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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro Biomédico
Instituto de Nutrição
Maria da Glória Pinheiro Rezende
Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes no
cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”
Rio de Janeiro
2015
Maria da Glória Pinheiro Rezende
Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes no cotidiano da
oficina “Corpo, Cor e Sabor”
Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Determinantes individuais e contextuais do estado nutricional e seus impactos na Saúde Coletiva.
Orientadora: Profª. Dra. Eliane de Abreu Soares
Coorientadora: Profª. Dra. Inês Barbosa de Oliveira
Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta tese, desde que citada a fonte.
___________________________ ____________________________
Assinatura Data
R467 Rezende, Maria da Glória Pinheiro.
Desinvisibilizando os fazeresssaberes das criançapraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, cor e sabor”. / Maria da Glória Pinheiro Rezende . – 2015. 156 f. Orientadora: Eliane de Abreu Soares. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Nutrição.
1. Alimentação escolar - Teses. 2. Educação alimentar e nutricional - Teses. 3. Cotidiano escolar - Teses. 4. Nutrição infantil - Teses. I. Soares, Eliane de Abreu. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Nutrição. III. Título. bs CDU: 613.22
Maria da Glória Pinheiro Rezende
Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes do cotidiano da
oficina “Corpo, Cor e Sabor”
Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em 07 de julho de 2015.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Profª. Drª Eliane de Abreu Soares (Orientadora)
Instituto de Nutrição – UERJ
____________________________________________
Profª. Drª Alexandra Garcia Ferreira Lima
Faculdade de Formação de Professores - UERJ
_____________________________________________
Profª. Drª Mirian Ribeiro Baião
Instituto de Nutrição Josué de Castro - UFRJ
_____________________________________________
Profª. Drª Thais Salema Nogueira de Sousa
Instituto de Nutrição - UNIRIO
_____________________________________________
Profº. Drº Francisco Romão Ferreira
Instituto de Nutrição – UERJ
Rio de Janeiro 2015
AGRADECIMENTOS
À Eliane de Abreu Soares por mais uma vez ter me acolhido, me orientado e
me permitido voar em busca de outros saberes para a tessitura de nosso trabalho.
À Inês Barbosa de Oliveira por ter me dado as mãos em pleno voo, sem saber
de onde eu vinha e se teria “fôlego” para chegarmos, juntas, a algum lugar.
À Luciléia Colares pela delicadeza e generosidade que me permitiram
pensarfazer diferentemente.
Aos amigosparceiros André Brilhante e Renata Versari pelas experiências,
únicas e inesquecíveis, que NosDosCom vivemos dentrofora da oficina “Corpo, Cor
e Sabor”. Sem vocês, sem o nosso prazer e a nossa alegria, não teria sido possível.
Às minhas queridas amigaschefinhas Tereza e Leninha por terem sempre
vibrado com as nossas conquistas e pela imensa disponibilidade em fazer tudo
acontecer.
Aos meus amigosparceiros do Núcleo de Arte Leblon – Flávio, Isabel, Mila,
Mindja, Perla e Túlio – pelas nossas conversas e por tudo que aprendi com vocês ao
longo desses anos de deliciosa convivência.
Ao Zeca Teixeira – o meu maior desorientador – por ter me apresentado à
pesquisa nosdoscom os cotidianos.
Às criançaspraticantes que (re)encantaram os nossos cotidianos na oficina
“Corpo, Cor e Sabor”.
À Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro por ter autorizado a pesquisa em
sua unidade escolar.
À direção e às professoras da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello pelas
trocas constantes e por terem acreditado no nosso trabalho.
À Prefeitura Municipal de Duque de Caxias por ter concedido a licença para a
realização do doutorado.
Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em
Alimentação, Nutrição e Saúde e do ProPEd/UERJ que me instigaram a
sentirpensarfazer diferentemente ao longo do percurso do doutorado.
Ao Chico pela leitura desse trabalho e pela sua ciência, cafés e prosas.
Às professoras Mirian Baião, Thais Salema, Alexandra Garcia, Maria Cláudia
Carvalho e Luciléia Colares por terem aceitado, juntamente com o professor
Francisco Romão, compor a banca examinadora da tese.
A todxs do grupo de pesquisa “Redes de conhecimento e práticas
emancipatórias no cotidiano escolar” por tudo que aprendi com seus escritosfalas.
À Gabriela Morgado por ter, amorosamente, realizado as traduções da tese e
dos artigos.
À nossa querida Haydée de Lima – sem a sua presença jamais teria me
aventurado.
À minha Vó Eny Pinheiro por sempre se encantar com a minha vida.
Aos meus pais Wanda e Hugo por terem me recebido nessa vida e me
permitido saborear o aprenderensinar.
Aos meus filhotes Ana Terra, Breno e Hugo por terem torcido para que tudo
desse certo. E acabasse logo! Amo mais que tudo!
Ao meu gato Wallace Vettori, amor de todas as vidas, por sempre me fazer
acreditar que eu conseguiria.
A Deus e aos meus amigos invisíveis por terem conspirado para que esses
encontros potentes acontecessem.
[...] de cujo contato todo mundo sai
mais rico, não agraciado e surpreendido, não beneficiado e oprimido como por um bem alheio, mas sim mais rico de si mesmo, mais novo do que antes, removido, arejado e surrupiado por um vento leve, talvez mais inseguro, mais delicado, mais frágil, mais quebradiço, porém cheio de esperanças que ainda não tem nome, cheio de nova vontade e novo fluir, cheio de nova contra-vontade e novo refluir.
Nietzsche
RESUMO
REZENDE, Maria da Glória Pinheiro. Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”. 2015. 152 f. Tese (Doutorado em Alimentação, Nutrição e Saúde) – Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Esta tese, tecida e (com)partilhada no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e
Sabor”, no Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, com crianças do 3º ano do ensino fundamental, defende a ideia de que as criançaspraticantes, desse espaçotempo escolar, possuem uma pluralidade de conhecimentos em alimentação, nutrição e saúde que precisam ser levados em consideração quando se pensa em produzir conhecimentos e instrumentos no campo da educação alimentar e nutricional. Tem, portanto, como objetivo principal desinvisibilizar os fazeressaberes dessas criançaspraticantes, além de conhecer os modos de aprenderensinar por elas valorizados e suas redes de valores e crenças frente ao tema. No seu percurso políticoteóricoepistemológicometodológico apoia-se nas “artes de fazer” dos praticantes ordinários apresentadas por Michel de Certeau, nos movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos organizados por Nilda Alves de Oliveira, no “Pensamento Complexo” de Edgar Morin, no “Paradigma Indiciário” delineado por Carlo Ginzburg, na “Sociologia das Ausências e das Emergências” propostas por Boaventura de Sousa Santos, nos “Currículos pensadospraticados” tecidos por Inês Barbosa de Oliveira e na inteireza da práticateoria de Paulo Freire. Os fazeressaberes das criançaspraticantes são desinvisibilizados, e tornados credíveis, em sete narrativas das experiênciaspráticas do cotidiano da oficina, confirmando a hipótese da tese de que há uma constelação de conhecimentos em alimentação, nutrição e saúde, tecidos e compartilhados, cotidianamente, pelas criançaspraticantes, que não podem, de maneira alguma, ser negligenciados por pesquisadoresprofessores do campo da educacional alimentar e nutricional comprometidos com um presente não desperdiçado e com um futuro de possibilidades. Um futuro com mais saberes, cores, cheiros e sabores. Palavras-chave: Alimentação. Cotidiano. Crianças. Alimentação. Currículos pensadospraticados.
ABSTRACT
REZENDE, Maria da Glória Pinheiro. Making visible the doing/knowledge of the practitioners/children in the everyday life of the workshop “Body, Color and Flavor” . 2015. 156 f. Tese (Doutorado em Alimentação, Nutrição e Saúde) – Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
This thesis was developed and shared in the everyday life of the workshop "Body, Color and Flavor" in Leblon Art Center - Center for Research on Formation in School Education Art and Sport of the Municipal Department of Education of Rio de Janeiro, with children of the 3rd grade of elementary school. It has hypothesized that practitioners/children, from this scholar space/time, have a plurality of knowledge on food, nutrition and health that need to be taken into consideration when thinking about producing knowledge and tools in the field of food and nutrition education. Therefore, this thesis has as its main objective to become visible the doings/knowledge from these practitioners/children, besides knowing the ways of learning/teaching valued by them in addition to their values and beliefs grid across the theme. In his political/theoretical/epistemological/methodological route, it is based on the "arts of doing" of ordinary practitioners presented by Michel de Certeau, in the movements of the research with/of/at the day by day organized by Nilda Alves de Oliveira, in the paradigm of complexity by Edgar Morin, in the indiciary paradigm by Carlo Ginzburg, in the sociology of absences and emergencies proposed by Boaventura de Sousa Santos, in the curriculum thought/performed developed by Inês Barbosa de Oliveira and in the completeness of the practical/theory from Paulo Freire. The doings/knowledge of practitioners/children are made visible, and made credible in seven narratives of experiences/practices from the day by day of workshop, confirming the hypothesis of the thesis that there is a constellation of knowledge on food, nutrition and health, developed and shared, daily, by practitioners/children, which can not in any way be neglected by researchers/professors of food and nutrition education field committed with a not wasted present not wasted and a future of possibilities. A future with more knowledge, colors, smells and flavors.
Keywords: Food. Everyday life. Children. thought/performed Curriculum.
RESUMEM
REZENDE, Maria da Glória Pinheiro. Haciendo visible los haceres-saberes de los niñospracticantes em el cotidiano del taller “Cuerpo, Color y Sabor”. 2015. 156 f. Tese (Doutorado em Alimentação, Nutrição e Saúde) – Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Esta tesis, tejida y compartida en el cotidiano del taller “Cuerpo, Color y
Sabor”, en el Núcleo de Arte Leblon – Centro de Investigación en Formación y en
Enseñanza Escolar de Arte y Deportes de la Secretaria Municipal de Educación de
la ciudad de Rio de Janeiro, con niños del tercer grado de la enseñanza
fundamental, tiene como hipótesis la idea de que los niños-practicantes, de este
espacio-tiempo escolar, poseen una pluralidad de conocimientos en alimentación,
nutrición y salud que deben tenerse en cuenta en la producción de conocimientos y
herramientas en el campo de la educación alimentar y nutricional. Por lo tanto, tiene
como objetivo principal hacer visible los haceres y saberes de estos niños-
practicantes, además de conocer los modos de aprender-enseñar valorados por
ellos y sus redes de valores y creencias sobre el tema. Su recorrido político-teórico-
epistemológico-metodológico se apoya en las “artes de hacer” de los practicantes
ordinarios presentados por Michel de Certeau, en los movimientos de investigación
en-de-con los cotidianos organizados por Nilda Alves de Oliveira, en lo concepto de
la complejidade por Edgar Morin, en lo paradigma indiciario por Carlo Ginzburg, en
la sociología de las ausencias y de las emergencias propuestas por Boaventura de
Sousa Santos, en los currículos pensados-practicados tejidos por Inês Barbosa de
Oliveira, además de las propuestas practicas-teóricas de Paulo Freire. Los haceres y
saberes de los niños-practicantes son hechos visibles y creíbles en siete narrativas
de las experiencias prácticas del cotidiano del taller, lo que confirma la hipótesis de
la tesis de que hay una constelación de conocimientos en alimentación, nutrición y
salud, tejidos y compartidos, en el cotidiano, por los niños-practicantes, que no
pueden de ninguna manera ser olvidados por investigadores-profesores del campo
de la educación alimentar y nutricional comprometidos con un presente sin
desperdicios y con un futuro de amplias posibilidades. Un futuro, por lo tanto, lleno
de saberes, colores, olores y sabores.
Palabras-clave: Alimentación. Cotidiano. Niños. Currículos Pensados-Practicados.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Partes minhas, partes tuas, corpos nossos ........................... 40
Figura 2 - Descobertas ........................................................................... 43
Figura 3 - Contornos ............................................................................... 44
Figura 4 - Preenchendo os corpos.......................................................... 46
Figura 5 - Tecendo conhecimentos......................................................... 47
Figura 6 - Casal em cena ....................................................................... 51
Figura 7 - Produtos inventados .............................................................. 61
Figura 8 - (Com)partilhando saberes ...................................................... 63
Figura 9 - Em busca de indícios ............................................................. 66
Figura 10 - Decifrando .............................................................................. 67
Figura 11 - Você sabe o quanto de açúcar tem aqui? .............................. 68
Figura 12 - O que é isto? .......................................................................... 70
Figura 13 - Burlando o que não nos representa ....................................... 72
Figura 14 - Tecendo os agrupamentos .................................................... 83
Figura 15 - Viajando compelas histórias .................................................. 85
Figura 16 - Saboreando juntos ................................................................. 88
Figura 17 - Um cheiro ............................................................................... 89
Figura 18 - Experimentando pela primeira vez ......................................... 90
Figura 19 - Saboreando ............................................................................ 91
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CRE Coordenadoria Regional de Educação
SME Secretaria Municipal de Educação
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................ 15
1 CAMINHOS DA PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS ............ 18
1.1 Fundamentos teóricopolíticoepistemológicometodológicos: como
caminhei ................................................................................................ 18
1.1.1 Michel de Certeau e os praticantes do cotidiano .................................... 19
1.1.2 Nilda Alves e os movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos .... 20
1.1.3 Edgar Morin e o pensamento complexo.................................................. 23
1.1.4 Carlo Ginzburg e os indícios dos praticantes do cotidiano ..................... 25
1.1.5 Inês Barbosa de Oliveira e os currículos pensadospraticados ............... 27
1.1.6 Boaventura de Sousa Santos e a desinvisibilização dos
fazeressaberes dos pensantespraticantes ............................................. 29
1.1.7 Paulo Freire e a boniteza da sua coerência ........................................... 31
1.2 Espaçotempo da pesquisa: por onde e quando caminhei ............... 33
1.2.1 Núcleo de Arte Leblon ............................................................................ 34
1.2.2 Oficina “Corpo, Cor e Sabor”................................................................... 36
1.3 Questões éticas da pesquisa ............................................................... 38
2 DESINVISIBILIZANDO OS FAZERESSABERES DAS
CRIANÇASPRATICANTES ...................................................................
39
2.1 Partes minhas, partes tuas, corpos nossos ....................................... 40
2.2 Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de
nutrir” .....................................................................................................
49
2.3 “No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos” ................... 54
2.4. Sete saquinhos de açúcar: você sabia disto? ................................... 61
2.5 Lance a lance: os usos astuciosos das
criançaspraticantes...............................................................................
69
2.6 Representações gráficas dos guias alimentares: leituras plurais
das criançaspraticantes .......................................................................
75
2.7 (Re)tecendo saberes, sabores, cheiros e cores ................................ 84
3
E POR ÚLTIMO UMA HISTÓRIA PRIMEIRA QUE MUDOU O
COMEÇO ...............................................................................................
93
ALINHAVANDO UM PONTO FINAL ................................................... 97
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 99
APÊNDICE A – Termo de consentimento livre e esclarecido ................ 104
APÊNDICE B – “Representações gráficas de guias alimentares:
leituras plurais das criançaspraticantes” .................................................
107
APÊNDICE C – “Artigo a ser submetido à Revista Interface” .............. 125
APÊNDICE D – “Encenando os cotidianos: as ‘artes de fazer’ e as
‘artes de nutrir’ de Certeau” ....................................................................
140
ANEXO A – Parecer consubstanciado do comitê de ética ..................... 155
15
INTRODUÇÃO
Esta tese defende a ideia de que os praticantes comuns da vida cotidiana
possuem uma pluralidade de conhecimentos em alimentação e nutrição que
precisam ser levados em consideração quando se pensa em produzir
conhecimentos e instrumentos no campo da educação alimentar e nutricional.
Tecida e (com)partilhada no cotidiano escolar, a pesquisa tem como objetivo
principal desinvisibilizar os fazeressaberes1 das criançaspraticantes do cotidiano da
oficina “Corpo, Cor e Sabor”, permitindo conhecer os modos de
pensaraprenderensinar por elas valorizados, bem como suas redes de valores e
crenças frente ao tema.
Assumo, portanto, agenciada pelo potente encontro com as pesquisas
nosdoscom os cotidianos, a minha prática educativa como lócus da pesquisa. Estes
estudos, que vêm se constituindo e se consolidando no campo da Educação há mais
de 20 anos no Brasil, seguem o fio de pensamento articulado por Michel de Certeau
no livro intitulado “A invenção do Cotidiano: artes de fazer”, tendo como centralidade
as práticas cotidianas, os modos de fazer de seus praticantes e as criações que
envolvem.
As pesquisas nosdoscom os cotidianos conferem a nós professores a
possibilidade primorosa, e mais do que legítima e necessária, de pesquisarmos a
nossa prática e os praticantes que (con)vivem, habitam e (re)inventam o nosso
cotidiano escolar, exigindo de nós uma vigilância epistemológica às teorias, métodos
e conceitos que nos foram ensinados pela ciência moderna que é homogeneizante e
hegemônica.
Para pesquisar o cotidiano escolar, aqui entendido como espaçotempo no
qual, além de tecermos a nós mesmos, também produzimos conhecimentos,
inclusive os chamados conhecimentos científicos, faz-se necessário mergulhar com
todos os sentidos para tentar ver/ouvir/sentir/tocar/cheirar/saborear o que “ali se
passa mesmo quando nada se parece passar” (PAIS, 2003). É preciso ter os
sentidos voltados para as sutilezas, as singularidades, os detalhes, as miudezas e
1 Nilda Alves tem se valido de aglutinação de palavras consideradas antagônicas para transpor as
dicotomias e os binarismos, conferindo outro sentido às expressões. Usarei as junções das palavras, ao longo do texto, com a mesma intenção.
16
as complexidades do cotidiano e de seus praticantes ordinários. É preciso, portanto,
estar imerso naquilo que é pequeno demais para ser visto de longe.
Nesse sentido, é preciso um processo de (re)invenção permanente do ato de
pesquisar. É preciso, sobremaneira, que criemos outros modos (não hegemônicos)
para darmos visibilidade e credibilidade aos fazeressaberes das criançaspraticantes
do cotidiano escolar.
A pesquisa nosdoscom os cotidianos também requer que narremos a vida e
literaturizemos a ciência (ALVES, 2001). É preciso, pois, uma outra escrita, outras
“artes de dizer” (CERTEAU, 2012), a arte de contar histórias. Histórias que, nesse
texto, serão narradas na primeira pessoa do plural porque tecidas cotidiana e
coletivamente por todos os praticantes dessa pesquisa. Esta forma de
sentirpensarfazer pesquisa ainda nos aponta a necessidade de, astuta e
taticamente, juntarmos palavras a fim de mostrarmos que os binarismos e as
dicotomias são insuficientes para narrar e entender o cotidiano que habitamos e
estamos a pesquisar. Por isso, o leitor encontrará ao longo da narrativa, junções de
palavras com a intenção de mostrar a indissociabilidade das mesmas ou para
conferir a elas um outro sentido (ALVES; GARCIA, 2008).
Contei, portanto, para desenvolver e defender esta ideia, com os fios de
pensamento de alguns autores cujos conceitos me puseram a caminhar e que
produziram acontecimentos durante a minha caminhada. Fui agenciada pelas “Artes
de fazer” dos praticantes do cotidiano apresentadas pelo historiador francês Michel
de Certeau, pelos movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos desenhados
pela cotidianista Nilda Alves, pelo “Pensamento Complexo” do sociólogo francês
Edgar Morin, pelas pistas reveladoras do “Paradigma Indiciário” do historiador
italiano Carlo Ginzburg, pelos “Currículos pensadospraticados” da cotidianista Inês
Barbosa de Oliveira, pelas “Sociologias das Ausências e Emergências” do sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos e pela boniteza da coerência do educador
do mundo Paulo Freire. Estes conceitos, que agenciaram em mim outras
possibilidades de pensarfazer pesquisa, serão apresentados no texto inicial –
Caminhos da pesquisa nosdoscom os cotidianos. Ainda nesse capítulo,
contextualizarei o espaçotempo no qual mergulhei para a realização da pesquisa –
Núcleo de Arte Leblon e Oficina “Corpo, Cor e Sabor”.
Em seguida, na parte intitulada Desinvisibilizando os fazeressaberes das
criançaspraticantes, apresento as sete narrativas que contam as
17
experiênciaspráticas vividas, (res)significadas, (re)inventadas por estes praticantes
que deslocam as nossas certezas e que (re)encantam os nossos cotidianos, com a
intenção de tornar visível e credível os seus fazeressaberes.
E por último uma história primeira que mudou o começo revela a potência de
encontros práticosteóricos que corroboram para a construção e a confirmação da
hipótese e que instigaram em mim outras possibilidades de sentirpensarfazer a
pesquisa e a vida.
Vale ressaltar que esta tese, ainda que apresentada no chamado formato
tradicional, contém em seu apêndice os seguintes artigos derivados da pesquisa:
“Representações gráficas dos guias alimentares: leituras plurais das
criançaspraticantes” submetido à revista Saúde e Sociedade, “Encenando os
cotidianos: as ‘artes de fazer’ e as ‘artes de nutrir’ de Certeau” submetido à
revista DEMETRA: Alimentação, Nutrição e Saúde e “Jogos de nutrição e a
inventividade das criançaspraticantes” submetido à revista INTERFACE –
Comunicação, Saúde e Educação. Esses, para além de cumprirem as exigências de
publicação no campo da ciência, têm o desejo de desinvisibilizar e compartilhar os
fazeressaberes das criançaspraticantes, bem como a potência das pesquisas
nosdoscom os cotidianos no campo da alimentação, nutrição e saúde.
Acredito que, ao tornarmos visíveis e credíveis os fazeressaberes das
criançaspraticantes, estaremos exercendo uma ciência prudente para uma vida
decente (SANTOS, 2010c), pois ao ampliarmos as experiências de um presente não
desperdiçado, potencializaremos um futuro de possibilidades. Um futuro desejante
de mais saberes, cores, cheiros e sabores.
18
1 CAMINHOS DA PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS
1.1 Fundamentos teóricopolíticoepistemológicometodológicos: com quem e
como caminhei
Nesta pesquisa, tecida e partilhada nodocom o cotidiano escolar, contei com
fios de pensamentos de diferentes tons e texturas, alguns mais recentes, outros nem
tanto, que me permitiram alterar a rota previamente delineada, mas ainda assim
caminhar adiante, correndo todos os riscos que o desconhecido, o imprevisível,
pode nos trazer.
Muitos pensadores enlaçaram-me com seus fios, não coincidentemente, no
cotidiano escolar durante os nossos momentos de fuga; quando nós professores2
nos reunimos, subvertendo a ordem, para tomar um café, prosear e fazer ciência
(por que não?). De outros fui seguindo as pistas deixadas, em um texto aqui outro
acolá, pelas tessituras de saberes feitas pelos cotidianistas. Fui encontrando, assim,
autores que foram me proporcionando o encantamento de se pesquisar a própria
prática e o cotidiano que habitamos.
Nessa travessia – do sabido ao desconhecido, do provável ao improvável, do
visível ao invisível – caminhei com as ideias e conceitos, especialmente, de Michel
de Certeau, Nilda Alves, Edgar Morin, Carlo Ginzburg, Inês Barbosa de Oliveira,
Boaventura de Sousa Santos e Paulo Freire. Destes, vieram outros fios que
aparecerão ao longo das narrativas, mas, nesse momento, venho esclarecer os
conceitos desses autores que me colocaram a caminhar.
Farei uso, intencionalmente, de citações mais longas dos autores, com a
finalidade de apresentar na íntegra, para além dos conceitos, alguns de seus
escritos, uma vez que o ato de escrever, também é uma escrita de si.
2 José Carlos Teixeira, um amigoprofessor, na época doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Educação – PROPED-UERJ, colocou em minhas mãos, após muitas prosas e cafés, dois livros agenciadores dessa pesquisa: “A Invenção do Cotidiano: artes de fazer” de Michel de Certeau e “A pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes” organizado por Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira.
19
1.1.1 Michel de Certeau e os praticantes dos cotidianos
Michel de Certeau me acionou com as ideias presentes no livro “A invenção
do cotidiano”, onde traz para o centro da cena o homem comum, fala de todos nós
que, com as nossas táticas, astúcias e maneiras de fazer, inventamos o nosso
cotidiano.
Certeau (2012), nessa obra, confere ao cotidiano e aos seus praticantes
anônimos o estatuto de ser e fazer pesquisa, quando muitos ainda insistem em
acreditar que nesse espaçotempo só há senso comum, repetição, reprodução e
consumo passivo daquilo que nos é imposto cotidianamente.
O cotidiano certeauniano, assim como o nosso, é um espaço praticado, vivido
por pessoas que, com suas falas, gestos, movimentos e objetos, exercem
anonimamente suas táticas, operando outros procedimentos de consumo e criando,
astuciosamente, uma rede de antidisciplina (CERTEAU, 2012). Uma rede que insiste
em nos apresentar, ainda que não tenhamos “olhos para ver”, novas maneiras de
fazer, de consumir e de utilizar aquilo que nos é dado e, supostamente, imposto pelo
poder instituído.
[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular, barulhenta, posta-se uma produção do tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (CERTEAU, 2012, p.88-89).
Nesse sentido, em suas vidas cotidianas, os supostos consumidores
passivos, através de suas “artes de fazer” – táticas e astúcias, fabricam formas
alternativas de uso, dando origem a novas “maneiras de utilizar a ordem imposta”
(CERTEAU, 2012, p. 87). As táticas, desviacionistas e de resistência, seriam,
portanto
Movimento “dentro do campo de visão do inimigo” como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios,
20
aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É a astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco” (CERTEAU, 2012, p.94-95).
A tática, enquanto arte do fraco, não tem lugar próprio e nem visão
globalizante, distinguindo-se da noção de estratégia que, própria de um poder,
permite a “‘prática panóptica’ a partir de um lugar de onde a vista transforma as
forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar, portanto, e
‘incluir na sua visão’” (CERTEAU, 2012, p.94).
Diferentemente das táticas, nessa relação de poder, as estratégias são
[...] ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugares e visam dominá-los uns pelos outros. Privilegiam, portanto, as relações espaciais [...] (CERTEAU, 2012, p.96).
Sobre as táticas e estratégias, Certeau ainda esclarece:
[...] a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais às coerções que a possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (CERTEAU, 2012, p.96).
Busquei apropriar-me, portanto, dos conceitos de maneiras de fazer, táticas e
estratégias apresentados por Certeau (2012), para mergulhar no cotidiano
praticadopesquisado, percebendo as práticas microbianas, singulares e plurais dos
praticantespensantes desse espaçotempo.
1.1.2 Nilda Alves e os movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos
Nilda Alves nos propõe cinco movimentos para pensarmos como devemos
nos deslocar na complexidade da pesquisa nosdoscom os cotidianos. Movimentos
21
que, muitas vezes, nos exigem desaprender o pensar e o saber sobre pesquisa que
nos formaram, nos constituíram (ALVES, 2001; 2008).
O primeiro movimento a autora chama, a partir de Drummond3, de sentimento
do mundo. É preciso mergulhar com todos os sentidos no que se deseja investigar: o
cotidiano. Devemos “sentir o mundo e não só olhá-lo, soberbamente, do alto ou de
longe” (ALVES, 2001, p.16, grifo da autora) e, exatamente por isso, devemos
assumir e correr todos os riscos que esse mergulho possa significar.
Assim, ao contrário da formação aprendida e desenvolvida na maioria das pesquisas do campo educacional, inclusive em muitas sobre o cotidiano escolar, que, de maneira muito frequente, têm assumido uma forma de pensar que vem negando o cotidiano como espaço / tempo de saber e criação, vou reafirmá-lo como sendo de prazer, inteligência, imaginação, memória, solidariedade, precisando ser entendido, também e sobretudo, como espaço/tempo de grande diversidade (ALVES, 2001, p. 16-17).
Sentir o mundo nada mais é do que seguir as pistas das “artes de fazer” das
crianças praticantes do cotidiano escolar.
É, como elas, não se contentar a ver com os olhos, mas sim se dispor a tocar
com as mãos e os pés, a cheirar com o nariz, a saborear com a boca. É viver a
pesquisa, mergulhando com todos os sentidos na complexidade do cotidiano.
O segundo movimento, “Virar de ponta cabeça” volta-se para compreender
aquilo que herdamos da modernidade – teorias, categorias, conceitos e noções –,
como limites ao que precisa ser capturado e compreendido nas pesquisas
nosodoscom os cotidianos.
Trabalhar com o cotidiano e se preocupar como aí se tecem em redes os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, bem como entendê-las, não como apoio e verdade, mas como limites, pois permitem ir só até um ponto, que não foi atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade do cotidiano. Isso exige um processo de negação delas mesmas e dos próprios limites anunciados, assumindo-os, no início mesmo do processo e não ao final quando “outra verdade as substituir”. Ou seja, essas teorias precisam ser percebidas, desde o começo do trabalho, como meras hipóteses a serem, necessariamente, negadas e jamais confirmadas, para meu/nosso desespero, com a “bagagem” sobre teorias e as práticas de pesquisa que antes acumulei” (ALVES, 2001, p.22).
É um movimento que nos despe do já sabido, das verdades apriorísticas, que
nos tira o peso da bagagem, para que outros saberes e outras lógicas possam ser
incorporadas durante o mergulho com todos os nossos sentidos no cotidiano.
3 A autora refere-se a Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro, poeta, contista, que
publicou, em 1940, o livro intitulado “Sentimento de mundo”, onde reuniu 28 poemas que revelavam sua inquietude frente às transformações do mundo daquela época.
22
O movimento seguinte, Nilda Alves chama de “Beber em todas fontes”. É
aquele que, ao exigir a ampliação do que entendemos por fonte, possibilita a análise
e o registro de práticas comuns que, até então, eram desprezadas, consideradas
como menores ou insignificantes.
Quando, no entanto, se entende que, para além de mero reflexo ou redução de uma outra realidade, o cotidiano, mantendo múltiplas e complexas relações com o mais amplo, é tecido por caminhos próprios trançados com outros caminhos, começa-se a entender que as fontes usadas para “ver” a totalidade do social não são nem suficientes, nem apropriadas. Ao lidar com o cotidiano preciso, portanto, ir além dos modos de produzir conhecimento do pensamento herdado, me dedicando a buscar outras fontes, todas as fontes, na tessitura de novos saberes necessários (ALVES, 2001, p.27).
“Narrar a vida e literaturizar a ciência” é o quarto movimento que a cotidianista
propõe. Ela entende ser preciso uma outra escrita para dar conta de falar sobre as
“artes de fazer” no cotidiano.
É preciso, pois, que eu incorpore a idéia que ao narrar uma história, eu a faço e sou um narrador praticante ao traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos que chegaram / chegam até mim, neles inserindo, sempre, o fio do meu modo de contar. Exerço, assim, a arte de contar histórias, tão importante para quem vive o cotidiano do aprender / ensinar (ALVES, 2001, p. 32-33).
Nilda Alves, ao propor que narremos a vida e literaturizemos a ciência, recorre
a “A invenção do cotidiano” onde Certeau (2012, p.141) afirma que “a narrativização
das práticas seria uma ‘maneira de fazer’ textual, com seus procedimentos e táticas
próprios”. Esse movimento, proposto pela autora, e que, de algum modo, já estava
presente em outros autores – Foucault e Bourdieu – como relata Certeau (2102),
que nos permite compreender
As alternâncias e cumplicidades, as homologias de procedimentos e as imbricações sociais que ligam “as artes de dizer” às “artes de fazer’: as mesmas práticas se produziriam ora num campo verbal, ora num campo gestual; elas jogariam de um ao outro, igualmente táticas e sutis cá e lá; fariam uma troca entre si – do trabalho no serão, da culinária às lendas e às conversas de comadres, das astúcias da história vivida às da história narrada (CERTEAU, 2012, p. 141-142).
Esse outro modo de “saber-dizer”, de contar sobre as táticas e maneiras de
fazer dos pensantespraticantes do cotidiano, rompe com a descrição impessoal
praticada pelas pesquisas no paradigma hegemônico. Ao narrar, o contador, com
sua “arte de dizer”, insere fios na nova trama/trança que tece ao contar.
23
Nilda Alves, após formular os quatro movimentos, desenha um quinto que, ao
meu ver, é exatamente aquele que dá sentido aos outros. Ele me faz pensar por
quem e com quem me movo, pois, de fato, me interesso, tal como Pina Bausch4,
pelo que move esses praticantes do cotidiano.
Ao me preocupar com os movimentos que como pesquisadora precisava fazer – compreender todos os acontecimentos que meus tantos sentidos permitiam sentir, esqueci o que Willian Blake poetiza: “Como saber se cada pássaro que cruza os caminhos do ar não é um imenso mundo de prazer, vedado por nossos cinco sentidos? (ALVES, 2008, p.25).
A autora deixa claro que, para além dos movimentos da pesquisa, o que de
fato nos interessa nas pesquisas nosdoscom os cotidianos são as pessoas, os
praticantes, porque os vê em ato o tempo todo.
Nessa “pesquisa-dança”, proposta por Nilda Alves, incorporei os movimentos,
fechando os olhos para as teorias que me limitavam, e mergulhei com todos os
sentidos na complexidade da minha práticapesquisa cotidiana, na tentativa de narrar
as “artes de fazer” dos praticantes anônimos.
1.1.3 Edgar Morin e o pensamento complexo
O fio de pensamento de Edgar Morin puxei de Nilda Alves quando a
cotidianista delineia o terceiro movimento das pesquisas nosdoscom os cotidianos -
“Beber em todas as fontes”. A autora nos fala que este “vai exigir a ampliação do
que é entendido como fonte e a discussão sobre os modos de lidar com a
diversidade, o diferente e o heterogêneo. Para “Beber em todas as fontes” é preciso
unir noções, conceitos e teorias que estão catalogadas e organizadas em
compartimentos estanques.
4 Pina Bausch, dançarina, coreógrafa e pedagoga em dança, subverteu a estética clássica do balé e
inaugurou o que chamam de “teatro-dança”. Suas coreografias eram baseadas nas experiências de vida dos bailarinos e relacionadas às suas passagens pelas diferentes cidades do mundo. O trabalho de Pina Bausch é criado na exata medida de sua fala: “O que me interessa não é como as pessoas se movem, mas sim o que as move.”
24
Morin revela no prefácio do livro “Introdução ao pensamento complexo” (2011)
que jamais se resignou ao saber fragmentado e que sempre aspirou a um
pensamento multidimensional. Animou-se, ao longo da vida, pela
tensão permanente entre a aspiração a um saber não fragmentado, não compartimentado, não redutor e o reconhecimento do inacabado e da incompletude de qualquer conhecimento (MORIN, 2011, p.7)
O sociólogo propõe, portanto, em complemento ao “paradigma da
simplificação”, o paradigma da complexidade. Este não se opõe ao primeiro, mas o
integra, operando a união da simplicidade e da complexidade (MORIN; LE MOIGNE,
2000). Enquanto o primeiro põe ordem no universo, separando o que está ligado
[disjunção] e unificando o que é diverso [redução], o segundo reconhece que a parte
está no todo ao mesmo tempo que o todo está na parte, operando a disjunção, a
conjunção e a implicação. Ou seja, o princípio dialógico do pensamento complexo
nos permite manter a dualidade no seio da unidade.
A um primeiro olhar a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza...Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... (MORIN, 2011, p. 14)
Contudo, segundo o autor, as fragmentações, as disciplinarizações, as
especializações, as hierarquizações, ou seja, as operações da ciência moderna,
podem provocar cegueiras ao eliminarem a riqueza da complexidade (MORIN,
2011). A ambição da complexidade é
prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento [...]. Isto é, tudo se entrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidade da complexidade; porém, a unidade do complexus não destrói a variedade e a diversidade das complexidades que o teceram (MORIN, 1996, p. 176).
Morin aponta, ainda, que a questão da complexidade não entra em cena
apenas em função dos novos progressos científicos, nos aconselhando a busca-la
25
“lá onde ela parece em geral ausente, como, por exemplo, na vida cotidiana”
(MORIN, 2011, p.57).
Nesse sentido, os estudos nosdoscom os cotidianos “bebem”, portanto, do
pensamento complexo de Edgar Morin, na tentativa de superar as fragmentações e
as mutilações cientificistas tão caras ao pensamento simplificador da modernidade.
Buscam, assim, uma (re)invenção permanente do ato de pesquisar um espaçotempo
vivido por praticantes com suas redes de subjetividades, saberes, fazeres, crenças e
valores e, portanto, constituído por multiplicidades, provisoriedades,
imprevisibilidades e complexidades.
As pesquisas nosdoscom os cotidianos, ao reconhecerem a complexidade,
requerem uma permeabilidade, uma fluidez, um diálogo, uma escuta, um olhar, uma
intuição para inventar outros caminhos durante a caminhada. Uma caminhada que
consiste, para nós pesquisadorespraticantes, em “um ir e vir incessante entre
certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o
inseparável” (MORIN; LE MOIGNE, 2000).
1.1.4 Carlo Ginzburg e os indícios dos praticantes do cotidiano
Ginzburg, em “Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história” (1989), nos fala
de formas de saber que nascem da concretude da experiência aprendida, não nos
livros, mas a viva voz pelos gestos, pelos olhares, fundadas sobre as sutilezas.
O autor propõe o paradigma indiciário delineando uma analogia entre os
métodos de Morelli [signos pictóricos], de Sherlock Holmes [indícios] e Freud
[sintomas]. Os três métodos utilizam pistas infinitesimais para captar uma realidade
mais profunda, de outra forma inalcançável.
Morelli, um estudioso das obras de arte, afirmava que, para distinguir os
originais das cópias, seria preciso não se basear em características mais vistosas,
mais evidentes. “Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais
negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor
pertencia” (GINZBURG, 1989, p. 144). Morelli catalogou as minúcias dos lóbulos das
orelhas, das unhas, das formas dos dedos das mãos e dos pés. Sutilezas presentes
nos originais que se perdiam nas cópias que se importavam, especialmente, com os
26
aspectos mais evidentes. Morelli apreciava os pormenores da obra, a fim de
distinguir os originais de suas cópias.
Em busca dos indícios, o método de Morelli foi associado ao de Sherlock
Holmes, por seu criador, Arthur Conan Doyle, que afirmava que “o conhecedor de
arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado
em indícios imperceptíveis para a maioria” (GINZBURG, 1989, p. 145).
A aproximação com Freud, apresentada por Ginzburg (1989), encontra-se no
ensaio do psicanalista “O Moíses de Michelangelo” datado de 1914, quando no texto
ele [Freud] revela
Creio que o seu método [Morelli] está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou refugos da nossa observação (GINZBURG, 1989, p. 147, grifo nosso).
Morelli, ao afirmar que a personalidade deve ser procurada onde o esforço
pessoal é menos intenso, permite a associação de Freud com a psicanálise, onde os
“pequenos gestos inconscientes revelam o nosso caráter mais que qualquer atitude
formal, cuidadosamente preparada por nós” (GINZBURG, 1989, p. 146).
Ginzburg, ao capturar o paralelismo entre Morelli, Sherlock Holmes e Freud,
delineia um método precioso para as pesquisas nosdoscom os cotidianos que, como
propõe a cotidianista Nilda Alves, devem mergulhar na complexidade do cotidiano
com todos os sentidos para ver/ouvir/sentir/cheirar/saborear/tocar as sutilezas e
minúcias desse espaçotempo.
O método indiciário nos faz caminhar nos cotidianos, na medida em que
aumenta a escala, decifrando os acontecimentos sutis, efêmeros, singulares e
pequenos demais para serem vistos de longe. Adquirem relevo, portanto, os
pequenos gestos, os olhares, os burburinhos e as “artes de fazer” (CERTEAU, 2012)
dos praticantes comuns dos cotidianos.
Esse paradigma indiciário que Ginzburg nos apresenta tem como ponto
essencial a ideia de que indícios permitem captar elementos da realidade não
compreensíveis por meio de métodos e procedimentos de pesquisas preconizados
pela ciência moderna. Ele ainda nos alerta que
27
Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição (GINZBURG, 1989, p. 179).
Com essas ideias, procurei mergulhar na minha práticapesquisa, travestida de
Morelli, Sherlock e Freud, em busca de indícios, pistas e sinais para tornar visível a
constelação de fazeressaberes tecida e compartilhada no cotidiano escolar.
1.1.5 Inês Barbosa de Oliveira e os currículos pensadospraticados
Inês Barbosa de Oliveira (2012b), tecendo uma nova trama com os fios de
Boaventura e de Certeau, me instigou com o potente conceito de currículos
pensadospraticados. A cotidianista deixa claro, pelo neologismo empregado, a
indissociabilidade existente entre práticateoria, reflexãoação. Seria, portanto, no
cotidiano escolar que seus praticantes ordinários, ao tensionarem, dialogarem e
ressignificarem os currículos e outros artefatos oficiais, criariam os currículos
pensadospraticados. Currículos que abarcam a pluralidade e singularidade de
fazeressaberes dos sujeitos que habitam a escola.
Quando me refiro aos praticantes cotidianos das escolas como criadores de currículos nos cotidianos, assumo esse processo criador como resultado, sempre provisório e, por isso, recriado cotidianamente, de diálogos e enredamentos entre conhecimentos formais – advindos das diferentes teorias com as quais entram em contato em diversos momentos e circunstâncias de suas vidas – e outros conhecimentos, aprendidos pelos praticantespensantes por meio de outros processos (OLIVEIRA, 2012b, p. 8).
A autora está convencida de que, para além do consumo passivo, os
praticantespensantes dos cotidianos escolares fabricam alternativas credíveis e
legítimas ao currículo instituído, tornando-se, portanto, criadores de currículos,
mesmo que de modo invisível e marginal.
Assim, nos diferentes e múltiplos momentos de suas vidas pessoais e profissionais, em virtude do acionamento de umas ou outras de suas subjetividades, em relação com outras diferentes e plurais redes de conhecimentos e sujeitos que habitam, fisicamente ou não, os cotidianos
28
das escolas, os praticantespensantes das escolas criam currículos únicos, inéditos, “irrepetíveis” (OLIVEIRA, 2012b, p. 90).
Nessa perspectiva, o cotidiano escolar constitui-se, sobretudo, como um
espaço privilegiado de produção curricular, para além do previsto oficialmente. Os
currículos oficiais, sempre implicados com relações assimétricas de poder, ao
entrarem em contato com os praticantes do cotidiano, são tensionados e
ressignificados. Essa zona de contato, estabelecida no cotidiano, faz emergir
diálogos, conflitos, contradições e negociações que permitem aos seus praticantes,
para além de um consumo supostamente passivo dos produtos recebidos,
exercerem suas “artes de fazer” (CERTEAU, 2012), experimentando, criando e
inventando outros modos de fazer e de existir. São as táticas desviacionistas e de
resistência, dos professores e alunos praticantes, que não permitem que o poder do
currículo oficial se realize conforme as intenções de seus formuladores. Como nos
diz a autora,
Há sempre uma saudável e necessária contaminação das propostas no momento em que elas entram no diálogo com a história, a cultura, as formas de inserção social daqueles que as implantam, nelas interferindo, transformando-as cotidianamente no contexto da realidade vivida, sempre complexa e, portanto, irredutível aos seus elementos estruturais, planejáveis e reconhecíveis (OLIVEIRA, 2012b, p. 101).
Os currículos pensadospraticados que a autora nos apresenta são, portanto,
criações cotidianas tecidas através do diálogo entre os diferentes saberes, fazeres,
valores, crenças e convicções dos praticantes ordinários e das propostas
curriculares oficiais. Nesse sentido ao compreendermos
[...] os currículos como criações cotidianas dos praticantespensantes das escolas, produzidas por meio dos usos singulares que fazem das normas e regras que lhe são dadas para consumo, num diálogo permanente entre essas diferentes instâncias, podemos supor que as redes de conhecimentos por eles tecidas dão origem a algumas práticas emancipatórias e são, também, fruto dos diversos modos de sua inserção social no mundo, inclusive no campo do embate político e ideológico que habita a sociedade e, portanto, as escolas e as políticas curriculares. (OLIVEIRA, 2012b, p.12).
Os currículos pensadospraticados, compreendidos como criação invisibilizada
pelo pensamento hegemônico, deslocam os nossos saberes apriorísticos sobre
currículos e sobre aprenderensinar, na medida em que incluem, além de outros
29
conhecimentos, as relações entre os diferentes praticantes do cotidiano (OLIVEIRA,
2013).
Mergulhei, portanto, com a potência dessa noção, no cotidiano
praticadopesquisado, não a procura do que foi ou do que poderia ter sido aprendido
sobre alimentação, nutrição e saúde com os currículos oficiais, mas, especialmente,
para tentar capturar aquilo que neles é criação e reinvenção dos praticantes
ordinários, que com suas “artes de fazer” assumem a autoria dos currículos que, de
fato, são praticadospensados nas escolas.
1.1.6 Boaventura de Sousa Santos e a desinvisibilização dos fazeressaberes dos
praticantespensantes do cotidiano
Os fios de pensamentos de Boaventura puxei seguindo as pistas que Inês
Barbosa de Oliveira5 deixou nos seus escritosfalas. Ao trançar esses fios junto aos
seus, a cotidianista vem propondo em suas pesquisas a apropriação da “Sociologia
das Ausências” e da “Sociologia das Emergências”, formuladas pelo autor, não
apenas como referencial teórico-epistemológico, mas também como parte dos
procedimentos metodológicos.
As pesquisas nosdoscom os cotidianos trazem, portanto, para as suas redes
as premissas e os objetivos dessas sociologias, mantendo o compromisso político-
epistemológico de tornar visível e credível o que se cria e se inventa anonimamente
no cotidiano escolar.
Boaventura ao escrever “A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência”, faz uma crítica a essa razão preguiçosa e que, portanto, não se
exerce, para reconhecer a riqueza inesgotável do mundo (SANTOS, 2011a). A razão
indolente, segundo o autor, se manifesta de duas formas particularmente
importantes: a razão metonímica e a razão proléptica. A primeira toma a parte pelo
todo, contraindo o presente por deixar de fora muitas experiências, desperdiçando-
as. A segunda, por já conhecer a história futura no presente, expande infinitamente o
5 A autora publicou o livro “Boaventura e a Educação”, pela editora Autêntica, em 2006, após concluir
o pós-doutorado na Universidade de Coimbra sob a orientação de Boaventura de Sousa Santos. Escreveu, ainda, diversos artigos onde articulou/trançou o pensamento de Boaventura com as pesquisas nosdoscom os cotidianos escolares.
30
futuro (SANTOS, 2011b). Ao criticá-las, propõe o exercício inverso: expandir o
presente e contrair o futuro. Para tal, formula a Sociologia das Ausências e a
Sociologia das Emergências.
A sociologia das ausências é, sobretudo, um procedimento transgressivo que
tenta mostrar que o que não existe é ativamente produzido como não existente.
Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com eles. O objectivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças (SANTOS, 2010a, p. 102).
As ausências, segundo o autor, são produzidas por cinco lógicas ou modos
de não-existência: a monocultura do saber e do rigor; a monocultura do tempo linear;
a monocultura da naturalização das diferenças; a monocultura da escala dominante
e a monocultura do produtivismo capitalista. Essas lógicas, legitimadas pela razão
metonímica, produziriam o ignorante, o residual, o inferior, o local ou particular e o
improdutivo (SANTOS, 2010a). A produção social dessas ausências resultaria na
contração do presente [pela monocultura do tempo linear] e, consequentemente, no
desperdício da experiência. Desperdício este que diminuiria o campo das
possibilidades de experiências sociais no futuro.
Para ampliar o presente e não desperdiçar as experiências, a sociologia das
ausências opera substituindo as monoculturas por ecologias, dentre elas, a ecologia
de saberes. Esta se funda na premissa de que “não há conhecimento em geral;
tampouco há ignorância em geral. Somos ignorantes de certos conhecimentos, mas
não de todos” (SANTOS, 2011b, p. 52). A utopia do interconhecimento – do diálogo
entre saberes incompletos – consistiria em “aprender novos e estranhos saberes
sem necessariamente ter de esquecer os anteriores e próprios.” (SANTOS, 2010a,
p. 106).
Para contrair o futuro, a partir da crítica à razão proléptica, Boaventura propõe
uma outra sociologia insurgente: a sociologia das emergências. Esta sociologia, de
acordo com o autor, nos permite tentar ver quais são as latências, as possibilidades
que existem no presente e os sinais embrionários de um futuro concreto (SANTOS,
2010a).
31
A sociologia das emergências, nessa linha de pensamento de Boaventura,
surge para investigar em que medida as alternativas ao modelo hegemônico,
tornadas visíveis no presente, podem ser inseridas num futuro de possibilidades. A
respeito disso, o autor esclarece que:
Enquanto a sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das experiências possíveis. As duas sociologias estão estreitamente associadas, visto que quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo mais experiências são possíveis no futuro. Quanto mais ampla for a realidade credível, mais vasto é o campo dos sinais ou pistas credíveis e dos futuros possíveis e concretos. Quanto maior for a multiplicidade e diversidade das experiências disponíveis e possíveis (conhecimentos e agentes), maior será a expansão do presente e a contração do futuro (SANTOS, 2010a, p. 120).
A sociologia das ausências, como possibilidade metodológica nas pesquisas
nosdoscom os cotidianos, me oportunizou, através do reconhecimento das
ecologias, buscar as experiências desperdiçadas no cotidiano escolar,
desinvisibilizando-as e fazendo-as presentes. A sociologia das emergências, ao
romper com a ideia de um futuro dado, sem limites, me permitiu estar atenta ao
“ainda não” – às possibilidades e às alternativas emergentes de um presente não
desperdiçado.
1.1.7 Paulo Freire e a boniteza de sua coerência
Nessa trama de saberes, os fios de Paulo Freire são os mais antigos. Fui
definitivamente atravessada por esses fios na minha primeira graduação e foram
eles, certamente, depois de tantos anos, que me permitiram ser tocada, trançada,
por todos os outros fios presentes nesta pesquisa.
Paulo Freire, com toda a boniteza de sua fala e de sua prática, bem como
com a necessária coerência entre elas, permite que eu esteja na docência ao
acreditar, como e com ele, que, dentre outras exigências, ensinar [e também
aprender] exige consciência do inacabamento, escuta, diálogo, respeito aos saberes
dos educandos, coerência, ética e estética, curiosidade, pesquisa e, sobretudo, a
convicção de que “mudar é difícil, mas é possível” (FREIRE, 2014a, p.132).
32
Lendo algumas obras de Paulo Freire, é possível perceber um pouco de
Certeau, de Nilda, de Morin, de Ginzburg, de Inês e de Boaventura. Não é possível,
contudo, saber quem tocou quem, de onde os fios foram puxados, mas essa não é a
questão. O que realmente me interessa é a rede de saberes, fazeres, crenças,
valores, afetos e subjetividades, onde tudo e todos se entrecruzam numa rede
rizomática.
Subvertendo a ordem da metáfora arbórea tradicional, que reproduz a
fragmentação do saber fincado em solo firme e com hierarquias determinadas, o
rizoma, formado por pequenas raízes emaranhadas, entrelaçadas,
[...] tem como tecido a conjunção “e...e...e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metodológico, pedagógico, iniciático, simbólico...). [...] Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.37).
É nesse rizoma – onde qualquer ponto pode ser/estar conectado a qualquer
outro – que transito, me constituo e de que também faço parte, que me nutro
esteticamente, politicamente, epistemologicamente e metodologicamente para me
colocar a caminhar como professorapesquisadora da minha prática educativa.
Nessa trama, nessa multiplicidade de conexões, entradas e saídas, escolher
o que me move em Paulo Freire – qual a sua fala, qual a sua prática, qual a sua
boniteza – é uma das tarefas mais difíceis, pois ele, na sua inteireza, me move por
inteiro.
É preciso, contudo, fazer escolhas. Então, puxo o seu fio de pensamento que
nos fala que “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”. Mudança,
necessária e urgente, que já está em curso, em múltiplos espaçostempos, na rede
de uma antidisciplina como pensa Certeau, nos movimentos de Nilda Alves, no
pensamento complexo de Morin, no paradigma indiciário de Ginzburg, nos currículos
pensadospraticados de Inês Barbosa de Oliveira e na ecologia de saberes de
Boaventura de Sousa Santos.
Paulo Freire quando nos diz - “O mundo não é. O mundo está sendo”
(FREIRE, 1996, p. 76), nos coloca, enquanto educadores e sujeitos da história,
33
diante da responsabilidade de intervir, de provocar mudanças, acreditando que “se a
educação não pode tudo, alguma coisa fundamental ela pode” (FREIRE, 1996, p.
112). A educação pode, dentre tantas outras coisas, nos dar a esperança que não
se reduz à espera e o sonho possível de se sonhar. E sem nunca prescindir do
sonho e da utopia, o autor nos traz à reflexão:
Nunca falo da utopia como uma impossibilidade que, às vezes, pode dar certo. Menos ainda, jamais falo da utopia como refúgio dos que não atuam ou [como] inalcançável pronúncia de quem apenas devaneia. Falo da utopia, pelo contrário, como necessidade fundamental do ser humano. Faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se, que homens e mulheres não prescindam em condições normais, do sonho e da utopia. As ideologias fatalistas são, por isso, negadoras das gentes, das mulheres e dos homens (FREIRE, 2014b, p. 77).
Mergulhei, assim, no meu cotidiano de professorapesquisadora, imbuída
dessa utopia, em busca de pensaresfazeressaberes das “gentes” [miúdas] que
foram, historicamente, descredibilizados, invisibillizados e produzidos como não
existentes, sabedora da necessária coerência entre o que eu falo e o que eu faço –
entre a minha teoria e a minha prática.
1.2 Espaçotempo da pesquisa: por onde e quando caminhei.
Essa pesquisa foi tecida no meu cotidiano escolar onde atuo como
professorapraticante. Autorizei-me a fazê-la a partir das falas de Certeau (2012) e
dos demais cotidianistas, que ao tecerem teorias sobre as práticas cotidianas
conferem aos seus praticantes o estatuto de ser e fazer pesquisa. Pesquisar a
própria prática é, inclusive, uma das exigências do ensinar, do ser professor. Paulo
Freire, nesse sentido, diz que no seu entender
o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente, a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (FREIRE, 1996, p. 29).
Assumi, portanto, o cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, do Núcleo de
Arte Leblon, com crianças do 3º ano do ciclo do ensino fundamental, como lócus da
34
pesquisa, uma vez que atuo nesse espaço escolar há mais de 15 anos, conduzindo
a referida oficina, com professoresparceiros - André6 e Renata7, desde 2012.
Com a intenção de facilitar a compreensão do leitor sobre o Núcleo de Arte
Leblon e a oficina propriamente dita, abro, na minha escrita, espaços específicos
para apresentá-los.
1.2.1 Núcleo de Arte Leblon
O Programa Núcleo de Arte surgiu no antigo Departamento Cultural da
Secretaria Municipal de Educação (SME) da cidade do Rio de Janeiro, no início da
década de 1990, mais precisamente em 1992 na Escola Municipal Dídia Machado
Fortes, na atual 7ª CRE (Coordenadoria Regional de Educação). Desde então, ao
longo dos anos noventa e início do segundo milênio, foram sendo criados diversos
Núcleos na tentativa de contemplar as dez CREs da rede municipal de ensino. A
proposta inicial do programa baseava-se no trabalho com ateliê livre, em oficinas
específicas das diferentes linguagens da arte, oferecidas aos alunos matriculados na
rede no contraturno escolar. Originalmente, as oficinas de diferentes linguagens da
arte – dança, teatro, música, artes visuais, vídeo e arte literária, aconteciam duas
vezes por semana com duração de uma hora e meia.
Ao longo desses anos, em função da política educacional de cada governo,
muitas alterações foram acontecendo. Alguns Núcleos foram sendo fechados, outros
reduziram o número de professores e, consequentemente, de oficinas oferecidas e
algumas unidades, ao usarem táticas ceurteaunianas, criaram parcerias com
unidades escolares para se fortalecerem junto à SME.
Atualmente, existem sete Núcleos de Arte, dentre eles o Núcleo de Arte
Leblon, que se configuram como Unidades de Extensão Educacional, incorporando
6 André Brilhante, professor da rede pública municipal e estadual na cidade do Rio de Janeiro, é
mestre em Teatro-Educação pela UniRio; professor de vídeo e teatro do Núcleo de Arte Leblon e diretor da Companhia de Teatro Preto no Branco. 7 Renata Versari, professora da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, é formada em Artes Cênicas
pela UniRio e em dança pela Escola Angel Viana, apresentando uma grande experiência no ensino de danças populares brasileiras.
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o papel de Centros de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e
Esporte8.
Como o nome já enuncia, o Núcleo de Arte Leblon, coordenado pela 2ª CRE9,
está localizado no bairro do Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, situado no
mesmo quarteirão das escolas municipais Sérgio Vieira de Mello e George Pfisterer.
A primeira dedica-se ao ensino fundamental I e a segunda ao ensino fundamental II.
Estas escolas, dada a proximidade geográfica, estabeleceram parcerias com o
Núcleo de Arte Leblon, enviando suas turmas, no turno escolar, para participarem de
oficinas concebidas pelos professores desta unidade, especialmente para as escolas
parceiras.
Além das parcerias, o Núcleo do Leblon [como o chamamos cotidianamente]
oferece oficinas, em outros horários, para os alunos do contraturno que o procuram
por demanda espontânea. Nesse grupo é possível encontrar, com frequência,
aqueles alunos que frequentam / frequentaram, no horário escolar, as oficinas
destinadas às escolas acima mencionadas. Este Núcleo, especialmente, oferece
grande diversidade de oficinas por conta das formações híbridas de seus
professores. Acrobacia; Arte Literária; Artes Visuais; Balé Clássico; Corpo, Cor e
Sabor; Dança Contemporânea; Dança Popular, Multimídia; Música, Teatro e Vídeo
são alguns exemplos de oficinas que acontecem duas vezes por semana, com
duração de uma hora, ao longo de um ano letivo.
O Núcleo de Arte Leblon, enquanto espaçotempo que pratica o diálogo entre
os diferentes saberes nas suas oficinas, nos seus “corredores”, nos “cafezinhos
proseados” e, também, no centro de estudo semanal de seus professores, permitiu
que expandíssemos o nosso presente a fim de que não desperdiçássemos as
experiências plurais e singulares vividas pelos pensantespraticantes que
atravessavam, praticavam e habitavam os seus cotidianos.
8 O ensino de esporte, ainda que não exclusivamente, é de responsabilidade das Unidades de
Extensão denominadas “Clubes Escolares”. 9 A 2ª CRE é responsável pelas escolas e unidades de extensão localizadas no Cosme Velho,
Laranjeiras, Leme, Jardim Botânico, Vidigal, alto da Boa Vista, São Conrado, Ipanema, Andaraí, Morro do Andaraí, Jamelão, Tijuca, Comunidade Chacrinha, Praça da Bandeira, Botafogo, Glória, Praia Vermelha, Usina, Rocinha, Humaitá, Leblon, Urca, Grajaú, Morro Nova Divinéia, Maracanã, Copacabana, Morro dos Cabritos, Catete, Vila Isabel, Lagoa, Flamengo, Gávea, Rio Comprido.
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1.2.2 Oficina “Corpo, Cor e Sabor”
A oficina “Corpo, Cor e Sabor”10 é oferecida pelo Núcleo de Arte Leblon,
desde 2012, às turmas da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello. As
criançaspraticantes, no ano de 2014, quando assumimos o cotidiano da oficina como
lócus da pesquisa, tinham entre 8 e 9 anos de idade e cursavam o 3º ano do ciclo do
ensino fundamental. No período da pesquisa, recebemos três turmas, totalizando 94
criançaspraticantes. Estas, em sua grande maioria, são moradoras da Rocinha, do
Vidigal e da Cruzada de São Sebastião, localizada também no bairro do Leblon.
Os nossos encontros, que aconteciam/acontecem uma vez por semana11,
com duração de 1h, tinham/tem como proposta estimular a “curiosidade
epistemológica” e desinvisibilizar os currículos pensadospraticados, bem como as
redes de saberes, fazeres, valores e crenças em alimentação, nutrição e saúde,
permitindo, ainda, conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas
crianças praticantes (CERTEAU, 2012).
Movidos pelos pensamentos dos autores que nutrem essa pesquisa,
mergulhamos com todos os sentidos (ALVES, 2001), no nosso cotidiano e na
cotidianidade de nossas crianças, esperançosos de que, juntos, estaríamos a pensar
em espaçostempos que garantissem a diversidade, a liberdade, a criatividade, a
experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o
pensaraprenderensinar coletivamente e tudo o mais que fosse necessário para
despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática
educativa (FREIRE, 1996).
Desfrutando da diversidade de espaços presentes no Núcleo de Arte Leblon,
bem como do seu entorno, no decorrer de nossos encontros foram usadas
diferentes estratégias metodológicas, nem todas narradas nesta tese, a fim de
estimular a participação ativa das crianças como: atividades corporais; de desenho e
pintura; de escrita de textos; de interpretação cênica das atividades cotidianas; de
10
Nas narrativas sobre a oficina “Corpo, Cor e Sabor”, farei uso, na maioria das vezes, da primeira pessoal do plural não para me esconder na impessoalidade, mas para revelar a existência de uma rede de sujeitos e subjetividades que pensam e que praticam noscom os cotidianos, da oficina e da pesquisa, ainda que anonimamente. 11
Uma das turmas passou a frequentar a oficina, no meio do ano letivo de 2014, duas vezes por
semana.
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peças de teatro, vídeos, de filmes e documentários que abordam o tema
alimentação; de visitas aos mercados e à feira livre do bairro; de oficina sensorial
com alimentos; de jogos de nutrição; de experimentação de receitas de família e de
novos sabores; de leitura de livros; de plantio de mudas e de horta suspensa, dentre
outros.
Pretendíamos que essa pluralidade de experiências possibilitasse
desconstruir a persistente afonia e invisibilidade das crianças nas investigações,
conferindo a elas o papel de sujeitos de conhecimento, com voz e ação, atuando,
assim, como coautores dos conhecimentos e da pesquisa ali tecidos. As atividades
foram pensadas considerando as singularidades, as potencialidades das crianças e
os caminhos que elas nos apontavam entre um encontro e outro, sempre articuladas
pela via do prazer, da solidariedade e da autoria, tendo como fio condutor a
alimentação, nutrição e saúde. Os encontros da oficina foram conduzidos por três
professores. Em alguns encontros, André e eu, em outros eu e Renata e em alguns
momentos os três.
A parceria por nós estabelecida, além das afinidades epistemológicas e
políticas, deu-se também em função das nossas formações híbridas e
complementares [teatro, dança, vídeo, educação física e nutrição], constituindo-se
em um espaçotempo permanente de trocas, experimentações e reflexões. A
solidariedade, o prazer e a autoria, considerados tão caros nos processos de nossas
oficinas das linguagens da arte, também foram elementos preciosos nessa
experiência tecida, destecida e (re)tecida cotidianamente. Elementos estes, segundo
Oliveira (2012a), considerados centrais nas lutas emancipatórias propostas por
Boaventura de Sousa Santos. Nos anos de 2013 e 2014, por conta do momento de
luta que vivíamos na educação pública da cidade do Rio de Janeiro, estávamos,
talvez sem nos darmos conta, cada vez mais, em busca de práticas emancipatórias
tanto para as crianças quanto para nós. A pesquisa, a nossa prática educativa [que
desejava ser emancipatória] e a nossa parceria se fortaleceram na luta, e esta foi
uma de nossas respostas à ofensa à educação pública brasileira, em especial, à
educação pública da cidade do Rio de Janeiro.
No decorrer das oficinas, realizávamos diariamente anotações no caderno de
campo, fazendo registros, por escrito, que considerávamos interessantes, não
somente para a pesquisa, mas, também, para caminharmos na oficina. Com a
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intenção de registrar momentos que também acreditávamos importantes, fazíamos
uso de fotografias e/ou de filmagens em todos os nossos encontros.
Assim, ao longo das narrativas de nossas experiênciaspráticas na oficina
lançarei mão de imagens e
[...] um dos motivos por que o uso de material imagético é metodologicamente importante na pesquisa no/do cotidiano reside, exatamente, no fato de ele conduzir às múltiplas realidades captadas pelas imagens, não traduzidas em textos, sejam eles discursos e propostas oficiais ou de outros tipos (OLIVEIRA, 2003, p. 90).
As imagens serão incorporadas ao texto não como prova de verdade, mas
para reforçar as nossas falas e para falarem por nós de outras maneiras. As
imagens serão, portanto, utilizadas como potencializadoras de nossos pensamentos
e narrativas.
1.3 Questões Éticas da Pesquisa
O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil e aprovado pelo
Comitê de Ética do Hospital Pedro Ernesto – UERJ, sob o número 642.493 (ANEXO
A), visando à sua liberação pela Secretaria Municipal de Educação (SME). Seguindo
os procedimentos obrigatórios, recebemos a autorização da 2ª CRE e da Escola
Municipal Sérgio Vieira de Mello para darmos início à pesquisa no início do ano
letivo de 2014.
Esclarecemos, ainda, que todas as crianças participantes da oficina tiveram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE A) assinado por seus
responsáveis legais, após a leitura por todos, em reunião coletiva, do material e o
esclarecimento de suas dúvidas sobre a oficina e a pesquisa.
As criançaspraticantes, no primeiro encontro da oficina, também tomaram
ciência de que as atividades seriam registradas, por escrito [caderno de campo] e
por imagem [fotografias e vídeos], para serem utilizadas pela
professorapesquisadora.
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2 DESINVISIBILIZANDO OS FAZERESSABERES DAS CRIANÇASPRATICANTES
Nas narrativas que se seguem, temos o objetivo de desinvisibilizar os
pensaresfazeressaberes das criançaspraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor
e Sabor”. Não há a intenção de detalhar as atividades, indicando objetivos, materiais
utilizados, tempo de duração, pois não se trata de apresentar planejamentos, nem
considerar o trabalho realizado como experiência reprodutível. Trata-se de tornar
visível e credível as artes de fazer dos sujeitos que experimentam, habitam e
praticam este espaçotempo, criando currículos pensadospraticados com cor, sabor e
cheiro.
Ao realizarmos esse recorte do cotidiano que vivenciamos com as
criançaspraticantes, escolhemos, como nos coloca Ferraço (2011), “as
imagensnarrativas que se tornarão visíveis aos olhos” de nossos leitores, deixando
de fora experiênciaspráticas outras que, em função de nossas redes, optamos por
não trazer. Se fossem as crianças, as relatoras, provavelmente outras
imagensnarrativas teriam adquirido relevo. Reforçamos, ainda, que as imagens
entremeadas ao texto, não têm a intenção de provar a validade de nossas práticas,
mas sim de potencializar as nossas falas e de falar por nós de outras maneiras.
A partir desse momento farei uso da primeira pessoa do plural, não para me
esconder na impessoalidade, mas para revelar a existência de uma rede de sujeitos
e subjetividades que pensam e que praticam noscom os cotidianos, da oficina e da
pesquisa, ainda que anonimamente.
As experiências e práticas estão distribuídas em sete narrativas que, não
necessariamente, aconteceram nessa sequência. Elas foram assim desenhadas em
função dos seus desdobramentos e de suas afinidades, não tendo intenção alguma
em ordená-las, classificá-las ou hierarquizá-las.
40
2.1 Partes minhas, partes tuas, corpos nossos.
Figura 1 – Partes minhas, partes tuas, corpos nossos
Sempre que recebemos uma turma nova, procuramos acolhê-la com
experiências corporais no início dos nossos encontros, com a finalidade de
possibilitar uma maior consciência de si e um contato mais próximo com o corpo do
outro.
Propusemos uma atividade, muito comum em aulas de dança, na qual as
crianças caminharam pela sala, em diferentes sentidos e direções e, ao parar a
música, congelaram como se fossem estátuas. Na medida em que a atividade
progredia, um novo desafio: ao parar a música, em duplas, trios, quartetos..., as
crianças deveriam tocar a parte indicada no corpo do outro. Ou seja, testa com testa,
ombro com ombro, pé com pé... E, aos poucos, na brincadeira, as crianças foram se
soltando, ganhando mais confiança na sua relação com o outro. Ponto de partida,
fundamental, para um grupo de crianças que ao longo do ano iria experimentar uma
diversidade de possibilidades de conviver, habitar, praticar o espaçotempo da oficina
“Corpo, Cor e Sabor”.
Em duplas, demos sequência à atividade anterior, pedindo às crianças que
tocassem partes do corpo no corpo do outro: antebraços, pés, pernas, costas...
41
Enfim, partes dos corpos que pudessem ser tocadas, apoiadas e observadas com a
finalidade de identificarem semelhanças e diferenças quanto à forma, peso,
tamanho. As crianças, após terem experimentado com o parceiro inicial, poderiam
vivenciar a brincadeira com outras crianças se assim o desejassem. Muitas
experimentaram com pares diversos, sendo possível ouvi-las comentando que uma
parte ou outra era do mesmo tamanho, maior, menor, mais comprida, mais fina, mais
pesada ... Um momento de descobertas de si e do outro.
No encontro seguinte, depois dos contatos dos corpos no momento anterior,
levamos para a sala uma fita métrica de parede, balança e muitos pedaços de
barbantes. A proposta era: em dupla, cada um seria responsável por medir
diferentes partes do corpo do outro, além da altura e do peso corporal. Anotariam
tudo em um papel e depois conversaríamos sobre o que descobriram.
Assim que falamos como seria realizada a atividade do dia, uma aluna na
roda, levantou a mão e disse: “Professora! Você vai pedir para as meninas se
pesarem? E se a gente não quiser mostrar o peso pra outra pessoa? Sabe como é
mulher, né?”. Nesse instante pensei que as medidas poderiam, de fato, ser
constrangedoras, ainda que não tivéssemos pretensão alguma de torná-las públicas;
julgá-las ou fazer comparações. O que para nós seria apenas uma brincadeira, para
algumas poderia ser coisa muito séria. Imediatamente, veio a imagem de uma
menina da turma que, visivelmente, apresentava sobrepeso. Será que ela ficaria
constrangida? Os (pré)conceitos meus e da menina, ou seja, o que trazíamos de
nossas redes de saberes, práticas, valores e crenças já estavam a desestabilizar a
prática prevista. Nesse intervalo de segundos, onde tudo passa rapidamente pela
nossa cabeça, restou, a nós, responder que todas as atividades propostas seriam
realizadas por quem quisesse. Cada um escolheria o que fazer; com quem fazer e
como fazer. As meninas se olharam e ficamos na expectativa do que estaria por vir.
Ainda em roda, perguntamos se as crianças já haviam se medido em algum
lugar e pudemos perceber que a maioria tinha, por hábito, se pesar nas farmácias.
Quanto à altura corporal, as crianças comentaram que não mediam há muito tempo
e que estavam curiosas em saber se tinham crescido. Um menino logo disse: “Vai
ser legal medir minha altura. Vou falar pra minha mãe. Ela me falou que eu estou
crescendo rápido demais”.
Nessa conversa inicial, aproveitamos para perguntar o que nos fazia crescer.
Uma menina, imediatamente, respondeu: “Se a gente dormir e comer bem a gente
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pode crescer mais”. Em seguida, outra resposta: “Se a mãe dela for alta, ela também
pode ser”. E daí foram surgindo diferentes colocações, vindas de diferentes redes de
conhecimento: “Sapato alto e chapéu deixa a gente alta”. “Basquete faz a gente
crescer”, “Tem adulto que é baixo, tem adulto que é alto”. “A Alice come um doce e
fica grande. Toma um líquido e fica menor.” E por fim, uma menina afirma nos
perguntando: “Vocês sabiam que o ácido úrico pode deixar as pessoas baixas?”. As
crianças, na roda de conversa, vão puxando fios de saberes de tantos lugares que
atravessaram ou pelos quais foram atravessadas: saberes científicos, saberes de
histórias infantis, saberes de família, saberes de pura inventividade...
Terminada a roda de conversa [a qual se não fosse a nossa modernidade
demasiada teria se estendido até o final do horário], explicamos e mostramos, com
uma das duplas, como poderiam ser realizadas as medidas. Caminhando pela sala
fomos, mais uma vez, nos surpreendendo com a desenvoltura e com o cuidado com
que elas realizavam as medidas. Imaginávamos que não seria tarefa fácil medir as
partes do corpo do amigo, com o barbante, e depois verificar a dimensão dirigindo-
se até a fita métrica presa na parede. E elas, como dizem por aí, “tiraram de letra”. É
lógico que as perguntas surgiam no momento de transcreverem as medidas para o
papel: “Professora! Está errado. Ela tem 128 metros?” ou “Que número é esse que
aparece depois do ponto aqui na balança, professora?”. Perguntas que, em alguns
momentos, nos faziam pedir uma pausa geral, a fim de que a dúvida de uma criança
pudesse vir a esclarecer as de todas. Surgem, ainda, outras perguntas: “A gente
pode medir a nossa cabeça? O nosso pescoço?”. Se havíamos pensado em braços
e pernas, as criançaspraticantes inventavam, a cada instante, uma nova parte a ser
medida, comparada, conhecida.
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Figura 2 – Descobertas
Todas as crianças, inclusive a menina que nos questionou sobre a pesagem,
bem como aquela que o meu apriorismo preconceituoso me fez, naquele instante,
imaginar que não participaria, circulavam de forma alegre e curiosa mostrando e
comparando os achados do seu corpo e do corpo do outro. Naquele dia,
avançamos no horário da oficina, pois as crianças sempre pediam um minutinho a
mais para medir uma parte ou outra que havia ficado de fora. Se conseguimos
apressar a prosa inicial da roda, naquele momento não dávamos conta de finalizar o
encontro.
Para o encontro seguinte combinamos, nós professorespesquisadores, que
faríamos, em grupo, o contorno dos corpos. As crianças deitaram sobre o pano ou
sobre uma folha de papel manteiga e tiveram seus corpos contornados pelo grupo.
Deixamos claro, neste dia também, que cada uma participaria como quisesse:
contornando o corpo do outro, deixando o seu corpo ser contornado, segurando o
pano para não sair do lugar... Muitas são as funções que as crianças encontram
quando, por um motivo ou outro, não se dispõem a fazer a proposta inicial. Não há,
portanto, passividade no consumo daquilo que propomos o tempo todo. Muito pelo
contrário, as criançaspraticantes fazem uso de táticas (CERTEAU, 2012)
44
desviacionistas e de resistência, burlando as propostas (im)postas. Além de criarem
outras funções, pedem para beber água, ir ao banheiro – táticas astuciosas da rede
de uma antidisciplina.
Figura 3 – Contornos
Esse corpo contornado e recortado do tecido foi, em um encontro posterior,
preenchido com figuras de alimentos considerados, por elas, saudáveis [alimentos
do bem] e não saudáveis [alimentos do mal].
Essa fala dualista12, trazida por eles, e muito presente nas histórias infantis,
separa os alimentos do bem e do mal, associando o alimento com a presença de
doenças que acometem seus pais, tios e avós.
No meio da negociação, entre colocar os alimentos [figuras que foram
selecionadas em revistas em um momento anterior] no lado do bem ou do lado do
mal, surgem falas antagônicas que mostram a possibilidade de matizes outras para
os alimentos que comemos no nosso dia-a-dia: “Minha vó diz que ovo dá problema
no coração. A gente pode morrer de doença do coração se comer muito ovo.” – fala
12
“Criamos categorias de alimentos – saudáveis e não saudáveis, convenientes e não convenientes, ordinários e festivos, boas e más, femininos e masculinos, adultos e infantis, quentes e frios, puros e impuros, sagrados e profanos etc. – e, por meio dessas classificações, construímos as normas que regem nossa relação com a comida e, inclusive, nossas relações com as demais pessoas, de acordo, também, com suas diferentes categorias” (CONTRERAS, J.; GRACIA, M., 2011).
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de uma criança. Um menino rebate dizendo: “Dá problema se o ovo for frito, se for
cozido não tem problema nenhum. Também não dá pra comer todo dia”.
Uma criança, durante a negociação, se posicionou quando um colega colocou
o achocolatado como um alimento do mal: “Como pode ser do mal, se comemos isto
quase todo dia na escola? A escola ia dar um alimento do mal pra gente? Claro que
não, né?”
E o sorvete? Alimento, de um modo geral, adorado pelas crianças. Era do
bem ou do mal? Algumas crianças disseram ser do bem porque era rico em cálcio.
Outras disseram ser do mal porque era muito doce. O pão também transitou pelos
dois lados: o pão francês era do bem, mas o doce era do mal. As carnes ora eram
vilãs, ora eram mocinhas. Se fosse bife, peixe, filé de frango eram do bem, mas se
fosse carne de porco, linguiça, certamente, eram do mal. As frutas e hortaliças
tinham, contudo, lugar garantido no lado do bem. Quanto a elas não havia dúvidas:
são alimentos saudáveis.
Essas contradições, que também estão presentes no campo da ciência da
nutrição, permeavam toda a discussão quando também entravam em cena outros
elementos como o azeite e o sal. O primeiro ora do bem [era muito bom coração],
ora do mal [muito gorduroso]. O segundo, na maioria das falas, era do mal porque
estava sempre associado à pressão alta. Mas, uma criança instiga: “E se a pressão
estiver baixa? Aí ele é do bem, né?”.
As crianças estabeleceram um grande fórum de discussão trazendo, de suas
redes de saberes, fazeres, valores, crenças, afetos e subjetividades, questões
familiares, midiáticas e do cotidiano da escola para suas argumentações. Quando
perguntamos de onde vinham tantos saberes, elas nos falaram que ouviam dos
avós, das mães, dos pais e de dois programas de uma emissora de televisão – um
com ênfase em culinária e outro no bem estar.
Depois de preencherem os corpos recortados com os alimentos do bem
[corpo saudável] e com os alimentos do mal [corpo não saudável], conversamos
sobre o que poderia acontecer com as pessoas que se alimentavam desses
diferentes tipos de alimentos. O binarismo surge, mais uma vez, na lógica da saúde
e da doença.
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Figura 4 – Preenchendo os corpos
Comer alimentos saudáveis, segundo as crianças, nos deixa fortes, com
energia e com saúde. Aprendemos melhor, ficamos mais inteligentes. Comer
alimentos não saudáveis nos deixa doentes. Podemos ter diabetes como a mãe;
pressão alta como os avós; dor no peito como a madrinha ... Sempre há, em suas
redes de família, a referência a uma doença relacionada [ainda que não
obrigatoriamente] aos hábitos alimentares.
Seguindo a linha do bem e do mal, do saudável e não saudável, aproveitamos
o período da eleição presidencial do ano de 2014 para lançarmos na oficina
“Candidatos a alimento saudável”. Nesse sentido, as crianças se organizaram em
grupos para definirem o seu candidato e, a partir daí, elaborarem suas campanhas.
Fizeram textos, elaboraram cartazes, fizeram “santinhos”, criaram jingles e gravaram
uma campanha para a TV.
47
Figura 5 – Tecendo conhecimentos
Como candidatos “presidenciáveis”, tivemos: maçã, uva, suco de laranja,
laranja, tangerina, morango, banana, salada de frutas, suco de manga, suco de
maracujá, suco de morango, tutti-frutti, brócolis, leite e água. Nesse momento, mais
uma vez, fica evidente que, para as crianças, as frutas são, indubitavelmente, os
alimentos mais saudáveis.
Vote no suco de maracujá. O maracujá quer cuidar da sua saúde. Vote no maracujá. Candidato que cuida de você e de sua família.
Vote no presidente brócolis, por um futuro saudável e sem gordura. Brócolis um presidente saudável. O presidente brócolis é um candidato limpo e saudável. Presidente brócolis, um futuro sem obesidade.
Vote no leite. O leite tem proteína e cálcio. Não é à toa que o bebê toma leite desde que nasceu. Leite o melhor candidato. Vote no leite 8998.
Vote na água. Ela é saudável. Ela é bonita e não deixa a garganta seca. Ela hidrata o nosso corpo. O nosso corpo tem 75% de água. Ela ajuda na limpeza do nosso corpo. Deixa a gente mais feliz. A maioria do mundo tem água.
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Vote no suco de morango. Ele é gostoso e saboroso. Tem muita vitamina C. Todas as crianças gostam porque é vermelhinho. Custa somente R$3,00.
Vote no tutti-frutti [suco]. Ele é delicioso. Ele tem todas frutas e vitaminas. Ele é bom para as crianças e para os adultos.
A banana tem muita vitamina e é saudável. A banana tem energia. Yes nós temos banana, banana menina tem vitamina, banana engorda e faz crescer.
Vote em salada de fruta. É o melhor. Não vote numa fruta qualquer, vote no conjunto das frutas.
O suco de laranja promete manter sua saúde. Ele tem vitamina A e C. Ele vai fazer bem para o seu organismo. Ele tem um visual lindo, seus olhos vão brilhar. Ele é natural. Ele é bom pra tudo. Quando você comer vai sentir o gosto da casca. Vote nele. Obrigado.
Pra presidente a maçã saudável 5225. Vote em mim, eu sou de confiança 5225. A maçã vermelhinha, a mais gostosinha. Você vai gostar, vai amar. Então, vote nela sem cansar.
As crianças teceram, coletivamente, conhecimentos sobre os seus candidatos
e incorporaram nos seus textos de campanha falas que comumente ouvimos de
políticos, além de saberes sobre os alimentos que pesquisaram em suas casas, em
suas redes e nas tabelas nutricionais que levamos para a oficina. Saberes cotidianos
também atravessados pela lógica do mercado e da ciência que, através do processo
de medicalização13, vem encampando toda a experiência humana. Os “eleitores” são
atraídos “a assumir o papel de consumidores no grande supermercado da saúde”
(CAMARGO JR, 2013, p.845).
Em textos breves, tal como vemos nos horários eleitorais, as crianças
conseguiram traduzir características nutricionais e sensoriais dos seus candidatos,
fazendo algumas promessas possíveis, e outras nem tanto assim, aos seus
eleitores. Qualquer semelhança, não é mera coincidência. É astúcia (CERTEAU,
2012)
13
Medicalização para Foucault diz respeito a imposição da medicina aos indivíduos como um ato de autoridade, onde o domínio de intervenção da medicina já não concerne apenas às enfermidades, mas à vida em geral (CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009).
49
2.2 Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de nutrir”
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.31).
Propusemos às crianças a encenação dos seus cotidianos. Num primeiro
momento a cena do despertar até o chegar à escola. Num outro encontro, a cena da
preparação e da realização de uma das refeições do dia em suas casas.
Nesses dias de encenação, fomos todos para o teatro. Apostamos no palco e
nas coxias como facilitadores do rememorar de um cotidiano que seria
compartilhado em sua concretude. Pretendíamos que este espaço privado – o
habitat de cada um, “lugar do corpo, lugar de vida” (CERTEAU; GIARD; MAYOL,
2011, p. 205), fosse revelado a todos, especialmente para cada um que vive, habita
e pratica os cotidianos em cena. Nesse espaço privado
[...] os corpos se lavam, se embelezam, se perfumam, têm tempo para viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se abraçam e depois se separam. Aqui o corpo doente encontra refúgio e cuidados, provisoriamente dispensado de suas obrigações de trabalho e de representação no cenário social. Aqui o costume permite passar o tempo “sem fazer nada”, mesmo sabendo que “sempre há alguma coisa a fazer em casa”. Aqui a criança cresce e acumula na memória mil fragmentos de saber e de discurso que, mais tarde, determinarão sua maneira de agir, de sofrer e de desejar (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 205).
Assim que entramos no teatro, pedimos para que tirassem seus sapatos,
subissem ao palco e deitassem, como se ainda estivessem dormindo em suas
casas, em suas camas. Pedimos, inclusive, que tentassem se posicionar na forma
que usualmente dormiam. Presenciamos, assim, corpos diferentes, fazendo
desenhos e contornos únicos sobre o chão. Corpos que se abraçavam; pernas que
se sobrepunham ao corpo do outro. Apoios e contatos que marcavam a diversidade
e a singularidade de um “modo de fazer” cotidiano.
Ao dormir fomos acrescentando o despertar e a este os fazeres que o
sucediam. Cada um, na memória de sua cotidianidade, foi nos apresentando as
50
suas maneiras de fazer e de sua família. Era possível vê-las dormindo; acordando;
espreguiçando; escovando os dentes; tomando o banho; penteando os cabelos;
calçando os sapatos... Maneiras de fazer que iam se diferenciando pelos gestos,
pelo ritmo, pela sequência...
No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo das tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio, numa série de operações executadas maquinalmente cujo encadeamento segue um esboço tradicional dissimulado sob a máscara da evidência primeira, empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmos de opções, de hábitos herdados e de costumes repetidos (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 234).
Estas maneiras de fazer, de cada um, foram repetidas algumas vezes com a
intenção de que as crianças pudessem ir se apropriando, mais conscientemente, do
que por hábito executavam no seu cotidiano. Algumas crianças mantinham a mesma
sequência, outras alternavam os fazeres da encenação anterior. Era possível
observar, ainda, crianças que executavam, na mesma encenação, duas vezes o
mesmo fazer cotidiano.
Dando sequência à encenação, pedimos para que as crianças se
organizassem em grupos para conversarem a respeito do que encenaram e, a partir
daí, criarem coletivamente a cena daquele fragmento do cotidiano: do despertar ao
chegar na escola.
Observar a construção coletiva da cena nos permitia ouvir as narrativas do
cotidiano das crianças e de suas famílias. As crianças relatavam com quem
dormiam; como dormiam; quem as acordava; se tomavam banho; se escovavam os
dentes; se tomavam café-da-manhã; com quem tomavam; quem preparava a
primeira refeição do dia; como iam para a escola...As narrativas do cotidiano iam
sendo tecidas, articuladas e entrecruzadas a fim de que, coletivamente,
construíssem a cena.
A cena final desta trama cotidiana era um híbrido das narrativas do cotidiano
de cada criança que se dispôs a contar um pouco de sua história. Esta construção
coletiva também era fruto de muitas negociações, onde os personagens eram
aceitos, recusados, entrelaçados e hibridizados. Alguns grupos conseguiam colocar
em cena um pouco do cotidiano de cada componente, em outros prevaleciam as
ações cotidianas das crianças mais articuladas, com maior poder de convencimento
sobre o grupo.
51
Era possível perceber na construção da cena final, de cada grupo, uma
mistura de realidade e de desejo, pois, se em alguns relatos havia a ausência de
fazeres e de familiares, nas cenas, as ausências podiam se fazer presentes.
Essas articulações entre a realidade em que se vive e aquela em que gostaria
de se viver, nos remeteu à fala de Augusto Boal14 quando ele nos diz que
Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana (BOAL, 2009).
Pensar e encenar os seus cotidianos, permitiu às crianças criarem
cenicamente alternativas para vivê-los de outras maneiras. As presenças se fizeram
ausências. As ausências transformaram-se em presenças (SANTOS, 2010a).
Figura 6 – Casal em cena
Na cena, o casal dormindo, que em seguida acorda para chamar seus filhos
dando sequência ao banho, ao escovar os dentes, ao tomar café, ao trocar de
14
As citações do dramaturgo Augusto Boal foram extraídas de seu discurso proferido, no dia 27 de março de 2009 - Dia Mundial do Teatro, em Paris, quando homenageado pela UNESCO.
52
roupa... Não necessariamente nessa ordem. A mãe, enquanto isso, prepara o café,
coloca a mesa e chama a todos.
Em outro grupo, é possível perceber a correria da manhã. Todos falando e
correndo pela casa; tomando café às pressas e saindo correndo para não perder o
ônibus. Este, construído em cena, leva as crianças até a escola.
Se ao ouvirmos alguns relatos de crianças que acordam sozinhas e preparam
o seu próprio café da manhã, em cena há sempre alguém que acorda, que acolhe e
que cuida. Ainda que a cena final seja fruto de negociações, as crianças, que vivem
a realidade que não se quer viver, podem optar [ou não] pela cena alheia.
Num encontro seguinte, um novo desafio: criar cenas coletivamente, a partir
das narrativas do grupo a respeito de uma refeição elaborada e partilhada em casa.
Essas cenas nos permitiram conhecer um pouco do cotidiano de cada um, um
pouco do cotidiano desejado por cada um. As cenas nos mostraram as diferentes
configurações familiares e a distribuição de tarefas entre os componentes da casa.
Ainda que um hibridismo de realidade e de fantasia componha a cena, podemos ver
a presença feminina sempre com a responsabilidade pelas tarefas domésticas.
Em cena, a arte de cozinhar, as “artes de nutrir” (CERTEAU, 2011), dizia
respeito, principalmente, ao papel das mulheres. A estas cabia a tarefa de comprar e
preparar as refeições para a família, ainda que trabalhassem fora. À irmã cabia a
tarefa de esquentar a comida no micro-ondas [deixada pronta pela mãe no dia
anterior], para seus irmãos. Aos pais, aos filhos, aos irmãos, ou seja, aos
componentes familiares do sexo masculino cabia a tarefa de aguardar o momento
de nutrir-se.
As meninas, ao assumirem em cena o papel de mães, avós, madrinhas,
reproduziam gestos das mulheres de sua casa cozinhando o feijão, batendo o bolo,
passando o café, varrendo a casa, lavando a louça, cuidando das crianças. Nas
cenas, portanto,
O gesto se decompõe numa sequência ordenada de ações elementares, coordenadas em sequências de duração variável segundo a intensidade do esforço exigido, organizada segundo um modelo aprendido de outra pessoa por imitação (alguém me mostrou como fazer), reconstituída de memória (eu a vi fazer assim), ou estabelecida por ensaios e erros a partir de ações vizinhas (acabei descobrindo como fazer) (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.273).
53
Em uma das cenas foi possível identificar: três mulheres [três meninas], um
homem [um menino], três crianças [dois meninos e uma menina] e um cachorro
[menina]. A avó materna, com perda de memória, varria a casa sem parar e suas
duas filhas tentavam preparar o jantar enquanto as crianças corriam pela sala em
companhia do cachorro. As mães das crianças pediam, aos berros, silêncio, mas a
correria continuava. As mães discutiram entre si, pois uma delas imputou ao
sobrinho a responsabilidade pela bagunça da casa. No meio da confusão, o marido
de uma delas chegou do trabalho e disse: “Estou cansado. Vou para o quarto.
Quando o jantar estiver pronto, me chama.” O óleo de cozinha acabou e deu início a
uma nova confusão: quem daria o dinheiro para comprar na venda vizinha? Uma
das crianças interferiu na discussão e disse: “Madrinha! Se você quer comer, tem
que pagar. Minha mãe já comprou o arroz.” Cardápio do jantar: arroz, feijão, batata,
cenoura e carne.
Numa outra cena: duas mulheres [duas meninas], duas crianças [um menino
e uma menina], um homem [um menino]. Os pais chegam do trabalho e encontram
seus filhos, uma menina e um menino, que estavam sendo cuidados pela babá em
casa. Todos se abraçam e se beijam, e a mãe vai até a cozinha preparar o jantar.
Jantar pronto e todos sentam à mesa. Macarronada com molho de carne moída e
suco de uva. A mãe avisa ao filho mais velho: “Se não comer tudo, está de castigo.
Vai ficar sem comer bala de caramelo”.
Ainda, em cena: uma mulher [uma menina] e três crianças [um menino e duas
meninas]. A mãe acorda; dirige-se para a cozinha; prepara o almoço e sai para o
trabalho, enquanto os filhos ainda dormem. Ao acordarem, as crianças preparam
seus pratos e os aquecem no micro-ondas. Em seguida, sentam a mesa e almoçam,
juntos, enquanto a mãe trabalha.
Nas cenas dos cotidianos, onde tudo se entrecruza – afetos, memórias,
gestos, poderes, saberes, ignorâncias, ausências, presenças, ordem, desordem,
plateia, espectadores, desejos, as crianças praticantes, (re)inventam suas histórias e
iluminam o palco da vida, pois como nos aconselha o dramaturgo
[...] temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. [...] façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos (BOAL, 2009).
54
2.3 “No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos”
“No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos”, de autoria de Ruth
Rocha15, foi um daqueles livros que não podíamos deixar de compartilhar com as
crianças, pelo simples fato de ser de quem é e por abordar o tema alimentação,
nutrição e saúde. Tínhamos dúvidas se as crianças gostariam do livro e se este
aguçaria as curiosidades, as reflexões e os diálogos que desejávamos que
acontecessem. Mais uma vez, as criançaspraticantes refutam os nossos
apriorismos, nos fazendo pensar na potência do diálogo entre os diferentes saberes
e as diferentes linguagens.
Optamos por fazer uma leitura coletiva, projetando as páginas do livro na
parede da sala de vídeo. Combinamos, logo no início, que a leitura seria realizada
por quem se voluntariasse e que gostaríamos que cada página fosse lida por uma
criança diferente. Umas leram com mais desenvoltura, com uma projeção de voz
maior, outras leram mais devagar, mais baixinho, requerendo outro tipo de escuta e
atenção. Foi um exercício de respeito às diferenças para todos nós. A projeção da
imagem, por sua vez, permitiu que as crianças ficassem mais atentas à leitura do
outro. No início, poucas crianças se voluntariaram, mas na medida em que a leitura
prosseguia, foram aparecendo outros leitores, inclusive aqueles que, pelo nosso
costumeiro apriorismo, não esperávamos que fossem se candidatar.
Ao longo da leitura, era muito comum ouvir comentários sobre a história,
perguntas, risadas e, sempre que possível, parávamos para conversar sobre o
assunto. A primeira parada foi logo no início:
Com o Batata aconteceu uma coisa engraçada. Pelo apelido dele você pode imaginar como ele era gorducho. [...] Carlinhos já ganhou um montão de apelidos: Bola, Bolinha, Bolão, Bolacha, Gordo e, como eu já disse, Batata (ROCHA, 2000, p. 6 e 11).
Batata, apelido do gorducho Carlinhos, foi motivo de conversa assim que
uma criança se pronunciou dizendo: “Isso é bullying”. E daí como um fio puxa o
outro, começaram a falar de seus apelidos – dos que gostavam e dos que odiavam;
do bullying que já haviam sofrido e daqueles que já fizeram.
15
Ruth Rocha, escritora brasileira premiada e membro da Academia Paulista de Letras, escreveu cerca de 45 livros infantis. Sua obra “Marcelo, Marmelo e Martelo” vendeu mais de um milhão de exemplares e “Escrever e Criar” recebeu, em 2002, o prêmio Jabuti.
55
Uma criança, que tinha problemas de relacionamento com a turma e que,
muitas vezes, se mostrava arredia em se integrar logo no início, foi se chegando,
aos poucos, quando começamos a leitura. No momento da história em que surgiram
outros apelidos, além do Batata, a menina se manifestou falando de amigos que já
sofreram bullying e a turma, trazendo para si a responsabilidade do ato, apontou
palavras com as quais a nomeavam cotidianamente: bruxa, fedida, feia... Iniciamos,
por conta disso, uma conversa mais pontual na tentativa de fazer com que todos
percebessem o quanto as palavras são capazes de ferir, magoar, diminuir,
desqualificar, alguém que merece o nosso respeito e o nosso cuidado, ainda que
pensem e façam coisas que não nos agradam.
Um menino comentou que, porque usava óculos, recebeu o apelido de ET
[extraterrestre] dos amigos de sua rua e que não gostava nem um pouco disso.
Outra menina disse que a chamavam de magrela, mas que ela adorava,
diferentemente, de uma amiga, sentada ao seu lado, que disse odiar. Uma menina
comentou que seu pai a chamava de “cor delícia” e que ela gostava muito. E no
meio da conversa, surgiram apelidos dos amigos da rua, dos familiares, de
conhecidos de outros lugares.
Continuamos a leitura e, de repente, mais um alvoroço: a geladeira do Batata.
Ao se depararem com a imagem da geladeira, as crianças falaram: “Por isso que ele
está gordo, na geladeira só tem besteira: catchup, bolo, refrigerante... Ele não come
frutas nem legumes”. As crianças se dirigiam até a projeção da imagem para tentar
decifrar quais eram aqueles potes, latas, garrafas, que ocupavam toda a geladeira
do Batata.
No livro a autora deixa claro, pelo próprio título, que Carlinhos – o Batata,
queria tudo que ele via anunciado pela televisão. A televisão, literalmente, mandava
no Carlinhos. Ele queria
Queijinho que vale por um bifinho, achocolatado da Miúcha, macarrão da Patrícia, milquecheique do Bubu, pipoca do Gatinho, biscoito do Xuxu, Coca-bola e tudo! Acho que ele nem sabia se era gostoso ou se era uma porcaria. Era só mania de ir atrás do que a televisão dizia (ROCHA, 2000, p.8).
Surge, assim, mais uma curiosidade: quem também tinha mania de ir atrás do
que a televisão dizia? Umas diziam que sim, outras diziam que não. Mas na medida
56
em que a conversa prosseguia sempre falavam em um produto ou outro que a
vontade de experimentar aparecia junto com o que a televisão mostrava.
É difícil ver a propaganda do McDonald’s e não ter vontade de comer aquele sanduíche”, disse uma menina. E o Girafas? E o Bob’s? E o Habib’s? E a Coca-cola? Lá em casa quando a gente vê aquela propaganda da Coca-cola, dá vontade de ir na venda comprar uma.
Vão surgindo, nas falas das crianças, as grandes marcas, as grandes redes
de fast-food, as promoções, os brindes, as caixinhas... E assim aproveitamos para
perguntar: Quem vai a essas lanchonetes? Todos, com pouquíssimas exceções,
levantaram as mãos. Alguns diziam que iam todos os dias, o que nos fez suspeitar
da veracidade do comentário, não somente por conta da rotina, mas também pelo
valor dos produtos das redes. Comer, todos os dias, nessas redes pode significar,
para muitos, um status social. Isso nos remeteu a outro encontro que tivemos,
quando uma criança comentou que sua colega de sala levava frutas para a escola,
mas comia escondida no banheiro. Ao questionar o porquê de tal atitude, ela
responde: “Vergonha. Todo mundo traz biscoito e ela traz fruta”. Ainda que a escola
ofereça merenda, levar o seu próprio lanche, preferencialmente, os processados
[embalados e coloridos], pode significar para algumas crianças e suas famílias uma
distinção social, tal como nos revela Bourdieu ao descrever as condutas de cultivo
da diferença nas diversas esferas da vida em sociedade, desde a linguagem,
inclusive a do corpo, à alimentação.
[...] o gosto é o princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado (BOURDIEU, 2008, p. 56)
Aos poucos todas foram percebendo que, mesmo sem termos consciência,
também somos influenciados em nossas escolhas de comer isto ou aquilo pelas
propagandas da televisão. Um menino levantou, também, a seguinte questão: “A
propaganda não faz a gente só querer comprar comida, ir ao McDonald’s. Ela faz a
gente querer comprar brinquedos e roupas também”. Surgem, assim, novas falas
sobre as propagandas nos intervalos dos desenhos animados e dos programas
infantis. Muitos foram os anúncios que, nós professores, não fomos capazes de
reconhecer, da mesma forma em que elas não reconheceram, no texto do livro, a
57
expressão “queijinho que vale por um bifinho” – que faz menção a uma propaganda
bem popular de uma época em que eles nem eram nascidos.
No decorrer da história, Batata vai engordando, engordando...
D. Mariquinhas, que é a mãe dele, vivia querendo que ele comesse verduras, legumes e frutas. Mas se tinha na mesa tomate e linguiça, o que é que você acha que ele comia? (ROCHA, 2000, p. 10).
Logo, uma criança se pronuncia: “Ih! Lá em casa é a mesma coisa. Minha
mãe não come fruta, mas quer que eu coma. É engraçado, né?”. Em seguida, um
menino: “Meu pai quer que eu tome suco no jantar, mas ele toma refrigerante”.
Muitas são as incoerências presentes nas famílias e nas escolas16, como, por
exemplo, as escolas receberem, como é comum, o “Ronald Mcdonald e sua turma”
em eventos especiais. Ainda fazemos uso do lema “faça o que eu mando e não o
que eu faço”. Como diz, Paulo Freire, “as palavras a que falta a corporeidade do
exemplo pouco ou quase nada valem” (FREIRE, 1996). Incoerências, que, ao serem
percebidas pelas crianças, abrem brechas para que elas, silenciosa e
astuciosamente, comam à sua maneira, ainda que saibamos que muitas dessas
“maneiras de comer” são fruto do investimento publicitário das grandes indústrias de
alimentos.
Carlinhos, cansado de ser chamado de Batata e de tantos outros apelidos,
resolveu fazer regime, sem falar com ninguém. Assim como ele comia tudo o que a televisão mostrava, resolveu também fazer o regime que a televisão mandava” (ROCHA, 2000, p. 12).
Após a leitura, a mesma menina que acabara de ler falou: “Minha mãe já fez
regime. Dieta, né? Dieta da sopa. Só tomava sopa”. Muitas crianças começaram a
falar que as mães, as avós, as tias, já tinham feito dieta para emagrecer. “Até a
professora já tinha feito”. - uma menina comentou. Outra menina relatou que, como
estava com o colesterol alto, também teve que fazer dieta. Ou seja, as palavras dieta
e regime já faziam parte do repertório das crianças e de suas práticas cotidianas,
bem como, da de seus familiares.
Carlinhos viu um anúncio de uma tal Gororoba Dois Mil, o melhor regime do
Brasil, importado dos Estados Unidos, e
16
A escola das crianças costumava receber o “Ronald Mcdonald e sua turma” em eventos especiais.
58
[...] não teve dúvidas: encomendou pelo telefone. Por que será que tem tanta porcaria que a gente pode encomendar por telefone? (ROCHA, 2000).
Bastava a leitura de uma nova página, para as crianças trazerem fatos das
suas casas, dos seus cotidianos e de suas redes de saberes e fazeres: “Eu já
encomendei porcaria pelo telefone! Comprei pizza. Eu e meu irmão. Meus pais nem
viram” – comentou um menino. “Eu já pedi comida japonesa lá da rua de cima!” –
disse uma menina. “A minha mãe já comprou uma panela pelo telefone” – falou
outro menino. Cada um, aos poucos, foi lembrando de uma coisa ou outra que já
havia comprado pelo telefone. Alguns estimulados pela televisão, outros por
saberem que na geladeira estavam os imãs da pizzaria e do japonês da rua de cima.
Tudo propaganda.
O Batata, ou melhor, o Carlinhos
passou a tomar a Gororoba duas vezes por dia. Tinha sabor chocolate, sabor morango, sabor baunilha e sei lá mais o quê (ROCHA, 2000, p. 16).
E as crianças, mais uma vez, não deixaram a informação escapar: “Ah! É um
pó que mistura com água. Minha mãe já comprou na farmácia. É ruim pra caraca. E
ela nem emagreceu”.
Continuando a história, Carlinhos, com o tempo, passou a ficar cansado, com
dores de cabeça, de barriga e enjoo. Seus pais descobriram o tal regime e o levaram
ao médico. O médico ficou furioso e perguntou:
Como é que as autoridades permitem essa propaganda mentirosa?
Ao perguntarmos às crianças se elas conheciam propagandas mentirosas,
foram unânimes em dizer que sim. Algumas fizeram questão de explicar: “Sabe
aquela panela que minha mãe comprou por telefone? Ela prometia fazer comida
sem gordura, mas tem gordura do mesmo jeito”. Um menino comentou: “É igual
àquele produto que diz que vai tirar a mancha, mas ela não sai”. “Aquele sanduíche
na televisão é grandão, mas quando a gente compra é bem diferente”. As crianças
foram trazendo produtos, cujas propagandas são veiculadas pela televisão, que ao
serem adquiridos pela família não faziam o que prometiam ou não eram,
exatamente, o que aparentavam ser.
59
Em seguida uma criança levanta e diz:
O Carlinhos foi enganado pela Gororoba Dois Mil porque na embalagem tinha uma porção de meninas de biquíni que tinham emagrecido 200 quilos. Eles [a criança se refere à televisão] usam o computador pra mostrar que as pessoas emagreceram. É tudo enganação.
No livro, a autora confere ao médico a responsabilidade pela dieta de
Carlinhos:
O médico passou um regime pro Carlinhos de bife, frango, peixe, verduras, legumes [...] (ROCHA, 2000, p.20).
Nesse momento, sentimos a necessidade de perguntar às crianças se elas
conheciam outro profissional que, dentre outras funções, era, de fato, o responsável
por elaborar dietas. Muitos não sabiam, mas aquela menina que já havia comentado
que tinha feito uma dieta por conta do colesterol elevado, disse que foi a uma
nutricionista por orientação médica. Essa experiência de uma das crianças nos
permitiu explicar as atividades e a importância da/do nutricionista que, por descuido,
não havia aparecido na história.
O médico prescreveu uma dieta para toda a família, argumentando:
Como é que vocês querem que criança coma alface enquanto os outros comem feijoada? Que coma frutas enquanto os outros comem pudim? [...] é bom que todo mundo entre no regime. E nada mais de seguir conselho dos anúncios da televisão (ROCHA, 2000, p. 22).
Uma criança retoma o início da história e anuncia: “Vão ter que mudar toda
aquela geladeira!”
No final da história
É bom ver televisão, mas é preciso lembrar: todo mundo tem cabeça que serve para pensar! (ROCHA, 2000).
Aplausos das crianças. Elas adoraram o livro!
Ruth Rocha, conhecedora da gente miúda, parece também conhecer os
escritos de Paulo Freire, pois, através de sua linguagem literária, ela pratica algumas
falas do educador. Corporifica, de certa maneira, as suas palavras.
60
A alfabetização em televisão não é lutar contra a televisão, uma luta sem sentido, mas como estimular o desenvolvimento da curiosidade e do pensar críticos. Como desocultar verdades escondidas, como desmitificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente que facilmente caímos. Como enfrentar o extraordinário poder da mídia, da linguagem da televisão, de sua “sintaxe” que reduz a um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há já está feito (FREIRE, 2014a, p. 126).
Aplausos para as criançaspraticantes que (re)inventam, a cada dia, a oficina
com as suas “maneiras de viver”. Motivados por suas inquietudes e curiosidades,
propusemos uma oficina da propaganda. Conhecedoras de uma variedade delas,
muito mais do que podíamos imaginar, as crianças foram trazendo falas, músicas,
personagens, personalidades, enfim, todos os detalhes.
Projetamos, assim, algumas propagandas e pedimos para que as crianças
fossem observando o que chamava sua atenção. As crianças apontavam as
músicas, os lugares, as pessoas bonitas e alegres, a bebida refrescante, o
sanduíche saboroso, os brinquedos [brindes]. Muitas foram as minúcias percebidas
por elas. Em algumas propagandas, chegavam a cantar a música em coro e pediam
para repetir.
Nesse caminho, pedimos para que elas deixassem de ser espectadoras e se
tornassem criadoras dos produtos e de suas propagandas, tentando pensar em
todos os detalhes que fariam da criança uma provável consumidora.
Em grupos, criaram os produtos, construíram as embalagens e roteirizaram
uma propaganda que foi encenada, gravada e apresentada à turma. Tudo muito
simples, em função, obviamente, dos nossos limites técnicos e estruturais. Na
verdade, não estávamos em busca do produto final, mas das maneiras processuais
de fazerpensar coletivamente sobre a linguagem e as estratégias utilizadas pelas
indústrias de alimentos. Os diálogos, entre os diferentes saberes dos componentes
do grupo, iam permitindo ao outro, com suas ignorâncias parciais, (re)conhecer
detalhes, estratégias, que ainda não tinham conseguido perceber.
As embalagens dos produtos criados tinham sempre desenhos coloridos e os
nomes, ainda que diferentes dos produtos do mercado, apresentavam sufixos bem
semelhantes. Araritos, Frititos, Pinguinos, Lobits, Docitos são alguns exemplos de
biscoitos criados pelas crianças. Nas propagandas, os atores falavam sobre o sabor
[ou se deliciavam experimentando]; a textura [a maioria crocante] e as propriedades
nutricionais [ricos em vitaminas]. Nas cenas, sempre um fundo musical, pessoas
felizes, sorrindo, brincando. Em algumas propagandas, menção aos brindes e
61
promoções especiais. No dia da gravação, por iniciativa própria, as crianças
trouxeram de casa figurinos de festas como vestidos, blusas e sapatos.
Figura 7 – Produtos inventados
As criançaspraticantes, com suas maneiras de fazer, inventaram pequenas
cenas de comerciais que retratavam diferentes estratégias utilizadas pelo marketing
publicitário para atrair o público infantil. É possível que, ao se colocarem no lugar do
poder, articulando saberes que visam o domínio do outro, as crianças possam captar
e utilizar as brechas e as falhas para dos poderes, astuciosamente, escaparem. São
as táticas dos praticantes ordinários. A arte do fraco, como nos ensinou Certeau
(2012).
2.4 Sete saquinhos de açúcar: você sabia disto?
Esta foi a descoberta mais impactante proporcionada às crianças pelo
documentário “Muito além do peso”17. “Como assim? Sete saquinhos de açúcar
17
O documentário “Muito Além do Peso” (84 min, censura livre), lançado em 2012, discute a alimentação e a obesidade infantil, envolvendo a indústria, a publicidade, o governo, a família e toda a sociedade.
62
dentro de uma latinha de coca-cola?” – falaram em voz alta algumas crianças
durante a projeção do documentário.
Se estávamos em dúvida se o documentário estaria um tom acima do que as
crianças poderiam capturar, mais uma vez nos enganamos quanto à necessidade de
linearidade para se aprenderensinar. Elas, através de suas falas, dos seus
burburinhos, dos seus olhares, nos deixavam indícios (GINZBURG, 1989) do quanto
estavam atentas e capturando, cada uma a sua maneira, as informações
apresentadas em diálogo [entrevistas], gráficos, imagens, propagandas.
Antes de iniciarmos a projeção, distribuímos papel, lápis e prancheta, para
que cada uma, individualmente ou em dupla, fosse anotando aquilo que tinha
achado mais interessante. Combinamos, ainda, que após o término todos [se assim
desejassem] teriam a oportunidade de ler ou falar com a turma sobre as suas
impressões frente ao documentário: o que gostou; o que não gostou; o que achou
curioso; o que já sabia; o que de novo descobriu...
Durante o documentário, fizemos algumas pausas a pedido das crianças para
traduzir algumas falas em inglês [cujas legendas passavam rápido demais]; para
deixar alguns gráficos [repletos de números e figuras], por mais tempo; para
observarem mais detalhadamente e anotarem em seus papéis ou para que
voltássemos um pouco para ouvirem/verem melhor o que tinham perdido. As
crianças estavam, de fato, interessadíssimas. Eram muitas anotações e muitos
burburinhos que iam, cada vez mais, aumentando a nossa curiosidade a respeito do
que elas estavam sentindopensando sobre o documentário.
Em função do tempo da oficina, não conseguimos chegar até o fim do
documentário. Comunicamos às crianças que iríamos ter que interromper a projeção
e que guardaríamos os seus escritos para o próximo encontro. Foram muitas
reclamações e pedidos para irmos até o fim, mas combinamos que continuaríamos
na próxima aula. Algumas crianças perguntaram se poderiam ver em casa - pelo
celular, tablet ou computador, e demos a elas o link para ser acessado.
No encontro seguinte, chegamos com o que chamamos de plano B, ou seja,
com outras possibilidades para além de assistir o documentário, caso não fosse
mais o interesse da turma. Nos enganamos, mais uma vez. Alguns conseguiram ver
em casa com os pais, irmãos ou primos, mas, a grande maioria, terminaria de ver
63
naquele dia. E os que já tinham visto, estavam dispostos a ver novamente. Um
menino, inclusive, comentou que ver no tablet não era tão legal quanto ver no telão
[na parede da sala].
Devolvemos as pranchetas com os papéis e lápis e demos continuidade ao
documentário do ponto em que havíamos parado. Ao término da projeção, as
crianças puderam falar/ler para a turma sobre aquilo que ficou mais evidente, que
chamou mais a atenção, conforme havíamos combinado no encontro anterior.
Reproduziremos alguns recortes das falas com o intuito de tornar visível a
diversidade de informações que as criançaspraticantes capturaram e compartilharam
ao assistirem “Muito além do peso”.
Figura 8 – (Com)partilhando saberes
Ficou evidente que o consumo excessivo de açúcar por crianças, bem como a
presença do mesmo em alimentos comumente consumidos por elas, foi a
descoberta mais impactante que o documentário proporcionou. As crianças, para
além de reproduzirem o que ouviram/leram, ressignificaram as informações e
estabeleceram conexões com os seus familiares e com a vida cotidiana.
64
O médico explicou que uma coca tem sete sacos de açúcar.
Eles colocaram os desenhos nas embalagens e os brinquedos pra
motivarem as crianças a consumirem, não deixando a gente perceber a
quantidade de açúcar.
Os brinquedos disfarçam o consumo excessivo de açúcar, sabia?
Dentro de uma lata de coca tem sete saquinhos de açúcar. Vocês sabiam?
O brasileiro consome cerca de 51kg de açúcar por ano.
Na tabela nutricional do restaurante fast food não consta a palavra açúcar.
Ela é substituída pela palavra carboidrato.
Um todinho tem seis sacos de açúcar.
As crianças gostam muito de coca-cola porque tem muito açúcar.
As crianças bebem mais refrigerante do que água.
Tinha uma menina que tinha açúcar no sangue igual ao meu avô.
Uma menina de 11 anos bebe coca-cola todos os dias.
Nesse recorte de escritosfalas não temos a pretensão de fazer análises e,
muito menos, emitir juízo de valores. Temos como objetivo tornar visível o que foi
capturado e compartilhado pelas criançaspraticantes ao assistirem “Muito além do
peso”. É possível, contudo, perceber, em alguns escritosfalas a seguir, a ideia de
culpa e de responsabilidade pelas escolhas e suas consequências. As crianças e
seus responsáveis tornam-se, no discurso do autocuidado, das tecnologias de si
mesmo (FOUCAULT, 2010), “responsáveis pela gestão de riscos socialmente
gerados” (CASTIEL; DIAZ, 2007).
As crianças se interessam pelas comidas que tem brinquedo. Muitas
crianças se jogam para comer besteiras como biscoitos, chocolates... Se
todas as crianças continuarem comendo assim vão ficar com diabete.
As crianças compram biscoito porque tem brinquedo dentro.
Muitas crianças gostam de comer biscoito por causa dos personagens.
Crianças ficam obesas porque comem muita besteira.
A pessoa vai comendo e depois vão botando apelidos horrorosos.
A maioria das crianças obesas morre de doenças do coração.
O coração de uma criança de 4 anos tem problema.
O menino tem falta de ar na hora de dormir.
Falava de um menino que trocava lápis e borracha por comida.
Tem criança que não consegue correr por causa da gordura.
As crianças passam 3 horas na escola e 5 horas de frente pra televisão.
As crianças brasileiras ficam muito tempo na televisão.
65
Crianças na frente da TV se viciam nos comerciais de chocolate,
hamburger, coca-cola... eu acho que o problema é a gordura e o açúcar.
Algumas crianças, em seus escritosfalas, também mostraram o desejo de
compartilhar seus saberes e suas descobertas com seus familiares deixando claro
que
Seria muito bom que os pais pensassem sobre isso. Nossos pais não sabem disso.
Estimuladas pelo vídeo, no encontro seguinte, algumas crianças, em
momentos distintos, nos abordaram com os seguintes comentários:
Hoje eu vi o pacote de fandangos vazio do meu irmão e como eu
sabia que hoje tinha a nossa aula, eu olhei lá e vi que tinha um ácido.
Ácido... Ah! Esqueci o nome do ácido.
Professora! O miojo e os sucos de caixinha é pura ciência, pura
química.
Esse suco tem corante.
Eu li na latinha da coca que ela tem aromatizante.
Procurei a quantidade de açúcar no Todinho e não achei.
Professor! Você toma muito café. Você sabia que café tem muita
cafeína? Vou olhar no café lá de casa a quantidade.
Uma semana depois, as crianças ainda estavam “contaminadas” pelo que
viram e ouviram no documentário, nos trazendo as suas curiosidades que, aos
poucos, iam se criticizando (FREIRE, 1996). Curiosidades que as impulsionavam, e
a nós também, para novas descobertas, novos saberes.
Instigados pela curiosidade das crianças, propusemos que, no encontro
seguinte, nos tornássemos detetives de alimentos. As crianças se dividiram em
pequenos grupos, com o intuito de investigarem todas as informações presentes nas
embalagens. Trouxemos para “análise” biscoitos doces e salgados, sucos em
caixinha, refrigerante, mate, achocolatados, ou seja, os alimentos que com
frequência víamos em suas mãos na hora do recreio.
Alimento sobre a mesa, folha e papel na mão e olhares bem atentos. As
crianças anotaram muitas informações: nome; ingrediente; composição nutricional;
66
validade; número do lote; tipo de embalagem [cor, desenhos, sons que produz]...
Foram muito detalhistas em anotar tudo o que viam – como devem ser os detetives,
mas tinham dúvidas sobre o que, de fato, queriam dizer letras e palavras como kcal,
kj, carboidratos, gorduras saturadas e muitos outros nomes que complicavam ainda
mais o trabalho.
Figura 9 – Em busca dos indícios
Anotações feitas, hora de compartilhar. Cada grupo teve um tempo para
apresentar às outras crianças o que puderam descobrir com a sua investigação.
Muitos números, muitas palavras, muitas dúvidas e muitas curiosidades. Ao
compartilhar as informações do produto de seu grupo, uma menina comenta: “As
pessoas que fazem essas embalagens escrevem os números bem pequenos pra
que a gente não veja as besteiras que ele tem”.
67
Figura 10 – Decifrando
Instigadas pelo documentário, as crianças estavam interessadas em saber o
quanto de açúcar, em saquinhos, tinha nos biscoitos e nas bebidas, uma vez que no
rótulo, elas encontravam apenas as gramaturas e os percentuais. As crianças
queriam ver/pegar/sentir a quantidade de açúcar presente naqueles alimentos. E
como de um fio puxamos outro, capturamos os indícios (GINZBURG,1989) deixados
pelas criançaspraticantes e pensamos numa atividade que permitisse a dosagem de
açúcar de alguns alimentos. Reunimos, assim, para o encontro seguinte, alguns
alimentos processados que elas usualmente consumiam [biscoito recheado, suco de
caixinha, achocolatado, suco a base de soja, iogurte e guaraná natural]; açúcar
branco e copinhos descartáveis de café.
68
Figura 11 – Você sabe o quanto de açúcar tem aqui?
Agora, seriam cientistas, em suas bancadas de laboratório [mesas da sala de
artes visuais], que tentariam descobrir a quantidade de açúcar dentro de cada
embalagem. Caberiam aos cientistas do grupo definir a quantidade de açúcar do
produto, colocando-a dentro dos copinhos de café. A fim de definirem a quantidade
de açúcar nos alimentos, as crianças leram os rótulos; conversaram; rememoraram
o paladar [com a intenção de lembrar a sua doçura] e fizeram comparações com a
“conhecida” coca-cola, ou seja, recorreram às suas redes de saberes, fazeres e
sentidos em busca da exatidão da informação.
Ainda impactadas pela descoberta dos sete saquinhos de açúcar dentro de
uma latinha de coca-cola, as crianças, ao recorrerem às suas memórias gustativas,
superestimaram a quantidade de açúcar presente nos alimentos analisados. Uma
caixinha de achocolatado, segundo as crianças cientistas, seria, praticamente,
açúcar. “Professora! Se na coca-cola tem sete saquinhos, imagina no (...)!
69
2.5 Lance a lance: os usos astuciosos das criançaspraticantes
Acolhendo as ideias de Certeau (2012), acreditamos ser fundamental
observar o que as crianças fazem dos produtos [filmes, livros, jogos, atividades,
currículos...] impostos no seu dia a dia. Perceber suas táticas, subversões e linhas
de fuga, especialmente frente às regras impostas pelos jogos com fins educativos,
nos faz pensar nas inconsistências entre aquilo que os seus idealizadores articulam
e aquilo que é aceito (CERTEAU, 2012).
Essas inconsistências foram observadas na experimentação de três jogos
educativos que adquirimos com uma editora18 especializada em produtos
direcionados aos nutricionistas. “De olho nos alimentos”, “Beto e Bia: a corrida da
boa alimentação e dos hábitos saudáveis” e “Come-Bem”, cada um com suas
particularidades, deixaram brechas para que as crianças pudessem colocar em
prática suas artes de fazer (CERTEAU, 2012).
Precisamos esclarecer que não tínhamos como objetivo descrever os jogos e
suas regras em detalhes, pois o que nos interessava, de fato, era perceber as
burlas, as subversões, as táticas utilizadas pelas criançaspraticantes para jogarem à
sua maneira.
Mergulhamos, portanto, com todos os sentidos (ALVES, 2001) à caça das
“artes de fazer” das criançaspraticantes (CERTEAU, 2012), tentando capturar, para
tornar visível (SANTOS, 2010a), o que de novo elas inseriam, reinventavam, criavam
sobre o produto que lhes fora proposto [imposto].
Ao longo de dois encontros, as crianças se dividiram em grupos para
experimentarem os três jogos que havíamos comprado, especialmente, para a
oficina. Cada jogo apresentava uma dinâmica diferente, o que gerava interesses e
tempos distintos. Alguns grupos terminavam e voltavam a jogar, enquanto outros
ainda nem tinham lido todas as regras. Outros, por já terem jogado mais de três
vezes, deslocavam-se até o grupo ao lado para “bisbilhotar” o jogo do outro. E assim
íamos, juntos, caminhando, experimentando, aprendendoensinando e nos
surpreendendo.
18
Editora Metha comercializa livros, jogos e equipamentos destinados aos nutricionistas.
70
Era interessante observar como eles negociavam os agrupamentos e as
funções de cada um no jogo: quem leria as regras; quem seria o menino “X” ou a
menina “Y”; quem seria o responsável pelo dinheiro; quem começaria o jogo; quem
jogaria com quem por ter excedido o número de participantes. Enfim, inúmeras
possibilidades de negociações que nem sempre chegavam a um consenso.
Crianças que se recusavam a assumir determinadas funções, também fizeram parte
do cenário de um “jogo” que aconteceu no tabuleiro e fora dele.
“De olho nos alimentos”, um jogo destinado a crianças maiores de seis anos
de idade, tem a intenção de apresentar os diferentes alimentos. Ele é composto por
um tabuleiro e por dezenas de mini círculos, com imagens de alimentos dos grupos
dos cereais e derivados; das frutas; dos legumes, verduras e tubérculos; das
leguminosas; do leite e derivados; dos doces; dos ovos, peixes, carne e derivados,
outros alimentos e preparações19. Cada jogador recebe quantidades iguais de mini
círculos, que deverão ser alocados sobre a mesma imagem do tabuleiro. Ganha o
jogo quem encontrar os alimentos espalhados antes dos seus adversários.
Figura 12 – O que é isto?
À primeira vista, parece a todos, muito simples. Basta achar a figura igual e
pronto. E é isso mesmo. Interessante, era ouvi-las perguntando [depois de já terem
19
Os grupos citados mantêm a ordem e a denominação referida pelo Manual de Instrução do jogo.
71
jogado duas, três vezes, dada a agilidade do jogo], umas às outras, que alimento era
aquele. Muitas não sabiam responder. E para sermos sinceros, nós também não.
Mangas que pareciam pêssegos [ou pêssegos que pareciam mangas]; alfaces que
eram repolhos; laranjas que lembravam tangerinas... Até chegarmos a um consenso
era uma diversão. Era possível, ainda, ouvir sons ou vê-las fazendo caretas quando
um alimento não era do seu agrado, tendo sido experimentado ou não.
Se o jogo, em si, era bem simples, as dúvidas, geradas por algumas imagens
que se distanciavam da realidade, abriram brechas para que as criançaspraticantes
criassem outro modo de usá-lo. Uma “maneira de utilizar” (CERTEAU, 2012) que
permitiu a elas conversarem sobre os alimentos, reconhecendo as suas preferências
e aversões, bem como a de seus colegas, as quais iam se diferenciando em função
de suas redes de saberes, de práticas, de valores, crenças, afetos e subjetividades.
“Beto e Bia”, um jogo desenvolvido por nutricionistas, tem o intuito de
incentivar a boa alimentação e os hábitos saudáveis em crianças acima dos seis
anos de idade. É composto por um tabuleiro, um dado e quatro pinos de “Bia” e
“Beto”, com os quais os participantes devem se deslocar da saída até a chegada, ou
seja, da casa 1 até a 90. No meio da corrida, os participantes podem cair em vinte e
seis casas [casas amarelas] que contêm dicas de uma boa alimentação e de um
estilo de vida saudável. As dicas contornadas em azul parabenizam o jogador e
pedem para que ele avance para as casas à frente. As dicas contornadas em
vermelho criticam a atitude do jogador e o fazem andar para trás. Lê as dicas quem
para, ao acaso, em uma dessas casas, caso contrário o jogador chega ao fim sem
ter lido dica alguma. Na chegada, contudo, lê-se: “Parabéns! Você é o vencedor!
Pratique tudo o que aprendeu! Pratique uma vida saudável!”
72
Figua 13 – Burlando o que não nos representa
No início do jogo, muitas crianças começaram a ler as dicas quando paravam
nas casas amarelas, mas, na medida em que o jogo prosseguia, passaram a burlar
as regras, fazendo uso de táticas desviacionistas (CERTEAU, 2012). O jogo, como o
próprio nome propõe, é uma corrida. Entre a saída e a chegada, a regra, ainda que
não descrita no jogo, não deixa dúvidas: ao parar nas casas leiam as dicas e façam
o que se pede. Algumas dicas:
Você evita comer doces porque em excesso eles fazem mal à saúde e ainda podem deixá-lo (a) gordinho (a). Muito bem! Ande 4 casas ou Você adora comer lanches de ‘cachorro quente’ com refrigerante. Cuidado, você pode ficar obeso e ainda doente. Infelizmente terá que voltar para casa 35.
Todos sabiam, a princípio, o que deveriam fazer, mas as criançaspraticantes,
astuciosamente, liam apenas a frase final da dica nutricional, que indicava o número
da casa para onde deveriam se deslocar [andar ou voltar determinado número de
casas], ignorando toda a informação formulada com a intenção de ensinar sobre
alimentação e saúde. Elas burlaram a regra do jogo a fim de que pudessem atingir a
linha de chegada mais rapidamente. Deslocaram-se de um consumo supostamente
passivo para uma criação singular, nascida da prática, do desvio no uso dos
73
produtos impostos (OLIVEIRA, 2001) que colocam em dúvida a pretendida função
primeira do produto.
Foi possível perceber que há “maneiras de fazer” (caminhar, ler, produzir,
falar, cozinhar, comer, jogar...), “maneiras de utilizar” que se tecem em redes de
ações concretas, que não são mera repetição de uma ordem previamente
estabelecida do alto e de longe. As criançaspraticantes, ao inserirem criatividade,
modificam as regras e o poder de dominação a que estariam, supostamente,
submetidas.
“Come-bem”, também concebido por nutricionistas, tinha o objetivo de ensinar
às crianças o valor nutricional dos alimentos e a importância de uma boa
alimentação para a saúde20. Uma releitura, digamos assim, do conhecido “Banco
Imobiliário”. “Come-bem”, pelo colorido de sua caixa, foi aquele que despertou mais
euforia nas turmas quando apresentamos os jogos no primeiro encontro. Assim que
ele foi colocado sobre a mesa do grupo, as crianças abriram a caixa e começaram a
mexer em todos os componentes do jogo: um tabuleiro; quatro pirâmides
alimentares e bolinhas avulsas vermelhas para representar os alimentos; pinos
coloridos para a movimentação; um dado; dinheiros de papel para comprar
alimentos; fichas de dicas da nutricionista e fichas de perguntas e respostas. No
verso da caixa, as regras. Diante de tanto alvoroço, as regras ficaram esquecidas e
os participantes já se organizavam para começar, quando uma menina mostra a
todos o verso da caixa com as regras escritas. Nisso um menino diz: “É muita coisa
pra ler. Dá pra jogar sem ler as regras!”. Alguns concordaram, outros não, mas foram
tentando seguir adiante. Contudo, as dúvidas foram surgindo e resolveram recorrer
às regras. Escolheram uma criança que, segundo elas, lia melhor e deram início à
leitura. Ficamos ali, próximos, para tirar dúvidas se as crianças precisassem. Liam,
conversavam, brigavam, reliam e, assim, foram tentando entender as regras, bem
mais complexas que as dos dois outros jogos mencionados.
Negociar as funções foi a etapa de maior conflito: quem iria ficar com a
pirâmide; quem mexeria com o dinheiro [o banco]; quem leria as dicas da
nutricionista; quem faria as perguntas; quem jogaria os dados. O conflito permitiu
que se inventassem outras funções: ficar com a caixa na mão para ler as regras
20
O objetivo encontra-se escrito no fundo da caixa do referido jogo.
74
[para qualquer dúvida que aparecesse]; ser o “banco” [a mais concorrida] e formar
algumas duplas passaram a fazer parte do jogo.
Depois de tudo, aparentemente, combinado, e de peças e dinheiros
distribuídos, as crianças deram início ao “Come-bem”. Ao longo do jogo, os
participantes podiam parar nas “casas de alimentos”, onde eram descritas
informações nutricionais e o preço de venda do referido alimento.
Berinjela: Hortaliça. Boa fonte de sais minerais. R$ 3,00 ou Bolo e pão: Alimento rico em carboidrato. Fornece energia. R$ 2,00 ou Alface: rica em fibras, vitamina A, C e do complexo B. R$ 2,00 ou Batata frita: Tem alto valor calórico podendo levar à obesidade. R$ 3,50.
As crianças, em sua maioria, ao pararem nessas casas passaram a
identificar, apenas, qual era o alimento e o preço referente, não mostrando mais
interesse em ler a informação nutricional. Quando liam, contudo, era uma leitura
rápida, sem nenhum questionamento e sem pausas para refletir sobre o conteúdo.
Ficamos pensando, no momento do jogo, se todos sabiam o que eram sais minerais,
calorias, carboidratos, fibras, complexo B e todos as outras palavras que estavam
presentes nos textos. E se não sabiam, por que não perguntaram? Será que não
leram? Leram sem prestar atenção? Leram, mas não entenderam? E se não
entenderam, fez alguma diferença para o jogo que elas estavam jogando com suas
“artes de fazer”? No percurso dos pinos, ao jogar os dados, as crianças também
podiam parar na “casa da nutricionista”. Ao cair nesta casa, o jogador deveria pegar
a carta da nutricionista, ler em voz alta e fazer o que se pedia. A nutricionista poderia
dar os “parabéns” ou chamar a “atenção”.
Parabéns! Você conseguiu controlar seu colesterol sanguíneo e não gastará mais com remédios. Receba do banco a quantia de R$ 7,00 ou Atenção. Todos os jogadores estão gordinhos. E você, como um conhecedor de nutrição, retirará de suas pirâmides a batata e devolverá ao banco.
É possível perceber que, na leitura das cartas da nutricionista, assim como na
leitura sobre a informação nutricional do alimento, as crianças estavam muito mais
interessadas em saber para onde iam, e quanto gastariam para comprar os
alimentos, do que em aprenderensinar sobre alimentação e saúde. O dinheiro,
desde o início, foi a grande atração do jogo. Inclusive, como comentamos
anteriormente, ser o “banco” foi inserção de criatividade, astúcia e “arte de fazer” das
75
criançaspraticantes para que todos pudessem experimentar o jogo,
independentemente do limite máximo de participantes.
Burlar as regras, usar de táticas silenciosas, inventar maneiras outras de jogar
o jogo, são astúcias das criançaspraticantes que não se reconheciam nas
estratégias educativas prescritivas e normativas dos jogos “Come-Bem” e “Beto-Bia”.
Era possível ouvi-las falando, sozinhas ou comentando com a criança ao seu lado,
que aquelas atitudes mencionadas nas dicas nutricionais ou nas cartas da
nutricionista não eram por elas executadas. Nesse sentido, o não reconhecimento
de si e a recusa ao governamento (FOUCAULT, 2002) podem ter potencializado as
práticas inventivas e as táticas de resistência das criançaspraticantes.
Muitos são os indícios (GINZBURG, 1989) deixados pelas criançaspraticantes
ao experimentarem os jogos. Pistas que poderiam ter permanecido invisíveis, se
estivéssemos mergulhando no nosso cotidiano sem os fios de pensamentos dos
autores que nos puseram a caminhar. Possivelmente, não estaríamos atentos aos
processos, aos usos, às subversões, às táticas astuciosas e desviacionistas das
criançaspraticantes ao experimentarem os jogos. Talvez, nos interessássemos,
apenas, pelo que elas, supostamente, aprenderam [ou não] tal como aprendemos
com a modernidade. Munidos de nossas “cegueiras epistemológicas” (OLIVEIRA,
2007) estaríamos a observar as regularidades e não os desvios, as operações
homogêneas e não as heterogêneas.
A cada encontro ficávamos mais convictos
Da criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade que se esconde num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma “maneira própria” de caminhar pela floresta dos produtos impostos (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.13).
2.6 Representações gráficas dos guias alimentares: leituras plurais das
criançaspraticantes
Ao longo da convivência potente com nossas criançaspraticantes, muitos
foram os seus fazeressaberes que desnaturalizaram nossas práticas e saberes,
nossas percepções preconceituosas sobre o nosso trabalho. Dentre eles, a
76
pluralidade e a singularidade de leituras das representações gráficas de guias
alimentares de diferentes países.
Os guias alimentares, segundo estudiosos (BARBOSA et al, 2008), vêm
sendo elaborados, por diferentes países, especialmente a partir da década de 90,
como um importante facilitador da educação alimentar e nutricional ao adaptar
conhecimentos científicos sobre recomendações nutricionais e composição de
alimentos à linguagem popular. Mais de cem países espalhados pelos diferentes
continentes, em momentos distintos, elaboraram guias, mas não necessariamente o
expressaram graficamente (FAO/WHO, 2015). Os ícones, em um guia alimentar,
teriam o objetivo de auxiliar o público alvo a identificar com mais facilidade o modo
como os alimentos devem ser incluídos na dieta, expressando os conceitos de
variedade, frequência e proporção (CALDERÓN; MORÓN, 1999). A diferença na
representação gráfica se dá, na maioria das vezes, em função da adequação dela à
cultura de cada país. Atualmente, para citar alguns exemplos, podemos dizer que os
Estados Unidos, Inglaterra e Austrália optaram por um prato; China pelo pagode;
Alemanha e Costa Rica pelo círculo; Canadá pelo arco-íris, Tailândia pelo formato
de uma flâmula; Guatemala e Honduras por uma caçarola; Venezuela por um peão;
Portugal pela roda e Aústria, Bélgica, Espanha, Nigéria e Israel optaram pela
pirâmide. O Brasil, por sua vez, utilizou, até 2014, uma pirâmide alimentar cujo ícone
foi adaptado da versão americana publicada em 1992 (PHILIPPI et al, 1999). Enfim,
os países procuram eleger, através de processos diversos e apropriados às suas
culturas, um ícone significativo ao grupo a que se destina a fim de favorecer a
educação alimentar e nutricional.
Tendo em vista a presença de ícones de guias, especialmente a pirâmide
alimentar, em livros didáticos, em jogos educativos em nutrição e em embalagens de
alguns alimentos, consideramos interessante apresentar às crianças as
representações de diferentes guias com o objetivo de tornar visível a pluralidade e a
singularidade de leituras possíveis diante de imagens, naturalizadas pelo saberpoder
científico monolítico. Nossa “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1996)
direcionava os nossos sentidos para identificar os conflitos, os diálogos e os usos
que as crianças fariam desses artefatos curriculares, criados, comumente, com e
para especialistas, desconsiderando, na maioria das vezes, o fazer com os seus
praticantes ordinários.
77
Nesse encontro, antes de apresentarmos as imagens que seriam transmitidas
por um projetor na sala de vídeo do Núcleo de Arte, conversamos com as crianças
sobre a ideia de observarem as figuras como se detetives fossem, ou seja, com
aquele olhar investigativo tentando descobrir o que seus criadores tentavam nos
dizer com seus desenhos e cores.
Apresentamos, assim, às crianças: a roda de Portugal; o arco-íris do Canadá;
a pirâmide americana de 1992 (USDA, 1992), a pirâmide alimentar adaptada por
Philippi et al (1999); o prato americano (FAO/WHO, 2015) e o prato do Reino Unido
(FAO/WHO, 2015). Fomos surpreendidos por diversas leituras possíveis frente às
imagens pensadas pelos especialistas no assunto. O que para nós especialistas foi
naturalizado como ideia de proporção e variedade, por exemplo, foi entendido numa
lógica totalmente diferente, colocando em “xeque” todo o discurso semiótico de que
a representação gráfica dos guias possui o potencial de comunicar aquilo que se
quer transmitir. Há, portanto, na concretude do cotidiano escolar, nos usos de seus
praticantes, uma pluralidade de leituras daquilo que a ciência, supostamente, nos
impõe como uma única leitura possível.
O guia alimentar português, produzido em parceria com os profissionais da
Universidade do Porto (2004) e intitulado “Guia – Os Alimentos na Roda”, elegeu,
como o título já enuncia, a roda como a sua representação gráfica, a qual tem sido,
segundo o texto oficial, utilizada como instrumento essencial na promoção de
hábitos alimentares saudáveis. A roda é formada por sete grupos de alimentos, em
diferentes dimensões, com a finalidade de transmitir a ideia de proporção e
variedade. Após observarem a imagem, começaram por demanda espontânea, cada
um no seu tempo, a falar o que perceberam e entenderam sobre a roda portuguesa.
Fizemos, logo de início, a seguinte pergunta: “Que imagem é essa?”. Muitas, e
diversas, foram as respostas: “Um CD de alimentação”; “Uma roda gigante.”; “Uma
bola de futebol.”; “Uma pizza saudável.”; Uma nave espacial” e “Um planeta
saudável”. Percebe-se que todas as nomeações transbordam sentidos e significados
que fazem parte do universo infantil. O CD das músicas e dos vídeos; a roda gigante
dos parques de diversão; a bola de futebol que dispensa maiores explicações; a
pizza, que ainda sendo uma invenção do outro lado do hemisfério, está presente nos
momentos de celebração de muitas famílias brasileiras. A nave espacial que,
presente em livros e filmes infantis, sempre mexe com o imaginário de todos nós. O
planeta saudável e sustentável é a retórica de noticiários e programas de televisão,
78
bem como de livros didáticos e programas pedagógicos das escolas. Todos esses
elementos fazem parte da concretude de seus praticantes. A roda, solta nesse guia,
não reverbera significados, pois encontra-se fora da sua funcionalidade. Ali, ela não
é a roda da bicicleta, a roda do carrinho de ferro ou do carrinho de rolimã. Ali, ela é a
roda pensada por especialistas que, apesar de escreverem em seus documentos
sobre a importância de permitir que todas as partes relevantes da comunidade se
envolvam com a produção do material educativo (FAO/WHO, 1996), possivelmente,
não consideram relevantes os fazeressaberes das crianças nos seus cotidianos.
Ainda sobre a “Roda dos Alimentos” ouvimos que os pedaços – como eles
denominam os grupos de alimentos, representariam lugares: o grupo das frutas seria
o Rio de Janeiro; o grupo das leguminosas, que as crianças nomeiam,
simplesmente, como o pedaço dos feijões seria a Paraíba e o grupo do leite
representaria a fazenda, a alimentação do campo.
Nesse momento, ouvindo os diferentes saberes sobre a imagem, uma menina
pediu a fala e discordou dos colegas que entendiam dessa maneira. Estabeleceu-se
um fórum de discussão, de negociação e de tessitura de novos saberes. Ela afirmou
que não via os lugares que algumas crianças descreviam, mas que achava que os
pedaços maiores [grupos] diziam respeito ao que as pessoas mais “comem hoje em
dia e os pedaços menores é o que menos se come, mas o que deveria se comer
mais por ser o mais saudável.”
Ao ouvirmos as considerações da estudante, nós professorespesquisadores,
dirigimo-nos, novamente, para a imagem a fim de fazer a leitura trazida para a
discussão. Observamos que os grupos com dimensões maiores, ou seja, aqueles
que de fato, segundo o guia português, deveriam ser consumidos em maior
quantidade como os cereais, hortaliças e frutas, eram, pelo ponto de vista da
estudante, os mais consumidos, mas, os mais saudáveis, que para ela era os grupos
do feijão, do leite e o das carnes, precisariam ter o seu consumo aumentado.
Essa lógica de pensar o consumo de alimentos saudáveis desta criança, e de
tantas outras que com ela concordaram, é construída culturalmente num país onde
não pode, ou ao menos não deveria, faltar o feijão com arroz e, se possível for, a
carne, na mesa de cada dia. Quanto ao leite, como grupo que também deveria ser
consumido em maior quantidade, ouvimos a explicação de que as crianças precisam
tomar leite todo dia. Quando perguntamos de onde vieram tais afirmativas, nos
respondiam que foram suas mães, avós ou “aquele programa de televisão”. Mais
79
uma vez, nos deparamos com outras leituras possíveis que deslocam os nossos
pensaresfazeressaberes sobre esses artefatos no campo da alimentação e nutrição.
Em um momento seguinte, apresentamos a imagem de uma roda de
alimentos espanhola, que apresentava outra coloração como pano de fundo dos
diferentes grupos: frutas e hortaliças [verde]; cereais e óleos [amarelo] e carnes e
leguminosas, bem como leite e derivados [vermelho]. Pedimos, então, mais uma
vez, para que as crianças observassem a imagem, procurando identificar as
diferenças e semelhanças entre esta e a outra que viram anteriormente. Uma das
meninas levantou-se; dirigiu-se até a tela e discursou sobre a sua descoberta:
Aqui eles colocaram o verde pra mostrar que os alimentos mais saudáveis são as frutas e os legumes; o amarelo nesse daqui [cereais] pra mostrar que são mais ou menos saudáveis e vermelho no feijão, na carne e no leite pra mostrarem que são os menos saudáveis. Aqueles que podemos comer muito pouco.
Em seguida, um menino argumentou:
Esquisito isso. O pão que está no amarelo a gente pode comer mais que o peixe? O peixe é que devemos comer sempre. Pão engorda e peixe faz bem pra memória. Minha vó falou isso. Por que ele está no vermelho?
Essa discussão mostra, mais uma vez, como as lógicas operatórias são
múltiplas e tecidas por diferentes redes de saberes culturais, midiáticos, familiares e
tantos outros. O semáforo, tão presente na cidade do Rio de Janeiro, passa a fazer
parte da leitura possível. As crianças visualizam o movimento de alimentar-se com
os diferentes grupos de alimentos, como sendo o tráfego da área urbana: verde –
siga – coma à vontade; amarelo - atenção – coma com moderação [mais ou menos];
vermelho – pare – coma muito pouco. Esta leitura, ainda que seja intencional por
parte dos indivíduos que conceberam a imagem, tensiona e faz emergir diálogos
outros com e sobre a imagem.
No encontro subsequente, trouxemos a representação gráfica do Canadá – o
arco-íris. Esse ícone, diferentemente da roda que possibilitou uma infinidade de
interpretações, não suscitou dúvidas, pois todos o reconheceram como o arco-íris.
No arco-íris as quatro cores ficam em evidência, uma vez que constituem a própria
imagem. Nessa direção, os quatro grupos de alimentos, na interpretação das
crianças, seguem a lógica das cores. Para as crianças, o verde mostra os alimentos
saudáveis [frutas e hortaliças]; o amarelo é o café da manhã porque tem o pão
80
[grupo dos cereais]; o azul mostra o leite e outras bebidas [leite e derivados], e o
vermelho, por mostrar as carnes, o feijão e o ovo, representaria a “comida”. Quando
perguntamos “Como assim a comida?” as crianças nos responderam: “É o que a
gente come no almoço e no jantar”. Entra em cena mais uma discussão: “O que se
come, então, no café da manhã, por exemplo, não é comida?”. Para muitos, comida
é aquilo que dá “sustância”, a qual, segundo as crianças, obtemos, especialmente,
nas grandes refeições – arroz, feijão e carne. Na leitura dessa representação
gráfica, também se faz presente a lógica do semáforo, ou seja, a faixa verde do
arco-íris, onde estão os alimentos considerados saudáveis, indica que podemos
comer livremente. Surgem, como podemos ver, as associações entre os grupos e as
refeições diárias em função dos alimentos que ali se encontram.
Seguindo o propósito de apresentar outras formas de representação gráfica
de guias alimentares, trouxemos para a discussão um dos ícones mais difundidos –
a pirâmide alimentar. Esta assumiu várias versões, especialmente nos Estados
Unidos e em alguns países da Europa, ao longo dos últimos anos. Optamos,
portanto, por apresentar duas versões: a versão americana de 1992 (USDA, 1992) e
a pirâmide brasileira, adaptada a partir da primeira, por Philippi et al (1999).
A pirâmide alimentar americana, tal como o arco-íris, não causou dúvidas. As
crianças estavam, de fato, a observar uma pirâmide. A pirâmide americana
apresentava seis grupos [cereais; frutas; hortaliças; carnes, ovos e leguminosas;
leite e derivados; óleos e açúcares] e a brasileira, num processo de adaptação,
desmembrava o grupo das carnes, ovos e leguminosas, com o argumento, mais do
que pertinente, de que o feijão, por ser um alimento presente na alimentação básica
do brasileiro e por não possuir o mesmo valor nutritivo que as carnes e os ovos,
deveria ser colocado em um grupo específico (Philippi et al, 1999). Cria-se, portanto,
o grupo das leguminosas que já se fazia presente, por exemplo, na roda de Portugal.
Também, diferentemente da roda, mas seguindo a lógica já iniciada na leitura do
arco-íris, a maioria das crianças identifica os grupos como se fossem as diferentes
refeições do dia. Uma criança fez questão de dirigir-se até a tela, onde projetávamos
as imagens, para apontar cada grupo de alimentos fazendo menção à refeição
correspondente. O grupo dos cereais, por ter o pão era o café da manhã; o grupo
das carnes representava o almoço e o grupo do leite e derivados, por exemplo, o
lanche. A grande maioria concordou e quando um ou outro fazia uma nova
observação era apenas no sentido de dizer que aquele determinado grupo, por
81
exemplo, representava o lanche da tarde e não o café da manhã. É interessante
notar que, distintamente da leitura dos especialistas, as crianças visualizam os
conceitos de hierarquias, proporções, variedades e frequências a partir de lógicas
operatórias outras tecidas por diferentes fios de pensaresfazeressaberes. Fios que
se entrelaçam muito mais pela sua funcionalidade cotidiana do que pelo monolitismo
acadêmico e que já se faziam presentes nas redes de cada praticante. Redes, que
nesse processo dialógico, “vão ganhando um sentido próprio, não necessariamente
aquele que o transmissor da informação pressupõe” (OLIVEIRA, 2012, p. 69).
Vale ressaltar que Philippi et al (1999), quando tornaram pública a “Pirâmide
Alimentar Adaptada”, justificaram a utilização da mesma representação gráfica por
ter sido a sua imagem aprovada pela população americana após a testagem de
várias outras formas. Ficamos a pensar se não seria esse mais um “epistemicídio”
(SANTOS, 2007) cometido pelo saberpoder hegemônico norte-americano tão
presente no campo da nutrição – e em outros – no nosso país, na medida em que a
população brasileira, consumidora provável do guia [e de todo material dele
derivado], tem seus pensaresfazeressaberes desqualificados, subalternizados,
menosprezados e desperdiçados na construção da sua representação gráfica.
Estaríamos, como tantas outras vezes, a “engolir” no Sul o que “escorrega” do Norte,
sem, ao menos, dialogar com o contexto local? (FREIRE, 2011).
Apresentamos também, em outros encontros, a imagem do prato como ícone
– a nova representação gráfica americana e o prato do Reino Unido (FAO/WHO,
2015). Ambos, pela presença do garfo, foram imediatamente nomeados como o
prato. Inicialmente, a leitura foi a mais simples e consensual possível: “eles querem
dizer pra gente comer tudo isso. Comer frutas, verduras, pão, macarrão, leite,
chocolate, refrigerante, carne, ovo...”. Até que de repente uma criança se levanta e
pergunta: “Mas é pra gente comer isso tudo de uma vez só?”. Outra, imediatamente,
responde: “Não. Tem coisa que a gente come no café da manhã, outras a gente
come no almoço”. Em seguida, uma criança diz: “Eles deveriam fazer um prato pra
cada refeição. Um prato pro almoço, um prato pro jantar, um prato pro café da
manhã (...). Assim ia ser melhor pra gente entender.” Uma menina levanta e,
passando as mãos pela parede onde a imagem estava sendo projetada, fala: “Eles
poderiam fazer um relógio grande e colocar os pratos de cada refeição na hora
certa!”. Muitos acharam uma ótima ideia. Nesse momento, quando muitos já haviam
se colocado e tantos outros já estavam a brincar com as sombras do seu corpo
82
sobre a projeção da imagem, uma criança se pronuncia: “Podia usar o corpo da
gente, colocando os alimentos na cabeça, na barriga, nos braços, nas pernas (...),
não podia?”. Começaram, assim, a posicionar as diferentes partes do corpo à frente
das imagens [alimentos] que gostariam que ali se alocassem.
Aproveitando os indícios, as pistas (GINZBURG, 1989) que essas crianças
potentes iam nos deixando a cada encontro, pensávamos sobre a próxima atividade,
a próxima conversa, o próximo pensaraprender com elas. Nesse sentido, no
encontro seguinte, pedimos para que as crianças se transformassem em criadores
dessas imagens, ou seja, seriam elas, agora, os cientistas que, em seus
laboratórios, construiriam as representações gráficas a serem utilizadas por elas.
Distribuímos, na sala de artes, papéis, lápis, borrachas e réguas, a fim de que
dessem início às suas construções individuais ou coletivas. Surgiram desenhos
diversos, mas sempre com o fio condutor do cotidiano e do brincar. Eram ícones em
forma de escorrega, toboágua, geladeira, prato, relógio, caminhão e semáforo. Uma
menina iniciou o desenho de uma criança, cujo corpo estava a ser preenchido pelos
alimentos. Esses desenhos, essas representações distintas da pirâmide, do arco-
íris, da roda e de tantos outros que não fazem sentido para os nossos praticantes,
nos fazem crer na potência dos pensaresfazeressaberes dessas crianças,
historicamente, marginalizados nas pesquisas.
Paralelamente, motivados por uma turma que chegava ao Núcleo trazendo o
lanche do recreio que viria logo a seguir, pedimos às crianças que trouxessem de
suas casas as embalagens de todos os alimentos processados [industrializados] que
consumiam. Mais uma vez fomos surpreendidos com a quantidade e variedade de
embalagens que chegavam a cada aula. Motivados pela discussão e pelo
engajamento do outro, a quantidade foi crescendo progressivamente.
83
Figura 14 – Tecendo novos agrupamentos
Reunimos, assim, todas as embalagens e pedimos para que eles fossem
separando em grupos, como fazem na aula de matemática, por exemplo, quando
reúnem diferentes objetos com a mesma forma geométrica. Percebemos, logo no
início, a dificuldade de agruparem a grande diversidade de alimentos. As crianças
agruparam, por exemplo, todas as bebidas, independentemente de ser suco de
fruta, água, mate ou refrigerante. Agruparam também todas as embalagens de arroz,
açúcar, sal, farinha de trigo e de fubá. Achocolatados, café em pó, café solúvel,
farinha láctea, ou seja, tudo que poderia ser adicionado no leite também foi alocado
no mesmo grupo. Suas lógicas operatórias eram bem diferentes daquelas que nos
foram colocadas, naturalizadas pela ciência da nutrição, nos fazendo pensar sobre a
possibilidade de arranjos outros, sem que consideremos apenas as afinidades
nutricionais. As crianças, mais uma vez, estavam a agrupar as embalagens
seguindo a lógica de sua funcionalidade na concretude de seu cotidiano.
As criançaspraticantes nos surpreenderam com a pluralização das
possibilidades de se interpretar artefatos curriculares que vêm sendo, ao longo dos
anos, naturalizados na e pela construção do campo da alimentação, nutrição e
saúde. A cada representação gráfica apresentada, elas nos revelaram múltiplas
invenções, subversões e transgressões em suas maneiras de fazerpensar, ainda
que muitos possam supor que no cotidiano escolar só exista repetição, reprodução e
84
consumo passivo daquilo que é supostamente instituído pelas autoridades científicas
e governamentais.
2.7 (Re) tececendo saberes, sabores, cheiros e cores
Um dos fios desses saberes e sabores puxamos de Ruth Rocha, quando, ao
se apresentar aos leitores de seu livro “No tempo em que a televisão mandava no
Carlinhos”, disse:
Eu sou paulista. Nas minhas origens, baianos, mineiros, cariocas. Com muitos portugueses bem lá atrás e algum sangue bugre ou negro – quem sabe? -, que se traduz na minha cor de cuia quando apanho sol (ROCHA, 2000, p.30).
Nesse instante, nós professores falamos: “Também sou um pouco mineira.
Meu pai é de Minas.” – disse às crianças. Renata, em seguida, falou: “E eu paulista!
E vocês? Vocês têm um pouco de quê?”. Cada criança que se lembrava [e que
sabia] dizia de onde eram seus pais, suas mães, avós. Ceará, Paraíba, Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Minas e São Paulo foram, pouco a pouco,
aparecendo nas origens de muitos de nós.
E para aproveitarmos a boa prosa e as novas descobertas, começamos uma
brincadeira, onde a cada lugar anunciado, quem tivesse um fio de lá, corria para o
centro da roda. Tinha gente que não ficava parado, pois sempre lembrava de um
avô, de uma avó... Descobrimos que somos feitos de muitas “gentes” e de muitos
lugares. São tantos fios, que podemos trançar uma rede.
85
Figura 15 – Viajando compelas histórias
E aquela curiosidade que parece não ter fim, nos levou a perguntar: “Quem já
foi a um destes lugares? O que vocês lembram de lá? O que viram? O que ouviram?
O que comeram? Quais são os sabores de lá? E as cores?”. Como muitos queriam
contar, organizamos da seguinte forma: cada criança falaria o que quisesse e
lembrasse, mas sem dizer o nome do lugar. Os ouvintes, após toda a história
contada, tentariam adivinhar de onde o contador estava falando.
Em uma manhã, viajamos para muitos lugares.
Quando a gente chega lá, a gente vai pescar com meu avô. Lá a gente não pesca muito de vara não. A gente pesca mais é de tarrafa mesmo. A gente pesca no canal. Professora você não vai perguntar que música que a gente escuta lá? É louvor. Meu avô é pastor. Ah! Lá tem árvore de seriguela. Ela é pequenininha, mas tem um sabor grande. Meu pai me contou que onde ele morava tinha rio e cachoeira. Ele adorava tomar banho de rio. Ele me contou que já tomou sopa de cérebro de carneiro. E lá as pessoas falam “ôchente”. Lá tem rio e tem mar. Tem galinha e porco na casa do meu avô. Lá tem quadrilha e é bem diferente da Rocinha. Na Rocinha é muita bagunça.
Lá tem praia. Quando penso na casa da minha vó, me lembro do gosto da pamonha.
Tem muita manga no terreno do meu avô. Como muita manga quando vou lá. Meu avô ouve forro e samba. Tem praia lá.
86
Os meus pais são do mesmo lugar. Lá tem moradores pobres. Lá tem muito camaleão. Tem gente que cria pintinho e galinha.
Meu pai falou que ele vem de um lugar muito pobre. Comeu chifre de besouro que colocavam na sopa. Lá tem bastante rio e a gente pescava lá. Lá na casa do meu avô tem árvore de açaí. Eu jogo bola com os filhos dos amigos do meu avô. A gente pesca muito Baiacu. Lá tem muito rio. Tinha bastante quadrilha.
Nessa viagem matutina, conhecemos muitos lugares, suas cores, seus
sabores, suas músicas, suas falas, seus rios, seus mares. E para celebrar as nossas
viagens e descobertas, depois de tanta história de pescador, dançamos uma
ciranda, uma dança praieira, dançada na beira da praia, onde a “jangada vai sair pro
mar”.
Rememorando os lugares, rememoramos, também, os seus sabores. Sabores
de comida de vó, como a pamonha de Pernambuco, que nos deu vontade de
conhecer mais um pouquinho do sabor de família de cada um. Pedimos, então, que
trouxessem receitas de família – receitas com “sabor de família”. Além dos
ingredientes e do modo de preparo, as famílias escreveram a origem da receita e
por que a consideravam “sabor de família”.
Bobó de camarão. Esta receita tem sabor de família porque vem desde da minha Vó que é baiana. Virou tradicional aos domingos. Galinha caipira. Essa é uma receita paraibana que a gente gosta de fazer em família no final de semana. Escondidinho com aipim. Essa receita é nordestina. Quando faço a família toda adora. Estrogonofe de frango. Essa receita é carioca e é tradição da minha família. Todos gostam. Bolo de fubá. Porque lembra a minha cidade Recife e o pai dela gosta muito de bolo de fubá porque é mineiro. Essa receita é carioca. Quarenta de milho. Essa receita é da Paraíba e todo mundo da minha família faz. Sanduíche do Papai. Porque meu pai faz no café da manhã de vez em quando. A receita é carioca.
E como de um fio puxamos outros, passamos a conversar sobre as receitas
de família que curam alguns males do dia a dia. Começamos falando de um chá,
bem quentinho de erva cidreira, que eu havia tomado na noite anterior na tentativa
de me acalmar e dormir melhor. E como criança tem uma disponibilidade
87
encantadora para compartilhar acontecimentos, fomos saboreando os saberes e
práticas dos seus cotidianos.
Pra dormir eu tomo leite quente! Chocolate quente!
Alface debaixo do travesseiro do bebê ajuda ele a dormir.
Minha mãe pra eu dormir me dá aquela olhada.
Fui pra casa da minha vó comecei a tossir à noite e minha vó me deu chá
de maçã dizendo que era bom pra tosse. Tomei e melhorei.
Maçã faz bem pro intestino.
Mel com limão é bom pra garganta.
Eu nem chego perto de mel. Eu sou alérgica.
Gengibre é bom pra garganta.
Gengibre ajuda a emagrecer.
Cabeça de peixe é bom pra memória.
Comer queijo demais faz a gente esquecer das coisas.
Um dia fiquei muito triste porque briguei com uma amiga e ela ficou sem
falar comigo. Comi chocolate e fiquei feliz de novo.
E nesse diálogo entre redes de saberes, fazeres e crenças que são tecidas
noscom os nossos cotidianos, vamos ouvindo e contando histórias que vão
entremeando outros fios na trama de nossas redes. Buscamos, assim, mais fios de
saberes, pedindo às crianças que perguntassem às suas famílias o que era bom
para gripe, dor de ouvido, dor de garganta, febre, cansaço, tristeza, memória, dor de
cabeça... para aqueles males cotidianos que surgiram na nossa conversa inicial.
No encontro seguinte, muitas dicas. Dicas (com)partilhadas, em roda, pela
leitura do professor, com o cuidado de não expor a criança que, por algum motivo,
não levou as da sua família. Em muitos momentos, contudo, uma criança ou outra
fazia questão de dizer: “Essa é minha! Fiz com a minha mãe e minha irmã”; “Fiz com
a minha avó. Ela adorou fazer isso”. “A mesma coisa que eu coloquei no meu”.
Algumas dicas das famílias para ...
Dor de cabeça: batata na testa, água de coco, café sem açúcar, chá de gengibre, água com uma fatia de limão, ir ao médico, chá de alecrim, gelo na cabeça, chá preto, chá de casca de laranja, chá de folhas de abacateiro, chá de flores de camomila ... Insônia: alface, leite quente, chá de camomila, suco de maracujá, chá de erva-cidreira, sopa de macarrão, chá de capim limão... Cansaço: mate, guaraná em pó, dormir, chocolate com banana, massagem, açaí, ir ao médico, banho gelado, nebulização, banho morno, café...
88
Gripe/resfriado: suco de laranja, chá de alho, mel com limão, chá de limão, vitamina C, acerola, chupar laranja, sumo de limão, chá de limão com alho, chá de sabugueiro e eucalipto, caju, agrião, gengibre... Tristeza: carinho, chocolate, chá natural, castanha do Pará, sorrir, abacate, alegria, brincar, comer brigadeiro, pensar em coisa boa, atividade física, cebola [para chorar e mandar a tristeza embora], abraços e beijos...
Entrelaçados por estes saberes, saímos, todos, à caça de novos sabores,
cheiros e cores nas feiras e mercados do entorno. Por entre flores, ervas, pimentas,
pastéis e tapiocas, fomos nos encantando pelas hortaliças e frutas nunca vistas,
nunca saboreadas. Depois de muito cheirar com o nariz e tocar com as mãos,
saboreamos [algumas crianças pela primeira vez] melancias e bananas
presenteadas pelos feirantes mais acolhedores. Alguns se incomodaram com a
presença de tantas crianças que, provavelmente, estariam por lá só a passeio,
apenas para ver. Enganaram-se, pois, aqueles que assim pensaram. Estávamos lá
para ver/sentir/cheirar/saborear/aprender...
Depois de andarmos por todas as barracas e conversarmos com os feirantes
e moradores, compramos algumas frutas, escolhidas pelas crianças, para que
pudéssemos saborear. Enchemos nossas sacolas, depois de muitas negociações e
contas, com ameixa, pêssego, kiwi, maçã verde, sapoti, uva roxa, jabuticaba e fruta
do conde e, ansiosos, voltamos para o Núcleo para, enfim, saboreá-las.
Figura 16 – Saboreando juntos
89
Figura 17 – Um cheiro
Sabores doces, ácidos e azedos misturavam-se aos sorrisos e caretas das
crianças que experimentavam pela primeira vez a maioria destas frutas. Na dúvida,
entre experimentar ou não, uma encorajava a outra como se estivessem a descer de
um grande escorrega em um parque de diversão. Depois da primeira mordida,
muitas viriam a seguir.
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Figura 18 – Experimentando pela primeira vez
As crianças se permitiram experimentar o novo, ainda que toda prática
alimentar dependa de uma rede de pulsões – de atração e de repulsa (CERTEAU;
GIARD; MAYOL, 2011) quanto aos odores, formas, texturas e consistências.
Saborear algumas daquelas frutas, possivelmente, não fazia parte da prática
alimentar do habitus (BOURDIEU, 2008) de classe de muitos de nós. Foi preciso,
portanto, ampliar o gosto [ou ao menos experimentar novos sabores] a partir de um
encontro inesperado, (com)partilhado pelos pares. Os praticantes do cotidiano – as
crianças e nós professorespesquisadores, diferentemente do que Bourdieu poderia
imaginar [nesta fase dos seus escritos], inseriram criatividade e agiram de um modo
diverso dos seus estratos de origem. Segundo a interpretação de Bourdieu,
Cada grupo se definiria por sua posição de classe e seu modo de agir dependendo de uma circulação obrigatória em um “conjunto de ações totalmente preparadas, de possíveis objetivamente instituídos”. Deste modo, a criatividade do grupo ou do indivíduo é descartada de antemão, nada de novo que realmente importa pode advir, nem o gosto pode ser ampliado por uma descoberta ocasional (como ouvir uma ária que intriga pelo rádio ou
91
um anúncio com novo estilo gráfico que prende o olhar), nem encontro marcante com um novo interlocutor que faça conhecer outras práticas culturais, nem desejo pessoal de uma autoformação num determinado domínio estético [...].Na perspectiva de Bourdieu, as práticas alimentares são tão imóveis quanto as outras, ou até mais, pois estão sempre ligadas à primeira infância, ao mundo maternal (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 248-249).
As criançaspraticantes, astuciosamente, aproveitaram a ocasião para
experimentar e conhecer novos sabores, ainda que estes não sejam os escolhidos,
os permitidos, os preferidos no final das suas exclusões e das suas escolhas. A
escolha será sempre atravessada por uma
etno-história, uma biologia, uma climatologia e uma economia regional, uma invenção cultural e uma experiência pessoal. Sua escolha depende [...] da contingência indecifrável de micro-histórias” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.251).
Figura 19 - Saboreando
Viajamos, com as crianças, por diferentes lugares – conhecendo seus sons,
suas cores, seus sabores, suas dores, seus cheiros. Cheiros e sabores de casa de
vô, de memória de pai, de pescarias nos rios, de fruta no pé e de tantos outros fios.
Saberes de suas famílias que podem curar nossos males cotidianos. Crianças
[muitas em um só] que contam histórias, que fazem rir [e que também fazem chorar],
92
que compartilham seus saberes [e que tecem juntas tantos outros], que descobrem
[juntas] novos sabores [e também dessabores] que (re) inventam seus cotidianos [e
os nossos também]. Crianças que se encantam com o singelo, ordinário, e que se
deixam atravessar por intensidades de encontros. Criança é como seriguela: “Ela é
pequenininha, mas tem um sabor grande”.
93
3 E POR ÚLTIMO UMA HISTÓRIA PRIMEIRA QUE MUDOU O COMEÇO Essa história poderia não estar aqui, se eu ainda, modernamente, acreditasse
que aquilo que não aconteceu deveria ser escondido, deixando aparente apenas os
passos dados, dando a falsa impressão – ainda que pudéssemos legitimá-las como
verdade – de que estaria eu, desde o início, a pesquisar a minha prática cotidiana, a
partir dos pressupostos teóricopolíticoepistemológicometodológicos das pesquisas
nosdoscom os cotidianos.
Deixei algumas pistas nos textos anteriores quando falei em rotas alteradas e
em livros colocados em minhas mãos, mas, fazendo uso das táticas certeaunianas,
optei por contá-la no final.
Certeau e suas redes enlaçaram-me com seus fios, não coincidentemente, no
cotidiano escolar durante os nossos momentos de fuga; quando nós professores nos
reunimos, subvertendo a ordem, para tomar um café, prosear e fazer ciência. E como de
um fio puxamos outros, vieram entrelaçados a Certeau, Nilda Alves, Ferraço, Inês
Barbosa de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos, Foucault...Se muitos inquietaram
minhas verdades, esses me viraram de ponta à cabeça.
Encontro-me encantada pela pesquisa nosdoscom os cotidianos que, como nos
diz Alves (2001), vira-nos de ponta a cabeça, nos fazendo criar uma nova organização
de pensamento, invertendo todo o processo aprendido, exigindo múltiplos caminhos. E
nesses caminhos não cabe mais o pensamento linear, disciplinarizado, compartimentado
e hierarquizado que aprisiona nossos saberesfazeres na ciência hegemônica. Não cabe
mais seguir à risca os caminhos apriorísticos e os métodos ainda tão valorizados no
fazer ciência do campo da saúde. Precisamos, sobretudo, percorrer caminhos, muitas
vezes, impossíveis de serem antecipados e que só se revelam durante a caminhada. Os
cotidianistas, inspirados por Certeau (2012), nos ensinam, nos incitam, a conviver com o
imprevisível, com o inesperado, com as ações concretas, com as artes de fazer – táticas
e astúcias – dos praticantes do cotidiano.
Nesse pensar diferentemente, instaurado por Certeau e suas redes, encontro-me,
desde então, subvertendo a lógica que sustenta a minha linha de pesquisa
“Determinantes individuais e contextuais do estado nutricional e seus impactos na saúde
coletiva” do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da UERJ.
Venho criando espaços e fazendo escolhas não previstas numa linha de pesquisa que,
muitas vezes, autoriza a epidemiologia e a estatística a instituir verdades. A
94
fragmentação do conhecimento, da cultura, que herdamos da modernidade, ainda se faz
demasiadamente presente nas instituições de ensino [especialmente na área
biomédica], nos obrigando a inventar o cotidiano, a alterar as propostas curriculares, a
criar caminhos próprios, a “burlar” as “regras oficiais”. São as táticas do cotidiano como
sinaliza Certeau (2012) que me permitiram/permitem estabelecer outros diálogos, pontos
de contato e conexões.
Penso ser necessário esclarecer que meu projeto de doutorado tinha como
proposta “Elaborar e validar um guia alimentar para escolares do 3º ano do ciclo
do ensino fundamental do Município do Rio de Janeiro”. Preciso também dizer que
as quatro palavras em negrito, carregadas de significados e sentidos, que compõem
esse enunciado, me incomodaram, me inquietaram. Validar porque o conceito de
validade vem sendo amplamente discutido no campo da estatística projetado pela
modernidade e, certamente, não era esse rumo que pretendia dar à pesquisa; guia
pela ideia vinculada ao guia de conduta, de autocondução e condução do outro e
escolares uma vez que pressupõe indivíduos que estão muito mais para aprender
do que para ensinar. A preposição para já havia, desde o início da pesquisa, sido
substituída não apenas no enunciado, mas especialmente na forma de se fazer
pesquisa, por outra preposição que diz respeito ao fazer coletivo, ao fazer com o
outro. Tentei, ao longo do caminho, flexibilizar seus significados, permitindo dar a
elas e ao projeto um outro sentido, compartilhando da ideia de que as palavras
deslocam-se permanentemente, assumindo diferentes significados “de acordo com
as circunstâncias, objetivos e modos de expressão de quem as profere” (GARCIA;
OLIVEIRA, 2010). Contudo, ainda que eu usasse outras expressões, ainda que eu
conduzisse a pesquisa de forma diferente, ainda que eu pensasse num guia com
outro tom, ainda assim seria um GUIA. E como nos diz Foucault: “o saber
decepciona, inquieta, secciona, fere”21.
Feri-me com a possibilidade de estar elaborando um material afinado com o
exercício do poder, na medida em que um guia configura-se como uma das
estratégias de educação em saúde, com a pretensão, dentre outras, de interferir nas
escolhas e no estilo de vida dos indivíduos. E uma das poucas certezas em que me
ancoro, desde sempre, é que não quero ser veículo da normatização; não quero
21
Frase citada por Rosa Maria Bueno Fischer no texto “Na companhia de Foucault: multiplicar acontecimentos” publicado pela Revista Educação & Realidade em 2004.
95
ampliar a rede de micropoderes que produz gestos, comportamentos e corpos; não
quero elaborar estratégias de governamento para a infância.
Os Guias Alimentares no Brasil, e em diferentes países, são concebidos a
partir de dados epidemiológicos que, ao dimensionar o risco, desencadeiam ações
em saúde norteadas pelo estilo de vida saudável. Estilo esse que deve ser assumido
[consumido], preventivamente, como uma atitude de autocuidado. Essas tecnologias
de si, travestidas de uma autonomia individual [autonomia desde que...], torna-se,
nesse contexto, uma forma de controle sutil que incita o autocontrole e suscita a
culpabilização, justamente pela falta de controle frente aos riscos que nos são
predimensionados [hiperdimensionados], pela mídia e pelos especialistas,
referendados, obviamente, pelo cientificismo biomédico (CASTIEL; DIAZ, 2007).
Vivemos assim a hipervigilância: eu me vigio, você me vigia, nós nos vigiamos [...]
todas as pessoas vigiam umas às outras. O indivíduo vigiado vigia, o indivíduo
obediente ordena [...] (NETO, 2010). É o panóptico22 e o sinóptico23 atuando em
sinergismo. Articulam-se, desse modo, o mecanismo disciplinar e o regulamentador.
O poder se incumbiu tanto do corpo quanto da vida (FOUCAULT, 2002).
Foucault, ao pensar as relações de poder – os modos de ação sobre a ação
dos outros – além de desterritoralizar meus saberes frente ao “objeto” de estudo, me
instigou a pensar, sobretudo, como me constituí como sujeito do conhecimento [e o
quanto me assujeitei às práticas discursivas do saber-poder] e como sujeito de ação
sobre o outro (VEIGA-NETO, 2011).
Nessa mesma direção, fui acionada por Boaventura de Sousa Santos (2005;
2010b) a refletir sobre o campo da nutrição, trazendo questões que muito
contribuíram para a mudança de rota: o quanto o campo tem de colonizado e de
colonizador? Em que dimensão pensamosagimos, nós nutricionistas/especialistas,
como se europeus ou norte-americanos fôssemos? O quanto reforçamos a
assimetria entre o Norte e o Sul ao embasarmos as nossas práticas cotidianas no
recomendar/seguir (eles recomendam e nós seguimos)? O que foi/é deixado de fora
pelos currículos que nos formaram/formam? O quanto as políticas públicas
22
Panóptico é metaforicamente utilizado por Foucault para falar do olhar invisível que tudo vê sem ser visto. Olhar que ao impregnar quem é vigiado, faz com que o funcionamento do poder se dê permanentemente mesmo quando as ações são descontínuas (Machado, 1982; Veiga-Neto, 2011). 23
Diferentemente de panóptico, onde muitos podem ser controlados por poucos, no sinóptico muitos observam passivamente a poucos e se autocontrolam por efeito de demonstração e convencimento (Castiel; Diaz, 2007).
96
brasileiras em educação e saúde estão sujeitas ao fracasso pela monocultura da
ciência moderna? Como podemos, cotidianamente, reconhecer a existência de
outros saberes? Como podemos “aprender com o Sul usando uma epistemologia do
Sul”? Como pensarfazer uma “ciência que seja prudente para uma vida decente”?
Ferraço – um cotidianista instigante apresentado por Inês Barbosa de Oliveira
e Paulo Sgarbi no livro “Estudos do cotidiano e Educação”, alimenta as minhas
subversões quando nos fala - a partir do paradigma de um conhecimento prudente
(paradigma científico) para uma vida decente (paradigma social) de Boaventura
Santos (2010c), de “uma ciência que possa ver-se como capaz de proporcionar
melhores condições de vida aos seres humanos. Que tenha cor, sabor e cheiro. Que
seja mais lúdica, mais solta” (FERRAÇO, 1999).
Fui, portanto, afetada pela experiência de ser atravessada pelos fios de
Certeau e de suas redes. Experiência compreendida no sentido de Larrosa (2002)
como “aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” e como
complementa Veiga-Neto (2010) – “e efetivamente nos transforma”. Fomos
transformados - eu e meu projeto.
Nesse novo modo de pensarfazer pesquisa [que estou a aprender fazendo],
os praticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor” deixaram de compor as
estratégias metodológicas para a elaboração de um “Guia Alimentar” e passaram a
ser atores/autores centrais da pesquisa.
Compartilhar como fui/fomos nos modificando e nos constituindo
cotidianamente na nossa pesquisa, reforça a ideia de que nem tudo está posto e que
nada é permanente, instigando a nós e a nossos pares a fazer novas travessias, a
priori, inimagináveis. E voltando ao começo com Paulo Freire: “mudar é difícil, mas é
possível”.
97
ALINHAVANDO UM PONTO FINAL
Posicionei-me, ao longo dessa pesquisa, de modo a não perder de vista os
vagalumes – Certeau, Nilda Alves, Morin, Ginzburg, Inês Barbosa de Oliveira,
Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire e tantas outras luzes pulsantes. Luzes,
ainda que intermitentes, capazes de fazer sobreviver em nós uma atitude de
valorização da experiência, da criação, da invenção, da liberdade, da imaginação e
da instauração de outros modos de sentirpensarfazer que resistem [assim como os
vagalumes24] ao saberpoder de uma ciência moderna que se pretende totalitária,
colonizadora e homogeneizante.
Nessa experiência, aqui entendida como aquilo que nos passa, que nos
acontece, que nos toca (LARROSA, 2002), fui tocada pela potência da pesquisa
nosdoscom os cotidianos e atravessada pelos pensaresfazeressaberes dessas
crianças que deslocaram minhas certezas e me fizeram (re)pensar a prática
educativa e o pensarfazer pesquisa. As crianças praticantes revelaram, a cada
instante, as múltiplas invenções, subversões e transgressões possíveis nocom o
cotidiano escolar, ainda que muitos possam supor que nesse espaçotempo só exista
repetição, reprodução, mesmidade e consumo passivo daquilo que é supostamente
instituído pelas autoridades científicas e governamentais.
Vivendo o cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor” desinvisibilizamos uma
constelação (SANTOS, 2010a) de conhecimentos em alimentação, nutrição e saúde,
produzidos e compartilhados pelas criançaspraticantes, que não podem, de maneira
alguma, ser negligenciados por nós pesquisadoresprofessores e especialistas outros
do campo da educação alimentar e nutricional.
Estou convencida de que os conhecimentos e instrumentos, inclusive os guias
alimentares, precisam ser tecidos com e não para ou sobre elas. Tecidos a partir de
seus pensaresfazeressaberes com toda a decência e boniteza que a tarefa de
pesquisaraprenderensinar exige de nós. Estou convicta de que precisamos de
menos regras, normas e prescrições e de mais ecologias das práticas de saberes
dentrofora das escolas.
24
Didi-Huberman (2011), no livro “Sobrevivência dos vaga-lumes”, atravessa pensamentos de diferentes filósofos, escritores e artistas, trazendo a metáfora do vagalume na perspectiva da resistência a diferentes formas de opressão. Aproprio-me, portanto, dos vagalumes metafóricos com a mesma intenção.
98
Precisamos, insistentemente, caminhar atentos para não cairmos nas
armadilhas da modernidade que nos formou [e que ainda nos forma]; precisamos
exigir, de nós, a coerência entre o discurso e a prática; precisamos, sobretudo, saber
para quem, por que, contra quem, a favor de quem pesquisamos e produzimos,
cientes de que as nossas escolhas presentes serão responsáveis pela construção
dos futuros possíveis. Futuros que, criticamente esperançosa, desejo que sejam
mais cheios de cores, cheiros, saberes e sabores.
99
REFERÊNCIAS
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104
APÊNDICE A – Termo de consentimento livre e esclarecido
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO BIOMÉDICO
INSTITUTO DE NUTRIÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ALIMENTAÇÃO, NUTRIÇÃO E SAÚDE
Termo de consentimento livre e esclarecido
Este documento lhe dará informações e solicitará sua autorização para que
seu (sua) filho (a) participe das aulas da oficina “Corpo, Cor e Sabor” oferecida pelo
Núcleo de Arte Leblon à turma do 3º ano do ciclo do ensino fundamental. As aulas
acontecerão no horário escolar e serão conduzidas pelos professores da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro André dos Santos Brilhante e Maria da Glória Pinheiro
Rezende. As informações sobre alimentação, nutrição e saúde serão discutidas a
partir de atividades educativas com jogos de tabuleiro, vídeos, encenações teatrais,
leituras de livros e contações de histórias. Deixamos claro, ainda, que não serão
utilizados materiais e objetos cortantes, como facas e similares, bem como
equipamentos de cozimento de alimentos, como forno e fogão, que coloquem em
risco a integridade física de seu (sua) filho (a). Essa oficina – “Corpo, Cor e Sabor”,
faz parte da pesquisa intitulada “Currículos pensadospraticados, em alimentação,
nutrição e saúde no cotidiano escolar”, que está sendo desenvolvida pela
Professora-Pesquisadora Maria da Glória Pinheiro Rezende e coordenada pela
Professora- Doutora Eliane de Abreu Soares. A pesquisa tem como objetivo tornar
visível os currículos pensados e praticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde,
pelos alunos e professores no cotidiano escolar, contribuindo para o ensino-
aprendizagem desses conteúdos. Os participantes da pesquisa [alunos e
professores] serão beneficiados pela possibilidade de dialogar [conversar] sobre
questões relativas à alimentação e saúde, construindo coletivamente outros modos
de pensar, aprender e ensinar sobre este tema de grande importância nas escolas,
nas famílias e em toda a sociedade.
Gostaríamos de esclarecer que a participação de seu (sua) filho(a) não terá
nenhuma despesa e será totalmente voluntária, podendo você: recusar-se a
autorizar tal participação, ou mesmo desistir a qualquer momento, sem que isto
105
acarrete qualquer prejuízo à sua pessoa ou a seu (sua) filho(a). Esclarecemos,
ainda, que as informações e imagens das crianças serão utilizadas somente para
fins específicos das aulas e da pesquisa. É assegurado o completo sigilo de
identidade de seu (sua) filho (a) quanto à participação neste estudo, incluindo a
eventualidade da apresentação dos resultados deste estudo em congressos e
periódicos científicos.
Ao final dos dois semestres letivos, realizaremos um encontro com os
responsáveis para conversarmos sobre a participação de seus (suas) filhos (as) nas
aulas e trocarmos ideias sobre a alimentação dos mesmos. Possíveis riscos
associados à pesquisa, como constrangimentos [vergonha, acanhamento] ou falta
de vontade por parte de seu (sua) filho (a) em participar das atividades com a turma,
serão considerados e respeitados pelos professores, conferindo a ele (ela) o amplo
direito de não participar. Em caso de dúvidas:
Profª Drª Eliane Abreu Soares ([email protected]) e Profª Ms. Maria da
Glória Pinheiro Rezende ([email protected]).Telefone: (21) 998192006
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Centro Biomédico / Instituto de Nutrição
Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 12º andar,
Bloco D, sala 12.023 - Rio de Janeiro. Telefones: (21) 2334-0679 ou 2334-0722
Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto (CEP/HUPE)
Endereço: Avenida 28 de Setembro 77 – Térreo, Vila Isabel – Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 2868-8253
Diante do exposto nos parágrafos anteriores eu, firmado abaixo,
___________________________________________________concordo com a
participação de meu (minha) filho (filha) na oficina “Corpo, Cor e Sabor” e na
pesquisa intitulada “Currículos pensados e praticados, em Alimentação, Nutrição e
Saúde, no cotidiano escolar”.
Eu fui completamente orientado (a) pela Professora Maria da Glória Pinheiro
Rezende de acordo com sua natureza, propósito e duração. Eu pude questioná-la
sobre todos os aspectos do estudo. Além disto, ela me entregou uma cópia das
folhas de informações para os participantes, a qual li e compreendi. Deu-me, ainda,
plena liberdade para decidir acerca da espontânea participação de meu (minha) filho
106
(a) nesta pesquisa. Estou recebendo uma cópia assinada deste termo, estando as
duas páginas do mesmo rubricadas pelo responsável pela pesquisa e por mim.
Responsável pelo aluno participante:
_____________________________________________
Data: ___________________
Assinatura: ________________________________________
Responsável pela pesquisa:
____________________________________________________
Data: __________________
Assinatura: _________________________________________
107
APÊNDICE B – Artigo submetido à Revista Saúde e Sociedade
Representações gráficas de guias alimentares: leituras plurais das
criançaspraticantes
Maria da Glória Pinheiro Rezende
Nutricionista e Professora de Educação Física. Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço: Praça Nossa Senhora Auxiliadora, s/nº, Leblon, CEP 22441-050, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]
Luciléia Granhen Tavares Colares
Nutricionista. Professora Associada do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Endereço: Avenida Brigadeiro Trompowisk, S/N. Centro de Ciências da Saúde (CCS), Bloco J, 2º andar, Sala 24, Cidade Universitária, CEP 21941-599, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] Inês Barbosa de Oliveira
Pedagoga. Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] Eliane de Abreu Soares
Nutricionista. Professora Associada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, 12ºandar, Bloco D, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]
109
Representações gráficas de guias alimentares: leituras plurais das criançaspraticantes
Resumo
Neste artigo narraremos parte do nosso caminhar no cotidiano da oficina “Corpo, Cor
e Sabor”, conduzida por professores com formação em diferentes linguagens [Nutrição,
Educação Física, Artes Cênicas, Dança e Vídeo], no Núcleo de Arte Leblon – Espaço de
Extensividade da Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro. Essa oficina
tem como proposta estimular a “curiosidade epistemológica” e desinvisibilizar os currículos
pensadospraticados em alimentação, nutrição e saúde, permitindo conhecer os modos de
pensaraprenderensinar valorizados pelas criançaspraticantes, bem como suas redes de
valores e crenças frente ao tema. Pretendemos trazer para o centro da nossa narrativa, os
diálogos, as tensões, os conflitos, as negociações e as tessituras de conhecimentos das
criançaspraticantes do 3º ano do ensino fundamental, que com suas “artes de fazer”, revelam
uma pluralidade de leituras sobre as representações gráficas de guias alimentares de diferentes
países. Estamos convencidos de que, ao recriarem, subverterem e ressignificarem os guias
alimentares e outros artefatos oficiais, os praticantes, com suas “artes de fazer”, produzem os
currículos pensadospraticados nos cotidianos escolares. Currículos que abarcam a pluralidade
e a singularidade dos fazeressaberes dos sujeitos que habitam as escolas. Currículos com cor,
sabor e cheiro. Nesse percurso metodológico, somos agenciados pelo pensamento potente de
Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Michel de Certeau e de cotidianistas brasileiras
como Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira.
Palavras-chave: currículos pensadospraticados; criançaspraticantes; cotidiano escolar;
alimentação.
110
Graphical representations of food guides: plural readings of practitioners/children
Abstract
In this article we will tell part of our daily walk in the workshop "Body, color and
flavor," conducted by teachers trained in different languages [Nutrition, Physical Education,
Performing Arts, Dance and Video] in Leblon Art Center - extensiveness space of the
Municipal Department of Education of the city of Rio de Janeiro. This workshop has the
purpose to stimulate the "epistemological curiosity" and make visible the thought/performed
curriculum in food, nutrition and health, allowing to know the ways of thinking/learning
/teaching valued by practitioners/children as well as their grid of values and beliefs across the
theme. We intend to bring to the center of our narrative, the dialogues, tensions, conflicts,
negotiations and compositions of the knowledge of practitioners/children from the 3rd grade
of elementary school, which with its "arts of making" reveal a plurality of readings on
graphical representations of food guides from different countries. We are convinced that by
recreating, subverting, and resignifying the food guides and other official artifacts, the
practitioners, with its "arts of making" produce thought/performed curriculum in school
routine. Curriculum that embrace the diversity and the uniqueness of doings/knowledge of the
subjects inhabiting the schools. Curriculum with color, taste and smell. In this methodological
course, we are touted by powerful thoughts of Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire,
Michel de Certeau and of the Brazilians Nilda Alves and Inês Barbosa de Oliveira.
Keywords: thought/performed curriculum; practitioners/children; school routine; food.
111
Introdução
Nesse texto pretendemos desinvisibilizar os pensaresfazeressaberes tecidos
coletivamente pelas criançaspraticantes (Certeau, 2012) do cotidiano escolar da oficina
“Corpo, Cor e Sabor” que, com suas astúcias, táticas e modos de pensaraprenderensinar,
desestabilizam as nossas certezas e desnaturalizam os nossos pensaresfazeressaberes no
campo da alimentação, nutrição e saúde.
As crianças, muito mais potentes do que supostamente somos capazes de imaginar,
com suas “curiosidades epistemológicas” (Freire, 1996) e lógicas operatórias outras, nos
fazem pensar diferentemente sobre os conhecimentos, currículos e artefatos oficiais que foram
sendo naturalizados pelo pensamento hegemônico da modernidade cientificista. Os
fazeressaberes destas crianças e os deslocamentos que eles produzem em nós
professorespesquisadores, cotidianamente, nos remetem à frase clássica do dramaturgo
Bertold Brecht onde “nada deve parecer natural”.
Traremos, assim, para o centro da nossa narrativa, os diálogos, as tensões, os
conflitos, as negociações e as tessituras de conhecimentos desses praticantes do cotidiano, que
com suas “artes de fazer” (Certeau, 2012), revelam uma pluralidade de leituras sobre as
representações gráficas de guias alimentares de diferentes países. Guias e ícones que
deveriam, segundo documentos oficiais, ser uma ferramenta da educação em alimentação e
nutrição, ao “facilitar a adoção de escolhas alimentares mais saudáveis em uma linguagem
que seja compreendida por todas as pessoas e que leve em conta a cultura local” (Brasil,
2014).
Estamos “criticamente esperançosos” (Freire, 1996) que, ao tornamos visível e
credível os pensaresfazeressaberes dessas crianças, bem como os usos que as mesmas fazem
de um artefato curricular amplamente difundido nas diferentes esferas de ensino, possamos
contribuir para a revalorização dos saberes cotidianos (Oliveira, 2006), instigando processos
de construção de ferramentas em educação alimentar e nutricional [os próprios guias e tantos
outros] que experenciem a horizontalização das relações de saberes (Santos, 2010a) e que
reconheçam os praticantes comuns como sujeitos e produtores de conhecimentos válidos.
112
Fundamentos teórico-epistemológico-metodológicos
Nessa pesquisa, tecida e partilhada no cotidiano escolar, nos apoiamos, especialmente,
sobre as ideias de Boaventura de Sousa Santos, Michel de Certeau, Inês Barbosa de Oliveira e
Paulo Freire.
Boaventura de Sousa Santos ao propor a “Sociologia das Ausências” nos desafia à
desinvisibilização de práticas e saberes que foram historicamente invisibilizados, silenciados e
ativamente produzidos como não existentes pelas lógicas monolíticas da modernidade. A
sociologia das ausências atua, segundo o autor, substituindo monoculturas por ecologias,
dentre elas a ecologia de práticas de saberes, a qual vem confrontar a lógica da monocultura
do saber e do rigor científicos com outros saberes e outros critérios de rigor que se fazem
presentes nas práticas cotidianas (Santos, 2010a).
Michel de Certeau (2012), ao escrever “A invenção do cotidiano”, nos inspira a
entender o cotidiano escolar como um espaçotempo de invenção para além de um lugar de
reprodução, repetição e consumo passivo, buscando ali perceber as microdiferenças nas
maneiras de fazer de seus praticantes. A partir de suas ideias observamos as artes de fazer que
se tecem em redes de ações concretas - de usos e táticas - das crianças e professores
praticantes que inserem criatividade e pluralidade no cotidiano, potencializando o
pensaraprenderensinar de conteúdos, comportamentos e valores para além do previsto
oficialmente.
Inês Barbosa de Oliveira (2012), tecendo uma nova trama com os fios de Boaventura e
de Certeau, nos instiga com o conceito de currículos pensadospraticados, deixando clara, pelo
neologismo empregado, a indissociabilidade existente entre reflexãoação, práticateoria.
Seria, portanto, no cotidiano escolar que seus praticantes comuns [alunos e professores], ao
tensionarem, dialogarem e ressignificarem os currículos e outros artefatos oficiais [dentre eles
o guia alimentar e sua representação gráfica], criam os currículos pensadospraticados nas
escolas. Currículos que abarcam a pluralidade e singularidade de fazeressaberes dos sujeitos
que habitam a escola.
Nilda Alves (2001) delineia os movimentos das pesquisas nosdoscom os cotidianos
propondo que mergulhemos na complexidade do cotidiano com todos os sentidos – com um
“sentimento de mundo”, nos permitindo cheirar, tocar, ouvir, saborear... e mais do que ver
para crer, crer para ver, para perceber e compreender os fazeressaberes dos praticantes
comuns. Propõe, ainda, que nos permitamos “virar de ponta cabeça” para nos despirmos do já
sabido, do que herdamos da modernidade. Nesse mergulho devemos “beber de todas as
113
fontes”, considerando, inclusive e especialmente, aquelas comumente desprezadas,
desqualificadas pelo cientificismo. Nos aconselha a “narrar a vida e literaturizar a ciência”,
aprendendo a narrativizar as práticas, deixando de lado a descrição impessoal praticada pelas
pesquisas afinadas com o paradigma hegemônico. E por fim, deixa claro que o que interessa
às pesquisas nosdoscom os cotidianos são as pessoas, os praticantes porque os vê em ato o
tempo todo.
Paulo Freire (1996), com a boniteza de sua fala e de sua prática, bem como com a
necessária coerência entre elas, nos acompanha desde o início de nossa formação, como
professorespesquisadores, permitindo que aqui estejamos, por mais de duas décadas, ao
acreditarmos, como e com ele, que, dentre outras exigências, ensinar [e também aprender]
exige a consciência do inacabamento, a escuta, o diálogo, o respeito aos saberes dos
educandos e a convicção de que “mudar é difícil, mas é possível” (Freire, 2014a, p. 132).
Estamos a caminhar, com ele, convictos de que “o grande valor da educação está em que, não
podendo tudo, pode muita coisa” (Freire, 2014b, p. 214).
Movidos por esses pensamentos, mergulhamos com todos os sentidos (Alves, 2001),
no nosso cotidiano e na cotidianidade de nossas crianças, esperançosos de que, juntos,
estaríamos a pensar em espaçostempos que garantissem a diversidade, a liberdade, a
criatividade, a experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o
pensaraprenderensinar coletivamente e tudo o mais que for necessário para despertar em
nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática educativa (Freire, 1996).
Nossos encontros potentes com as crianças, centro dessa narrativa, aconteceram em
2014 na oficina “Corpo, Cor e Sabor” no Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa e
Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Rede Municipal de Educação do Rio de
Janeiro. As crianças, que tinham entre 8 e 9 anos de idade, cursavam o 3º ano do ensino
fundamental na Escola Municipal Sérgio Vieira de Melo, vizinha ao Núcleo, localizada no
bairro do Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. Essa oficina, que acontecia duas vezes por
semana, com duração de 1h, tinha como proposta estimular a “curiosidade epistemológica”
(Freire, 1996) e desinvisibilizar (Santos, 2010a) os currículos pensadospraticados (Oliveira,
2012) em alimentação, nutrição e saúde, permitindo conhecer os modos de
pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças praticantes (Certeau, 2012), bem como
suas redes de valores e crenças frente ao tema. Ao longo desse ano letivo, tivemos três turmas
do 3º ano frequentando a oficina, totalizando 94 crianças participantes.
Desfrutando da diversidade de espaços presentes no Núcleo de Arte Leblon, bem
como do seu entorno, no decorrer de nossos encontros foram usadas diferentes estratégias
114
metodológicas a fim de estimular a participação ativa das crianças como: Atividades
corporais; de desenho e pintura; de escrita de textos; de interpretação cênica das atividades
cotidianas; de peças de teatro, de vídeos, de filmes e documentários que abordam o tema
alimentação; de visitas aos mercados e à feira livre do bairro; de oficina sensorial com
alimentos; de jogos de nutrição; de experimentação de receitas de família e de novos sabores;
de leitura de livros; de plantio de mudas e de horta suspensa, dentre outros.
Pretendíamos que essa pluralidade de experiências possibilitasse desconstruir a
persistente afonia e invisibilidade das crianças nas investigações, conferindo a elas o papel de
sujeitos de conhecimento, com voz e ação, atuando, assim, como autores do conhecimento e
da pesquisa ali tecida. As atividades foram pensadas considerando as singularidades, as
potencialidades das crianças e os caminhos que elas nos apontavam entre um encontro e
outro, sempre articuladas pela via do prazer, da solidariedade e da autoria, tendo como fio
condutor a alimentação, nutrição e saúde. Os encontros foram conduzidos por três
professores, incluindo a professorapesquisadora, com formações híbridas e complementares
[teatro, dança, vídeo, educação física e nutrição], que já atuavam em parcerias na oficina
“Corpo, Cor e Sabor” antes mesmo de assumirmos o nosso espaçotempo cotidiano como
lócus da pesquisa.
Percebemos, lendo os cotidianistas e vivenciando as nossas experiênciapráticas, que a
pesquisa nosdoscom o cotidiano requer um processo de (re)invenção permanente do ato de
pesquisar, requerendo, como nos diz Boaventura de Sousa Santos, a pluralidade e transgressão
metodológicas (Santos, 2010b). Requer, sobretudo, “considerar, como formas de
saber/fazer/pensar/sentir/estar no mundo válidas, tudo aquilo que a escola tem sido levada a
negligenciar em nome da primazia do saber científico (...)” (Oliveira, 2008, p.111).
A pesquisa nosdoscom o cotidiano também requer, como nos ensina Nilda Alves
(Alves, 2001) que narremos a vida e literaturizemos a ciência. É preciso, pois, uma outra
escrita, outras “artes de dizer” (Certeau, 2012), a arte de contar histórias. Histórias que, nesse
texto, serão narradas na primeira pessoa do plural porque tecidas cotidiana e coletivamente
por todos os praticantes dessa pesquisa. Esta forma de sentirpensarfazer pesquisa ainda nos
aponta a necessidade de, astuta e taticamente, juntarmos palavras a fim de mostrarmos que os
binarismos e as dicotomias são insuficientes para narrar e entender o cotidiano que habitamos
e estamos a pesquisar. Por isso, o leitor encontrará [encontrou] ao longo da narrativa, junções
de palavras com a intenção de mostrar a indissociabilidade dos mesmos ou para conferir a eles
um outro sentido (Alves e Garcia, 2008).
115
Esclarecemos que todas as crianças participantes da oficina tiveram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido assinado por seus responsáveis legais, após aprovação do
projeto de pesquisa pelo comitê de ética e pesquisa do Hospital Pedro Ernesto – UERJ, sob o
número 642.493, e pelos setores responsáveis vinculados à Secretaria Municipal de Educação
da Cidade do Rio de Janeiro. As crianças também tomaram ciência de que as atividades da
oficina seriam registradas, por escrito [caderno de campo] e por imagem [fotografias e
vídeos], para serem utilizadas em trabalhos científicos, congressos e na tese de doutorado de
sua professorapesquisadora.
Narrando os encontros potentes com as crianças no cotidiano escolar
Ao longo da convivência potente com nossas criançaspraticantes, muitos foram os
seus fazeressaberes que desnaturalizaram nossas práticas e saberes, nossas percepções
preconceituosas sobre o nosso trabalho. Dentre eles, a pluralidade e a singularidade de leituras
das representações gráficas de guias alimentares de diferentes países.
Os guias alimentares, segundo estudiosos (Barbosa et al, 2008), vêm sendo
elaborados, por diferentes países, especialmente a partir da década de 90, como um
importante facilitador da educação alimentar e nutricional ao adaptar conhecimentos
científicos sobre recomendações nutricionais e composição de alimentos à linguagem popular.
Mais de cem países espalhados pelos diferentes continentes, em momentos distintos,
elaboraram guias, mas não necessariamente o expressaram graficamente (FAO/WHO, 2015).
As representações gráficas, em um guia alimentar, teriam o objetivo de auxiliar o público alvo
a identificar com mais facilidade o modo como os alimentos devem ser incluídos na dieta,
expressando os conceitos de variedade, frequência e proporção (Calderón & Morón, 1999). A
diferença na representação gráfica se dá, na maioria das vezes, em função da adequação dela à
cultura de cada país. Atualmente, para citar alguns exemplos, podemos dizer que os Estados
Unidos, Inglaterra e Austrália optaram por um prato; China pelo pagode; Alemanha e Costa
Rica pelo círculo; Canadá pelo arco-íris, Tailândia pelo formato de uma flâmula; Guatemala e
Honduras por uma caçarola; Venezuela por um peão; Portugal pela roda e Aústria, Bélgica,
Espanha, Nigéria e Israel optaram pela pirâmide. O Brasil, por sua vez, utilizou, até 2014,
uma pirâmide alimentar cujo ícone foi adaptado da versão americana publicada em 1992
(Philippi et al, 1999). Enfim, os países, procuram eleger, através de processos diversos e
apropriados às suas culturas, um ícone significativo ao grupo a que se destina a fim de
favorecer a educação alimentar e nutricional.
116
Tendo em vista a presença de ícones de guias, especialmente a pirâmide alimentar, em
livros didáticos, em jogos educativos em nutrição e em embalagens de alguns alimentos,
consideramos interessante apresentar às crianças as representações de diferentes guias com o
objetivo de tornar visível a pluralidade e a singularidade de leituras possíveis diante de
imagens, naturalizadas pelo saberpoder científico monolítico. Nossa “curiosidade
epistemológica” (Freire, 1996) direcionava os nossos sentidos para identificar os conflitos, os
diálogos e os usos que as crianças fariam desses artefatos curriculares, criados, comumente,
com e para especialistas, desconsiderando, na maioria das vezes, o fazer com os seus
praticantes ordinários.
Nesse encontro, antes de apresentarmos as imagens que seriam transmitidas por um
projetor na sala de vídeo do Núcleo de Arte, conversamos com as crianças sobre a ideia de
observarem as figuras como se detetives fossem, ou seja, com aquele olhar investigativo
tentando descobrir o que seus criadores tentavam nos dizer com seus desenhos e cores.
Apresentamos, assim, às crianças: a roda de Portugal; o arco-íris do Canadá; a
pirâmide americana de 1992 (USDA, 1992), a pirâmide alimentar adaptada por Philippi et al
(1999); o prato americano (FAO/WHO, 2015) e o prato do Reino Unido (FAO/WHO, 2015).
Fomos surpreendidos por diversas leituras possíveis frente às imagens pensadas pelos
especialistas no assunto. O que para nós especialistas foi naturalizado como ideia de
proporção e variedade, por exemplo, foi entendido numa lógica totalmente diferente,
colocando em “xeque” todo o discurso semiótico de que a representação gráfica dos guias
possui o potencial de comunicar aquilo que se quer transmitir. Há, portanto, na concretude do
cotidiano escolar, nos usos de seus praticantes, uma pluralidade de leituras daquilo que a
ciência, supostamente, nos impõe como uma única leitura possível.
O guia alimentar português, produzido em parceria com os profissionais da
Universidade do Porto (2004) e intitulado “Guia – Os Alimentos na Roda”, elegeu, como o
título já enuncia, a roda como a sua representação gráfica, a qual tem sido, segundo o texto
oficial, utilizada como instrumento essencial na promoção de hábitos alimentares saudáveis.
A roda é formada por sete grupos de alimentos, em diferentes dimensões, com a finalidade de
transmitir a ideia de proporção e variedade. Após observarem a imagem, começaram por
demanda espontânea, cada um no seu tempo, a falar o que perceberam e entenderam sobre a
roda portuguesa. Fizemos, logo de início, a seguinte pergunta: “Que imagem é essa?”. Muitas,
e diversas, foram as respostas: “Um CD de alimentação”; “Uma roda gigante”; “Uma bola de
futebol.”; “Uma pizza saudável.”; Uma nave espacial” e “Um planeta saudável”. Percebe-se
que todas as nomeações transbordam sentidos e significados que fazem parte do universo
117
infantil. O CD das músicas e dos vídeos; a roda gigante dos parques de diversão; a bola de
futebol que dispensa maiores explicações; a pizza, que ainda sendo uma invenção do outro
lado do hemisfério, está presente nos momentos de celebração de muitas famílias brasileiras.
A nave espacial que, presente em livros e filmes infantis, sempre mexe com o imaginário de
todos nós. O planeta saudável e sustentável é a retórica de noticiários e programas de
televisão, bem como de livros didáticos e programas pedagógicos das escolas. Todos esses
elementos fazem parte da concretude de seus praticantes. A roda, solta nesse guia, não
reverbera significados, pois encontra-se fora da sua funcionalidade. Ali, ela não é a roda da
bicicleta, a roda do carrinho de ferro ou do carrinho de rolimã. Ali, ela é a roda pensada por
especialistas que, apesar de escreverem em seus documentos sobre a importância de permitir
que todas as partes relevantes da comunidade se envolvam com a produção do material
educativo (FAO/WHO, 1996), possivelmente, não consideram relevantes os fazeressaberes
das crianças nos seus cotidianos.
Ainda sobre a “Roda dos Alimentos” ouvimos que os pedaços – como eles
denominam os grupos de alimentos, representariam lugares: o grupo das frutas seria o Rio de
Janeiro; o grupo das leguminosas, que as crianças nomeiam, simplesmente, como o pedaço
dos feijões seria a Paraíba e o grupo do leite representaria a fazenda, a alimentação do campo.
Nesse momento, ouvindo os diferentes saberes sobre a imagem, uma menina pediu a
fala e discordou dos colegas que entendiam dessa maneira. Estabeleceu-se um fórum de
discussão, de negociação e de tessitura de novos saberes. Ela afirmou que não via os lugares
que algumas crianças descreviam, mas que achava que os pedaços maiores [grupos] diziam
respeito ao que as pessoas mais “comem hoje em dia e os pedaços menores é o que menos se
come, mas o que deveria se comer mais por ser o mais saudável”.
Ao ouvirmos as considerações da estudante, nós professorespesquisadores, dirigimo-
nos, novamente, para a imagem a fim de fazer a leitura trazida para a discussão. Observamos
que os grupos com dimensões maiores, ou seja, aqueles que de fato, segundo o guia
português, deveriam ser consumidos em maior quantidade como os cereais, hortaliças e frutas,
eram, pelo ponto de vista da estudante, os mais consumidos, mas, os mais saudáveis, que para
ela era os grupos do feijão, do leite e o das carnes, precisariam ter o seu consumo aumentado.
Essa lógica de pensar o consumo de alimentos saudáveis desta criança, e de tantas
outras que com ela concordaram, é construída culturalmente num país onde não pode, ou ao
menos não deveria, faltar o feijão com arroz e, se possível for, a carne, na mesa de cada dia.
Quanto ao leite, como grupo que também deveria ser consumido em maior quantidade,
ouvimos a explicação de que as crianças precisam tomar leite todo dia. Quando perguntamos
118
de onde vieram tais afirmativas, nos respondiam que foram suas mães, avós ou “aquele
programa de televisão”. Mais uma vez, nos deparamos com outras leituras possíveis que
deslocam os nossos pensaresfazeressaberes sobre esses artefatos no campo da alimentação e
nutrição.
Em um momento seguinte, apresentamos a imagem de uma roda de alimentos
espanhola, que apresentava outra coloração como pano de fundo dos diferentes grupos: frutas
e hortaliças [verde]; cereais e óleos [amarelo] e carnes e leguminosas, bem como leite e
derivados [vermelho]. Pedimos, então, mais uma vez, para que as crianças observassem a
imagem, procurando identificar as diferenças e semelhanças entre esta e a outra que viram
anteriormente. Uma das meninas levantou-se; dirigiu-se até a tela e discursou sobre a sua
descoberta:
Aqui eles colocaram o verde pra mostrar que os alimentos mais saudáveis são as
frutas e os legumes; o amarelo nesse daqui [cereais] pra mostrar que são mais ou
menos saudáveis e vermelho no feijão, na carne e no leite pra mostrarem que são os
menos saudáveis. Aqueles que podemos comer muito pouco.
Em seguida, um menino argumentou:
Esquisito isso. O pão que está no amarelo a gente pode comer mais que o peixe? O
peixe é que devemos comer sempre. Pão engorda e peixe faz bem pra memória.
Minha vó falou isso. Por que ele está no vermelho?.
Essa discussão mostra, mais uma vez, como as lógicas operatórias são múltiplas e
tecidas por diferentes redes de saberes culturais, midiáticos, familiares e tantos outros. O
semáforo, tão presente na cidade do Rio de Janeiro, passa a fazer parte da leitura possível. As
crianças visualizam o movimento de alimentar-se com os diferentes grupos de alimentos,
como sendo o tráfego da área urbana: verde – siga – coma à vontade; amarelo - atenção –
coma com moderação [mais ou menos]; vermelho – pare – coma muito pouco. Esta leitura,
ainda que seja intencional por parte dos indivíduos que conceberam a imagem, tensiona e faz
emergir diálogos outros com e sobre a imagem.
No encontro subsequente, trouxemos a representação gráfica do Canadá – o arco-íris.
Esse ícone, diferentemente da roda que possibilitou uma infinidade de interpretações, não
suscitou dúvidas, pois todos o reconheceram como o arco-íris. No arco-íris as quatro cores
ficam em evidência, uma vez que constituem a própria imagem. Nessa direção, os quatro
grupos de alimentos, na interpretação das crianças, seguem a lógica das cores. Para as
crianças, o verde mostra os alimentos saudáveis [frutas e hortaliças]; o amarelo é o café da
manhã porque tem o pão [grupo dos cereais]; o azul mostra o leite e outras bebidas [leite e
119
derivados], e o vermelho, por mostrar as carnes, o feijão e o ovo, representaria a “comida”.
Quando perguntamos “Como assim a comida?” as crianças nos responderam: “É o que a
gente come no almoço e no jantar”. Entra em cena mais uma discussão: “O que se come,
então, no café da manhã, por exemplo, não é comida?”. Para muitos, comida é aquilo que dá
“sustância”, a qual, segundo as crianças, obtemos, especialmente, nas grandes refeições –
arroz, feijão e carne. Na leitura dessa representação gráfica, também se faz presente a lógica
do semáforo, ou seja, a faixa verde do arco-íris, onde estão os alimentos considerados
saudáveis, indica que podemos comer livremente. Surgem, como podemos ver, as associações
entre os grupos e as refeições diárias em função dos alimentos que ali se encontram.
Seguindo o propósito de apresentar outras formas de representação gráfica de guias
alimentares, trouxemos para a discussão um dos ícones mais difundidos – a pirâmide
alimentar. Esta assumiu várias versões, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países
da Europa, ao longo dos últimos anos. Optamos, portanto, por apresentar duas versões: a
versão americana de 1992 (USDA, 1992) e a pirâmide brasileira, adaptada a partir da
primeira, por Philippi et al (1999).
A pirâmide alimentar americana, tal como o arco-íris, não causou dúvidas. As crianças
estavam, de fato, a observar uma pirâmide. A pirâmide americana apresentava seis grupos
[cereais; frutas; hortaliças; carnes, ovos e leguminosas; leite e derivados; óleos e açúcares] e a
brasileira, num processo de adaptação, desmembrava o grupo das carnes, ovos e leguminosas,
com o argumento, mais do que pertinente, de que o feijão, por ser um alimento presente na
alimentação básica do brasileiro e por não possuir o mesmo valor nutritivo que as carnes e os
ovos, deveria ser colocado em um grupo específico (Philippi et al, 1999). Cria-se, portanto, o
grupo das leguminosas que já se fazia presente, por exemplo, na roda de Portugal. Também,
diferentemente da roda, mas seguindo a lógica já iniciada na leitura do arco-íris, a maioria das
crianças identifica os grupos como se fossem as diferentes refeições do dia. Uma criança fez
questão de dirigir-se até a tela, onde projetávamos as imagens, para apontar cada grupo de
alimentos fazendo menção à refeição correspondente. O grupo dos cereais, por ter o pão era o
café da manhã; o grupo das carnes representava o almoço e o grupo do leite e derivados, por
exemplo, o lanche. A grande maioria concordou e quando um ou outro fazia uma nova
observação era apenas no sentido de dizer que aquele determinado grupo, por exemplo,
representava o lanche da tarde e não o café da manhã. É interessante notar que, distintamente
da leitura dos especialistas, as crianças visualizam os conceitos de hierarquias, proporções,
variedades e frequências a partir de lógicas operatórias outras tecidas por diferentes fios de
pensaresfazeressaberes. Fios que se entrelaçam muito mais pela sua funcionalidade cotidiana
120
do que pelo monolitismo acadêmico e que já se faziam presentes nas redes de cada praticante.
Redes, que nesse processo dialógico, “vão ganhando um sentido próprio, não necessariamente
aquele que o transmissor da informação pressupõe” (Oliveira, 2012, p. 69).
Vale ressaltar que Philippi et al (1999), quando tornaram pública a “Pirâmide
Alimentar Adaptada”, justificaram a utilização da mesma representação gráfica por ter sido a
sua imagem aprovada pela população americana após a testagem de várias outras formas.
Ficamos a pensar se não seria esse mais um “epistemicídio” (Santos, 2007) cometido pelo
saberpoder hegemônico norte-americano tão presente no campo da nutrição – e em outros –
no nosso país, na medida em que a população brasileira, consumidora provável do guia [e de
todo material dele derivado], tem seus pensaresfazeressaberes desqualificados,
subalternizados, menosprezados e desperdiçados na construção da sua representação gráfica.
Estaríamos, como tantas outras vezes, a “engolir” no Sul o que “escorrega” do Norte, sem, ao
menos, dialogar com o contexto local? (Freire, 2011).
Apresentamos também, em outros encontros, a imagem do prato como ícone – a nova
representação gráfica americana e o prato do Reino Unido (FAO/WHO, 2015). Ambos, pela
presença do garfo, foram imediatamente nomeados como o prato. Inicialmente, a leitura foi a
mais simples e consensual possível: “eles querem dizer pra gente comer tudo isso. Comer
frutas, verduras, pão, macarrão, leite, chocolate, refrigerante, carne, ovo...”. Até que de
repente uma criança se levanta e pergunta: “Mas é pra gente comer isso tudo de uma vez só?”.
Outra, imediatamente, responde: “Não. Tem coisa que a gente come no café da manhã, outras
a gente come no almoço”. Em seguida, uma criança diz: “Eles deveriam fazer um prato pra
cada refeição. Um prato pro almoço, um prato pro jantar, um prato pro café da manhã (...).
Assim ia ser melhor pra gente entender.” Uma menina levanta e, passando as mãos pela
parede onde a imagem estava sendo projetada, fala: “Eles poderiam fazer um relógio grande e
colocar os pratos de cada refeição na hora certa!”. Muitos acharam uma ótima ideia. Nesse
momento, quando muitos já haviam se colocado e tantos outros já estavam a brincar com as
sombras do seu corpo sobre a projeção da imagem, uma criança se pronuncia: “Podia usar o
corpo da gente, colocando os alimentos na cabeça, na barriga, nos braços, nas pernas (...), não
podia?”. Começaram, assim, a posicionar as diferentes partes do corpo à frente das imagens
[alimentos] que gostariam que ali se alocassem.
Aproveitando os indícios, as pistas (Ginzburg, 1989) que essas crianças potentes iam
nos deixando a cada encontro, pensávamos sobre a próxima atividade, a próxima conversa, o
próximo pensaraprender com elas. Nesse sentido, no encontro seguinte, pedimos para que as
crianças se transformassem em criadores dessas imagens, ou seja, seriam elas, agora, os
121
cientistas que, em seus laboratórios, construiriam as representações gráficas a serem utilizadas
por elas. Distribuímos, na sala de artes, papéis, lápis, borrachas e réguas, a fim de que dessem
início às suas construções individuais ou coletivas. Surgiram desenhos diversos, mas sempre
com o fio condutor do cotidiano e do brincar. Eram ícones em forma de escorrega, toboágua,
geladeira, prato, relógio, caminhão e semáforo. Uma menina iniciou o desenho de uma
criança, cujo corpo estava a ser preenchido pelos alimentos. Esses desenhos, essas
representações distintas da pirâmide, do arco-íris, da roda e de tantos outros que não fazem
sentido para os nossos praticantes, nos fazem crer na potência dos pensaresfazeressaberes
dessas crianças, historicamente, marginalizados nas pesquisas.
Paralelamente, motivados por uma turma que chegava ao Núcleo trazendo o lanche do
recreio que viria logo a seguir, pedimos às crianças que trouxessem de suas casas as
embalagens de todos os alimentos processados [industrializados] que consumiam. Mais uma
vez fomos surpreendidos com a quantidade e variedade de embalagens que chegavam a cada
aula. Motivados pela discussão e pelo engajamento do outro, a quantidade foi crescendo
progressivamente.
Reunimos, assim, todas as embalagens e pedimos para que eles fossem separando em
grupos, como fazem na aula de matemática, por exemplo, quando reúnem diferentes objetos
com a mesma forma geométrica. Percebemos, logo no início, a dificuldade de agruparem a
grande diversidade de alimentos. As crianças agruparam, por exemplo, todas as bebidas,
independentemente de ser suco de fruta, água, mate ou refrigerante. Agruparam também todas
as embalagens de arroz, açúcar, sal, farinha de trigo e de fubá. Achocolatados, café em pó,
café solúvel, farinha láctea, ou seja, tudo que poderia ser adicionado no leite também foi
alocado no mesmo grupo. Suas lógicas operatórias eram bem diferentes daquelas que nos
foram colocadas, naturalizadas pela ciência da nutrição, nos fazendo pensar sobre a
possibilidade de arranjos outros, sem que consideremos apenas as afinidades nutricionais. As
crianças, mais uma vez, estavam a agrupar as embalagens seguindo a lógica de sua
funcionalidade na concretude de seu cotidiano.
As criançaspraticantes nos surpreenderam com a pluralização das possibilidades de se
interpretar artefatos curriculares que vêm sendo, ao longo dos anos, naturalizados na e pela
construção do campo da alimentação, nutrição e saúde. A cada representação gráfica
apresentada, elas nos revelaram múltiplas invenções, subversões e transgressões em suas
maneiras de fazer e pensar, ainda que muitos possam supor que no cotidiano escolar só exista
repetição, reprodução e consumo passivo daquilo que é supostamente instituído pelas
autoridades científicas e governamentais.
122
Reflexões finais
Nessa experiência, aqui entendida como aquilo que nos passa, que nos acontece, que
nos toca (Larrosa, 2002), fomos tocados pela potência da pesquisa nosdoscom os cotidianos e
atravessados pelos pensaresfazeressaberes dessas crianças que deslocaram nossas certezas e
nos fizeram (re) pensar a nossa prática educativa e o nosso modo de pensarfazer pesquisa. As
crianças praticantes nos revelaram, a cada instante, as múltiplas invenções, subversões e
transgressões possíveis nocom o cotidiano escolar, ainda que muitos possam supor que nesse
espaçotempo só exista repetição, reprodução, mesmidade e consumo passivo daquilo que é
supostamente instituído pelas autoridades científicas e governamentais.
Elas nos fizeram crer que “nada deve parecer natural e impossível de mudar”, quando
com as suas “artes de fazer” nos surpreenderam com a pluralização das possibilidades de se
interpretar artefatos curriculares que vêm sendo, ao longo dos anos, naturalizados na e pela
construção do campo da alimentação, nutrição e saúde. Os guias e suas expressões gráficas,
por não terem sido tecidos com, não vêm produzindo as curiosidades epistemológicas e os
diálogos tão necessários para a experiência de aprenderensinar.
Estamos convictos, após vivermos o cotidiano com essas crianças, de que os
conhecimentos e instrumentos, no campo da alimentação, nutrição e saúde, precisam ser
tecidos com e não para ou sobre elas. Tecidos a partir de seus pensaresfazeressaberes que,
sendo o ponto de partida, não devem ser o ponto de chegada. E, entre um ponto e outro,
precisamos caminhar atentos para não cairmos nas armadilhas da modernidade; precisamos
exigir, de nós, a coerência entre o discurso e a prática; precisamos, sobretudo, saber para
quem, por que, contra quem e a favor de quem pesquisamos e produzimos, cientes de que as
nossas escolhas presentes serão responsáveis pela construção dos futuros possíveis. Futuros
que, criticamente esperançosos, desejamos que sejam mais cheios de cor, cheiro e sabor.
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de elaboração do artigo.
123
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125
APÊNDICE C - Artigo a ser submetido à Revista Interface
Jogos de nutrição e a inventividade das criançaspraticantes
Maria da Glória Pinheiro Rezende
Nutricionista e Professora de Educação Física. Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço: Praça Nossa Senhora Auxiliadora, s/nº, Leblon, CEP 22441-050, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] Inês Barbosa de Oliveira
Pedagoga. Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] Eliane de Abreu Soares
Nutricionista. Professora Associada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, 12ºandar, Bloco D, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]
127
Jogos de Nutrição e a inventividade das criançaspraticantes
Resumo
Neste artigo temos como objetivo desinvisibilizar as “artes de fazer das
criançaspraticantes em uma experiênciaprática do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e
Sabor”, no Núcleo de Arte Leblon da Secretaria Municipal de Educação do Rio de
Janeiro. Essa oficina tem como proposta desinvisibilizar os currículos
pensadospraticados, bem como as redes de saberes, fazeres, valores e crenças em
alimentação, nutrição e saúde das criançaspraticantes do 3º ano do ensino
fundamental. Estamos convencidos de que, ao subverterem e ressignificarem os
artefatos oficiais, os praticantes produzem os currículos pensadospraticados nos
cotidianos das escolas. Esperamos que ao desinvisibilizarmos esses fazeressaberes
possamos instigar o exercício da ecologia de saberes na elaboração desses
instrumentos e nas práticas educativas dentrofora das escolas. Nesse percurso
metodológico, somos agenciados pelo pensamento potente de Boaventura de Sousa
Santos, Foucault, Paulo Freire, Certeau, Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira.
Palavras-chave: currículos pensadospraticados; crianças; cotidiano; alimentação.
128
Nutrition Games and inventiveness of practitioners/children
Abstract
In this article we aim to become visible the "arts of making” from the
practitioners/children in a practical/experience of the day by day of the workshop
"Body, Color and Flavor" in Leblon Art Center of the Municipal Department of
Education of Rio de Janeiro. This workshop has the purpose to make visible the
thought/performed curriculum, as well as the grid of knowledge, doings, values and
beliefs in food, nutrition and health of practitioners/children of the 3rd grade of
elementary school. We are convinced that by subverting and resignify the official
artifacts, the practitioners produce the thought/performed curriculum in the school
routine. We hope that as we make visible these doings/knowledge, we can instigate
the exercise of ecology knowledge in the development of these instruments and
educational practices in the inside/outside of schools. In this methodological course,
we are touted by powerful thoughts of Boaventura de Sousa Santos, Foucault, Paulo
Freire, Certeau, Nilda Alves and Inês Barbosa de Oliveira.
Keywords: thought/performed curriculum; children; everyday life; food.
129
Los Juegos de Nutrición y la Creatividad de los Niños-Practicantes Resumem En este artículo nos proponemos a hacer visible las “artes de hacer” de los niños-practicantes en una experiencia-practica del cotidiano del taller “Cuerpo, Color y Sabor”, del Núcleo de Arte Leblon, de la Secretaria Municipal de Educación de la ciudad de Rio de Janeiro. Dicho taller tiene como propuesta hacer visible los currículos pensados-practicados, así como las redes de saberes, haceres, valores y creencias en alimentación, nutrición y salud de los niños-practicantes del tercer grado de la enseñanza fundamental. Estamos convencidos de que, al subvertir y resignificar los artefactos oficiales, los practicantes producen currículos pensados-practicados en el cotidiano de las escuelas. Creemos, por lo tanto, que al hacer visible estos haceres y saberes podemos estimular un ejercicio de ecología de saberes en la elaboración de estos instrumentos y en las prácticas educativas dentro-afuera de las escuelas. En este recorrido metodológico, somos agenciados por el potente pensamiento de Boaventura de Sousa Santos, Michel Foucault, Paulo Freire, Michel de Certeau, Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira. Palabras-clave: Currículos Pensados-Practicados; Niños; Cotidiano; Alimentación.
130
Reflexões iniciais
Nesse artigo temos como objetivo desinvisibilizar as “artes de fazer” – as
astúcias, as subversões, os usos e as inventividades – das criançaspraticantes em
uma experiênciaprática do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor” no Núcleo de
Arte Leblon – Unidade de Extensão Educacional da Secretaria Municipal de
Educação da rede de ensino da cidade do Rio de Janeiro que exerce o papel de
Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte.
Motivados por nossas afinidades e por nossas formações híbridas e
complementares [dança, teatro, vídeo, educação física, nutrição] sonhamos juntos
um sonho possível, pois, como nos diz Paulo Freire, é “impossível existir sem
sonhos”1, especialmente no momento político que vivemos a educação no Rio de
Janeiro. A nossa resposta cotidiana ao descaso com a educação, aconteceria,
dentrofora de sala de aula, convictos de que a mudança é possível, ainda que difícil.
Imbuídos de uma criticidade esperançosa2, pensamos em uma oficina que tivesse
como proposta estimular a “curiosidade epistemológica”2 e desinvisibilizar3 os
currículos pensadospraticados4 em alimentação, nutrição e saúde, permitindo
conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças
praticantes5, bem como suas redes de valores e crenças frente ao tema.
Precisamos dizer que a nossa inflexão ao cotidiano não se deu ao acaso.
Fomos capturados por Certeau e suas redes na concretude do nosso cotidiano,
quando nós professores em nossos momentos de fuga, nos reunimos, subvertendo
a ordem, para tomar um café, prosear e fazer ciência (por que não?). Esse encontro
potente, com um amigoprofessor, colocou em nossas mãos duas leituras
agenciadoras: “A invenção do cotidiano” de Michel de Certeau5 e “Pesquisa no/do
cotidiano das escolas – sobre rede de saberes, organizado por Oliveira & Alves6. E
como de um fio puxamos outros, vieram entrelaçados Certeau, Nilda Alves, Ferraço,
Inês Barbosa de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos, Foucault...Se muitos
inquietaram nossas verdades, esses nos viraram de ponta a cabeça.
Encontramo-nos encantados pela pesquisa nosdoscom os cotidianos que, como
nos diz Alves7, nos vira de ponta a cabeça, nos faz criar uma nova organização de
pensamento, invertendo todo o processo aprendido, exigindo múltiplos caminhos. E
nesses caminhos não cabe mais o pensamento linear, disciplinarizado e hierarquizado
que aprisiona nossos fazeressaberes nos currículos oficiais. Não cabe mais seguir à
131
risca os caminhos apriorísticos e os modos de ensinar e aprender ainda tão valorizados
no campo da educação. Precisamos, sobretudo, percorrer caminhos, muitas vezes,
impossíveis de serem antecipados e que só se revelam durante a caminhada. Os
cotidianistas, inspirados por Certeau5, nos ensinam, nos incitam, a conviver com o
imprevisível, com o inesperado, com as ações concretas, com as artes de fazer – táticas
e astúcias – dos praticantes do cotidiano.
A pesquisa nosdoscom o cotidiano requer que, ao narrarmos a vida e
literaturizarmos a ciência7, astuta e taticamente, juntemos palavras a fim de mostrarmos
que os binarismos e as dicotomias são insuficientes para narrar e entender o cotidiano
que habitamos e estamos a pesquisar. As junções têm, portanto, a intenção de mostrar a
indissociabilidade das palavras ou para conferir a elas um outro sentido8.
Nesse sentirpensarfazer diferentemente, instaurado por Certeau e suas redes,
estamos, desde então, subvertendo a lógica que sustenta os espaçostempos da escola.
Estamos a caminhar criando espaçostempos outros não previstos na lógica escolar.
Estamos a pensar em espaçostempos que garantam a diversidade, a liberdade, a
criatividade, a experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a
esperança, o aprenderensinar coletivamente e tudo o mais que for necessário para
despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática
educativa2. O ideário neoliberal e a fragmentação do conhecimento que herdamos da
modernidade nos obrigam a inventar o cotidiano, a alterar as propostas curriculares, a
criar caminhos próprios, a “burlar” as “regras oficiais”. São as táticas do cotidiano nos
permitindo estabelecer pontos de contato, conexões e encontros potentes.
As pesquisas nosdoscom os cotidianos, como nos sinaliza Oliveira4 têm a
convicção epistemológica e política de que os currículos enquanto criações cotidianas
dos praticantespensantes das escolas podem contribuir para a tessitura da emancipação
social defendida por Boaventura de Sousa Santos3. Ao desinvisibilizarmos os currículos
pensadospraticados no nosso cotidiano por aqueles que o praticam [alunos e
professores] estamos, portanto, trazendo para a cena o que se (re)cria e (re)inventa,
apesar da insistência dos governantes e “autoridades” burocráticas em manter o
protagonismo na monocultura hegemônica e em tornar invisível o que de pluralsingular
se faz no cotidiano escolar.
Somos também acionados por Boaventura de Sousa Santos9,3,10,11 a refletir sobre
os diferentes campos de conhecimento, levantando algumas questões: O quanto o
campo da educação [e outros também] têm de colonizado e de colonizador? O que foi/é
132
deixado de fora pelos currículos que nos formaram/formam? Como podemos,
cotidianamente, exercer a ecologia de saberes? Como podemos “aprender com o Sul
usando uma epistemologia do Sul”? Como pensarfazer uma “ciência que seja prudente
para uma vida decente”?
Desenhamos, essa oficina, esperançosos de que nossos conhecimentos seriam
construídos coletivamente se mergulhássemos com todos os sentidos na cotidianidade
de nossas crianças. Desejávamos um cotidiano com mais cor, sabor e cheiro, um
cotidiano mais solto, mais cheio de alegria, onde os praticantes, através de suas “artes
de fazer”5, ao entrarem em contato com os currículos oficiais e seus artefatos
recriassem, ressignificassem e subvertessem seus usos, desnaturalizando saberes,
fazeres e poderes hegemônicos.
A experiênciaprática, centro dessa narrativa, aconteceu em 2014 com as
criançaspraticantes de três turmas do 3º ano do ensino fundamental da Escola
Municipal Sérgio Vieira de Melo, vizinha ao Núcleo de Arte, localizada no bairro do
Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, que frequentavam a oficina, no turno escolar,
duas vezes por semana, com duração de 1h.
Esclarecemos que todas as crianças participantes da oficina tiveram o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido assinado por seus responsáveis legais, após
a aprovação do projeto de pesquisa pelo comitê de ética e pesquisa do Hospital
Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob o
número 642.493. As crianças também tomaram ciência de que as atividades seriam
registradas, por escrito e por imagem, para serem utilizadas em trabalhos científicos.
Lance a lance: os usos astuciosos das criançaspraticantes
Acolhendo as ideias de Certeau5, acreditamos ser fundamental observar o
que as crianças fazem dos produtos [filmes, livros, jogos, atividades, currículos...]
impostos no seu dia a dia. Perceber suas táticas, subversões e linhas de fuga,
especialmente frente às regras impostas pelos jogos com fins educativos, nos faz
pensar nas inconsistências entre aquilo que os seus idealizadores articulam e aquilo
que é aceito5.
Essas inconsistências foram observadas na experimentação de três jogos
adquiridos com uma editora especializada em produtos direcionados aos
nutricionistas. “De olho nos alimentos”, “Beto e Bia: a corrida da boa alimentação e
133
dos hábitos saudáveis” e “Come-Bem”, cada um com suas particularidades,
deixaram brechas para que as crianças pudessem colocar em prática suas “artes de
fazer”5.
Precisamos esclarecer que não tínhamos como objetivo descrever os jogos e
suas regras em todas as suas minúcias, pois o que nos interessava, de fato, era
perceber as burlas, as subversões, as táticas utilizadas pelas criançaspraticantes
para jogarem à sua maneira.
Mergulhamos, portanto, com todos os sentidos7 à caça das “artes de fazer”
das criançaspraticantes5, tentando capturar, para tornar visível3, o que de novo elas
inseriam, reinventavam, criavam sobre o produto que lhes fora imposto.
Ao longo de dois encontros, as crianças se dividiram em grupos para
experimentarem os três jogos que havíamos comprado, especialmente, para a
oficina. Cada jogo apresentava uma dinâmica diferente, gerando interesses e
tempos distintos. Alguns grupos terminavam e voltavam a jogar, enquanto outros
ainda nem tinham lido todas as regras. Outros, por já terem jogado mais de três
vezes, deslocavam-se até o grupo ao lado para “bisbilhotar” o jogo do outro. E assim
íamos, juntos, caminhando, experimentando, aprendendoensinando e nos
surpreendendo.
Era interessante observar como eles negociavam os agrupamentos e as
funções de cada um no jogo: quem leria as regras; quem seria o menino “X” ou a
menina “Y”; quem seria o responsável pelo dinheiro; quem começaria o jogo; quem
jogaria com quem por ter excedido o número de participantes. Enfim, inúmeras
possibilidades de negociações que nem sempre chegavam a um consenso.
Crianças que se recusavam a assumir determinadas funções, também fizeram parte
do cenário de um “jogo” que aconteceu no tabuleiro e fora dele.
“De olho nos alimentos”, um jogo destinado a crianças maiores de seis anos
de idade, tem a intenção de apresentar às crianças os diferentes alimentos. Ele é
composto por um tabuleiro e por dezenas de mini círculos, com imagens de
alimentos dos grupos dos cereais e derivados; das frutas; dos legumes, verduras e
tubérculos; das leguminosas; do leite e derivados; dos doces; dos ovos, peixes,
carne e derivados, outros alimentos e preparações. Cada jogador recebe
quantidades iguais de mini círculos, que deverão ser alocados sobre a mesma
134
imagem do tabuleiro. Ganha o jogo quem encontrar os alimentos espalhados antes
dos seus adversários.
À primeira vista, parece a todos, muito simples. Basta achar a figura igual e
pronto. E é isso mesmo. Interessante, era ouvi-las perguntando [depois de já terem
jogado duas, três vezes, dada a agilidade do jogo], umas às outras, que alimento era
aquele. Muitas não sabiam responder. E para sermos sinceros, nós também não.
Mangas que pareciam pêssegos [ou pêssegos que pareciam mangas]; alfaces que
eram repolhos; laranjas que lembravam tangerinas... Até chegarmos a um consenso
era uma diversão. Era possível, ainda, ouvir sons ou vê-las fazendo caretas quando
um alimento não era do seu agrado, tendo sido experimentado ou não.
Se o jogo, em si, era bem simples, as dúvidas, geradas por algumas imagens
que se distanciavam da realidade, abriram brechas para que as criançaspraticantes
criassem outro modo de usá-lo. Uma “maneira de utilizar”5 que permitiu a elas
conversarem sobre os alimentos, reconhecendo as suas preferências e aversões,
bem como a de seus colegas, as quais iam se diferenciando em função de suas
redes de saberes, de práticas, de valores, crenças, afetos e subjetividades.
“Beto e Bia”, um jogo desenvolvido por nutricionistas, tem o intuito de
incentivar a boa alimentação e os hábitos saudáveis em crianças acima dos seis
anos de idade. É composto por um tabuleiro, um dado e quatro pinos de “Bia” e
“Beto”, com os quais os participantes devem se deslocar da saída até a chegada, ou
seja, da casa 1 até a 90. No meio da corrida, os participantes podem cair em vinte e
seis casas [casas amarelas] que contêm dicas de uma boa alimentação e de um
estilo de vida saudável. As dicas contornadas em azul parabenizam o jogador e
pedem para que ele avance para as casas à frente. As dicas contornadas em
vermelho criticam a atitude do jogador e o fazem andar para trás. Lê as dicas quem
para, ao acaso, em uma dessas casas, caso contrário o jogador chega ao fim sem
ter lido dica alguma. Na chegada, contudo, lê-se: “Parabéns! Você é o vencedor!
Pratique tudo o que aprendeu! Pratique uma vida saudável!”.
No início do jogo, muitas crianças começaram a ler as dicas quando paravam
nas casas amarelas, mas, na medida em que o jogo prosseguia, passaram a burlar
as regras, fazendo uso de táticas desviacionistas5. O jogo, como o próprio nome
propõe, é uma corrida. Entre a saída e a chegada, a regra, ainda que não descrita
135
no jogo, não deixa dúvidas: ao parar nas casas leiam as dicas e façam o que se
pede. Algumas dicas:
Você evita comer doces porque em excesso eles fazem mal à saúde e ainda podem deixá-lo (a) gordinho (a). Muito bem! Ande 4 casas ou Você adora comer lanches de ‘cachorro quente’ com refrigerante. Cuidado, você pode ficar obeso e ainda doente. Infelizmente terá que voltar para casa 35.
Todos sabiam, a princípio, o que deveriam fazer, mas as criançaspraticantes,
astuciosamente, liam apenas a frase final da dica nutricional, que indicava o número
da casa para onde deveriam se deslocar [andar ou voltar determinado número de
casas], ignorando toda a informação formulada com a intenção de ensinar sobre
alimentação e saúde. Elas burlaram a regra do jogo a fim de que pudessem atingir a
linha de chegada mais rapidamente. Deslocaram-se de um consumo supostamente
passivo para uma criação singular, nascida da prática, do desvio no uso dos
produtos impostos12 que colocam em dúvida a pretendida função primeira do
produto.
Foi possível perceber que há “maneiras de fazer” (caminhar, ler, produzir,
falar, cozinhar, comer, jogar...), “maneiras de utilizar” que se tecem em redes de
ações concretas, que não são mera repetição de uma ordem previamente
estabelecida do alto e de longe. As criançaspraticantes, ao inserirem criatividade,
modificam as regras e o poder de dominação a que estariam, supostamente,
submetidas.
“Come-bem”, também concebido por nutricionistas, tinha o objetivo de ensinar
às crianças o valor nutricional dos alimentos e a importância de uma boa
alimentação para a saúde. Uma releitura, digamos assim, do conhecido “Banco
Imobiliário”. “Come-bem”, pelo colorido de sua caixa, foi aquele que despertou mais
euforia nas turmas quando apresentamos os jogos no primeiro encontro. Assim que
ele foi colocado sobre a mesa do grupo, as crianças abriram a caixa e começaram a
mexer em todos os componentes do jogo: um tabuleiro; quatro pirâmides
alimentares e bolinhas avulsas vermelhas para representar os alimentos; pinos
coloridos para a movimentação; um dado; dinheiros de papel para comprar
alimentos; fichas de dicas da nutricionista e fichas de perguntas e respostas. No
verso da caixa, as regras. Diante de tanto alvoroço, as regras ficaram esquecidas e
os participantes já se organizavam para começar, quando uma menina mostra a
136
todos o verso da caixa com as regras escritas. Nisso um menino diz: “É muita coisa
pra ler. Dá pra jogar sem ler as regras!”. Alguns concordaram, outros não, mas foram
tentando seguir adiante. Contudo, as dúvidas foram surgindo e resolveram recorrer
às regras. Escolheram uma criança que, segundo elas, lia melhor e deram início à
leitura. Ficamos ali, próximos, para tirar dúvidas se as crianças precisassem. Liam;
conversavam; brigavam, reliam e, assim, foram tentando entender as regras, bem
mais complexas que as dos dois outros jogos mencionados.
Negociar as funções foi a etapa de maior conflito: quem iria ficar com a
pirâmide; quem mexeria com o dinheiro; quem leria as dicas da nutricionista; quem
faria as perguntas; quem jogaria os dados. O conflito permitiu que se inventassem
outras funções: ficar com a caixa na mão para ler as regras [para qualquer dúvida
que aparecesse]; ser o “banco” [a mais concorrida] e formar algumas duplas
passaram a fazer parte do jogo.
Depois de tudo, aparentemente, combinado, e de peças e dinheiros
distribuídos, as crianças deram início ao “Come-bem”. Ao longo do jogo, os
participantes podiam parar nas “casas de alimentos”, onde eram descritas
informações nutricionais e o preço de venda do referido alimento.
Berinjela: Hortaliça. Boa fonte de sais minerais. R$ 3,00” ou “Bolo e pão: Alimento rico em carboidrato. Fornece energia. R$ 2,00” ou “Alface: rica em fibras, vitamina A, C e do complexo B. R$ 2,00” ou “Batata frita: Tem alto valor calórico podendo levar à obesidade. R$ 3,50.
As crianças, em sua maioria, ao pararem nessas casas passaram a
identificar, apenas, qual era o alimento e o preço referente, não mostrando mais
interesse em ler a informação nutricional. Quando liam, contudo, era uma leitura
rápida, sem nenhum questionamento e sem pausas para refletir sobre o conteúdo.
Ficamos pensando, no momento do jogo, se todos sabiam o que eram sais minerais,
calorias, carboidratos, fibras, complexo B e todos as outras palavras que estavam
presentes nos textos. E se não sabiam, por que não perguntaram? Será que não
leram? Leram sem prestar atenção? Leram, mas não entenderam? E se não
entenderam, fez alguma diferença para o jogo que elas estavam jogando com suas
“artes de fazer”? No percurso dos pinos, ao jogar os dados, as crianças também
podiam parar na “casa da nutricionista”. Ao cair nesta casa, o jogador deveria pegar
a carta da nutricionista, ler em voz alta e fazer o que se pedia. A nutricionista poderia
dar os “parabéns” ou chamar a “atenção”.
137
Parabéns! Você conseguiu controlar seu colesterol sanguíneo e não gastará mais com remédios. Receba do banco a quantia de R$ 7,00 ou Atenção. Todos os jogadores estão gordinhos. E você, como um conhecedor de nutrição, retirará de suas pirâmides a batata e devolverá ao banco.
É possível perceber que, na leitura das cartas da nutricionista, assim como na
leitura sobre a informação nutricional do alimento, as crianças estavam muito mais
interessadas em saber para onde iam, e quanto gastariam para comprar os
alimentos, do que em aprenderensinar sobre alimentação e saúde. O dinheiro,
desde o início, foi a grande atração do jogo. Inclusive, como comentamos
anteriormente, ser o “banco” foi inserção de criatividade, astúcia e “arte de fazer” das
criançaspraticantes para que todos pudessem experimentar o jogo,
independentemente do limite máximo de participantes.
Burlar as regras, usar de táticas silenciosas, inventar maneiras outras de jogar
o jogo, são astúcias das criançaspraticantes que não se reconheciam nas
estratégias educativas prescritivas e normativas dos jogos “Come-Bem” e “Beto-Bia”.
Era possível ouvi-las falando, sozinhas ou comentando com a criança ao seu lado,
que aquelas atitudes mencionadas nas dicas nutricionais ou nas cartas da
nutricionista não eram por elas executadas. Nesse sentido, o não reconhecimento
de si e a recusa ao governamento13 podem ter potencializado as práticas inventivas
e as táticas de resistência das criançaspraticantes. As crianças exerceram,
astuciosamente, a “arte do fraco”5 diante das brechas e fissuras do saberpoder.
Reflexões finais
Muitos são os indícios14 deixados pelas criançaspraticantes ao
experimentarem os jogos educativos em nutrição. Pistas que poderiam ter
permanecido invisíveis, se estivéssemos mergulhando no nosso cotidiano sem os
fios de pensamentos dos autores que nos puseram a caminhar. Possivelmente, não
estaríamos atentos aos processos, aos usos, às subversões, às táticas astuciosas e
desviacionistas das criançaspraticantes ao experimentarem os jogos. Talvez, nos
interessássemos, apenas, pelo que elas, supostamente, aprenderam [ou não] tal
138
como aprendemos com a modernidade. Munidos de nossas “cegueiras
epistemológicas”15 estaríamos a observar as regularidades e não os desvios, as
operações homogêneas e não as heterogêneas.
As criançaspraticantes, portanto, ao subverterem e ressignificarem os jogos
educativos [artefatos curriculares], produziram os currículos pensadospraticados nos
cotidianos escolares4. Currículos que abarcam a pluralidade e a singularidade de
fazeressaberes dos sujeitos que habitam a escola.
Estamos, criticamente, esperançosos que ao desinvisibilizarmos esses
fazeressaberes possamos instigar o exercício da ecologia de saberes na elaboração
desses instrumentos e nas práticas educativas dentrofora das escolas, pois a cada
encontro potente com as criançaspraticantes ficávamos mais convictos
Da criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade que se esconde num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma ´maneira própria´ de caminhar pela floresta dos produtos impostos
16
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do texto.
REFERÊNCIAS
1.Freire P. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Paz e Terra; 2014b. 2.Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. 3.Santos, B. de S. A gramática do tempo: para uma nova política. São Paulo: Cortez, 2010a. 4.Oliveira IB. O currículo como criação cotidiana. Rio de Janeiro: FAPERJ; 2012. 5.Certeau M de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes; 2012. 6.Oliveira IB, Alves, N. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de janeiro: DP&A; 2001.
139
7.Alves N. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: Oliveira IB, Alves, N. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de janeiro: DP&A; 2001. p. 9-13. 8.Alves N, Garcia RL. Continuando a conversa – apresentando o livro. In: Ferraço CE, Vidal CL, Oliveira IB. Aprendizagens cotidianas com a pesquisa: novas reflexões em pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. Petrópolis: DP et Alii; 2008. p. 13-38. 9.Santos B de S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2005. 10.Santos B de S, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Editora Cortez: Rio de Porto (Portugal): Edições Afrontamento; 2010b. 11.Santos B de S. Um discurso sobre as ciências. Porto (Portugal): Edições Afrontamento; 2010c. 12.Oliveira IB. Certeau e as artes de fazer: as noções de uso, tática e trajetória na pesquisa em educação. In: Oliveira IB, Alves N. organizadoras. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de janeiro: DP&A; 2001. p. 39-54. 13.Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2002. 14.Ginzburg C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. 15.Oliveira IB. Aprendendo nos/dos/com os cotidianos a ver/ler/ouvir/sentir o mundo. Educação & Sociedade (Campinas). 2007; 28(98):47-72. 16.Certeau M de, Giard L, Mayol P de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes; 2011.
140
APÊNDICE D – Artigo submetido à Revista DEMETRA
Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de nutrir” de Certeau
Maria da Glória Pinheiro Rezende
Nutricionista e Professora de Educação Física. Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço: Praça Nossa Senhora Auxiliadora, s/nº, Leblon, CEP 22441-050, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]
142
Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de nutrir” de Certeau
Resumo
Este artigo tem como objetivo narrar uma experiênciaprática vivida com
criançaspraticantes, do 3º ano do ensino fundamental, que frequentam a oficina “Corpo,
Cor e Sabor” no Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino
Escolar de Arte e Esporte da Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de
Janeiro. A oficina, que tem como proposta promover a reflexão, o diálogo e a tessitura de
saberes sobre alimentação, nutrição e saúde, utiliza uma diversidade de estratégias
metodológicas a fim de estimular a participação ativa das crianças, dentre elas, a
interpretação cênica das suas práticas cotidianas. As criançaspraticantes ao
compartilharam suas histórias, construíram coletivamente cenas de suas práticas
cotidianas, deixando indícios do hibridismo entre o que se deseja e o que se vive,
especialmente no que se refere às suas práticas alimentares. Acolhendo os
pensamentos de Certeau, somos convidados a interpretar as práticas culturais que
habitam a vida cotidiana a partir das astúcias e táticas das criançaspraticantes, que com
suas artes de fazer e de nutrir, inventam uma vida possível de se viver.
Palavras-chave: criançaspraticantes, alimentação, cotidiano
143
The practices of everyday life: Certeau’s arts
Abstract
This article intention is to demonstrate a practical experience lived with crianças
praticantes, in the 3rd year of primary school, attending the "Body, Color and Flavor"
workshop in Leblon’s Art Center - Research Center for Education in School of Art
Teaching and sports of the Department of Education of the Rio de Janeiro’s city.
The workshop, whose proposal is to promote reflection, dialogue and the building of
knowledge about nutrition and health, utilizing a variety of methodological strategies
in order to stimulate the active participation of children, among them, the scenic
interpretation of their daily practices .The criançaspraticantes by sharing their stories,
collectively built scenes of their daily practices, leaving pieces of hybridist between
what is desired and what is lived, especially when it comes to their eating habits. By
using the ideas of Certeau we are invited to analyze the cultural practices that
inhabits the daily life from the cunning and tactics of crianças praticantes that with
your own art to make and nutrition, invents a life which is possible to live.
Keywords: crianças praticantes, food, everyday.
144
Introdução
Nesse artigo, tenho como objetivo narrar uma das experiênciaspráticas25
vividas com as criançaspraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”.
Esta experiênciaprática teve como fio condutor a encenação dos fazeressaberes e
da comensalidade praticada pelas crianças e seus familiares nos seus cotidianos, a
partir do uso dos conceitos apresentados por Michel de Certeau nos livros “A
invenção do cotidiano: 1 artes de fazer” e “A invenção do cotidiano: 2. morar,
cozinhar”.
Na narrativa das experênciaspráticas – uma “maneira de fazer” textual,
segundo Certeau1, temos a intenção de trazer para a cena, os movimentos, os
gestos, as falas, as personagens [reais, idealizadas e hibridizadas] que tecem o
cotidiano das criançaspraticantes, especialmente no que diz respeito às “artes de
fazer”, às “artes de nutrir” e às “artes de viver”.
Compartilho estas experiênciaspráticas, acreditando que, as mesmas,
possam instigar novas maneiras [não hegemônicas] de conhecer e de dialogar com
os fazeressaberes das criançaspraticantes que (re) inventam, astuciosamente,
maneiras plurais de fazer e de nutrir cotidianamente.
Certeau e os praticantes do cotidiano
Michel de Certeau me acionou com as ideias presentes no livro a “Invenção
do Cotidiano”, onde traz para o centro da cena o homem ordinário, fala de todos nós
que, com as nossas táticas, astúcias e maneiras de fazer, inventamos o nosso
cotidiano.
Certeau1, nessa obra, confere ao cotidiano e aos seus praticantes anônimos o
estatuto de ser e fazer pesquisa, quando muitos ainda insistem em acreditar que
nesse espaçotempo só há senso comum, repetição, reprodução e consumo passivo
daquilo que nos é imposto cotidianamente.
25
Nilda Alves, uma cotidianista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tem se valido de junções
de palavras para transpor as dicotomias e os binarismos, conferindo outro sentido às expressões. Usarei as
junções, ao longo do texto, com a mesma intenção.
145
O cotidiano certeauniano, assim como o nosso, é um espaço praticado, vivido
por pessoas que, com suas falas, gestos, movimentos e objetos, exercem
anonimamente suas táticas, operando outros procedimentos de consumo e criando,
astuciosamente, a rede de uma antidisciplina. Uma rede que insiste em nos
apresentar, ainda que não tenhamos “olhos para ver”, novas maneiras de fazer, de
consumir e de utilizar aquilo que nos é dado e, supostamente, imposto pelo poder
instituído.
[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular, barulhenta, posta-se uma produção do tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (Certeau, 2012
1, p.88-89).
Nesse sentido, em suas vidas cotidianas, os supostos consumidores
passivos, através de suas “artes de fazer” – táticas e astúcias, fabricam formas
alternativas de uso, dando origem a novas maneiras de utilizar a ordem imposta. As
táticas, desviacionistas e de resistência, seriam, portanto
Movimento “dentro do campo de visão do inimigo” como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É a astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco” (Certeau
1, 2012, p.94-95).
A tática, enquanto arte do fraco, não tem lugar próprio e nem visão
globalizante, distinguindo-se da noção de estratégia que, própria de um poder,
permite a “‘prática panóptica’ a partir de um lugar de onde a vista transforma as
forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar, portanto, e
incluir na sua visão.
Contrapondo-se as táticas, nessa relação de poder, as estratégias são
[...] ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes),
146
capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugares e visam dominá-los uns pelos outros. Privilegiam portanto as relações espaciais [...] (Certeau
1,
2012, p.96).
Sobre as táticas e estratégias, o autor ainda esclarece:
[...] a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais as coerções que a possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (Certeau
1,
2012, p.96).
Apropriei-me, portanto, dos conceitos de cotidiano, maneiras de fazer, táticas
e estratégias apresentadas por Certeau, para mergulhar no cotidiano da oficina
“Corpo, Cor e Sabor”, percebendo as práticas microbianas, singulares e plurais dos
praticantespensantes desse espaçotempo.
Certeau, ao narras as práticas comuns, dos praticantes ordinários, desloca o
nosso “olhar”, nos convidando a interpretar as práticas culturais que habitam a vida
cotidiana a partir das astúcias e táticas dos praticantes anônimos que, com suas
artes de fazer inventam uma vida possível de se viver.
Contextualizando o espaçotempo das experiênciaspráticas: Núcleo de Arte
Leblon e oficina “Corpo, Cor e Sabor”
Atualmente, existem, vinculados à Secretaria Municipal de Educação da
Cidade do Rio de Janeiro, sete Núcleos de Arte, dentre eles o Núcleo de Arte
Leblon, que se configuram como Unidades de Extensão Educacional, incorporando
o papel de Centros de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte.
Como o nome já enuncia, o Núcleo de Arte Leblon, coordenado pela 2ª CRE,
está localizado no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, situado no
mesmo quarteirão das escolas municipais Sérgio Vieira de Mello e George Pfisterer.
A primeira dedica-se ao ensino fundamental I e a segunda ao ensino fundamental II.
Estas escolas, dada a proximidade geográfica, estabeleceram parcerias com o
Núcleo de Arte Leblon, enviando suas turmas, no turno escolar, para participarem de
147
oficinas concebidas, pelos professores desta unidade, especialmente para as
escolas parceiras.
Além das parcerias, o Núcleo do Leblon [como o chamamos cotidianamente]
oferece oficinas, em outros horários, para os alunos do contraturno que o procuram
por demanda espontânea. Este Núcleo, especialmente, oferece uma grande
diversidade de oficinas por conta das formações híbridas de seus professores.
Acrobacia; Arte Literária; Artes Visuais; Balé Clássico; Corpo, Cor e Sabor; Dança
Contemporânea; Dança Popular, Multimídia; Música, Teatro e Vídeo são alguns
exemplos de oficinas que acontecem duas vezes por semana, com duração de uma
hora, ao longo de um ano letivo.
O Núcleo de Arte Leblon, enquanto espaçotempo que pratica o diálogo entre
os diferentes saberes nas suas oficinas, nos seus “corredores”, nos “cafezinhos
proseados” e, também, no centro de estudo semanal de seus professores, permitiu
que pensássemos uma oficina que permitisse aos seus praticantes [professores e
alunos] a reflexão sobre “Alimentação, Nutrição e Saúde” a partir das diferentes
linguagens das artes, dentre elas, as artes cênicas.
A oficina “Corpo, Cor e Sabor”26 é oferecida, pelo Núcleo de Arte Leblon,
desde 2012, às turmas da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello. As
criançaspraticantes, no ano de 2014, quando assumimos o cotidiano da oficina como
lócus de uma pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Alimentação,
Nutrição e Saúde, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tinham entre 8 e 9
anos de idade e cursavam o 3º ano do ciclo do ensino fundamental. No período da
pesquisa, recebemos três turmas, totalizando 94 criançaspraticantes. Estas, em sua
grande maioria, eram moradoras da Rocinha, do Vidigal e da Cruzada de São
Sebastião, localizada também no bairro do Leblon.
Os nossos encontros, que aconteciam uma vez por semana, com duração de
1h, tinham como proposta estimular a “curiosidade epistemológica” e desinvisibilizar
os currículos pensadospraticados, bem como as redes de saberes, fazeres, valores
e crenças em alimentação, nutrição e saúde, permitindo, ainda, conhecer os modos
de pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças praticantes.
26
Nas narrativas sobre a oficina “Corpo, Cor e Sabor”, farei uso, na maioria das vezes, da primeira pessoal do plural não para me esconder na impessoalidade, mas para revelar a existência de uma rede de sujeitos e subjetividades que pensam e que praticam noscom os cotidianos, da oficina e da pesquisa, ainda que anonimamente
148
Movidos pelos pensamentos dos autores que nutrem os nossos
fazeressaberes, mergulhamos com todos os sentidos, no nosso cotidiano e na
cotidianidade de nossas crianças, esperançosos de que, juntos, estaríamos a pensar
em espaçostempos que garantissem a diversidade, a liberdade, a criatividade, a
experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o
pensaraprenderensinar coletivamente e tudo o mais que fosse necessário para
despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática
educativa2.
Desfrutando da diversidade de espaços presentes no Núcleo de Arte Leblon,
bem como do seu entorno, no decorrer de nossos encontros foram usadas
diferentes estratégias metodológicas a fim de estimular a participação ativa das
crianças como: atividades corporais; desenho e pintura; escrita de textos;
interpretação cênica das atividades cotidianas; peças de teatro, vídeos, filmes e
documentários que abordam o tema alimentação; visitas aos mercados e à feira livre
do bairro; oficina sensorial com alimentos; jogos de nutrição; experimentação de
receitas de família e de novos sabores; leitura de livros; plantio de mudas e de horta
suspensa, dentre outros.
As atividades foram pensadas considerando as singularidades, as
potencialidades das crianças e os caminhos que elas nos apontavam entre um
encontro e outro, sempre articuladas pela via do prazer, da solidariedade e da
autoria, tendo como fio condutor a alimentação, nutrição e saúde. Os encontros da
oficina foram conduzidos por três professoresparceiros que, na maioria dos
encontros, atuavam em dupla.
A parceria por nós estabelecida, além das afinidades epistemológicas e
políticas, deu-se também em função das nossas formações híbridas e
complementares [teatro, dança, vídeo, educação física e nutrição], constituindo-se
em um espaçotempo permanente de trocas, experimentações e reflexões. A
solidariedade, o prazer e a autoria, considerados tão caros nos processos de nossas
oficinas das linguagens da arte, também foram elementos preciosos nessa
experiência tecida, destecida e (re)tecida cotidianamente. Elementos estes, segundo
Oliveira3, considerados centrais nas lutas emancipatórias propostas por Boaventura
de Sousa Santos. Nos anos de 2013 e 2014, por conta do momento de luta que
vivíamos na educação pública da cidade do Rio de Janeiro, estávamos, talvez sem
darmos conta disso, cada vez mais, em busca de práticas emancipatórias tanto para
149
as crianças quanto para nós. A pesquisa, a nossa prática educativa [que desejava
ser emancipatória] e a nossa parceria se fortaleceram na luta, e esta foi uma de
nossas respostas à ofensa à educação pública brasileira, em especial, à educação
pública da cidade do Rio de Janeiro.
Encenando o cotidiano: “artes de fazer” e “artes de nutrir”
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres (Certeau M, Giard L; Mayol P
4, 2011, p.31).
Propusemos às crianças a encenação dos seus cotidianos. Num primeiro
momento a cena do despertar até o chegar à escola. Num outro encontro, a cena da
preparação e da realização de uma das refeições do dia em suas casas.
Nesses dias de encenação, fomos todos para o teatro. Apostamos no palco e
nas coxias como facilitadores do rememorar de um cotidiano que seria
compartilhado na sua concretude. Pretendíamos que este espaço privado – o habitat
de cada um, “lugar do corpo, lugar de vida”4, fosse revelado a todos, especialmente
para cada um que vive, habita e pratica os cotidianos em cena. Nesse espaço
privado
[...] os corpos se lavam, se embelezam, se perfumam, têm tempo para viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se abraçam e depois se separam. Aqui o corpo doente encontra refúgio e cuidados, provisoriamente dispensado de suas obrigações de trabalho e de representação no cenário social. Aqui o costume permite passar o tempo “sem fazer nada”, mesmo sabendo que “sempre há alguma coisa a fazer em casa”. Aqui a criança cresce e acumula na memória mil fragmentos de saber e de discurso que, mais tarde, determinarão sua maneira de agir, de sofrer e de desejar (Certeau M, Giard L, Mayol P
4, 2011, p. 205).
Assim que entramos no teatro, pedimos para que tirassem seus sapatos,
subissem ao palco e deitassem, como se ainda estivessem dormindo em suas
casas, em suas camas. Pedimos, inclusive, que tentassem se posicionar na forma
150
que usualmente dormiam. Presenciamos, assim, corpos diferentes, fazendo
desenhos e contornos únicos sobre o chão. Corpos que se abraçavam; pernas que
se sobrepunham ao corpo do outro. Apoios e contatos que marcavam a diversidade
e a singularidade de um “modo de fazer” cotidiano.
Ao dormir fomos acrescentando o despertar e a este os fazeres que o
sucediam. Cada um, na memória de sua cotidianidade, foi nos apresentando as
suas maneiras de fazer e de sua família. Era possível vê-las dormindo; acordando;
espreguiçando; escovando os dentes; tomando o banho; penteando os cabelos;
calçando os sapatos... Maneiras de fazer que iam se diferenciando pelos gestos,
pelo ritmo, pela sequência...
No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo das tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio, numa série de operações executadas maquinalmente cujo encadeamento segue um esboço tradicional dissimulado sob a máscara da evidência primeira, empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmos de opções, de hábitos herdados e de costumes repetidos (Certeau M, Giard L, Mayol P, 2011, p. 234).
Estas maneiras de fazer, de cada um, foram repetidas algumas vezes com a
intenção de que as crianças pudessem ir se apropriando, mais conscientemente, do
que por hábito executavam no seu cotidiano. Algumas crianças mantinham a mesma
sequência, outras alternavam os fazeres da encenação anterior. Era possível
observar, ainda, crianças que executavam, na mesma encenação, duas vezes o
mesmo fazer cotidiano.
Dando sequência a encenação, pedimos para que as crianças se
organizassem em grupos para conversarem a respeito do que encenaram e, a partir
daí, criarem coletivamente a cena deste fragmento do cotidiano: do despertar ao
chegar na escola.
Observar a construção coletiva da cena nos permitia ouvir as narrativas do
cotidiano das crianças e de suas famílias. As crianças relatavam com quem
dormiam; como dormiam; quem as acordavam; se tomavam banho; se escovavam
os dentes; se tomavam café-da-manhã; com quem tomavam; quem preparava a
primeira refeição do dia; como iam para a escola... As narrativas do cotidiano iam
sendo tecidas, articuladas, entrecruzadas a fim de que, coletivamente, construíssem
a cena.
151
A cena final, desta trama cotidiana, era um hibridismo das narrativas do
cotidiano de cada criança que se dispôs a contar um pouco de sua história. Esta
construção coletiva também era fruto de muitas negociações, onde os personagens
eram aceitos, recusados, entrelaçados e hibridizados. Alguns grupos conseguiam
colocar em cena um pouco do cotidiano de cada componente, em outros
prevaleciam as ações cotidianas das crianças mais articuladas, com maior poder de
convencimento sobre o grupo.
Era possível perceber na construção da cena final, de cada grupo, uma
mistura de realidade e de desejo, pois, se em alguns relatos havia a ausência de
fazeres e de familiares, nas cenas, as ausências podiam se fazer presentes.
Estas articulações entre a realidade em que se vive e aquela em que gostaria
de se viver, nos remeteu a fala de Augusto Boal27 quando ele nos diz que
Uma das principais funções da nossa arte é tomar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana (Boal
5, 2009).
Pensar e encenar os seus cotidianos, permitiram às crianças criarem
cenicamente alternativas para vivê-los de outras maneiras. As presenças se fizeram
ausências. As ausências transformaram-se em presenças6.
Na cena, o casal dormindo, que em seguida acorda para chamar seus filhos
dando sequência ao banho, ao escovar os dentes, ao tomar café, ao trocar de
roupa... Não necessariamente nessa ordem. A mãe, enquanto isso, prepara o café,
coloca a mesa e chama a todos.
Em outro grupo, é possível perceber a correria da manhã. Todos falando e
correndo pela casa; tomando café às pressas e saindo correndo para não perder o
ônibus. Este, construído em cena, leva as crianças até a escola.
Se ao ouvirmos alguns relatos de crianças que acordam sozinhas e preparam
o seu próprio café da manhã, em cena há sempre alguém que acorda, que acolhe e
que cuida. Ainda que a cena final seja fruto de negociações, as crianças, que vivem
a realidade que não se quer viver, podem optar [ou não] pela cena alheia.
27
As citações do dramaturgo Augusto Boal foram extraídas de seu discurso proferido, no dia 27 de
março de 2009 - Dia Mundial do Teatro, em Paris, quando homenageado pela UNESCO.
152
Num encontro seguinte, um novo desafio: criar cenas coletivamente, a partir
das narrativas do grupo a respeito de uma refeição elaborada e partilhada em casa.
Essas cenas nos permitiram conhecer um pouco do cotidiano de cada um, um
pouco do cotidiano desejado por cada um. As cenas nos mostraram as diferentes
configurações familiares e a distribuição de tarefas entre os componentes da casa.
Ainda que um hibridismo de realidade e de fantasia componha a cena, podemos ver
a presença feminina sempre com a responsabilidade pelas tarefas domésticas.
Em cena, a arte de cozinhar, as “artes de nutrir”4, dizia respeito,
principalmente, ao papel das mulheres. A estas cabiam a tarefa de comprar e
preparar as refeições para a família, ainda que trabalhassem fora. À irmã cabia a
tarefa de esquentar a comida no micro-ondas [deixada pronta pela mãe no dia
anterior], para seus irmãos. Aos pais, aos filhos, aos irmãos, ou seja, aos
componentes familiares do sexo masculino cabia a tarefa de aguardar o momento
de nutrir-se.
As meninas, ao assumirem em cena o papel de mães, avós, madrinhas,
reproduziam gestos das mulheres de sua casa cozinhando o feijão, batendo o bolo,
passando o café, varrendo a casa, lavando a louça, cuidando das crianças. Nas
cenas, portanto,
O gesto se decompõe numa sequência ordenada de ações elementares, coordenadas em sequências de duração variável segundo a intensidade do esforço exigido, organizada segundo um modelo aprendido de outra pessoa por imitação (alguém me mostrou como fazer), reconstituída de memória (eu a vi fazer assim), ou estabelecida por ensaios e erros a partir de ações vizinhas (acabei descobrindo como fazer) (Certeau M, Giard L, Mayol P
4,
2011, p.273).
Em uma das cenas foi possível identificar: três mulheres [três meninas], um
homem [um menino], três crianças [dois meninos e uma menina] e um cachorro
[menina]. A avó materna, com perda de memória, varria a casa sem parar e suas
duas filhas tentavam preparar o jantar enquanto as crianças corriam pela sala em
companhia do cachorro. As mães das crianças pediam, aos berros, silêncio, mas a
correria continuava. As mães discutiram entre si, pois uma delas imputou ao
sobrinho a responsabilidade pela bagunça da casa. No meio da confusão, o marido
de uma delas chegou do trabalho e disse: “Estou cansado. Vou para o quarto.
Quando o jantar estiver pronto, me chama”. O óleo de cozinha acabou e deu início a
153
uma nova confusão: quem daria o dinheiro para comprar na venda vizinha? Uma
das crianças interferiu na discussão e disse: “Madrinha! Se você quer comer, tem
que pagar. Minha mãe já comprou o arroz”. Cardápio do jantar: arroz, feijão, batata,
cenoura e carne.
Numa outra cena: duas mulheres [duas meninas], duas crianças [um menino
e uma menina], um homem [um menino]. Os pais chegam do trabalho e encontram
seus filhos, uma menina e um menino, que estavam sendo cuidados pela babá em
casa. Todos se abraçam e se beijam, e a mãe vai até a cozinha preparar o jantar.
Jantar pronto e todos sentam à mesa. Macarronada com molho de carne moída e
suco de uva. A mãe avisa ao filho mais velho: “Se não comer tudo, está de castigo.
Vai ficar sem comer bala de caramelo”.
Ainda, em cena: uma mulher [uma menina] e três crianças [um menino e duas
meninas]. A mãe acorda; dirige-se para a cozinha; prepara o almoço e sai para o
trabalho, enquanto os filhos ainda dormem. Ao acordarem, as crianças preparam
seus pratos e os aquecem no micro-ondas. Em seguida, sentam a mesa e almoçam,
juntos, enquanto a mãe trabalha.
Nas cenas dos cotidianos, onde tudo se entrecruza – afetos, memórias,
gestos, poderes, saberes, ignorâncias, ausências, presenças, ordem, desordem,
plateia, espectadores, desejos, as crianças praticantes, (re) inventam suas histórias
e iluminam o palco da vida, pois como nos aconselha o dramaturgo
[...] temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. [...] façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos (Boal
5, 2009).
Considerações finais
As criançaspraticantes ao compartilharam suas histórias, construíram
coletivamente cenas híbridas das narrativas do cotidiano de cada uma, deixando,
contudo, indícios, do que se deseja e do que se vive, especialmente no que se refere às
suas práticas alimentares. Esta experiênciaprática, portanto, aponta caminhos possíveis
de investigação, de diálogo e de (re) conhecimento das práticas alimentares das
crianças, bem como de suas redes de saberes, fazeres, valores, afetos, crenças e
subjetividades. Caminhos, contra-hegemônicos, que permitem [para além de fragmentar,
154
classificar, ordenar...] ver/sentir/ouvir/saborear as criançaspraticantes em ato,
iluminando o palco da vida cotidiana.
REFERÊNCIAS
Certeau M de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.
Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
Oliveira I B. Contribuições de Boaventura de Sousa Santos para a reflexão
curricular: princípios emancipatórios e currículos. Revista e-curriculum 2012; 8(2): 1-
22.
Certeau M de, Giard L, MAYOL, P de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar.
Petrópolis: Vozes, 2011.
Boal A P. Dia mundial de teatro. Paris, 2009. [discurso]
Santos B de S. A gramática do tempo: para uma nova política. São Paulo: Cortez,
2010.
155
ANEXO A – Parecer consubstanciado do comitê de ética
PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP
DADOS DO PROJETO DE PESQUISA
Título da Pesquisa: Currículos pensadospraticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde,
no/com o cotidiano escolar. Pesquisador: Eliane de Abreu Soares Área Temática:
Versão: 3
CAAE: 24118113.4.0000.5259
Instituição Proponente: Instituto de Nutrição
Patrocinador Principal: Financiamento Próprio
DADOS DO PARECER
Número do Parecer:
642.493 Data da
Relatoria: 14/05/2014
Apresentação do Projeto:
Adequada.
Objetivo da Pesquisa:
Objetivo Primário:
Desinvisibilizar os currículos pensadospraticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde, pelos
praticantes do/no cotidiano escolar.
Objetivo Secundário:
- Favorecer o emergir de diálogos, conflitos e tensões entre o currículo oficial em
Alimentação, Nutrição e
Saúde e o currículos pensadospraticados no cotidiano escolar;
- Conhecer os modos de pensaraprenderensinar sobre Alimentação, Nutrição e Saúde
valorizados pelos praticantes do cotidiano;
- Compreender os modos pelos quais algumas práticas curriculares vividas no cotidiano
escolar podem vir a ser contribuições à emancipação
HOSPITAL UNIVERSITÁRIO
PEDRO ERNESTO/
UNIVERSIDADE DO ESTADO
156
Avaliação dos Riscos e Benefícios: Adequada.
Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:
Pesquisa qualitativa ancorada nos pressupostos teórico-epistemológico-políticos dos estudos
nos/dos/com os cotidianos. A pesquisa-ação será realizada com crianças do 3º ano do ciclo do
ensino fundamental da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro no cotidiano
escolar de uma oficina em Alimentação, Nutrição e Saúde - "Corpo, Cor e Sabor",
desenvolvida no Núcleo de Arte Leblon, Unidade de Extensão Educacional da Secretaria
Municipal de Educação.
Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória: Adequados.
Recomendações:
Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:
Foram atendidas as solicitações do Parecer Consubstanciado anterior. Projeto aprovado.
Situação do Parecer:
Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP:
Não
Considerações Finais a critério do CEP:
1. Comunicar toda e qualquer alteração do projeto e termo de consentimento livre e
esclarecido. Nestas circunstâncias a inclusão de pacientes deve ser temporariamente
interrompida até a resposta do Comitê, após análise das mudanças propostas. 2. Os dados
individuais de todas as etapas da pesquisa devem ser mantidos em local seguro por 5 anos
para possível auditoria dos órgãos competentes. 3. O Comitê de Ética solicita a V. Sª., que ao
término da pesquisa encaminhe a esta comissão um sumário dos resultados do projeto.
RIO DE JANEIRO, 09 de Maio de 2014
Assinador por:
ANTONIO FELIPE SANJULIANI (Coordenador)