e de afetos compartilhados (MAFFESOLI, 1988, p. 116).

Nossa pesquisa quer a partir dessas coordenadas e fragmentos medir o pulso desse

fenômeno, aquele que amalgama afetos, memórias, deslocamentos, comida, identidades,

mediações culturais, mulheres e temperos, na Favela de Ramos, no bairro da Maré, Zona

Norte do Rio de Janeiro. Inspirada pelas palavras de Maffesoli (1988), nossa incursão tem a

ambição, ainda que sabedora de suas limitações, de colher as impressões, um instantâneo da

complexa vida vivida pelas cinco migrantes que tivemos a alegria de conviver durantes alguns

meses de 2017. ―O fato de descrever, enquanto tal, aquilo que é, não é de modo algum uma

abdicação do intelecto, mas uma simples mudança de perspectiva: trata-se de buscar a

significação de um fenômeno em vez de estar focalizado sobre a descoberta das explicações

causais‖ (MAFFESOLI, 1988, p. 119). Abrimos os nossos olhos para contar essa pequena

história. Ajustamos os sentidos para colher as impressões e traçar uma narrativa, a partir da

lógica interna dessa dinâmica, o ―como‖ da pós-modernidade, mais do que o ―por quê‖ da

modernidade, foi o nosso candeeiro. Esperamos inspirar mais e melhores polaroides

embebidas dessa ―razão sensível‖ (MAFFESOLI, 1988, p. 151).

48

2 QUANDO O NORDESTE VIRA MAR NO RIO DE JANEIRO

É decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a

cultura no lugar certo – não na ―alma‖ (como pensava a funesta

superstição dos sacerdotes e semi-sacerdotes): lugar certo é o corpo,

os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é consequência disso

Nietzsche, 2006, p. 47

A vinculação entre favela e Nordeste vem do início do século XX. Com a

implementação da política higienista de Pereira Passos, que destruiu os cortiços do Centro do

Rio, os moradores de baixa renda se deslocaram e ocuparam o Morro da Favella. Ali, deu-se o

encontro com as tropas vindas da incursão contra Antonio Conselheiro e seus seguidores, em

Canudos, na Bahia. Depois de um século e para fins de políticas urbanas, o governo do

município adotou o seguinte conceito de favela da lei complementar nº 111 de 1/2/2011, do

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro

(artigo 234):

área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação clandestina e de

baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias

estreitas e alinhamento irregular, ausência de parcelamento formal e vínculos de

propriedade e construções não licenciadas, em desacordo com os padrões legais

vigentes27

.

Para além da nomenclatura e de seus ricos arranjos sociais e culturais, a favela está

ainda associada à falta, precariedade e violência. Segundo o IBGE, o fluxo migratório do

Nordeste nunca cessou, apesar de ter se tornado menor nas últimas décadas. ―O Censo 2010

mostrou que 35,4% da população não residiam no município onde nasceram, sendo que

14,5% (26,3 milhões de pessoas) moravam em outro estado‖28

. O Rio de Janeiro é o segundo

estado a atrair a população vinda de outros estados, sendo a Bahia (3,1 milhões) o segundo

estado a ―exportar‖ ―residentes para outras unidades da federação‖.

27

Disponível em: <http://pcrj.maps.arcgis.com/apps/MapJournal/index.html?appid=4df92f92f1ef4d21

aa77892acb358540>. Acesso em: ago 2017.

28

Disponível em: <http://7a12.ibge.gov.br/vamos-conhecer-o-brasil/nosso-povo/migracao-e-

deslocamento.html>. Acesso em: ago 2017.

49

Segundo o anuário Valor 1000, publicado em 2012 10 das 1.000 Maiores Empresas,

no Brasil, 66,2% têm sede na Região Sudeste [...] Na Metrópole do Rio de Janeiro,

por sua vez, podem ser encontradas 87 sedes das maiores empresas do País, porém,

na periferia, localizam-se apenas oito e, no restante do estado, somente duas29

.

Ali, na antiga favela formada à beira da Praia de Maria Angu, antes conhecida como

Praia do Apicu, entre fins dos anos 40 e início dos anos 50 – a documentação oficial da

prefeitura afirma que a Favela de Ramos formou-se a partir de uma colônia de pescadores, em

1962, o que se choca com os relatos de moradores mais antigos – os modos de vida do

Nordeste se misturam e vão além do ―imaginário social da cidade, da associação entre favela,

tráfico de drogas, pobreza e violência, alimentada pelas recorrentes notícias e imagens

divulgadas nos meios de comunicação‖30

.

A Favela de Ramos, que faz parte do Complexo Parque Roquete Pinto, em 2017, segundo

moradores, vive momento de relativa tranquilidade, sob o domínio da milícia. “Aqui eles só

implicam com gente que entra com carro de vidro escuro. No mais, você anda tranquilo aqui,

diferente de outras favelas da Maré”, diz a paraibana MESC, dona da Pensão da Nana,

especializada em comida nordestina. A mesma avaliação de relativa tranquilidade é

corroborada por Carmen Lúcia, filha de HNA: “A milícia é quem toma conta, está tudo em

paz”.

A favela, que pertencia ao bairro de Ramos, na década de 50, desde 1988 faz parte do

bairro da Maré (criado oficialmente pela Lei nº 2119 de 19 de janeiro de 1994), um complexo

com 16 favelas, região disputada pelas facções do tráfico, cujos enfrentamentos com as forças

de segurança do Estado (Bope, PM, Força Nacional e Forças Armadas) vitimam a população

local. Em meio à precária presença das instituições do Estado (há ali, escola municipal, posto

policial, uma unidade da Fundação Leão XIII e um posto de saúde) e das numerosas

instituições religiosas (igreja católica e denominações neopentecostais, essa em número

crescente), os moradores estabelecem uma rede de auxílio mútuo. Além disso, a proximidade

espacial entre casas, pequenos edifícios desse ―emaranhado‖ urbanístico de ruas, vielas e

becos torna a dinâmica entre espaço público e privado uma fronteira de limites borrados. A

cozinha, a festa, o convívio mais próximo entre amigos pode se dar tanto à porta quanto nas

salas das casas de alvenaria.

29

Disponível em: <file:///C:/Users/USUARIO/Downloads/publicacao%20IBGE.pdf>. Acesso em: ago 2017.

30

MONTEIRO, Simone. Desvendando dinâmicas locais: o caso da favela Rio das Pedras. Physis, vol.14 nº: 2.

Rio de Janeiro July/Dec. 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312004000200012>.

Acesso em: 26 jul 2017.

50

A cidade do Rio de Janeiro é, há décadas, polo de atração de imigrantes e das classes

pobres dos estados do Nordeste por razões históricas. Deslocamento que se tornou mais

intenso no fim da Era Vargas, em 1945, formando, ao redor do Campo de São Cristóvão

(onde desembarcava grande contingente de trabalhadores braçais em busca de vagas na

construção civil), a Feira dos Nordestinos31

. Segundo o Censo de 2010, há no município

carioca 1.149.692 de residentes de origem nordestina, sendo 521.856 homens e 627.836

mulheres. Um dado que comprova a estatística diz respeito às gerações de nossas

entrevistadas: na casa de 80, 60, 50, 40 anos. Excetuando-se a de 85, que está aposentada,

todas as outras trabalham. ―A migração e as novas fontes e modos de trabalho trazem consigo

a hibridização das classes populares, uma nova forma de se fazerem presentes na cidade‖

(MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 221). A informalidade é o arranjo predominante: são

diaristas ou comerciárias, sem vínculo empregatício. Viúvas, casadas e solteiras, todas são

mães.

No começo do século XX, a aproximação da administração pública com a favela se

deu para gerar um conhecimento ferramental para gerir sua população. A prática, segundo

Valladares (2000, p. 7), que começou com profissionais da imprensa, engenheiros, médicos e

urbanistas, desaguou mais tarde nas métricas biopolíticas do Estado: ―A ciência a serviço da

racionalidade e da ordem urbana, da saúde do país e de sua população‖. Levariam ainda cinco

décadas até esses aglomerados urbanos cariocas ganharem um estudo mais rigoroso com o

inédito Censo das Favelas da Prefeitura do Distrito Federal e do Censo Demográfico,

realizado pela primeira vez em 1950. Ou seja, como objeto de pesquisa acadêmica, a favela

vira um novo locus primordial da representação da pobreza urbana, antes ocupado apenas

pelo cortiço.

A favela herdou do cortiço não só suas representações da miséria e fonte primária de

todos os males que ameaçavam a ordem social, urbana, saúde pública e moral, mas as

ampliou na contemporaneidade, ainda que avanços nas políticas públicas de bem-estar social

tenham promovido melhorias nas últimas décadas no Rio de Janeiro e no país. O migrante

31

―Data de 1945 o início dos primeiros movimentos que deram origem à Feira de São Cristóvão, ou Feira dos

Nordestinos, como é conhecida no Estado do Rio. Nesta época, retirantes nordestinos chagavam ao Campo de

São Cristóvão em caminhões, vindos para trabalhar na construção civil. A animada festa regada a muita música

e comida típica, gerada pelo encontro dos recém-chegados com parentes e conterrâneos, deu origem à Feira,

que permaneceu ao redor do Campo de São Cristóvão por 58 anos. Em 2003 o antigo pavilhão foi reformado

pela Prefeitura do Rio e transformado no Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Hoje, não

só nordestinos frequentam a Feira para matar saudades e resgatar um pouco de sua cultura, como também

cariocas e turistas de todo o país‖. Texto tirado do site da Nova Feira de São Cristóvão – Centro Municipal

Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Disponível em: <http://www.feiradesaocristovao.org.br/

#!histrico/cty2>. Acesso em: 7 de junho de 2016.

51

nordestino foi um de seus primeiros moradores assim como os escravos libertos. Desde que a

política higienista de Pereira Passos foi posta em marcha, no início do século XX, eliminando

os cortiços na região central da cidade, o que deu origem à favela, a parcela mais pobre dos

residentes têm sido alvo de reiteradas medidas de remoção, contenção, repressão e até

assimilação desde então.

As moradias na Favela de Ramos, até os anos 70, eram como o samba Chão de

estrelas, de Sílvio Caldas: ―porta do barraco era sem trinco. Mas a lua, furando o nosso

zinco‖. Segundo Valladares (1975), as primeiras edificações usaram material tirado do bota-

abaixo da Cabeça de Porco do Centro da cidade, no início dos anos 10, na administração de

Pereira Passos. O próprio prefeito deu a ideia de reúso das tábuas. Com o tempo, esse material

frágil e desgastado deu lugar à alvenaria. Mas as palafitas ainda existem e reforçam o

imaginário social que ainda representa as favelas com essa antiga base material. Basta ver a

iconografia que vingou nos meios de comunicação e produtos culturais de massa.

Na realidade, sempre houve uma tendência de repressão às favelas, como mostra

Parisse: ―A Cidade olha a favela como uma realização patológica, uma doença, uma

praga, um quisto, uma calamidade pública. Estas expressões encontram-se em todos

os jornais, sob a pena de jornalistas, professores, intelectuais, quer eles exprimam

sua hostilidade à favela, ou declarem seus bons sentimentos, suas boas intenções‖

(VALLADARES,1975, p. 22).

Por processos históricos e socioeconômicos, a favela se torna cada vez mais

verticalizada, compacta, feita de materiais mais perenes e agigantada – sobre a moradia de

nossas entrevistadas falaremos mais detidamente no capítulo ―Território, gestos e trens de

cozinha comunicam‖ – a suscitar ao mesmo tempo a desconfiança e interesses conflitantes,

com variadas aproximações, de diferentes segmentos urbanos. A tal ponto que o poder

instituído vive em literal pé de guerra. Uma estratégia biopolítica, como conceituou Foucault

(2000, p. 303-304).

Então, nessa tecnologia de Poder que tem como objeto e como objetivo a vida (e que

me parece um dos traços fundamentais da tecnologia do Poder desde o século XIX),

como vai se exercer o direito de matar e a função do assassínio [de Estado], se é

verdade que o Poder de soberania recua cada vez mais e que, ao contrário, avança

cada vez mais o bioPoder disciplinar ou regulamentador? /.../ Como esse Poder que

tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o

Poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no

bioPoder? E aí, creio eu, que intervém o racismo. [...] O que inseriu o racismo nos

mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse bioPoder. Foi nesse momento

que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do Poder, tal como se exerce

nos Estados modernos, e que faz com que quase não haja funcionamento moderno

do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não passe

pelo racismo.

52

O poder é anônimo. Não pertence a ninguém. Não sendo personificado, não se

encontra numa classe, num órgão de governo, nem em um tempo identificável, em algum

território ou grupo social. O poder se dá em relações, num fluxo ininterrupto, formando

diagramas dinâmicos, pois sua natureza está em constante reconfiguração. Forma, na verdade,

instantâneos, como as fotos de um mar revolto, cujas ondas sucessivas se repetem. E nessa

ação de repetição cria a diferença, refeita a cada instante. Um poder engendra necessariamente

uma resistência. Onde há poder, há resistência. Sobre essas estratégias de resistência,

falaremos mais detidamente no subcapítulo ―3.3 Nordestinas, faveladas e cozinheiras:

narrativas de resistência‖.

2.1 As migrantes da Praia de Maria Angu, uma colher de sopa de ocupação

Mesmo nas fontes oficiais de sites da prefeitura do Rio de Janeiro, as informações

sobre o surgimento e ocupação da Favela de Ramos são parcas e desencontradas. O

surgimento do bairro de Ramos acontece com a construção da Estação de Trem de Ramos que

pertence à Linha de Saracuruna da SuperVia do Rio de Janeiro, com mais de 130 anos (23 de

outubro de 1886)32

, e na qual circulam quase 1.500 pessoas por dia (dados de 2010). Com

forte tradição do samba, o bairro de classe média teve como frequentadores e moradores de

Pixinguinha a Villa-Lobos e de Zeca Pagodinho a Dicró. É sede do Bloco Cacique de Ramos

(1961), berço do grupo Fundo de Quintal; e da Imperatriz Leopoldinense33

.

A favela conhecida como Favela de Ramos surgiu como uma colônia de pescadores.

Sua praia é destaque da região e tem 0,7Km de extensão. Era muito frequentada até os anos

80, mas por conta da poluição, perdeu sua atratividade. Até que em dezembro de 2001, o

governo do estado, na gestão de Anthony Garotinho, inaugurou ali um lago artificial que teve

grande impacto na paisagem e na própria identificação do bairro em relação ao resto da

cidade, conhecido popularmente como Piscinão.

32

Disponível em: <http://pcrj.maps.arcgis.com/apps/MapJournal/index.html?appid=096ae1e5497145838

ca64191be66f3e3#>. Acesso em: jul 2017

33

Disponível em: <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?

bairro=Ramos&area=041&tipo=click; http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/cultura-popular-

carioca/2017/02/23/RAMOS-UM-LUGAR-IMPORTANTISSIMO-PARA-A-HISTORIA-DO-SAMBA-E-DA-

CULTURA-DO-SAMBA-DO-RIO.htm>. Acesso em: jul 2017

53

Em 1994, a favela foi incorporada a um novo bairro, o da Maré, que agrega outras

favelas da região, que se iniciaram quando da abertura da Avenida Brasil, nos anos 40:

Comunidade Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Conjunto Marcílio Dias, Comunidade

Parque Maré, Parque Roquete Pinto, Comunidade Parque Rubens Vaz, Parque União, Nova

Holanda, Praia de Ramos (formada a partir da antiga Praia de Maria Angu, população

estimada em quase 4 mil pessoas), Conjunto Esperança, Vila do João (Baixa do Sapateiro),

Vila do Pinheiro, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Nova Maré e Conjunto Novo Pinheiro

(Salsa e Merengue). Totalizando 129.770 habitantes (2010)34

.

Hilda Nascimento dos Anjos, Edileuza Ferreira de Paula, Maria Eliane Soares Correia,

Josefa da Conceição e Maria Letícia de Farias Silva chegaram à Favela de Ramos amparadas

por parentes que se anteciparam a elas e viabilizaram a reterritorialização, seja comprando

passagem de ônibus interurbanos seja recebendo-as nos primeiros meses no Rio de Janeiro em

suas casas. Três delas ainda trabalham como domésticas ou diaristas. MLFS ainda faz

trabalhos esporádicos como comerciária para o antigo patrão. E HNA se dedicou aos cuidados

de sua casa e grande prole e descendentes por toda a vida. Trajetória que ela, sempre

acompanhada de filhas, netos, vizinhos e agregados que ajudavam a puxar o fio da memória,

tem evidente prazer em lembrar. Como a da fundação da Feira Nordestina de São Cristóvão,

nos anos 50, que a matriarca e a filha Ana Lúcia contam ter surgido próximo à parada dos

ônibus que trazia migrantes para trabalhar na então capital federal (HNA: ―Foi meu irmão,

Aloísio do Nascimento, e mais João Gordo, Macaco e um que não lembro do nome que

abriram a feira, bem em frente à Rua José de Alencar, em São Cristóvão‖).

Nossas cinco migrantes paraibanas têm trajetórias com elementos comuns a muitas

outras mulheres que se aventuraram a sair de suas pequenas cidadezinhas e sítios. Cozinhar

receitas aprendidas com as mães e avós é também um elo que as aproxima, assim como a

origem daquilo que entrava nas panelas de barro e fogões a lenha. A infância e juventude

foram de dificuldades na alimentação. Com o sustento vindo do que a terra dava. Todas falam

de acompanhar e ajudar as mães na plantação e na pequena criação de animais, que garantiam

a subsistência da família. O que não vinha do roçado (a lista da colheita tinha abóbora, aipim,

maxixe, quiabo, inhame, guandu, feijão-de-corda, feijão verde ou seco, também conhecido

como fradinho ou macáçar) e das pequenas criações de víveres, caprinos, ovinos e raros

bovinos, tarefa feminina por excelência, era complementado por poucos itens comprados nas

feiras do fim de semana no centro urbano mais próximo. ―Ir à rua‖ é expressão lembrada por

34 Disponível em: <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm>. Acesso em: jul 2017.

54

algumas. O que poderia significar um deslocamento de quilômetros entre a casa e a rua

principal da cidade. Nessas feiras, as famílias se abasteciam daquilo que não produziam: óleo

de soja, arroz, carne de sol e charque, por exemplo.

Essas lembranças de plantar e criar o que se come, a relação de afeto criado com a terra

que é revolvida com mãos e ferramentas e onde se deita as mudas e sementes, num processo

que envolve potência de dar vida, é revelado em falas por elas com enorme nostalgia no

sentido dado por Huyssen (2014), um sentimento de falta que tem dupla dimensão: o que está

longe espacial e temporalmente e que está irremediavelmente inacessível. E confessam o

sonho de voltar a plantar e colher em planos que envolvem a aposentadoria e a possível volta

à terra natal. As comidas da casa de origem saem dos fogões em dias de festa. Como a

buchada de bode, um prato apreciado na região Nordeste, sobretudo no Sertão, que é feito de

miúdos de carneiro ou cabrito cozidos numa grande panela dentro de suas vísceras em

formato de trouxinha costurada e temperado com hortelã, pimenta-do-reino, cominho, alho,

sal, cebola e vinagre:

Buchada: panelada ou caldeirada de vísceras; na Bahia é comida usual no Sertão e

tem de particular o entrouchamento dos miúdos em bucho aberto e depois costurado,

segundo informa Sodré Viana; a buchada é feita de fato de carneiro ou de cabrito,

aferventado e lavado com sal e limão; à parte, aferventam sangue do mesmo animal

e em separado a cabeça de carneiro ou de cabrito; cada cousa é cozinhada em água

com muitos temperos [...]. A buchada de carneiro, segundo Leonardo Mota (no

tempo de Lampeão, p. 194), é prato regional muito estimado no Sertão de

Pernambuco. A buchada é feita para ser comida com porão de farinha de mandioca,

feito no caldo. (SAMPAIO, 1949, p. 200).

Além da buchada, farofa de cuscuz, galinha caipira, baião de dois compunham o menu

dos aniversários da casa de MESC. Na casa de EFP, a buchada, esse monumento

gastronômico, é servida em grandes confraternizações também: “Aprendi a cozinhar

(buchada) vendo minha mãe. Até agora quando fui à Paraíba, fizeram no aniversário da

minha cunhada. Eu não gosto nem do cheiro, mas a parentada apareceu para comer e

fizeram churrasco de cabrito, de porco, cabrito ensopado, assaram cabrito no forno. O povo

lá adora. Nada de cabrito eu gosto”.

São nas celebrações privadas, religiosas, das festas da ordem e ritos de reforço que a

tapioca com coco nordestina ganha uma versão acariocada. Aos ingredientes típicos são

acrescidos outros adaptados ao gosto das novas gerações (EFP: “Na festa junina fiz tapioca

com goiabada e leite condensado, com coco e com queijo coalho. Vendi tudo.”) e

comercializadas para arrecadar fundos para a capela de Nossa Senhora Aparecida, na Favela

de Ramos. Uma forma de recolocar o profano entre o sagrado, numa combinação que, como

55

frisou DaMatta (1986, p. 55), ―no caso brasileiro, todas as solenidades permitem ligar a casa,

a rua e outro mundo‖. Costume esse que vem de séculos e se confunde com o fausto dos

senhores de engenho em festejos públicos, quando era próprio e adequado exibir suas

riquezas. Como sublinhou Freyre (2013, p. 117): ―Ou mesmo comendo-os durante a

procissão, como era uso desde o século XVI. Flagelando-se, mas com açúcar na boca.

Em todas as casas pesquisadas, duas receitas e um ingrediente são quase soberanos nos

pratos e na preferência de migrantes e de seus filhos cariocas: o cuscuz, a tapioca e a farinha.

A pimenta também é condimento encontrado em todas: hábito, que segundo Cascudo (2004)

era comum a escravos africanos e aos povos originários nos fez mais fãs da iguaria do que os

vizinhos da América. O cuscuz à base de milho, presente de norte a sul no país, apreciado por

sua presença histórica nas mesas, mas também por sua versatilidade, podendo ser adaptado a

receitas para todas as refeições, do café da manhã ao jantar, doce ou salgado (MESC: ―Minha

filha só gosta de cuscuz de milharina e tapioca com ovo ou carne e manteiga‖; MLF: ―Todo

dia não faço, mas faço sempre cuscuz, compro uns dois pacotes por mês. Minha filha come‖).

A origem do cuscuz, segundo Cascudo (2004), tem inspiração nos povos berberes, da

África do Norte, há 12 séculos. A substituição do ingrediente básico da receita original, feita

de farinha de trigo, arroz, sorgo e milheto, pelo milho americano aconteceu com sua

irradiação pelo mundo no século XVI. Chegou ao Brasil via Portugal, onde era consumido

pelas classes populares, mas também era apreciado pelo rei D. João V. Aqui ganhou o

acréscimo do leite de coco. E num processo comum de trocas alimentares entre classes, aqui

no Brasil, virou ―comida de negros‖ (CASCUDO, 2004, p. 190). A milharina industrializada

ganhou formas e ingredientes em cada estado do país. Em São Paulo, o cuscuz paulista

aparece como pudim consistente misturado a ovos cozidos, legumes e temperos e sardinha

desfiada e camarões. Já em Minas Gerais, o camarão é substituído pelo frango ou linguiça.

A panela própria para fazer o cuscuz, o cuscuzeiro ou cuscuzeira, é item comum na

cozinha dessas migrantes na Favela – a literatura do século XVII fala de um modelo

português, originalmente feito de barro, inspirado num formato de chapéu, segundo Cascudo

(CASCUDO, 2004, p. 189), mas nas casas brasileiras a versão de alumínio, com

compartimento em que se armazena a água, separada por uma placa com orifícios, por onde

passa o vapor que vai cozinhar a massa de milho acima; é a mais comum (JC: ―Comprei a

cuscuzeira aqui, onde vende panela, a maioria daqui [dos moradores] é do Nordeste‖). E são

utensílios comuns nas biroscas que comercializam artigos e produtos típicos, na Favela de

Ramos e Parque União, onde o comércio nordestino é maior e mais diversificado.

56

A tapioca, que caiu no gosto do carioca com o fenômeno da dieta hipocalórica e inimiga

do glúten, é consumida com regularidade pelas nossas migrantes e suas famílias. A base, o

disco feito de goma de mandioca assada sobre chapa aquecida, no entanto, ganha como

recheio adaptações locais para agradar às novas gerações. Aos tradicionais sabores de

manteiga de garrafa, queijo coalho e coco ralado, somam-se a goiabada com leite condensado,

Nutella, frango, presunto, mozarela, leite em pó, canela, banana, chocolate, doce de leite,

calabresa.

Além desses pratos mais comuns e apreciados, também não faltam nessas datas de festa

o sarapatel, o baião de dois, a galinha caipira, para mais uma vez unir os desenraizados à sua

terra e lembranças, celebrar os laços comuns. O famoso capitão (mistura de feijão e farinha

de mandioca ou ainda feijão, arroz e farinha) com que as avós e mães alimentavam as crianças

pequenas era uma maneira de fazer das mãos a ferramenta para formatar bolinhos, quase um

brinquedo, que deixou saudades em HNA e JC desse rito tão infantil quanto amoroso,

apreciado apenas na intimidade da casa (JC: ―Minha mãe chamava esse bolinho que ela

amassava com a mão de capitão. Em casa da minha patroa, como de garfo e faca, em casa,

de colher. Vai mais comida na boca!‖).

Em outro âmbito, mais imperceptível, dos hábitos e costumes, a alimentação

também participa dessa revolução silenciosa que constitui o que foi chamado

―processo civilizatório‖, no qual as maneiras à mesa ocupam tão destacado papel. O

uso do garfo, a adoção do guardanapo, o prato como a base sob a qual se come

substituindo um pão redondo e chato são todos aspectos desses novos costumes,

assim como o uso de cadeiras e da mesa, que no Oriente e no mundo árabe não

conseguiu substituir o uso de comer ao nível do solo. (CARNEIRO, 2003, p. 56).

A horta caseira, segundo Cascudo (2004, p. 490) é tradição portuguesa, incorporada no

Brasil, e que ainda inspira o imaginário de todas as nossas migrantes que, ainda que não

queiram voltar à sua terra pela pouca oferta de trabalho, afirmam unanimemente as saudades

de cultivar seus temperos.

O sertanejo que repele a salada de alface, tomates e cebolas em estado natural, não

dispensa os verdes, que enfeitam, e os cheiros, aromatizadores de sua comida. O

primeiro cuidado da cozinheira sertaneja, no alto sertão-de-pedra do ―cruel

Nordeste‖, como diz Pedro Calmon, é colher no pequenino quintalejo os cheiros e

verdes inseparáveis na apresentação culinária. Mesmo para o feijão verde, colhido

na hora, tenro e saboroso, comparece a cabeça de cebolsa com suas folhas, e o

coentro, prestigioso coriandro que os elegantes de Paris mascavam, perfumando o

hálito (CASCUDO, 2004, p. 488-489).

57

Plantar era costume de todas as mães, que além de garantir a alimentação da prole,

invariavelmente seu excedente era comercializado, e mais uma vez era investido no que não

era produzido pela terra ou para comprar itens para os filhos: de roupas a carne ou óleo. Para

melhor compreensão das trajetórias de cada entrevistada, a seguir, descrevemos

resumidamente suas histórias de vida, a partir das cerca de 20 entrevistas no campo.

Depoimentos

Nome Idade Ocupação Local Data Duração

total

HNA 88 Aposentada Cemitério de

Irajá e casa

Fev., mai, jun,

nov. e dez/2017

Cerca de 7 h

MLFS 67 Comerciária

horista

aposentada

Casa Mai., jun. e

nov./2017

Cerca de 3h

JC 48 diarista Casa Mai., jun. e

nov./2017

Cerca de 4h

EFP 60 diarista Casa e Capela

N.S. Aparecida

Jun., nov. e

dez./2017

Cerca de 6 h

MESC 44 Microempresária Pensão da Nana Nov. e dez./2017 Cerca de 4h

2.2 Hilda Nascimento dos Anjos

Nasceu em 1932, no sítio Poço das Pedras, próximo ao município de São João do

Cariri, no semiárido paraibano, a cerca de 216Km da capital, João Pessoa. É a mais velha das

entrevistadas. Aos 88 anos, demonstra memória, vitalidade e lucidez impressionantes. Chegou

ao Rio em 1953, aos 21 anos, depois que o marido, Severino, já estava aqui há meses. Depois

de um incêndio que atingiu a favela em 1958, sua mãe –, Julia Francisca do Nascimento, que

morreu com 102 anos – e a avó – Francisca, uma mulher de ascendência portuguesa de pele

clara, que enfrentou a família ao se casar com um homem preto e de origem humilde –

mudaram-se para o Jardim América. Mas ela decidiu reconstruir a casa com o marido, na

Favela. Em 2017, HNA, viúva, vive rodeada da numerosa família: sete filhas e dois filhos,

netos, bisnetos e agregados, que sempre aparecem para almoçar ou jantar.

Na Favela, onde viu chegar muitos migrantes como ela, é dessas figuras respeitadas e

queridas. Uma de suas práticas de décadas é acolher quem lhe pede ajuda e comida. A prática

de socialidade, como observou Maffesoli, contaminou a geração seguinte. A filha mais velha

58

de HNA, Carmen Lúcia, 59 anos, aposentada, com algumas vizinhas formou uma rede de

apoio a idosos sem parentes. E adotou Caroline Vitória, 8 anos, uma das três filhas de uma

dependente química, Janaína dos Santos, a Nagô, a quem ha ampara há anos. Sem registro

civil, Janaína dos Santos, não sabia quem eram seus pais. Com a ajuda de HNA e Carmen

Lúcia, ela ganhou registro civil.

Certeau (1999) chama a atenção para a mobilização de afetos e racionalidades que

envolvem o ato de cozinhar. É evocar lembranças e equilibrar expectativas, o desejo de todos

e o de cada um dos que vão desfrutar da comida. HNA diariamente vai para a cozinha, com a

ajuda de alguma mulher da família, e prepara refeições tendo em mente a variedade do menu

e as preferências da prole, netos, bisnetos, agregados e visitas. ―Faço galinhada ensopada, os

meninos gostam frita. Faço também feijão macáçar com carne-seca ou costelinha, todo mundo

gosta‖.

Sim, na cozinha a atividade é mental e manual; todos os recursos da inteligência e da

memória são mobilizados aí. Deve-se organizar, decidir, antecipar. Deve-se

memorizar, adaptar, modificar, inventar, combinar, levar em conta os gostos de tia

Germaine e as recusas do pequeno François, satisfazer as prescrições da dieta de

Catherine e variar os menus [...] (CERTEAU, 1999, p. 206, tradução nossa)35

HNA segue na Favela o que Certeau observou em suas pesquisas. Ela adapta suas

receitas aos gostos dos netos. Como o xerém (―aqui chama angu‖) com carne (―os meninos

gostam com carne moída, cada qual tem um gosto‖), que ela consome da forma como

aprendeu quando criança: ―gosto de comer com leite, os meninos dizem ‗nunca vi isso‘‖).

Ali em Ramos também reproduziu com o marido alguns costumes da terra. Como de

criar animais. Severino era conhecido na vizinhança por sua vasta coleção de passarinhos. Seu

então barraco ganhava uma guirlanda de gaiolas de madeira com seus animais de estimação,

que despertavam o nojo das filhas por conta da quantidade de fezes acumuladas todas as

manhãs. HNA: ―Severino criou aqui cabrito, carneiro, porco, galinha, depois que ele morreu

ficamos só com as galinhas, mas o povo roubava ou elas morriam, fiquei só com o galo‖. O

galo, chamado de Filho, tem 10 anos, nunca vai à rua, vive nos fundos da casa ou na laje e

mantém com sua dona hábitos de cão fiel.

HNA é a única entrevistada que não visita regularmente sua cidade e admite não querer

voltar a morar na terra natal. ―Acho que não me acostumo mais‖. Se orgulha de ainda saber

35

Sí, en la cocina la actividad es tanto mental como manual; todos los recursos de la inteligencia y la memoria se

movilizan ahí. Hay que organizar, decidir, prever. Hay que memorizar, adaptar, modificar, inventar, combinar,

tomar en cuenta los gustos de la tía Germaine y las aversiones del pequeño François, satisfacer las

prescripciones de la dieta temporal de Catherine y variar los menús [...] (CERTEAU, 1999, p. 206)

59

fazer carne-de-sol e muitas receitas apreciadas pela família, amigos e agregados. E ensina a

receita que o marido chegou a comercializar nas feiras de Duque de Caxias e em São

Cristóvão. ―Pega uma peça de alcatra põe numa bandeja e salga com sal fino mesmo. Deixa

descansar umas duas horas. Depois, pendura na pia para escorrer a salmoura umas duas

horas, fica quase igual à (carne) do Norte‖, conta. ―Lava antes para tirar o sal, bota para

assar ou frita. Ensopadinha é bom! É boa para comer com macaxeira ou inhame‖. Algumas

das filhas aprenderam suas receitas, mas Ana Lúcia admite que só passou a cozinhar depois

de aposentada. HNA nunca teve trabalho formal fora de casa. Dedicou-se toda a vida ao

trabalho reprodutivo. Assim, provia os cuidados com os netos para que filhas e filhos

pudessem trabalhar fora.

2.3 Maria Letícia de Farias Silva

Nasceu no Sítio Poço das Pedras, perto de São João do Cariri, na Paraíba, em 1950.

―Eu morava com pai, mãe e 11 filhos... foi o que mais (pai e mãe) teve: filho‖. Mantinha

visitas frequentes à casa da tia, Hilda Nascimento dos Anjos, até que conheceu o marido no

Rio de Janeiro. Se casou e foi morar definitivamente na Favela de Ramos. ―Eu vinha visitar a

tia Hilda, desde 1970. Eu ficava indo e voltando. Até que casei aos 29 anos, em 1980 com

meu marido, o José Gabriel da Silva. Ele era de Recife, mas morava ao lado do meu irmão

Fernando, aqui em Ramos”. Trabalhou no comércio toda a vida. Aposentada, hoje, aos 67

anos, continua fazendo trabalhos intermitentes para o ex-patrão. Sua aproximação foi a mais

difícil de todas, e mesmo ao final de duas entrevistas e vários contatos via celular, manteve

sua postura desconfiada e de respostas apressadas e curtas. Sua cozinha é bem equipada e

espaçosa: cerca de 3m x 5m.

Na casa de alvenaria onde mora com a filha, as netas, Paula e Paola, de 16 anos, e o

genro. ―Tive três filhos. Os dois primeiros eram gêmeos, um casal, o menino morreu, ficou

uma hora vivo... nasceu com problema na cabeça. A Maria Amélia nasceu prematura de sete

meses. Peguei outro, era menino, mas morreu logo, também era prematuro‖. Prepara com

certa regularidade o cuscuz de milharina. Único prato nordestino, segundo ela, que a filha e as

gêmeas apreciam. ―Ralo o milho verde e faço canjica. Aprendi a cozinhar com minha mãe.

Faço tapioca com coco ou com manteiga, arroz, feijão, carne assada com batata, galinha de

capoeira, galinha com pé duro‖. Ainda mantém expressões e sotaque da terra natal. Costuma

60

passar temporadas regulares no Nordeste, mas não planeja mudar-se e afastar-se da família.

Sente falta de trabalhar na terra: ―O que mais gostava era capinar, puxar a cobra com os pés,

como diz o ditado do povo (risos)!‖.

2.4 Josefa da Conceição

Nasceu em maio de 1969, em Massaranduba, região metropolitana de Campina

Grande, (PB), município com quase 13 mil habitantes. Da família com oito filhos, apenas um

irmão ainda mora no estado de origem. Sua mudança da Paraíba para o Sudeste foi motivada

pela saudade que sentia da sobrinha Flávia, hoje mãe de três crianças, que viu nascer e criou

até por volta de 6 anos. Com a mudança do irmão, pai da menina, para o Complexo do

Alemão, decidiu se aventurar no Rio de Janeiro.

Conheceu o marido na capital e teve dois filhos: Maxwell da Conceição Hortêncio, 18

anos, e Maycon da Conceição Hortêncio, de 9 anos, mas cria apenas o caçula. Começou a

trabalhar aos 13 anos como babá, hoje é diarista, em Botafogo e no Recreio. E mora na Favela

de Ramos desde 2011. Faz muitas receitas do Nordeste no dia-a-dia, no entanto, reserva a

galinha caipira quando o irmão a visita: ―Galinha ensopada, com aquela galinha dura, cozinha

na pressão. Fica bem gostoso, tipo galinha caipira. Escalda [a galinha], corta os pedaços,

passa limão, pimenta do reino, cebola, cominho, pimentão. Não coloca gordura na panela,

não. Tempera de um dia para o outro para pegar os temperos‖.

Dos hábitos da infância no interior, tem saudade do capitão (bolinho feito

manualmente à base de feijão e farinha de mandioca) ―Adoro feijão verde com quiabo e

maxixe. Ah, a gente pegava o feijão verde no roçado... a pessoa conversava da plantação,

como o feijão estava. Lembro de comer bolinho de feijão com maxixe, quiabo e farinha...‖. E

ainda não abandonou o hábito de comer com colher. Suas experiências com a mãe passam

pelos trabalhos na terra e na cozinha. E nos revela a receita de bolo de mandioca mole da mãe:

61

Receita de Mandioca Mole36

―Aprendi a cozinhar na lenha. Mãe sempre fazia mandioca mole. Preparava assim,

a mandioca ficava uns cinco dias na água. Tirava do molho e peneirava, lavava

bem lavada e deixava pendurada num saco de algodão para escorrer a água. Aí

botava margarina, ovo, açúcar, leite de coco ou de vaca. Botava uma pedra de dois

dedos no fogo. Botava uma palha de bananeira e em cima, a massa. Deixava a

massa consistente. Às vezes, mãe ficava até de madrugada fazendo. A minha mãe

dizia que era parente de índio‖.

2.5 Edileuza Ferreira de Paula

É a única nascida em uma grande cidade, Campina Grande, das nossas entrevistadas.

Passou a comer de garfo aos 12 anos e chegou ao Rio com 17 anos, na companhia do tio

materno, com quem foi morar juntamente com a família. Depois do desemprego do tio, foi

trabalhar em casa de família na Ilha do Governador para ajudar no sustento. E de lá, foi

trabalhar como doméstica em Guadalupe, onde está até hoje, mas como diarista. Também dá

expediente em uma casa em Pavuna e de uma octogenária no Grajaú. EFP, aos 60 anos, mora

com o marido, desempregado há dez anos, as duas filhas e três netos – todos moram com ela,

no Beco Nossa Senhora de Fátima, 20, próxima à Rua Ouricuri, a segunda via pavimentada e

de acesso à Favela.

Lá, sua cozinha tem formato afunilado, anexa à sala, mas sem divisórias ou portas. Da

sala, pode-se observar a movimentação da cozinha, que também tem uma entrada

independente. Aprendeu muitas receitas e ensinou outras tantas às suas patroas, apesar de não

se dar conta desse hibridismo. ―Aprendi a cozinhar mais aqui. Tudo que aprendi, foi minha

patroa que me ensinou. A dona Ana deixava tudo escrito, e eu fazia. Aprendi a fazer com ela

bife à milanesa, frango empanado‖. As receitas aprendidas quando era menina, a transmissão

de um conhecimento ordinário, de mulheres, ela reproduz com adaptações de técnicas e

ingredientes.

Igualmente a MESC, EFP faz de seu patrimônio alimentar um elo com a comunidade.

Além de trabalhar fora, atua há anos como voluntária na capela de Nossa Senhora Aparecida,

vinculada à matriz de Santa Rita dos Impossíveis, em Ramos. Lá faz tapiocas que vende em

quermesses em datas festivas, e se junta a outras voluntárias para fazer faxina, preparar

36

Câmara Cascudo registra que a mandioca mole é conhecida também por carimã e farinha-d‘água e farinha de

mandioca puba. E descreve a técnica semelhante à JC: ―Põem a mandioca com casca e tudo em vasilhas com

água ao sol durante 4 a 5 dias até amolecer e a casca arouxar, largando pelo simples contato. Colocam essa

mandioca dentro de um saco, pendurado para escorrer, um a dois dias. Tira-se a massa e espreme-se com a

mão, fazendo-se os bolinhos oblongos que vão secar numa urupema ao sol. (2004, p. 97).

62

sacolas com itens de alimentação para famílias carentes e cozinhar. ―Vendemos pratos feitos

para arrecadar fundos para nossas obras ou preparamos almoço depois de algum trabalho aqui

na capela‖. As refeições comunitárias ali são frequentes. No dia 23 de dezembro, EFP

preparou uma refeição típica para servir aos outros voluntários, todos com ligações com o

Nordeste. Galinha caipira, arroz, feijão macáçar com quiabo escaldado e um molho do Sertão

foram os pratos do almoço servido após o trabalho de distribuição das sacolas de Natal,

preparadas na véspera, a 66 pessoas – desses, apenas dois homens, desempregados, sendo

95% nordestinos, moradores da favela. As técnicas de preparo seguiram a tradição aprendida

em casa: ―a gente mistura todos os temperos na panela de uma vez‖.

Sua galinha caipira à moda do Nordeste faz enorme sucesso:

―usei pedaços de frango, comprados no aviário, com pele. Deixei de molho no

vinagre e limão por uns cinco minutos. Depois lavei bem e coloquei na panela de

pressão junto com cebola, alho, colorau, pimenta, cominho, pimentão e coentro

picado, sem óleo, sem água e sem torrar o alho. Depois leva ao fogo médio, com a

tampa sem fechar, por uns cinco minutos. Vai secar a água do frango e cozinhar os

temperos. Aí, pinga água e fecha, quando der pressão, deixa cozinhar por uns 20

minutos. No Nordeste, a gente faz com galinha, que é mais gostosa e faz na panela

comum e fogão à lenha. Vai pingando a água aos poucos, demora mais a cozinhar,

mas fica mais gostosa porque vai pegando melhor o tempero‖.

O molho do Sertão é feito com tomate e cebola picados, sal, vinagre e um pouco da

água do cozimento do feijão macáçar. ―Na minha terra, o povo não usa azeite, usa esse caldo

ralo do feijão‖. Essa dinâmica de comerem juntos reforça os laços com as companheiras

migrantes e membros das suas famílias. Nessas refeições conjuntas, lembram de costumes

como comer com as mãos; ou do consumo de partes menos nobres e baratas de animais: ―Dias

desses levei para a mãe pés de galinha, só eu e mãe comemos lá em casa‖, lembram duas das

voluntárias, numa das inúmeras evidências das complexas relações que as migrantes mantêm

com seu legado gastronômico no Rio de Janeiro.

2.6 Maria Eliane Soares Correia

Paraibana, nascida em Alagoa Grande, numa família de oito filhos, começou a

trabalhar aos 10 anos, como babá. Chegou ao Rio de Janeiro em 1991, aos 18 anos para

ocupar uma vaga de doméstica, numa casa na Tijuca, onde também morava e conheceu o

marido pernambucano, Genival. Aos 44 anos, é mãe de um casal e avó de dois meninos.

63

Virou empreendedora na Favela há sete anos, comercializando lanches e depois um bufê de

comida que incluía pratos regionais nordestinos. Sempre gostou de cozinhar, aos 9 anos já

preparava refeições para toda a família. Eu comecei com 9 anos.

Se tivesse ingrediente, eu inventava. Lembro que mãe tinha comprado macarrão,

arroz, feijão. Fiz peixe ensopado com leite de coco, macarrão, arroz, feijão. Foi o

primeiro almoço que fiz. Chegou um parente que ficou impressionado, disse ‗nossa,

essa menina, com essa idade, já cozinha assim?‘. Eu inventava.

Em janeiro de 2015, alugou uma loja onde instalou seu negócio, a Pensão da Nana,

onde comercializa prato feito e, aos sábados, serve no bufê receitas típicas que aprendeu ainda

menina.

A loja era pequena, metade dessa aqui. Coloquei fogão industrial. E o sucesso foi o

boca a boca, nunca tinha sido comerciante. Fiz o que sabia fazer, galinha caipira

com baião de dois e carne-de-sol são os carros-chefes. Quando pedem, faço

sarapatel e buchada de bode. De quinta a sábado, também fica aberto à noite, quando

vendo espetinho. E já vai fazer três anos. Meus filhos me ajudam como podem, pois

os dois trabalham. Sempre trabalhei cozinhando.

A comunidade cearense, sobretudo, é bem numerosa, e o cardápio regional atrai os

migrantes que vão ali para almoçar e recordar o sabor da terra.

64

3 MEMÓRIAS E IMAGINÁRIOS COM FARINHA

A favela, nunca foi reduto de marginal

A favela, nunca foi reduto de marginal

Ela só tem gente humilde marginalizada

e essa verdade não sai no jornal

A favela é um problema social

A favela é um problema social

Sim mas eu sou favela

Posso falar de cadeira

Minha gente é trabalhadeira

Nunca teve assistência social

Ela só vive lá

Porque para o pobre, não tem outro jeito

Apenas só tem o direito

A um salário de fome e uma vida normal

A favela é um problema social

A favela é um problema social

Eu Sou Favela

Bezerra da Silva

Há uma espécie de ―máquina da memória‖ operando na indústria cultural, segundo

Huyssen (2014), com toda uma série de ―modas retrô‖ na música, no vestuário, na arquitetura

etc. E hoje as redes e mídias sociais e a internet fazem com que a cultura do passado esteja

disponível para consumo numa escala sem precedentes. O cineasta alemão Alexander Kluge

chegou a falar de um ―ataque do presente contra o resto do tempo‖. A questão que se impõe é

sobre essa presentificação do passado: isso produz só memória ou também amnésia? Quando

tudo se torna presente, corremos o risco de deixar de lado o passado e o futuro? O próprio

modo de operar do fetichismo da mercadoria descrito por Marx (2013) e Adorno (apud

HUYSSEN, 2014) seria um apagamento do elo humano que produz o objeto: a força de

trabalho, a vida empregada na produção.

65

Menos bem conhecida, porém de igual influência, foi sua tese de que toda reificação

é um esquecimento, uma tese que vê o esquecimento da mão de obra na produção

como a base do fetichismo da mercadoria e de seus efeitos insidiosos nas estruturas

de subjetividade da cultura moderna (HUYSSEN, 2014, p. 155).

Comer uma refeição servida com cuidado e amor, sobre uma mesa posta entre amigos,

em que a técnica manual apurada no cotidiano está evidenciada, representaria a nosso ver uma

negação do processo de fetichização em que a energia humana empregada no processo de

produção ganha opacidade, tornando tudo mercadoria. A força criadora, singular e única posta

em marcha na beira do fogão e compartilhada com o grupo é, a nosso entender, uma

resistência possível.

Como a memória é, no entanto, um importante fator de luta (é, de fato, em uma

espécie de dinâmica consciente da história que as lutas se desenvolvem), se a

memória das pessoas é mantida, mantém-se seu dinamismo. E mantém-se também

sua experiência, seu saber sobre as lutas anteriores. (FOUCAULT, 2009, p. 332).

Há uma associação clara entre o que se apresenta como uma dupla função da comida:

o que nutre o corpo também é aquilo que forma uma identificação do grupo.

A memória e a herança familiar desempenham um papel fundamental na construção

do indivíduo que come e nas escolhas alimentares que ele faz. Nascemos numa

cultura alimentar e gastronômica, interagimos com esses valores alimentares e a

valorização desse patrimônio, e atribuímos a eles símbolos sociais vindos de raízes

próximas ou distantes no tempo. Depois de algumas experiências, pensamos que

nossa identidade de consumidor está definida e que só nos resta a fazer o essencial:

transmitir essa identidade. (STENGEL, 2014, p. 35, nossa tradução)37

.

No entanto, a memória é versão atravessada pelos afetos que costura o passado

incessantemente com uma linha da atualidade. As identificações se expressam hoje, na

prática, através de uma espécie de continuum que evidencia identificações múltiplas, mais

abertas e híbridas. Essa versão do que é herança promoveu, por exemplo, um novo olhar sobre

o consumo da mandioca e seus derivados, como a farinha e o polvilho. Esses insumos que

fazem parte da dieta nativa das nações indígenas expandiram seu lugar na edificação dessa

memória coletiva e da mesa nas últimas duas décadas, como demarcou Halbwachs (apud

POLLAK, 1989, p. 3):

37

La mémoire et l‘héritage familial jouent um rôle fondamental dans la construction de la l‘individu mangeur et

dans les choix alimentaires qu‘il fait. On naît dans une culture alimentaire et gastronomique, on interagit avec

ces valeurs alimentaires et la valorisation de ce patrimonie, et on leur attribue des symboliques sociales datant

des racines proches ou lointaines dans le temps. Après quelques expériences, on estime que notre identité de

mangeur est dessinée, et qu‘il nous reste à faire l‘essenciel: transmettre cette identité. (STENGEL, 2014, p 35).

66

Em sua análise da memória coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a força dos

diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que a inserem na

memória da coletividade a que pertencemos. Entre eles incluem-se evidentemente os

monumentos, esses lugares da memória analisados por Pierre Nora, o patrimônio

arquitetônico e seu estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens,

as datas e personagens históricas de cuja importância somos incessantemente

relembrados, as tradições e costumes, certas regras de interação, o folclore e a

música, e, por que não, as tradições culinárias.

Se o que alicerça a pertença de um grupo com seu território passa também pelo que é

consumido, como bem notou Hall (2000), se a identificação é algo partilhado e legitimado por

um grupo, seja por herança cultural, um ideal, origem e práticas, seria também certo afirmar

que esses traços não são estanques. As memórias/lembranças estão em disputa interna, em

constantes quedas de braço, negociações e re-atualizações.

as identidades podem funcionar como pontos de identificação e apego apenas por

causa de sua capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o

diferente em ‗exterior‘, em abjeto [...] Utilizo o termo identidade para significar o

ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas

que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos

lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os

processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais

se pode ―falar‖. (HALL, 2000, p. 110-112).

No cruzamento entre identificações, narrativas, tradição e devir é que se pode analisar

esses discursos sociais. Memória e subjetivações são indissociáveis. Como assinalaram alguns

historiadores da Escola dos Annales, a antiga discussão entre passado e presente ou presente e

futuro não é neutra, embute uma disputa de valores, de assujeitamentos e jogos de poder.

As identidades [...] têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos

da história, da linguagem e da cultura para a produção daquilo que nós somos, mas

daquilo no qual nos tornamos... Elas têm tanto a ver com a invenção da tradição

quanto com a própria tradição, a qual elas nos obrigam a ler não como uma

incessante reiteração mas com o mesmo que se transforma (Gilroy, 1994): não o

assim chamado ―retorno às raízes, mas uma negociação com nossas rotas‖. Elas

surgem da narrativização do eu, mas a natureza necessariamente ficcional desse

processo não diminui sua eficácia discursiva, material ou política, mesmo que a

sensação de pertencimento, ou seja, a ―suturação histórica‖ por meio da qual as

identidades surgem, esteja, em parte, no imaginário (assim como no simbólico) e,

portanto, sempre, em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um

campo fantasmático. É precisamente porque as identidades são construídas dentro e

não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais

históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas

específicas, por estratégias e iniciativas específicas. (HALL, 2000, p.108-109).

É pela ressignificação desse imaginário e narrativa próprios que se costura essa

identificação fragmentada e múltipla. Le Goff (1990) chama a atenção para a materialidade da

memória, como algo vivo, sujeito ao nascimento, reprodução e morte, à permanência e ao

67

esquecimento, submetendo-se à dinâmica dentro do grupo. Como uma ―substância viva e

movente‖, Nora (1993) destaca o potencial de manipulação, para o bem e para o mal, a que

está sujeita essa materialidade:

Entre uma memória integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e

todo-poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memória sem passado que

reconduz eternamente a herança, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo

indiferenciado dos heróis, das origens e do mito – e a nossa, que só é história,

vestígio e trilha. [...] Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos

consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por

grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da

lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas,

vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de

repentinas revitalizações. (NORA, 1993, p. 8-9)

O que salta nos relatos de nossas migrantes é a lembrança reificada no fogão, algo que

as liga à terra, às famílias, a uma tradição memorialística renovada e repassada às novas

gerações, com acréscimos e ―modernizações‖. No entanto, essas receitas e as formas de

preparo são passíveis de valorações conflitantes. Ao mesmo tempo que as religam a grupos de

outras migrantes da Favela em ocasiões de festas e no auxílio aos mais vulneráveis também

remetem a um estigma de falta, atraso e precariedade autovalorizados (HNA: ―Eu sou velha

assim, mas não gosto de verdura, legume‖; MESC: ―Sopa de feijão carioquinha mãe fazia

com o que sobrava do almoço. Fazia com o que tinha na horta. Pegava o caldinho do feijão,

botava arroz, chuchu e folhas meio rasgadas de couve‖; JC: ―Quem já se viu fazer bolo com

palha em cima de pedra? Aqui não faço‖).

Essas memórias do deslocamento de suas terras de origem se mesclam à construção

das favelas (JC: ―E quando cheguei, fui morar com minha cunhada e meu irmão José Arnaldo

da Silva, no Morro do Alemão‖) e da resistência por meio da construção de um território de

pertença, seja no espaço público (HNA: ―João Gordo era o principal e trazia o povo do Norte

de ônibus para trabalhar. Nós viemos no ônibus dele. Tinha retrato dos quatro lá (na feira),

agora fui lá e tiraram. Cadê os retratos? A prefeitura tomou a feira e agora é tudo pago‖) seja

na religiosidade (EFP: ―Na festa junina fiz tapioca com goiabada e leite condensado, com

coco e com quejo coalho. Vendi tudo‖).

E práticas antigas são reafirmadas por nossas migrantes num arranjo que Maffesoli

definiu como o espírito da tribo, a volta do comum, da espiralização do tempo, o retorno do

mesmo, em que as temporalidades se fundem. Esse comum como um vínculo, tarefa (munus)

com o outro, como definiu Sodré:

68

Toda ética supõe a partilha de uma regra comum (pública) a todos os membros de

um determinado grupo. Mas em vez do Estado, depende da força de uma

comunidade, quer dizer, da ordem vinculativa, responsável pelo reconhecimento do

comum, necessário à constituição de indivíduos e instituições. (PAIVA apud

SODRÉ, 2002, p. 194)

Um comum proxêmico, um ―buraco‖ que pode conter aquilo que é eleito, imaginado

pelo grupo. A emergência do imaginário acontece por identificação (reconhecimento de si no

outro), por apropriação (desejo de abarcar o outro em si) e por distorção (reconfiguração do

outro para si). Esse imaginário, que Maffesoli (2005) admite ser individual e coletivo, se faz

por contágio: aceitação do outro (tribal), disseminação (igualdade na diferença) e imitação.

Para ele o imaginário – que recupera com Freud sua positividade de representar o

mundo interior como uma ponte para o exterior –, tanto é individual – mas a partir e

imbricado num outro –, como coletivo. Sendo assim uma matriz de sentidos, emoções,

símbolos, valores, afetos, estabelece um vínculo, como um cimento social: ―a energia

coletiva, a força imaginal do estar junto busca uma via, fora de todos os caminhos balizados

pelo racionalismo da modernidade, sempre mantendo a exigência ética básica de toda

sociedade, aprender a viver, saindo de si, com o outro‖ (MAFFESOLI, 2005, p. 71).

Daí se ver esse contágio na imitação da solidariedade. Em diversas visitas ao campo à

casa de HNA, testemunhamos a prática cotidiana da solidariedade da octogenária seja na

distribuição de refeições (―Olhe, quem come, de casa, todo dia é Marcio, Micaela, Everton,

Carmen Lúcia, Luciane, Amanda Kelly e Tico, mas ele não almoça. Amanda e Carmen Lúcia

não jantam. Márcia, que não é de casa, almoça e janta‖) quanto na adoção de crianças

abandonadas ou órfãs, um ethos familiar. Sua mãe, dona Julia, que morreu com mais de 100

anos, adotou uma menina. Duas filhas de HNA, Ana Lúcia e Carmen Lúcia, adotaram um

menino e uma menina, respectivamente, no que foram ajudadas por toda a família. A prática

de acolher quem ali fosse em busca de uma refeição de HNA também vem de berço. Dona

Julia e dona Francisca, a avó, costumavam receber com farta comida e afeto vizinhos, amigos

e agregados. No primeiro Natal que minha mãe passou no Rio de Janeiro, nos anos 50, foi na

casa das migrantes Julia e Francisca, no bairro de Jardim América, onde moravam.

O arranjo do cuidado de Caroline Vitória, filha adotada de Carmen Lúcia, filha mais

velha de HNA, é especialmente revelador das dinâmicas de amparo e socorro mútuo na

Favela de Ramos. Carmen Lúcia e um casal de ex-vizinhos cuidam simultaneamente da

menina com o pai biológico, ou seja, duas famílias adotivas e uma biológica (HNA: ―Janaína

dos Santos, a Nagô, ficava aqui na minha porta, era usuária de cheirinho da loló. Fiquei com

pena e ajudei. Há anos almoça e janta aqui em casa. Ela morava aqui também, quando pegou

69

barriga, não disse de quem era. Nasceu a Caroline Vitória. Minha filha Carmen Lúcia pegou

pra criar. A menina tá com 8 anos, é muito inteligente‖). O arranjo inclui a visitação do casal

de ex-vizinhos em todos os fins de semana, a tarefa do pai de levar e trazer da escola a menina

e a maternagem de Carmen Lúcia.

Outro exemplo dessa socialidade recíproca ouvimos durante a faxina EFP na capela

Nossa Senhora Aparecida e que ela ―imita‖ como voluntária da pastoral Grupo União (―O

faqueiro minha mãe nunca usou na diária, ela emprestava para as noivas no dia do casamento.

Lá (na minha cidade) as pessoas faziam festa em casa); e ainda no bufê de pratos nordestinos

da Pensão da Nana, servido aos sábados na Rua Ouricuri (MESC: ―A mulher do bar cresceu o

olho, e num dia, cercou o bar e não deixou a gente vender. Era bom pra ela que vendia

cerveja, a gente não vendia bebida. Nesse dia, o vizinho dela, que tinha uma loja de material

de construção, viu aquilo e me ofereceu para montar minha barraca em frente à loja dele‖).

O conceito de tribalismo nos parece apropriado para entender o diagrama de forças no

campo. Nesse estar junto num mesmo território, ser-em-comum de um presente alargado, em

que o passado mítico se funde ao aqui e agora para superar as precariedades materiais, nossas

mulheres evocam seus ancestrais, suas identificações para amparar-se mutuamente e a suas

―famílias estendidas‖: vizinhos, agregados, desamparados, desgarrados, que a socialidade, a

trajetória de vida, a precariedade, a origem territorial, a religião mística sem objeto

determinado que os afetos tornam próximos.

O fato de experimentar em comum suscita um valor, é vetor de criação. Que esta

seja macroscópica ou minúscula, que ela se ligue aos modos de vida, à produção, ao

ambiente, à própria comunicação, não faz diferença. A potência coletiva cria uma

obra de arte: a vida social em seu todo, e em suas diversas modalidades. É, portanto,

a partir de uma arte generalizada que se pode compreender a estética como

faculdade de sentir em comum. Ao fazer isto, retomo a concepção que Kant dava à

aisthesis: a ênfase, sendo colocada menos sobre o objeto artístico como tal, que

sobre o processo que me faz admirar esse objeto (MAFFESOLI, 1996, p. 28).

É um pot-pourrit de imagens, símbolos, em que o grupo é mergulhado em crenças,

valores imateriais, que atam vínculos sociais intercambiáveis. A comida na Favela de Ramos

tempera emoções. Uma tapioca, um cuscuz, um mocotó, um sarapatel são capazes de

convocar fortes memórias. E toda lembrança reatualiza afetos arrebatadores. Nossas mulheres

falam de emoções de refeições partilhadas na infância com a família de origem: do cuidado

com o outro (EFP: ―Toda vez que faço, lembro do meu avô. Ele era muito querido. Quando

mãe tinha um dinheirinho, ela comprava mocotó porque ele gostava. Ele vinha sozinho de

pés... minha vó tinha varizes, por isso não vinha. Ele vinha andando, como se fosse daqui a

70

Estação de Ramos‖); de uma cultura do gosto (MLFS: ―Comida de milho é o que a gente mais

comia. Todo dia tinha feijão macáçar. Tinha o picado de porco, que é o sarapatel, mas o povo

aqui chama de picado... tinha buchada, galinha caipira... ai, que coisa boa!‖; JC: ―imagina

fazer uma carne sem cominho, pimentão e coentro? Fica sem gosto, principalmente peixe,

sem pimentão, fica uma bexiga fedorenta...‖); da memória de um prato que jamais será

acessado de novo (JC: ―Quem já se viu fazer bolo com palha em cima de pedra? Aqui não

faço. Ela colocava dentro de potes de barro e deixava. Lembro até hoje, tenho saudade desse

gosto‖; MESC: ―Tenho saudade da sopa de feijão carioquinha. Mãe fazia com o que sobrava

do almoço. Fazia com o que tinha na horta. Pegava o caldinho do feijão, botava arroz, chuchu

e folhas meio rasgadas de couve. É simples, mas tenho saudade do sabor‖); da dor da escassez

(EFP: ―Era um pão de 50g para dois. Lembro de um dia ter apanhado por ter comido a banda

do meu irmão...‖), da solidariedade da comunidade de origem (EFP: ―Mãe ia na feira no

sábado quando tinha um dinheirinho para comprar carne. Na segunda-feira já não tinha mais

nada. Lembra do Mobral38

? Naquela época, quem fosse estudar ganhava arroz, farinha de

quibe, óleo e fubá. Mãe ia só no interesse de ganhar a cesta básica. Mãe colocava colorau no

óleo e com aquilo temperava o feijão. Quando tinha acabado as misturas, ia no vizinho pedir

ovo. Eram três ovos para oito pessoas...‖).

A cozinha para nossas migrantes representa um modo de invenção, de pôr em marcha

uma identificação criativa, de colocar a imaginação, as emoções e as mãos a serviço da

restauração das forças da vida. ―O ritmo da rotina na habilidade artesanal se inspira na

experiência das brincadeiras infantis, e quase todas as crianças sabem brincar bem‖

(SENNETT, 2009, p 299). Uma forma de singularidade subjetiva empregada na celebração da

mesa e das relações (MESC: ―Se tivesse ingrediente, eu inventava‖).

É o modo como opera a perrouque, essa maneira como os operários, aproveitando

―horas livres‖, utilizam materiais do lugar onde trabalham e com as mesmas

máquinas de seu ofício fabricam utensílios para sua família, ao mesmo tempo que

liberam a criatividade castrada pela divisão e pelo trabalho em cadeia. (MARTÍN-

BARBERO, 1997, p. 114)

Nas palavras de Certeau (1999), dominar as técnicas de preparo de um alimento

capacita quem as detém a imprimir sua marca, a ousar ser diferente e a ampliá-las num jogo

de repetição, criando assim a diferença:

38

O Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), criado em 1968, foi um órgão do governo cuja tarefa era

erradicar o alto índice de analfabetismo no país. Sua implementação ocorreu em 1971. E foi extinto nos anos

80, coincidindo com o fim da Ditadura Civil-Militar.

71

Desta forma, fazer-de-comer se assenta sobre uma estruturação complexa de

circunstâncias e dados objetivos, em que se emaranham necessidades e liberdades,

uma combinação confusa e sempre cambiante por meio da qual se inventam táticas,

se perfilam trajetórias, se individualizam as maneiras de fazer. [...] À medida que

adquire experiência, o estilo se afirma, o gosto se particulariza, a imaginação se

libera e a receita perde sua importância, para ser apenas a ocasião de uma invenção

livre por analogia ou associação de ideias, mediante um jogo sutil de substituições,

de abandonos, acréscimos ou empréstimos. Ao seguir com cuidado a mesma receita,

duas cozinheiras experientes obterão resultados diferentes, pois interferem na

preparação o toque pessoal, o conhecimento ou a ignorância de pequenos segredos

de execução (enfarinhar o refratário depois de tê-lo untado com manteiga, para que o

fundo da massa seque bem ao assá-la), toda uma relação com o que a receita não

decodifica e quase não precisa, e cuja maneira, de um individuo ou outro, difere,

pois se apega frequentemente na tradição oral, familiar ou regional. (CERTEAU,

1999, p. 207, nossa tradução)39

.

É nesse jogo em que o material e a técnica ―consagrada‖ alargam o repertório de uma

subjetivação não apenas dentro de um fim cotidiano como o de preparar uma refeição, mas

capacita essa subjetivação para todas as esferas da vida. Como destaca Sennett: ―Queremos

recuperar algo do espírito do Iluminismo em termos adequados à nossa época. Queremos que

a capacidade compartilhada de trabalho nos ensine como nos governar e nos ligar aos outros

cidadãos num terreno comum‖ (CERTEAU, 1999, p. 300). Essa imaginação criativa via

comida típica possibilitou a MESC abrir seu próprio negócio (―Isso aqui [a pensão] começou

quando fui vender espetinho. Vi venderem em Caxias, a R$ 15 o churrasquinho. Aí fui vender

em frente a um bar, o Bar da Lourdes, há seis anos. Foi fazendo tanto sucesso que numa

sexta-feira, a gente só vendia na sexta, vendi 350 espetinhos numa noite! Teve uma noite que

vendi 400‖), em que recebe a ajuda de toda a família, incluindo a nora Tainara e a amiga

Denise, conterrânea de Alagoa Grande.

A percepção do tempo vivido mais perto da natureza também é apreendido em

contraste com a aceleração urbana (MESC: ―Era outro tempo de cozimento. Era isso que a

gente comia. Quando a gente era menor, a gente achava [a comida] mais gostosa‖; EFP: ―Eu

ajudava mãe a cuidar da casa. Ela lavava roupa no barreiro. Tu sabe o que é barreiro? É onde

as mulheres se juntam no rio para lavar roupa. Elas passavam o dia inteiro no barreiro,

39

De esta forma, hacer-de-comer descansa sobre una estructuración compleja de circunstancias y datos

objetivos, donde se enmarañan necesidades y libertades,una mezcla confusa y siempre cambiante por medio de

la cual se inventan tácticas, se perfilan trayectorias, se individualizan las maneras de hacer. [...] A medida que

adquire experiencia, el estilo se afirma, el gusto se particulariza, la imaginación se libera y la receta pierde su

importancia, para sólo ser la ocasión de una invención libre por analogía o asociación de ideas, mediante un

juego de sutil de sustituciones, de abandonos, añadidos o préstamos. Al seguir con cuidado la misma receta,

dos cocineras experimentadas obtendrán resultados diferentes, pues intervienen en la preparación el toque

personal, el conocimiento o la ignorancia de pequeños secretos de ejecución (enharinar el refractario después

de haberlo untado con mantequilla, para que el fondo de la pasta se seque bien al hornearse), toda una relación

con las que la receta no codifica y casi no precisa, y cuya manera, de un individuo a otro, difiere, pues se

arraiga a menudo en la tradición oral, familiar o regional. (CERTEAU, 1999, p. 207)

72

lavavam, estendiam e botavam a roupa pra quarar. Nessa lida, elas comiam pão com cocada,

banana d‘água com farinha, pão com banana.‖).

Esse desejo de retomar uma experiência no sentido benjaminiano mais próxima da

natureza é uma narrativa partilhada por nossas mulheres diaspóricas (MESC: ―Tenho esse

sonho, e Genival também gosta. A gente quer comprar um sítio e plantar. Sinto falta de mexer

com a terra. Pensei de a gente comprar aqui no estado do Rio mesmo, ir e ficar um ou dois

dias e voltar. Comprar uma casinha pra passar um feriado‖; (MLFS: ―com 12 anos, por aí, já

trabalhava na roça. Limpava o mato, plantava palma... Estou acostumada com o Rio, mas

sinto falta da roça‖). Uma carência suprimida por viagens regulares ou esporádicas aos

parentes e famílias na Paraíba. Um arranjo que possibilita uma negociação com a saudade e

com a manutenção de laços anteriores.

3.1 O território, a agricultura familiar e a invaginação do mundo

A agricultura sempre esteve ligada ao feminino desde tempos imemoriais, o que fez a

espécie humana se fixar à terra. São as índias que transformavam a mandioca, o alimento

brasileiro do século XXI40

, em seus derivados, enquanto os homens caçavam. ―As cunhãs que

usavam o tipiti tornavam a massa quase seca pela compressão daquele cilindro de palha. A

sertaneja leva a massa à prensa primitiva para esgotar o resto do caldo que é a maniopueira

com o ácido cianídrico‖ (CASCUDO, 2004, p. 96-97).

Esse trato estreito com o território e a terra sedimenta um sentido de continuidade

cíclica da vida. Todas plantaram acompanhadas de mãe, pai e irmãos, algumas de suas avós

(MLFS: ―Tudo ajudava... com 12 anos, por aí, já trabalhava na roça. Limpava o mato,

plantava palma...‖; MESC: ―Eu plantava com ela [mãe] quando era menina‖; EFP: ―Minha

avó era nossa vizinha e plantava guandu‖). Igualmente a criação de animais domésticos para

consumo próprio configurava um trabalho de subsistência comum, reforçando a

temporalidade da natureza (MESC: ―Mãe criava bode, cabrito, porco, galinha, garrote...

engordava o ano todinho, em dezembro, ela vendia para comprar roupinha pra gente‖; MLFS:

―A gente tinha galinha, guiné, peru...‖).

40

Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2013/05/28/mandioca-

pode-se-transformar-no-cultivo-do-seculo-21-diz-onu.htm>. Acesso em: jan 2018.

73

Antes é preciso desenhar o contorno do que se entende como um território. Para Sodré

(1988, p. 26-27) seria o de um lugar que congrega ―territorialidades culturais, com o

enraizamento, com as relações físicas e sagradas entre o indivíduo e seu espaço circundante‖,

e que se espelha em Guattari (1986), para quem seria algo múltiplo e complexo:

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o

uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam

segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos

fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a

um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente ―em casa‖. O território é

sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto

de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma

série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais,

culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323).

A reterritorialização para um centro urbano como o Rio de Janeiro, no entanto, não

apagou o laço dessas mulheres diaspóricas com a agricultura familiar. O que nos leva à ideia

de invaginação do mundo, de Maffesoli:

Eu acredito que existe uma feminilização do mundo na política, o que eu chamo de

invaginação do sentido. Há ainda um senso de feminilidade. Não se trata de poema

nem estritamente da mulher, mas de uma certa contaminação dos homens pelos

valores femininos. Eu insisto nessa ideia de invaginação do sentido, isto é, cada vez

mais uma nova relação para com a natureza, com a Terra. A mulher carrega a vida;

logo é uma nova relação para com a vida que está em jogo.41

Destampar as memórias de pratos, receitas e temperos suscitou falas que deixaram

entrever no fundo dessas lembranças um forte desejo de retornar à tarefa de cultivo (MESC:

―Quando minha mãe saiu dessa terra e comprou uma casinha na rua, vendendo as coisinhas

dela, um cabrito, um garrote, ela manteve a roça. Eu plantava com ela quando era menina‖;

MLFS: ―Só estou aqui por causa das netas e da filha. Quando meu marido faleceu, e já tem

oito anos, eu teria voltado. Mas fico pra lá e pra cá. Meus irmãos e irmãs moram no mesmo

sítio‖). Essa ligação de grande intensidade com a agricultura familiar remete a um tempo

mítico de fruição, pela contemplação, de respeito aos ciclos da terra e do feminino, em que a

repetição das ações cotidianas, que asseguram a continuidade de um passado e um devir que

se traduz numa espiral, num presenteísmo, o retorno do mesmo.

41

Cristina Tavelin. Ideia Sustentável. Disponível em: <http://www.ideiasustentavel.com.br/ecosofia-entrevista-

com-michel-maffesoli-is-25/>. Acesso em: dez 2017.

74

3.2 A internet, a TV e o rádio ampliam cardápios

Além dessa saudade da atividade agrária de subsistência, detectamos também um

hábito comum em relação à mídia, como descreveu Martín-Barbero (1997), em lares

populares na América Latina: ouvir rádio e ―ouvir‖ a TV, enquanto executam seus afazeres

domésticos, foi um costume revelado por todas as cinco entrevistadas. Além de se informarem

sobre as notícias, o consumo de programas da TV aberta – como ―Ana Maria Braga‖ – e da

internet móvel ajudavam a ampliar os saberes da cozinha. O consumo da informação e dos

produtos da indústria cultural é um dado onipresente, favorecido pela portabilidade.

O aparelho de TV ocupa em geral a sala ou a cozinha das nossas migrantes. Ainda que

em outro cômodo, a TV está a uma determinada distância em que pode ser ―ouvida‖ durante a

lida diária. Um eletroeletrônico que permite a conexão com o mundo, um item indispensável

na afirmação de se viver o tempo presente, mais do que um consumo conspícuo (JC: ―Eu

comprei uma TV de controle para mãe e acabei vendendo. Ela não sabia mexer nem em

liquidificador nem em ferro de engomar‖; MESC: ―Gosto de ouvir rádio limpando a casa e

deixo a TV ligada mesmo que não esteja prestando atenção‖). É dessa forma que a TV entra

no tempo dedicado ao trabalho reprodutivo e ritual cotidiano: como uma companhia

―doméstica, interior e familiar‖ que as reconecta com o mundo exterior, aquele do tempo do

trabalho produtivo e cronológico.

Enquanto em nossa sociedade o tempo produtivo, valorizado pelo capital, é o tempo

que ―transcorre‖ e é medido, o outro, constituinte da cotidianidade, é um tempo

repetitivo, que começa e acaba para recomeçar, um tempo feito não de unidades

contáveis, mas sim de fragmentos. E a matriz cultural do tempo organizado pela

televisão não seria justamente esta, a da repetição e do fragmento? E não seria ao se

inserir no tempo do ritual e da rotina que a televisão inscreve a cotidianidade no

mercado? O tempo com que organiza sua programação contém a forma da

rentabilidade e do palimpsesto, um emaranhado de gêneros. Cada programa, ou

melhor, cada texto televisivo remete seu sentido ao cruzamento de gêneros e tempos.

(MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 296)

Por meio das novas tecnologias (internet móvel) ou das tradicionais mídias de massa

(TV e rádio), MESC e EFP ampliam seu repertório de pratos. As diferenças de acesso, no

entanto, sofrem impacto geracional, de interesse e da disponibilidade da banda larga,

propriamente dita. Em nosso último encontro dia 23 de dezembro, uma das voluntárias da

pastoral Grupo União pediu à pesquisadora para encontrar na grande rede uma receita de

rabanada de abacaxi.

75

3.3 A vida como obra de arte realizada com e para o Outro

Maffesoli (1996) denomina de tribalismo, algo que considera inclusive superior ao

Humanismo, ao movimento em que a solidariedade e um ânimo juvenilizante (uma vez que

pleno de potência para realizar o novo) marcam a pós-modernidade. Um saber não mais

apartado do sensível, mas que conjuga razão e sensibilidade, em que a unidade subjetivada

não é mais compreendida fora do conjunto social. O individualismo perde terreno para o

coletivo. Essa socialidade tribal surgida de uma ―solidariedade social elaborada a partir de

atrações, de repulsões, de emoções e de paixões‖ (MAFFESOLI, 1996, p. 15) norteia muitas

das ações de nossas mulheres migrantes e se propaga por contágio, reverbera ao redor como

as marolas que transmitem suas ondulações até chegar à terra.

Seus descendentes replicam essa tradição do compartilhamento de comida e afetos,

como no trabalho da pastoral dos Vicentinos Grupo União que distribui, juntamente com a

paróquia de Santa Rita, cestas de alimentos e organiza cafés da manhã comunitários às

famílias mais vulneráveis e em risco alimentar da Favela. Seria a retomada de um saber

coletivo, ―sensibilidade intelectual‖, da emergência da intuição, como defendeu Maffesoli

(1996). Esta ação destacada do material em relação ao social, como um sobrevoo sobre o

mundo, seria uma ação estética (do grego aísthêsis, que significa ―faculdade de sentir‖ ou

―compreensão pelos sentidos‖, sendo assim, próprio do humano, e como tal comum a cada

um e a todo humano).

Esse narcisismo coletivo, sem deixar de ser individual, põe a tônica na estética, pois

o que ele promove é esse estilo particular, esse modo de vida, essa ideologia, esse

uniforme vestimentário, esse valor sexual, em suma, o que é da ordem da paixão

partilhada. Nem que seja por um instante, é preciso insistir sobre esse último ponto

que, em particular, faz compreender, in fine, a estreita conexão que estabeleci entre a

ética e a estética. O valor tribal que fundamenta o narcisismo coletivo é a causa e

efeito do que a filosofia alemã [...] chamou de Lebenswelt, um mundo de vida.[...] o

próprio desses Lebenswelten é serem inconscientes [...]. Nesse sentido, o

Lebenswelt, o mundo da vida é o que une de um modo não consciente. É uma ética

no sentido forte do termo: isto é, o que permite que a partir de algo que é exterior a

mim possa se operar um reconhecimento de mim mesmo (MAFFESOLI, 1996, p.

38-39).

O sociólogo defende então sua plataforma de uma ética da estética, cada vez mais

imbricada pela emoção, intuição e afetos compartilhados. O campo do simbólico e sua

conexão com a proposta libertária para esse corpo dócil, aprisionado a uma lógica de mercado

76

na sociedade de controle (Foucault), seria uma primeira etapa de reelaboração de táticas para

a volta ao campo político.

Tática é [...] o modo de operação, de luta, de ―quem não dispõe de lugar próprio nem

de fronteira que distinga ao outro como uma totalidade visível‖, o que faz da tática

um modo de ação dependente do tempo, muito permeável ao contexto, sensível

especialmente à ocasião. [...] É a prática das populações do nordeste brasileiro

introduzindo no discurso religioso astutamente fatos da vida, da atualidade, o que

converte a narração do milagre do santo em uma forma de protesto contra a

inalterabilidade da ordem, que deixa assim de ser ordem da natureza e se torna

história. São os modos de ler-ouvir das pessoas não-letradas interrompendo a lógica

do texto e refazendo-a em função da situação e das expectativas do grupo‖

(MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 114).

Esse conceito que opera num espaço-tempo determinado e sempre no agir comum

também é enfatizado por Certeau (1999):

A prática do bairro é um sinal de uma tática que só ocorre em conjunto com "la del

otro". Tudo o que o utilizador obtém quando "realiza" o seu bairro não pode ser

quantificado ou representado numa troca que exija uma relação de forças: a

experiência contribuída pelo costume nada mais é do que a melhoria do "modo de

fazer", da caminhada , para fazer o seu caminho, para o qual o usuário verifica sem

cessar a intensidade de sua inserção no meio social. (MARTÍN-BARBERO, 1997,

p.12, tradução nossa)42

Ao mesmo tempo, as práticas dessas mulheres não são avessas à boa parte do que se

convencionou classificar como os tradicionais papéis e representações do feminino: a

consumidora de moda e de rituais de beleza e a de mãe que reivindica o direito de gerir o

número da prole. Um aspecto que não vamos tratar de maneira pormenorizada, mas que pode

vir a sê-lo em futuras pesquisas, e nos chamou a atenção é o lugar que nossas mulheres

diaspóricas e mais velhas ocupam no trabalho reprodutivo: um papel de prestígio junto à

família e à comunidade.

Ao contrário do que pratica o mercado de trabalho, elas são tão mais visíveis na esfera

doméstica quanto mais são invisíveis na esfera pública. Não só participam com sua renda (de

trabalhadoras intermitentes ou pensionistas) no sustento da família, mas cuidam da terceira

geração de modo a possibilitar a entrada de filhos e filhas no mercado de trabalho. E mais: por

representarem a experiência encarnada, o saber do tempo. A vida de nossas migrantes na

Favela de Ramos marcada pela solidariedade contrasta com a falta dessa mesma rede de

proteção para as mulheres da classe média, assoberbadas na solidão da maternidade,

42

la práctica del bairro es signo de una táctica que sólo ocurre junto con "lá del otro". Todo lo que el usuario

obtiene al "poseer" verdaderamete su bairro no puede cuantificarse ni representarse en un intercambio que

requiera una relación de fuerzas: la experiencia aportada por la costumbre no es más que el mejoramiento de la

"manera de hacer", de pasearse, de hacer su camino, por lo cual el usario verifica sin cesar la intensidad de su

inserción en el entorno social. (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 12)

77

pressionadas por desempenho em múltiplas funções e papeis e isoladas numa sociedade

individualista. Não se trata mais de uma oposição que reduz a mulher a mero aparelho

reprodutor, mas a de ressignificar a maternidade como opção e de promover a proximidade do

tempo maternal e cíclico com o linear, como definiu Kristeva (2014, p. 71, nossa tradução):

―isso nos permite tentar devolver ao erotismo materno sua complexidade biopsiquíca – para o

bem-estar da criança, não menos do que para a emancipação da mulher – e através da

maternidade‖43

.

Essas mulheres percebem sua vida como obra de arte (FOUCAULT, 2006;

MAFFESOLI, 1990) porque foi uma vida vivida, que fez sentido quando vista em perspectiva

(Hilda dos Anjos: “Criei meus filhos tudo aqui na favela, nenhum deu pra coisa ruim. Não

morreu ninguém. Tá tudo vivo aí”) e pode ser transmitida às gerações que vão sucedê-las.

A elaboração ética de si é antes o seguinte: fazer da própria existência, deste

material essencialmente mortal, o lugar de construção de uma ordem que se mantém

por sua coerência interna. Mas da palavra obra devemos aqui reter mais a dimensão

artesanal do que ―artística‖. Esta ética exige exercícios, regularidades, trabalho;

porém sem efeito de coerção anônima. A formação, aqui, não procede nem de uma

lei civil nem de uma prescrição religiosa: O governo de si, com as técnicas que lhe

são próprias, tem lugar ‗entre‘ as instituições pedagógicas e as religiões de salvação.

―Não é uma obrigação para todos, é uma escolha pessoal de existência‖. Logo

veremos que esta escolha pessoal não é uma escolha solitária, mas implica uma

presença contínua do Outro, e sob múltiplas formas. (FOUCAULT, 2006, p. 643).

A noção de vida cotidiana como obra de arte (Maffesoli apud Maia, 1990) aqui

configura-se como uma ética, ação orientada de si para si, mas que contempla sempre o

Outro. É a resistência da experiência, como vista por Benjamin (1987), contra a vivência na

velocidade do capitalismo cognitivo, anódino, insípido e a que tudo quer capturar. Essa

fruição do presente, com pegadas passadas e com vistas para o devir, o futuro perspectivado,

constrói uma autorreferência, solda laços, como a gambiarra dos telhados da favela.

3.4 Nordestinas, faveladas e cozinheiras: narrativas de resistências

Em Cordovil, subúrbio carioca para onde me mudei aos 7 anos, faltava tudo: escola,

posto de saúde, creche. Faltava e falta Estado. Mas sobrava e sobra uma rede de proteção

43

―it allow us to attempt to give back to maternal eroticism its biopsychical complexity - for the well-being of

the child no less than for the emancipation of the woman – in and through the maternal‖ (Reliance, or maternal

eroticism, American Psychoanalytic Association, vol 62, number 1, February 2014, p. 71).

78

entre as mulheres que para ali foram removidas, vindas da Favela de Ramos. Agenciamentos

que fortalecem e produzem práticas de solidaderiedade e resistências. Foi assim que sem

perceber, me vi envolvida na ―operação de guerra‖ de aposentar uma vizinha: Odália dos

Santos, a Dadaia, desencadeada pela madrinha.

Dadaia era preta, mineira e separada de um português que a espancava. Perdeu o único

filho ―de doença ruim‖. Na Praia de Maria Angu, ela era vizinha da mãe e da madrinha

Jandira dos Santos, uma filha de santo, nascida numa família de negros e italianos em Itu,

interior paulista. Dadaia trabalhara uma vida inteira na casa de quem pagasse por seus

serviços de doméstica. Das suas mãos, saíam maravilhas que faziam cócegas no palato,

provocavam pororocas no esôfago e desaguavam em ondas de espasmos de prazer na boca do

estômago.

Analfabeta, brigada com a única irmã, éramos nós, as vizinhas da Favela de Ramos, a

sua família. Sem nunca ter tido carteira assinada, a madrinha me incumbiu de aposentá-la,

garantia dada mesmo para quem nunca tivesse contribuído com a Previdência Social, nos anos

80. Com meus 17 anos, corri com Dadaia por incontáveis postos do INAMPS. ―Falta a

certidão de nascimento‖, dizia um servidor. ―Não é aqui, é lá no Iapetec, em Olaria‖. ―Não,

minha filha, é no posto da Penha‖. E toca de arrastar a sexagenária, pesada e lenta por conta

da idade, de um lado para o outro. Conseguimos, enfim, que ela se aposentasse com um

salário-mínimo. O vínculo de solidariedade, o comum, era a resistência possível para essas

mulheres.

Mas para tratar de resistências, devemos antes analisar o seu oposto: o poder. O poder

não diz ―não faça‖, mas diz o que se deve ser, o que se deve fazer, o que se deve dizer. A fala

do poder é tão astuta que ela se dobra sobre si. Se o poder não é identificável, uma vez que é

relação, se dá no tempo, e não está em lugar algum, e escapa sempre, como resistir a ele? O

poder reprime? Não, mas oprime, na medida em que vai constituindo os sujeitos falantes.

Todos os discursos são opressores de alguma maneira, apresentam uma linha de opressão.

Onde acho que há opressão, pode haver liberdade.

Quando Foucault analisa a formação das prisões (1987), ele não toma a História como

uma evolução cronológica nem como síntese de fenômenos, mas como uma espécie de

totalidade, ou diagrama dessas relações de poder, derivando certas relações de saber no

movimento, sem pensar na estrutura histórica das prisões. É uma História não histórica, que

se serve para algo é para apontar o que escapa dela. Se Foucault se aproxima de um

historicismo é de uma História que não é mais pano de fundo, mas como uma linha que

79

compõe um diagrama. Até mais que isso, um transbordamento, para observar de que forma as

coisas escapam.

É talvez só na dimensão da inteireza do seu pensamento que se consiga observar esses

diagramas, jogos de forças. Pensar o poder é pensar na resistência. Trata-se, pois, de um duplo

movimento que ao mesmo tempo em que está sendo criado está sendo desprezado e

―superado‖ por uma nova onda, que é engolida por outra que vem sucedê-la e já não

impulsiona nada. A cada momento, o diagrama é reposicionado, criando dispositivos44

próprios igualmente negados e recriados sem parar. A arqueologia foucaultiana é a

constituição de uma superfície de inscrição dos acontecimentos.

Voltemo-nos agora ao conceito de biopolítica. Ele não se refere ao poder que está

dentro de cada um, já que não existe dentro, mas é o poder que está agindo em mim e

produzindo uma subjetividade qualquer. A prisão e a sexualidade são superfícies de inscrição,

assim como os discursos, mas igualmente produzem resistências. Foucault olha o mundo e

percebe o poder como fluxo positivo, produtivo, direcionamento das coisas, opressão dos

fluxos. Tudo é força, tanto as ativas quanto as reativas.

O ―método‖ de Foucault é nominalista. Poder é efeito. Não é uma coisa, mas

exercício, relações em constante deslocamento, e como produz efeito. A biopolítica seria a

vida biologicamente compreendida e passível de ser escrutinada sob a lupa da Ciência, da

Antropologia. Biometricamente controlada, medida, aferida para efeito de normatização. Ou

seja, a vida examinada debaixo do microscópio e da trena: a vida que é passível de exames de

natalidade, reprodução, mortalidade, frequência da atividade sexual. A vida que se torna

objeto da realidade material de um poder de Estado: a sexualidade como cruzamento do saber

e do poder.

A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione

no modo do biopoder pelo racismo. /.../ Se o Poder de normalização [bioPoder] quer

exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de passar pelo racismo. E se,

inversamente, um Poder de soberania, ou seja, um Poder que tem direito de vida e de

morte, quer funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia

da normalização [tecnologia do bioPoder], ele também tem de passar pelo racismo.

E claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também

tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para

alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a

rejeição, etc. (FOUCAULT, 2000, p. 306).

44

Dispositivos como elementos discursivos e extra discursivos que podem ser instituições, ações que orientam

gestos, práticas, que têm efeitos no real, informam nossa experiência histórica.

80

Na biopolítica, o corpo é exemplar de uma etnia ou aspecto populacional, não se trata

mais de individuação, algo da esfera do exemplar unitário da espécie. Esse gerenciamento da

vida seria a principal característica do biopoder. O racismo de Estado mobiliza o aparato para

condenar à morte. O biopoder (como gestão da vida) toma para si a reprodução da vida e a

hegemonia da morte. Para tanto, lança mão do racismo. Para o autor, esse racismo seria a

produção de um contingente de indesejáveis: imigrantes, desempregados, velhos, doentes,

loucos, transgêneros, favelados. Seria o que Agamben (2007) cunhou como vida nua: aquela

reduzida a seu sentido biológico mínimo, destituída de seus direitos e dignidade. O

capitalismo investiu no corpo recursos que só poderiam ser mobilizados pelo Estado para

abarcar contingentes populacionais em espaços abertos para assujeitá-los. No biopoder a

economia política e a estatísticas são saberes que atuam de forma total. Os Estados necessitam

do racismo, pois sem ele, não teriam como requerer o ‗direito‘ de matar. A favela seria um

desses lugares.

No entanto, repetimos Foucault em sua máxima: onde há poder há resistência. E

percebemos na micropolítica das mulheres da Favela, essa resistência, como potência

imaginativa, onde a percepção de grupo é forte o bastante para criar a vida como obra de arte

e engendrar novos mundos possíveis. As mulheres nordestinas da Favela de Ramos mantêm

laços com técnicas de cozimento, insumos e memórias de suas cidades de nascimento,

reveladas no consumo, nos modos de preparo, na rotina de servir esses pratos e numa

temporalidade ritualística. Tempo da vida que, como alertou Crary (2016), sofre ataques com

os avanços tecnológicos que imprimem aceleração dos fluxos, despotencializando o

compartilhamento, a fruição e a contemplação da cotidianidade que ―desempenha um papel

decisivo na reinvenção do sujeito e na intensificação do controle. Docilidade e isolamento não

são subprodutos indiretos da economia financeira global: estão entre seus objetivos

principais‖ (CRARY, 2016, p. 51).

Os ataques aos ritos domésticos, assim como as demais esferas da vida, visam ao

esvaziamento de símbolos e imaginários, promovendo uma desagregação, provocando um

afastamento interpessoal. Por isso, afirmamos que o sentar-se à mesa, dividir o alimento,

preservar as trocas e usufruir dessa comensalidade é ato de resistência. Não só em nível

pessoal e coletivo, mas na cultura. Entre nossas mulheres, esse espírito de comunidade, de

grupo, de família, de pertença é imbuído da noção de território no cotidiano, durante as festas,

almoços de domingo, em ações em prol de moradores mais vulneráveis promovidas em locais

religiosos e celebrações várias.

81

Se nossos sentidos, lembram Crary (2016) e Berardi (2017), sofreram nas últimas

décadas um entorpecimento – por conta da aceleração provocada pelas novas tecnologias do

capitalismo cognitivo, o que derivaria em um afastamento dos contatos interpessoais –, é certo

dizer que usufruir dessa comensalidade é ato de resistência (FOUCAULT, 2017). A tentativa

do capitalismo cognitivo de desertificar a cotidianidade – com bolsões de resistências como

vimos entre nossas entrevistadas na Favela de Ramos –, segundo o filósofo Berardi (2017), é

decorrência direta da política econômica neoliberal.

Ocorreram duas coisas. A primeira foi que Margaret Thatcher declarou que a sociedade não

existe, que só há indivíduos e empresas em permanente competição – em guerra

permanente, digo eu. A segunda é que, nas últimas décadas, a relação entre os corpos se fez

cada vez mais rara, enquanto a relação entre sujeitos sociais perdia a corporeidade, mas não

a comunicação. O intercâmbio comunicacional tornou-se puramente funcional, econômico,

competitivo. O neoliberalismo foi, em minha opinião, um incentivo maciço ao suicídio. O

neoliberalismo – mais a mediatização das relações sociais – produziu um efeito de

fragilização psíquica e de agressividade econômica claramente perigosa e no limite do

suicídio45

.

Essa subjetivação da contemporaneidade que, segundo Deleuze (1992), forma corpos

para o consumo e torna cada um o empresário de si, destitui laços do grupo, fomentando a

derrocada dos valores humanistas. Ir à feira, ao mercado, abastecer a geladeira, escolher o

cardápio, cozinhar, preparar a mesa, dispor copos, talheres e comer entre família, amigos,

colegas é, talvez, uma das poucas oportunidades em que é possível desacelerar, suspender a

lógica 24/7, como bem definiu Crary (2016), reestabelecendo esse convívio olho no olho, a

verdade do gosto e da comida compartilhada. Nossas entrevistadas ilustram como percebemos

que a vida comunitária das classes baixas faz frente a esse processo de anestesiamento pela

celebração do cotidiano.

45

ÍÑIGO IBÁÑEZ, Juan. Neoliberalismo, assexualidade e desejo de morte. Outras Palavras. Disponível em:

<https://outraspalavras.net/posts/neoliberalismo-assexualidade-e-desejo-de-morte/>. Acesso em: abr. 2017.

82

4 AFETOS, GESTOS E TRENS DE COZINHAS COMUNICAM

Um território é mais que um lugar, um espaço dado, uma faixa de terra cercada, um

local definido. Nas ciências sociais, a influência de um genius loci (a força do lugar) é objeto

de interesse desde os gregos antigos. Um termo com múltiplos significados, signos e

referências, nos apropriamos do conceito de território mais trabalhado por Sodré (1988) e

Maffesoli, que se assemelham em seus desdobramentos. ―A História dá-se num território, que

é o espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade realiza na direção da identidade

grupal‖ (SODRÉ, 1988, p. 22).

Se a concentração de capital criou um excedente de precarizados e zonas para o

racismo de Estado (FOUCAULT, 2000), em que concentrou matáveis, como manicômios,

hospitais, guetos, favelas, campos de refugiados, também promoveu uma reterritorialização. A

Favela de Ramos é palco dessas forças criadoras e imaginativas do cotidano, que

concentraram historicamente contingentes de assalariados e precarizados, e que, uma vez

reterritorializados, mostram a potência de vida que se multiplicou em muitas ações, memórias

e afetos no dia a dia.

São muitos os exemplos dados ao longo da nossa pesquisa, mas gostaríamos de nos

deter – mesmo que de forma superficial e escapando do nosso objetivo principal – sobre

alguns arranjos no território que revelam as táticas micropolíticas e seus agenciamentos.

Como a instalação em becos e vielas de quebra-molas, em razão do boom de uma mobilidade

mais veloz em conformidade com a contemporaneidade: motos, motonetas e bicicletas

disputam as vias estreitas com todos os corpos dessa socialidade: animais domésticos,

crianças, jovens, mulheres, carrinhos de bebês e carrinhos de mão, homens, deficientes e

velhos. A proliferação de pequenos negócios familiares e a própria verticalidade da

arquitetura da Praia de Ramos, a exemplo do que ocorre em diversas comunidades no Estado,

e que mudaram completamente a paisagem da favela que conheci há 50 anos. Não nos

debruçaremos sobre as condições de possibilidades materiais e históricas desses fenômenos.

Queremos sublinhar a potência desses agenciamentos capazes de operar sobre uma realidade

em constante movimento que busca a realização de mundos possíveis.

A economia informal fez explodir um cenário em que a comunicação se realiza

também por uma mixórdia de apelos visuais e sonoros. Como a tapioca vendida desde

outubro de 2017 num balcão improvisado em frente à casa de HNA por um casal de

migrantes, ela do Amazonas e ele da Paraíba: as variações incorporam um ingrediente

83

globalizado, a Nutella, a um insumo autóctone secular, a goma de tapioca. Além do

majoritário comércio de comida, há uma predominância para as ofertas de serviços dedicados

ao embelezamento do corpo: salões de beleza e barbearias espalham cartazetes com preços e

fotos de cortes para mulheres e homens, de unhas estilizadas com esmaltes e acessórios de

diversas cores e formatos.

É essa a lição que se pode tirar dos adornos, ou das diversas modulações da

valorização do próprio corpo; elas fundam o corpo social, constituem, no sentido

mais simples, sua economia específica . Vê-se portanto, como a figura, a forma, a

imagem, coisas reputadas estáticas, não deixam de estar em ação no crescimento

societal. [...] Fortalecem, a longo prazo, o perdurar de um dado conjunto, é até

possível que o fim de uma civilização dependa da incapacidade de ela continuar a

gerar imagens, e, portanto, a se pôr em cena. (MAFFESOLI, 1996, p. 162)

Seria essa ética da estética, do prazer compartilhado de sentir e estar-junto (imbuído da

noção mística de re-ligare, mas sem objeto determinado) ateleológico, que Maffesoli detecta

nas tribos urbanas, em diversas obras.

A predominância de lanchonetes, bares, camelôs, carrocinhas e biroscas (esse misto de

bar e mercearia) e suas refeições calóricas, plenas de carboidratos e petiscos, mostra a

mudança operada na comensalidade local, e que vi ainda na Favela da Rocinha, como notou

Martín-Barbero (2000):

Por exemplo, como a comida já não é mais um ritual celebrado pela família

patriarcal – e tem gente que põe a culpa no McDonald‘s, que estaria acabando com a

nossa cozinha brasileira ou nossa cozinha colombiana. Mentira. São mudanças de

longa data, que mudaram as relações dos casais, dos pais com os filhos, a jornada de

trabalho, o número de mulheres que trabalham fora de casa. Quando um homem e

uma mulher retornam depois de oito horas de trabalho e possivelmente com uma

hora e meia de trânsito, de ônibus, não têm vontade de comemorar nada. Isso já

deixou de ser uma comemoração, a comida é outra coisa quando tem um aniversário

ou no fim de semana, isso é diferente. Durante a semana, foram produzidas

mudanças profundas nos rituais cotidianos do lar, da comida.46

Esses serviços vêm atender à dinâmica doméstica em que a mão de obra feminina tem

de se dividir entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. No entanto, Cascudo (2004,

p. 840) já notava, em 1963, o que avaliava como declínio da cozinha regional na menor

comercialização das ―velhas iguarias‖ em Salvador e a maior oferta de fast food. ―Os

populares frequentadores do mercado e sua rampa, da Feira de Água de Meninos, preferiam

comida portátil, comendo e andando‖.

46

Diálogos Midiológicos – 6 Comunicação e mediações culturais. Revista Brasileira de Ciências da

Comunicação, p. 151-163 Vol. XXIII, nº 1, janeiro/junho de 2000.

84

A forte economia local, tanto formal quanto informal, inclui também serviços

singulares desses territórios, como a venda de botijões de gás, lojas de produtos típicos

nordestinos e ainda aviários e lava-jatos. Uma disputa pelo mercado consumidor que inclui a

religião, que se expressa ali com a abertura de inúmeras denominações neopentecostais e a

concorrência por fieis. Mas não nos deteremos sobre esse tema. Apenas sinalizamos a

importância do território como espaço de jogos de poder, forças antagônicas e desiguais.

Queremos tratar neste capítulo ainda, dos gestos que acompanham os ritos da

comensalidade. Entre nossas entrevistadas da diáspora nordestina, notamos um hábito

comum: o de comer de colher até, pelo menos, a adolescência. A adaptação ao chegar ao Rio

de Janeiro aboliu ou negociou esse costume: adotar garfo e faca e desprezar a colher, ao

menos fora do ambiente doméstico. EFP abandonou a colher aos 12; HNA ainda usa; JC

confessa que foi difícil aprender a comer com dois talheres. Ela os usa apenas na casa da

patroa. Mas na intimidade, faz uso da colher com a justificativa de que ―vai mais comida na

boca‖.

Cascudo (2004, p. 36) destaca esse uso popular: ―A colher, para o povo, é a mão com

os dedos unidos, assegurando a concavidade receptora e natural Certeau (1999, p. 208)

sublinha que determinados gestos têm sua duração marcada por uma ―necessidade (material

ou simbólica), uma significação e uma crença‖. No entanto, percebe-se em seus discursos um

imaginário deficitário, em que se revela uma relação de poder, de gerenciar condutas, em que

a forma do Outro é vista como correta e a do Nordeste, arcaica e pouco ―civilizada‖.

A rememoração dos gestos e usos aprendidos na infância aponta para tradições

reatualizadas ou abandonadas, mas da mesma forma sempre lembradas com visível saudade.

E, de novo, demarcam uma precariedade de um tempo em que a escassez ou hábitos de um

ethos do Nordeste eram a marca da vida e das refeições: o uso da rede de dormir, do pote de

barro para armazenar a água de beber, a ausência de geladeira e de talheres, o fogão a lenha

ou o fogareiro de barro ou o feito de pedra e forrado com folhas de bananeira, a farinha de

mandioca como base para fazer ―capitão‖, bolinhos moldados manualmente pela mãe ou avó.

Algumas mencionam o ―capitão‖ com o qual foram alimentadas quando meninas ou que

alimentaram sua prole como iguaria de infância pobre.

Mesmo prenhe de afetos e emoções, essas lembranças paradoxalmente também

assujeitam um modo de se ver, de ser, de comer, de se identificar, de um regionalismo que

está atravessado de valores de um mundo globalizado. Nossas mulheres veem seu ethos

anterior como mais próximo do não civilizado, do inadequado, do precário. A percepção da

falta é sempre em relação ao que foi adquirido na vida adulta. Ou é visto como precarizado ou

85

deficiente em relação ao que é usado ou consumido no Rio de Janeiro (MESC: ―A gente não

tinha nada em casa, nem colchão. A gente dormia em colchão de palha ou rede‖, assim

classifica o hábito disseminado no Sertão e herdado dos povos nativos como escassez). Como

destaca Maciel (2004, p. 28):

O problema está na maneira como a diversidade é percebida e utilizada. Converter a

participação dos povos fundadores e fundantes da nacionalidade em ―infuências‖ ou

―contribuições‖, em suma, em ―vestígios‖, é uma ação redutora que ignora o

processo histórico em que se deu essa participação, processo este que envolveu

desigualdades, conflitos, discriminações e hierarquizações.

Talvez por excesso de pudor ou falha metodológico-teórica sobre as relações de poder,

Cascudo (2012) tenha imputado ao antipatriotismo ou à falta de autoestima o que percebia

como uma derrocada da manutenção da comida do Sertão, que ele tanto apreciava e traduzia

como valor simbólico e de identificação.

A cozinha sertaneja está decadente. Menos por sua própria essência do que pelo

indesculpável acanhamento em mostrar-se. O primeiro cuidado de um fazendeiro de

Minas Gerais ou São Paulo é provar que come bem e o que come é gostoso. O nosso

sertanejo disfarça, esconde, mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar

desonrado servindo coalhada com carne de sol, costelas de carneiro com pirão de

leite, paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o munguzá que o africano

ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena. Nada mais

antipatriótico e desumano que esta modéstia criminosa. Nós devemos ter orgulho de

nossa alimentação tradicional, formadora de rijos homens de outrora, vencedores da

indiada, lutando com as onças a facão e morrendo de velhos. (CASCUDO, 2012, p.

19)

Se boa parte das receitas não se reproduz na Favela pela escassez de tempo para

executá-las seja pela falta de insumos ou pela ausência de espaço (EFP: ―eu acho que muitos

pratos nordestinos vão desaparecer, pois aqui não dá para fazer, não tem como assar uma

carne, não tem quintal, minha cunhada quando estive na Paraíba, fez doce de coco no

fogareiro, aquele de barro com uma grelha em cima‖), é certo dizer que algumas se alastraram

para fora do grupo e ganharam diversas adaptações ao gosto local, como a tapioca e o queijo

de coalho.

Mesmo com os avanços da tecnologia, a cozinha não incorporou muitas invenções que

facilitassem o dia a dia das nossas cozinheiras. As mulheres das classes baixas, mesmo com a

jornada dupla e estafante, ainda cozinham para toda a família, com a ajuda esporádica de

maridos e filhas. As opções de pratos processados e congelados têm uso restrito. O ato de

cozinhar permanece sobretudo diário e mecânico.

Também na área doméstica das nossas entrevistadas, a cozinha ocupa um lugar

privilegiado na espacialidade da casa. Em geral tem metragem generosa em relação mesmo à

86

sala. Todas dispunham de infraestrutura e equipamentos encontrados em grande parte dos

lares da classe média urbana da cidade do Rio. Nossas entrevistadas mantinham a cozinha em

espaço bem organizado, em geral, com área livre suficiente para dar mobilidade para no

mínimo quatro pessoas. Lá, compõem o espaço, mesas, cadeiras, comumente para no mínimo

quatro pessoas, fogão, geladeira, pia, e utensílios para cozinhar, como batedeiras, micro-

ondas, cafeteira e filtros de água elétricos e de barro.

A importância dos utensílios da cozinha é percebida nas trocas que essas mulheres

mantiveram com suas mães, que permaneceram em suas cidades de origem (MESC: ―E fiquei

com algumas coisinhas dela [da mãe] quando morreu, uma cafeteira de alumínio que uso

mais. Ela sempre trazia pano de prato, caminho de mesa. Eu dava a ela colher de pau, panela,

frigideira novinha. Dava muita roupa. A última coisa que dei foi um vestido‖). A migração

proporcionou a elas o consumo de itens antes impensáveis de serem adquiridos. No entanto,

esses objetos se mantiveram muitas vezes para uso restrito, reservados a ocasiões especiais e

como serviço de marcação (MESC: ―Mãe fez capa de almofada de crochê. Para mim é uma

relíquia, nunca usei‖; EFP ―Minha mãe tinha um sonho, ter um faqueiro. Eu juntei dinheiro e

comprei uma mala de madeira bem chiquezinha, forrada de veludo vermelho. Tinha umas 48

peças. Ela falava ‗compra um faqueiro‘. Mãe só usava se chegasse uma visita do Rio. Ela

queria fazer bonitinho e tirava os garfos e as facas, porque lá em casa, o povo come de colher.

Foi difícil tirar o hábito‖).

Uma forma tradicional de troca de presentes acontece quando voltam a seus estados,

nas férias do trabalho – em geral, levam roupas, peças de cama, mesa e banho e ainda

eletroeletrônicos. MESC lembra de como deu à mãe um fogão a gás, que foi devidamente

instalado à vista de quem entrasse na cozinha, mas nunca foi ligado: ―Mãe não precisava

cozinhar no fogão a lenha, mas cozinhava. O de gás ficava de enfeite‖. JC lembra que a mãe

nunca teve geladeira, TV, ferro elétrico ou liquidificador: ―Depois que minha irmã veio

trabalhar, deu um fogão a ela. O fogão se acabou e ela nunca usou... nem rádio, nem TV, nem

geladeira. Ela vinha para cá e nem abria a geladeira. Comprei uma TV, mas vendi, ela dizia

que não sabia mexer‖, lembra entre incrédula e frustrada.

Se nos países europeus e da América do Norte, a cozinha tornou-se lugar para a

automação, como uma extensão do processo de industrialização que aliena o homem do

produto de seu trabalho, nos países subdesenvolvidos essa articulação não se deu. Ainda há

muita atividade feita manualmente. No entanto, como já aconteceu na Europa no fim dos anos

70, o artesanal e o feito à mão vêm ganhando cada vez mais o interesse das novas gerações. O

87

fenômeno já ganhou nome e sobrenome: Movimento Maker. O seu alastramento planetário é

associado à nova onda do feminismo. Mas não só.

O orgulho pelo próprio trabalho está no cerne da habilidade artesanal, como

recompensa da perícia e do empenho. Embora em sua forma grosseira o orgulho

apareça como pecado tanto no judaísmo quanto no cristianismo, colocando o eu no

lugar de Deus, o orgulho pelo próprio trabalho aparentemente afasta esse pecado, já

que o trabalho tem vida própria. [...] os artífices orgulham-se sobretudo das

habilidades que evoluem, Por isso é que a simples imitação não gera satisfação

duradoura; a habilidade precisa amadurece. A lentidão do tempo artesanal é fonte de

satisfação; a prática se consolida, permitindo que o artesão se aposse da habilidade.

A lentidão do tempo artesanal também permite o trabalho de reflexão e imaginação

– o que não é facultado pela busca de resultados rápidos. Maduro quer dizer longo; o

sujeito se apropria de maneira duradoura da habilidade. (SENNETT, 2009, p. 328).

O movimento dá pistas para uma guinada que retoma a unicidade do humano com a

técnica. Técnica como pensada na Grécia Antiga: o ser próprio do humano. A cozinheira se

reconhece naquilo que faz, nas receitas de família, aprendidas na TV ou com as amigas e

vizinhas.

A cozinha em geral ocupa o que se chama de área de serviço, longe dos olhares das

visitas, dos espaços destinados ao convívio social. Seu acesso, então, confere familiaridade a

quem por ali circula. No interior do Nordeste, mas também nas casas de subúrbio do Rio de

Janeiro, vizinhos, conhecidos, parentes, amigos e agregados adentram a esse aposento da casa

pelo ―muro‖ ou pelos fundos. E mais internamente essa intimidade se alcança invariavelmente

em torno de um móvel: as mesas.

As famílias se reuniam à sua volta para as refeições diárias? Tudo indica que, até o

século XVIII, o hábito de comer junto não se tinha instalado, salvo nos conventos.

Hoje, exibidas em museus, as mesas de aba ou cancela, de cavalete ou com pernas

de lira mais serviam para suporte de alfaias ou de oratórios de santos. Somente no

início do século XIX encontraremos informações como as de John Luccock

explicando que ―na hora do jantar, a meio dia, pela justaposição de duas ou mais

mesinhas formava-se uma única‖. À volta, ―tamboretes toscos‖. Improvisação,

portanto. (PRIORE, 2016, p. 248)

A mesa é onde as trocas acontecem: refeições, conversas, discussões, visitas. A

diarista JC mora numa casa pequena, com varanda estreita, de dois andares. No primeiro piso,

fica a cozinha, ligeiramente maior que a sala de estar, que a antecede, também sem portas. No

andar superior, de onde se chega por uma escada íngreme na sala, ficam quarto e banheiro. Na

sua cozinha quadrada, instalou de forma bem organizada o básico de uma cozinha urbana:

mesa redonda de fórmica com quatro cadeiras, fogão, geladeira, pia de bancada de alumínio e

um armário, onde acomoda louças, utensílios e equipamentos que facilitam sua lida

(―Comprei esse espremedor de laranja industrial, que deve ter a idade de meu filho mais

velho‖). Um item chama a atenção: um filtro de água elétrico e um outro, de barro, que ficam

88

lado a lado sobre a pia. Foi com esse arranjo que ela conseguiu dar gosto à água de beber de

todos os dias:“Tiro a água do filtro elétrico e encho o de barro, assim a água fica mais

saborosa”.

A transmissão desses objetos da mesa do domingo, ou de todos os dias, é fator dos

valores gastronômicos desenhados no passado. O uso regular ou pontual desses itens

como um livro de receitas da avó é um pouco da nossa madeleine proustiana

(STENGEL, 2014, p. 27, tradução nossa47

)

O expediente é exatamente o que descreveu Stengel: lembra a água da casa da mãe,

que acondicionava a água potável em grandes potes de barro. De novo se reacende aqui uma

poesia de tempos e lembranças queridas e raras.

4.1 Os odores da casa, da rua e da comida (e o som ao redor)

O olfato é dos sentidos mais primitivos e dos que mais escapam ao controle. Está

ligado ao mais animalesco no corpo. O faro nos animais pressente o perigo ao longe. Ele

protege e rememora no corpo sinais de que algo é ameaça à nossa integridade. Memória e

olfato estão intrinsecamente ligados. O olfato é aquilo que aciona o passado de forma

imediata, presentificando o passado. Se algo que vemos ou ouvimos nos desagrada, é possível

fechar os olhos e tapar os ouvidos. Mas tanto o paladar quanto o olfato são sentidos que não

se pode enganar.

Kant, muito tempo depois, ainda continuaria a distinguir os sentidos entre os

superiores (tato, visão e audição), por serem objetivos, e os inferiores (olfato e

paladar), que seriam subjetivos e, portanto, ―exercem mais a representação do

deleite que do conhecimento dos objetos exteriores‖. (CARNEIRO, 2003, p 85)

O nariz é bússola e farol para as lembranças mais insuspeitas. Quantas vezes ao sentir

um aroma automaticamente nos vemos capturados por um fato de que nem suspeitávamos

poder recordar ou imaginávamos ter sido soterrado em impressões esquecidas? Existe em

cada um de nós uma paisagem olfativa. (EFP: ―Naquela época se vendia um peixe salgado,

47

La transmission de ces objets de la table du dimanche, ou de tous les jours, est facteur des valeurs

gastronomique dessinées par le passé. L'utilisation régulière ou ponctuelle de ces objets comme du carnet de

recettes de grand-mère est un peu de notre madeleine proustienne. (STENGEL, 2014, p 27).

89

pior-sem-ela. Ele tem um corante gorduroso. Lembro do cheiro entranhado no nariz até hoje.

Eu comia por necessidade‖). Aqui o odor se mescla à repulsa de uma condição de fome. O

peixe virou sinônimo de um desamparo, de uma necessidade básica não satisfeita.

Segundo o neurocientista Eric R. Kandel (2009, p. 198-199), emoções são capazes de

imprimir a ferro a memória, incluindo aí o odor que detona o medo, visto como tática de

autopreservação.

Em princípio, no entanto, um estado altamente emocional, como aquele produzido

por um acidente de carro, poderia passar ao largo dos limites normais que vigoram

sobre a memória de longo prazo. [...] Isso poderia explicar a chamada memória

flashbulb, a memória de eventos tão carregados de emoções que eles são recordados

em seus nítidos detalhes – como minha experiência com Mitzi –, como se uma

fotografia completa tivesse sido gravada de forma instantânea e eficiente no cérebro.

[...] Algumas sessões de treinamento em que um odor específico era pareado com

um choque produziram apenas uma memória de curto prazo do medo desse odor em

moscas normais, mas o mesmo número de sessões fez com que as moscas mutantes

mostrassem uma memorização de longo prazo desse medo. Com o tempo, ficou

claro que o mesmo sistema CREB é importante para muitas formas de memória

implícita numa variedade de outras espécies, de abelhas a camundongos, e também

nos humanos.

Mais adiante, EFP faz a mesma ilação, mas não guarda outro desdobramento afetivo

negativo a não ser aquele do puro gosto e afinidade de paladar, uma vez que se trata de uma

celebração festiva junto à família e aos parentes: ―Via minha mãe fazer. Apanhei pra comer a

buchada. Não queria. Não gosto nem do cheiro. Até agora quando fui na Paraíba, fizemos

churrasco de porco, cabrito para o aniversário da minha cunhada. Fizeram buchada, cabrito

ensopado, assaram no forno. O povo lá adora. Nada de cabrito eu gosto‖.

O olfato, assim como os outros sentidos, se subordina a hierarquias e socialmente pode

ser usado para jogos de poder, para delimitar ações, projetos, para gerenciar condutas. O odor

pode abrir possibilidades, sedimentar alegrias, mas também pode paralisar e inibir ações.

Andar pelas vielas da Favela de Ramos é também oportunidade de fazer uma cartografia dos

odores: do churrasquinho feito em grelhas improvisadas a céu aberto, de fezes e urina de cães

e gatos, de valões abertos, de ciclistas perfumadíssimos, dos grãos de cominho e pimenta do

reino moídas pelo vendedor ambulante na calçada, da tapioca recheada de frango desfiado

vendida à porta de casa, da fritura da pastelaria do casal chinês, do odor azedo do aviário,

tudo junto e misturado. Essa presença concreta e invasiva em que não se divisa o Um e o

Outro, em que tudo se funde indivisivelmente, também é uma ameaça ao indivíduo neoliberal

dentro de uma configuração espacial que tende a apagar limites, amplificar a vigilância,

quebrar códigos de higiene, como foi observado por Corbin (1987):

90

Notemos apenas para respeito que Michelet, muito antes de Michel Foucault,

localizou o inextricável laço que liga entre as exigências higiênicas, o olhar

panóptico e a preocupação de moralizar. ―Aeração, limpeza e vigilância, três coisas

igualmente impossível, escreve sobre a residência do grande sob o Antigo Regime

[...] Aqueles labirintos infinitos de corredores, passagens, escadas segredo,

paciecitos interiores; os lofts finalmente, e os telhados planos com balaustrada,

proporcionou mil aventuras.‖ (CORBIN, 1987, p. 211)

Ao cruzar a Rua Gerson Ferreira, na altura da tendinha do Sabor Nordestino, o cheiro

acre de especiarias e grãos misturado à carne-seca, rapadura e às bolachas me transportava às

feiras do Sertão e ao que Corbin (1987, p. 56) bem diagnosticou: ―as populações regionais

exalam um odor particular; uma vez mais resulta da natureza da alimentação‖. A Favela de

Ramos em dia de domingo – e foram vários os domingos em que percorri o local – recende a

galinha cozida longamente no fogo, temperada com óleo, cominho e alho. Essa impressão

olfativa forma também um elemento de comunhão com o que ali se apresenta para muitos: é o

elo de uma comunidade que compartilha lembranças, gostos e subjetivações. A tal proxemia

de que fala Maffesoli (2006, p. 44): ―o espaço, por sua vez, vai favorecer uma estética e

produzir uma ética‖.

A espacialidade de limites estreitos, a socialidade e táticas de sobrevivência e

convivência aproximam vizinhos que ali mantêm hábitos que vi no Sertão e quando morei ali

no bairro menina, nos anos 60: deixar portas abertas ou apenas encostadas, sem tranca, e

janelas escancaradas. O que torna a relação interior-exterior algo poroso e permeável. O que

lembra uma lógica maffesoliniana de ―horizontalidade fraternal‖: o que é meu é nosso. Mas

isso não exclui contradições e conflitos.

Os protagonistas da vida diária são, concretamente, de grande tolerância de espírito

com relação ao outro, aos outros e àquilo que acontece. Isto é o que faz com que, por

paradoxal que possa parecer, da miséria econômica possa brotar uma inegável

riqueza existencial e relacional. Nesse sentido, levar em conta a proxemia pode ser a

maneira certa de superar nossa habitual atitude de suspeita, para apreciar os intensos

investimentos pessoais e interpessoais que se exprimem no trágico quotidiano

(MAFFESOLI, 2006, p 204)

Essa proxemia48

, como define o sociólogo, é atravessada pelo tempo, o que se percebe

nessa paisagem movente da Favela. E não apenas por esse ―espaço‖ (que embute o dinâmico,

o inclusivo e fora da ordem e se opõe ao ―lugar‖, aquilo que é do ordenamento, o estático e

48

conceito criado nos anos 60 pelo antropólogo Edward T. Hall para definir a relação entre a espacialidade e a

arquitetura e seus impactos nas interações sociais, em grupamentos culturais e seus territórios, em que

vivenciam essa dinâmica por meio de símbolos e signos distintos umas das outras. Eco, Certeau e Maffesoli

empregaram o conceito, que também inclui estruturas ausentes e sua gramática cultural na espacialidade

urbana, em contínua mudança.

91

excludente) sempre se modificar arquitetonicamente (e se adaptar às necessidades de seus

moradores, não só pela escassez de recursos, mas também pela própria dinâmica da vida que

se multiplica para fazer melhorias, consertos e ampliações de suas casas), mas pelas relações

ali construídas. Nas casas que visitei, há várias gerações convivendo no mesmo endereço. Os

jogos de narrativas são os demarcadores dessa espacialidade que estabelece o privado e o

público, fronteiras que vemos hoje borradas entre os usuários da grande rede.

Na Favela de Ramos, seja por hábito do interior do Nordeste, onde ainda hoje se dispõe

as cadeiras da varanda na calçada seja para observar o vai-vém de passantes e os vizinhos seja

pela exiguidade do espaço da casa, também se cultiva a festa estendida à rua, muitas vezes de

forma aparentemente mambembe e precária.

Para o observador desatento, pode parecer uma enorme bagunça, mas na verdade os

ocupantes da rua improvisaram uma forma coerente e econômica, Rudofsky

considerava que é nessa ordem oculta que se desenvolve a maioria dos conjuntos

habitacionais de populações pobres e que o trabalho de improvisação da ordem

urbana liga as pessoas à comunidade, ao passo que os projetos de ―renovação‖, que

podem efetivamente instituir ruas mais limpas, casas bonitas e lojas amplas, não dão

aos habitantes a oportunidade de marcar sua presença no espaço, (SENNETT, 2009,

p. 263-264).

Nas minhas visitas, procurando o endereço das entrevistadas, vi esses arranjos do

improviso muitas vezes, como numa comemoração com churrasco num beco: mesinhas

frágeis amparadas nos muros dos vizinhos equilibravam travessas com arroz, batata fritas,

carne e farofa. E ainda pratos, copos, garrafas de cerveja, talheres, os convivas sentados nas

cadeirinhas de plástico, ao lado de aparelhos de som com música alta, sem se importar com o

movimento das vielas próximas nem com a ameaça de chuva.

Na casa de HNA tudo é dado a ver: portas e janelas sempre abertas. O vai-vém de filhas

e filhos, netos e netas, bisnetas e bisnetos é intenso e aumenta pela visita diária e ininterrupta

de vizinhos e agregados que, sem cerimônia, adentram a cozinha para fazer as refeições que

sempre são servidas para um número variável de comensais, que nunca é menor que três e

podem chegar a vários ao longo do dia. A ―mistura‖ (expressão nordestina que significa, em

geral, a proteína animal servida em uma refeição) e os pratos principais são financiados pela

dona da casa; e frutas, legumes e verduras são comprados pelas filhas. Nessas incursões,

existe também uma trilha sonora, polifônica, de volume sempre alto e de origem imprecisa:

escapava das casas, dos pequenos edifícios, das lojas comerciais e de um galpão, bem à

entrada da Rua Gerson Ferreira, a principal da Favela de Ramos, onde jovens se reuniam para

confraternizar. O som ao redor é pura cacofonia.

92

CONSIDERAÇÕES EM FOGO BRANDO

Onde há perigo, também cresce a salvação

Hölderlin

A comida, como se viu no começo de nossa dissertação, é elo, gramática, o que une as

pontas, serve de cola entre o passado e o presente. É permanência e devir. Tradição e

invenção. Patrimônio e criação. A comida amarra afetos e desata nós. Um prato pode conter

em seus ingredientes mais que insumos: traz e atualiza memórias, saberes, relações, fixa

valores e usos de vencidos na mesa dos vencedores e vice-versa. É a cultura que se pode

mastigar e in-corpo-rar. É cristalizar e se desfazer, num processo que embute o coletivo e o

subjetivo.

Ao pesquisar e escrever sobre a comida nordestina, muitas lembranças ressurgiram,

impulsionando e confirmando minha opção. Como a vez em que fui a um sítio nos anos 90,

próximo ao município de São Bento, na Paraíba, próximo à divisa com o Rio Grande do

Norte, onde uma família – mulher, marido e dois filhos – ainda mantinha a tradição de fazer

queijo manteiga. Uma produção minguada e artesanal, sem as modernidades e sem a

interferência de normas de segurança alimentar. Grandes recipientes com leite grosso, moscas

a valer e um calor que deveria facilitar a fermentação do leite. Tudo armazenado num galpão

de onde se avistava a cumeeira e os raios de sol que atravessavam as rachaduras das telhas.

Ou da vez em que comi uma buchada de bode, em um sítio à beira da estrada, diante de

um açude seco, um calor de ―rachar o quengo‖, e minha impressão, aos 12 anos, de um prato

que nunca havia visto ou comido e que me deu imenso prazer. Ou ainda, a viva cena na

cozinha de nosso barraco, lá em Ramos. Paredes pintadas de azul-roça, o chão vermelho de

cera Parquet, a mesa de madeira azul mimetizada com a parede, o paneleiro de ferro pintado

de prata, as panelinhas de alumínio areadas até virar espelho dependuradas. A mãe à beira do

fogão branquinho, a frigideira estalando, eu do lado, lambendo os beiços, disputando com a

irmã o naco besuntado de carne de porco, o ar entranhado com aquele olor de banha. O

torresmo é a minha madeleine. O marketing da alimentação saudável é o novo dispositivo,

como diria Foucault, para cozinhar em banho-maria afetos tristes. Comer, beber, fazer música

e arte é para ser alegre. E só a alegria produz revoluções.

93

Nossas mulheres migrantes proporcionaram uma riqueza de trocas com o que trouxeram

de suas cidades para a favela carioca. Aqui re-inventaram seu vasto acervo de sabores, com

hibridizações do que encontraram por aqui. Com suas receitas promoveram a festa,

espantaram o banzo do que deixaram para trás. A festa é ocasião de congraçamento com o

Outro. E a comida, que nutre o corpo e se digere como alegria, fortalece o sentido de pertença

e de grupo. Alegria que é a potência de novas possibilidades de mundos possíveis,

engrossadas num caldo de identificações fluidas e híbridas. Juntos somos mais fortes.

Resistimos.

Nossa pesquisa quis garimpar histórias dessas protagonistas do cotidiano. Relatos

miúdos, tão diversos quanto semelhantes, e tão generosamente compartilhados. Registrar seus

depoimentos é uma maneira de conhecer nosso povo, nossa própria História, de registrar,

estudar e valorizar saberes ―vulgares‖, para além da Academia e da Ciência, que a velocidade

do capitalismo cognitivo nos ameaça com o apagamento e o esquecimento.

Pensamos que a comida, que vem ganhando cada dia mais reconhecimento como parte

indissociável do ethos de um grupo, uma região, um país, possa ser alvo de políticas públicas

da Educação. Como bem exemplificou a chef de cozinha Teresa Corção em seu belo projeto,

a ONG Maniva: oferecer oficinas de tapioca para as crianças e a seus funcionários nordestinos

mudou radicalmente a autoimagem desses migrantes.

Teresa Corção, após conhecer a diversidade culinária da mandioca, em 2002, num

festival gastronômico em Pernambuco, tornou-se uma das mais conhecidas e aguerridas

divulgadoras da ecogastronomia, movimento internacional conhecido como Slow Food.

Fundou uma Ong, o Instituto Maniva49

, que capacitou cerca de três mil jovens, ao longo de

oito anos, na Oficina da Tapioca. Por meio desse projeto, um recurso pedagógico, com forte

apelo cultural e inclusivo, os alunos aprenderam ―a importância da mandioca, sua lenda, sua

música, e fazer a tapioca‖. O lema de Teresa Corção: ―Comida é afeto, é cultura, é memória‖.

Foi no convívio com seus funcionários que a chef percebeu que a discriminação do

migrante do Nordeste se transferia também para hábitos e comida típicas.

Meus funcionários nordestinos tinham vergonha de falar de mandioca para os filhos

porque achavam que era comida de pobre. Começamos oficinas de tapioca com

filhos de nordestinos. A gente queria mostrar que o passado deles tinha valor sim.

Nem sempre projeto social gera renda, mas pode trazer apenas transformação social.

As crianças e adolescentes passaram a cozinhar com as mães50

.

49

Disponível em: <http://www.institutomaniva.org/>.

50

CORÇÃO, Teresa (2012). Valorização da comida brasileira. Disponível em: Portal Sabores

http://bit.ly/2dCeM0a. Acesso em: set. 2016.

94

Em entrevista a um site de notícias da República Dominicana, Corção faz uma relação

direta entre a dieta com alimentos autóctones e a estratificação social: ―Quanto mais se sobe

na escala social, menos mandioca se come, e mais pão‖51

. Sua atuação em colocar a mandioca

num novo paradigma alimentar-cultural, envolvendo a investigação e promoção da cadeia

produtiva, lhe valeu a indicação ao prêmio internacional Basque Culinary World Prize, que

destaca a atuação de chefs em ações de sustentabilidade e de transformação social por meio da

gastronomia. ―A função de um chef é ser um elo entre a produção e o consumo. Isso é uma

forma de ativismo político!‖52

.

Outro exemplo é a farinha de mandioca da cidade de Bragança, no Pará. Corção visitou

cooperativas de fabricação da farinha – que renderam ainda material para curtas

documentários premiados –, e as levou para seu restaurante, O Navegador, no Centro do Rio,

onde desenvolve criações a partir de alimentos regionais e que exigiram exploração em

lugares do interior. O recurso de contar uma narrativa de aventuras reforça a ideia de que há

no país um vasto e inexplorado bioma, cuja imensidão geográfica tornaria de acesso restrito

práticas e usos de patrimônios culinários, mas que precisariam ser conhecidos e desbravados

dentro e fora do país. Além disso, ela e outros chefs percebem que por meio desses recursos

as identificações regionais/nacionais criariam uma representação que impacte sua autoimagem

de forma positiva.

A forma como nos alimentamos faz parte da nossa cultura e deveria ser tão valorizada

quanto outras formas de expressão como as artes e a língua. Fazer da imensa diversidade de

receitas tradicionais brasileiras – daquilo que inventamos e recriamos a partir de matrizes das

várias etnias que nos caracterizam como um povo mestiço – um manifesto para a nossa

projeção no cenário gastronômico mundial, com o desenvolvimento de políticas públicas que

levaram, por exemplo, a França e a Itália a serem reconhecidos no planeta como países de

culinária única e exportadores de insumos, saberes e técnicas e cobiçados destinos de turismo

gastronômico.

Temos biodiversidade e criatividade para estarmos no mesmo patamar que nosso

vizinho, o Peru, que em poucos anos de políticas do governo, tornou-se exemplo de culinária

miscigenada, – que mescla as culturas autóctones às dos invasores espanhóis, dos elementos

51

BARCHFIELD, Jenny. Mandioca, comida de pobre, gana estatus en Brasil. Associated Press. Rio de Janeiro,

5 jan, 2013. Disponível em: <https://www.yahoo.com/news/mandioca-comida-pobre-gana-estatus-en-brasil-

135835237.html>. Acesso em: 30 set. 2016.

52

MONTI, Renata. Chef carioca é finalista do ―Nobe‖ da cozinha. O Globo. Rio de Janeiro, 20 jun, 2016.

Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/luciana-froes/post/chef-carioca-e-finalista-do-nobel-da-

cozinha.html>. Acesso em: 30 set. 2016.

95

africanos escravizados e, mais tarde, de ondas migratórias da Ásia e da Europa –, consagrando

o país como um dos mais relevantes da área e de projeção mundial no nosso continente.

Acreditamos que a valorização de nossa culinária regional, do nosso patrimônio

dietético-cultural, desses vários modos de ser brasileiro, ganham novos significados e

visibilidade a partir do que fazem nossas migrantes e chefs de cozinha brasileiros. Reunir

iniciativas que visam a aprimorar e proteger a biodiversidade e promover a produção e

consumo de maneira sustentável de toda a cadeia produtiva de insumos locais, aproximando

quem cultiva dos comensais, passando pelos cozinheiros, promovendo assim seu consumo no

país e no exterior. Esse patrimônio dietético-cultural e ético-gastronômico e do fazer cotidiano

e oral têm fôlego para impulsionar muito mais.

Considero necessário fazer um desvio para uma ampliação do cenário político,

econômico e social. No momento em que escrevo, o país vive uma das maiores crises

político-social da sua História. Em 2017, os brasileiros assistem atônitos ao desmonte das

políticas públicas implantadas na última década pelos governos Lula e Dilma Rousseff. As

reformas trabalhista, da Previdência, do Ensino Médio e privatizações, por exemplo, são parte

de uma orquestração que se desdobra em ecos e aplausos na mídia hegemônica. Para tanto,

cria-se um cenário em que a realidade ganha tintas de uma hecatombe social. Uma estratégia

para desviar a atenção da opinião pública e ainda apoiar medidas vistas como protetivas da

sociedade num indisfarçável Estado de exceção, como bem definiu Agamben: ―o Estado de

exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal‖. A exceção

que caracteriza esse Estado é a que faz de normas aplicadas em momentos contingentes de

emergência, guerra e desastres naturais, serem adotadas permanentemente, suspendendo

direitos individuais.

A visibilidade das ações violentas das Forças de Segurança nas favelas cariocas é

reverberada em manchetes de jornais e nos sites de notícias. A atuação da Polícia Militar e

suas divisões especializadas, que invariavelmente vitimam moradores, é vista pela opinião

pública e pelo próprio comando como uma contingência, um efeito colateral que não pode ser

evitado, só lamentado. O Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado à Secretaria

estadual de Segurança Pública do Rio (Seseg-RJ) deixou de contabilizar os casos de balas

perdidas isoladamente. Reformulou os parâmetros. Atualmente esses casos se somam aos de

homicídios (dolosos e mortes ocasionadas por operações policiais, latrocínio e lesão corporal)

e formam o indicador estratégico de letalidade violenta53

.

53

CARNEIRO, Júlia Dias. Temos fé em Deus de que sairão do Rio', diz família de bebê baleado no útero da

mãe. BBC Brasil. Rio de Janeiro, 4 jul 2017. Dosponúvel em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-

96

Apesar das 67 mortes por balas perdidas, apenas até 6 de julho de 201754

, em grande

parte em confrontos em áreas periféricas do estado do Rio de Janeiro, a favela é onde a ação

das Forças de Segurança se faz de forma profilática e exemplar. Essa foi uma das razões pelas

quais elegi a favela de Ramos como campo de pesquisa. Pesquisar a sistematização de seus

saberes, difundir suas práticas, dar visibilidade à sua história e analisar a memória desses

moradores, em tudo periféricos. Como sugeriu Sennett (2009, p.257) sobre as fronteiras e

limites invisíveis da cidade do Rio de Janeiro:

Este desafio fecha o círculo do problema com que começamos, tentando localizar a

―zona de resistência‖. A expressão tem dois significados: denota uma divisa,

resistindo à contaminação, excluindo, amortecendo, ou uma fronteira, lugar de

separação e ao mesmo tempo de troca. Nas cidades, as muralhas tiveram ambos os

significados. No contexto de uma cidade multicultural, o segundo tipo de zona é ao

mesmo tempo mais desafiador e mais necessário.

Uma forma de estar nesses territórios, conhecer suas dinâmicas e formas de vida e

resistência é resistir e fazer resistir. Entre brasileiros, o que importa é o jogo que se brinca

com o Outro. Afetos contam. Regras são relativizadas, são de ―menor importância‖. Vale o

brincar, o pôr em jogo, o relacionar-se. Kant aqui ―não se cria‖, como diriam jocosamente os

atores dessa dinâmica social.

noticias/bbc/2017/07/04/temos-fe-em-deus-de-que-sairao-do-rio-diz-familia-de-bebe-baleado-no-utero-da-

mae.htm. Acesso em: 16 jul 2017. 54

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_____. Passa-se uma casa: análise do Programa de Remoção de Favelas do Rio de Janeiro.

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103

APÊNDICE A – Entrevistas de campo

HILDA NASCIMENTO DOS ANJOS

O que mais a senhora estranhou quando chegou à favela, vinda da Paraíba?

Não tinha casinha (banheiro), era muita água aqui embaixo (das tábuas do assoalho do

barraco). A gente chega do Norte e estranha. porque ninguém mora assim lá, não. Nunca

mais voltei à Paraíba... A pessoa não gosta mais. Criei meus filhos tudo aqui na favela,

nenhum deu pra coisa ruim. Não morreu ninguém. Tá tudo vivo aí.

Então, dona Hilda, como a senhora faz o pirão de carne?

Pega a panela, põe o tempero, o peito de boi, a carne de boi, né. Corta cebola e alho, refoga

com cominho, sal, pimenta. Deixa no fogo... vai ferver, tomar o gosto, depois tira o caldo, põe

numa vasilha... pega um copo e coloca a farinha com um pouco de água, e com a farinha

molhada joga dentro do caldo e mexe. Não precisa acertar o sal, o sal tá no caldo. Foi minha

mãe, Julia, que me ensinou.

Com quem a senhora aprendeu a cozinhar e como era sua rotina?

Aprendi com minha mãe. E me ensinou a pegar o tempero. A gente acordava de manhã cedo

e colocava a água pra fazer o café. E depois colocava o feijão no fogo. O almoço era carne,

quando tinha, ou ovo, linguiça, a mistura...

O que é mistura, dona Hilda?

A mistura é carne, ovo, linguiça, frango... Eu e meu marido, a gente comia arroz, feijão,

carne. Eu sou velha assim, mas não gosto de verdura, legume. Por isso meus netos não

gostam.

E quantas pessoas comem na casa da senhora normalmente?

Olhe, quem come, de casa, todo dia é Marcio, Micaela, Everton, Carmen Lúcia, Luciane,

Amanda Kelly e Tico, mas ele não almoça. Amanda e Carmen não jantam. Márcia, que não é

de casa, almoça e janta.

Quem é a Márcia, dona Hilda? Como ela se chama?

Márcia dos Santos, a Nagô, ela é usuária de cheirinho da loló, há anos almoça e janta aqui em

casa. Ela morava aqui.

A senhora não tinha medo de ela ser usuária e ser violenta?

Mas menina, ela é que tem medo de mim.

Dona Hilda, me conte como é a rotina de compras da senhora?

Eu compro no começo do mês uma cesta básica aqui com um rapaz que vende na favela.

E o que vem na cesta? Quanto custa?

104

Custa R$ 210,00, e vêm 5Kg de arroz, 3Kg de feijão, 2l de óleo, sal, 2Kg de farinha, 1Kg de

farinha de trigo, uma mala de açúcar com 10Kg, meio quilo de café Pilão, uma caixa com 10l

de leite, aqui em casa é um 1l por dia de leite, mais sabão em pó, papel higiênico, um sabão

em barra, uma pasta de sabão, desinfetante, amaciante.

E a senhora paga sozinha essa cesta? E o que mais a senhora compra?

Minha filha, estou rica, recebo R$ 1.800,00 de pensão. Vou ao Pechinchete e compro o grosso

da mistura: linguiça, carne de boi, carré, hambúrguer, ovo, manteiga, Qualy, óleo cebola,

alho.

E o feijão? A senhora faz com carne ou só o grão?

Compro no Pechinchete 1Kg de carne-seca, um pé de porco, orelha, paio quando tem eu

ponho no feijão, 1/2Kg de toucinho.

Essas compras duram quanto tempo?

De 15 a 20 dias, as meninas sempre trazem alguma coisa. Trazem legumes, uma alface,

batata, uns cinco pacotes de 1/2Kg, daquela que vem congelada. Aqui se come muita batata

frita. Tem o sacolão também e a feira aqui na porta de casa. Lá compro coentro, alface, couve,

às vezes, Carmen compra e corta no sábado. Na feira, a gente compra banana, laranja,

melancia, gosto muito de melancia. Nunca limpei peixe, não gosto. Como ainda uma corvina

ensopada, com tomate, cebola e coentro. Feijão lavo, põe na panela e depois põe alho e

coentro. O mulatinho é o que a gente come no Norte. Peito de boi assado ou cozido, com um

pedacinho de gordura. Tem uma com sebo que é melhor que chã.

EDILEUZA FERREIRA DE PAULA

Quando você nasceu?

Nasci em 18 de junho de 1955.

Onde você nasceu?

Nasci em Campina Grande.

E quando chegou ao Rio de Janeiro?

Cheguei aos 17 anos, em 1973. Cheguei aqui trazida por um tio, que morava na Horta. Ele

sempre ia visitar a mãe. Meu sonho era vir para o Rio de Janeiro. Eu era presa, minha mãe

não deixava ir para lugar nenhum. Meu tio Elídio Miguel falou que se mãe deixasse, ele me

levava. E ela deixou, imagine minha surpresa. Três semanas depois de tio Elídio chegar de

viagem, foi despedido da Cruzeiro do Sul (empresa de origem alemã que foi comprada pela

Fundação Rubem Berta, que operava a Varig, e atuo no mercado até 1984). Acho que era

uma empresa de avião porque lá em casa tinha aquelas embalagenzinhas de geléia e manteiga

com um símbolo de avião. A coisa ficou difícil, e fui trabalhar. Ele era pedreiro e construiu

uma casa na Ilha, no Jardim Guanabara. E lá tinha uma gaúcha, dona Loide, o marido era da

Aeronáutica, que precisava de uma copeira. Às vezes, quando a cozinheira faltava, eu

esquentava o jantar, mas eu era copeira, servia as refeições e preparava o café. Eu era um

bicho do mato. Ela me levava até o ponto do ônibus porque eu não conhecia nada e tinha

105

medo de me perder. Ela tinha medo de alguma coisa acontecer comigo e dar problema para

ela, por isso ela me levava. Comecei a trabalhar e fiquei oito meses na casa dessa moça. A

dona Loide teve dificuldades de pagar as empregadas todas, ela tinha uma passadeira e uma

lavadeira também.

E você veio com um tio, não é? Quantos anos você tinha?

Sim, vim com um tio, em 1974. Eu tinha 17 anos. Nunca tinha saído de casa. Mãe criava a

gente muito presa. Levamos três dias de ônibus.

E o que você sentiu?

Foi uma mistura de saudade, de medo, de coisa boa. Perdi até a fome. Fechei a boca. Fiquei

sem comer a viagem inteira. Já fez 47 anos que vim, hoje tenho duas filhas e três netos. Fui

morar na casa desse tio, até arranjar trabalho em casa de família.

E como era sua rotina quando você morava com seus pais?

Eu ajudava mãe a cuidar da casa. Ela lavava roupa no barreiro. Tu sabe o que é barreiro? É

onde as mulheres se juntam no rio para lavar roupa. Elas passavam o dia inteiro no barreiro,

lavavam, estendiam e botavam a roupa pra quarar.

Você ainda tem pai?

Sim, meu pai mora em Campina Grande, casou-se outra vez. Meu pai tem 89 anos. Ficou

viúvo ainda novo. Tenho mais quatro irmãos da nova família. O de 28 anos é funcionário

público. Eles acabaram fazendo faculdade. E outro tá no Enem. Estão melhor do que na

minha época.

Seu pai já migrou para o Rio?

Pai nunca quis vir. Nunca veio. Ela mandou um irmão e depois outro, mas não ficou.

E comiam o que nessa tarefa?

Pão com cocada, banana d‘água com farinha, pão com banana.

Vocês mantinham alguma criação de animais?

Mãe criava bicho, porco, porca parideira, cabrito, vaca... quem ajudava ela era eu e os irmãos.

E quais pratos vocês comiam no dia-a-dia?

Feijão macáçar com tripa de boi e bucho salgado. Mãe usava cebola, coentro e sal, a pobreza

era grande. Tinha comida porque plantava. Usava também cominho para dar sabor. A gente

comia aquela tripa que era puro sebo (Edileuza faz uma pausa, que me pareceu entre repulsa e

dor da lembrança)... comia aquilo com feijão e farinha. Mãe ia na feira no sábado quando

tinha um dinheirinho para comprar carne. Na segunda-feira já não tinha mais nada. Lembra

do Mobral55

? Naquela época, quem fosse estudar ganhava arroz, farinha de quibe, óleo e fubá.

Mãe ia só no interesse de ganhar a cesta básica. Mãe colocava colorau no óleo e com aquilo

temperava o feijão. Quando tinha acabado as misturas, ia no vizinho pedir ovo. Eram três

ovos para oito pessoas. Mexia com aquele óleo... Hoje se reclama tanto da vida.

55 O Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), criado em 1968, foi um órgão do governo cuja tarefa era

erradicar o alto índice de analfabetismo no país. Sua implementação ocorreu em 1971. E foi extinto nos anos

80, coincidindo com o fim da Ditadura Civil-Militar.

106

E no café da manhã?

Era um pão de 50g para dois. Lembro de um dia ter apanhado por ter comido a banda do meu

irmão...

E o que mais vocês tinham nas refeições?

Dobradinha salgada com feijão. Naquela época se vendia um peixe salgado, chamado pior-

sem-ela. Ele tem um corante gorduroso.

Você gostava?

Lembro do cheiro entranhado no nariz até hoje. Eu comia por necessidade. Tenho enjoo hoje

de tanto comer. Na Feira de São Cristóvão tem.

E como era feito?

Fritava o peixe na brasa. Carvão não tinha. Minha mãe fazia fogo de lenha, dali botava uma

chapa e botava a grelha em cima.

Como você aprendeu a cozinhar buchada?

Via minha mãe fazer. Apanhei pra comer a buchada. Não queria. Não gosto nem do cheiro.

Até agora quando fui na Paraíba, fizemos churrasco de porco, cabrito para o aniversário da

minha cunhada. Fizeram buchada, cabrito ensopado, assaram no forno. O povo lá adora. Nada

de cabrito eu gosto.

E na sua casa, que prato você cozinha para lembrar da sua casa no Nordeste?

O que faço em casa é mocotó. Minha mãe usava carne de boi, dobradinha, mocotó e legumes.

Tirava o caldo e fazia pirão. Como era domingo, ela chamava o pai dela. Era longe de onde

ele vinha. Ele chegava e sentava no degrauzinho lá de casa.

E o que mais você lembra de comer quando era pequena?

Minha avó era nossa vizinha e plantava guandu. Ela ia para a feira e sempre trazia toicinho

(sic) salgado. O torresmo ela fritava e comia com guandu. Ela cozinhava guandu com quiabo,

maxixe e chuchu. Fritava a pele do torresmo para almoçar e fazia com farinha aqueles

bolinhos amassados com a mão. Eu ficava perto, olhando ela comer. Quando ela já estava

satisfeita, me dava o resto. Minha mãe dizia que não era para eu ir lá pedir comida. Ela dizia:

―Não se envergonha de ir lá pegar os restos‖? Minha avó fazia tapioca no domingo, e quando

pai estava jantado, ela falava ―toma, Esmerindo, trouxe pra tu‖ (sic). Tudo para deixar mãe

aperreada. Quando mãe morreu, minha avó estava com 78 anos. Lá em casa estava cheia, e

ela perguntou por que tinha tanta gente. O povo contou e ela passou mal. Elas não se bicavam,

mas quando precisavam, sabiam que podiam contar com a ajuda uma da outra. Minha mãe

usava um capacete para trabalhar na roça, que nem sei de onde veio, e vó dizia: ―Rita, me dê

esse capacete?‖. Eu não fui ao enterro de mãe, só pra missa. E encontrei minha avó, que

começou a raspar o capacete para limpar e dizer: ―Pedi tanto a Rita... viu... tá aqui, é isso,

Nita‖.

E como você faz o mocotó em casa, é diferente do que fazia?

Faço diferente porque coloco calabresa. Boto carne de boi, calabresa, lombo defumado,

legumes. E faço pirão. Faço no domingo, mesmo hábito da minha mãe. Mãe fazia no

domingo. Ela temperava as carnes com cominho, coentro, cebola, tomate, pimentão. Não

refogava, colocava tudo junto. Não tinha óleo, nem um pingo. Colocava no foguinho de lenha

as carnes, quase ninguém usava panela de pressão. Temperava de véspera, aferventava e

desligava o fogo para no dia seguinte continuar. Não tinha geladeira lá em casa, por isso

107

aferventava de véspera. Toda vez que faço, lembro do meu avô. Ele era muito querido.

Sempre que mãe fazia mocotó, chamava ele...

E de quanto em quanto tempo ela preparava mocotó?

Uma vez por mês. Quando ela tinha um dinheirinho, ela comprava mocotó porque ele

gostava. Ele vinha sozinho de pés... minha vó tinha varizes, por isso não vinha. Ele vinha

andando, como se fosse daqui a Estação de Ramos56

.

E você lembra de algo de cozinha que sua mãe deseja ter e você deu?

Minha mãe tinha um sonho, ter um faqueiro. Eu juntei dinheiro e comprei uma mala de

madeira, bem chiquezinha, tinha umas 48 peças, forrada de veludo vermelho. Ela falava

―compre um faqueiro‖. Ela nunca teve um fogão bom, nunca teve uma geladeira. Pai, em

menos de um ano depois da morte de mãe, comprou fogão e geladeira... Ele falava, ―Nita

queria tanto uma geladeira e eu não pude dar...‖. Mãe nunca usou [o faqueiro] na diária.

E quando ela usava?

Emprestava pras noivas, no dia do casamento. Lá as pessoas faziam festa em casa, um almoço

para os convidados. Mas não emprestava todas as peças, não. Fora isso, mãe usava só se

chegasse uma visita do Rio. Ela queria fazer bonitinho. Ela tirava os garfos e facas porque o

povo come de colher. Foi difícil tirar o hábito [Edileuza se refere a si mesma nessa fala de

modo indireto].

Há quanto tempo você está casada? Qual o nome do seu marido? Quantos filhos vocês

têm?

Meu marido se chama Jorge Luiz de Paula, tenho a Priscila, de 34 anos, que tem dois filhos; e

a Vanessa, de 30, que tem um menino de 4 anos.

Quem faz o trabalho de cozinhar em sua casa?

Eu e meu marido. Minha filha mais velha, Priscila, cozinha quando dá vontade. A outra come

fora, prefere se endividar a fazer.

Você aprendeu a cozinhar ainda menina?

Aprendi a cozinhar mais aqui. Trabalhava de copeira na casa do Comandante [aos 17 anos,

Edileuza foi trabalhar na casa de um militar, na Ilha do Governador], depois fui trabalhar em

Guadalupe. Minha patroa cozinha muito. Tudo que aprendi, foi minha patroa que me ensinou.

A dona Ana deixava tudo escrito, e eu fazia.

E que pratos você aprendeu com ela?

Bife à milanesa, frango empanado. Ela é boa na cozinha, faz um feijão passado no

liquidificador bem grosso com calabresa que fica muito bom, não sei que tempero ela põe; o

quiabo picado bem fininho, sem baba, é dos deuses. Ela faz uma pasta de berinjela ou jiló,

cortado em quatro, refogado com tomates que você não quer comer outra coisa.

E o que você faz na casa?

Faço tudo.

Você disse que ajudou na quermesse da igreja de Santa Rita com algumas receitas

típicas. O que você fez?

56

Algo como 2,7Km, cerca de 32 minutos a pé.

108

Na festa junina fiz tapioca com goiabada e leite condensado, com coco e com quejo coalho.

Vendi tudo.

MARIA LETÍCIA DE FARIAS SILVA

Na casa de Maria Letícia de Farias Silva, o cômodo, por exemplo, havia passado por uma

obra recente. Com pé-direito alto, paredes e piso de cerâmica grandes, havia lá todos os

equipamentos relativamente novos: fogão de seis bocas, geladeira, armários de parede. Ao

fundo, um banheiro também recém-reformado.

Quando você nasceu?

Nasci em 4 de agosto de 1950.

E quando chegou ao Rio de Janeiro?

Eu vinha visitar a tia Hilda, desde 1970. Eu ficava indo e voltando. Até que casei aos 29 anos,

em 1980 com meu marido, o José Gabriel da Silva. Ele era de Recife, mas morava ao lado do

meu irmão Fernando, aqui em Ramos. Ele faleceu em 2009.

Seu marido morreu de quê?

De infarto, era hipertenso.

Você teve filhos?

Tive três. Os dois primeiros eram gêmeos, um casal, o menino morreu, ficou uma hora vivo...

nasceu com problema na cabeça. A Maria Amélia nasceu prematura de sete meses. Peguei

outro, era menino, mas morreu logo, também era prematuro.

E você costuma fazer pratos nordestinos?

Sim, ralo o milho verde e faço canjica. Aprendi a cozinhar com minha mãe. Faço tapioca com

coco ou com manteiga. Eu cozinho ainda, faço arroz, feijão, carne assada com batata, galinha

de capoeira, galinha com pé duro.

Onde você nasceu e cresceu?

Nasci no Sítio das Pedras, o município mais perto era São João do Cariri.

Com quantas pessoas você morava na sua família de origem?

Morava com pai, mãe e 11 filhos... foi o que mais (pai e mãe) teve: filho.

Você é a mais velha?

Sou a terceira filha.

Onde você mora?

No Beco Nossa Senhora de Fátima, 1 (próximo à Rua Ouricuri, via pavimentada de maior

tráfego da favela, que desemboca na Av. Brasil)

Quando você chegou ao Rio?

109

Eu passava temporadas no Rio e na Paraíba. Vim em definitivo em 1981, ano em que me

casei com José Gabriel da Silva.

Você veio direto morar em Ramos?

Sim, meu marido já tinha casa aqui.

Era essa casa aqui mesmo?

Sim.

A casa era assim ou você fez obras? Tem quantos andares? Dois?

Sim, sempre morei aqui. Aqui embaixo tem sala, banheiro nos fundos e a cozinha. No

segundo, tem dois quartos. E o terceiro, somente a laje...

Quem mora com você?

Minha filha, Maria Amélia da Silva, e minhas netas, Paula e Paola, de 16 anos. São gêmeas.

Ela é casada? Mora com o marido?

Sim, meu genro também mora aqui.

E você quando chegou ao Rio, já tinha trabalho?

Sim, eu trabalhava com minha prima, Ana, no comércio, na Rua da Alfândega.

Você continua trabalhando ou se aposentou?

Me aposentei por tempo de serviço e já tem sete anos. Estou trabalhando sem carteira, só

neste final de ano.

E vocês tinham roça no sítio? O que plantavam?

Tinha feijão macáçar, milho, batata doce, abóbora, maxixe, quiabo...

Quem plantava? Você ajudava?

Tudo ajudava... com 12 anos, por aí, já trabalhava na roça.

E o que você fazia exatamente?

Limpava o mato, plantava palma...

A palma era para o gado? De quem era o gado?

Para o gado do fazendeiro...

E vocês tinham criação de algum animal?

A gente tinha galinha, guiné, peru...

Você sente falta da roça?

Estou acostumada com o Rio, mas sinto falta da roça. Este ano (ela se refere a 2018), se Deus

quiser, não sei quando, viajo para o Norte.

E como era a rotina de quando vocês eram crianças? A que horas levantavam? Iam

para a escola? O que comiam de café da manhã?

A gente levantava às 8h para ir pra escola e comia cuscuz. Às 12h, a gente almoçava feijão.

Meu pai foi para o Rio de Janeiro em 1958 para poder ganhar um dinheiro. Ficamos na casa

110

da minha avó, em Campina Grande quase dois anos. Aí, depois do incêndio que teve aqui na

Praia, ele voltou. Pai ficou uns dois anos em tia Hilda. Eu tinha uns 10 anos...

Mas você não disse que começou a ajudar na roça com 12 anos?

Sim, pai voltou, mas nesse tempo, ficávamos só estudando. Voltamos de novo pra casa, pro

sítio.

E o que você mais gostava de fazer na terra?

O que mais gostava era puxar a cobra com os pés, como diz o ditado do povo (risos)! Era

capinar.

Seus pais ainda são vivos?

Não, pai tem sete anos de morto, e mãe, seis anos.

Me conta como era o café da manhã.

Ah, tinha cuscuz, xerém...

O que é xerém? É diferente de cuscuz?

Xerém (angu) é o milho seco pilado. Cuscuz é a massa (de milho) peneirada. A gente comia

com leite. Cuscuz salgado, nada com açúcar.

Quem cozinhava as refeições?

Minha mãe cozinhava pro povo todo. E no Norte, tem a ceia de sete horas (19h) da noite, aqui

o povo diz jantar.

E o que vocês jantavam?

Feijão, mungunzá...

Mas e os animais que eram criados? Eram pra consumo da família ou da fazenda?

Nessa época não tinha geladeira, a gente matava bode e fazia tudo na hora, salgava, torrava o

bode no dia, fazia sarapatel.

E como temperava as carnes?

Com colorau, alho, cebola, coentro...

Qual o prato mais comum?

Comida de milho é o que a gente mais comia. Todo dia tinha feijão macáçar. Tinha o picado

de porco, que é o sarapatel, mas o povo aqui chama de picado... tinha buchada, galinha

caipira... ai, que coisa boa!

Você faz na sua casa esses pratos?

Aqui não faço porque as meninas não gostam, minha filha até gosta, mas as meninas não

gostam.

E você não pensa em voltar para a Paraíba?

Só estou aqui por causa das netas e da filha. Quando meu marido faleceu, e já tem oito anos,

eu teria voltado. Mas fico pra lá e pra cá. Meus irmãos e irmãs moram no mesmo sítio. Mas

hoje a roça está muito diferente, mas está muito agitado, mesmo no sítio tem assalto...

111

Você cozinha algum prato da infância em casa?

Todo dia não faço, mas faço sempre cuscuz, compro uns dois pacotes por mês. Minha filha

come.

MARIA ELIANE SOARES CORREIA

Quando e onde você nasceu?

Nasci em 14 de fevereiro de 1973. Tenho 44 anos.

Desde quando você trabalha? Quando você chegou ao Rio?

Com 10 anos fui trabalhar de babá. Cheguei ao Rio em 91, com 18 anos. Eu morava na Tijuca

e trabalhava de doméstica. Conheci meu marido, o Genival, lá, ele era porteiro do prédio e é

até hoje. Com três meses de namoro fui morar com Genival.

Ele nasceu onde?

Ele é pernambucano. Ele já tinha casa. Ele era oito anos mais velho, tinha 26 anos, e eu, 18.

E vim morar aqui [em Ramos]. Compramos um barraquinho, num bequinho na Rua Francisco

Alves.

Você tem religião? É católica?

Sim, frequento a igreja de Santa Rita.

Você mora no mesmo endereço ainda?

Sim, moro até hoje no mesmo prédio de dois andares, cada andar com duas quitinetes. Aí

comprei a parte de cima, troquei com meu tio, irmão da minha mãe, ele morava lá também. Aí

ficamos com três quartos, sala e banheiro. Pagamos prestação de dois anos.

Você tem filhos?

Tive dois filhos. Daniel, com 22 anos; e Larissa, de 17 anos, que acabou de ganhar um bebê,

que está com três meses, chamado Lorenzo. Tenho um neto, Enzo, de 3 anos, do meu filho.

Meu filho mora comigo, não deixei casar! Pra quê? Pra depois voltar?

Seus filhos trabalham em quê?

Minha filha foi Jovem Aprendiz, fez Gestão Empresarial, trabalha por contrato de cinco

meses e acabou. No Jovem Aprendiz, você trabalha e faz o curso.

Como é sua rotina aqui na Pensão da Nana? Você sai a que horas?

Saio umas 17h e vou para a ginástica. De quinta a sábado, também fica aberto à noite, quando

vendo espetinho. Abre de segunda a sábado. Galinha caipira, baião de dois, carne-de-sol são

os carros-chefes. Quem me ajuda a cozinhar é a Denise e tenho outra ajudante.

Quando você abriu a Pensão da Nana?

Em janeiro de 2015. Dinheiro nunca foi fácil, foram anos de batalha. Meu filho nasceu em 7

de julho. Parei de trabalhar, mas quando ele completou 2 anos, voltei a trabalhar porque a

coisa apertou. Engravidei da Larissa de 1999 para 2000. Quando ela tinha oito meses, soube

de uma casa que precisava de alguém pra tomar conta. Vim trabalhar em Ramos, onde fiquei

14 anos, até 2015. Isso aqui (a pensão) começou quando fui vender espetinho. Vi venderem

em Caxias, a R$ 15 o churrasquinho. Aí fui vender em frente a um bar, o Bar da Lourdes, há

seis anos. Foi fazendo tanto sucesso que numa sexta-feira, a gente só vendia na sexta, vendi

112

350 espetinhos numa noite! Teve uma noite que vendi 400. A mulher do bar cresceu o olho, e

num dia, cercou o bar e não deixou a gente vender. Era bom pra ela que vendia cerveja, a

gente não vendia bebida. Nesse dia, o vizinho dela, que tinha uma loja de material de

construção, viu aquilo e me ofereceu para montar minha barraca em frente à loja dele.

Montamos a barraca com isopor de bebida. Aí, ele que estava construindo uma outra loja, me

ofereceu. Foi quando aluguei a loja, até então não dava para pagar o aluguel. Meu marido me

ajuda ainda hoje a vender os espetinhos e sai daqui direto pra Tijuca, onde trabalha de

porteiro.

E como você chegou a esse cardápio?

Fiz o que sabia fazer, galinha com baião-de-dois ou com aipim. Fiz especialidade nordestina,

a carne-de-sol, buchada de bode. A loja era pequena, metade dessa aqui. Coloquei fogão

industrial. E o sucesso foi o boca a boca, nunca tinha sido comerciante. E já vai fazer três

anos. Meus filhos me ajudam como podem, pois os dois trabalham. Sempre trabalhei

cozinhando.

Como você aprendeu a cozinhar?

Aprendi com minha mãe a fazer galinha e buchada. E a vida foi me ensinando, uma patroa me

ensinou também.

E a sua família de origem, está toda aqui?

Meu pai veio pra cá e morreu aqui. Mãe ficava indo e vindo. Minha mãe era vigorosa e ativa.

Com 62 anos teve um AVC, tinha pressão alta, que até isso já vem de família. Todo mundo

(na família) é hipertenso. Minha filha grávida teve princípio de eclampsia.

De onde era a sua família?

De Alagoa Grande, a uma hora de João Pessoa.

E quando foi a última vez que você esteve na sua terra?

Voltei lá quando minha mãe faleceu, em 2013.

E quando pretende visitar de novo?

Em agosto, vamos para passear, visitar a parentada. Meu marido é de Itambé57

, divisa de

Pernambuco, e Pedras de Fogo, na Paraíba.

Como era a sua vida lá em Alagoa Grande? Como se chamavam seus pais?

Mãe chamava Maria Vicente, mas o povo chamava Socorro, meu pai chamava Francisco.

Quando você começou a cozinhar?

Eu comecei com 9 anos. Se tivesse ingrediente, eu inventava. Lembro que mãe tinha

comprado macarrão, arroz, feijão. Fiz peixe ensopado com leite de coco, macarrão, arroz,

feijão. Foi o primeiro almoço que fiz. Chegou um parente que ficou impressionado, disse

―nossa, essa menina, com essa idade, já cozinha assim?‖. Eu inventava.

Vocês criavam algum animal para consumo?

57

Município da Zona da Mata de PE, com cerca de 35 mil habitantes, segundo censo de 2010, do IBGE.

Disponível em:

<https://ww2.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?lang=&codmun=260765&search=pernambuco|itambe|in

fograficos:-dados-gerais-do-municipio >. Acesso em: dez. 2017.

113

Minha mãe criava galinha e tinha hortinha com coentro, cebolinha... eu matava galinha,

cozinhava e comia escondido. Mãe criava bode, cabrito, porco, galinha, garrote... engordava o

ano todinho, em dezembro, ela vendia para comprar roupinha pra gente. Somos oito irmãos.

Na época eram quatro, cinco comigo.

E você aprendeu a cozinhar com ela?

Minha mãe nunca me ensinou. Vi minha mãe e minha avó Maria cozinhando e aprendi

olhando.

E o que mais vocês plantavam?

Plantava feijão, milho, batata doce, macaxeira. A gente se mantinha na roça, vivia da

agricultura. Meu pai trabalhava plantando cana, capinando. A gente vivia na propriedade do

dono, no sítio Belo Monte [na verdade, um engenho], no município de Alagoa Grande, a meia

hora de carro da cidade. Várias vezes a gente ia a pé, umas duas ou três horas, no sábado, que

era dia de feira. Mãe vendia manga, vendia a roça toda.

Como ela transportava?

Ela não levava a produção para a feira! Os compradores compravam a produção e iam lá

pegar.

E ela pagava para poder plantar?

Não, o dono deixava ela plantar na terra dos outros, mas não podia trabalhar fora, só lá.

Quando minha mãe saiu dessa terra e comprou uma casinha na rua [expressão usual do

interior que quer dizer que uma propriedade foi comprada na cidade mais próxima], vendendo

as coisinhas dela, um cabrito, um garrote, ela manteve a roça. Eu plantava com ela quando era

menina.

Você gostaria de voltar a ter uma roça, de plantar?

Tenho esse sonho, e Genival também gosta. A gente quer comprar um sítio e plantar. Sinto

falta de mexer com a terra. Pensei de a gente comprar aqui no estado do Rio mesmo, ir, ficar

um ou dois dias e voltar. Comprar uma casinha pra passar um feriado.

E o que você tem saudade de comer que era feito pela sua mãe?

Sopa de feijão carioquinha. Mãe fazia com o que sobrava do almoço. Fazia com o que tinha

na horta. Pegava o caldinho do feijão, botava arroz, chuchu e folhas meio rasgadas de couve.

É simples, mas tenho saudade do sabor. Outra que ela fazia era uma carne de gado ensopada

com cominho, alho, cebola, tomate, coentro-maranhão com umas folhas largas, que aqui não

tem.

Você acha que os sabores da comida da infância eram melhores?

Era outro tempo de cozimento. Era isso que a gente comia. Quando a gente era menor, a gente

achava mais gostosa.

E você ganhou algum objeto da sua mãe para a cozinha que você ainda usa?

Ela fez capa de almofada de crochê. Para mim é uma relíquia, nunca usei. E fiquei com

algumas coisinhas dela quando morreu, uma cafeteira de alumínio que uso mais. Ela sempre

trazia pano de prato, caminho de mesa. Eu dava a ela colher de pau, panela, frigideira

novinha. Dava muita roupa. A última coisa que dei foi um vestido.

E você gosta de ouvir rádio, enquanto cozinha?

114

Gosto de ouvir rádio limpando a casa e deixo a TV ligada mesmo que não esteja prestando

atenção.

E do que mais você se lembra de quando era menina?

Mãe deixava sempre algo preu [sic] fazer, como temperar uma carne. A gente não tinha nada

em casa, nem colchão. A gente dormia em colchão de palha ou rede. A vida dela [da mãe]

antes de morrer tinha de tudo. Em vista do que ela tinha, [a casa] era mansão.

E ela nessa casa da rua continuava com a roça?

Sim, tinha quintal e ela plantava milho, feijão. Ela não precisava cozinhar no fogo de lenha,

mas gostava, o de gás ficava de enfeite. A última vez que fomos lá, fomos três filhas, dois

genros e três netos, a casa ficou cheia. Meus filhos não gostam muito da comida de lá. Minha

filha só gosta de cuscuz de milharina e tapioca.

E como ela come o cuscuz?

Com ovo ou carne e manteiga

JOSEFA DA CONCEIÇÃO

Quando e onde você nasceu?

Nasci em 13 de maio de 1969, tenho 48 anos. Sou eu e mais sete irmãos: Joaquim, José

Arnaldo da Silva, Horácio da Silva, Delfina, Isabel da Conceição. Apenas um irmão mora na

Paraíba. Lá, morávamos em Massaranduba58

, perto de Campina Grande.

E quando e como você chegou ao Rio? Por que você veio?

Eu vim de ônibus. Cheguei em 1987. Eu vim atrás da minha sobrinha, Flávia. Criei Flávia

desde meses. Minha irmã veio pra cá e depois a menina veio. Fiquei um tempo sem saber do

paradeiro. Vim com a intenção de levar a Flávia. E quando cheguei, fui morar com minha

cunhada e meu irmão José Arnaldo da Silva, no Morro do Alemão. Flávia ficou um ano

comigo no Alemão. O marido da minha irmã maltratava a menina. Depois de um ano, ela quis

voltar.

Mesmo com o padrasto?

Sim.

Você trabalha em quê?

Trabalho de diarista, duas vezes por semana, em Botafogo e no Recreio.

Que pratos do Nordeste você cozinha?

Faço cuscuz com ovo ou leite, tapioca com coco. Pamonha também, mas só quando vou à

casa de meu irmão, pois dá trabalho.

Você tem filho?

Tenho dois, o Maxwell da Conceição Hortêncio, que está com 18 anos, mas mora com o pai

no Nordeste; e o Maycon da Conceição Hortêncio, de 9 anos.

Você vive com o pai dos seus filhos?

Estou separada há nove anos. O pai deles mora no interior do Rio Grande do Norte.

58

Município a 132Km da capital, João Pessoa, com população estimada em 13.853 pessoas (2017). Disponível

em: https://cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?codmun=250920. Acesso em: 6 de dezembro de 2017.

115

E onde você o conheceu?

Conheci ele aqui no Rio, namoramos, oito meses depois fomos morar juntos.

Quando chegou ao Rio?

Vim com uma vizinha, com 13 anos, para tomar conta do filho dela. Mas não gostei porque

ela me prendia muito. Falei com meu irmão e voltei com ele para a Paraíba. Depois, voltei

com 19 anos. E vim para o Morro do Alemão. Estou aqui em Ramos desde 2011.

Então, você veio para trabalhar como babá?

Sim, vim para trabalhar em casa de família, em Inhaúma.

Você sabia cozinhar?

Sabia fazer um arroz, um feijão.

E como você temperava a comida?

Usava os temperos que a gente usava na Paraíba, coentro, cominho... mas minha patroa

mesmo não usava, agora ela usa para temperar uma carne... imagina fazer uma carne sem

cominho, pimentão e coentro? Fica sem gosto, principalmente peixe, sem pimentão, fica uma

bexiga fedorenta...

Em casa, você cozinha algum prato da sua terra?

Faço cuscuz de milharina, como com galinha ensopada, com peixe frito e ensopado. Faço

tapioca com coco, compro a goma na feira de sábado. Tem uma casa [loja comercial] de

paraíba no Parque União, aqui na favela tem também, que vende bolacha, amendoim, queijo

coalho, carne-seca e de sol, mas o sabor é diferente, manteiga de garrafa. A casa do Parque

União é grande, tem bolo de massa de mandioca mole, aquele que tem uma parte branca no

meio e em cima é amarelinha. Cuscuz faço umas três vezes na semana.

Você tem panela para fazer cuscuz?

Sim, comprei a cuscuzeira aqui, onde vende panela, a maioria daqui [dos moradores] é do

Nordeste.

Mais alguma receita?

Galinha ensopada, com aquela galinha dura, cozinha na pressão. Fica bem gostoso, tipo

galinha caipira.

Como se faz?

Escalda [a galinha], corta os pedaços, passa limão, pimenta do reino, cebola, cominho,

pimentão. Não coloca gordura na panela, não. Tempera de um dia para o outro para pegar os

temperos.

E quando você prepara essa receita?

Quando meu irmão José Arnaldo, que mora no Alemão, vem aqui em casa.

Você quer voltar para a sua terra?

Acho que não me adapto mais lá, não. Estou acostumada aqui já. Vou lá para passar férias.

Vou em dezembro de novo.

116

Me conte como era a rotina da alimentação quando você morava na Paraíba com sua

família. Você cozinhava?

Aprendi a cozinhar na lenha. Cozinhava feijão mulatinho e comia com farinha. Às vezes tinha

carne, às vezes não tinha, tinha um cuscuz. Mãe sempre fazia mandioca mole.

O que é mandioca mole?

Mãe preparava assim, a mandioca ficava uns cinco dias na água. Tirava do molho e peneirava,

lavava bem lavada e deixava pendurada num saco de algodão para escorrer a água. Aí botava

margarina, ovo, açúcar, leite de coco ou de vaca. Botava uma pedra de dois dedos no fogo.

Botava uma palha de bananeira e em cima, a massa. Deixava a massa consistente. Às vezes,

mãe ficava até de madrugada fazendo. A minha mãe dizia que era parente de índio. Quem já

se viu fazer bolo com palha em cima de pedra? Aqui não faço.

A mandioca era deixada de molho onde?

Ela colocava dentro de potes de barro e deixava. Lembro até hoje, tenho saudade desse gosto.

Adoro feijão verde com quiabo e maxixe.

E vocês plantavam? Do que você lembra quando debulhava?

Ah, a gente pegava o feijão verde no roçado... a pessoa conversava da plantação, como o

feijão estava. Lembro de comer bolinho de feijão com maxixe, quiabo e farinha... Mocotó do

Norte é muito diferente daqui.

Minha mãe chamava esse bolinho que ela amassava com a mão de capitão...

Agora como com a colher. Só como de colher. Em casa da minha patroa, como de garfo e

faca. Em casa, de colher. Vai mais comida na boca!

E como você prepara?

Temperava de um dia para o outro e cozinhava no fogo a lenha na panela de barro. Depois

que minha irmã veio para cá trabalhar, deu um fogão a ela [a mãe]. O fogão se acabou e ela

nunca usou. Nem rádio nem TV nem geladeira ela teve. A água de beber era no pote.

Ela ainda vive?

Morreu com 86 anos, em 2014. Ela, quando vinha pra cá, não abria nem a geladeira. Dizia

que não sabia mexer. Eu comprei uma TV de controle e acabei vendendo. Ela não sabia

mexer nem em liquidificador nem ferro de engomar.

Você tem algum item na sua cozinha que seja mais artesanal e que você mantém porque

se apegou?

Uma colher de pau, o cabo era até maior, mas quebrou. Deve ter a idade de Maxwell, uns 18

anos.

Como você aprendeu a cozinhar?

Aprendi a cozinhar na lenha. Cozinhava feijão mulatinho e comia com farinha. Às vezes tinha

carne, às vezes não tinha, tinha um cuscuz. Mãe sempre fazia mandioca mole. Mãe preparava

assim, a mandioca ficava uns cinco dias na água. Tirava do molho e peneirava, lavava bem

lavada e deixava pendurada num saco de algodão para escorrer a água. Aí botava margarina,

ovo, açúcar, leite de coco ou de vaca. Botava uma pedra de dois dedos no fogo. Botava uma

palha de bananeira e em cima, a massa. Deixava a massa consistente. Às vezes, mãe ficava até

de madrugada fazendo. A minha mãe dizia que era parente de índio. Quem já se viu fazer bolo

com palha em cima de pedra? Aqui não faço. Ela colocava dentro de potes de barro e deixava.

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Lembro até hoje, tenho saudade desse gosto. Adoro feijão verde com quiabo e maxixe. Ah, a

gente pegava o feijão verde no roçado... a pessoa conversava da plantação, como o feijão

estava. Lembro de comer bolinho de feijão com maxixe, quiabo e farinha... Agora como com

a colher. Só como de colher. Em casa da minha patroa, como de garfo e faca, em casa, de

colher. Vai mais comida na boca! Mocotó do Norte é muito diferente daqui.

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APÊNDICE B – Fotos de campo

Figura 01 - Cartaz do cardápio da Pensão da Nana. Nov/2017

Figura 02 - Detalhe do bufê da Pensão da Nana: feijão verde com maxixe. Nov/2017

Figura 03 - Detalhe do bufê da Pensão da Nana: rabada com batata e agrião. Nov/2017

Figura 04 - Detalhe do baião de dois da Pensão da Nana. Nov/2017

2 3 4

119

Figura05 - Bufê quente da Pensão da Nana. Nov/2017

Figura 06 - Detalhe do bufê da Pensão da Nana: cuscuz de milharina. Nov/2017

Figura 07 - Prato feito do bufê da Pensão da Nana: feijão verde com maxixe, baião de dois,

farofa, jiló e cuscuz de milharina com bacon e temperos. Nov/2017

Figura 08 - Detalhe do bufê da Pensão da Nana: galinha caipira (em cima) e massa. Nov/2017

6 7 8

120

Figura 09 - Fogão industrial da cozinha da Pensão da Nana. Dez/2017

Figura 10 - Parte superior fria do bufê da Pensão da Nana. Nov/2017

Figura 11 - Detalhe do bufê da Pensão da Nana: aipim e farofa. Nov/2017

Figura 12 - A amiga Denise, paraibana de Alagoa Grande, mostra a panela com rabada, batata

doce; e ao lado, quiabo escaldado, para o bufê de pratos típicos, servido aos sábados na

Pensão da Nana. Dez/201

Figura 13 - Tainara, nora de MESC, e a conterrânea Denise preparam os pratos para o bufê

nordestino de sábado na cozinha da Pensão da Nana. Dez/2017

Figura 14 - MESC verifica o cozimento da galinha caipira, que será servida no bufê

nordestino de sábado na cozinha da Pensão da Nana. Dez/2017

12 13 14

9 10 11

121

Figura 15 - A TV no sábado estava desligada, mas é companhia indispensável nas tarefas da

cozinha da Pensão da Nana. Dez/2017

Figura 16 - Ovos e batata doce: o tubérculo é ingrediente na rabada da Pensão da Nana e na

mesa das migrantes nordestinas na Favela de Ramos. Dez/2017

Figura 17 - A leiteira vira porta-talher na cozinha da Pensão da Nana: improviso e imaginação

na cozinha e na vida das migrantes, na Favela de Ramos. Dez/2017

Figura 18 - MESC (de preto) e Denise descascam legumes para o bufê nordestino:

empreendedorismo que emprega família, parentes e amigos. Dez/2017

Figura 19 - MESC diz que aprendeu a descascar usando a faca em sentido contrário para não

ferir o corpo quando era menina, no interior : ―era um cuidado para eu não me cortar‖.

Dez/2017

Figura 20 - O formato do suporte para copos de madeira com hastes de metal na parede na

cozinha da Pensão da Nana remete aos rústicos acessórios de madeira usados nas casas do

interior do Nordeste. Dez/2017

15 16 17

18 19 20

122

Figura 21 - Favas orelha-de-vó (embaixo, à esquerda), fava raio de sol (acima, à esquerda),

feijão macáçar (embaixo, à direita) e feijão branco (acima, à direita), da tendinha Sabor

Nordestino, instalada há 15 anos na Rua Gerson Ferreira, 26. Nov/2017

Figura 22 - Fachada da tendinha Sabor Nordestino, instalada há 15 anos na Rua Gerson

Ferreira, 26. Dez/2017

Figura 23 - Bolachas d‘água e doces, castanha de caju e castanha-do-pará, da tendinha Sabor

Nordestino, instalada há 15 anos na Rua Gerson Ferreira, 26. Nov/2017

Figura 24 - Prateleira com sortimento de cachaças industriais e artesanais (parte superior); e

manteiga de garrafa, pimentas e aguardentes (parte inferior), da tendinha Sabor Nordestino,

instalada há 15 anos na Rua Gerson Ferreira, 26. Nov/2017

21 22 23

123

Figura 25 - Prateleiras com azeite de dendê e manteiga de garrafa (parte superior); e bolachas

d‘água, rapaduras e batidas, uma espécie de rapadura mais macia, saborosa e amarela-clara,

com ou sem erva-doce (parte inferior), da tendinha Sabor Nordestino, instalada há 15 anos na

Rua Gerson Ferreira, 26. Nov/2017

Figura 26 - Fardos de carne-seca vendidos a granel, da tendinha Sabor Nordestino, instalada

há 15 anos na Rua Gerson Ferreira, 26. Nov/2017

124

Figura 27 - Colher de pau da casa da Josefa da Conceição que ela diz ter a idade do filho mais

velho: cerca de 19 anos. Nov/2017

Figura 28 - JC descasca e corta legumes e os deixa descansando em água para não oxidar.

Dez/2017

Figura 29 - JC na beira do fogão prepara almoço de domingo: refoga cenoura, abobrinha e

batata doce no alho e azeite. Dez/2017

Figura 30 e 31 - JC lava os utensílios, enquanto aguarda o cozimento: ritmo é ininterrupto.

Dez/2017

Figura 32 - JC refoga legumes para almoço de domingo, antes de ir à maternidade visitar

sobrinha-neta recém-nascida. Dez/2017

27 28 29

30 31 32

125

Figura 33 - Ana Lúcia (em primeiro plano) e a mãe HNA, na cozinha. Dez/2017

Figura 34 - O galo Filho: único animal que HNA ainda mantém em casa do antigo hábito do

marido Severino que tinha aves de estimação e porcos, galinhas, cabritos para abate e

consumo da família na Favela de Ramos. Dez/2017

Figura 35 - HNA mostra seu suporte para o coador de pano: ―só uso coador de pano, como a

gente fazia na Paraíba, eu acho que fica mais gostoso, todo mundo gosta do meu café‖.

Dez/2017

Figura 36 - Cartão de condolências de Julia Francisca do Nascimento, mãe de dona Hilda dos

Anjos, morta aos 103 anos. Dez/2017

33 34 35

126

Figura 37 - O casal vizinho de jovens migrantes do Norte e Nordeste de HNA havia duas

semanas abrira um negócio de lanches de tapioca de diversos sabores. Dez/2017

Figura 38 - HNA cozinha no cômodo anexo à cozinha, no domingo. Rotina doméstica

assistida por filhas e netas. Dez/2017

Figura 39 - Luciane dos Anjos, filha de HNA, mostra ingredientes do salpicão de frango e um

prato já montado para o almoço de Natal antecipado, que também homenageava a sua mãe

HNA. Dez/2017

Figura 40 - Fachada da capela Nossa Senhora Aparecida, ligada à matriz de Santa Rita dos

Impossíveis, localizada na Rua N. Sra. das Graças, 1.260, em Ramos. Dez/2017

Figura 41 - Imagem de N. S. Aparecida na cozinha comunitária da capela de N. Sra.

Aparecida, por atrás do vidro, o emaranhado da rede aérea da Favela de Ramos. Dez/2017

Figura 42 - Fachada da matriz de Santa Rita dos Impossíveis, localizada na Rua N. Sra. das

Graças, 1.260, em Ramos. Nov/2017

37 38 39

40 41 42

127

Figura 43 - EFP (de óculos) corta o empadão de sardinha para o café da manhã comunitário

servido na capela de N. S. Aparecida pelo Grupo União da Pastoral Os Vincentinos, que

distribuiu mensalmente cestas básicas a famílias vulneráveis da Favela de Ramos. Dez/2017

Figura 44 - EFP pica o coentro (tempero onipresente entre as receitas das nossas

entrevistadas) para o almoço comunitário servido aos voluntários do Grupo União da Pastoral:

arroz, frango caipira com aipim e feijão verde com quiabo. Dez/2017

Figura 45 - Detalhe dos temperos preparados por EFP para o frango caipira: ―tomate picado,

sal, cebola, coentro, cominho, colorau (esses três últimos muito usados na cozinha

nordestina) põe tudo na panela sem óleo e sem misturar‖. Dez/2017

Figura 46 - EFP leva o frango caipira ao fogo na cozinha comunitária da capela N. Sra.

Aparecida, em Ramos. Dez/2017

Figura 47 e 48 - O quiabo inteiro; EFP corta o legume e o mergulha em água, antes de fervê-

lo. Dez/2017

43 44 45

47 48 46

128

Figura 49 - Feijão verde, de corda ou macáçar é lavado e descansa em água antes de cozinhar.

Dez/2017

Figura 50 - O coentro picado é levado à fervura juntamente com o feijão verde, de corda ou

macáçar. Segundo EFP, isso ―ajuda a dar o tempero‖. Dez/2017

Figura 51 - O feijão é servido com quiabo: item regional apreciado nas mesas nordestinas das

nossas mulheres migrantes. Dez/2017

Figura 52 - A montagem do prato de feijão verde com quiabo, que tem como guarnição o

molho do Sertão (à direita) que leva o caldo do cozimento do feijão, no NE e em Ramos é

substituído pelo azeite. Dez/2017

Figura 53 e 54 - Aipim no fogo: alimento consumido pelas tribos originárias é

acompanhamento do frango caipira; após cozido, EFP despreza a água: raiz foi assimilada

pelos escravos africanos e pelo invasor e é considerada a rainha do Brasil por Câmara

Cascudo. Dez/2017

49 50 51

52 53 54

129

Figura 55 - As voluntárias do Grupo União se revezam no fogão da cozinha da capela de N.

Sra. Aparecida: almoço servido aos voluntários e à pesquisadora feito por EFP. Dez/2017

Figura 56 - As voluntárias e um voluntário do Grupo União, filhas e netas no almoço

comunitário, na capela de N. Sra. Aparecida. Dez/2017

Figura 57 - O almoço tipicamente nordestino adaptado por EFP: frango caipira, feijão verde

com quiabo, coentro e molho do Sertão, arroz branco e aipim. Dez/2017

55 56 57